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Ilza Nogueira

Fausto Borém
(Editores)

SÉRIE CONGRESSOS DA TEMA

Ilza Nogueira, Organizadora O pensamento musical criativo: teoria, análise


e os desafios interpretativos da atualidade
Volume I Série Congressos da Tema, 1

Salvador
UFBA
2015
Associação Brasileira de Teoria e Análise Musical
Este livro é uma publicação da
TeMA – Associação Brasileira de Teoria e Análise Musical

Diretoria Executiva
Ilza Nogueira
sumário
Presidente
APRESENTAÇÃO
Cristina Capparelli Gerling
Vice-Presidente O Pensamento musical criativo: tradição e transgressão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
Antenor Ferreira Corrêa Ilza Nogueira
Secretário
Alex Pochat PARTE I - ANÁLISE MUSICAL NA CONTEMPORANEIDADE
Tesoureiro
Rodolfo Coelho de Souza
01. Em Busca da música: linguagem, análise e cuidado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .19
Editor Lawrence Kramer
Alex Pochat (Trad.)
Conselho Editorial da Série Congressos da TeMA
Ilza Nogueira (Editora) 02. Música e narrativa desde 1900: o desafio hermenêutico da análise
Carlos Almada contemporânea . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40
Norton Dudeque Michael Klein
João Pedro Oliveira Alex Pochat (Trad.)
Paulo Costa Lima
Maria Alice Volpe
PARTE II - TEORIAS DO COMPOR:
Ficha Técnica do Volume 1 A CONTEMPORANEIDADE BRASILEIRA
Editores: Ilza Nogueira e Fausto Borém
Projeto gráfico e editoração: Quartel Design (www.quarteldesign.com) 03. A Produção de teoria composicional no Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
Liduino Pitombeira
Imagem fotográfica da capa: “Vina”, instrumento de Walter Smetak. Foto de Alexandre Espinheira, edição
de Cássio Nogueira (Coleção Walter Smetak - exposição: “Smetak - Alquimista do Som”, Solar Ferrão - 04. A Narratividade intrínseca em Natal del Rey de Conrado Silva . . . . . . . . . . 90
Diretoria de Museus - IPAC / SECULT / Governo Estadual da Bahia). Rodolfo Coelho de Souza

Copyright © 2015 by TeMA 05. Referencialidade e desconstrução: tendências composicionais da música


paraibana de concerto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .106
Sistema de Bibliotecas - UFBA Marcílio Onofre
06. A obra musical enquanto sistema-obra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .125
O Pensamento musical criativo: teoria, análise e os desafios interpretativos da
atualidade / Ilza Nogueira e Fausto Borém (Editores). - Salvador: UFBA, 2015 . Fernando Cerqueira
250 p. : il. - (Congressos da TEMA ; 1)

PARTE III - ANÁLISE MUSICAL COMO DISCURSO CRÍTICO


“Ensaios derivados dos congressos da Associação Brasileira de Teoria e
Análise Musical - TeMA”
ISBN 978-85-8292-042-8
07. Crítica e criatividade a partir da visão de Ernst Widmer . . . . . . . . . . . . . . . . 137
Paulo Costa Lima
1. Música. 2. Teoria musical. 3. Música - Análise e Crítica. 4. Composição 08. Perspectivas de um formalismo musical enacionista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .147
(Música). I. Nogueira, Ilza. II. Borém, Fausto. III. Associação Brasileira de Teoria e
Análise Musical.
Marcos Vinício Nogueira

CDD - 780.9 09. Escuta, multiplicidades, singularidades . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .166


Carole Gubernikoff
Apoio 10. Teoria musical: analisando estrutura, estilo e contexto . . . . . . . . . . . . . . . . . .176
Paulo de Tarso Salles
PARTE IV - VOCABULÁRIO TEÓRICO-ANALÍTICO
E SUA PROBLEMÁTICA
11. Observações sobre música e linguagem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .191
Lawrence Kramer
Ilza Nogueira (Trad.)
12. O Tradutor enquanto construtor de pontes entre culturas . . . . . . . . . . . . . 196
Cristina Capparelli Gerling
13 O Uso da linguagem na análise musical . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 201
Acácio Piedade
14 Aspectos sobre a tradução de vocabulário teórico-analítico: o caso das
traduções de obras teóricas de Arnold Schoenberg . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207
Norton Dudeque

PARTE V – EXPECTATIVAS PARA A TEORIA DA MÚSICA


NA ATUALIDADE AGRADECIMENTOS
5 Por quê teoria da música? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219
Michael Klein Ao CNPq, à Fundação CAPES e à FAPESB, pelo patrocínio.
Ilza Nogueira (Trad.)
Aos autores, pela autorização para esta publicação.
16 O Estudo de música como roteiro de vida: apreensões e ilusões . . . . . . 224
Manuel Veiga
Ao Conselho Editorial, pela colaboração.
17 O Sentido da teoria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 236
Paulo Costa LIma

NOTAS SOBRE OS AUTORES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 243


APRESENTAÇÃO

O Pensamento musical criativo:


tradição e transgressão
Ilza Nogueira

Com o presente volume, damos início à Série Congressos da TeMA, coletânea


de ensaios derivados dos congressos bienais da Associação Brasileira de Teoria e
Análise Musical.
Focalizando “O pensamento musical criativo e os desafios interpretativos da
atualidade”, o I Congresso da TeMA se realizou em Salvador, entre 9 e 12 de
novembro de 2014, sob os auspícios do CNPq, da Fundação CAPES e da FAPESB.
O tópico definido pretendeu estimular a reflexão sobre aquilo que representa
um desafio à evolução do pensamento criativo em teoria e análise musical neste
início de século. Um desafio que pede por atitudes e ações que correspondam às
expectativas da nossa época e cultura.
É evidente que o conceito de evolução implica na transgressão do estabelecido.
E não é esta a essência do pensamento criativo? Não é da tensão entre preservar
e transgredir que se nutre a invenção? De um lado, temos uma experiência a ser
preservada; do outro, um futuro a ser inventado. E essa difícil tarefa não se faz
senão honrando passado e futuro em medida artisticamente concebida. Entender
que preservar é tão fundamental quanto modificar é o grande desafio do pre-
sente.
Preservação e transgressão são forças motrizes da vida; da criação, portanto.
O compositor é, por natureza, um desobediente; seu entendimento é de que a
desobediência pode ser a melhor forma de respeitar o estabelecido. Ele é um
transgressor em busca da legitimidade da desobediência; legitimidade esta que só
se faz através de um novo “ouvir”.
No processo de educação, aprendemos regras convencionadas que podem
nos dar uma sensação de segurança, enquanto estamos em desenvolvimento. No
entanto, a compreensão do relativo e a experiência das espontaneidades irão
conduzir-nos a perceber esse “território cultural” como limitador. Então, necessi-
tamos romper com as convenções por conta das demandas do futuro.

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO APRESENTAÇÃO

Em função dessas demandas, vivemos construindo identidades e nos desfazen- ver com música. Tem a ver com a habilidade dos sistemas analíticos se autorre-
do delas. O escritor Newton Bonder nos diz sabiamente que “a tradição é campo produzirem, o que certamente não pode nos aproximar da música ou nos ajudar
fértil para a traição”. Em outras palavras, “construir cultura é saber destruí-la a seu a ouvi-la melhor”. Se a música expressa sentimentos e valores (individuais, sociais,
tempo.” (Bonder 1998, 122) culturais e históricos), ela é um traço da relação do homem com o seu mundo e
Deixando de lado questões aparentemente filosóficas, quero registrar aqui um sua época, do Dasein heideggeriano. Sua compreensão, portanto, legítimo obje-
fato que me conduziu à composição e à musicologia analítica. Quando estudei tivo da análise musical, não pode ser produzida numa “câmara de eco analítica”,
na Escola de Música da UFBA (anos 1968 a 1971), tínhamos na disciplina “Lite- onde a essência musical é geralmente neutralizada. Assim como a própria música
ratura e Estruturação Musical - LEM” uma espécie de apreciação avançada, onde reflete o “ser humano no mundo”, a análise musical, visando além da explicação
conhecimentos teóricos de outras disciplinas paralelas – harmonia, contraponto, estrutural, necessariamente, testemunha o engajamento do musicólogo com a
fuga e história da música – alimentavam o exercício do que se poderia entender cultura e a história.
como uma livre “introdução à crítica”. A disciplina, então ministrada por Ernst Em seu livro “Hermenêutica e Ideologias”, Paul Ricoeur diz: “A explicação é o
Widmer, era fascinante para mim. Comentei com o professor que gostaria de caminho obrigatório da compreensão” (2008, 61). Atribuindo à análise estrutural
vir a lecioná-la. Sua resposta imediata foi a seguinte: “nesta escola, somente com- a tarefa da ‘explicação’ e à crítica hermenêutica a da ‘compreensão’, Ricoeur não
positores podem lecionar esta disciplina”. Confesso que minha imaturidade na fala de outra coisa senão da intimidade entre estruturação e interpretação. No
época não me fez entender mais do que a necessidade de começar a “estudar” discurso artístico, essa cumplicidade corresponde ao diálogo entre o mundo das
composição. Mas esse mesmo professor dizia que ensinar a criar lhe parecia um “ideologias”, isto é, dos preceitos recebidos da tradição, e ao mundo das “utopias”,
“atrevimento”; e seu ensino de composição dispensava as regras, os modelos, os ou seja, das visões que enfrentam a realidade e mudam o curso da história. No
trilhos. Citando Widmer: “Trilhos podem apenas servir ao ato criador através de discurso sobre música, trata-se das correspondências entre o “mundo do texto
outro ato, o iconoclasta.” Essa e outras pérolas do discurso provocativo de Wid- musical” (do projeto representativo) e “o mundo da obra” (da escuta interpreta-
mer se encontram no seu texto “A Formação do compositor contemporâneo... tiva). Se o objetivo da análise é o mundo da obra, é através do mundo do texto
E seu papel na educação musical” (2013). Em sua didática, escutar era o essencial: musical que se alcança a meta.
fomentar a autocrítica; desenvolver o “novo ouvir” que legitima a transgressão. Hoje Tanto na composição quanto na prática analítica, o ofício requer o livre trân-
eu compreendo a sabedoria do que, na juventude, percebi como imposição (a exi- sito entre memória e invenção. Nem a teoria, com sua competência explicativa,
gência da formação em composição para a docência de disciplinas teórico-críticas) nutre-se exclusivamente das ideologias, nem a composição, com seus desafios à
e, possivelmente, negligência (uma aceitação incondicional da transgressão). imaginação, se sustenta ao nível das utopias. Analisando ou compondo, tal qual
O leitor certamente irá notar que 50% do conteúdo deste volume se concentra abelhas melíferas, operamos entre anteras de tradição e estigmas de invenção
em teorias composicionais contemporâneas e no ensino de composição. Isto se para que se realize o milagre da arte.
justifica porque cremos que o pensamento analítico, assim como o composicional, A compreensão de que a análise pode e deve ser essencialmente criativa,
é fundamentalmente criativo. Composição e análise são geneticamente cúmplices. refletindo uma preocupação fundamentalmente existencial, deve ser a principal
Analisar requer uma atitude essencialmente compositiva, necessariamente trans- preocupação da TeMA. Que possamos nos dirigir à música com o olhar da alma,
gressora, na medida em que deve partir do ponto de vista teórico em direção valorizando a obra no que ela está comprometida com as múltiplas alternativas
ao hermenêutico: crítico, interpretativo. Por outro lado, o processo de gestação de interpretativas fora da materialidade da partitura; compreendendo na transgres-
uma obra musical geralmente inicia por um esboço teórico, quando não sistemático. são do artista a melhor tradução do seu respeito à vida; e desenvolvendo uma
Segundo Lawrence Kramer, em seu ensaio introdutório, “o que hoje é geral- escuta atenta aos inúmeros matizes que se mesclam no discurso musical como
mente praticado sob o nome de análise musical não tem absolutamente nada a traços da cultura e da história.

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO

Concluindo esta reflexão, quero celebrar com os colaboradores deste volume


a nossa significativa participação em um momento promissor para o futuro da
Teoria e Análise musical no Brasil.

Referências
Bonder, Newton. 1998. A Alma Imoral. Rio de janeiro: Rocco.
Ricoeur, Paul. 2008. Hermenêutica e Ideologias. Org. e trad. Hilton Japiassu. Petrópolis: Vozes.
Widmer, Ernst. 2013. “A Formação do Compositor Contemporâneo... E seu Papel na
Educação Musical” (1988). Marcos Teóricos da Composição Contemporânea na UFBA, vol. 4, 1-6.
Disponível em: <http:// mhccufba.ufba.br>.

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PARTE I - ANÁLISE MUSIC AL NA CONTEMPORANEIDADE

Em Busca da música:
linguagem, análise e cuidado1
Lawrence Kramer
Tradução de Alex Pochat

Peço licença para começar colocando um forte posicionamento negativo. Uma


afirmação que não é o objetivo principal do que tenho a dizer hoje; o objetivo
é responder à questão sobre o que fazer se essa afirmação estiver certa. Para
obter uma boa solução, precisamos de um bom problema, e se minha afirmação
preliminar estiver certa, então temos, de fato, um problema muito bom - isto é,
muito ruim. A afirmação é a de que, o que hoje é geralmente praticado sob o
nome de análise musical, não tem absolutamente nada a ver com música.Tem a ver
com a habilidade dos sistemas analíticos se autorreproduzirem. O que chamamos
de análise é a imagem espelhada de si mesma. Ao contrário do que os analistas
musicais muitas vezes afirmam, tal análise não pode nos aproximar da música e
não pode nos ajudar a ouvir música melhor, ou o que quer que essas promessas
vagas possam significar.
O que, então, a análise pode fazer? O que ela deveria fazer? Deveríamos ter
algumas respostas preliminares a essas questões quando tivermos terminado. Mas,
para começar, temos que ficar com a negativa. Assim, como um primeiro passo,
vou submeter um exemplo simples de análise a uma crítica severa. Posso lhes
assegurar que o analista não vai se importar, porque esse analista fui eu.
Em 1992, publiquei uma discussão sobre a introdução instrumental do oratório
The Creation, de Haydn2. O tema do artigo se assemelhava a um dos temas
deste congresso, isto é, a relação da análise com discurso crítico, interpretação e
hermenêutica musical. O ponto de partida foi a análise de Heinrich Schenker da
Introdução. Schenker procurou usar a análise como uma base para interpretar a
Introdução como o que Haydn denominou “A Representação do Caos”. Lidar
com esse tema me levou a adotar certas observações analíticas de Schenker.
Uma dessas observações mais proeminentes envolveu uma irrupção violenta, que
1 Título original: In Search of Music: Analysis, Language and Care.
2 Kramer 1992.

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE I - ANÁLISE MUSIC AL NA CONTEMPORANEIDADE

leva a Introdução a um clímax em uma cadência sem efeito quando a música Qual é o sentido?
chega aos dois terços. Esse clímax é pura frustração. Acontece que ele também Mas, espere um pouco: não há uma falha neste argumento? Eu falei sobre
coincide com a descida prematura da Urlinie. Tomei esse acidente como um sinal coisas como oitavas e tríades e cadências; isso é uma forma de análise, não é? E
de que a Urlinie deixou de funcionar, ou, mais precisamente, de que ela ainda não esse vocabulário não é necessário para se falar sobre música, de qualquer modo?
havia ganho o poder de funcionar, porque a criação ainda não havia acontecido. Se é, como se pode justificar falar nesses termos analíticos mas descartar o uso
A irrupção barulhenta, toda em oitavas, cria a assinatura do caos, o grande X no dos termos de Schenker, ou dos termos da teoria neo-Riemanniana, ou da teoria
cerne do caos, que bloqueia o surgimento do cosmos. O cosmos apenas pode transformacional, ou da análise da teoria dos conjuntos, e assim por diante? Não
aparecer após a cadência evitada enfim chegar, no final. Essa descrição analítica é este o caso de, no momento em que se admite um vocabulário analítico, ter-se
ainda soa bem, então qual é o seu problema? que admiti-los todos?
O problema é que não existe nenhuma necessidade da Urlinie: absolutamente Há verdade nessa objeção. É impossível descrever a música rigorosamente sem
nenhuma. É perfeitamente óbvio que a irrupção no meio do movimento é uma algum vocabulário analítico e teórico. Mesmo coisas simples, como oitava e tríade
conclusão prematura. A violência do gesto, a orquestração, as severas oitavas e cadência, qualificam, e não há qualquer critério formal para separar um “bom”
substituindo as tríades, todas essas assim chamadas qualidades de “primeiro discurso analítico, que revela algo sobre a música, do discurso analítico “ruim”,
plano” praticamente gritam bem alto: ISSO É CAOS. Finais não são finais aqui; que só revela algo sobre si mesmo. Mas isso, talvez surpreendentemente, não é
não existem diretrizes; e se você acha que sabe onde está, você está errado. O um problema. É verdade, não há um critério formal para determinar a escolha da
que é acrescentado pelo aparato Schenkeriano? linguagem e dos objetos da investigação, mas há um critério de conteúdo.
Alguma coisa, poderíamos dizer: um destrinchar extra das engrenagens. Schenker Com isso, não quero dizer que se possa especificar uma série de tipos legítimos
afirma que a descida da Urlinie é, ou deveria ser, o fundamento universal da música ou apropriados de conteúdo. Conteúdo típico nunca é mais do que preliminar e,
tonal. Se a Introdução de Haydn não pode compor a sua estrutura fundamental, frequentemente, bem menos. É claro que existem signos, tópicas musicais, gêneros,
então o caos aparece na música como a negação do cosmos - a negação da perfeição tipos de narrativa, modos de representação e assim por diante, que têm um lugar e
aritmética Pitagoreana, representada pela tríade. Isso certamente é alguma coisa; influência históricos genuínos. Precisamos conhecê-los. Mas conhecê-los é apenas
mas não é muito. Temos uma tríade incompleta independentemente da Urlinie. uma ajuda limitada, porque as maneiras pelas quais a música os trata são muito
Qualquer pessoa pode ouvir isso; é quase impossível não ouvi-la. A interpretação, variadas e muito rebeldes. Além disso, a música pode ser significativa sem eles.
que não está errada, segue de maneira lógica. Então, Schenker acrescenta um Seu alcance intertextual e intermidiático é impossível de ser confinado. Assim, as
pouco - mas só um pouco. Acrescenta, principalmente, o destrinchar; o resto, de fontes de conteúdo musical não podem ser listadas. O critério de conteúdo não
qualquer modo, podemos ouvir. especifica tipos de conteúdo, mas sim o tipo de linguagem que pode nos dizer
Meu artigo falhou em reconhecer completamente o que aquela proporção algo sobre música. As afirmações feitas nessa linguagem, se forem bem feitas,
implica. A descida da Urlinie é a característica mais básica do sistema de Schenker. serão reveladoras independentemente dos recursos analíticos específicos que
Se ela acrescenta apenas um pouco, então o que acontece quando se entra no empregam.
detalhe mais fino do sistema, suas elaborações internas, cada vez mais remotas Então, que tipo de linguagem é essa? Nenhuma música jamais se apresenta a nós
da textura e som da música e cada vez mais dependente de conceitos e funções como mero som isolado - pelo menos, a não ser que nos disciplinemos para ouvir
internas e exclusivas do sistema? Se a idéia maior acrescenta pouco, essas idéias o som isolado e nada mais, e talvez nem mesmo assim. A música vem como parte
menores provavelmente adicionam muito menos. A análise toca na música e em de uma denso agrupamento ramificante de valores, práticas, decisões, relações
seus significados só no seu nível mais amplo, e mesmo nesse nível os resultados sociais, práticas culturais, tipos de identidade, fluxos de sentimento e atitude - e
da análise são menos do que essenciais. Então por que se incomodar com eles? a lista continua. É uma lista aberta; não pode ser concluída. Mas o que quer que

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE I - ANÁLISE MUSIC AL NA CONTEMPORANEIDADE

ocorra em qualquer ocasião especial, a música sempre forma uma expressão do a música, na medida, e apenas na medida, em que o noema é convocado por uma
comprometimento com o mundo e o tempo, que Martin Heidegger chamou noesis fundamentada no cuidado. Essa é uma afirmação difícil, então deixem-me
de cuidado [Sorge], a marca do testemunho e da responsabilidade, que para repetí-la: o objeto de análise musical é a música, na medida, e apenas na medida,
Heidegger eram sinônimos, ou deveriam ser sinônimos, de Dasein, ser humano no em que o noema é convocado por uma noesis fundamentada no cuidado. Para
mundo. O cuidado é o meio pelo qual o tempo vazio, o tempo dos cronômetros, dizê-lo corretamente, no entanto, temos de acrescentar que a noesis é totalmente
se torna humanizado, de modo que podemos falar do tempo para ou do tempo histórica. O sujeito preocupado com a música é exatamente o oposto do sujeito
de ou do tempo com algo que é importante para nós3. transcendental favorecido pela fenomenologia - e pela teoria musical!
O cuidado tem suas próprias linguagens, que circulam através da cultura e A réplica óbvia para essa linha de argumento é dizer que a análise também
constantemente se inventam e reinventam. Cada súdito da cultura sabe como reflete um tipo de cuidado, não sendo por outro motivo, senão pelo fato dela
falar essas linguagens, tem a oportunidade de expandi-las, e enfrenta o problema aproximar o analista e outros da música - já ouvimos isso antes. Nem metade
de reconhecer as novas quando elas aparecem, e de mudar a paisagem do cuidado desse contra-argumento é válido. A primeira metade simplesmente redefine o
como um todo. A linguagem da análise musical torna-se reveladora, torna-se cuidado para que se inclua a análise em um desafio aos vocabulários empregados
discurso crítico, escapa da armadilha da autorreflexão, quando ocorre em um dos no mundo real. O conceito de cuidado resultante é praticamente sem sentido. A
vocabulários do cuidado. segunda metade é uma falácia lógica clássica, que supõe o que tenta provar. Até a
Esse critério do cuidado é tão generoso quanto severo. Ele é generoso porque suposição está defeituosa e não examinada: o que é essa proximidade fornecida
deixa as portas da oportunidade escancaradas; é severo porque exclui a maior pela análise, a menos que seja entendida circularmente como qualquer coisa que
parte do que aconteceu nos últimos cem anos em análise musical. Deveríamos a análise fornece? E se ela não for isso, se a proximidade é alguma outra coisa, a
ao menos considerar a possibilidade de que falar sobre música em um idioma análise pode perfeitamente reduzir a proximidade, ao invés de aumentá-la. Muitos
técnico muito livre do cuidado pode já não ser, de maneira nenhuma, falar sobre músicos sentem que a análise faz exatamente isso.
música. Então, onde isso nos deixa? Como podemos formular uma compreensão
A análise musical não é e não pode ser a base da compreensão musical. Ao musical da música sem cair em uma câmara de eco analítica? Em certo sentido, eu
contrário, a compreensão musical é, ou deveria ser, a base da análise - e seu já tentei responder a essa pergunta invocando a linguagem do cuidado. Mas, para
limite. A análise resultante parece muito diferente da análise como é praticada dar a resposta, precisamos refletir mais sobre o cuidado, precisamente, como uma
atualmente, a qual, muito frequentemente, neutraliza a música com a qual afirma expressão da linguagem. Claro que música e linguagem geralmente se opõem;
se preocupar. O problema não é que os analistas não se preocupam com a música, todos conhecem os clichês sobre o assunto. Mas nem a música nem a linguagem
mas que se preocupam de maneira errada. Eles não podem dar uma explicação podem ficar separadas uma da outra por muito tempo. Para chegar à música,
satisfatória da música, não porque lhes falte habilidade (eles têm muita habilidade), devemos passar pela música, mas para chegar à música devemos, da mesma forma,
mas porque a música não pode ser explicada analiticamente. A música é uma passar pela linguagem. Não há alternativa.
forma de ação comunicativa ou expressiva, antes de ser qualquer outra coisa. O Em seu estudo recente sobre o juramento, O Sacramento da Linguagem, Giorgio
que a música apresenta para a análise depende de como um sujeito engajado Agamben dá a provocativa declaração de que nomear é “o evento da linguagem
culturalmente trata a música a partir de uma posição de preocupação existencial. no qual as palavras e as coisas são indissoluvelmente ligadas. Cada nomear, cada
Na fenomenologia clássica de Edmund Husserl (2014), há uma distinção entre ato de fala é, nesse sentido, um juramento, no qual. . . [o orador] se compromete
tomar uma atitude em relação a alguma coisa, ou noesis, e o modo como a coisa a cumprir com sua palavra, jura por sua veracidade, pela correspondência entre
em questão aparece como um resultado, o noema. O objeto de análise musical é palavras e coisas que se efetua no ato de nomear” (2011, 46). Há muito o que
pensar sobre essa declaração, mas hoje quero me debruçar sobre a ideia de que
3 V. Heidegger 1996, 169-212 e Ricoeur 1980.

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE I - ANÁLISE MUSIC AL NA CONTEMPORANEIDADE

o nome como juramento não reflete uma correspondência pré-existente entre O significado em música não é e não pode envolver a especificação de um nível
as palavras e as coisas, mas, ao contrário, produz essa correspondência. A relação de forma ou estrutura que justifique ou gere uma descrição. A descrição vem
entre palavras e coisas não é metafísica, nem mesmo conceitual; é ética. primeiro. O que a música significa é o que ela se torna através de uma descrição.
Se isso está certo, reconhecê-lo pode ajudar a explicar a magia peculiar dos Aquilo em que a música se torna através de uma descrição pode se mostrar
nomes e do nomear, que parece nunca desaparecer, apesar da sua dependência igualmente na interpretação verbal e na performance musical. A diferença
de uma correspondência mística entre palavras e coisas, que há muito tempo do meio é uma diferença do método, não uma diferença de possibilidade. O
perdeu sua credibilidade. A magia dos nomes não vem deles mesmos, mas do meu significado, em qualquer meio, está disponível em outros meios; significado pode
compromisso para com eles, meu consentimento para com eles, o cravamento ser transcrito. Isso nunca acontece sem alguma mudança, mas o mesmo é válido
de minha palavra, e, portanto, o meu cravamento nelas. Mas, como essa lista de em qualquer meio; o significado, sempre e na melhor das hipóteses, apenas se
paralelismos sugere, a relação envolvida não pode ser limitada à ética. Antes de aproxima. Resulta que a possibilidade geral de transcrição de um meio para outro
ser ética, a relação implicada pelo nomear é poética, no sentido original do termo é a pré-condição do próprio significado. O que isto implica para a música, em
particular, é a impossibilidade de admitir qualquer distinção que separe a música,
grego poeisis: fazer algo existir onde antes não havia nada4. Pronunciar o nome é
ou alguma parte da música, do significado. Significado, ou a falta dele, não vai servir
colocar-se por trás da criação de algo, para dar garantia de que algo foi bem feito.
para distinguir música da linguagem, música da imagem, a partitura ou a obra da
A magia dos nomes é a força de uma promessa. Mais particularmente, é a força
performance, a forma do sentimento. Se há um algo além do significado, e isso é um
de uma promessa com um futuro aberto e indefinido, uma promessa que nunca
se maior do que costumamos supor, esse algo mais não pode estar localizado em
pode ser mantida de forma definitiva. um meio em particular, mas apenas desenvolvido a partir do próprio significado.
Essas reflexões sobre nomes têm uma relação direta com a análise musical, A interpretação é uma intrusão inspirada. Ela desfaz tanto a complacência dos
porque, como já foi observado, a análise depende da atribuição de nomes musicais. enigmas como as ilusões da clareza. Com a música, essas ações ocorrem com uma
Mas se pensarmos na atividade resultante não como um esforço para produzir franqueza tão desconcertante do ponto de vista empírico que a interpretação
hipóteses falsificáveis, mas como um exercício de cuidado, torna-se necessário musical, apesar de repetidas refutações, ainda é regularmente descartada como
reexaminar toda a questão sobre o que a análise deveria fazer, juntamente com sendo arbitrária, como um caso especial e inferior, na melhor das hipóteses,
as questões sobre como deveriam ser o escopo e o vocabulário da análise, e uma efusão poética, quando na verdade a interpretação musical é o modelo da
como a relação entre análise e interpretação, análise e hermenêutica, deveria ser interpretação em geral, e, por nunca ocorrer em um vácuo cultural ou histórico,
concebida. não é, de modo algum, arbitrária, mesmo quando ela é paranóica ou bizarra.
Não existem respostas fixas a essas questões. Mas é possível enfrentá-las na O trabalho de interpretação não é fácil. Requer aprendizagem, experiência e
prática com a ajuda de certos princípios orientadores que provar-se-iam úteis se destreza verbal. Não tem nada a ver com inventar coisas ou dizer o que quer
o que eu disse até agora for verdade. Aqui estão alguns deles: que se queira. Pelo contrário, a interpretação demanda uma pronta imersão na
alteridade que atravessa o que quer que esteja sendo interpretado, e que sempre
Uma interpretação é um discurso, um enunciado, um ato de fala que se torna
excede o entendimento que ela traz à tona.
um evento. O significado de uma interpretação é indistinguível de sua linguagem - e
assim, portanto, é o significado do objeto ou evento que está sendo interpretado. A hermenêutica não pode ser derivada da semiótica. A noção de que ela pode
Mas a interpretação não significa o fechamento de um discurso. Pelo contrário: é ou deveria ser é responsável por quase todas as confusões e mal-entendidos que
o que torna o discurso possível. Uma interpretação não é uma hipótese, mas uma confundem o conceito de significado, e empurra as afirmações do empirismo para
atividade. além de seus domínios críveis, à esfera da superregulamentação, se não completa
repressão. Signos musicais são reais, mas de utilidade limitada; a música não segue
4 Sobre esse uso, v. Stewart 2002, 1-17, e Agamben 1999, 59-67.

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE I - ANÁLISE MUSIC AL NA CONTEMPORANEIDADE

um código semiótico. Na música, como em outros campos, a semiótica é uma empurrar as fronteiras do plausível. O ganho no conhecimento requer perda na
subdivisão muito bem localizada da hermenêutica. O significado é independente certeza. Quanto mais importantes são as verdades das quais nos aproximamos,
de signos. mais temos que torná-las elusivas.
A música não é uma linguagem, mas compartilha com a linguagem a capacidade Todos os apelos por um solo firme em que se possa embasar a interpretação
de “dizer” qualquer coisa. Ou seja, música não tem limite no seu alcance semântico. são em vão. A prática sempre ultrapassa tais tentativas de controle. Para entender
Outra maneira de dizer isso é que a música também pertence à ordem simbólica o que criamos ou fazemos é preciso andar em areia movediça.
(ou, para ser estritamente Lacaniano sobre isso, que a música pertence à ordem Portanto - e esse é um forte portanto - , em contraste com os procedimentos que
simbólica o tanto quanto ela pertence ao imaginário e ao Real). Embora já não ainda são padrão na maior parte do mundo acadêmico, qualquer entendimento
seja mais apropriado falar sobre significado “extra-musical” - qualquer significado da música e da sua história que quer ir além da repetição do já conhecido deve
que a música tenha é um significado musical - , a capacidade da música de produzir começar com especulação informada - com vôos de intuição, saltos de lógica,
significado ainda deixa em aberto a questão de que tipo de significado a música transferências abruptas de energia semântica, voltas e reviravoltas de linguagem,
pode produzir. A resposta é: qualquer tipo. Qualquer significado pode se tornar tudo o que pode ou não corresponder a descrições convencionais, seja de estilo
um significado musical. Qualquer evento musical pode participar desse significado ou gênero ou forma ou estrutura, daquilo que compõe uma peça ou ocasião
- ou não. A análise responde de modo mais útil a essas características da música musical. E é nesse espírito, que sempre tentei seguir, que me volto para o tópico
quando ela fornece um meio de descrever essa participação. Torna-se menos útil com o qual tenciono exemplificar as formas que a análise e o entendimento
quando toma o meio como fim e, assim, separa-se do vocabulário do cuidado. musicais deveriam tomar, no meu entender. Esse tópico é o fetichismo.
O objetivo da análise não é identificar ordem e estrutura que, quando existem, Fetichismo? De onde veio isso? A resposta curta é que ele veio do magnetismo
são principalmente meios de restringir ou enquadrar uma ação musical que nem peculiar que certos fragmentos musicais, especialmente trechos de melodias,
ordem nem estrutura podem manter sob controle. A mesma cautela se aplica exercem sobre os ouvintes. Melodias ganham este poder sem motivo aparente
à análise de padrões formais em termos de normas e desvios. A idealização da e podem mantê-lo por um tempo surpreendentemente longo. Quando isso
forma é uma defesa contra o significado. A análise é mais útil e menos auto- acontece, as melodias se tornam coisas valiosas - e o uso da palavra coisa aqui
suficiente quando fornece ou apoia um vocabulário que pode explicar com não é por acaso. Fetiches, também, são coisas valiosas, por isso a música tem mais
precisão determinadas ações musicais quando precisão é necessária. Nos exemplos em comum com eles do que se poderia supor. Mas admito que o termo fetiche é
aos quais em breve me voltarei, a análise não envolve, de forma alguma, ordem, deliberadamente provocativo, já que implica excentricidade ou perversão. Eu não
coerência, sistema ou estrutura. A harmonia tem um papel mínimo; a forma não é estou procurando evitar essas implicações, mas também não quero superestimá-
um problema. No primeiro exemplo, a análise se preocupa, principalmente, com las. Eventualmente, precisaremos considerar um vocabulário mais amplo, para
a construção e repetição de fragmentos melódicos; no segundo, o fator analítico efeitos de valorização da música. Antes, entretanto, precisamos insistir em duas
primordial é a orquestração. questões: a questão do próprio fetiche e, antes disso, a questão da coisa.
Todo conhecimeto humanístico é sujeito ao paradoxo da necessária especulação. Na perspectiva de uma era de virtualidade, a noção tradicional - ou seja, a
A música é apenas um, entre tantos exemplos, mas é um exemplo particularmente pós-cartesiana - de objetos neutros, determinados, parece insustentável. Como
vívido, e essa vividez levou, muitas vezes e por muito tempo, a um conhecimento Bruno Latour observou, os objetos estão constantemente tornando-se coisas,
musical que é constrito, na melhor das hipóteses, e espúrio, na pior delas. O no que se poderia chamar de o sentido íntimo do termo (“minhas coisas” e
paradoxo sobre o qual estou falando é o de que se deve ir além da descrição “suas coisas”, coisas valiosas ou sem valor, coisas agradáveis ou desagradáveis).
formal e histórica para produzir conhecimento musical genuíno, completo; que Tais coisas, acrescenta Latour, com um aceno a Heidegger, são encontros, eixos de
se deve, em uma palavra, especular. Mas especular é por em risco a credibilidade, prática e cuidado sustentados por comunidades e gerações. Coisas, nesse sentido,

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são mais “questões de interesse” do que “questões de fato” (Latour 2004). para trás quanto para frente.
A ideia do objeto, e do mundo de objetos, colapsam, assim, em dois lados. O sentido no qual a melodia ou a música pode se tornar uma coisa põe-se
De um lado, existe a parte da atitude de personalidade espectral e animada das em contraste com a coisa na sua mudez ontológica, sua indiferença para com
coisas, sua simulação da vida. Essa característica fantasmagórica dos objetos existe os usos e desejos humanos. Para Heidegger, essa mudez surge apenas quando
como excepcional ou delirante em sua teorização clássica via o fetiche freudiano mal interpretamos as coisas como “meros objetos” e perdemos sua “coisidade”
e o fetiche de mercadoria de Marx, mas agora parece ter se tornado a regra: é genuína, que sempre diz respeito ao interesse humano (2001, 163-180). Mas a
assim que as coisas são, o próprio modo de ser das coisas, entre e pelas quais mudez é inevitável, não importa o que façamos - até mesmo, como veremos, em
vivemos. O espírito das coisas, o espírito inerente às coisas está no processo de música; a indiferença nas coisas não pode ser nem descartada como um erro nem
superar a disputa clássica entre materialismo e idealismo. Por outro lado, ainda confinada a um domínio de meros objetos que, no geral, desapareceram, se é que
há a neutralidade vazia nas coisas, que resiste aos nossos usos e definições, a alguma vez apareceram. A ambiguidade entre coisa e objeto é fundamental. Mas,
teimosia do ser de cada coisa, a sua muda insistência numa sobra que está além por motivos práticos, precisamos de uma terminologia clara, por isso falarei sobre
do seu status simbólico. Este núcleo resistente é o que permite que qualquer a coisa idealizada, o objeto de um desejo de posse que será posteriormente
coisa - qualquer - aja em nome da grande Coisa insimbolizável (das Ding), que, de ligado ao fetichismo, como um prêmio, algo premiado, uma coisa premiada, quase
acordo com Lacan e Žižek, é o núcleo em torno do qual o desejo, o impulso e a uma canção premiada, como na Preislied alemã, que se torna o objeto fetiche
subjetividade giram5. procurado por todos em Die Meistersinger de Wagner. O tratamento de tais
Parece plausível sugerir que a coisa musical, o objeto sagrado ou o objet melodias premiadas, melodias que são, elas próprias, excepcionais na maioria dos
petit a de Lacan, a substituta grande Coisa, está acima de toda melodia vocal gêneros “clássicos”, sugere o drama da vida das coisas em todos os sentidos
completa e arredondada, no topo de uma hierarquia melódica cujos termos mais ambíguos da coisa, que estão suspensos mas não apagados quando algo é
baixos incluem figura, motivo, frase e tema. As pessoas se lembram de melodias, premiado. Este tratamento depende, entre outras coisas, do grau de abertura
revisitam-nas, apropriam-se delas, identificam-se com elas, deixam-nas presas em dado ou negado aos prêmios melódicos, da relação das melodias premiadas com
suas cabeças, as murmuram, assobiam e cantam. Historicamente falando, a coisa a textura, instrumentação e outros materiais melódicos com que interagem ou
melódica floresce ao longo dos séculos XVIII e XIX; depois disso, persiste na não conseguem interagir, e do seu papel nos arcos dramáticos, que, num outro
cultura-museu da música “clássica” e na proliferação midiática da música popular. texto, descrevi como traçando o destino da melodia.
A composição modernista frequentemente torna tal melodia encantadora mais Ao mesmo tempo, este tratamento proporciona um meio para a música atuar
difícil de se encontrar ou de acreditar, mas raramente a deixa escapar totalmente e refletir sobre o papel do objeto divino perdido naquele drama perpétuo. Tais
e, às vezes, a re-abraça com fervor surpreendente. (A estória é, obviamente, objetos tendem a ser valorizados apenas na medida em que são ouvidos como
demasiado complexa para um resumo fácil. Ela continua hoje como textura e efêmeros, elusivos na própria vivacidade da sua presença, perceptíveis somente
ritmo, intensificando o papel do toque e do movimento na escuta, rivalizando sob o sinal de seu desaparecimento, por trás do qual paira um vazio mais radical.
ou substituindo a melodia como a principal fonte de envolvimento em certos Alguns casos para se ponderar - espero que familiares, já que não há tempo para
gêneros). A história da coisa melódica corre em paralelo com as mudanças descrevê-los, exceto de passagem: a melodia introdutória cantada pelo oboé em
epistemológicas desencadeadas pelo Iluminismo; sua história antiga precisa de vez do violino solo no movimento lento do Concerto para Violino de Brahms;
um exame que não estou equipado para prover. Mas, como sempre, em matéria o tema de “Venus”, na Abertura do Tannhäuser de Wagner, no violino solo e
de história estética, uma vez que um modo de experiência tenha sido inventado, flutuando dentro e fora da música como um fragmento de sonho; a melodia
ele continua a ser uma possibilidade permanente que se estende no tempo tanto introdutória fora da tonalidade do Primeiro Concerto para Piano de Tchaikovsky,
subindo nas cordas apoiada por grandes arpejos no piano; o tema de amor da
5 Lacan 1992, 43-70, 101-114; Žižek 1991, 3-47.

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Abertura de Romeu e Julieta de Tchaikovsky, com acompanhamento de trompas, uma martelando, a outra empurrando, cada uma esmurrando as costelas, ou algum
especialmente em comparação com a sua afirmação inicial nas violas com surdina lugar mais abaixo; uma imitação de balbucio ou murmúrio; um triunfo de ávida
e corne-inglês; o tema lírico transbordante que quase se tornou a razão para indulgência no que rapidamente percebemos estar o prazer irracional de repetir
ouvir as Variações de Paganini de Rachmaninoff, como, em retrospecto, foi a 25.ª e voltar a esses sons, os quais o conceito de sinthoma permite-nos compreender
variação lenta da série Goldberg, de Bach; o coral de Bach no Concerto para como premiado sem referência ao significado, forma, ou bom gosto - esse último,
Violino de Berg; o coro de marinheiros na coxia em Billy Budd, de Britten; a de importância real no século XVIII. Isso não quer dizer que significado, forma e
escala cromática como melodia dodecafônica no Klavierstück IX, de Stockhausen. bom gosto não atuem na música. Eles o fazem; vamos ver como. O sinthoma pode
Pode-se imaginar aqui um continuum desde a pura potencialidade do motivo à não ter nenhum significado, mas ele não pode escapar do significado. A música
realização completa da coisa melódica. contradiz Lacan neste ponto - mas, como veremos, o faz precisamente em nome
Todas estas coisas valorizadas são bonitas no sentido estético clássico, até de seu sinthoma, que assume a força de uma crítica. Essa é a música que briga
mesmo a de Stockhausen, e todos elas podem assumir um fascínio ou glamour com sua própria suposição tácita de que a música, especialmente nos ambiciosos
que leva na direção do fetiche clássico. Mas a música pode ser valorizada também gêneros recentes de música instrumental pura, depende da sua legibilidade formal
por outras razões: valorizada por um tipo diferente de prazer, algo vertiginoso e para a sua legitimidade6.
impensado. Para uma música desse tipo, o termo que se aplica melhor é sinthoma. Por quê? Esse movimento de Mozart é muito “anticlássico”, porém é mais
Jacques Lacan, que cunhou o termo, o descreve como uma antiga ortografia ainda um trabalho do Iluminismo. O século XVIII testemunhou uma transição de
latina da palavra francesa symptôme [sintoma]. A ortografia indica a diferença do época em que os prazeres anteriormente suspeitos do mundo material se tornam
sinthoma para o sintoma, no sentido comum do último. O sintoma é uma mensagem concebíveis e disponíveis como fins em si mesmos. O resultado é um sistema de
criptografada, um enigma para o sujeito resolver. O sinthoma é um significante hedonismo racional, um projeto no qual o mundo se torna o lugar onde, como
sem significado saturado de prazer, ao qual o sujeito é inexplicavelmente atraído. coloca William Wordsworth, “encontramos nossa felicidade, ou não”, e onde o
Para o Lacan tardio, a grande tarefa para cada um de nós, como sujeitos, é abraçar consumo de coisas agradáveis torna-se uma parte validada da vida comum7.
nosso próprio sinthoma particular (Lacan 1975). O movimento do Quinteto de Mozart pode ser ouvido como uma forma de
O sinthoma musical é tipicamente uma melodia ou motivo, embora a música perguntar o que se ganha e se perde fazendo hedonismo racional. O movimento
favorita de alguém, e até mesmo a própria música, se for considerada além do oscila entre dois modos de diversão. Por um lado, há a vitalidade crua do prazer
significado, possa se tornar um sinthoma. O exemplo mais famoso é fictício, o 6 O problema começa quase no início da música. A incongruência dentro do mote introdutório ecoa tanto na frase que
“pequeno tema” que assombra o narrador de Em Busca do Tempo Perdido, de lhe responde como no expandido grupo temático heterogêneo que segue sua combinação. A frase de resposta termina
invertendo a maneira como o mote começa, embora com uma articulação diferente. Mas as duas frases são completamente
Proust. Mas o tema imaginário de Proust é demasiadamente bonito; significa mais diferentes enquanto gestos; a simetria forçada que marca seus limites é potencialmente rica em implicação, mas isto - e
qualquer detalhe técnico - não é necessariamente um sinal de relacionamento, muito menos de estrutura ou unidade. Neste
do que um sinthoma realmente deveria fazê-lo. Um exemplo mais provocativo, caso, a inversão parece indicar um esforço para conter a proliferação do mote e seus componentes. Se assim for, como
e real, é o tema muito pequeno no primeiro movimento do Quinteto de Cordas veremos, fracassa espetacularmente.
7 Ver Michael Kwass, “Ordering the World of Goods: Consumer Revolution and the Classification of Objects in Eighteenth-
em Mi bemol, K. 614, de Mozart. Century France”, Representations 82 (2003): 87-116. A citação é da descrição de Wordsworth, das esperanças inspiradas
pelos primeiros dias da revolução francesa:
A coisa premiada aqui é a frase de dois compassos que abre este movimento e Now was it that both found, the meek and lofty
rapidamente o domina. Este pequeno pedaço de melodia magnética junta um par Did both find, helpers to their hearts’ desire,
And stuff at hand, plastic as they could wish,–
de figuras incongruentes: depois de uma anacruse, ela se divide em três ataques Were called upon to exercise their skill,
em staccato de uma única nota, seguidos por três figuras de trilos retornando à Not in Utopia,–subterranean fields,–
Or some secreted island, Heaven knows where!
mesma nota. Por algum tempo, não fica claro aonde essas pequenas figuras estão But in the very world, which is the world
Of all of us,–the place where, in the end,
se dirigindo; então, elas começam a proliferar em um motim de golpes e entorces, We find our happiness, or not at all!
The Prelude (1850), Bk. XI, 11. 136-144, http://www.bartleby.com/145/ww297.html.

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irracional, que cresce com a repetição excessiva das figuras que compõem o máximo possível de prazeres no sinthoma. Mozart indica repetição para ambas
mote da introdução, que soam tanto juntas como separadas. Por outro lado, há a as metades - a segunda metade traz um alvoroço de meneios, figuras de trilos
incorporação do mesmo prazer em uma condição racional, o que ocorre quando que gingam, que simplesmente não podemos ouvir só uma vez - e ele estende o
o mote é assimilado pelo lirismo suave do segundo tema (o único, de fato). O alvoroço hedonista que finaliza a segunda metade na coda.
ouvinte tem que decidir, ou deixar que o prazer de ouvir decida, se o segundo Pode-se até ouvir esse movimento como uma reflexão sobre a escolha de
tema sublima o primeiro ou o dilui. Como veremos, a questão não é apenas uma. ser o que é. O fator principal aqui é a divisão do mote introdutório em seus
Mas essas observações deveriam ser levadas adiante, em condições que dois segmentos, a tercina de uma nota no primeiro tempo e a tercina do trilo
permitam pleno alcance dos prazeres sem sentido do sinthoma. O tipo de com o trilo acentuado do segundo tempo. O tratamento de Mozart para esse
repetição exibida aqui tem seu lado patológico, mas o movimento introdutório do motivo assemelha-se ao famoso jogo inventado pelo neto de Freud, que lançava
K. 614 é muito cheio de bom humor, muito cheio de graça, para sugerir patologia. um carretel longe para depois trazê-lo de volta enquanto pronunciava sons que
Pode-se sugerir que há um hedonismo do sinthoma que esta música aprecia e Freud interpretou como similares às palavras alemãs fort e da, ou seja, lá e cá
ajuda a descobrir. A maneira tradicional de descrever esse movimento seria dizer (Freud 1922, 11-14). Essas semelhanças à linguagem levou Lacan a pensar no jogo
que ele se baseia em um pequeno motivo que a música repete e elabora. Mas como indicativo da iniciação do neto no sistema de oposições supostamente
dizer isso é dizer praticamente nada; apenas reafirma o óbvio no que remete a característico da linguagem e, portanto, na ordem simbólica. Mas o neto não só
peculiaridade do movimento a uma ilusão de sistema estável. Nós sabemos como encena todo o jogo do fort-da, mas também, ainda mais frequentemente, encena
primeiros movimentos típicos soam em Mozart e Haydn e eles não soam como o fort por si mesmo. Mozart, do mesmo modo, não só repete o motivo completo,
este. Seria muito mais acurado dizer que o movimento usa a sua identidade formal mas também, ainda mais frequentemente, repete os trilos. Essa figura arrepiante
ou genérica como um pretexto para a repetição alegre de uma pequena figura nunca é racionalizada. Ela varia constantemente em forma, textura, e número. Ela
sem sentido, apreciada por sua própria falta de sentido: brincadeira irresponsável retorna a si mesma em texturas imitativas próximas com uma insistência que
com o sinthoma. Ou, para colocar nos termos do século XVIII, repetindo David parece quase involuntária. Às vezes, ela dobra seu prazer ao repetir-se nas cordas
Hume: a razão aqui é, e deveria ser, a serva das paixões. mais agudas, contra os grunhidos rudes viscerais do violoncelo. O trilo, talvez
Claro que a Razão, com R maiúsculo, tem suas razões, e o movimento não as principalmente quando soa apenas uma vez, é o coração do sinthoma musical, e
desdenha simplesmente; o segundo tema é, de propósito, bonito. Mas a música é esse sinthoma contraído, sistólico que se torna o fort independente de um jogo
permite que aquela beleza aja como uma promessa de volta ao bom senso, depois de fort-da.
de tirar umas férias dele - -mas não hoje. O pensamento Iluminista é baseado, E o fort é onde as coisas terminam. O último som que ouvimos antes da cadência
sobretudo, na observação e na taxonomia; daí o conceito central em Kant ser o final é o trilo exposto no registro agudo do primeiro violino. A cadência segue
próprio conceito, entendido como o resultado da habilidade do sujeito em colocar instantaneamente, mais redutiva do que conclusiva. Sua imposição cega oferece
as coisas percebidas ou compreendidas em categorias. O impulso por trás desse a oportunidade de refletir sobre a capacidade da cadência, ou qualquer outra
movimento é o de afastar-se dessa habilidade, ao desafiar as próprias noções de coisa, para conter os sinthomas. O que prevalece nessa música: sua indulgência
temas e seus propósitos formais. Aqui podemos esquecer da “forma sonata” - às irracional no mote premiado ou sua racionalização do mote no segundo tema,
vezes é importante lembrar que a forma assim chamada é, na verdade, apenas um que normaliza a figura de uma nota só e se dissolve em uma melodia lírica que
anacronismo útil para Haydn, Mozart, Beethoven e Schubert, e lembrar que, para absorve e se desenvolve a partir do trilo? Como sugeri anteriormente, essa
eles, a essência da forma em um primeiro movimento consiste na junção de duas questão não é apenas uma. O hedonismo da música é, em última análise, racional,
partes, geralmente desiguais, e a questão de como, ou se, as partes se encaixam. tolerante de um excesso que pode zombar dela mas não prejudicá-la, ou há uma
Em K. 614, elas se tornam um pretexto de colecionador, um meio de reunir o lacuna entre a busca do prazer, que pode ser racional, e o próprio prazer, que

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não o é? A cultura do hedonismo racional está sujeita a ultrapassar a si mesma? A Abertura de Tchaikovsky persegue um prazer que desafia a razão no lugar
Em tal cultura, a legitimidade da razão apoia ou subverte a legitimidade do prazer, onde o seu paralelo no quinteto de Mozart simplesmente ignora a razão. A música
e vice-versa? As respostas não são certas, e nossa inclinação em respondê-las da abertura é baseada em uma revelação constante de apetite sexual em estado
sem dúvida diferirão em diferentes performances. Mas as perguntas são válidas, e natural que desafia a sublimação estética em uma paixão enobrecedora - ou
simplesmente perguntá-las traz um prazer próprio. Performances repetidas fazem melhor, tenta desafiar essa sublimação, quase com sucesso. O quase é a chave
da própria pergunta um tipo de sinthoma8. para a popularidade da música. O objetivo em ouvir essa peça na contramão da
O que acontece entre o sinthoma e o fetiche? O que orienta sua continuidade sua inclinação natural não é anunciar que o elevado sentimento Romântico tem
e o que impele as transições entre eles e entre qualquer um deles e a melodia uma base sexual; todo mundo sabe disso. O sentido é, mais apropriadamente, que
premiada? Vamos precisar de um exemplo para pensar sobre essas questões. Ele a transgressão e auto-destrutividade não são os subprodutos de tais impulsos
deve ser trazido agora, e o exemplo terá que mostrar que o sinthoma, o prêmio, sexuais, mas seu motivo; o desejo comprova sua autenticidade ao ser o único
e o fetiche não são coisas diferentes ou condições diferentes, mas aspectos sobrevivente daqueles que o sentem.
diferentes de algo valorizado. Aspecto é o nome dado por Wittgenstein para Em ambas as suas formas, a melodia é dividida em si mesma: primeiro, em
uma característica que dá sentido a um ato de percepção. O aspecto (brincando violas com surdina e corne-inglês, as sonoridades não muito misturadas, como
com um sentido mais antigo da palavra) é a face que aquilo que eu percebo o filho e a filha de famílias em guerra, Montecchio e Capuleto; depois, no agudo,
apresenta a mim como um traço da minha atitude para com ele. O aspecto muda madeiras quase estridentes e uma trompa pulsante, a trompa sempre na iminência
assim como o faz a atitude; nos termos de Husserl, a mudança na noesis torna-se de assumir o controle, sua pulsação subjacente constante (de corpo, batimento
mudança no noema9 . cardíaco, respiração, genitália), sempre capaz de ser ouvida minando a sedução,
O tema de amor da Abertura de Romeu e Julieta, de Tchaikovsky, é um exemplo o sentimento que salta da melodia premiada, e isso para abrir-se sem limites ao
revelador. Depois do movimento do quinteto de Mozart, menos conhecido e muito latejante desejo indisfarçável. Mas não completamente: eu não disse ouvida, mas
excêntrico, parece irônico falar sobre tal sucesso. Esta música é tão fetichizada e capaz de ser ouvida. A retórica sublime dos sopros, e a clausura da trompa em
canonizada, que pensar nela como estando na uma transição de afastamento uma roupagem acústica de cordas brilhantes, convida os ouvintes a fetichizar o
do sentimento Romântico pode parecer absurdo. Mas espero convencê-los de som da melodia sem reconhecer suas ações, a desfrutar da continuidade entre
que ela pode ser precisamente ouvida assim, uma música não tão distante de romance e luxúria sem reconhecê-la.
Mozart, como se poderia esperar, embora completamente diferente na textura e Anteriormente sugeri que o princípio animador das coisas está ligado à
temperatura expressivas. Os tempos tinham mudado, obviamente, como a suíte circulação de desejo por um objeto que sempre está perdido ou é impossível,
de orquestrações, que Tchaikovsky chamou de “Mozartiana”, torna bem claro. Mas a grande Coisa para a qual o objet petit a Lacaniano serve como um substituto.
o prazer ainda está em jogo, o prazer encontrado apenas no objeto premiado - Nossos exemplos de Mozart e Tchaikovsky sugerem que, para eles, a Vida, V
premiado a todo custo: nesse caso, o prazer de um objeto premiado assumindo o maiúsculo, é um nome apenas para essa Coisa. A sugestão decorre do surgimento
fascínio por outro, ou seja, da melodia permanecendo no lugar da única coisa que da vida como um conceito geral, acima e além de seres vivos, no século XVIII,
o amante busca no amado. O fetiche, como veremos, vem depois. aproximadamente no mesmo momento da invenção da estética (Foucault 1994,
160-162). A insistência irracional em Mozart aponta para a prioridade da vida
8 O nível de prazer do K. 614 pelo seu sinthoma pode ser medido pelo mesmo trilo que é essencialmente o único
conteúdo da seção do “desenvolvimento” (em sentido algum ela é um desenvolvimento) do movimento lento da Sinfonia sobre a mente, não obstante o que a mente pense; o preenchimento corpóreo
Haffner, também um movimento com ambas as metades repetidas. Na sinfonia, a figura não está relacionada com a
música que a rodeia; ela representa uma alternativa clara à busca por aquela outra busca musical; um platô lírico. Mas o em Tchaikovsky, ouvido em oposição à tragédia inevitável, ancora a estória dos
trilo aqui é mantido firmemente dentro de limites, na colocação e na extensão; não há coda pela qual ele possa transbordar; amantes na dimensão da perda que sempre está presente na vida das coisas. A
o prazer que ele oferece é um pouco caprichoso, mas não irracional: a própria oposição de sua contraparte no K. 614.
9 Wittgenstein 1958, Parte II, Seção xi (p. 193-229 na 2.ª ed.). Sobre a relação entre mudança de aspecto e significado proximidade da perda, onde a perda que chega é sempre uma repetição de uma
musical, ver meu Expression and Truth: On the Music of Knowledge (2012, 10-13 passim).

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perda que já ocorreu, é o próprio princípio da animação e do desejo interpretativo do toque - algo que ele oferece aos músicos ainda mais do que aos ouvintes; os
e fantasmagórico que a música extrai em abundância. O aspecto animativo do músicos chegam a dedilhar o sinthoma de novo e de novo, para se perderem
objeto perdido age não em contradição com o seu aspecto mortificante, mas em em suas reiterações, tocar até a vertigem. O conjunto, com o acréscimo de uma
cooperação com ele. Constantemente passamos de um para o outro e vice-versa. viola - supostamente o instrumento favorito de Mozart - ao quarteto de cordas,
Isto é, até determo-nos diante do fetiche, que é uma das coisas que a música é um teatro perfeito para o propósito. O movimento do quinteto de Mozart dá
parece querer de nós: criar dela uma coisa. ao impulso possessivo por detrás do hedonismo racional um espaço socialmente
Então, a música demanda fetiches; o que isso significa? O fetiche, em geral, protegido para se soltar. Para Tchaikovsky, a possibilidade de tal proteção torna-
é um objeto substituto que é glamourizado ao assumir o carisma do objeto se incerta. Tchaikovsky sexualiza o sinthoma, e ele faz isso de tal forma, que
(perdido) o qual substitui. É o objeto sine qua non: no cenário marxista, o constantemente ameaça destruir o brilho idealizado de seu tema. Sua abertura
objeto sem o qual não se pode viver; no freudiano, o objeto sem o qual não satisfaz de forma exemplar a demanda de sua época, identificada por Michel
se pode passar. Em ambos os casos (e isso Freud explicita), é um objeto que Foucault: colocar o sexo no discurso, fazer da verdade do sujeito a verdade do
adia o reconhecimento de algo primordialmente angustiante: no caso marxista, a sexo (1978). A passagem da história entre as práticas de Tchaikovsky e Mozart
alienação, no caso freudiano, a vulnerabilidade (masculina) à castração. Em ambos trilha uma mudança de um modelo superficial de prazer sob o signo do tátil para
os casos - tratando ambos como sintomáticos - , a potencial falta de integridade, um modelo de prazer profundo através das nuanças do erótico.
intangibilidade e autocontrole10. O sujeito moderno é tanto condenado a esta A outra possibilidade, a epistêmica, diz respeito ao elo fundamental entre
carência quanto culpado por ela. Ninguém pode ser totalmente um; àqueles que subjetividade e compreensão, algo que a música pode ser especialmente boa em
querem ser, ou não se contêm em querer ser, a subjetividade é um exercício em modelar. Outro nome para esse elo é experiência. A chave para essa possibilidade
sua própria futilidade. O fetiche é o encanto secreto pelo qual o eu “interior” nega depende do reconhecimento de que a compreensão não é simplesmente uma
e compensa esse fracasso culturalmente estabelecido. atividade realizada pelo sujeito. Em vez disso, a compreensão é o meio pelo qual
Aonde essa conclusão nos leva? No tempo que resta, vou tentar seguir o fio o sujeito sustenta sua consistência em face aos choques que inevitavelmente
musical pelo labirinto. Comecei delineando a natureza essencialmente desordenada interrompem-na, e os elementos do impensado e do desconhecido que nunca
do conhecimento musical e do conhecimento humanístico, conhecimentos podem ser apagados da composição do sujeito. Ao compreender, o próprio ser
adquiridos através da interpretação. Minhas observações específicas têm lidado se preserva.
apenas com uma tradição musical, mas em termos, espero que não excluam Judith Butler propõe que a ética deve ser fundada na incapacidade básica do
outras. Os resultados foram muito mais longe do que normalmente poderia ser sujeito em ter sucesso no que ela chama de dar conta de si mesmo. O que acontece
considerado, ou poderia ter sido considerado em uma determinada época, como se mudamos a relevância do ético ao epistemológico? Eis Butler, comentando sobre
discurso musical. A implicação desse movimento centrífugo é que algo além da a necessidade e a futilidade da narração (2005, 59): “Narrar uma vida [deve falhar,
pura compreensão da música pode estar em jogo, no discurso e na própria música. mas ainda] tem uma função crucial, especialmente para aqueles cuja involuntária
O que poderia ser isso? experiência de descontinuidade aflige de maneira profunda. Ninguém pode viver
Entre as possíveis respostas, deixem-me sugerir duas: uma histórica, a outra, em um mundo radicalmente não-narrável ou sobreviver a uma vida radicalmente
epistêmica. não-narrável”. A narrativa, sugere Butler, é a nossa defesa contra as rupturas da
falta de significado. Ela sustenta a possibilidade de se manter um sentido intacto
A diferença entre os tratamentos de Mozart e Tchaikovsky do sinthoma é um
de ser subjetivo, o próprio sentido ao qual a maior parte da música ocidental
índice de mudanças históricas e, portanto, uma fonte potencial de conhecimento
historicamente serve.
histórico. Mozart trata o sinthoma como matéria musical, quase na dimensão
Mas a narrativa é realmente necessária para isso? Nossos exemplos não
10 Marx 1887, 46; Freud, “Fetishism” (1927), in Freud 1962, 214-219.

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE I - ANÁLISE MUSIC AL NA CONTEMPORANEIDADE

concordam. A peça de Mozart diz Não. Se narrativa envolve uma significativa Husserl, Edmund. 2014. “Ideas: General Introduction to a Pure Phenomenology”. Routledge,
mudança de condição, então não há nenhuma narrativa no primeiro movimento 255-281.
de K. 614. Nada acontece lá, nada muda; o ajuste harmônico necessário de Kramer, Lawrence. 1992. “Haydn’s Chaos, Schenker’s Order; or, Hermeneutics and Musical
Analysis: Can They Mix?”. 19th Century Music 15, 3-17; revisado e atualizado em 2006 como
dominante para tônica é inconsequente. Mas essa resistência radical à narrativa “Haydn’s Chaos, Schenker’s Order; or, Musical Meaning and Musical Analysis: Can They Mix?”
ou narrabilidade é o próprio fundamento do prazer que a música modela e in Critical Musicology and the Responsibility of Response: Selected Essays. Aldershot: Ashgate,
representa. Não só se pode vivê-la, mas pode-se vivê-la feliz, tornar-se feliz ao 237-262.
vivê-la. A peça de Tchaikovsky diz Sim, mas desesperadamente, porque narrativa __________. 2012Expression and Truth: On the Music of Knowledge (Berkeley and London:
é aquilo que ela não pode ter, apesar de ser chamada de música de programa. University of California Press.
Essa música repetidamente tenta criar transições narráveis entre suas forças Lacan, Jacques. 1975. Seminar 23: Le Sinthome, trad. de Luke Thurston, <http://www.scribd.
com/doc/97204361/Seminar-of-Jacques-Lacan-Book-XXIII-Le-Sinthome>.
antagônicas, mas, ao longo da obra, transição se torna cada vez interrupção - e
os amantes, pelo menos, não sobrevivem. Uma carência semelhante impulsiona __________. 1992. The Ethics of Psychoanalysis (Seminar VII), ed. Jacques-Alain Miller, trad.
de Dennis Porter. New York: Norton.
a peça de Shakespeare, em que a origem da rixa entre as famílias dos amantes
Latour, Bruno. 2004. “Why Has Critique Run Out of Steam? From Matters of Fact to Mat-
permanece desconhecida, permanentemente não narrável. Mas nesse caso, surge ters of Concern”, Critical Inquiry 30, 225-248.
outra defesa contra a destituição subjetiva, a saber, a lógica do prêmio e do fetiche.
Marx, Karl. 1887. Capital: A Critique of Political Economy, Vol. I, trad. S. Moore e E. Aveling,
Através dessa lógica, o tema de amor preserva as possibilidades subjetivas que a <https://www.marxists.org/archive/marx/works/download/pdf/Capital-Volume-I.pdf>.
narrativa destrói, mesmo sendo o tema impotente na estrutura narrativa. Neste Ricoeur, Paul. 1980. “Narrative Time”, Critical Inquiry 7, 169-190.
ponto em particular, o tema se torna uma parábola do que a música pode realizar.
Stewart, Susan. 2002. Poetry and the Fate of the Senses. Chicago: University of Chicago Press.
O tema sobrevive, e uma subjetividade digna de ser vivida sobrevive com ele.
Wittgenstein, Ludwig. 1958. Philosophical Investigations, trad. de G. E. M. Anscombe, 2.ª ed.
New York: Macmillan.
Referências Žižek, Slavoj. 1991. Looking Awry: An Introduction to Jacques Lacan through Popular Culture.
Agamben, Giorgio. 2011. The Sacrament of Language: An Archeology of the Oath, trad. Adam Cambridge, MA: MIT Press.
Kotsco. Stanford: Stanford University Press.
__________. 1999. The Man without Content, trad. de Georgia Albert. Stanford: Stanford
University Press.
Butler, Judith. 2005. Giving an Account of Oneself . New York: Fordham University Press.
Foucault, Michel. 1978. The History of Sexuality, Volume I: An Introduction, trad. de Robert
Hurley. New York: Vintage.
__________. 1994. The Order of Things: An Archeology of the Human Sciences. New York:
Vintage.
Freud, Sigmund. Sexuality and the Psychology of Love, ed. Philip Rieff. New York: Collier, 214-
219.
__________. 1992. Beyond the Pleasure Principle, trad. de C. J. M. Hubback. Londres e Viena:
International Psycho-Analytic Press (Google Books).
Heidegger, Martin. 1996. “Care as the Being of Dasein”. Being and Time (1927), trad. de Joan
Stambaugh. Albany, NY: SUNY Press.
__________. 2001. “The Thing”. Poetry, Language, Thought, trad. de Albert Hofstadter. New
York: Perennial.

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE I - ANÁLISE MUSIC AL NA CONTEMPORANEIDADE

trabalho é um companheiro daquele ensaio. Discutirei algumas das questões


MúSICA E NARRATIVA DESDE 1900: sobre música e narratividade, ao considerar quatro pequenas peças: La Flûte de
Pan, de Debussy (1898); Sechs Kleine Klavierstücke op. 19 n.º 2, de Schoenberg
o desafio hermenêutico da (1911); Over the Rainbow, de The Wizard of Oz, de Arlen e Harburg (1939); e Jeux
Venetiens, de Lutoslawski (1961). Já que La Flûte de Pan e Jeux Venetiens podem ser
análise contemporânea menos familiares, vou dedicar um tempo descrevendo-as.
La Flûte de Pan trata de uma jovem contando como um rapaz (possivelmente
Michael L. Klein o próprio Pan) lhe deu um beijo enquanto lhe ensinava a tocar flauta. Ao final do
Tradução de Alex Pochat poema, ela fica preocupada com a mentira que contará a sua mãe para explicar
sua ausência. Jeux Venetiens foi a primeira peça que Lutoslawski compôs usando
técnicas aleatórias. A peça tem uma estrutura simples, alternando entre seções ad
1. Uma introdução por meio de uma confissão
lib, onde a orquestra toca suas partes como se executasse uma cadência, e seções
Antes de começar, tenho uma confissão a fazer: eu não me considero um battuta, onde a orquestra toca da forma habitual.
teórico musical, pelo menos não no modelo que tem estado em voga nos Estados
Repetindo uma advertência que Lawrence Kramer nos dá, se você busca na
Unidos, Reino Unido e Canadá, desde a fundação da Society for Music Theory, em
narrativa a recuperação de uma unidade perdida na música, então você não en-
1977. Fui treinado como um teórico musical na State University of New York, em
tendeu a natureza disruptiva da narrativa2. Momentos narrativos em música são
Buffalo, onde meus estudos constituíam-se principalmente de cursos de análises
mais disruptivos e rebeldes do que poderíamos suspeitar. Como última confissão,
Schenkeriana e Pós-Tonal. Mas, assim que terminei meu Doutorado, comecei a
entretanto, admitirei que frequentemente uso mais análise nesse ensaio do que é
me perguntar que questões esse tipo de teoria musical restrita podia responder,
necessário. Resumindo, a minha abordagem será discutir narrativa em muitas se-
e decidi que tais questões não valiam a pena ser perguntadas, pelo menos para
ções curtas. Às vezes, apenas uma linha tênue conecta uma seção com a próxima,
mim. Eu vejo o termo “teoria musical”, então, no seu sentido mais antigo, como
de modo que este trabalho não acompanha a definição clássica de Aristóteles de
qualquer pensamento disciplinado sobre música, que engloba muito mais do que
trama como uma sequência lógica de eventos.
a revelação de estruturas de condução de vozes, ou a descoberta de como uma
peça musical “funciona”, o que quer que isso supostamente signifique. Embora
muitas vezes eu realize alguma forma de análise musical no meu trabalho, normal- 2. Música como Lírico
mente ela não é muito complexa. Prefiro pensar sobre música e o conjunto que Música é expressão lírica. Como na poesia, o lírico, que é expressivo, e frequen-
ela forma com cultura e subjetividade. Análise musical não é um fim; é um dos temente pessoal, está em oposição ao épico, que é narrativo, e frequentemente
muito caminhos que podem levar a um entendimento hermenêutico do nosso heroico. Nos termos de Henri Bergson, o lírico é tempo como qualidade: um
lugar na história das ideias e da consciência. estado no qual a consciência se permite desdobrar-se no seu próprio ritmo.
O tópico desse ensaio diz respeito à narratividade, particularmente na música a Como expressão lírica, a música suspende o tempo, ou, mais adequadamente,
partir de 1900. Recentemente, a Indiana University Press publicou uma coleção de ela é tempo imaculado pelo tique-taque do relógio. Em especial, entendemos a
ensaios entitulado Música e Narrativa desde 1900, que eu co-editei com Nicholas música como lírico quando ela interrompe uma narrativa. Judy Garland torna o
Reyland. Nessa coleção, o ensaio introdutório discute alguns dos problemas da caso clássico quando canta Over the Rainbow, em The Wizard of Oz. Não apenas a
narrativa musical sem olhar atentamente para qualquer peça em particular.1 Esse estória para enquanto Dorothy exprime o seu desejo musical – mesmo o tornado

2 “‘As if a Voice Were in Them’: Music, Narrative, and Deconstruction”. In: Kramer 1990: 176-213; V. também “Musical
1 “Musical Story”. In: Klein 2013: 3-28. Narratology: A Theoretical Outline”. In: Kramer 1995: 98-121.

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE I - ANÁLISE MUSIC AL NA CONTEMPORANEIDADE

que se aproxima, para a fim de ouvir sua canção – , mas também o tempo, como to perdido. Carolyn Abbate descarta técnicas antiquadas como marcadores de
qualidade de expressão, faz-se conhecer. Em um sentido, a canção de Dorothy narrativa. Ela prefere ouvir a voz do narrador como o significante não qualificado
não é a narrativa; ela interrompe a narrativa. Em outro sentido, a ruptura temporal para a narração (Abbate 1991). Mais tarde, entretanto, veremos que La Flûte de
da canção de Dorothy é uma marcação de narrativa. Pan inclui uma voz narrativa: ela é marcada como narrativa.
Música não precisa ser melódica para ser lírica. A esfinge do Klavierstück de
Schoenberg, op. 19 n.º 2, também desperta o tempo lírico, apesar de ser restrita
em termos de melodia inequívoca. Embora a pequena peça de Schoenberg evite
o “por que não?” da canção de Dorothy, ela ainda ativa o tempo como qualidade
lírica. Mais tarde, vamos ver que a pequena peça de Schoenberg também apre-
senta as rupturas associadas à narrativa.

3. Música como Narrativa


Em semiótica, diríamos que o lírico é o termo não marcado para a música, o
que significa que nossa primeira expectativa é a de que a música será lírica. Mas
Figura 1: Debussy, La Flûte de Pan
a música, também, tem momentos de narrativa, em cujo caso torna-se marcada3.
Para que música se torne narrativa, um atributo deve sugerir um desdobramento
de uma estória, a presença de um narrador, uma mudança na temporalidade, 4. Por quê estudar música como narrativa?
uma ruptura, etc. No início de Jeux venitiens de Lutoslawski, por exemplo, um Se você acha que definir narrativa é algo que os críticos literários resolveram,
golpe agressivo da percussão nos envia para dentro da ação musical in media res. vai ficar extremamente decepcionado. Como escreve o crítico literário J. Hillis
A música é agitada e caótica, enquanto a nossa brusca entrada na cena sugere Miller, há tantas teorias da narrativa “que pensar nelas todas faz a cabeça doer”
uma técnica narrativa tão antiga quanto a poesia épica. Outro golpe percussivo (Miller 1995:67). Narrativa não pode ser definida, apenas contada. Entre as muitas
interrompe a primeira cena antes que ela possa chegar a uma conclusão satis- definições de narrativa, eu tendo a seguir Ricouer, que argumenta que a narra-
fatória. Encontramo-nos em um tempo e lugar diferentes, sugerindo um corte tiva reúne elementos disruptivos como pensamentos secretos, pontos de vista
cinematográfico. O início abrupto, a cena musical ativa e o corte nos levam a ouvir conflitantes, temporalidades diferentes, ações simultâneas, e os congrega como
esta música como narrativa. os termos de uma metáfora, para criar uma nova pertinência através do tempo
Debussy é mais sutil com a narrativa em sua canção La Flûte de Pan. O piano (Ricoeur 1984: I/ix). Embora os elementos disruptivos pareçam estar unificados
começa com uma frase modal incerta: a música está em Sol # Dórico, como o no que chamamos de trama, essa aparente unidade é uma ideologia. A tarefa
gesto de abertura sugere, ou em Si Lídio, onde a frase aterriza no compasso 2 diante de nós não é a de recuperar uma unidade perdida, mas a de encontrar um
(Figura 1)? A questão toca em um dos problemas culturais da canção, que envol- significado nos próprios elementos disruptivos.
ve uma sexualidade ambígua, ou, mais adequadamente, a ambiguidade da própria Penso que é melhor, então, deixar de lado a questão do status da música
sexualidade. Enquanto isso, a flauta de Pan plana brevemente sobre o primeiro vis-à-vis da narrativa e fazer a pergunta “por que estudar música como uma forma
compasso. A música soa velha, antiga como se tivéssemos encontrado um obje- de narrativa?” Mais tarde, vou argumentar que o estudo da narrativa é um ato
3 Uma oposição marcada é aquela na qual um termo é menos comum e, portanto, destaca-se para interpretação. hermenêutico, mas por enquanto vou sugerir que a narrativa nos oferece uma
Por exemplo, se uma fotografi a mostra as costas de pessoas ao invés de seus rostos, a oposição costas/frente é marcada constelação de metáforas para compreender música. Entre estas, estão agen-
e o fotógrafo está aberto à interpretação. Para uma discussão sobre marcação em música, ver Robert S. Hatten, Musical
Meaning in Beethoven: Markedness, Correlation, and Interpretation (Bloomington: Indiana University Press, 1994). ciamento, temporalidade, enredamento, e alguma noção de uma voz narrativa.

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE I - ANÁLISE MUSIC AL NA CONTEMPORANEIDADE

Poderíamos expandir esta lista com noções como crise, peripeteia (ou reversão), nota da escala preenchendo o intervalo dessa oitava inicial. O agente não se
anagnorise (ou revelação), etc. Mas, por enquanto, vou focar em agenciamento, abranda, aventurando mais dois saltos: um de sexta maior, no meio, seguido por
temporalidade, enredamento, e um narrador. um de sexta menor. O agente resiste à força gravitacional o suficiente para fazer
um pouso suave ao final da primeira seção da canção.
5. Agenciamento Além do Arco-íris O agente musical Dorothy deve optar por outro caminho para recuperar sua
aspiração. Na segunda seção da canção, ela usa uma terça gorjeante que se move
Agenciamento envolve ouvir o desdobramento musical com uma urgência
sem pressa até o sexto grau da escala. Mas como Jeremy Day-O’Connell demons-
interior ou um ato de vontade, em vez de um processo mecanicista. O agente
trou (2002), fazer uma melodia tonal subir acima de um sexto grau de escala não
musical se esforça ou produz, busca objetivos ou os rejeita, persiste ou recua. Os
é um assunto fácil. À medida em que a melodia cai novamente, forçando o agente
primeiros trabalhos sobre energética podem dar a impressão de que agenciamento
a começar de novo, ela toma um novo caminho através da quarta aumentada,
está ligado às noções de condução de vozes e de notas sensíveis. Mas, como Fred
cuja vibração tremulante impulsiona a melodia através dos sexto e sétimo graus
Maus demonstrou, não é tarefa fácil desemaranhar agentes musicais na música
da escala para superar a meta original. Pode-se dizer que Dorothy irrompe da
tonal (Maus 1989: 31-43). Ainda assim, vou deixar de lado esse problema para
contenção do seu primeiro desejo. Apesar da frase inicial retornar, com o seu dócil
examinar brevemente o agenciamento melódico em Over the Rainbow (Figura 2).
desencanto, o agente conclui com uma subida por graus conjuntos chegando à
oitava superior justamente na última nota da música. Aprendemos que o nosso
agente é persistente: ela encontra novas maneiras de contornar obstáculos e se
recusa a afastar-se de seu desejo secreto.

6. Agente Arnold
Às vezes, é melhor separar agenciamento de tonalidade e vê-lo como um ato
intencional de escuta, que cria o que Roger Scruton chamou de “um vislumbre
incomparável da realidade da liberdade” (Scruton 1997: 76). Onde está o agente
na pequena peça de Schoenberg (Figura 3)? Na verdade, existem vários agentes.
Em primeiro lugar, há as imperturbáveis terças maiores, que nos mostram o ca-
minho. Em segundo lugar, há a figura melódica dos compassos 2-3, cuja expressão
dramática provoca uma perturbação para o antes imperturbável agente do início,
que chega ao compasso 4 capturando um intervalo característico da melodia: a
terça menor. O que seria o acorde arpejado no compasso 5: outro agente? Seja
Figura 2: Arlen e Harburg, Over the rainbow qual for o caso, no compasso 6 o agente-terça-maior desaparece pela única vez
na peça. Em seu lugar, uma outra melodia conduz a uma combinação de tríades
O agente musical – vamos chamá-lo de Dorothy – revela rapidamente sua diminutas: a música chegou a uma crise. Esta segunda melodia no compasso 6 é
aspiração com o salto de oitava inicial da melodia. Mas, nos termos de Candace dobrada em terças, começando com C/Ab, as mesmas notas que concluíram a
Brower, a gravidade musical puxa o agente para baixo ao longo do resto da melodia no compasso 3. Será que a crise então provém de um novo agente, ou do
frase (Brower 2000). Toda a introdução permanece como um caso clássico de retorno de um anterior? Nos compassos conclusivos, o primeiro agente retorna,
movimento de preenchimento de intervalo, de Leonard Meyer: ouvimos cada agora sem o seu curso rítmico original. Abaixo dele, terças maiores descem, como

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE I - ANÁLISE MUSIC AL NA CONTEMPORANEIDADE

se mostrassem que a gravidade ainda pode estar em vigor. Será essa descida outro música pode avançar pelo tempo, sem pausa, mas sua temporalidade inclui mais
agente? Em resumo, temos as terças estáveis, a melodia expressiva, a melodia em do que o tempo presente.
crise, e as terças descendentes, todas como possíveis agentes. Como vimos, a introdução de La Flûte de Pan significa um tempo passado. E
essa distância temporal advém da linha vocal, que é declamatória no começo,
enquanto o piano simplesmente alterna alguns acordes. O texto está, também, no
passado. A jovem diz “il m’a donné une syrinx” (ele me deu uma flauta de Pan).
Mas lá pelo compasso 13, ocorre uma mudança sutil na temporalidade, e nos
encontramos atraídos para o presente. O piano reproduz acordes de nona car-
regados de sexualidade, enquanto a mulher relata seu beijo com o jovem (Figura
4). O piano também inclui o motivo de Pan da introdução, enquanto a parte vocal
torna-se mais lírica. O momento proustiano da jovem revive o passado COMO
presente. A temporalidade musical mudou para um presente urgente e sensual.

Figura 3: Schoenberg, op. 19 n.º 2

Esses agenciamentos são realmente um vislumbre da realidade da liberdade? Ou


o problema é que a música é uma pobre analogia da nossa subjetividade? Ou será
que o nosso modelo de subjetividade estava errado o tempo todo? Voto na última
opção. O modelo convencional de subjetividade vê o sujeito como algo separado
do mundo exterior: uma consciência cujos pensamentos e sentimentos secretos
têm uma lógica e unidade próprias. Mas esta visão não é a de Schoenberg. Em uma
carta a Busoni, Schoenberg escreve: “O homem tem muitos sentimentos, milhares
de uma vez, e esses sentimentos se somam não mais do que maçãs e peras somam.
Cada um segue seu próprio caminho” (citado em Simms 2000: 69). O sujeito não é
um; ele é vários. Qualquer modelo de agenciamento para música, então, não deve
procurar uma cadeia de comando, ou uma super-subjetividade (para usar um termo Figura 4: Debussy, trecho 2
de Robert Hatten) que irá encurralar agenciamentos musicais em uma consciência
A mulher tenta retornar ao verdadeiro presente com sua declaração “Il est
unificada (Hatten 2004: 231). Tais manobras envolvem o que Lacan chamou de
tard” (é tarde) (Figura 5). Mas a parte de piano estática está contente demais para
“sutura do sujeito”, que é cego para os agenciamentos múltiplos e fragmentados
mover a música: o tempo alcançou o eterno agora. Quando a jovem ouve os sapos
que agem em nós a partir de fora (2006: 861).
que indicam a chegada da noite, o piano ainda está relutante em se precipitar. No
compasso 22, os sapos cantam sua canção em Dó maior, que Debussy chama de o
7. ...Como se fosse a última vez tom da realidade, mas a música mantém uma aura do encantado, enquanto o pia-
A temporalidade nos pede para considerar que a música significa tempo. A no sustenta harmonias pentatônicas, mesmo ignorando o humor na linha final do

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE I - ANÁLISE MUSIC AL NA CONTEMPORANEIDADE

poema, que é “minha mãe nunca vai acreditar que eu estava procurando pelo meu 2001: 100). Na famosa afirmação de Bergson sobre o tempo, lemos um correlato
cinto por tanto tempo”. A música significou múltiplas temporalidades: um passado ao tempo-como-qualidade que ouvimos em Debussy.
antiquado, um passado narrativo, um presente antecipatório, um eterno agora, e Jeux Venitiens, de Lutoslawski, nega o tempo como qualidade. Com suas disjun-
uma suspensão estática de tempo. A música capta uma ambiguidade temporal no ções bruscas e imprevisíveis, ele quebra o todo orgânico do tempo Bergsoniano,
poema, que começa como uma narrativa clássica no passado. Mas, conforme a para indicar quantidades que podem ser medidas e entrecortadas. Embora pos-
mulher relata como ela aprende a tocar flauta, como seus lábios tocam os de seu samos caracterizar as diferentes temporalidades nessa peça – a seção inicial é
amante, e o momento de seu primeiro beijo, ela fala no tempo presente, como apressada e ativa, fazendo ao invés de sendo; a seção contrastante é estática e
se tivesse caído em outro fluxo de tempo, da maneira que Bergson acreditava congelada, sendo ao invés de fazendo – a temporalidade abrangente é simples-
que poderíamos saltar para o passado como um ato de liberdade. Ao final do mente a disjunção do próprio tempo: um tempo como quantidade, um tempo
poema, no entanto, nos encontramos no presente, como se esse relato estivesse como espaço, que foi o pesadelo que Bergson previu no modernismo precoce.
acontecendo ao mesmo tempo do tocar, do toque dos lábios, e do beijo. Diegesis
e mimesis se recusaram a permanecer separados. As várias temporalidades se
enredaram. Mas a música acrescenta uma estrutura às ambiguidades temporais 9. Uma trama para Arnold
do poema, repetindo a frase inicial no final da canção, como se empurrasse a É fácil visualizar a trama musical como análoga à tonalidade funcional e à forma;
história de volta a um curioso passado pré-industrial. elas tomam o lugar da cadeia lógica de eventos, de Aristóteles. Mas atos inter-
pretativos ainda são necessários para fazer o trabalho de composição da trama.
Assim, para James Hepokoski e Warren Darcy, a introdução de uma sonata indica
a ordem vigente de coisas, ou uma paisagem, ou uma reunião de forças (2006:
300-304). Tonalidade e forma por si só não farão o trabalho de gerar uma trama.
Tonalidade é mais como a ideologia reinante que tece as disjunções da música,
mudanças tópicas e temporalidades, de modo que nos tornamos cegos para a
trama. Em vez de olhar para a tonalidade, precisamos buscar o que Kramer chama
de objetos da trama da música, como a transformação de caráter, crise, catástrofe,
paisagem, ação, peripeteia, e assim por diante (2013: 173).
Nós já vimos um destes objetos da trama no op. 19 n.º 2 de Schoenberg, com
a crise das tríades diminutas combinadas no compasso 6 (Figura 6). As terças
repetitivas, impassíveis e inescrutáveis, param seu joguinho enquanto o problema
se instala nesse compasso. Mas as terças imperturbáveis voltam de onde saíram
no compasso 7, concluindo com uma combinação de tríades aumentadas, respon-
Figura 5: Debussy, trecho 3 dendo à crise anterior. Poderíamos formar uma trama a partir desses objetos e
criar uma série de ações e reações. Uma vez que a melodia começa no registro
8. Em busca do tempo perdido mais alto no compasso 2, as terças maiores reagem ao chegar nos compassos 4
“Duração pura é a forma que a sucessão dos nossos estados de consciência e 5. A melodia responde no compasso 6 com uma crise ameaçadora, à qual as
assume quando o nosso ego se permite viver, quando se abstém de separar o pequenas terças reagem ao retornar ao seu curso estável, aterrizando em um
seu estado atual de seus antigos estados... como acontece quando recordamos as acorde próprio enigmático, embora não ameaçador. Uma tonalidade incipiente
notas de uma melodia, derretendo-se, por assim dizer, umas nas outras” (Bergson espreita através dessa peça, mas a tonalidade não é necessária para revelar uma

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trama. Porém, repetindo meus comentários sobre agenciamento nessa peça, acho Quarteto de Cordas de Lachenmann frequentemente destaca o trabalho ne-
que essa pequena trama sutura o impulso anti-narrativo na música. A música não cessário para sua performance, de tal modo que a “auto-referência constante” é
forma uma trama tanto quanto ela nos mostra os cacos de uma trama, os restos como um narrador de sons “contando a estória de sua própria criação” (Meelberg
de uma história que se desfaz em seu próprio contar. 2006: 58). Abbate argumentou que podemos dizer quando um narrador musical
está presente, porque a própria música muitas vezes reduz suas forças, como
nas muitas narrações no Anel de Wagner (1991: 157-205). Outros certamente
encontrarão indicadores adicionais para narradores em música.
Por enquanto, Jeux venitiens inclui mudanças no discurso que indicam um narra-
dor. A justaposição ímpar de materiais convida a mente narrativa a considerar um
narrador invisível, que reuniu estas cenas musicais. Ironicamente, então, o narrador
vem à tona no momento em que uma sequência lógica de eventos hesita. Por que
o narrador reúne essas cenas? Um número de possibilidades se apresenta. O ad
lib é caos, e o battuta é ordem. O ad lib é liberdade; o battuta é escravidão. O ad lib
é a alegria da individualidade; o battuta é a solenidade da ordem social. O ataque
percussivo como narrador reúne, assim, essa polaridade resistente, pedindo-nos
para lhe dar sentido.

Figura 6: Schoenberg, op. 19 n.º 2


11. Dorothy em Tóquio
Em seu famoso concerto de 1984, em Tóquio4, Keith Jarrett senta-se ao piano,
10. A trama veneziana levanta os braços para arregaçar as mangas, pensa por um momento com as
Se a tonalidade é desnecessária para revelar uma trama, então a trama de Jeux mãos no teclado, e em seguida começa Over the Rainbow. A oitava inicial é serena
venitiens é toda ela muito simples. Dois conjuntos de material simplesmente se e hesitante como se Jarrett não estivesse bem certo sobre qual nota deveria vir
alternam. Esses materiais são tão contrastantes que negam a sequência lógica de depois. A primeiras poucas notas vêm tão lentamente que demora um pouco
eventos que compõem, em primeiro lugar, uma boa trama. para que a plateia reconheça a famosa canção e comece a aplaudir, em aprovação.
As seções se movem de uma a outra sem transições, o que só sublinha seu Ao longo da performance, seu tronco às vezes se levanta à sua estatura máxima,
fracasso de lógica narrativa. Mas os golpes rápidos na percussão separando essas rosto olhando para cima para buscar inspiração, ou a cabeça curvando-se para
seções sugerem que o tipo de lógica narrativa não é musical, mas cinematográfica. baixo, na concentração para lembrar a música. Toda a performance é aquietada
Podemos imaginar que a câmera musical reuniu essas seções com um propósito. mas bonita em sua incerteza; algumas notas vêm em rajadas rápidas, enquanto
E isso significa que os ataques percussivos agem como um narrador que decide outras se movem com uma regularidade cautelosa. Nossa atenção é atraída para o
quando devemos nos voltar para a próxima parte da história. intérprete Jarrett, tanto quanto o é para a música. Jarrett não interpreta, ele narra.
Era uma vez uma canção chamada Over the Rainbow, cantada por uma jovem que
Chegamos ao problema do narrador. Tanto tem sido escrito sobre o frágil con-
sonhou com um lugar distante que acabou por ser o “não há lugar como o lar”.
tador de estórias na música, que é melhor evitar exercitar os argumentos aqui.
Tal como as outras metáforas, no entanto, a tonalidade não é pré-requisito para Seguimos os giros de seu corpo e a persuasão precária da música do piano.
um narrador musical. Vincent Meelberg argumenta, por exemplo, que o segundo
4 Um vídeo dessa performance está disponível no YouTube: <http://youtu.be/vWf8NUUQvWs>.

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Caímos em seu ato de recordar. A narrativa não é uma reencenação de um outra, como ele desenvolve uma peça dentro de uma peça, como Hamlet parece
passado estável; é uma formação imaginada do passado. Uma narrativa executa preso entre ação e pensamento. Estes são detalhes sobre o discurso narrativo de
um passado possível. Jarrett narra Over the Rainbow não só como um ato de Hamlet. Mas um leitor não versado na teoria narrativa poderia muito bem nos
recordação, mas também como um ato de reconstrução. perguntar porque nós não discutimos os acontecimentos da estória. Onde está a
Na época em que Jarret tocou esse concerto, o mundo estava em um mo- discussão sobre o fantasma que exige que Hamlet se vingue de Claudius? Onde
mento em que o capital estava saindo dos Estados Unidos para a Ásia via Japão. está a consideração sobre o suicídio de Ofélia? E sobre a cena final em que todos
Em 1900, quando L. Frank Baum escreveu The Wonderful Wizard of Oz, o capital (ou quase todos) morrem? Em suma, onde estão todas as partes boas da estória?
estava saindo da Europa para os Estados Unidos. E quando Dorothy cantou Over A resposta rápida é que não se revela um discurso a fim de se chegar à estória.
the Rainbow em 1939, a América acreditava que havia dominado o capital e a Simplesmente pula-se dentro da estória. Assim, com a música, ficamos com o
cultura europeia decadente, de onde ele veio. Podemos imaginar a estória da mesmo problema perturbador que Jean-Jacques Nattiez assinalou há muito tempo
performance de Jarrett da perspectiva do capital. Era uma vez um centro cultural/ (1990): se a música é como uma narrativa, qual é a estória que ela está tentando
capital que produziu uma canção colocando uma inocência imaginada em um contar? Esta é uma questão hermenêutica, que requer as mesmas respostas en-
lugar chamado Kansas. Aceitem essa canção como uma dádiva e um segredo de volvidas em qualquer empenho interpretativo. Estamos abertos a lugares onde a
que Kansas era realmente Oz, um mundo imaginado que nunca foi o que Dorothy música se afasta de convenções.Tentamos compreender como a música responde
sonhava que pudesse ser. ao seu contexto cultural e cria esse contexto. Ouvimos lugares onde a música cita
outra música, cita a si mesma, ou se reescreve. A análise narrativa é uma forma de
hermenêutica.
12. Discurso e estória
Há muitas razões para desconfiar desse tipo de projeto narrativo. Qualquer
Uma tradição da crítica literária divide narrativa em discurso e estória: discurso
um que tenha estudado o realismo socialista, por exemplo, sabe como é fácil
é o modo pelo qual um conto é construído, e estória é o próprio conto. A nar-
compreender errado a estória: perder a ironia da Quinta Sinfonia de Shostakovich
rativa da minha viagem para o Brasil inclui um convite, escrever um ensaio, pegar
e ouvir apenas a sua “enorme elevação otimista”, como fez Alexei Tolstoy, em
um avião, ir até o meu hotel, fazer novos amigos, e assim por diante. Esses são os
1937. A essa questão, podemos acrescentar a convicção de que contar estórias é
eventos na estória da minha viagem. Mas se eu contar essa estória, eu poderia
um caminho fácil que se afasta das afirmações verificáveis que deveríamos estar
começar pelo momento da leitura do trabalho e ir para trás e para frente, entre o
fazendo. Mas essas são questões hermenêuticas, dentro ou fora da música. Uma
presente e o passado. Eu poderia começar com minha volta para casa, e descrever
interpretação não é uma afirmação da verdade, mas um convite para uma outra
os eventos na ordem inversa. Eu poderia misturar todos os eventos. Eu deveria
interpretação.
incluir os vários pensamentos como eu os imagino nas mentes daqueles ao meu
redor? Quanto eu deveria descrever as paisagens brasileiras? A maneira pela qual A cura para o sonho é sonhar mais, nos diz Proust. Se as leituras hermenêutico-
eu construo essa estória é o discurso. Pensando um pouco, você descobrirá que, -narrativas da música são perigosas, a cura para elas não é interpretar menos, mas
como muitos opostos, é difícil manter discurso e estória afastados. interpretar mais. Interpretar o tempo todo. Robert Samuels sugere que vejamos
nossas estórias musicais como performances da música.5 Algumas das estórias que
Até agora, nessa fala, tenho me preocupado com o discurso narrativo. Tenho
propomos vão parecer obstinadas e outras submissas. E como as performances,
focado em como se constrói música a fim de indicar um narrador, ou um agente,
nenhuma narrativa pode contar toda a estória da música. Mas um discurso sem
uma trama, ou um conjunto de temporalidades. A maioria dos estudos da narra-
uma estória é uma triste desculpa para uma narrativa.
tiva musical compartilha esse foco sobre o discurso às custas da estória. Imagine
um projeto desse em narrativas literárias. Descrevendo o Hamlet de Shakespeare,
5 Observação feita numa mesa-redonda de discussão sobre narrativa musical (Sixth Biennial Conference on Music
por exemplo, poderíamos detalhar como Shakespeare se move de uma cena para Since 1900, Keele University, 2-15 de julho, 2009).

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE I - ANÁLISE MUSIC AL NA CONTEMPORANEIDADE

13. Chegando a um primeiro resumo Mas essas oposições são instáveis. A primeira pista está em uma coleção de-
sordenada de notas repetidas que mancha a superfície, então serena, das seções
Antes de voltar para a estória de uma das peças de que falei hoje, seria bom
battuta. Estes tiques que escapam são sinais daquilo que Žižek chama de “es-
parar para uma revisão. Então, aqui está um resumo em uma lista ordenada:
quecendo-se de esquecer” (2008: 18). O que precisamos fazer para lidar com
nossas vidas cotidianas é lembrar de esquecer da “descontinuidade radical” entre
01. A narrativa nos dá um conjunto de metáforas para compreender a música. a vida orgânica e a Ordem Simbólica, impondo uma estrutura sobre ela. Mas às
02. Podemos estudar cada uma dessas metáforas por si mesmas, ou podemos vezes você se esquece de esquecer. Você encara “um pequeno gesto ou tique
colocá-las juntas em algo como uma narrativa. compulsivo, um lapso verbal... que condensa tudo o que você tinha que esquecer,
03. Essas metáforas podem usar a tonalidade como um significante, mas a tona- para que você possa nadar na sua certeza cotidiana” (Ibid.).
lidade sozinha não significa narrativa. As seções battuta começam serenamente, oferecendo uma alternativa desejá-
04. Essas metáforas compõem o discurso narrativo. vel aos caóticos ad libs. Mas tremores ansiosos desfiguram a superfície, mostrando
05. O discurso narrativo não é o conteúdo de uma estória. a impossibilidade de manter o caos fora. A música se esquece de esquecer a
convencionalidade do caos e da ordem. Uma vez que a música reconhece que
06. Não se pode ir do discurso diretamente para a estória; simplesmente pula-se
o caos caiu da estrutura das seções ad lib, o jogo está definido, restando apenas
dentro da estória.
alguns movimentos. O sujeito musical pode tentar dominar o trauma do Real,
07. Uma narrativa sem estória não é narrativa. ou pode desistir do jogo, definitivamente. Finalmente, a única coisa a se fazer é
08. Encontrar a estória musical é um ato hermenêutico. parar, o que a música efetua com quatro ataques retraídos da percussão, como
09. Conte estórias. se o nosso narrador saísse choramingando da estória que está sendo contada.
Assim, podemos ler esta música como encenação de uma crise da subjetividade
moderna. Uma estória de Jeux venitiens conta como caos e ordem formam uma
Essa é uma lista de nove itens sobre narrativa musical. Admito que não acho
oposição incômoda, que não garante síntese, porque a própria oposição é um
nove um número atraente. Estamos só intimidados pelo dez, que seria como atin-
produto de uma Ordem Simbólica que nunca pode realmente capturar o nosso
gir o ponto final de uma brincadeira de criança. Precisamos de outro item sobre
ser no mundo. Nos termos de Deleuze e Guattari (1987), não somos molares
narrativa, e aqui está: Historie sempre! Roubei esse ponto de Fredric Jameson: é
(ou ordenados), nem somos moleculares (ou caóticos), mas um conjunto desses
a linha de abertura do seu livro, O Inconsciente Político (1981: 9); mas vale a pena
termos. Como o Merovigiano diz a Neo, em The Matrix Reloaded, “logo o porquê
repetir. Vai nos ajudar à medida que desenvolvemos uma estória musical.
e a razão desaparecem, e tudo o que importa é o próprio sentimento... sob nossa
aparência equilibrada, a verdade é que estamos completamente fora de controle”.
14. Lutoslawski, ordem e caos E essa estória de nossa existência é tal que só a música depois de 1900 pode
contar, porque explora uma compreensão do pensamento do século XX.
Como devemos ler as oposições de Jeux venitiens? Quando pergunto aos meus
alunos o que as seções opostas poderiam significar, eles invariavelmente res-
pondem, caos e ordem. Uma boa primeira resposta. Para Arnold Whittall (2001: 15. Uma conclusão por meio do item 9
255), o conceito de ad lib de Lutoslawski era “uma forma musical inovadora de Para concluir, vamos voltar ao item 9: contar estórias. Imagino que alguns se
trabalhar com os espaços entre ‘caos’ e ‘ordem’”. O ad lib era o caminho de sentem desconfortáveis com a falta de rigor, a completa subjetividade desse ponto.
Lutosławski para o modernismo: uma interação persistente de elementos opostos Mas os supostos perigos da subjetividade nunca foram o que as pessoas imagi-
que resistem a uma síntese confortável. naram, já que a própria subjetividade é dependente da Ordem Simbólica. Nossa

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE I - ANÁLISE MUSIC AL NA CONTEMPORANEIDADE

vida interior é mais porosa à história e cultura do que gostaríamos de acreditar, Day-O’Connell, Jeremy. 2002. “The Rise of 6 in the Nineteenth Century”. Music Theory
e cada pensamento é menos singular do que poderíamos desejar. Mas deixando Spectrum 24/1, 35-67.
a subjetividade de lado por um momento, eu não tenho pudores em tomar um Deleuze Gilles; Guattari, Félix. 1987. A Thousand Plateaus: Capitalism and Schizophrenia, trad.
de Brian Massumi. Minneapolis: University of Minnesota Press.
pensamento de Lawrence Kramer e repetir o que os músicos estranhamente
Hatten, Robert S. 2004. Interpreting Musical Gestures, Topics, and Tropes: Mozart, Beethoven,
precisam mais e mais ouvir: uma interpretação não é uma afirmação da verdade
Schubert. Bloomington: Indiana University Press.
(1990: 14-15). Nós não embarcamos nos estudos narrativo-hermenêuticos da
Hepokoski, James e Darcy Warren. 2006. Elements of Sonata Theory: Norms, Types, and
música a fim de provar coisas. Fazemos isso para introduzir um discurso sobre Deformations in the Late-Eighteenth-Century Sonata. Oxford: Oxford University Press.
história e cultura, nos ajudando a compreender a história da nossa cultura.
Jameson, Fredric. 1981. The Political Unconscious: Narrative as a Socially Symbolic Act. Ithaca:
Já que este ensaio, como mencionei, é companheiro de um anterior, sobre Cornell University Press.
um tema semelhante, peço a indulgência do leitor enquanto eu parafraseio o Klein, Michael. 2013. Music and Narrative since 1900, ed. Michael Klein and Nicholas Reyland.
final daquele ensaio, para trazer a este um pensamento esperançoso. Esqueça a Bloomington: Indiana University Press.
música moderna por um momento. A vida moderna é difícil. Todos nós lutamos Kramer, Lawrence. 1990. Music as Cultural Practice. Berkeley: University of California Press.
com os problemas vertiginosos da modernidade. As ambiguidades e contradições, Kramer, Lawrence. 2013. “Narrative Nostalgia: Modern Art Music off the Rails”. Music and
as tensões e as ironias, a alegria e o desespero, o desejo do retorno de um Narrative since 1900, ed. Michael Klein e Nicholas Reyland. Bloomington: Indiana University
Press, 163-85.
passado estável e a antecipação de um futuro mutável. E o que devemos fazer
Kramer, Lawrence. 1995. Classical Music and Postmodern Knowledge. Berkeley: University of
com essa catástrofe-sobre-catástrofe arremessada aos nossos pés? Para começar,
California Press.
podemos fazer muito pior do que dar sentido a essa confusão ao reconhecer
Lacan, Jacques. 2006. “Science and Truth”. Écrits, trad. de Bruce Fink. New York: W. W. Nor-
que esse mundo louco é feito de estórias e que a música é um dos contadores ton and Company, 855-77.
de estórias. Então, temos uma escolha. Podemos cair na música, calar o mundo
Maus, Fred Everett. 1989. “Agency in Instrumental Music and Song”. College Music Sympo-
caótico, bater nossos calcanhares três vezes (como Dorothy faz quando retorna sium 29.
a Kansas), ignorar a estória à nossa volta, e viver em um universo de som, longe Meelberg, Vincent. 2006. New Sounds, New Stories: Narrativity in Contemporary Music. Amster-
do problema da história. Ou podemos encontrar uma maneira de dar à música dam: Leiden University Press, 2006.
uma voz, ouvir como se ela nos contasse a estória do mundo, que ela também Miller, J. Hillis. 1995. “Narrative”. Critical Terms for Literary Study (Second Edition), ed. Frank
ouve como uma confusão, admirar histórias secretas que a música testemunhou, Lentricchia and Thomas McLaughlin. Chicago: University of Chicago Press, 66-79.
e encontrar a força para contar as estórias da música. Você é um agente livre. Nattiez, Jean-Jacques. 1990. “Can One Speak of Narrativity in Music?”. Journal of the Royal
Você pode escolher abrir mão de estórias da música. Mas eu sou um contador de Musical Association 115/2, 240-57.
estórias. Já sei qual escolha eu faria. Ricouer, Paul. 1984. Time and Narrative, trad. de Kathleen McLaughlin e David Pellauer.
Chicago: University of Chicago Press.
Scruton, Roger. 1997. The Aesthetics of Music. Oxford: Oxford University Press.
Referências Simms, Bryan R. 2000. The Atonal Music of Arnold Schoenberg, 1908-1923. Oxford: Oxford
Abbate, Carolyn. 1991. Unsung Voices: Opera and Musical Narrative in the Nineteenth Century. University Press.
Princeton: Princeton University Press. Whittall, Arnold. 2001. “Between Polarity and Synthesis: The Modernist Paradigm in Lu-
Bergson, Henri. 2001. Time and Free Will: An Essay on the Immediate Data of Consciousness, tosławski’s Concertos for Cello and Piano”. Lutosławski Studies, ed. Zbigniew Skowron. Oxford:
trad. de F. L. Pogson. Mineola, New York: Dover Publications. Oxford University Press, 244-68.
Brower, Candace. 2000. “A Cognitive Theory of Musical Meaning”. Journal of Music Theory Žižek, Slavoj. 2008. Enjoy Your Symptom! Jacques Lacan in Hollywood and Out. New York:
44/2, 323-79. Routledge.

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PARTE II - TEORIAS DO COMPOR: A CONTEMPORANEIDADE BRASILEIRA

A Produção de teoria
composicional no Brasil
Liduino José Pitombeira de Oliveira

1. Introdução
O tema desta mesa – “teorias do compor : a contemporaneidade brasileira”
– nos convida inicialmente a uma série de indagações de caráter conceitual.
Com relação à primeira par te do título – “teorias do compor”, pode-se per-
guntar : o que é teoria composicional? No âmbito do fazer composicional, exis-
te uma prática composicional que se contrapõe dialeticamente a uma teoria
e que, para efeito de observação, pode ser dela dissociada? Como as teorias
composicionais dialogam com as técnicas, os sistemas e as estéticas compo-
sicionais, com as teorias analíticas e com outros campos teóricos que ultra-
passam os limites da música? Como são transmitidas e ensinadas as teorias
composicionais?
Com relação à segunda par te do tema – “a contemporaneidade brasileira”
– examinaremos quatro teorias praticadas no Brasil, que me interessam como
pesquisador/compositor : teoria dos contornos, análise par ticional, teoria da
variação progressiva e teoria dos sistemas composicionais. Esta última, associa-
da ao conceito de modelagem sistêmica, será focalizada com maiores detalhes,
por ser um tema sobre o qual venho me debruçando desde 2007, tendo já
produzido diversas publicações. Pequenos exercícios composicionais ilustrarão
as potenciais aplicações composicionais dessas teorias.
Dessa forma, sem pretender obviamente ser exaustivo ou apresentar uma
resposta definitiva sobre o assunto, este trabalho visa inicialmente indagar so-
bre o significado e a abrangência do termo “teoria composicional”, propondo
hipóteses que nos ajudem a pensar essa questão, para em seguida fazer um
breve levantamento sobre as quatro teorias supramencionadas.

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE II - TEORIAS DO COMPOR: A CONTEMPORANEIDADE BRASILEIRA

2. Teoria composicional O que é afinal teoria composicional? Seria, sob uma perspectiva ontológica,
Matthew Brown (1986, p.844), no New Harvard Dictionary of Music, define um saber dedicado ao exame da natureza essencial de uma composição ou de
teoria musical, esse corpo maior com o qual a teoria composicional compar ti- seus princípios fundamentais? Seria um corpo teórico associado ao conjunto de
lha elementos comuns, como “os princípios abstratos incorporados na música diretrizes estéticas que norteariam a aplicação prática e em sentido reverso de
e nos sons que a compõem”. Thomas Christenssen (2007, p.2-3), ao traçar ferramentas desenvolvidas primariamente para a teoria analítica? Seria um con-
uma trajetória etimológica, afirma que o termo teoria evoluiu par tindo de seu junto de fundamentos teórico-estéticos, racionais ou intuitivos, que regulariam
significado visual pré-socrático associado simplesmente à observação, passan- a criação de sistemas composicionais próprios?
do pelo significado socrático de aquisição de conhecimento (episteme), até Imaginemos o seguinte exercício composicional. Suponhamos que me foi soli-
ser relacionado aristotelicamente à ontologia. Assim, para Christenssen a teoria citado compor um minúsculo Dies Irae de cerca de doze segundos para soprano
musical não se preocuparia como uma obra é composta ou executada, “mas e trio de cordas (violino, viola e violoncelo), com uma série de instruções fixas
com questões ontológicas básicas: qual a natureza essencial da música? Quais de tal forma que possa soar “sempre o mesmo” a cada performance. Digamos
os princípios fundamentais que governam sua aparição?” Dessa forma, “teoria
que eu documente todas as fases do processo de composição desse trecho, ou,
composicional” poderia ser um corpo teórico de caráter mais prático incluído
para utilizar uma terminologia de Roger Reynolds (1994, p.5), que eu descreva
no âmbito da teoria musical. Vale salientar que, segundo Christenssen (2007,
pormenorizadamente os passos metodológicos que me permitiram passar do
p.3), para Aristóteles, “teoria não seria algo oposto à prática, mas sim uma for-
material para a forma. A intenção é identificar nesse exercício os traços de uma
ma mais elevada de prática, enquanto prática seria um tipo de teoria aplicada”.
Assim, é possível combinar os dois termos sem contradição. Christenssen agru- teoria composicional que viabilizará a transformação de materiais amorfos em
pa no tópico “teoria composicional” assuntos ligados ao contraponto medieval, uma narrativa musical com forma definida.
renascentista e barroco (incluindo sua pedagogia), à teoria da performance e à Um compositor do século XXI tem à sua disposição uma gama variada de
teoria dodecafônica. materiais, alguns deles fornecidos pela teoria analítica: as classes de alturas, os
Por sua vez, Joel Lester (1996, p.6) em seu Compositional Theory in the Ei- contornos, os ritmos, as sonoridades estruturais etc. Mesmo obras de natureza
ghteenth Century, embora não forneça uma definição explícita para o termo móvel, que se constroem a cada performance, podem utilizar esses materiais
“teoria composicional”, inclui no campo composicional assuntos como “teoria como tijolos básicos de construção. Decidi utilizar, como estrutura fundamental
elementar, intervalos e acordes, harmonia e condução de vozes, considerações do trecho, uma sonoridade que, segundo Richard Cohn (2004), guarda uma sim-
melódicas, fraseologia e forma musical e o próprio processo de trabalhar uma bologia associada à ideia de morte, já que se trata da criação de um Dies Irae. Essa
composição”.1 sonoridade, o polo hexatônico, mostrada na Figura 1, pode ser vista a partir de
Paul Berg (1996, p.25) afirma que as esferas da teoria musical e da composi- diferentes perspectivas, como a sobreposição: (1) do primeiro grau de uma tona-
ção são essencialmente diferentes: “a teoria musical é inerentemente normativa lidade maior com seu sexto grau abaixado menor (mediante cromática terciária2);
e reflete uma codificação de conquistas do passado; a composição é criativa e (2) de dois acordes aumentados separados por um semitom; (3) de dois tricordes
expande a teoria”. Berg afirma ainda que existe uma notória falta de diferencia- da classe de conjuntos [014] que tenham uma relação de T9I entre si (Figura 1).
ção entre os dois campos – teoria musical e composição – quando se utilizam
os sistemas analíticos de forma reversa para a composição, uma estratégia que 2 Segundo Aldwell (1989), a mistura primária consiste no uso de um acorde de uma tonalidade homônima; a
ele não considera interessante pelos resultados estéticos. mistura secundária consiste na alteração da terça de um acorde diatônico; a mistura terciária, denominada por Aldwell de
double mixture, consiste em alterar a terça de um acorde emprestado de uma tonalidade homônima (p.508). No exemplo
1 “Composition is construed here rather broadly to include everything from musical rudiments, intervals and chords, da Figura 1, Lá maior seria o VI emprestado da tonalidade de Dó# menor, homônima de Dó# maior. Esse empréstimo teria
the study of harmony and voice leading, considerations of melody, musical phrasing and form, and the actual process of configurado uma mistura primária. Como, além de tomar emprestado da tonalidade homônima o acorde teve sua terça
working out a composition”. alterada, produzindo um acorde Lá menor, dizemos que houve mistura terciária.

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE II - TEORIAS DO COMPOR: A CONTEMPORANEIDADE BRASILEIRA

Figura 1. Polo hexatônico e sua estrutura multifacetada


Essa visão multifacetada do polo hexatônico nos permite ampliar a simbologia
e considerar o acorde aumentado, um dos componentes do polo hexatônico,
como símbolo da ideia de eternidade, por conta da estabilidade geométrica do
triângulo, que é a figura formada pelas alturas desse acorde dentro do círculo
cromático, e também incluindo as tríades maiores e menores para simbolizar a
dualidade/temporalidade humana, levando-se em consideração que uma tríade
maior/menor pode ser vista como uma deformação parcimoniosa em qualquer
um dos componentes de um acorde aumentado. Assim podemos criar um ciclo
simbólico: eternidade, temporalidade e morte. Em termos de sonoridades os
componentes desse ciclo serão unificados pelo emprego de polos hexatônicos
Figura 2. Macroestrutura do Dies Irae
em diferentes transposições.3 Os polos apresentarão diferentes facetas corres-
pondendo à simbologia do ciclo. Dessa forma, no ciclo eternidade o polo hexa-
tônico será fragmentado em dois acordes aumentados e no ciclo temporalidade
será fragmentado em duas tríades, uma maior outra menor, que guardam entre
si uma relação de mediante terciária. No ciclo correspondente à morte, o polo
aparece integrado, cumprindo a função descrita por Cohn.
Acrescentemos ainda uma simbologia numérica associada ao aspecto métrico:
o trecho da eternidade terá um compasso 3/8; o trecho da temporalidade terá
um compasso 9/8, uma vez que o número 9 pode ter um simbolismo associado à
ideia de humanidade como um conjunto de seres humanos vivenciando a finitude
temporal (a soma dos algarismos do apocalíptico 144.000); e o trecho da morte
terá um compasso 12/8, considerando que o número 12 pode ser associado à
ideia de morte por sua direta conexão com os signos zodiacais, ou seja, com a
ideia de destino (carma).
O diagrama da Figura 2 mostra um possível plano macroestrutural para a com- Figura 3. Dies Irae
posição. Observemos que esse plano não é específico com relação aos materiais Voltando então à nossa indagação inicial, que tínhamos enunciado antes de
motívicos, à estrutura rítmica, à dinâmica etc. Isso significa que ele pode resultar realizarmos esse pequeno exercício composicional: que teoria composicional
em diferentes obras, todas aparentadas, no entanto, pela mesma narrativa que viabilizou a transformação de um material neutro, o polo hexatônico, em uma
revela as diferentes facetas do polo hexatônico. Uma possível realização musical obra musical? Como chegamos ao plano que resultou na obra? Podemos revisitar
desse plano é apresentada na Figura 3. nossos passos de forma sintética, conforme mostramos no diagrama da Figura
3 O polo hexatônico, embora não esteja na seleta lista de Messiaen, é um modo de transposição limitada de nível 4. Primeiramente escolhemos o material, que no caso desse exercício consistiu
4, ou seja a partir da quarta transposição tem seu conteúdo de alturas repetido.

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE II - TEORIAS DO COMPOR: A CONTEMPORANEIDADE BRASILEIRA

unicamente no polo hexatônico. Em seguida, olhamos esse material a partir de É nossa segunda hipótese que um plano sempre está sempre presente no ato
diferentes perspectivas, o que nos revelou diferentes facetas de sua estrutura. Es- de compor, ainda que de forma subliminar. Dessa maneira, mesmo ao compor
sas facetas foram então associadas a uma simbologia que influenciou na métrica e linearmente, revelando a obra sequencialmente, compasso a compasso, e se sur-
na distribuição temporal das alturas do polo: ora como acordes aumentados, ora preendendo individualmente com os resultados de cada decisão local, o compo-
como tríades relacionadas por mistura terciária e, finalmente, como bloco único. sitor está realizando um plano implícito.
A “performance” ou realização do plano gerou então uma partitura final, que não É nossa terceira hipótese que o plano é o resultado prático de uma estrutura
é a única possível, mas apenas uma de suas inúmeras possibilidades. teórica ainda mais profunda e abstrata, que denominaremos de sistema composi-
cional. Essa estrutura funciona como um arquétipo, uma generalização de tendên-
cias que se particularizam em possíveis planos composicionais. É nessa estrutura
que reside a teoria composicional própria de determinada obra. Para usar as
palavras de Joel Lester (1996, p.6), teoria composicional é “o próprio processo de
trabalhar a composição”. A descrição desse processo, a identificação de suas leis
internas revela a teoria composicional de determinada obra. São palavras-chave
identificadas com a teoria composicional inerente ao nosso exemplo: escolha de
sonoridade, associação simbólica, fragmentação e narrativa de conexão.
No caso do nosso exemplo, a teoria composicional capaz de gerar o plano
composicional e, na sequência, a partitura da obra, pode ser encontrada na ge-
neralização dos passos que tomamos para gerar o plano. Essa generalização se
Figura 4. Passos para a geração do plano composicional do Dies Irae corporifica em um conjunto de diretrizes, que são apenas tendências gerais, sem
particularidades específicas (mostradas na Figura 5). Nessas diretrizes, e não no
É nossa primeira hipótese que a realização do plano tem um caráter perfor- material ou na teoria analítica, está contida a teoria composicional que sustenta o
mático e prático: é um campo aber to para as escolhas pessoais, sendo, por tanto, plano composicional e a obra.
variável. Essa realização, como toda performance, envolve aspectos mecânicos,
especialmente relacionados ao movimento: o lápis no papel ou o mouse na tela
do computador gerando os gráficos da par titura, que são uma série de instru-
ções performáticas para o instrumentista. Realizar o plano, esse ente teórico
produzido por uma teoria que estamos tentando identificar, seria, por assim
dizer, uma prática composicional. Mas essa prática logo produz um ente teórico,
uma par titura, uma série de instruções congeladas no papel, um gráfico espe-
rando por sua próxima performance, quando se transformará em som e, assim,
novamente em um ente prático: compressões e rarefações das moléculas de ar Figura 5. Sistema composicional do Dies Irae
produzidas por um instrumento musical. Esse som, pela multiplicidade semântica
e cultural, se torna um ente teórico, um objeto simbólico, que se transforma Pensando isomorficamente podemos imaginar que a performance desse ente
novamente em algo prático, em nível individual nos ouvidos de quem os deco- teórico denominado sistema composicional, que é a teoria arquetípica geradora
difica em música. da obra, produz um ente prático: o plano composicional. Esse plano, como vimos

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE II - TEORIAS DO COMPOR: A CONTEMPORANEIDADE BRASILEIRA

acima, se torna um ente teórico, um conjunto de regras, e ao ser executado pro- elementos em interação”, situando a música em um nível hierárquico denomina-
duz uma partitura, seu produto prático. Na próxima seção traçaremos a origem e do sistemas simbólicos, nos quais os modelos se organizam a partir de algoritmos
forneceremos uma definição sobre o conceito de sistema composicional. simbólicos (2008, p.53).
Partindo desses referenciais teóricos, Flávio Lima (2011, p.65) define sistema
3. Sistemas composicionais composicional como “um conjunto de diretrizes, formando um todo coerente, que
Klir (1991, p.4-5) define sistema como “um conjunto ou arranjo de coisas rela- coordenam a utilização e interconexão de parâmetros musicais, com o propósito
cionadas ou conectadas de tal maneira a formar uma unidade ou todo orgânico”.4 de produzir obras musicais”. Sugerimos uma atualização para essa definição com
Na equação S=(O,R), S é o sistema, O, o conjunto de objetos e R, o conjunto de o intuito de deixar claro que o sistema atua em nível generalizado (diferenciando-
relações entre os objetos desse sistema. Observando a definição de Klir, pode-se -se assim do planejamento, que atua em nível particular) e que manipula não só
verificar que um sistema necessita simultaneamente de objetos e de relações. parâmetros, isto é, abstrações de materiais observados sob certas perspectivas,
Dessa forma, um conjunto qualquer de classes de alturas somente passa a ser mas também os próprios materiais integralmente considerados.5 Isso é particular-
um sistema quando estabelecemos composicionalmente ou identificamos ana- mente útil no caso de sistemas intertextuais que utilizam os intertextos de forma
liticamente uma regra de ordenação entre as classes de alturas desse conjunto. integral sem manipulações adicionais.
Assim, por exemplo, o conjunto desordenado {1,3,5,7,9,11} pode ser ordenado Apresentamos na Figura 7 um sistema composicional aleatório, no qual as altu-
em uma partitura segundo uma regra na qual o conteúdo de pares adjacentes de
ras são determinadas por sorteio. As etapas de planejamento desse sistema con-
classes de alturas soma doze (ca1+ca2 = ca3+ca4 = ca5+ca6 = 12) e as durações
sistem simplesmente na determinação da instrumentação e da tessitura de cada
sejam atribuídas de acordo com a cardinalidade da classe de altura, tomando a
instrumento e na realização de um sorteio para as alturas. Independentemente do
colcheia como unidade. Na Figura 6, temos essas classes de alturas desordenadas,
sistema, o compositor pode optar por realizar um planejamento estrutural, rítmi-
ou seja, como objetos isolados (lado esquerdo) e em seguida a ordenação dessas
classes de alturas de acordo com uma das possibilidades que atende à regra de co, das dinâmicas e das articulações, uma vez que o sistema trata exclusivamente
ordenação. das alturas. A instrumentação escolhida será quarteto de cordas com as tessituras
para cada instrumento mostradas no início da Figura 9, na qual se observa uma
associação numérica para as alturas. O sorteio foi realizado por um script muito
simples, em Python, mostrado na Figura 8 (primeira coluna), juntamente com os
resultados (segunda coluna) sorteados no âmbito da tessitura definida pelo com-
positor. Na Figura 9 temos o trecho realizado.
Figura 6. Classes de alturas desordenadas (esquerda) e ordenadas segundo
a regra: ca1+ca2=ca3+ca4 = ca5+ca6 = 12

Meadows (2008, p.11) acrescenta à definição de Klir, outro componente: a


função. Assim, para Meadows, um sistema é composto de três itens: objetos,
interconexões e função. Por sua vez, Ludwig von Bertalanffy (2008, p.84), o for- Figura 7. Sistema composicional aleatório

mulador da teoria geral dos sistemas, nos diz que “um sistema é um complexo de
5 Essa foi uma valiosa sugestão do Prof. José Augusto Mannis, durante o congresso da ANPPOM de 2013, em
4 “A set or arrangement of things so related or connected as to form a unity or organic whole”. Natal.

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE II - TEORIAS DO COMPOR: A CONTEMPORANEIDADE BRASILEIRA

É importante salientar que um sistema composicional é simplesmente um pro-


cedimento metodológico de caráter organizacional que se utiliza de diversos re-
ferenciais teóricos e estéticos. Assim, as diretrizes de um sistema composicional
podem se apoiar no espectralismo, no indeterminismo, em procedimentos de
manipulação textural, em procedimentos de manipulação motívica, em controles
de parâmetros musicais, em ferramentas intertextuais etc.
Os sistemas que operam a partir de intertextualidade – literal ou abstrata –
nos interessam particularmente, uma vez que podem nos revelar características
arquetípicas e tendências estéticas de um determinado compositor e motivar a
criação de obras originais que tenham parentesco com esses arquétipos e ten-
dências. Denominamos modelagem sistêmica um procedimento para identifica-
ção da estrutura arquetípica de uma determinada obra de tal forma que nos
permita propor um sistema composicional que hipoteticamente teria sido defini-
Figura 8. Script em Python e o sorteio resultante
do pelo compositor dessa obra. Na próxima seção examinaremos esse conceito
com maiores detalhes.

4. Modelagem sistêmica
“Um modelo é definido como a representação simplificada de um sistema real
com o objetivo de estudo deste sistema” (Mororó, 2008, p.27). No âmbito da en-
genharia, a modelagem consiste na criação de um modelo físico (protótipo), em
proporções reduzidas, e de um modelo matemático, ou seja, um aparato formal
que descreve as propriedades e o funcionamento do sistema modelado.
No âmbito da análise musical, é possível realizar um procedimento análogo à
modelagem sistêmica, com a finalidade de examinar os princípios estruturais dos
diversos parâmetros musicais de uma obra, bem como as relações entre os valo-
res agregados a estes parâmetros, em suas diversas dimensões. Se a modelagem é
realizada com fins composicionais, pode resultar na definição de um sistema, que
descreve, de forma generalizada, a aplicação desses parâmetros e suas relações
internas. Nesse caso, a generalização destas relações é uma fase essencial na defi-
nição do sistema já que o objetivo é criar obras originais e não reproduzir o texto
original. As peculiaridades são decididas em uma etapa subsequente, denominada
planejamento composicional. A obra analisada é, dessa forma, simplesmente re-
sultado de um dos prováveis planejamentos composicionais emanados de uma
estrutura mais profunda – o sistema composicional.
Figura 9. Tessitura e realização dos dados produzidos por sorteios (veja Figura 8)

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE II - TEORIAS DO COMPOR: A CONTEMPORANEIDADE BRASILEIRA

Nas três próximas seções faremos um estudo panorâmico da teoria dos con- (tutti). A utilização de contornos no âmbito dos sistemas composicionais pode
tornos, da teoria da variação progressiva (e Grundgestalt) e da análise particional, envolver diversos paradigmas: o emprego de gramáticas fundamentadas em hie-
incluindo um exame conciso do potencial dessas teorias como ferramentas de rarquização quantitativa, a reconfiguração de intertextos ou a manipulação de
modelagem sistêmica. padrões gráficos extraídos de paisagens e fotografias. Um exemplo desse último
caso pode ser encontrado em Silva, Santos e Pitombeira (2014).
5. Teoria dos contornos
O introdutor da teoria dos contornos no Brasil, Marcos Sampaio (2012, p.1),
define contorno como “o perfil, desenho ou formato de um objeto.(...) É possível
abstrair contornos de qualquer parâmetro musical como altura, densidade, ritmo,
timbre, e intensidade.”6
As configurações topológicas de contorno crescem à medida que aumenta a
cardinalidade, ou seja, a quantidade de pontos envolvidos. Assim, por exemplo,
três pontos geram seis possibilidades de contorno, quatro pontos geram vinte e
quatro possibilidades. O valor dessas possibilidades é calculado pela permutação
da quantidade de pontos (Pn = n!). Na Figura 10 temos as possibilidades de con-
torno para cardinalidade quatro (contornos em vermelho são duplicações e não
são contabilizados). Essas configurações são agrupadas em classes de contornos,
similarmente ao que ocorre na teoria das classes de alturas de Forte. Sampaio Figura 10. Topologia do contorno de quatro pontos <0123>
(2012) desenvolveu bibliotecas em Python que fornecem diversas possibilidades
de operações com contornos, incluindo a determinação da forma normal e da
forma prima. Operações básicas incluem a retrogradação, a inversão e a rotação.
A operação de inversão no contorno <1230> produz o contorno <2103>. Essa
operação é efetivada tomando-se a cardinalidade do contorno subtraída de 1 e,
em seguida, subtraindo esse valor pelos componentes do contorno (3-1,3-2,3-3 e
3-0). A operação de retrogradação aplicada ao mesmo contorno inicial produz o
contorno <0321>, cujo inverso é <3012>. A rotação de <1230> em nível 1, isto
é, a rotação em apenas um ciclo, produz o contorno <2301>, em nível 2 produz
o <3012> e em nível 3 produz o <0123>.
Uma aplicação musical é mostrada na Figura 11, onde se emprega unicamente
o contorno <1230> nos formatos original (violino 1), inverso (violino 2), retró- Figura 11. Aplicação musical com o contorno <1230> e cinco contornos gerados a partir
grado (viola), retrógrado invertido (violoncelo) e rotacionado em níveis 1 e 3 de operações básicas.

6 “Parâmetro é uma variável independente; por exemplo, em acústica: amplitude ou frequência; em discussões Propomos agora um pequeno exercício de modelagem sistêmica utilizando
analíticas, especialmente da música serial, parâmetro é a característica de um som que pode ser especificada separadamente,
como, por exemplo, classe de altura, duração, timbre, volume, registro.” (RANDAL, 1986, p. 607, tradução nossa). O texto a teoria dos contornos na reconfiguração de um intertexto: os seis primeiros
original é: “An independent variable; e.g., in acoustics, amplitude or frequency; in analytical discussions, especially of serial compassos do Ponteio N.2, do primeiro caderno de Ponteios, de Camargo Guar-
music, any of the separably specifiable features of a sound, e.g., pitch class, duration, timbre, loudness, register”.
nieri, mostrados na Figura 12. Esse trecho consiste de três camadas: a primeira

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE II - TEORIAS DO COMPOR: A CONTEMPORANEIDADE BRASILEIRA

camada é uma linha melódica que aqui será segmentada em dois gestos (g1 e g2); por ROT1(a), e o contorno <120> é o retrógrado de a, RET(a). O segundo ges-
a segunda camada consiste em um ostinato de colcheias construído a partir da to (g2) da primeira camada possui contorno <243210>. Da mesma forma que
escala diatônica de Dó maior menos uma nota (Fá); e a terceira camada é forma- consideramos para o primeiro gesto, esse contorno pode ser segmentado em
da por prolongamentos predominantemente regulares das alturas mais graves da dois contornos: <243> e <210>. O contorno <243> pode ser simplificado para
segunda camada, com exceção da primeira altura, que complementa o conjunto <021>, ou seja, a, e o contorno <210> é a ROT1(a). Observamos que o fator de
diatônico. simplificação (2) coincidiu, nesse caso, com o ponto de contorno de maior valor
que é obtido pela subtração de 1 do número de ordem (3-1).
Podemos, a partir dessa análise, propor um sistema composicional através da
generalização das características exclusivamente observadas para o parâmetro
contorno. Nessa generalização o fator registro será desconsiderado ao optarmos
pela utilização de classes de alturas. O detalhamento desse sistema encontra-se
na Figura 13.

Figura 12. Seis primeiros compassos do Ponteio N.2, 1º Caderno, de Camargo Guarnieri.

A segunda camada pode ser analisada como três contornos justapostos (++):
<021> ++ <021> ++ <0321>. Esse conjunto de contornos pode ser resumido
como a a a’. O terceiro contorno desse conjunto (a’) é, como podemos verificar,
uma variação de a, produzida pela interpolação de um ponto de contorno depois
do primeiro ponto, ou seja, o contorno <0321> pode ser visto como o contorno
<021> no qual o ponto 3 foi inserido depois do primeiro ponto. Denominare-
mos essa operação de INT1(a). A terceira camada possui contorno <2101>, que Figura 13. Sistema composicional dos seis primeiros compassos do Ponteio N.2, 1º Cader-
pode ser analisado como a rotação do primeiro elemento, ROT1(a), acrescido do no, de Camargo Guarnieri.
segundo ponto de contorno (1). Denominaremos essa operação de ADD2(RO-
T1(a)). Para o planejamento de um novo trecho oriundo do mesmo sistema que hipo-
teticamente teria dado origem ao trecho mostrado de Guarnieri, iniciaremos com
a escolha do contorno e da escala. Escolheremos o contorno <0312> e a escala
O primeiro gesto (g1) da primeira camada possui contorno <432120>. Esse cromática. Partindo desse contorno inicial, definiremos o contorno do ostinato
contorno pode ser imaginado como a justaposição de um contorno <432> e de da segunda camada, segundo a definição 2 do sistema: <0312> ++ <0312> ++
um contorno <120>. O contorno <432>, por sua vez, pode ser simplificado para <04312>. O contorno da terceira camada será <31201>, formado pela rotação
<210> (subtraindo-se 2 de cada ponto), ou seja, esse contorno pode ser obtido 1 do contorno inicial (<3120>) justaposto ao segundo ponto de contorno (1). O

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE II - TEORIAS DO COMPOR: A CONTEMPORANEIDADE BRASILEIRA

contorno do primeiro gesto da primeira camada será <64532130> que resulta tantes das variações realizadas em unidades musicais precedentes (Haimo, 1997)
da rotação 1 do contorno original (<3120>) somada ao número 3 (número de e é uma excelente ferramenta para gerar repositórios composicionais.
ordem menos 1) justaposta ao retrógrado do contorno original (<2130>). O Carlos Almada, coordenador do grupo de pesquisas MusMat da UFRJ, tem re-
contorno do segundo gesto, por sua vez será <36453120>. A instrumentação do alizado grandes avanços nessa teoria, incluindo a criação de uma série de aplica-
trecho será trio de madeiras (oboé, clarinete e fagote). A Figura 14 mostra a reali- tivos originais, escritos em MatLab, que realizam a variação progressiva algoritmi-
zação musical desse planejamento em um trecho composto a partir da realização camente produzindo várias gerações a partir de uma célula original, denominada
do sistema composicional de contornos oriundo dos seis primeiros compassos axioma, e de operações transformacionais selecionadas pelo usuário.
do Ponteio N.2, 1º Caderno, de Camargo Guarnieri.
Segundo Almada (2012), por exemplo, a Sinfonia de Câmara Op. 9, de Scho-
enberg é arquitetada com base na variação progressiva de quatro ideias primor-
diais, mostradas na Figura 15: um intervalo de nona menor, um acorde quartal,
um acorde de tons inteiros e um arquétipo cromático descendente. Um exemplo
de utilização dessa técnica pode ser encontrado na Figura 16, onde se observa o
arquétipo B (quartal) utilizado como gesto melódico de onde se derivam, poste-
riormente, um gesto rítmico (x) e uma variação de B (b-1).

Figura 15. As quatro Gründgestalten auxiliares da Primeira Sinfonia de Câmara op.9


Fonte: Almada (2012)

Figura 14. Trecho composto a partir da realização do sistema composicional de contornos


oriundo dos seis primeiros compassos do Ponteio N.2, 1º Caderno, de Camargo
Guarnieri.

6. Teoria da variação progressiva


A variação progressiva versa sobre uma série de procedimentos aplicados com
a finalidade de gerar contínuas mutações de uma ideia primordial (Grundgestalt
de Schoenberg), originando materiais temáticos. É uma metodologia de variação
Figura 16. Derivação do Tema Quartal da Primeira Sinfonia de Câmara op.9 (c. 5-6)
em que estruturas de maior magnitude podem ser compreendidas como resul-
Fonte: Almada (2012)

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE II - TEORIAS DO COMPOR: A CONTEMPORANEIDADE BRASILEIRA

Partiremos do mesmo trecho de Guarnieri utilizado anteriormente (mostrado duas quartas justas consecutivas descendentes extraídas do conjunto universo:
na Figura 12 e reproduzido novamente na Figura 17) como exemplo de mode- Sol-Ré-Lá. Essa ideia (Gr1) passa por três operações antes de se fundir com a
lagem sistêmica, utilizando dessa vez a teoria da variação progressiva. Para isso Gr2 de forma a gerar a camada superior do ostinato da mão esquerda do piano.
teremos de supor que esse trecho representa a integralidade da obra, a qual A primeira operação consiste no deslocamento de oitava da primeira altura (T-12(-
surgiu a partir de mutações de ideias primordiais. Introduzimos ainda o conceito
Gr1(1))), seguida da operação PRD(2,3), preenchimento diatônico das alturas
de conjunto universo, algo como um pano de fundo, do qual derivam os materiais
2 e 3 e da operação REP(3,4), repetição das alturas 3 e 4. Essas três operações
básicos para a construção das Grundgestalten.
produzem um conjunto de alturas denominado a2. Um novo conjunto de alturas
(b) surge a partir de uma relação de complementaridade de a2 com o conjunto
universo (U-a2). Esses dois conjuntos de alturas (a2, b) são acoplados a Gr2 (rit-
mo) e amalgamados, formando o ostinato da mão esquerda do piano.
Os gestos melódicos da mão direita também derivam da mesma ideia primor-
dial, só que tendo como pano de fundo a escala diatônica de Sol maior, como
mencionamos anteriormente. Iniciamos com o segundo gesto (comp. 4 da Figura
17) que tem sua origem em a1 sem a primeira altura (a1-1). A essa quarta preen-
chida (Ré-Dó-Si-Lá) são justapostas duas alturas, uma anterior e outra posterior.
Essas alturas têm posições relativas de +2 e -2, com relação à altura inicial (Ré)
no contexto da escala diatônica de Sol maior. O primeiro gesto também consiste
em uma quarta, construída a partir da altura inicial do segundo gesto, preenchida
diatonicamente, e tendo a penúltima altura prolongada por bordadura diatônica.
Figura 17. Seis primeiros compassos do Ponteio N.2, 1º Caderno, de Camargo Guarnieri. A essa altura prolongada (Sol) se justapõe uma altura que tem posição relativa -2
no âmbito de Sol maior (Mi). O passo final na elaboração desses gestos melódi-
Consideramos que o pano de fundo para o trecho do Ponteio N.2 de Guar- cos consiste em acoplar a ideia primordial rítmica.
nieri é para o ostinato da mão esquerda a escala diatônica de Dó maior (Dó, Ré, A modelagem sistêmica desse trecho segundo a teoria da variação progres-
Mi, Fá, Sol, Lá, Si) e para os gestos melódicos da mão direita, uma transposição siva se encontra nas Figuras 18 e 19 (coluna esquerda). Podemos reconstruir
dessa escala que tenha a maior quantidade possível de notas comuns. Nesse caso, esse modelo partindo de um pano de fundo diferente, mas mantendo todas as
Guarnieri está utilizando a escala diatônica de Sol maior (Sol, Lá, Si, Dó, Ré, Mi,
relações e operações do texto original. Assim, em vez da escala diatônica de Dó
Fá#). Propomos que os materiais gerados no trecho derivam de duas ideias pri-
maior utilizaremos o modo 5 de Messiaen (Si, Dó, Dó#, Fá, Fá#, Sol) juntamente
mordiais: uma associada ao parâmetro ritmo e outra associada ao parâmetro al-
tura. Essa última, por sua vez, se desenha no âmbito do universo escalar proposto. com uma transposição com maior quantidade de notas comuns (Dó, Dó#, Ré,
Fá#, Sol, Sol#). A coluna direita das Figuras 18 e 19 descrevem graficamente o
A ideia rítmica (Gr2) tem um “DNA” ternário, de tal forma que atua sobre
configurações de alturas ora gerando grupos de três notas (incluindo-se aqui as procedimento operacional. A Figura 20 mostra o novo trecho resultante, escrito
pausas), ora gerando figuras rítmicas que consistem na aglutinação de três notas para trio de madeiras.
com a mesma altura. A ideia associada ao parâmetro altura (Gr1) consiste em

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7. Análise particional
A análise particional é uma abordagem original que surge da confluência da
Teoria das Partições de Euler (1748) e da Teoria Textural de Berry (1976). Essa
teoria, desenvolvida pelo compositor Pauxy Gentil-Nunes, do grupo de pesquisa
MusMat, da Escola de Música da UFRJ, tem como um de seus méritos mais rele-
vantes apresentar uma taxonomia exaustiva para o parâmetro textura, com porte
e profundidade similares ao trabalho que Allen Forte fez para o parâmetro altura,
em sua teoria das classes de alturas. Tal taxonomia é alcançada através de um
processo denominado particionamento rítmico, efetivado a partir de um algorit-
mo de filtragem que avalia as simultaneidades e as contraposições temporais das
estruturas rítmicas de determinada textura musical (Gentil-Nunes, 2009, p.241).
Além disso, essa teoria propõe outros tipos de particionamento – melódico e de
eventos – que não serão abordados nesse trabalho.
Figura 18. Modelagem sistêmica do ostinato do Ponteio N.2 (Caderno 1) de Guarnieri, O autor propõe na fundamentação dessa teoria, diversos conceitos e ferra-
segundo a teoria das variação progressiva e aplicação em outro contexto escalar.
mentas (aglomeração e dispersão, particiograma, indexograma etc.) e processos
analíticos com enorme potencial de aplicação composicional: redimensionamento,
revariância, transferência, concorrência e reglomeração. Um robusto aplicativo
computacional, denominado Parsemat, desenvolvido em MatLab pelo autor du-
rante a pesquisa e em constante aperfeiçoamento, permite o fácil acesso do com-
positor e do analista às ferramentas e conceitos da Análise Particional.
“A teoria das partições é uma área da teoria aditiva dos números que trata
da representação de números inteiros como somas de outros números inteiros”
Figura 19. Modelagem sistêmica dos gestos melódicos do Ponteio N.2 (Caderno 1) de
Guarnieri, segundo a teoria da variação progressiva e aplicação em outro contexto escalar.
(Andrews, 1984, p.9). Assim, por exemplo, o número 5 pode ser representado pe-
las sete partições mostradas na Figura 21. É importante observar que as partições
são conjuntos desordenados e que a quantidade de partições de um número
cresce rapidamente à medida que o valor desse número aumenta: enquanto o
número 5 tem 7 partições, o número 7 tem 15 e o número 10 tem 42.
Os conceitos de aglomeração e dispersão surgem ao consideramos as relações
binárias de congruência e discordância, ou seja, de colaboração e contraposição,
entre as estruturas rítmicas dos elementos texturais atuantes em determinado
momento de uma obra musical. A quantidade de tais relações binárias é cal-
culada pela combinação de n dois a dois, onde n é a densidade-número, isto
Figura 20. Trecho composto a partir da Modelagem sistêmica do Ponteio N.2 (Caderno é, “o número de componentes sonoros presentes na trama em determinado
1) de Guarnieri, segundo a teoria da variação progressiva e aplicação em outro contexto momento” (Gentil-Nunes, 2009, p.18). Assim, por exemplo, em um evento onde
escalar.

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE II - TEORIAS DO COMPOR: A CONTEMPORANEIDADE BRASILEIRA

quatro componentes atuam simultaneamente, há


a possibilidade de seis relações binárias. No pe-
queno trecho para quarteto de cordas mostrado
na Figura 24, onde se observam todas as possí-
veis relações de interdependência textural7, veri-
ficamos a máxima discordância rítmica entre as
partes no compasso 7 e a máxima concordância
Figura 21. Partições do número
5 (esquerda) e sua representação no último compasso. Gentil-Nunes (2009, p.37)
abreviada (direita) fornece um algoritmo de cálculo dessas relações
de aglomeração e dispersão para as diferentes
possibilidades de interdependência textural. Na equação da Figura 22, a é o índice
de aglomeração, p o número de partes e Ti a densidade-número de cada parte
separadamente. A Figura 23 fornece os valores de aglomeração e dispersão para
cada situação de interdependência textural do quarteto de cordas da Figura 24.
O índice de dispersão “é a diferença entre o índice de aglomeração e o número
total de relações da partição” (Gentil-Nunes, 2009, p.37).

Figura 24. Demonstração de todas as relações de interdependência textural em um trecho


para quarteto de cordas

Figura 22. Cálculo do índice de aglomeração, segundo Gentil-Nunes (2009)

A B
Figura 25. Exemplo de um trecho polifônico e seu indexograma gerado pelo Parsemat

Define-se ainda, nessa teoria, o conjunto-léxico de um número n como sendo “a


união dos conjuntos formados pelas partições de inteiros de 1 a n” (Gentil-Nunes,
2009, p.16). Assim o conjunto-léxico de 4 é {1,12,2,13,21,3,14,212,22,13,4}, que consis-
te na união das partições dos números 1, 2, 3 e 4. O conjunto-léxico é um aspecto
de natureza composicional particularmente notável no âmbito da associação entre
Figura 23. Relações de aglomeração e dispersão do exemplo da Figura 24
a teoria das partições e a teoria textural de Berry, especialmente no tocante ao as-
pecto da interdependência textural. Veja-se, no exemplo da Figura 24, que todas as
7 Considerando-se o compasso como janela de observação.
possibilidades de interdependência textural para um quarteto de cordas coincidem

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE II - TEORIAS DO COMPOR: A CONTEMPORANEIDADE BRASILEIRA

exatamente com o conjunto-léxico para o número 4, lembrando que partições são


conjuntos desordenados, ou seja, para produzir uma determinada partição diversas
possibilidades de combinação instrumental são possíveis.
Duas ferramentas gráficas permitem a visualização imediata das situações de in-
terdependência textural e das relações binárias de aglomeração e dispersão. No
indexograma são plotados, no eixo das ordenadas, a dispersão (parte positiva) e
a aglomeração (parte negativa) contra o tempo, no eixo das abscissas. A plotagem
forma uma série de bolhas que dão uma ideia gráfica bastante intuitiva do quadro de
dispersões e aglomerações texturais de determinada obra. No particiograma, plo-
ta-se o conjunto-léxico, cujos componentes apontam para suas respectivas aglome-
rações (abscissas) e dispersões (ordenadas). Esses gráficos são produzidos automa-
ticamente pelo Parsemat a partir de um arquivo MIDI. As Figuras 26 e 27 mostram
o indexograma e o particiograma do trecho para quarteto de cordas da Figura 24.
Observamos aqui um detalhe importante entre a análise textural de Berry e a análi- Figura 27. Particiograma do trecho para quarteto de cordas da Figura 24.
se de Gentil-Nunes implementada no Parsemat: enquanto Berry utiliza o compasso
como janela analítica, Gentil-Nunes avalia as relações de interdependência textural Um passo mais avançado da análise particional são os processos de transfor-
com maior detalhamento, considerando pontos de entrada e saída das notas MIDI. mação de uma partição em outra, gerando movimentos dentro do particiograma.
Assim, para o exemplo da Figura 25a, enquanto a relação de interdependência tex- Gentil-Nunes (2009, p.44-52) define cinco processos transformacionais que rea-
tural seria indicada em Berry como 12, o indexograma gerado pelo Parsemat é mais lizam essa movimentação, mostrados na Figura 28.
detalhado (Figura 25b) indicando um momento inicial monofônico (1).

Figura 26. Indexograma do trecho para quarteto de cordas da Figura 24.


Figura 28. Processos de transformação particionais

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE II - TEORIAS DO COMPOR: A CONTEMPORANEIDADE BRASILEIRA

Um exemplo de modelagem simples e direta utilizando a análise particional


consiste em tentar construir uma textura o mais próxima possível de uma textura
revelada pelo indexograma de um intertexto. Utilizaremos o mesmo exemplo
anterior (seis compassos iniciais do Ponteio N.2, Caderno 1, de Guarnieri), que
apresenta o indexograma mostrado na Figura 31. Partindo desse indexograma
construiremos um novo trecho sem associação com o exemplo original em ter-
mos dos parâmetros altura, ritmo, dinâmica e articulação. Somente a textura será
predominantemente a mesma. Para esse trecho planejamos que as alturas derivam
das seis transposições do Modo 5 de Messiaen, partindo de transposições com
menor quantidade de alturas comuns para transposições com maior quantidade
de alturas comuns. Essas seis transposições e a discriminação da quantidade de
alturas comuns tomando como referência a primeira transposição são mostrados
na Figura 29. Um planejamento de utilização das transposições do Modo 5 em or- Figura 31. Indexograma para os seis compassos
iniciais do Ponteio N.2 (Caderno 1) de Guarnieri.
dem crescente de notas comuns é mostrado na Figura 30. O trecho composto é
mostrado na Figura 32 e o indexograma correspondente é mostrado na Figura 33.

Figura 29. Seis transposições do Modo 5 de Messiaen


e notas comuns entre a primeira transposição e as demais.

Figura 30. Plano de utilização dos seis transposições do Modo 5 de Messiaen no


novo trecho composto com a mesma textura dos seis primeiros Figura 32. Novo trecho composto a partir do indexograma dos seis compassos iniciais do
compassos do Ponteio N.2 (Caderno 1) de Guarnieri. Ponteio N.2 (Caderno 1) de Guarnieri.

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE II - TEORIAS DO COMPOR: A CONTEMPORANEIDADE BRASILEIRA

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repositórios composicionais a partir da determinação de um sistema hipotético
Mororó, B. O. 2008. Modelagem Sistêmica do Processo de Melhoria Contínua de Processos
regulador do texto original. Utilizamos como estudo de caso, os seis primeiros Industriais Utilizando o Método Seis Sigma e Redes de Petri. Dissertação de Mestrado. PUC,
compassos do Ponteio N.2 (Caderno 1) de Guarnieri, que foi modelado de acor- São Paulo, SP.
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meios, a estética da música programática do período romântico. Afinal a relação


a Narrativa inTRÍNSECA em entre música eletroacústica e rádio ou cinema sonoro sempre foi de profunda
intimidade, bastando lembrar que a maioria dos recursos de tratamento sonoro
Natal del Rey de Conrado Silva usados na música eletroacústica foi inventada para a produção de trilhas sonoras
de rádio e cinema.
Rodolfo Coelho de Souza Desenvolvimentos recentes na teoria da significação musical aplicados aos dis-
cursos musicais têm enfatizado aspectos negligenciados anteriormente nas teorias
da narratividade, entre eles a capacidade dos discursos musicais de suportarem
1. Introdução uma narratividade intrínseca. A narratividade que chamamos de intrínseca seria
A música eletroacústica, não podendo se valer dos recursos formais que ser- aquela que não depende de programas literários, teatrais ou cinematográficos
viram à estruturação da música instrumental no passado, precisou inventar seus previamente elaborados sobre os quais os sons seriam montados. Num certo
próprios artifícios técnicos e retóricos para conferir forma a seus discursos sono- sentido essa proposta incorpora elementos conceituais importantes tanto dos
ros. Uma das primeiras iniciativas, particularmente no âmbito dos compositores primórdios seriais quanto dos concretos da música eletroacústica, porque enfati-
de música eletrônica ligados ao Estúdio de Colônia na Alemanha, foi adaptar o za tanto o rigor lógico na construção do discurso, como acontece no serialismo,
modelo do serialismo ao tratamento dos novos materiais sintéticos. Não era, to- como a necessidade do material gerar por si mesmo a forma do discurso, como
davia, uma proposta abrangente, que pudesse servir aos interesses de todos os acontece na música concreta. A novidade é que o processo narrativo aqui pos-
compositores, nem sequer somente os do período, e por isso aquela proposta tulado é entendido como uma teleologia na sucessão de eventos, um efeito de
se esvaiu na medida em que também declinava o prestígio do serialismo como causalidade entre as partes do discurso que resulta num efeito organizador equi-
método de composição consagrado aprioristicamente. valente ao papel que, no passado, foi desempenhado pelas formas musicais, fixas
Na música concreta francesa, muitos compositores partiram de uma premissa ou idiossincráticas.
diferente, apostando que o material por si mesmo seria capaz de gerar a forma Observe-se, porém, que as pesquisas sobre este tópico têm ainda um longo
da composição. Forma e conteúdo deveriam formar uma unidade indissolúvel, a caminho a percorrer. Novas teorias sobre a narratividade musical, desvinculadas
forma sendo uma consequência inelutável do material, assim como o David de da tradição da música programática, têm sido propostas apenas recentemente.
Michelangelo teria resultado de um espírito imanente que habitaria o mármore Na musicologia europeia, o texto mais influente na retomada da questão da nar-
em que foi talhado, bastando ao escultor libertá-lo da pedra bruta. ratividade foi o de Eero Tarasti que em seus estudos de semiótica musical dedica
De fato essas duas abordagens da composição eletroacústica continuam in- um alentado capítulo à narratividade em Chopin, analisando duas de suas obras
fluentes ainda hoje, produzindo muitas vezes resultados admiráveis. Entretanto, na (Tarasti 1994, p.138-180). Não obstante sua filiação à semiótica de Greimas, suas
segunda metade do século XX, cresceu a percepção de que outros princípios de conclusões resultaram bastante semelhantes às de outros analistas anglo-saxões
organização do discurso eletroacústico também seriam frutíferos. que, em estudo desenvolvidos concomitantemente, seguiam a semiótica de Pier-
Entre essas novas tendências cresceu o interesse pelos aspectos narrativos ce. Nesse contexto aparece, no mesmo ano da publicação do texto de Tarasti, a
sugeridos pelos sons tratados eletronicamente. Na difusão radiofônica, novos gê- proposição de Hatten (1994, p.73) de que no repertório musical seria possível
neros começaram a surgir, particularmente o teatro radiofônico, que eventual- identificar certos gêneros expressivos, correlacionados aos tipos literários do lí-
mente misturava enredos literários com música eletroacústica. Outras vezes a rico, do épico e do dramático. Esta linha de investigação constituiu um notável
música eletroacústica chamava para si a responsabilidade integral de tecer a nar- avanço para o reconhecimento na música de características expressivas que im-
rativa, como um cinema sem imagens, em certo sentido recuperando, com outros pregnariam de algum modo os processos formais, gerando alguns tipos caracte-

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rísticos de discurso com capacidade narrativa. qual se relaciona diretamente a obra analisada de Conrado Silva – em relação à
Talvez ainda mais empenhado em estudar o tema da narratividade musical questão da narratividade percorreu o sentido oposto ao do título de Kermann:
encontrava-se naquele momento Michael Klein que já publicara um artigo preli- de início os compositores fizeram um grande esforço para fugir da narratividade,
minar sobre o tema no início dos anos 90 (Klein, 1991). Klein amadureceu natural- mas progressivamente foram se interessando novamente por ela como elemento
mente sua abordagem quando seus estudos sobre a intertextualidade na música organizador do discurso musical.
levaram-no a considerar a narratividade como sendo intrinsicamente associada Sabemos que a música feita a partir de sons gravados e transformados, como
à relação intertextual. Em um capítulo sobre a lógica do sofrimento na Quarta é o caso de Natal del Rey, teve sua fundamentação, tanto teórica como prática,
Sinfonia de Lutoslawski, Klein (2005, p.108) propõe sólidas fundações para seus alicerçada na produção de Pierre Schaeffer, tanto em seus textos como em suas
outros trabalhos em narratividade, que culminariam nos celebrados artigos em composições. O princípio da Escuta Reduzida – que já suscitou intermináveis
que aplica, com muita perspicácia, o conceito de narratividade intrínseca às bala- polêmicas e, entretanto, permanece para os seguidores de Schaeffer como um
das e noturnos de Chopin (Klein 2004 e 2009). Finalmente, como o último autor princípio fundamental, quase dogmático – induz naturalmente o compositor de
a destacar entre os que têm se empenhado em desenvolver os diversos aspectos música concreta a se afastar das intenções narrativas, na medida em que ele afeta
teóricos do conceito de narratividade, deve-se mencionar Byron Almén que pro- diretamente o processo de significação musical ao buscar eliminar as denota-
põe, entre outros avanços teóricos relevantes, uma detalhada tipologia para se ções e as conotações na ordem do simbólico, conforme definição desse termo
analisar a relação entre tópicos musicais e narratividade (Almén, 2008, p.78). na semiótica de C. S. Peirce. Esvaziar completamente numa obra musical o nível
Saliente-se, entretanto, que todos esses trabalhos, que tem desenvolvido re- simbólico ou a Terceiridade de Peirce, que ele acreditava ser o fim último de todo
centemente a teoria da narratividade e suas aplicações analíticas foram majorita- processo de significação, produz como resultado imediato a impossibilidade de se
riamente dedicados à música instrumental de compositores bastante estudados ter uma leitura narrativa do discurso musical.
do passado, como Beethoven e Chopin, exceção feita aos estudos de Klein sobre Portanto a música eletroacústica, em seus primeiros anos, lutou uma árdua
Lutoslawski. A possibilidade de se aplicar os novos conceitos de narratividade à batalha para se afastar da narratividade, que era vista como um obstáculo à sua
música eletroacústica de compositores contemporâneos permanece um terreno constituição como linguagem musical – provavelmente com bons motivos, se con-
inexplorado que nos propomos a começar a adentrar neste trabalho. siderarmos que a estética da música absoluta norteou a música de concerto du-
Nesse sentido, a hipótese que guiará nossa análise de Natal del Rey de Conrado rante a maior parte do século vinte – e a consequente aceitação de seus produ-
Silva, seguindo uma metodologia adaptada das propostas de Klein e Almén, é que tos pouco familiares como sendo de fato música. Por isso pode parecer estranho
a forma dessa composição resulta de um processo imanente de narratividade querer tratar a narratividade na música eletroacústica como algo relevante para
intrínseca. esta obra de Conrado Silva. E mais ainda, associá-la a um compositor que, pelo
que nos consta nunca se manifestou abertamente em defesa do princípio da nar-
ratividade como importante para sua música.
2. A evolução da narratividade na história da música
A questão da narratividade está, em última instância, diretamente relacionada
eletroacústica à questão da significação musical. Desse modo estamos assumindo que existiria
Um notório artigo de Joseph Kermann, eminente musicólogo recentemente algum tipo de semântica atuando na linguagem musical, ou pelo menos na lingua-
falecido, intitulado How we got into analysis, and how to get out, sugere-me uma gem musical de certa música eletroacústica, em oposição ao pensamento domi-
abordagem ao problema da narratividade na música eletroacústica. Não para tra- nante ao longo do século vinte que defendeu a tese da incapacidade da música de
zer à pauta aquela discussão sobre os propósitos da análise, mas para constatar comunicar qualquer tipo de conteúdo semântico. As argumentações nesse senti-
que a música eletroacústica, especialmente na sua corrente concreta – com a do eram muitas vezes acompanhadas de relatos de casos pitorescos que tinham

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como corolário a máxima “não perguntem a um compositor o que ele quis dizer to em que estava pintando, não tenha pensado nas histórias que conto sobre
com sua música”. Há, por exemplo, o relato de um episódio de Beethoven a quem meus quadros. A maioria delas aparece depois, quando tento entender o que eu
um ouvinte teria perguntado o que ele queria dizer com uma sonata que acabara desenhei, ou muito depois, quando estou conversando com um comprador. Mas
de executar ao piano, ao que ele teria respondido sentando-se novamente ao isso não significa que a relação dessas histórias com os quadros seja falsa. Ambas
piano e tocando a mesma sonata outra vez. nascem da mesma fonte, a minha imaginação, não importando a ordem com que
A fábula de Beethoven é instigante, mas em contraposição a ela gosto de con- elas afloraram à minha consciência. Ambas estavam lá no fundo do inconsciente à
tar outra história sobre fatos que presenciei muitos anos atrás e que envolvem espera do momento certo para se manifestar. Concluindo, ele disse: “não impor-
um pintor bem sucedido no mercado de artes plásticas. Eu costumava frequentar ta o momento em que se tomei ciência dessa relação que sempre existiu entre
seu atelier porque tirava lições valiosas do seu métier profissional. Eu o via ex- elas, porque essa relação faz parte do que me constitui como pintor”. Posso lhes
perimentar soluções, descartar soluções, colocar de lado trabalhos inacabados à assegurar que a técnica desse pintor, para quem o visse trabalhando, parecia mui-
espera de uma solução ao impasse que o impedia de dar continuidade ao projeto to concentrada apenas no material, no rigor da construção imagética, nas cores,
e tudo aquilo me ensinava a manusear ideias e materiais, um tipo de experiência nas texturas, nas formas que, se não eram abstratas, beiravam os limites da não
que serviria tanto para uma obra visual como para uma composição musical. Mas representação. Entretanto, paradoxalmente, quanto mais abstrato fosse o quadro,
também me impressionava a maneira como ele recebia em seu estúdio possíveis mais fascinante era a narrativa ficcional inspirada pelas imagens que brotava de
compradores de sua arte. Ele deixava o olhar do visitante vagar solto pelas obras seus lábios.
acabadas que ele mantinha espalhadas pelos cantos ou penduradas nas paredes, Note-se, porém, que este relato, que buscou ilustrar a relevância das narrativas
até que o possível comprador demonstrasse interesse por uma delas. Só então para a interpretação das obras de arte, mencionou apenas narrativas extrínsecas
ele se aproximava e fazia um comentário vago. Quase sempre o potencial com- ao objeto artístico. Não obstante, defendemos que existem muitos casos em que
prador respondia então com alguma indagação ou arriscava uma interpretação do as narrativas são intrínsecas ao discurso da própria obra e podem ser lidas no
quadro. O meu amigo pintor não se fazia de rogado. Pegava o mote e começava próprio objeto, a partir de referências culturais compartilhadas, ou eventualmente
a contar uma história. Uma longa história, uma história sempre nova e fascinante, com a colaboração de alguns indícios externos.
que se relacionava das mais variadas maneiras às imagens que ambos contempla- Afirmamos acima que a música concreta propôs de início um esforço cons-
vam. Acreditem: depois disso a venda era certa. Podia haver alguma barganha, mas ciente para se libertar do episódico. Nascida nos estúdios de rádio a partir da
o comprador havia sido fisgado pela relação entre as imagens e a história, a qual gravação de sons usados na sonoplastia radiofônica e cinematográfica, o esforço
ele iria repetir aos que visitassem sua casa onde a pintura estaria exposta, omitin- para fazer aqueles sons serem ouvidos como objetos musicais exigiu que fossem
do e acrescentando detalhes conforme sua imaginação. Se o comprador fosse ou- tratados, distorcidos, filtrados, até que sua identidade original estivesse suficien-
tro, e o comentário diferente, haveria outra história para ser narrada pelo pintor. temente turvada para que os apreciássemos como matéria prima de uma nova
Essa experiência me convenceu da importância das narrativas feitas sobre as linguagem musical. Podemos dizer que o propósito daquela música seria equi-
obras de arte, mesmo que elas pareçam ter pouco ou nada a ver com sua gesta- parar-se aos ideais da música absoluta instrumental ou aos da pintura abstrata,
ção. Uma vez perguntei a esse pintor se ele de fato tinha pensado naquela histó- não figurativa. Para isso compositores e técnicos inventaram um arsenal de ar-
ria quando pintou o quadro. Ele me respondeu de modo sagaz: se você estudar tifícios que permitiam manipular a matéria sonora distorcendo deliberadamente
história da arte saberá que a grande maioria dos quadros famosos continha uma sua identidade inicial. Esse princípio de velamento, a chamada escuta reduzida, foi
narrativa que os contemporâneos sabiam ler, mesmo que hoje ela pareça pouco questionado já pela geração seguinte à de Schaeffer. Red Birds de Trevor Wishart é,
relevante para nosso contexto cultural, como o são tantas histórias da mitologia possivelmente, a obra mais citada como o marco divisor de águas na contestação
ou histórias bíblicas. Entretanto, continuou ele, é muito provável que, no momen- daquele princípio. Mas não creio que o exemplo de Wishart deva ser invocado

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aqui como relevante para a análise de Natal del Rey. O problema de Wishart é todavia, que se reconhecer que esses estudos bem sucedidos tem se concen-
bastante diferente, pois se trata da criação de um subgênero específico de teatro trado primordialmente na música romântica instrumental, traçando um paralelo
sonoro radiofônico para o qual a narratividade extrínseca é elemento essencial. contrastante entre um possível ideário de narratividade na música absoluta em
Uma vez que o nosso problema é o da narratividade intrínseca deve-se supor contraposição ao projeto da música do futuro de Wagner e Liszt. Ainda assim,
que estamos tratando de um repertório que continua a querer se afastar das partindo dessa experiência sedimentada, nossa hipótese é que sua metodologia
narratividades extrínsecas, dos programas, do episódico, ou mesmo das ficções pode ser estendida até a música contemporânea, e possivelmente à música ele-
que ajudam a vender quadros ou músicas. Entretanto não há como negar que troacústica. Acreditamos que neste gênero haveria muito a ganhar desenvolven-
persiste no imaginário do ouvinte contemporâneo a influência do projeto român- do-se análises com um foco na narratividade intrínseca. Apresentei recentemente
tico da música programática que dependia de uma narratividade extrínseca. Por em um simpósio na University of Edinburgh uma primeira tentativa nesse sentido
outro lado, a crítica musical, prevalentemente imbuída no século XX dos ideais aplicada à minha própria música (Coelho de Souza 2012) e apresento aqui uma
da música absoluta, assevera que o projeto da música programática nunca atingiu nova empreitada nesse sentido, dedicada agora à música de Conrado Silva.
os resultados que almejava. Isso pode ser verdade, mas o próprio interesse que
agora ressurge sobre o fenômeno da narratividade testemunha em favor de certo 3. Em busca de uma metodologia para
grau de sobrevivência daquele projeto.
a análise da narratividade
Ao longo dos anos de magistério de composição percebi que o exercício da
A teoria exposta por Álmen, no estudo mais extenso publicado até agora so-
música concreta é uma ferramenta formidável para introduzir o jovem composi-
bre o problema da narratividade musical (Almén 2006), apoia-se em uma série de
tor nos problemas da manipulação do material musical. Na composição de música
paradigmas conceituais que, na hierarquia do discurso, são anteriores ao nível da
instrumental há um vício que precisa ser superado, que é a tendência do jovem
narrativa: a teoria dos tópicos de Ratner, a teoria de tropos e gêneros expressivos
compositor de escrever apenas notas no papel, como se elas representassem ou
de Hatten, e marginalmente, a intertextualidade de Klein. Sua hipótese original
contivessem automaticamente a essência de uma música. A manipulação dos sons
mais relevante é que se reconheça que um conflito percebido no âmago no
concretos ensina a se ouvir a música antes de eventualmente anotá-la, e ensina
material sonoro é o motor propulsor que desencadeia um processo teleológico,
também que é na manipulação dos sons que se concentra a arte e o métier do
o qual, através de oposições dialéticas, cria um vetor de significado que permite
compositor. A escrita deve ser sempre uma decorrência da compreensão auditiva.
ao discurso musical estruturar-se como narrativa sem a necessidade de recorrer
Exatamente por isso sou crítico dos projetos de jovens compositores que partem
a um programa externo. Disto decorre que, em última instância, o processo de
do princípio de que a música a ser composta vai contar uma história previamente
narratividade musical substitui o conceito de forma musical. Para Almén a palavra
elaborada. Geralmente isso não funciona. O que acaba sendo produzido é uma
chave é conflito, ou seja, conflito entre materiais musicais.
série desconexa de sons episódicos cujo sentido dependeria de sua associação
com um discurso imagético ou literário. A rigor não há nada de errado nisso, mas Para se entender melhor a natureza do conflito desenvolvido por Conrado Sil-
um compositor deve aspirar a que sua música tenha uma linguagem autônoma, va em Natal del Rey1 é relevante descrever um pouco do contexto em que a peça
capaz de gerar sentido por seus próprios meios e só por eles. foi composta. O material desta peça foi recolhido pelo próprio compositor em
uma festividade folclórica. Por acaso presenciei a gravação do material quando ela
Por isso falo aqui de narratividade intrínseca no sentido renovado que os estu-
foi feita em 1978, com um simples gravador portátil de fita cassete, durante uma
dos sobre o tema têm assumido nas últimas décadas nos estudos de Klein (1991,
Festa de Reis que acontece anualmente na cidade de São João del Rey, em Minas
2004, 2005, 2010), Tarasti (1994), Hatten (1994) e Almén (2006), entre outros.
Gerais. Naquele ano ocorria em paralelo um Curso Latino de Música Contempo-
Esses estudos demonstram como certos processos discursivos, que chamaremos
de narratividade intrínseca, podem substituir o conceito de forma musical. Há, 1 A obra pode ser ouvida em CD no Volume 1 da série dedicada à compositores eletroacústicos brasileiros da
SBME – Sociedade Brasileira de Música Eletroacústica.

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rânea, patrocinado pela Secretaria de Cultura daquele município. Registre-se que Para perceber a riqueza de alternativas possíveis no desenvolvimento de uma
Conrado Silva era um dos diretores do curso, além de um dos professores. Como ideia é preciso localizar o conflito requerido pela teoria de narratividade de Al-
estava muito envolvido com o curso me parece pouco provável que no momento mén. Em Natal del Rey o conflito surge a partir do próprio material quando ele
da gravação ele tivesse em mente utilizar aquele material para a composição de é transformado por distorções progressivas e regressivas da gravação original da
uma obra eletroacústica. A ideia deve ter prosperado quando, no ano seguinte, festividade folclórica. O processo de velamento e desvelamento das fontes sono-
ele foi convidado para fazer uma residência no estúdio de música eletroacústi- ras desenvolve, na linguagem da música concreta, um discurso de narratividade
ca de Bourges, na França. Os complexos processamentos sonoros que se ouve intrínseca que, em nossa interpretação, elabora a seguinte metáfora: o gradual
nessa obra requeriam recursos sofisticados para a época e certamente foram desaparecimento das manifestações culturais do folclore, como representantes de
trabalhados no estúdio de Bourges. A mixagem final, entretanto, só foi terminada uma herança de um passado imemorial, é parcialmente resgatado pelos resíduos
em 1980 em seu estúdio particular de São Paulo, onde os recursos técnicos eram de lembrança que permanecem em nossa memória individual.
consideravelmente mais limitados, embora suficientes para lhe permitir organizar Devemos ressaltar que, desde o início da peça, a maneira como os materiais
com esmero a sobreposição, justaposição e ordenação dos fragmentos processa- são apresentados não é ingênua. O compositor organiza cuidadosamente o palco
dos na França. no qual o drama se desenrolará, introduzindo individualmente, com deliberada
Klein desenvolve um conceito de intertextualidade que recusa o limite da parcimônia, cada tipo de amostra de som que remete a uma fonte sonora dife-
historicidade para que se estabeleçam relações de leitura intertextual entre duas rente. A cena gravada, em seu conjunto, parece unificada. De fato parece haver
obras (Klein 2005). Uma mera audição atenta, que não requer nenhuma ferra- uma unidade, mas essa unidade é imaginária, pois depende de fazermos uma
menta analítica sofisticada, já nos permite afirmar que, segundo o ponto de vista reconstituição mental da cena original em que os materiais sonoros teriam sido
da intertextualidade de Klein, podemos reconhecer uma significativa sincronicida- coletados. Na verdade nada garante que o foram. Há materiais que poderiam ter
de entre duas composições terminadas no mesmo ano de 1980: Natal del Rey de sido inseridos ali artificialmente, tal como o faz rotineiramente o cinema ao re-
Conrado Silva e a mais famosa Any resemblance is purely coincidental de Charles construir o ambiente sonoro de uma cena, permitindo aos artistas de sonoplastia,
Dodge. Ambas as peças rejeitam o princípio da escuta reduzida uma vez que o folley ou efeitos que concebam um universo sonoro que nunca esteve reunido
reconhecimento da fonte do material sonoro usado é importante para a compre- no mesmo espaço físico. Portanto, embora a cena auditiva que o compositor
ensão do sentido da peça. E ambas usam materiais de forte conteúdo simbólico, nos apresenta pareça coesa, ela é na verdade apenas uma coleção sequencial de
tratados de forma semelhante, utilizando uma estratégia progressiva que evolui materiais bastante distintos: um apito, uma conversa ininteligível de um grupo de
entre o velamento e o desvelamento dos materiais originais. Isso nos permite pessoas, a afinação de uma viola, fragmentos de acordes tocados por uma sanfona,
reconhecer que, de acordo com Hatten (1994), elas devem pertencer ao mesmo o impulso de um chocalho metálico, o pulso regular e sincopado de um conjunto
gênero expressivo, identificado como um arquétipo caro ao iluminismo: a traje- de tambores folclóricos, um fragmento de canto agudo de mulheres, etc.
tória “das trevas para a luz”, tantas vezes utilizada, por exemplo, por Beethoven. Como dissemos acima, esta representação de uma cena do mundo real não é
Isso implica que a peça de Conrado contém uma narrativa implícita, ainda que ela nada senão uma mera representação, porque favorece uma sequência particular
tivesse sido apenas copiada de um paradigma da tradição. Porém, encontrar um de eventos, começando com o apito, que representa uma chamada de atenção, e
rótulo e encaixar uma determinada peça numa certa categoria taxonômica pode progride apresentando uma série de fragmentos sonoros desconexos de fontes
ser um bom começo, mas não é suficiente como análise, pois a mesma história sonoras diferentes cuja única relação é o pressuposto imaginário de que eles re-
pode ser recontada com materiais e contextos diferentes, com detalhes diferen- tratam uma mesma cena de origem. A quantidade e a veracidade dos fragmentos
tes, resultando em obras muito diversas, ainda que compartilhem um mesmo não importam. Importa é o efeito metonímico. O conjunto da cena é representado
modelo. pelas suas partes. Trata-se, portanto, do uso poético da fórmula clássica da figura de
linguagem da parte pelo todo.

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O que poderíamos chamar de ‘primeira frase’ nesta peça de música concreta ideias contrastantes.
termina com o equivalente a uma cadência (localizar “Articulação I” na Figura A música que acontece neste novo espaço sonoro é muito simples. São apenas
2) marcada por um súbito golpe de chocalho que interrompe a sequência con- batidas de tambor, em andamento lento que ressoam naquele novo espaço largo
tínua de eventos sonoros. É importante ressaltar que a peça de Conrado Silva e desolado, sofrendo pequenas alterações em seu espectro sonoro que parecem
apresenta uma fraseologia cuidadosamente organizada. Os recursos técnicos que resultar da sutil aplicação de filtros de frequência. O compositor não tenta escon-
conferem direcionalidade ao discurso ou realizam interrupções cadenciais são der que estes sons são derivados, através de uma transformação eletroacústica
completamente diferentes daqueles da música instrumental, entretanto têm em bastante radical, de amostras sonoras que já foram ouvidas no início da peça.
comum certos princípios energéticos derivados da nossa experiência perceptual Um eco distante e débil do canto feminino pode ser ouvido atrás das batidas de
do mundo físico. Por exemplo, um ganho gradual de energia que resulta de um au- tambor. Esta é uma ideia essencial para o efeito de contraste na peça. É uma ideia
mento gradual de dinâmica ou intensidade sonora conduz a audição de uma frase muito mais abstrata do que a primeira ideia, a que chamamos de primeiro tema.
em direção ao seu final. Na música instrumental esse ganho de energia pode ser Neste segundo momento, ou segundo tema, um mundo interior é colocado em
a tensão crescente de uma progressão harmônica, enquanto na música concreta oposição ao mundo exterior previamente ouvido.
pode ser um adensamento progressivo da textura. Os recursos são diferentes,
O conflito está assim colocado: um espaço que representa o universo do real,
mas os resultados equivalentes. Um súbito impulso sonoro seguido de silêncio,
do mundo exterior (que chamaremos de A) e outro espaço que representa o
isto é, um alto contraste energético, é uma solução recorrente para a interrupção
universo de um mundo interior, feito de ecos, distorções e ressonâncias (que
do discurso e a consequente obtenção de um efeito cadencial. Exatamente por
chamaremos de B). Como conciliar estes espaços sonoros diferentes que, entre-
isso aquela primeira sequência de eventos sonoros pode ser comparada à expo-
tanto, são habitados pelas mesmas amostras sonoras, ainda que manipuladas por
sição de um primeiro tema em uma forma instrumental clássica.
recursos eletroacústicos diferentes? Nas figuras 2 a 4 abaixo apresentamos sono-
Novos materiais aparecem depois da conclusão da primeira frase. Esses materiais gramas cartesianos que representam a variação de intensidade sonora em relação
retratam um conjunto de tambores tocando um ritmo sincopado que, não obstan- ao tempo. Sobre eles demarcamos os eventos formais que estamos descrevendo.
te, tem uma estrutura de marcha, em quadratura, tal como vemos na Figura 1. Este recurso aos sonogramas é recomendado por Simoni (2006) como uma for-
ma eficiente de visualização das análises de música eletroacústica.
Seis episódios se seguem, apresentando um discurso de desenvolvimento que
elabora os materiais dos respectivos espaços sonoros A e B. No Episódio 1 (ver a
Figura 1: Esquema rítmico dos tambores Figura 2) o compositor desenvolve materiais do tipo A, com pouca transformação.
A seguir são ouvidos sons de sanfona que se sobrepõe ao dos tambores, mas Estamos sendo lembrados da procedência dos sons que retratam o espaço do
eles desaparecem tão logo emergem sons de chocalho. A dinâmica da percussão mundo externo.
cresce até um clímax e em seguida se desvanece quando emerge o canto de uma O Episódio 2 (ver também a Figura 2) desenvolve um material similar ao que
voz distante. ouvimos no espaço B, com um tratamento de ressonância e distorção semelhante,
Esta passagem representa uma mistura de tópicos, de acordo com a teoria dos embora de alguma maneira este episódio pareça diferente porque o grau de fil-
tópicos de Ratner e Hatten (1994). Participam dessa mistura o estilo de marcha, tragem é ainda mais radical. Em conjunto os episódios 1 e 2 formam uma espécie
o estilo de danças sincopadas do reisado e o estilo vocal cantábile. A voz nos de função formal de ritornelo da exposição, inclusive recorrendo ao expediente
conduz a um espaço sonoro completamente diferente, um espaço que é vazio, das pequenas variações de efeito apenas ornamental que disfarçam a redundân-
amplo e muito ressonante. Não obstante sua aparente simplicidade, esta passa- cia excessiva. Por outro lado, a tradição da música instrumental ensina que esse
gem realiza uma função formal importante. Ela faz o papel de transição entre duas tipo de repetição da exposição é um recurso retórico muito efetivo para que o

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ouvinte compreenda e absorva plenamente a natureza do conflito proposto na Após uma Ponte (ver a Figura 4) em que os materiais se entrecruzam (usan-
exposição de dois temas contrastantes. do a técnica de cross-fade), segue-se o último episódio. Esse Episódio 6 (ver
O Episódio 3 (ver ainda a Figura 2) parece inicialmente que se trata de uma também a Figura 4) é uma longa seção em que o compositor se concentra em
mera variação do espaço sonoro A, mas logo emerge uma conversa parcialmen- distorcer eletronicamente os sons de percussão, tornando-os cada vez mais
te inteligível, o que não havia acontecido antes. Reconhece-se também ao fundo ruidosos. Do ponto de vista do processamento eletrônico é um momento cli-
uma melodia folclórica cantada por mulheres, com uma instigante de presença de mático pois as distorções assumem a sua feição mais radical.
um novo registro que trará implicações para o que se segue.
A próxima seção pode ser chamada de Retransição (ver a Figura 4) uma vez
que funciona como um retrógrado da transição. Ela começa com um silêncio
súbito que é seguido de batidas de tambores transformadas por um novo tipo
de distorção que produz sons ainda mais metálicos. Lentamente a distorção é
eliminada e a sonoridade original do conjunto de tambores é desvelada. A pa-
lavra “capoeira” pode ser ouvida, mais ou menos distintamente, diversas vezes.
O efeito narrativo é, simbolicamente, que o mundo interior teria emergido ao
Figura 2: Sonograma de Natal del Rey entre 0’ e 3,5’ mundo exterior.
O Episódio 4 (ver a Figura 3) traz para a superfície as vozes femininas com timbre Finalmente vem a seção final, que chamamos de Coda (ver ainda Figura 4),
de voz de garganta, no registro agudo, cantando a impregnante melodia folclórica, pois ali se dá a resolução do conflito da peça que permanecera pendente. Ou-
que lembra uma cantilena religiosa, da qual ouvimos fragmentos anteriormente. Essa vem-se vozes humanas e falas, com diversas saudações tais como “Ora Viva!” e
melodia é progressivamente distorcida e transposta artificialmente para um registro outras conversas ordinárias que são arrematadas por um singelo fade out. Desse
de frequências muito agudas. A sonoridade áspera beira o desagradável. Um forte
modo o universo de real supera, derradeiramente, o universo do imaginário, ou
súbito (indicado como “Articulação 3” na Figura 3) marca o início do próximo epi-
seja, o mundo exterior ordinário prevalece sobre o mundo interior das fantasias.
sódio.
Uma batida de tambor e um apito, ambos em pianíssimo, marcam o fim da peça,
O Episódio 5 (ver as Figuras 3 e 4) elabora um material similar a B, mas em pianís-
traçando um arco formal com o princípio.
simo. Neste episódio o material é transposto para um registro grave, em oposição ao
episódio anterior que havia nos levado aos agudos. Gradualmente impulsos sonoros
ruidosos derivados do som do conjunto de tambores interferem na cena sonora.

Figura 4: Sonograma de Natal del Rey entre 6,5’ e 12’

Figura 3: Sonograma de Natal del Rey entre 3’ e 6,5’

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE II - TEORIAS DO COMPOR: A CONTEMPORANEIDADE BRASILEIRA

4. Conclusão Klein, Michael. 1991. “Musical Narratology: a Theoretical Outline”. Indiana Theory Review, vol.
12: 141-162.
Nossa principal conclusão é que a narratividade intrínseca de Natal del Rey __________. 2004. “Chopin’s 4th Ballade as Musical Narrative”. Music Theory Spec-
depende da resolução de um conflito entre as amostras gravadas e suas transfor- trum 26/1: 23–56.
mações, assim como da resolução de um conflito entre dois espaços sonoros: o __________. 2005. Intertextuality in Western Art Music. Bloomington: Indiana University Press.
primeiro que representa o real e o mundo ao redor do ouvinte, e um segundo __________. 2010. “Ironic Narrative, Ironic Reading”. Journal of Music Theory, 53/1: 95–136.
espaço, distante, quase surreal e abstrato que representa o mundo interior do
Simoni, Mary. 2006. Analytical Methods of Electroacoustic Music. New York: Routledge.
ouvinte. Esta oposição contrasta, portanto, dois universos sonoros, o primeiro
exterior, que é colocado em oposição a outro, interior.
A tragédia simbólica e ideológica que fundamenta esta narrativa musical de
Conrado Silva é que o universo exterior de folguedos folclóricos está condenado
ao desaparecimento à medida que o apetite de expansão da civilização moderna
destrói os valores das culturas tradicionais folclóricas ao longo de seu caminho.
Estas manifestações culturais permanecerão apenas em nossas memórias, no es-
paço mental interno de nossas experiências vividas, como reminiscências distorci-
das semelhantes aos materiais do espaço B que ressoam em nossas mentes.
Não posso deixar de mencionar, finalmente, que esta é uma pesquisa em
andamento sobre a narratividade na música eletroacústica de Conrado Silva. O
primeiro propósito desta comunicação preliminar é prestar uma homenagem ao
compositor e professor Conrado Silva, recentemente falecido. Todos aqueles que,
como eu, foram seus alunos, podem dar testemunho sobre sua generosidade
como ser humano e como intelectual que deixou inúmeras contribuições signi-
ficativas para a cultura latino-americana. A avaliação crítica dessa contribuição é
uma missão a ser cumprida.
Referências
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Indiana University Press.
Coelho de Souza, Rodolfo. 2012. “Recycling Musical Topoi by Electroacoustic Means in
‘What Happens Beneath the Bed while Janis Joplin Sleeps?’.” Proceedings of the International
Conference on Music Semiotics (In memory of Raymond Monelle), University of Edinburgh.: 284-
291.
Hatten, Robert S. 1994. Musical Meaning in Beethoven: Markedness, Correlation, and Interpre-
tation. Bloomington: Indiana University Press.
Kerman, Joseph. 1980. “How We Got into Analysis, and How to Get out”. Critical Inquiry, Vol.
7, No.2: 311-331.
Klein, Michael L. 2005. Intertextuality in Western Art Music. Bloomington: Indiana University
Press.

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE II - TEORIAS DO COMPOR: A CONTEMPORANEIDADE BRASILEIRA

partida para suas obras, pareceu-me injusto não falar também do compositor José
Referencialidade e desconstrução: Siqueira (1907-1985). Por esse motivo, também abordaremos aspectos gerais da
música de Siqueira. A seguir, tratarei brevemente da importância de um modelo
tendências composicionais da para a criação artística.

música paraibana de concerto 2. Composição a partir de modelos


A criação a partir de um modelo sempre existiu nas diversas artes, pois é algo
Marcílio Onofre que está ligado ao ato de aprender por imitação. Se pensarmos na pintura ou nas
diversas artes visuais, nas quais a identificação de um modelo é mais imediata e fá-
1. Introdução1 cil de constatar, perceberemos como algumas obras se inspiram em outras. Como
Neste ensaio, tratarei de referencialidade e desconstrução na música paraibana isso ocorre pode ser comprovado, por exemplo, nas pinturas Vênus Adormecida
de concerto.2 Na verdade, essa foi a maneira que encontrei de contextualizar, (1510), de Giorgio Barbarelli da Castelfranco, Vênus de Urbino (1538), de Tiziano
na qualidade de compositor que fala de seus pares mais próximos, o tema geral Vecellio, Vênus Adormecida e Cupido (1625-35), de Artemisia Gentileschi, Vênus
deste congresso da TeMA, que é O Pensamento Musical Criativo. De fato, faço Adormecida e Cupido (1630), de Nicholas Poussin, Olympia (1863), de Édouard
aqui um pequeno recorte das práticas criativas de alguns de meus colegas que Manet, e A Vênus Adormecida (1994), de Paul Delvaux. Não estariam essas obras
atuaram e atuam na Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e, em especial, no compartilhando um mesmo modelo? Algo similar ocorre na relação da pintura
seu Laboratório de Composição Musical (COMPOMUS/UFPB).3 Na impossibili- O Nascimento de Vênus ([1485?]), de Sandro Botticelli, com as fotografias digitais
dade de apresentar todos os diferentes aspectos da música contemporânea de homônimas de Danil Oleinik4, Vadim Cherekhovych5,  Rodrigo Núñez6 e Jim Fis-
concerto produzida na Paraíba, concentrar-me-ei na obra de três compositores cus7 ou com a pintura The Cloisters/Birth of Venus (2002-2005), do nipo-ameri-
que fazem, e fizeram, uso da música folclórico-popular como modelo para as suas cano Masami Teraoka8, ou então a que ocorre entre a litogravura Drawing Hands
próprias obras e, além disso, partilham a preciosa relação mestre-discípulo. Sob (1948), do holandês Maurits Cornelis Escher, e a fotografia tratada digitalmente
essa perspectiva, eu chego aos nomes dos compositores José Alberto Kaplan intitulada MC Mechanic – Hand Fixing Hand (2007), do norte-americano Shane
(1935-2009) e Eli-Eri Moura (*1963). Por último, apresentarei alguns aspectos de Willis9. Esses últimos exemplos fazem com que as obras posteriores projetem sua
minha própria música. No entanto, ao elaborar o presente texto, que trata da mú- temática para além de si mesma, dialogando com outras obras de arte e, claro,
sica de compositores que utilizaram a música folclórico-popular como ponto de com a memória e o poder de criar relação do observador. Em música, a utilização
de modelos é de extrema importância, e está presente de diferentes maneiras. Na
1 Antes de tudo, eu gostaria de dizer que foi um grande prazer poder participar da mesa-redonda de abertura verdade, se observarmos boa parte do nosso aprendizado, constataremos que
do congresso inaugural da Associação Brasileira de Teoria e Análise Musical (TeMA). Acredito que isso se torna ainda mais
relevante para mim por estar sendo comemorado neste ano o 60.o aniversário da Escola de Música da Universidade Fede- ela se baseia na imitação de modelos. Para verificar essa afirmação, basta darmos
ral da Bahia (UFBA), instituição que já há bastante tempo tem colaborado, de modo decisivo, na formação, e também na uma olhadela nos livros de disciplinas musicais, como, por exemplo, Contraponto
transformação, de compositores. Por esta oportunidade, eu gostaria de expressar minha gratidão à professora e estimada
amiga Dra. Ilza Nogueira, pelo convite, e ao professor Dr. Wilson Guerreiro Pinheiro, pelas profícuas discussões e pela minu- 4 Disponível em: <http://www.photosight.ru/photos/2657650/>. Acesso em: 16 jan. 2015.
ciosa revisão deste texto.
5 Disponível em: <http://satirs.blogspot.com.br/2008/01/birth-of-venus-by-vadim-cherekhovych.html>. Acesso em: 16
2 Essas duas palavras — referencialidade e desconstrução — devem ser entendidas aqui de modo mais amplo, jan. 2015.
sem se relacionar, especificamente, ao seu significado contextualizado na filosofia de Jacques Derrida (1930-2004).
6 Disponível em: <http://satirs.blogspot.com.br/2008/01/birth-of-venus-by-rodrigo-nunez.html>. Acesso em: 16 jan. 2015.
3 Idealizado por Eli-Eri Moura, a criação do COMPOMUS/UFPB foi fruto da união de seis compositores, além do
7 Disponível em: <http://satirs.blogspot.com.br/2008/10/birth-of-venus-by-jim-fiscus.html>. Acesso em: 16 jan. 2015.
próprio Eli-Eri. Nomes como Ilza Nogueira, Vanildo Mousinho, Carlos Anísio, Tom K, Didier Guigue e José Alberto Kaplan, que
já atuavam no campo da criação musical, passaram a integrar o Laboratório, cuja ação imediata foi a realização de cursos 8 Disponível em: <http://www.celesteprize.com/artwork/ido:54127/>. Acesso em: 16 jan. 2015.
de composição, ministrados inicialmente por Eli-Eri Moura e, posteriormente, por Ilza Nogueira. Portanto, foi a partir de 2003 9 Disponível em: <http://www.neatorama.com/2007/11/18/mc-mechanic-hand-fixing-hand-by-shane-willis/>. Acesso em:
que o ensino da composição musical alcançou seu âmbito formal na UFPB. 16 jan. 2015.

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e Harmonia. Não seria a literatura que versa sobre esses assuntos um grande 3. Diferentes Gerações de Compositores
banco de modelos para estudantes? Na criação musical, isso tem acontecido de
Como dito anteriormente, o movimento composicional na história recente
diversas formas. Apenas para exemplificar como compositores utilizam algum tipo
da Paraíba teve como ponto importante a criação do COMPOMUS. Desde sua
de modelo, tomemos, como ponto de partida, Mortuos Plango, Vivos Voco (1980),
criação, o Laboratório tem viabilizado várias ações educacionais e artísticas, como,
de Jonathan Harvey, L’Esprit des Dunes (1993-1994), de Tristan Murail, Partiels
por exemplo, a consolidação da área de composição na UFPB com a implantação
(1975), de Gérard Grisey, e Voi (Rex) (2001-2002), de Philippe Leroux. Nessas
dos cursos de graduação e de pós-graduação em composição e o apoio à realiza-
composições, diferentes tipos de modelo são utilizados como recurso para a
ção de concertos e gravações. Prova disso foi a composição das obras coletivas10
composição, sejam eles acústicos, espaciais ou puramente metafóricos. O com-
“Cantata Bruta” e “Eu, Augusto”, concertos-espetáculos produzidos, respectiva-
positor José Alberto Kaplan acreditava que “[...] todas as linguagens artísticas são,
mente, em 2011 e 2012.
na sua essência, sistemas que se utilizam de modelos.” (Kaplan 2006, p. 19, grifo
nosso). Essa afirmação de Kaplan é significativa para a compreensão do seu modo No entanto, ao tratar da música de concerto produzida na Paraíba, e de seus
de entender música. Numa abordagem sistêmica, por mais simples e simbólica compositores, especialmente aqueles que, de algum modo, utilizam elementos fol-
que ela seja, temos de considerar cada obra musical, assim como qualquer obra clóricos como modelos, é inevitável não mencionar o nome do compositor José
de arte, como um sistema aberto constituído de elementos que, a partir do seu Siqueira (Sadie 1980), que atuou em diversas frentes como compositor, regente e
ambiente, se relacionam com outros elementos. Portanto, para Kaplan, todas as empreendedor musical. Como compositor, ele deixou uma considerável obra que,
obras de arte, e especificamente as musicais, se conectam inevitavelmente com aos poucos, vem sendo cada vez mais estudada e tocada. Prova disso são os tra-
outras obras de arte, de modo consciente ou inconsciente, por parte de quem as balhos de pesquisa desenvolvidos no âmbito do Programa de Pós-Graduação em
compõe e também na memória de quem as recompõe, ou seja, o ouvinte. Kaplan Música da UPFB (Vieira 2007; Andrade 2011; Queiroz 2013). O próprio Siqueira
acreditava que toda a obra de arte aponta para fora de si mesma, cabendo ao chegou a publicar material didático lançado em três pequenos cadernos, tratando,
compositor controlar esse universo de referências. Para exemplificar isso, tome- até, de aspectos de sua própria abordagem composicional. Num deles, cujo títu-
mos como exemplo uma nova peça escrita para piano solo. Essa nova peça escrita lo é O sistema modal na música folclórica do Brasil, Siqueira (1981) aborda o que
tem uma alta potencialidade de se relacionar com outra(s) peça(s) já escrita(s) ele chama de Sistema Trimodal, construído a partir de três modos, a saber: modo
para piano solo. De fato, devido à existência de grande quantidade de obras para I (mixolídio), modo II (lídio) e o modo III (que incorpora os acidentes dos dois
piano solo, há uma probabilidade maior de ocorrer algum tipo de relação nesse modos anteriores), como mostra a Figura 1. Esses modos são recorrentemente
caso do que ocorreria, por exemplo, com uma peça escrita para flautim, contra- encontrados em suas obras.
fagote e xilorimba. Isso porque o número de peças escritas para essa formação é,
sem sombra de dúvidas, consideravelmente menor. Portanto, o ambiente em que
essa nova peça, escrita para uma formação pouco usual, está inserida é menor, o
que faz com que as relações sejam mais difíceis de ser criadas — pelo menos, sob
o aspecto da instrumentação. Entre os compositores brasileiros, os modelos mais Figura 1: Os três modos utilizados por José Siqueira.
recorrentes talvez sejam aqueles oriundos da música folclórica, ou seja, rítmicos,
harmônicos, texturais, tímbricos, etc. A seguir, veremos, de modo mais específico, Da mesma maneira, ao verificar as harmonias utilizadas por Siqueira, também é
como isso ocorre na música de diferentes compositores. possível constatar recorrências, em particular a sobreposição de segundas, quar-
tas e quintas (Figura 2).
10 Para maiores detalhes sobre as obras coletivas Cantata Bruta e Eu, Augusto, consultar o artigo do Autor intitulado
“Entre a coletividade e a individualidade: interações criativas na composição da Cantata Bruta e do espetáculo Eu, Augusto”.
Artigo não publicado.

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Burlesca (1987), para piano e quinteto de metais, etc. Além dessas obras instru-
mentais, Kaplan escreveu canções, cantatas, peças para coro e uma pequena ópe-
ra intitulada O Refl etor (1987-1988).
Ao tratar de sua obra, o próprio Kaplan divide sua prática composicional em
Figura 2: Arquétipos harmônicos encontrados na obra de José Siqueira. três momentos. No primeiro deles, o compositor se diz fortemente influenciado
pela estética nacionalista e pelos escritos de Mário de Andrade (1893-1945). Em
termos musicais, isso implicou uma música modal, permeada por ritmos com for-
Essa maneira que ele encontrou de organizar as harmonias pode ser vista, por
te referência às manifestações musicais do Nordeste. Desse período, destacamos
exemplo, na I Sonata para Violino e Piano (Siqueira 1981, p. 21-28) (Figura 3).
a obra Suíte Mirim, de 1978, vencedora, nesse mesmo ano, do I Concurso Brasi-
leiro de Composição de Música Erudita da Funarte. O fato de ter sido premiado
deu a Kaplan mais confiança naquilo que ele estava produzindo. Na Suíte Mirim, é
possível perceber, de modo muito claro, como Kaplan faz uso do que ele chama
de técnica do palimpsesto, ou seja, a técnica de escrever uma obra “por cima” de
outra preservando na nova obra traços da antiga. Isso pode facilmente ser vis-
to no primeiro movimento, uma invenção a duas vozes que ele criou utilizando
como modelo a primeira das invenções de J. S. Bach (1685-1750) (Figura 4).

Figura 3: Trecho do primeiro movimento da I Sonata para Violino e Piano,


de José Siqueira (compassos 28-29).

A seguir, abordaremos a música de J. A. Kaplan e Eli-Eri Moura.

3.1. José Alberto Kaplan


Em 1961, o pianista argentino José Alberto Kaplan chegou à Paraíba, após um
período de estudo em Viena. Contratado pela Pró-Arte de Campina Grande, Figura 4: Primeiros compassos das Invenções de J. S. Bach e J. A. Kaplan.
Kaplan logo se estabeleceu nessa cidade, distante 133 quilômetros de João Pes- Em sua segunda fase, Kaplan escreve obras de maior vulto, como a sua Burlesca
soa. Em 1969, ele se naturaliza brasileiro. Apesar de ter vindo como professor de para Piano e Quinteto de Metais (1987), Três Peças para Trombone e Piano (1987),
piano, foi aqui, em 1978, aos 43 anos de idade, que Kaplan se descobriu compo- Sonata para Trompete e Piano (1987) e o Concerto para Piano (1989-1990). Kaplan
sitor. O catálogo de sua obra é extenso, e nele constam obras para diferentes considera esse período como sendo um retorno à tonalidade. Ao abordar a to-
forças performáticas, como, por exemplo, Concerto para Violino e Orquestra (1997), nalidade, Kaplan utiliza como modelo a música dos compositores russos Dmitri
Concerto para Piano e Orquestra (1989-1990), Nordestinada (2005), para violino Shostakovich (1906-1975) e Serguei Prokofiev (1891-1953) e do compositor
e piano, Suíte Mirim (1978), para piano solo, Três Sátiras (1979), para piano solo, húngaro Béla Bartók (1881-945). Nesse período, é interessante perceber como

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o material que vem da música folclórica se mistura com outros materiais prove- Acreditamos que In Memoriam, para quinteto de cordas, é uma obra para-
nientes de fontes musicais diversas, como, por exemplo, a música do repertório digmática do último período do compositor e, sob vários aspectos, sintetiza a
pianístico e a música folclórica judaica. Esta última era certamente significativa sua prática composicional. A peça foi dedicada à sua mãe, a Sra. Lídia Novick de
para Kaplan que, como o próprio nome deixa transparecer, tinha origem judaica. Kaplan, mas também é uma homenagem aos compositores Igor Stravinsky (1882-
Esse fato também transparece pelas referências que Kaplan utiliza como modelos 1971) e Béla Bartók. Nessa obra, Kaplan utiliza diferentes referências intertextuais,
intertextuais, pois Shostakovich e Prokofiev são nomes que, de um modo ou de em especial no segundo movimento, no qual usa como modelo o famoso coral
outro, abordaram elementos da música judaica. Essa foi outra maneira de levar BWV 60 – Es ist genug, de J. S. Bach, e a canção iídiche Oyfn Pripetchik, do compo-
Kaplan ao modalismo, e, talvez por ter ouvido música judaica, a música modal nor- sitor russo Mark Markovich Warshavsky (1848–1907).
destina tenha-lhe parecido tão sensível. É nesse segundo movimento que acontece algo muito interessante sob o as-
Em sua última fase composicional, que ocorre a partir 1991, Kaplan considerava pecto da percepção culturalmente contextualizada. Conhecendo a música de
que estava fazendo uma espécie de “retorno”, e, ao tratar desse período, chega Kaplan e o seu interesse pela música folclórico-popular do Nordeste, não é difícil
a citar o escritor paraibano José Américo de Almeida (1887-1980) ao dizer que para o ouvinte — especialmente para nós, brasileiros —, dizer que o compositor
“ninguém se perde na volta”. Portanto, Kaplan volta ao uso de sua prática inter- está utilizando a melodia da famosa canção Assum Preto, de Humberto Teixeira
textual, tomando como modelo obras com referência à música folclórica e tam- (1915-1979) e Luiz Gonzaga (1912-1989). Isso ocorre especialmente no com-
bém à tonalidade. É nessa época que ele escreve estas obras: Sonata para piano passo 8, no violoncelo, pouco antes do aparecimento do coral de Bach, como
(1991), Quinteto de Sopros (1994) e Partita para dois pianos (2000-2001). Desse mostra a Figura 5. Portanto, o ouvinte brasileiro muito provavelmente tenderá a
período, destacamos o seu quinteto de cordas, intitulado In Memoriam,11 de 1992, relacionar a peça com a canção da dupla Teixeira-Gonzaga. No entanto, o modelo
e sua Nordestinada, para violino e piano, de 2005, última obra escrita por ele.12 que Kaplan utilizou foi outro.

Figura 5: Primeiros compassos do segundo movimento de In Memoriam.

11 Esse foi o título utilizado por Kaplan no catálogo de suas obras, constante na parte fi nal do seu livro de memórias
(Kaplan 1999). Convém esclarecer que, originalmente, o próprio Kaplan escreveu o título Três Peças Breves na capa de
seu manuscrito, que, em seguida, mudou para Três Bagatelas, adicionando a seguinte nota: “Talvez o título mais apropriado
seria Três Homenagens”, cujos subtítulos ele indicou da seguinte maneira: I – Ostinato (Stravinsky), II – Coral, III – Variações Figura 6: Segundo movimento de In Memoriam (compassos 8-14).
(Bartók).
12 Kaplan tinha ainda a intenção de escrever uma série de variações para piano solo, mas infelizmente isso não foi possível.

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Portanto, Kaplan intencionalmente cria certo tipo de ambiguidade que con- desenvolver aquilo que chamou de música contextualizada. Isso ocorreu por volta
textualiza a escuta em dois âmbitos culturais distintos. Apesar dessa divisão em de 1999, e, de lá para cá, são várias as obras escritas que fazem uso do que ele de-
três fases, proposta pelo próprio Kaplan — talvez para mostrar apenas sua mo- nominou de desfragmentação.13 Obras como Circumsonantis (1999), para quarteto
mentânea mudança de ênfase entre a música de caráter mais nacionalista e outra de cordas, Noite dos Tambores Silenciosos (2002), para orquestra, Opanijé Fractus
menos enraizada em arquétipos reconhecidamente nordestinos —, é possível (2004), para quinteto de sopros, Maracatum (2005), para trio de percussão, e
percebermos em sua obra uma constante: a intertextualidade. Esse diálogo com Circumversus (2005), para flauta, clarinete, violino e violoncelo são exemplos des-
a história da música a partir de sua própria música é algo que sempre despertou se tipo de abordagem composicional. No contexto da desfragmentação, há dois
interesse em Kaplan, que foi um homem de grande cultura que professava o res- procedimentos importantes que dizem respeito ao modo como o modelo, so-
peito à tradição. Acreditamos que, para Kaplan, na verdade, a intertextualidade bre o qual a peça está construída, é visto. Esses dois procedimentos, cujos títulos
nada mais era do que um meio pelo qual o compositor deixava transparecer dois remetem a uma abordagem visual, são denominados de Zoom in e de Zoom out,
aspectos fundamentais de sua personalidade: a sátira e a ironia. Portanto, a abor- abreviadamente Zin e Zout. Musicalmente, Zin se desdobra em notas prolongadas,
dagem intertextual é uma maneira de jogar os olhos para aspectos inerentes à como se tivesse sido realizado um procedimento de time stretching. Já no Zout,
criação musical, como identidade, originalidade e novidade. Isso traz para a música ocorre algo inverso, pois é o distanciamento da referência, e, como resultado, se
de Kaplan um importante jogo de ambiguidades entre o que é novo e o que é desdobra naquilo que ele chama de melodia textural. Para entendermos melhor
velho, entre o que é Kaplan e o que não é. É interessante notar que essas duas como isso ocorre, tomemos como ponto de partida a melodia apresentada na
características estão presentes na sua obra. Basta voltar a atenção para alguns de Figura 7, extraída do livro Maracatus do Recife, de autoria de Guerra-Peixe (Peixe
seus títulos como, por exemplo, Shosta-polka-kovich, Val-Stravinsky-sa da Esquina 1955, p. 145).
e Caso me esqueça(m), livro de memórias publicado em 1999.

3.2. Eli-Eri Moura


Tendo estudado composição com Kaplan no início da década de 1980, Eli-Eri
Moura tem sido personagem de grande importância no atual movimento com-
posicional no Nordeste, especialmente na região mais ao leste, formada pelos
estados de Pernambuco, Rio Grande do Norte e, claro, Paraíba. A influência de
Kaplan é facilmente percebida na produção composicional de Eli-Eri, especialmen-
Figura 7: Toada do maracatu Nas Água Verde do Má.
te nas obras escritas sob a orientação do seu mestre, como, por exemplo, Varia-
ções (1984), para clarinete, violoncelo e piano. Mesmo tendo ido ao Canadá, para
estudar com o também argentino Alcides Lanza (*1929), na McGill University, a Na Figura 8, o compositor nos apresenta uma interpretação do Zout da melodia
presença de Kaplan sempre foi algo muito forte na vida de Eli-Eri, que continuou apresentada anteriormente.
a apresentar suas peças ao seu velho mestre.
Eli-Eri Moura tem apresentado e discutido sua música em diversas palestras,
cursos e textos publicados. Para ele, a utilização de modelos decorrentes da mú-
sica folclórica foi um modo de sair de um cenário musical que, muitas vezes, se 13 É importante mencionar que Eli-Eri Moura nutre abordagens composicionais distintas àquela de sua “música de
apresenta de modo planificado, no qual as linguagens composicionais individuais pesquisa”. É possível encontrar no portfólio do compositor obras tonais, armoriais e até eletroacústicas. Por essa sua versati-
lidade, Eli-Eri tem frequentemente trabalhado como compositor de trilhas sonoras para fi lmes, teatro e espetáculos voltados
tendem a ceder lugar a um som “globalizado”. Assim sendo, Eli-Eri começou a para o grande público, como a tradicional Paixão de Cristo, encenada anualmente em João Pessoa durante a Semana Santa.

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Figura 8: Ritmo e melodia texturais em trecho da obra Noite dos Tambores Silenciosos
(Moura 2013).

É possível perceber como as notas da melodia são distribuídas pelos instru-


mentos de modo a criar uma Gestalt textural, na qual a linha melódica com hie-
rarquia máxima cede lugar a uma construção textural na qual o peso hierárquico Figura 9: Notas prolongadas representando o processo de zoom in (Zin) na obra Circumversus.
é distribuído pelo todo instrumental. Por outro lado, podemos visualizar nas notas
sustentadas, presentes a partir do compasso 3 de Circumversus (para flauta, cla- É importante mencionar que, para chegar a tais procedimentos, Eli-Eri não uti-
rinete, violino e violoncelo), como exemplo de zoom in (Figura 9). liza nenhum software, pois ele faz a sua própria interpretação de como as metá-
foras de Zin e Zout se aplicam a um dado modelo. É uma espécie de modelagem
que atua entre o solfejo e a imaginação do compositor, e é parte indissociável do
processo de composição de cada obra.

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE II - TEORIAS DO COMPOR: A CONTEMPORANEIDADE BRASILEIRA

3.3. Marcílio Onofre


Após iniciar minha graduação em piano na UFPB, as músicas de Kaplan14 e de
Eli-Eri Moura15 sempre me estiveram presentes, assim como seus comentários
e ensinamentos. Do mesmo modo, estive próximo à música folclórico-popular. Figura 10: Melodia da introdução do forró É proibido cochilar.
Como toda a minha família por parte de mãe é do interior do estado da Paraí-
ba, certos tipos de música eram ouvidos com frequência, como, por exemplo, os Apesar da simplicidade do trecho, assim como sua falta
aboios — especialmente no período de “pega do gado”, para realizar a vacinação de identidade regional, a priori, pois arpejos de tônica e
e fazer a marcação ––, as ladainhas –– especialmente no mês de maio –– e o dominante são encontrados amplamente na literatura, foi
chamado forró pé de serra, durante as festividades juninas, em especial. Portanto, esse início que me chamou a atenção, especialmente pelo
percebo hoje que a minha música encontrou a música folclórico-popular por modo peculiar como ele era tocado numa gravação antiga
duas vias: pela influência tácita desses mestres e pelo ambiente familiar. Talvez por do grupo Os Três do Nordeste. Ao importar a gravação
essa razão, em minhas primeiras obras apresentadas, como a Toccata (2003), para desse fragmento por meio de um aplicativo de análise e
piano solo, e o Capriccio (2004), para piano e orquestra, essas referências estejam manipulação de áudio, pude ter uma noção mais clara do
presentes de modo tão claro. No entanto, o modo como os modelos decorrentes conteúdo espectral desse trecho, especialmente quando
da música folclórica são utilizados foi-se alterando no decorrer do tempo. Como diminuía o andamento. Foi a partir das experimentações
exemplo de minha abordagem composicional mais recente, apresentarei aqui as- com os softwares de análise de áudio SPEAR e AudioS-
pectos composicionais do segundo movimento do meu Quarteto de Cordas n.º 2 – culpt que comecei a separar o material para a composi-
Via est Vita, cujo subtítulo é Máscara Espelho, e mostrarei como ocorreu o modus ção. Minha ideia era que, durante a peça, esse material fos-
operandi composicional a partir de elementos oriundos da música popular.16 se utilizado em suas várias possibilidades de tal modo que
O Quarteto de Cordas n.º 2 – Via est Vita foi escrito em 2011 e está dividido em se apresentasse sempre de uma nova maneira, apesar de
dois movimentos: I – Via est Vita e II – Máscara Espelho. O segundo movimento, ser sempre o mesmo. Daí veio a ideia do movimento, que
especificamente, foi composto para ser apresentado no festival Virtuosi Diálogo, foi construir máscaras dinâmicas por meio de diferentes
uma série de palestras curtas na Livraria Cultura, em Recife, em 2011. O material tipos de manipulação do material. Uma máscara dinâmica
utilizado inicialmente para a composição da obra veio da introdução da sanfona é capaz de refletir a própria face que está por baixa dela;
do forró É proibido cochilar, de autoria do compositor popular paraibano Antônio no entanto, o reflexo vai-se alterando no decorrer do
Barros Silva (*1930). Essa introdução consiste em dois arpejos, sendo o primeiro tempo. Resumidamente, as etapas do processo de com-
Figura 11: Etapas do
deles na tônica, e o segundo, na dominante, como mostra a Figura 10. processo de composição. posição podem ser vistas no diagrama da Figura 11.

14 Em 2002, quando comecei a graduação em piano na UFPB, passei a ter contato mais próximo com Kaplan. Essa con-
vivência fi cou ainda mais estreita quando o pianista e professor da UFPB José Henrique Martins, discípulo de Kaplan, me
Esse processo de análise e manipulação da gravação resultou num banco de
perguntou se eu teria interesse em ajudar Kaplan na catalogação e organização de seu acervo musical, missão que aceitei material, parte do qual viria a ser utilizada no decorrer da obra. Para facilitar o
de imediato. Esse período foi de grande importância para a minha formação, pois, enquanto catalogávamos caixas e mais
caixas de partituras, Kaplan comentava algo sobre as obras que estavam sendo etiquetadas naquele momento, indicava-me nosso trabalho de escuta das várias possibilidades de manipulação, criamos um
gravações, edições, livros, e fazia comentários enriquecedores sobre a sua própria vivência. A partir desse contato, o vínculo
com Kaplan se manteve até à sua morte, em 2009.
patch em OpenMusic contendo as funções mais utilizadas durante o processo de
15 Conheci Eli-Eri em 2002 no contexto da sala de aula, pois ele era professor de matérias teóricas e, a partir do ano se- composição da obra (Figura 12).
guinte, viria a ser também o meu professor de composição no curso de extensão do COMPOMUS/UFPB. Dois anos após as
primeiras aulas de composição, começamos a trabalhar juntos em diversos projetos artísticos locais, e passei a acompanhar
de perto o seu processo de composição, especialmente das peças registradas nos discos intitulados Música de Câmara e
Música Instrumental.
16 Onofre, Marcílio. 2014. “Aspectos composicionais do Quarteto de Cordas n.o 2 – Via est Vita”. Texto não publicado.

118 119
O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE II - TEORIAS DO COMPOR: A CONTEMPORANEIDADE BRASILEIRA

Alguns dos resultados dessas transformações podem ser vistos na Figura 14.
Eles foram utilizados de modo a preservar o contorno do arpejo original.

Figura 14: Deformações melódicas.

Uma das maneiras como essas deformações são utilizadas pode ser vista na
Figura 15. Nesse trecho, é possível ver a sobreposição das deformações melódicas
da Figura 14.

Figura 12: Início do forró É proibido cochilar.

Ao trabalho de manipulação e análise a


partir da gravação e do seu conteúdo har-
mônico soma-se outro processo de tra-
balho a partir do material da introdução.
Isso ocorreu com o objetivo de alterar as Figura 15: Trecho de Máscara Espelho (compassos 84-88).
relações intervalares entre as notas. Como
Na Figura 16, é possível ver uma variação do procedimento mostrado na Figura
no primeiro movimento da obra há uso de
15. No entanto, o violoncelo mantém as notas originais do arpejo.
microtons, empregados com o fim melódi-
co, ou seja, de alterar sutilmente a entoa-
Figura 13: Distorção da melodia. ção de determinados trechos, a alteração,
por essa razão, ocorre de modo não tem-
perado. Para tal fim, utilizamos um patch em OpenMusic para nos ajudar nesse
processo. De fato, a grande vantagem de poder trabalhar a partir do patch foi
poder ouvir cada transformação, ou deformação, melódica. Também no OpenMu-
sic criamos uma função para distorcer o arpejo inicial, como mostra a Figura 13.

Figura 16: Sobreposição de diferentes deformações melódicas.

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE II - TEORIAS DO COMPOR: A CONTEMPORANEIDADE BRASILEIRA

A pesquisa na área de composição tem tido um caráter cada vez mais interdis- de modelos oriundos do repertório pianístico e o tratamento dado às melodias
ciplinar, sem dúvida um reflexo direto da quantidade e da facilidade ao acesso da em que intervalos são substituídos e notas são alteradas para se encaixar num
informação em nossos dias. Basta compararmos com as ferramentas tecnológicas determinado modo. Também é interessante notar na música de Kaplan o uso da
disponíveis no tempo de Béla Bartók. Em minha pesquisa pessoal, isso se reflete intratextualidade, ou seja, a reciclagem de materiais musicais já empregados nou-
de diversos modos, tanto no universo das ideias quanto na maneira como o ma- tras obras e também trechos de suas próprias músicas para compor uma nova.
terial é manipulado. Pode-se constatar na música de Eli-Eri Moura uma fase de transição no uso
da desfragmentação.17 Desse período de transição, destacamos o uso, por parte
4. Considerações finais do compositor, de procedimento análogo ao da intratextualidade utilizado por
Kaplan. Essa nova abordagem é caracterizada por um processo de reciclagem e
Neste trabalho, abordamos aspectos gerais da música contemporânea de con-
reutilização de porções de música e de fragmentos em novas obras. Como exem-
certo produzida na Paraíba, a partir da obra de diferentes compositores que
compartilham o interesse pela utilização de modelos decorrentes da música fol- plo disso, destacamos as obras Apsis18 (2014), peça concertante para violino e
clórico-popular. A partir disso, pudemos perceber as diferentes soluções no em- orquestra, e Circumfractus (2013), para quarteto de cordas.
prego e no tratamento desses modelos para a criação de novas obras. É possível Como dito anteriormente, em minha própria música tenho buscado um
perceber como a referência passa a ser utilizada cada vez mais de modo mais tratamento cada vez mais sutil da música folclórica, procurando desenvolver pro-
discreto, ou seja, ela vai ficando mais escondida. É interessante notar como as mú- cessos composicionais que se conectem com as ideias por trás de cada peça, aqui-
sicas de Kaplan e de Eli-Eri Moura encontram a música folclórico-popular por ca- lo que chamo de metáforas generativas, que se projetam em vários níveis na reali-
minhos distintos. Kaplan que, ao chegar a Campina Grande em 1961, se encantou, zação musical de cada peça. Além disso, tenho utilizado recursos de composição
de imediato, pela música tocada na feira livre da cidade e assumiu uma postura assistida por computador para fins de análise e manipulação de arquivos de áudio.
composicional nacionalista, fortemente influenciado pelos escritos de Mário de Sem dúvida, isso é uma consequência direta da facilidade com que podemos en-
Andrade e, especialmente, pela música de Camargo Guarnieri (1907-1993). Por contrar gravações de diferentes manifestações folclóricas, e isso tem despertado,
outro lado, Eli-Eri Moura, natural de Campina Grande, reencontra a música de sua obviamente, um crescente interesse por esses “diferentes” tipos de música.
terra enquanto esteve no Canadá, durante o seu doutoramento, incorporando à Se, com Kaplan, eu tento trazer para a minha própria música o aspecto mul-
sua música de pesquisa elementos do maracatu, do candomblé e da capoeira. Se, ticultural, com links e referências que projetam a música para além dela mesma,
em Kaplan, é possível ouvir facilmente melodias e ritmos claramente identificáveis com Eli-Eri eu tenho o tratamento mais sutil do material que vem do modelo da
como tendo um caráter nordestino, em minha própria música esses aspectos são música folclórica, fazendo com que ele perpasse vários níveis da peça.
abordados de modo mais sutil.
Apesar de termos enfatizado neste ensaio apenas os aspectos relaciona- Referências
dos à música folclórico-popular, na música desses compositores há muitos outros Andrade, Danilo Cardoso de. 2011. Concertino para Contrabaixo e Orquestra de Câmara
de José Siqueira: um processo de edição, análise e redução para piano e contrabaixo. Disser-
aspectos que extrapolam qualquer relação direta com a música do Nordeste tação (Mestrado em Música) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade
brasileiro. Em Kaplan, por exemplo, não é difícil encontrarmos exemplos disso, até Federal da Paraíba, João Pessoa, Paraíba.
mesmo em sua obra inaugural, a Suíte Mirim. Do mesmo modo, encontramos na
Andrade, Mário de. 1991. Aspectos da música brasileira. Rio de Janeiro: Villa Rica, Belo
música de Eli-Eri Moura conjuntos de classes de notas utilizados na construção Horizonte.
daquilo que ele chama de “grid” de alturas. Mesmo tendo dividido a sua prática
composicional em três diferentes momentos, é possível encontrar, na obra de 17 Em palestra proferida em 2013 durante o Festival Virtuosi Século XXI, o próprio compositor afirmou que se considera
num momento de “crise”, pois está buscando novos caminhos composicionais.
Kaplan, aspectos que permanecem imutáveis, como a intertextualidade, o uso 18 Obra encomendada pela Funarte, com estreia prevista para 2015 durante a XXI Bienal de Música Brasileira Con-
temporânea.

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE II - TEORIAS DO COMPOR: A CONTEMPORANEIDADE BRASILEIRA

a obra musical
Camacho, Vania Cláudia da Gama. 2004. As Três Cantorias de Cego para piano de José Siqueira:
um enfoque sobre o emprego da tradição oral nordestina. PER MUSI – Revista Acadêmica de
Música, v. 9, 129 p.
Gerling, Cristina Capparelli. 2006. A Sonata para piano de José Alberto Kaplan (1991) e a
Tradição da Escrita Pianística. Claves, n. 1, p. 73-90. João Pessoa: PPGM/UFPB.
Kaplan, José Alberto. 1994. As composições: À Maneira de Introdução. In: Encarte do CD
enquanto sistema-obra
Kaplan – Obras Escolhidas. João Pessoa: FUNESC: FBB: FCJA. Fernando Barbosa de Cerqueira
______. 1999. Caso me Esqueça(m): Memórias Musicais. Volume I (1935-1982). João Pessoa:
Departamento de Produção Gráfica da Secretaria de Educação e Cultura. 301p. (Coleção
Páginas Paraibanas 2).
______. 2006. Ars inveniendi. Claves, n. 1, p. 15-25. João Pessoa: PPGM/UFPB.
1. Sistema-obra versus inocência do compositor
Moura, Eli-Eri. 2003. Noite dos Tambores Silenciosos: for symphony orchestra. Tese (Doutorado Do meu ponto de vista enquanto compositor, a obra musical é sempre conce-
em Música) – Faculty of Music, McGill University, Montreal, Canadá. Disponível em: <http://digi- bida como um sistema, o “sistema-obra”, conceito este decorrente da compre-
tool.library.mcgill.ca/R/-?func=dbin-jump-full&current_base=GEN01&object_id=84689>. Acesso ensão de música como um “universo de sistemas”, ou um sistema cuja virtude
em: 10 out. 2014.
principal é atrair e capturar outros sistemas, tanto no âmbito das tradições e
______. 2006. Processo Composicional de Desfragmentação. In: CONGRESSO DA ASSOCIA-
ÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA (ANPPOM), 16., Brasília.
vanguardas musicais quanto no senso amplo das interações entre criação musical,
Anais... Brasília, p. 843-849. Disponível em: <http://www.anppom.com.br/anais/anaiscongres- artes e ciências, com todas as implicações ideológicas e culturais.
so_anppom_2006/CDROM/COM/07_Com_TeoComp/sessao05/07COM_TeoComp_0503-099.
pdf>. Acesso em: 13 out. 2014.
Este pensamento pode soar genérico e metafórico, mas é essencialmente óbvio,
pois a interação de ideias, conteúdos e processos, mesmo que não seja assumida
______. 2007. Compositional Process of Defragmentation. In: INTERNATIONAL CONFER-
ENCE “COMPOSER AU XXIe SIÈCLE – PROCESSUS ET PHILOSOPHIES”, 28 fev. - 3 mar. 2007, intencionalmente pelo compositor nas opções prévias de cada peça, torna-se
Montréal (Québec), Canada. Proceedings... Montréal (Québec). Disponível em: < http://oicrm.org/ condição irremediável do processo criativo, comprometendo desde as configu-
wp-content/uploads/2012/03/Moura_Defragmentation.pdf>. Acesso em: 16 out. 2014. rações de forma e textura até os aspectos expressivos e de comunicabilidade
Onofre, Marcílio. 2009. Sistema composicional complexo visando à hierarquização de unidades específica de uma obra.
sonoras, sintagmas e envelopes. Dissertação (Mestrado em Música – Composição) –­ Centro de
Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Paraíba. Aplicado a formas convencionais e fechadas ou utilizando processos livres e
Peixe, César Guerra. Maracatus do Recife. São Paulo: Ricordi Brasileira, 1955. abertos, o “sistema-obra” é a força que caracteriza o modo como o sentido mu-
Pinheiro, Wilson Guerreiro e Onofre, Marcílio Fagner. 2006. COMPOMUS: Agente catalizador sical é apreendido e recriado pelo ouvinte, determinando, inclusive para o teóri-
da composição na Paraíba. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E co, a direção e a trajetória de todos os elementos macros e micros percebidos,
PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA (ANPPOM), 16., Brasília, 2006. Anais... Brasília, p. 909-911.
resgatáveis pela análise. Conciliando, então, os termos da temática aqui proposta,
Queiroz, Luiz Kleber Lyra de. 2013. A Ópera A Compadecida de José Siqueira: Elementos a obra musical é mais do que a resultante concreta (objetivada em partitura ou
Musicais Característicos do Nordeste Brasileiro e Subsídios para Interpretação. 2013. 324 f.
Dissertação (Mestrado em Música) – Centro de Comunicação, Turismo e Artes, Universidade outro registro gráfico-sonoro) de uma escolha complexa:
Federal da Paraíba, João Pessoa, Paraíba. Um “sistema de ideias musicais” (relação conteúdo-forma, gênero-estilo, texto
Sadie, Stanley (Ed.). 1980. The New Grove Dictionary Of Music And Musicians. London: poético ou não) agregador de subsistemas (acústica e sistema temperado ou não,
Macmillan, vol. XVII. p. 350-351.
instrumentação, texturas) reunidos para a tarefa de solução metodológica de
Siqueira, José. 1981. “Sistema modal na música folclórica do Brasil.” João Pessoa: Secretaria de
Educação e Cultura.
“problemas” (estruturação dos elementos sonoros para a criação de linearida-
des-verticalidades no âmbito das gramáticas), por alguém (compositor) que em
Vieira, Josélia Ramalho. 2007. José Siqueira e a Suíte Sertaneja para violoncelo e piano sob a
ótica tripartite. Opus, Goiânia, v. 13, n. 2, p. 110-128. algum ponto desse processo meteu a “mão na massa”.

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE II - TEORIAS DO COMPOR: A CONTEMPORANEIDADE BRASILEIRA

Não importa muito onde se inicia o percurso: seja pela proposição de uma 2. Comentário de obras
ideia prévia trazida de fora, ou disparada por algum motivo sonoro gerador; seja
Ilustrando este conceito de “sistema-obra”, mostrarei brevemente, em três par-
buscando soluções e variáveis para um problema metodológico, ou explorando
combinatórias de materiais sonoros; seja metendo logo a mão-na-massa para seguir tituras minhas de diferentes períodos, os principais elementos característicos invo-
experimentando e confirmando resultados. cados e inter-relacionados para compor o perfil sistemático e o sentido musical
próprios de cada peça. Compostas entre 1967 e 1978, fase inicial do meu trabalho
Acredito, no entanto, que somente unindo intencionalidade sistemática e consci-
ência processual às suas escolhas estéticas e referenciais, o compositor estará pre- como compositor já inserido no ambiente acadêmico da música contemporânea e
servado de ingenuamente aderir à mecânica dos mimetismos, (des)avisadamente membro do Grupo de Compositores da Bahia, fundado em 1966, na EMUS-UFBA,
pressionado por antigas e modernas tradições. estas obras representam diferentes escolhas estéticas e de procedimentos sonoros,
Sem desprezar a memória e os valores acumulados pelas gerações passadas, permitindo-nos identificar desde enquadramentos mais convencionais até aborda-
cabe ao compositor sabiamente recolher tudo isso no tempo presente para agregar gens opostas que indicam uma atitude experimental de busca por novos caminhos
ao acervo híbrido de possibilidades sonoras, recursos interdisciplinares e multimídia, do compor:
formando um substrato fértil e renovável que provoque no interior de cada nova
obra musical a fusão crítica e inseparável entre realidade e visão de mundo.
2.1. Metamorfose (1967)
Não basta ao compositor reduzir a musicalidade a procedimentos estruturais
Obra para trio de violino, violoncelo e piano, composta para a Primeira Apre-
para garantir unidade, organicidade e originalidade à obra, resguardado em con-
ceitos e valores de “pura” natureza sonora. Mais do que isso, concebo a criação sentação de Compositores da Bahia (1967), manuscrito editado pela TONOS
artística como uma ação análoga a qualquer ato gerado pela condição humana e International, Darmstadt-Alemanha (1980?) e edição eletrônica de Pablo Stuyo
que precisa se alimentar paralelamente dos mesmos processos vitais. Deixando- Blanco, em 2003, para o projeto Marcos Históricos da Composição Contempo-
-se criticamente retroalimentar nos referenciais da vida, o artista reconhecerá o rânea da UFBa.
seu imaginário artístico no espelho dos entes, figuras, percepções e emoções que O título principal da peça representa tanto as relações estruturais quanto as
formam o mundo real e o simbólico. De modo similar, aceitando e adotando esta expressivas. A obra está elaborada em três movimentos contínuos, derivados de
atitude hermenêutica, de movimento espiralado e contínuo voltado para o mundo transformações um do outro: o primeiro (Labirinto) é gerador do segundo (Grito)
real, o compositor impedirá que os elementos e ideias do seu imaginário musical
e o terceiro (Libertação), derivado de “metamorfoses” dos anteriores, realiza-se
girem viciosamente sobre si mesmos.
como uma dança de métrica irregular, evocando um ambiente de marcha-frevo.
Concluindo, a ênfase na obra como sistema amplo e aberto permite à criação
musical acionar desde puras relações sonoras até outras referências, físicas ou ima- Partindo da epígrafe “Tudo nasce de si-próprio, (ou é tédio)”, assumida pelo
teriais, ancoradas para além da música. Mas, somente a abordagem consciente e autor no momento da composição, pode-se analisar a obra como uma estrutura
crítica de todos os processos garantirá a perda, se não da “inocência”, pelo menos dialética onde as situações de conflito e tensões, levadas ao clímax, não se rela-
da ingenuidade do compositor em relação ao mundo. xam romanticamente, mas se resolvem numa proposta de solução expressiva que
O tempo histórico e o espaço geográfico e social, onde o artista se encontra é necessário comunicar.
irremediavelmente situado e imerso, configuram o cenário concreto, embora mu- Material sonoro de base: a) série dodecafônica desenvolvida como linha meló-
tante e provisório, do perene drama humano, de cuja trama, trágica ou venturosa, dica que se transforma em nova série e nova linha expressiva de um movimento
jamais a arte, nem mesmo a da música, logrou escapar. para o outro, ou seja, uma série e duas transformações metamórficas; b) escala
Se isto for um problema para o artista ou para o compositor, resta-lhes a opção dodecafônica formada por dois hexacordes de tons inteiros separados por semi-
e o compromisso de sempre oferecerem as suas obras ao mundo como a melhor tom, importante na estrutura do terceiro movimento (Figura 1).
resposta possível e imediata.

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE II - TEORIAS DO COMPOR: A CONTEMPORANEIDADE BRASILEIRA

2.2. Síndrome (1973)


Obra composta para quarteto de cordas, manuscrito editado pela Tonos In-
ternational, Darmstadt-Alemanha, 1974. A peça, antes de tudo, pretende ser um
contraponto de timbres e sonoridades espessas que criam e resolvem tensões. A
estrutura parte da definição da palavra síndrome: conjunto de sinais e sintomas
provocados por um mesmo mecanismo e dependentes de causas diversas.
A definição explica a estrutura básica da obra: as tensões iniciais se acumulam
a partir de células rítmicas rápidas de alturas fixas; sobre esse fundo pontilhado,
estático em outros momentos da peça, correm motivos de alturas e articulação
variadas, passando por cada instrumento como respostas ao primeiro impulso,
provocado pelo I violino.
Os instrumentos se revezam como origem dos estímulos produzindo texturas
quase heterofônicas: linhas mais ou menos semelhantes em cada instrumento,
diferenciadas pelos timbres e deslocamentos irregulares que realizam no tempo
musical.
O objetivo formal da obra, numa direção oposta à do trio Metamorfose, é
experimentar novos recursos do quarteto de cordas despojando-o dos padrões
de sonoridade e da organização melódico-harmônica e rítmica convencionais.
Elaborando sua estrutura em cima de opções sistemáticas de âmbito mais acús-
tico do que histórico, a peça busca provocar no ouvinte uma nova “curiosidade”
sonora para desencadear diferentes ideias e emoções escondidas nos significados
do título.
A organização desses estímulos sonoros “puros” coloca para o compositor o
desafio fundamental de, trocando a riqueza do vocabulário convencional pela se-
leção de certo “catálogo” de sonoridades, aplicado a uma estruturação aberta do
espaço-tempo, construir, mesmo assim, um discurso musical de fortes conteúdos.
Material sonoro de base: amostras de efeitos sonoros das cordas, sons conven-
cionais dos instrumentos e outras sonoridades com sons não temperados, pro-
duzidos por articulações diversas de arco ou em pizzicato, posição normal, atrás
do cavalete, tremolo, oscilando, glissando, battuto, etc., organizados para formarem
linhas e texturas (Figura 2 e 3).

Figura 1: Metamorfose – pg. 1 de 18

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE II - TEORIAS DO COMPOR: A CONTEMPORANEIDADE BRASILEIRA

Figura 3: Síndrome – pg. 1 de 10

2.3. Rola Mundo (1978)


Obra para coro a capella, com partitura editada pelo INM-FUNARTE, em 1982,
e edição eletrônica pelo autor, em 2007. Utiliza a estrofe final do poema Rola
Mundo (do livro Rosa do Povo) de Carlos Drummond de Andrade1:
Irredutível ao canto
superior à poesia
rola mundo, rola mundo,
rola o drama, rola o corpo,
rola o milhão de palavras
na extrema velocidade,
rola-me, rola meu peito,
rola os deuses, os países,
desintegra-te, explode, acaba!
Figura 2: Síndrome – bula Material sonoro de base: a estrutura musical fundamenta-se numa interpreta-
ção direta do texto, principalmente quanto ao movimento dinâmico e rotativo
que ele comporta, além de explorar a expressividade imperativa dos versos.

1 DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Poesia e Prosa. 6. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1988. 2019 p.

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE II - TEORIAS DO COMPOR: A CONTEMPORANEIDADE BRASILEIRA

A resposta sonora à intenção do poeta é dada através de um jogo de interva-


los que sofrem rotação de alturas (transposições) e de durações (deslocamentos
rítmicos) urdindo uma trama que explora efeitos de aceleração-desaceleração e
inter-relação progressivas das vozes2 (Figura 4 e 5).

Figura 4: Rola Mundo – pg. 1 de 8 Figura 5: Rola Mundo – pg. 2 de 8

2 Análise detalhada das obras Metamorfose e Rola Mundo pode ser consultada na tese de doutorado de Ângelo Castro,
professor da UFBa, publicada no livro homônimo: CASTRO, Ângelo. O Pensamento Composicional de Fernando Cerqueira: Salvador, 10 de novembro de 2014.
Memórias e Paradigmas. Salvador: EDUFBA, 2007. 189 p.

132 133
PARTE III - ANÁLISE MUSIC AL COMO DISCURSO CRÍTICO

Crítica e criatividade
a partir de uma imagem
criada por Ernst Widmer
Paulo Costa Lima

Este trabalho nasce de outro, uma apresentação feita por Ernst Widmer (1927-
1990) na SBPC de 1981, em Salvador: Crítica e Criatividade, em 6 ‘movimentos’1.
Nasce de algumas idéias, visão de mundo e atitudes que ali florescem, mas tam-
bém de suas frestas e entrelinhas, de coisas parcialmente ditas ou quase ditas.
Na ocasião, Widmer dividiu a Mesa com um filósofo e uma geneticista2, e es-
colheu como primeira frase do texto a declaração de que representava o Homo
Ludens: “representando o Homo Ludens, sinto-me plenamente à vontade, especial-
mente no tocante à forma de minha exposição”. Fez um texto em ‘movimentos’,
inclusive com indicações expressivas de andamento. Qual seria o papel do Homo
Ludens hoje?
Logo no primeiro parágrafo da “Introdução: Sostenuto”, ele apresenta a formu-
lação que tomarei como referência principal para o percurso deste trabalho: “A
crítica é a alavanca que permite aquele distanciamento necessário para que a
criatividade se expanda.”
São diversas camadas de significação que guiam a minha leitura. Por exemplo,
a representação do lúdico na convivência com a ciência, com a pesquisa. Widmer
cita Quigley (1961): “O talento que os peritos têm para ver o que esperam ver
(...) tudo é demasiado importante para ser confiado a peritos profissionais”. E,
por essa via, nos fala da rarefeita presença do humor como categoria. Uma outra
1 O texto foi guardado pelo Coordenador da Mesa, o Prof. Miguel Angel Garcia Bordas, que com ele me presenteou
durante a pesquisa para o Doutorado sobre a Pedagogia de Ernst Widmer; ver LIMA (1999).
2 O filósofo era Ubirajara Rebouças (“Universidade e Comunidade”) e a geneticista era Eliane Azevedo (“Progresso
e crítica científica”). O ambiente era o de final da Ditadura, e a SBPC atuando como importante ator institucional para
a democratização. O tema geral da Mesa era “Senso crítico: conciliação entre Universidade e Realidade”, tema que,
claramente, buscava envolver a Universidade brasileira com a realidade social e política do País. Não espanta que, três anos
depois disso, ganhe corpo a campanha das “Diretas Já”.

137
O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE III - ANÁLISE MUSIC AL COMO DISCURSO CRÍTICO

faceta: a representação do lúdico no embate com a lógica discursiva (homo lo-


gem tripartite, o componente intermediário, o “distanciamento necessário”, tem
quens): semântica verbal versus semântica não verbal3.
um papel deveras importante. Produz o equilíbrio entre a natureza da alavanca, a
Sendo alavanca que permite a expansão da criatividade — uma imagem que natureza do ato crítico, e suas conseqüências desejáveis de expansão (por distan-
tem o seu humor próprio, basta pensar na multiplicação de críticos e de suas ala- ciamento), ou seja, de criação de um espaço, de um caminho (e não podemos es-
vancas —, a crítica não se circunscreve ao domínio do verbal. A crítica habita o quecer que caminho é método), implicando em aumento de escolhas possíveis e
universo da criação, e lá está sua origem, segundo o autor. Sendo assim, a crítica em aperfeiçoamento das escolhas realizadas de fato, maior relevância e necessida-
faz parte daquilo que ele denomina de trama, trama criativa, compositiva, aquilo de — pois só assim podemos esboçar um entendimento do papel da criatividade.
que “vem à tona na obra do artista”, trama paradoxal, nos diz Widmer, justapon-
Sobre o distanciamento, especialmente no modo discursivo, a referência fun-
do “fórmulas e experiência, rituais e prospecção, chavões e estalo” – Widmer
dante na modernidade é a inspiração kantiana, qual seja, a visão de “um tribunal
(1981)4. Mais adiante, dá ponto de arremate nessa questão: “Que haja também
que garanta a razão nas suas pretensões legítimas, mas condene as que não têm
crítica escrita, é apenas sinal do amadurecimento da vida cultural”. Ou seja, a crí-
fundamento” — Abbagnano (1982, p.207). Percebemos aí a ideia de distancia-
tica escrita, a semântica verbal, surge como culminância do processo compositivo.
mento como parte de um movimento reflexivo, a razão que julga a razão. O ato
Mas, que não haja equívoco. O processo de criação não deve ser pensado crítico, a alavanca, seria de natureza reflexiva. Uso esse pequeno ‘desvio’ filosófico
como habitando apenas o domínio da prática, e/ou utilizando-se apenas de re- para ilustrar como o elemento intermediário da imagem widmeriana (o distancia-
cursos da semântica não verbal. Na verdade, é um dos melhores exemplos de mento) acaba nos conduzindo a uma apreciação do gatilho de todo o processo,
entrelaçamento de teoria e prática, de sua inseparabilidade — Lima (2012). Mes- aquilo que estou chamando de ato crítico.
mo quando o resultado, a obra, se oferece como feito de semântica não verbal,
Mas a imagem widmeriana refere-se à crítica como dimensão da própria trama
a descrição dos passos para sua realização, das idas e vindas, da escolha de idéias,
criativa, e não como efeito de discurso. Cabe buscar um contexto onde isso possa
critérios, gestos, sistemas, métodos, processos e formas, revelará um diálogo inten-
ser apresentado de forma cristalina. Creio que uma boa opção é o caso de Bre-
so entre as práticas cristalizadas e acessadas sob a forma de teoria, e as práticas
cht, famoso pelo entrelaçamento de doutrina e dramaturgia, justamente a partir
emergentes, entre estratégias ditadas por regras ou por exemplos musicais5. Sen-
do conceito de distanciamento ou estranhamento, Verfremdungseffekte. Jameson
do assim, a crítica qua criação, a crítica como instância do processo de criação, nos
(1998, p.63) nos fala da possibilidade de uma “dramaturgia filosófica” em Brecht,
remete à qualidade desse diálogo, embate ou entrelaçamento.
e sendo assim, da possibilidade de que a crítica esteja no próprio tecido da obra,
Retorno ao cerne da imagem criada por Widmer, para melhor entender seus no âmbito da criação. O efeito-V, ou técnica de distanciamento-estranhamento, é
três componentes: a alavanca, o distanciamento necessário e a expansão da cria- muitas vezes descrito como a decisão de eliminar o Einfühlung, a empatia:
tividade. A imagem investe na idéia, de certa forma contra-hegemônica, de que
Aqui, o familiar ou habitual é (...) identificado com o ‘natural’, e seu estranha-
a crítica alimenta a criatividade, quanto mais crítica mais criatividade6. Nessa ima-
mento desvela aquela aparência, que sugere o imutável e eterno, e mostra que o
3 Estamos diante de um texto que se organiza em movimentos expressivos, onde há, por exemplo, um ‘Finale:
furioso’. Furioso com o quê? Ora, com a vulgarização da experiência cultural no capitalismo de circulação de produtos objeto é ‘histórico’ (...) feito ou construído por seres humanos, e assim, também
(MPB Shell). E, sendo assim, a indignação (expressiva) como tarefa crítica (e política), como importante atribuição do ato pode ser mudado por eles ou completamente substituído.
interpretativo. Como deveríamos cultivar a indignação no âmbito da análise crítica em nossos dias?
4 Creio que estamos diante de uma orientação que muito influenciou os destinos dos Seminários de Música da Avaliando a estratégia crítica assim elaborada, percebemos estar lidando com
UFBA, em sua dimensão formativa, curricular-vivencial: a consciência de que a visão crítica surge como parte dessa trama
que “vem à tona na obra do artista”, e que assim propicia a formação de um paradigma de qualidade — no caso, um atos críticos que enfatizam a desnaturalização do objeto, mostrando sua histo-
paradigma que a todos contaminou a partir da convivência dos anos 50 e 60, reverberando até os nossos dias.
ricidade.
5 Estou usando termos cunhados por Laske (1991).
6 De certa forma, remete ao pensamento de Stravinsky (1939, nas Conferências feitas em Harvard) sobre a
relação entre composição e limites — sem limites o compor se espedaça num vazio inútil.

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE III - ANÁLISE MUSIC AL COMO DISCURSO CRÍTICO

A que contextos no campo da Teoria da Música esse tipo de estratégia poderia Sabemos muito bem do incrível processo de diversificação de enfoques analíti-
remeter? Uma boa associação poderia ser estabelecida com o pensamento do cos construído nas últimas décadas, afastando-nos da monocultura do paradigma
compositor Herbert Brün sobre teoria da música, teoria do compor. Por exemplo, estrutural-organicista. Diversificação tão ampla que nos põe a refletir sobre o fu-
ao propor uma transmutação da tradicional questão analítica: “How does he do it?” turo desse universo, continuará se expandindo em campos e campos de literatura
em “How does he do (what)?” — “Como ele faz isso?” em “Como ele faz (o quê)?7”. analítica? Mais importante ainda: a que forças (políticas) responde? Estamos em
Estamos tratando aqui de uma desnaturalização do “it”, do “isso”, algo que exige transição de paradigma, em plena emergência de uma nova episteme? Dará ori-
um ato interpretativo preliminar (o que foi feito?) antes que a resposta do “como” gem a sínteses capazes de ancorar a diversidade recém-produzida? Há exemplos
possa ser elaborada. nas duas direções.
Há aí uma clara influência do distanciamento brechtiano, como atitude política Da direção da produção de sínteses já nos falava Nattiez através de suas ‘famílias
de acompanhamento do processo histórico de construção da significação musical, analíticas’ organizadas em torno de poiesis ou estesis. E mais: falava da diversifica-
e certamente ecos de Adorno, figuras com as quais Brün conviveu de perto. Falo ção como uma ampliação do ‘mercado’ de discursos/enfoques disponíveis. Então,
do Adorno que insistia na dialética entre material musical e sociedade, na histori- trata-se de um mercado — e devemos pensar na crítica como uma commodity?
cidade do material, mas também daquele que formalizou a noção de ‘Das Mehr’, De forma bem mais recente, o trabalho de Dora Hanninen (2012) — A Theory
justamente, o aporte interpretativo de cada investida analítica, para além do que of Music Analysis — envolvendo aspectos práticos, como a formação do objeto
está dado8. analítico, ou filosóficos, como os objetivos e propósitos da análise assim como os
A mesma técnica de desnaturalização se oferece como laboratório de atitude paradigmas de discurso, tudo isso apontando para três grandes domínios: o sôni-
crítica, dessa feita tomando por objeto a própria composição. Brün não aceita a co, o estrutural e o contextual.
formulação “O que é Composição?”, argumentando que a pergunta correta seria A reflexão sobre tipos de estratégia crítica parece relevante e adequada ao
“When is Composition?” — “Quando é Composição?”, Brün (1986). Essa transfor- presente momento. Depois de havermos esculpido a estratégia da desnaturali-
mação da pergunta rejeita que a lógica conceitual usada para perguntar por coisas, zação, mostrando como exemplifica um fazer crítico embutido na própria trama
por objetos que estão à nossa volta, seja usada no caso do compor. Não sendo criativa, sustentando, dessa forma, a perspectiva criada pela imagem desenhada
coisa, a Composição seria um tempo, um tempo de relações humanas, que resiste por Ernst Widmer, cabe-nos agora verificar a possibilidade de esboçar outras ca-
(ou não) à significação cristalizada, convencional. tegorias, buscando citar seus exemplos mais característicos.
Eis assim o cerne da questão a ser esboçada em nossa empreitada. A imagem Comecemos pelas práticas motívicas — refiro-me aqui aos atos composicio-
cunhada por Widmer, ela própria utilizada como uma espécie de alavanca para nais que engendram transformações e conexões motívicas, e não ao esforço de
refletir sobre tipos de atitude ou de estratégia crítica presentes no vasto cenário recuperá-los via análise. O investimento na criação de transformações motívicas
do compor e dos discursos sobre teoria da música em nossos dias — algo que é de natureza crítica, estabelece laços diferenciados de coerência e de sinergia,
também envolve o acompanhamento da ideia de distanciamento em diversos transforma o tecido musical, estabelece patamares de significação os mais diver-
contextos teórico-analíticos, da teoria do compor aos estudos sobre cognição sos, que podem ir da percepção de similaridade e de simetria até a ironia e o
em música. paradoxo. Dunsby (2007, p.914) registra, todavia, a firme resistência que a diver-
sidade das estratégias motívicas impõe a qualquer esforço de codificação. Talvez, a
7 Proposta que foi registrada nas notas de um Seminário de Teoria da Música realizado na década de 1980. melhor maneira de descrever a funcionalidade desse processo seja o reconheci-
8 Aspecto importante evocado por Kofi Agawu na polêmica com Susan McClary sob um novo “regime” para a
musicologia, em meados da década de 1990. O argumento defendia a especificidade do trabalho em teoria da música,
nem sempre contemplada pela ênfase no contexto propiciada pela ‘new musicology’.

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mento de um investimento na direção da organicidade.9 Do ponto de vista da Como ato crítico, a ideia de ímpeto remete a uma presença constante que se
poiesis, o ato crítico envolvido nas práticas motívicas aponta para a organicidade desdobra e amplia gradualmente com o processo de composição. O que temos
como força motriz. é organicidade12, inclusive bidirecional, envolvendo o que se compõe como ante-
Não posso deixar de mencionar aquilo que o trabalho analítico com a música cipação da forma, e o que se elabora como substância viva musical de cada mo-
de Brahms proporciona: o espanto de descobrir que toda a expressividade que mento. O confronto (e engate) entre essas duas direções é também de natureza
marca de forma tão característica a experiência auditiva (a superfície, diríamos a crítica13.
partir da paleta estruturalista) é organizada por relações de lógica derivativa (va- Mesmo tomando a criação motívica como exemplo paradigmático de organici-
riacional), gerando uma tensão interessante entre os dois universos. Trata-se de dade, não podemos esquecer que a literatura reúne inúmeros comentários sobre
uma lógica motívica, que, embora um tanto difícil de expor, tendo em vista a ma- a proximidade entre tradição motívica e serialismo—Epstein (1979). A organici-
leabilidade de suas “operações”, acompanha o processo de criação em todos os dade dos processos composicionais seriais é inquestionável. Porém se a direção
momentos. Ouve-se, assim, o resultado de um curioso paradoxo entre atmosferas cognitiva muda da criação para o esforço analítico, muda também a natureza da
expressivas aparentemente “livres” e desenho meticuloso de cada transformação estratégia. No caso, a descoberta de relações motívicas (ou seriais) numa deter-
oferecida. minada obra é mais da ordem do desvelamento.
A análise de todas as formações temáticas do Sexteto n.º 1 em Sib Maior reve- Provavelmente, o enfoque que melhor caracteriza a estratégia de desvelamen-
la esse artesanato precioso, e inclusive a organização de motivos em estruturas to é a análise schenkeriana, cuja natureza crítica está relacionada à capacidade de
recorrentes do tipo Grundgestalt. Em certos momentos, como a aproximação do estabelecer critérios (mais, ou menos, intuitivos) para a revelação de uma ordem
tema transicional na exposição do primeiro movimento, somos levados a pensar temporal distinta daquela projetada pela contiguidade dos eventos da experiên-
na hipótese de que aquele compor também é um diálogo com futuros analistas, cia musical, uma ordem estruturada em termos de redução e síntese (marcas do
uma espécie de chiste ou de ironia analítico-composicional. As relações entre aná- distanciamento construído). O mesmo poderia ser dito de aportes da teoria do
lise motívica e narrativa permanecem abertas e exigindo mais atenção. ritmo que absorvem o ideal da redução, como é o caso da proposta de Cooper
Obviamente, muitas outras coisas poderiam reivindicar abrigo no guarda-chuva e Meyer (1960).
da organicidade. Por exemplo, o conceito de ímpeto proposto por Roger Reynol- Também se relaciona com a estratégia de desvelamento o esforço analítico
ds (2002, p.8)10. É um conceito estratégico. Em foco, a existência de uma linha de empreendido a partir da teoria dos conjuntos, no caso, a identificação de conjun-
tempo que marca o processo de composição, e as comparações frequentes entre tos como unidades estruturais numa determinada obra14. O desvelamento pro-
as diversas versões do todo que evolve à luz de sementes gerativas usadas como porcionado pela teoria dos conjuntos é também produzido como síntese, mas
pontos de partida. Esse vai-e-vem é estratégia de ação crítica e é da ordem do ao invés da redução schenkeriana o que temos é a identificação de operações
distanciamento, permitindo correção, revisão, confirmação ou redirecionamento11. sistêmicas (basicamente transposição e inversão). A capacidade de sistematizar

9 Tudo isso remetendo à tradição do organicismo tal como comentada por Schönberg (que evoca Goethe), e
remetendo ainda à tradição secular de construção de coerência motívica na música Ocidental. e o cálculo da sensibilidade.
10 A small generative source or seed (...) the concentrated radiant essence out of which the whole can spring and 12 O cenário fica ainda mais interessante quando nos damos conta de que o conceito de ímpeto também resume
to which, once composition has begun, the evolving whole is continuously made responsive, even responsible. Uma pequena a bidirecionalidade da visão teórica de Reynolds — top-down ou bottom-up: The impetus acts, from formal heights, to guide
semente ou fonte generativa (…) essência concentrada e radiante da qual pode brotar o todo, e à qual, uma vez tendo sido the coherence of the whole while simultaneously driving the integrity of the accumulating detail.
iniciada a composição, o todo que se desenvolve pode continuamente ser vinculado. 13 Como o próprio compositor ‘confessa’, ele é dos que trabalha de cima para baixo, top-down, portanto. Ora, definir
11 É também da ordem da inseparabilidade da teoria e da prática, pois se o todo musical caminha em sua o nível de base, aquele do momento, do motivo e da célula, como “detalhe que vai se acumulando” não deixa de ser um
vocação de semântica não-verbal, o ato de avaliação que o remete continuamente aos pontos de partida envolve tanto o fraseado um tanto enviesado por essa perspectiva.
entrelaçamento de teoria e prática, tanto cálculo como sensibilidade. E isso em múltiplos sentidos: a sensibilidade do cálculo, 14 Menciono como paradigma a análise feita por Allen Forte da Opus 11 n.º 1 de Schönberg.

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passa a ser o traço dominante dessa atitude de desvelamento, gerando o distan- Vivendo entre as décadas de 60 e 80 fronteiras e transições entre modernismo
ciamento estrutural desejado. No caso da teoria dos contornos, a capacidade de e pós-modernismo (sonhando com o fim da celebração de um “desenvolvimento
sistematização permanece intacta, mas o distanciamento é alterado, pois o con- real” desde 1962), e, ao mesmo tempo, marcado em profundidade pela dinâmica
torno também é fenômeno de superfície — há aí um certo desinvestimento da plural da cultura baiana, Ernst Widmer descreveu a formação de compositores (e,
celebração do totem estruturalista, com ganhos inquestionáveis em audibilidade por tabela, o próprio compor) como uma função do equilíbrio dinâmico entre as
e em utilização compositiva. Sinal dos tempos? leis da organicidade e da relativização ou inclusividade. Tratava-se de uma escolha
Já quando tratamos da identificação de esquemas cognitivos — por exemplo, política, orientada por uma perspectiva Sul, celebrando a crítica como distancia-
a tendência de perceber agrupamentos de pontos (ou de ataques rítmicos) em mento e diversificação criativa.
termos da proximidade temporal ou espacial envolvida, ou então a possibilidade O desafio de tratar o investimento crítico-analítico como investimento de na-
de focalizar esquemas imagéticos tais como descritos recentemente por Brower tureza política, parece exigir uma discussão que vai além das fronteiras de cada
or Saslaw — a estratégia em questão é mais da ordem do mapeamento, no enfoque ou abordagem, na direção da construção de sínteses ou linhas de força,
sentido de entender modos de inserção dos sujeitos nas respectivas experiências. buscando revelar e entender os interesses humanos investidos em cada empreita-
Lendo o trabalho recente de Almén sobre teoria da narratividade em música, da, por exemplo, através da focalização da centralidade de conceitos como inter-
e em especial, o capítulo dedicado à análise da Sonata para piano em Sib (Op. pretação, ideologia ou emancipação — mas certamente ultrapassando uma visão
Posth.) de Schubert, percebemos que a estratégia crítica envolve uma espécie de um tanto positivista de que análise e criação musical seriam os duplos de ciência
deslocamento — dos eventos que constituem o tecido musical para formações e arte respectivamente. Percebemos, ao contrário, que essas duas tradições con-
de sentido que o interpretam como narrativas musicais. No caso específico, vamos vergem tanto no ato analítico como no ato composicional, pela via da construção
pouco a pouco sendo convencidos da presença dos atributos de uma tragédia. crítica, e isso está bem presente na imagem apresentada por Ernst Widmer em
1981.
O que dizer dos enfoques comparativos — a Cantométrica de Lomax, por
exemplo? O que dizer do ciclo composicional proposto por Laske, um fluxo con-
tínuo entre ideia, materiais, processos e obra? E como classificaríamos a análise Referências
harmônica herdada de Rameau, em termos de estratégica crítica — uma presença Abbagnano, Nicolas. 1982. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Ed. Mestre Jou.
compartilhada de organicidade e desvelamento? Perguntas a exigir uma continui- Agawu, Kofi. 1996. “Analyzing music under the new musicological regime”. MTO, v. 2.4. In:
dade da reflexão. http://www.mtosmt.or/issues/mto.96.2.4/mto.96.2.4.agawu.html. Acesso em 26 mar. 2012.
Brower, Candace. 2000. “A cognitive theory of musical meaning”. Journal of Music Theory 44
Com esse breve percurso, conseguimos esboçar um conjunto de estratégias
(2), p.323-379.
críticas capazes de gerar distanciamento e expansão do universo de escolhas
Almén, Byron. 2008. A Theory of Musical Narrative. Bloomington: Indiana University Press.
possíveis e realizadas: desnaturalização, organicidade, desvelamento, mapeamento
Brün, Herbert. 1986. My words and where i want them. Londres: Princelet.
e deslocamento. Talvez devamos pensar nessas atitudes como pontos de uma es-
Cooper, Grosvenor; Meyer, Leonard. 1960. The rhythmic structure of music. Chicago: Univer-
pécie de cartografia, onde os diversos enfoques poderiam ser localizados. sity of Chicago Press.
Não resta dúvida de que a formação do objeto analítico exige estratégias de Dunsby, Jonathan. 2002. “Thematic and motivic analysis”. The Cambridge History of Western
captação da atenção da comunidade de pesquisadores, e implica em escolhas Music Theory (Thomas Christensen, Ed.). Cambridge: Cambridge University Press.
políticas. Epstein, David. 1979. Beyond Orpheus: studies in musical structure. Cambridge: MIT Press,
1979.

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PERSPECTIVAS DE UM FORMALISMO
Forte, Allen. 1973. The structure of atonal music. New Haven: Yale University Press.
Hanninen, Dora. 2012. A Theory of Music Analysis. Rochester: University of Rochester Press.
Jameson, Fredric. 2013. Brecht e a questão do método. São Paulo: Cosac Naify.
Laske, Otto. 1991. “Toward an epistemology of composition”. Interface, Amsterdã: Sweta &
Zeitlinger. v. 20, n.3-4, p.235-269.
MUSICAL ENACIONISTA
Lima, Paulo Costa. 1999. O ensino de composição musical na Bahia. Salvador: Prêmio Fazcul- Marcos Nogueira
tura / Braskem.
______ . 2012. Teoria e prática do compor I: diálogos de invenção e ensino. Salvador: Edufba.
Lomax, Alan. 1976. Cantometrics: an approach to the anthropology of music. Berkeley: The 1. Introdução
University of Califórnia Press.
“Análise” enquanto processo de dissolução, de decomposição de um todo
Quigley, C. 1961. A evolução das civilizações. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura.
complexo em elementos constituintes é uma estratégia histórica de produção de
Reynolds, Roger. 2002. Form and method: composing music. New York: Routledge.
conhecimento em nossa cultura. Contudo a “análise musical” como procedimento
Saslaw, Janna. 1996. “Forces, containers, and paths: the role of body-derived image schemas
in the conceptualization of music”. Journal of Music Theory, v. 40, n.2, p. 217-243.
formal é uma prática Moderna, disseminada, sobretudo, a partir da maior facilida-
de que a prensa móvel proporcionou aos músicos de fazerem circular seus trata-
Stravinsky, Igor. 1942. Poética musical em 6 lições. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
dos sobre a organização do fluxo musical, ganhando grande impulso com Gioseffo
Widmer, Ernst. 1981. “Crítica e Criatividade em 6 movimentos”. Comunicação apresentada
à XXXIII Reunião Anual da SBPC no Simpósio sobre Universidade e Realidade: o papel do Zarlino (sobretudo com Le institutioni harmoniche, de 1558, e Dimonstrationi har-
senso crítico, Salvador, 5p. (Inédito). moniche, de 1571),Vincenzo Galilei (Dialogo della musica antica e della moderna, de
1581) e seus contemporâneos. Esses escritos e toda a sorte de desdobramentos
teóricos que se seguiram permearam toda a teoria iluminista da música e alcan-
çaram a “gramática das alturas” de Jean-Philippe Rameau (1722, 1726, 1737), que
consolidou essa tradição precursora do racionalismo no campo teórico da músi-
ca — tradição esta que alegava haver por trás dos efeitos emocionais da música
princípios racionais acessíveis à lógica humana.
Entretanto esse latente formalismo para a arte musical e o desenvolvimento
de suas técnicas de representação não superavam ainda a tensão hegemônica
entre os discursos empiristas da sensibilidade e os dogmatismos racionalistas. A
unidade entre esses dois domínios, que incluiria tanto os conteúdos da arte quan-
to o pensamento, só se tornaria possível a partir da terceira Crítica de Kant, que
propôs a superação dos conflitos entre “imaginação” e “razão”. Para essa estética
idealista kantiana a experiência do belo resulta da congruência entre as faculdades
cognitivas da imaginação e do entendimento. E neste contexto teórico, para que
algo se torne objeto de cognição é necessário que certos esquemas imaginativos
medeiem a aplicação dos “conceitos puros” (categorias) do entendimento (a “ra-
zão pura”) à experiência.

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Os princípios de um formalismo musical inaugural, todavia, só se tornariam metodológico que pode assumir caráter de finalidade, e cuja elaboração engendra
mais evidentes em meados dos oitocentos, com o célebre “manifesto” de Eduard modelos de investigação notavelmente complexos e originais. Estamos, portanto,
Hanslick (1854), que visou vincular a construção do sentido da obra musical ao diante do desenvolvimento de uma tecnologia de construção teórica em Música,
entendimento de sua forma. Ou seja, um formalismo musical que já se insinuara que em alguns casos transforma obras musicais em meros meios e contextos de
nas teses iluministas e em seus desdobramentos idealistas passava a tomar como validação metodológica.
princípio que o entendimento da música não deve ter origem em seu efeito, em Enfim, se os primeiros modernos estavam em busca de uma chave para a co-
seus pretensos conteúdos, tais como sentimentos por ela expressados ou ideias erência do “discurso” musical — fosse ela espelho de uma física natural dos sons,
externas à música e por esta aludidas. O conceito de música como “forma au- da transposição para as figuras musicais de regras da retórica discursiva, ou de
tônoma” pressuporia então que seu sentido deveria ser inferido num domínio outro sistema que garantisse a composição do texto musical expresso por uma
“puramente musical”: a música seria, antes de tudo, uma estrutura objetiva. Em estrutura autônoma —, para a teoria moderna da música nunca esteve em evidên-
seu ensaio, Hanslick, à época ainda um modesto crítico musical, não deixou de cia o “como” percebemos coerência no texto sonoro da música e conceituamos
salientar o papel da sensibilidade no entendimento musical, mas atacou a “esté- essa experiência, mas, simplesmente, o “que” percebemos. No presente traba-
tica do sentimento”, segundo ele dominante na crítica musical daquele período, lho, desejo evidenciar a relevância da recuperação da questão acerca do “como”
distinguindo claramente “sensação” (enquanto percepção de qualidades sensíveis conceituamos a música no ato da escuta, que não foi examinada pela estética de
da música) de “sentimento” (enquanto estado psicológico). Para este formalismo Baumgarten (1735/2003, 1750/2003) e Kant (1790), nem mesmo considerada
musical de fundo fortemente idealista não são os sentimentos que levam ao co- pela estética formalista de Hanslick e seus seguidores, como Edmund Gurney
nhecimento musical, mas sim a imaginação, que regula o processo cognitivo entre (1882) e outros. Discuto uma construção crítica da obra musical que procura
o sensível da música e seu entendimento. Assim, do ponto de vista dos formalistas recuperar sua experiência imediata, os efeitos e sentidos produzidos no ato de
emergentes a sobreposição do valor da forma sensível ao valor dos “conteúdos” escuta e comumente negligenciados em parte significativa da produção em Te-
da música corrigiria o que entendiam ser uma inadequação do projeto semântico oria e Análise Musical. Para tanto, proponho (1) adotar conceitos concernentes
musical então vigente, que vinha sendo corroborado pela crítica musical da pri- à corrente “enacionista” das ciências cognitivas contemporâneas na constituição
meira escola romântica europeia (Nogueira 2009, 2010b). de um modelo metodológico de abordagem da forma musical enquanto “sistema
O formalismo musical, pois, inscrevendo-se no domínio da crítica formalista em semântico”, e (2) discutir as condições de validade deste modelo como discurso
geral, procurava se voltar para aquilo que está estritamente contido na obra, suas crítico musical.
técnicas inerentes, prescindindo da discussão acerca das motivações estilísticas da
obra ou das intenções expressivas de seu autor, além de minimizar a relevância
2. Da psicologia da forma ao sentido incorporado
dos contextos histórico-social e cultural dos atos de escuta. Hanslick claramente
se esforça para revisar a estética musical, a partir da ênfase que dá a uma “mate- Reivindicando, tal como Hanslick, uma fundamentação científica para a percep-
rialidade” da música. No terceiro capítulo de seu ensaio, explica que o material ção estética da música e para o exame da origem do sentido musical, saliento o
da música são os próprios sons e suas possibilidades intrínsecas de se combinar importante papel contributivo da psicologia cognitiva para os desdobramentos
em estruturas. E desde então, uma análise musical enquanto disciplina operativa do formalismo musical, desde o final dos oitocentos e, sobretudo, a partir da
do formalismo deu ênfase aos aspectos crítico e teórico da música, passando, em psicologia da forma das primeiras décadas do século xx. Contudo, somente com
seguida, a oscilar para o campo da pedagogia da composição musical, até alcançar, a emergência da pesquisa em “cognição incorporada” (uma ciência cognitiva di-
na segunda metade do século xx, a condição de “prática autônoma”, um exercício nâmica) é que definitivamente se tornou possível construir uma fundamentação

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mais adequada para o desenvolvimento do que tenho tratado como semântica do Desse modo, no contexto teórico não objetivista da ciência cognitiva incor-
entendimento musical. Esse referencial teórico-metodológico pôde, enfim, superar porada a razão usa e se constitui a partir das capacidades sensório-motoras do
o paradigma que ainda colocava o conhecimento na condição de representações corpo humano. Aqui o dualismo cartesiano renovado pelos idealistas não é ve-
que o cérebro faz de um mundo predeterminado observado pelo indivíduo. Em rificável: a razão surge do corpo, não o transcende, e por isso não pode ser au-
vez disso, o processo cognitivo implicaria a construção de um mundo, e essa tônoma como propôs Kant. E se a razão é formada pelo corpo e por sua ação
construção dá-se por meio de interações dinâmicas do indivíduo com um mundo no mundo, é estritamente restringida pelos limites do nosso sistema conceitual.
a ele congruente — indivíduo e mundo se constroem mutuamente. Portanto, na Portanto, se para a teoria objetivista o sentido era uma relação abstrata entre
abordagem enacionista a cognição não é uma mera representação de mundo representações simbólicas e realidade objetiva, no paradigma da ciência cognitiva
em nossas mentes, mas resulta de nossa interação com ele. É neste sentido que dinâmica sentido é uma questão de entendimento, envolvendo tanto esquemas
a mente é incorporada e não uma instância abstrata separada do corpo (Gibson de imagem e suas projeções metafóricas quanto proposições. A complexa rede
1979; Maturana e Varela 1980; Lakoff e Johnson 1980, 1999; Johnson 1987; Varela, de contribuições das ciências cognitivas de base enacionista vem demonstrando
Thompson, e Rosch 1991/1993; Anderson 2003; Gibbs, Lima, e Francozo 2004). que a experiência é o lugar de toda unidade cognitiva e a percepção é o princípio
“Representação” implica atividade simbólica, um tipo de atividade que se en- de toda experiência. Perceber é um modo de atuar; a percepção é uma simulação
contra no centro de nossas experiências semânticas e sintáticas. Por isso, é fácil interior da ação e um exercício de antecipação dos efeitos da ação. No âmbito
pensar que se o cérebro pode repetir uma performance, então representa. Para enacionista (ou atuacionista), portanto, “percepção” é algo que “fazemos” ativa e
a neurociência, no entanto, como verificamos no trabalho de Edelman e Tononi decididamente num mundo que se nos apresenta disponível, no qual somos capa-
(2000), não há mensagem pré-codificada no sinal e por essa razão — entre outras zes de nos movimentar corporalmente e assim interagir com ele.
— a memória no cérebro não pode ser representacional. É, de outro modo, um Assim sendo, à luz deste paradigma contemporâneo é plausível investigar os
reflexo de como o cérebro muda sua dinâmica, de modo a permitir a repetição de fundamentos idealistas que embasaram o sistema formalista original da Musico-
uma performance. Assim, a memória não representacional resulta do jogo seletivo logia, a fim de conhecer as potencialidades desse sistema numa ótica distinta
que ocorre entre as atividades neuronais, os vários sinais recebidos do mundo, o daquela sob a qual vem sendo abordado e atualizado desde então, mas principal-
corpo e o cérebro propriamente. As alterações sinápticas que se seguem afetam mente a fim de revelar as lacunas deixadas por suas abordagens tradicionais, que
as futuras respostas do cérebro particular para sinais semelhantes ou distintos. Es- o mantiveram restrito à prática descritiva de uma sintaxe da obra musical.
sas mudanças, enfim, refletem-se na habilidade para repetir um ato mental “depois Pesquisas seminais como as de Eleanor Rosch (1978) e de Carolyn Mervis e
de algum tempo”, apesar de uma mudança de contexto, por exemplo, ao recu- E. Rosch (1981) sobre categorização, as inúmeras contribuições da psicologia cog-
perar uma imagem. A ênfase dada aqui à repetição “depois de algum tempo” está nitiva, sobretudo a partir do conceito de affordances de James J. Gibson (1979),
relacionada à habilidade característica da memória em recriar um ato separado alcançando os recentes desenvolvimentos das teorias da memória e da atenção
por certa duração do sinal original. E ao sublinharem a “mudança de contexto” os como em Harold Pashler (1999), as teorias cognitivas da metáfora desenvolvidas
autores demonstram estar atentos para uma propriedade essencial da memória em textos referenciais de George Lakoff e Mark Johnson (1979/1993, 1980, 1987,
no cérebro: a recategorização construtiva empreendida durante a experiência, mais 1990), de Michael Reddy (1979/1993), de Christopher Johnson (1997), de Joseph
do que a pura replicação de uma prévia sequência de eventos. A memória é, pois, Grady (1998, 2005) e de Zoltan Kövecses (2002), a linguística cognitiva de Gilles
associativa, inexata e capaz de uma notável generalização — tudo o que o arma- Fauconnier (1985, 1999) e de Eve Sweetzer (1990), a filosofia cognitiva de Ray-
zenamento replicativo de um computador não é. mond Gibbs (1994, 1999, 2006) e de George Lakoff e Mark Johnson (1999), assim

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE III - ANÁLISE MUSIC AL COMO DISCURSO CRÍTICO

como os progressos da neurofisiologia, como em Gerald Edelman (1992, 2000), modo as experiências subjetivas comuns seriam assim conceituadas em termos
Antonio Damasio (1994, 1999) ou Albert Bregman (1990/1999) já constituem, metafóricos e, provavelmente, nenhuma metáfora poderia ser compreendida ou
há cerca de quatro décadas, um quadro especialmente promissor em relação à adequadamente representada prescindindo de uma base experiencial (o conjunto
fundamentação da pesquisa em semântica cognitiva e que passa a tornar possível de experiências sensório-motoras que a regula).
o desenvolvimento de uma semântica da experiência musical. Nesse contexto, a A metáfora “mais é para cima”, por exemplo, cunhada a partir de experiências
experiência comum — que envolve nossos corpos, nossas capacidades inatas e objetivas com a materialidade do mundo que nos cerca, possui mais tipos dife-
nossa maneira de funcionar como parte de um mundo real — é a motivadora rentes de bases experienciais do que a metáfora “feliz é para cima”, originada na
daquilo que é significativo no pensamento humano. experiência íntima de abstração. Embora o conceito “para cima” seja o mesmo
Nos anos 1980, a semântica cognitiva passou a desenvolver outro viés teórico nas duas metáforas, as experiências nas quais as metáforas de “para cima” são
do processo de categorização, a partir da recuperação da acepção kantiana para baseadas são muito diferentes. Não é que haja muitos “para cima” diferentes; a
o termo “esquema”, entendidos como estruturas não proposicionais da imaginação verticalidade é que entra em nossa experiência de muitas maneiras diferentes e
— padrões incorporados de experiências, tais como movimentos corporais e in- assim dá origem a muitas metáforas diferentes, resultantes de transferências, de
terações perceptivas. George Lakoff e Mark Johnson observaram, em seu célebre projeções entre domínios de experiência: o atual e outro ou outros referidos
Metaphors we live by (1980), que ao conceituarmos as categorias, habitualmente por algum tipo de correspondência. A essas associações por modos diversos de
as imaginamos em termos espaciais, como se possuíssem um interior, um exterior similaridade e correspondência Joseph Grady (1998) atribuiu o termo metáfora
e uma moldura. Conceitos de relações espaciais constituiriam assim o coração do primária, uma estrutura mínima que surge natural e inconscientemente na experi-
nosso sistema conceitual: são o que faz sentido do espaço para nós. Esses concei- ência cotidiana por meio de fusão — alguns exemplos são “importante é grande”,
tos caracterizam a forma espacial e definem a inferência espacial, mas não existem “mais é para cima”, “similaridade é proximidade”, “tempo é movimento”, “estados
como entidades no mundo externo, no mundo dos objetos físicos. Propondo são localizações”, “causa é força física” ou “ver é tocar”. Em Philosophy in the flesh
uma acepção particular para o termo esquema, Mark Johnson (1987/1990) o (1999), Lakoff e Johnson explicam que
entende como estrutura mental essencialmente incorporada, que vigora num Sempre que um domínio de experiência ou julgamento subjetivos é coativado regu-
continuum e que opera em nossos atos perceptivos, em nosso movimento no larmente com um domínio sensório-motor, conexões neurais permanentes são estabe-
espaço ou na manipulação dos objetos que nos rodeiam. Nesse contexto, por- lecidas por mudanças sinápticas relevantes. Essas conexões, que formamos inconscien-
tanto, mecanismos sensório-motores inatos estruturam nossa experiência, tanto temente aos milhares, proveem estrutura inferencial e experiência qualitativa ativadas
quando fazemos juízos subjetivos sobre coisas abstratas — como de similaridade, no sistema sensório-motor para os domínios subjetivos com os quais estão associadas.
de dificuldade ou de importância — como quando temos experiências subjetivas Nosso extraordinário sistema conceitual metafórico é assim construído por um pro-
como as de desejo ou afeto. E quanto mais complexas forem essas experiências, cesso de seleção neural. Cer tas conexões neurais entre as redes de domínios-fonte e
mais ricos serão os modos de conceituá-las a partir de outros domínios de expe- domínios-alvo ativados são, em princípio, randomicamente estabelecidas e então têm
riência e de conceitos destes consequentes e subjacentes, sobretudo de domínios sua relevância sináptica ampliada por meio de sua recorrente ativação. Quanto mais
sensório-motores. Para Lakoff e Johnson, o mecanismo cognitivo que faz essa vezes essas conexões são ativadas, mais aumenta sua relevância, até que conexões
permanentes sejam estabelecidas. (Lakoff e Johnson 1999, 57)1
operação é aquilo que denominaram metáfora conceitual, isto é, o dispositivo que
permite que um esquema de imagem (uma estrutura mental primária de memó- 1 Tradução livre de: Whenever a domain of subjective experience or judgment is coactivated regularly with a sensorimotor
domain, permanent neural connections are established via synaptic weight changes. Those connections, which you have
ria) próprio de um dado domínio sensório-motor — um domínio-fonte — seja unconsciously formed by the thousands, provide inferential structure and qualitative experience activated in the sensorimotor
usado por projeção em domínios da experiência subjetiva — domínios-alvo. Desse system to the subjective domains they are associated with. Our enormous metaphoric conceptual system is thus built up
by a process of neural selection. Certain neural connections between the activated source- and target-domain networks are
randomly established at first and then have their synaptic weights increases through their recurrent firing. The more times

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Assim sendo, o processamento semântico, numa perspectiva neural, ocorre o modo de descrição mais preciso daquilo que ouvimos quando ouvimos sons
por meio de conexões neurais aprendidas por coativação regular. Em virtude como música, quando os imaginamos como forma.
de muitos de nossos conceitos, como os sentimentos ou o tempo, serem abs- No contexto das ciências da mente incorporada o real é formado por padrões
tratos e pouco claros em nossa experiência, tentamos apreendê-los através de do nosso movimento corporal — nossa orientação espacial e temporal — e pelas
outros conceitos que entendemos em termos mais claros, tais como orientações formas da nossa interação com os objetos.Tanto nosso movimento corporal quan-
espaciais ou objetos. Enfim, essas projeções metafóricas desempenham um papel to nosso acionamento de objetos e todo tipo de interação perceptiva envolvem
crucial no modo como conceituamos nossa experiência e a comunicamos. A padrões recorrentes indispensáveis para a compreensibilidade das experiências.
maior evidência do funcionamento metafórico do nosso sistema conceitual vem Tais padrões — esquemas de imagem —, resultantes de altas taxas de repetição
da linguagem, mas a questão aqui não é o que significamos com palavras e frases, de experiências específicas, funcionam, em princípio, como estruturas abstratas
e sim como entendemos nossas experiências — assim como devo aqui salientar, de imagem não proposicionais, isto é, constituídas, primeiramente, em um nível
mais uma vez: o que o presente trabalho põe em discussão não é o que a música de entendimento anterior à condição de conceito. Quando tentamos entender
significa ou o que desejamos expressar por meio dela (tanto em termos intrinse- nossa experiência, ou seja, a cada ato de conceituação essas estruturas gestálticas
camente musicais quanto em termos extramusicais), mas como produzimos senti- desempenham um papel central. Embora um dado esquema de imagem consti-
do na experiência da música. tua-se, sobretudo, como estrutura mental que emerge de interações corporais,
Portanto, a linguagem fornece elementos que conduzem aos princípios gerais é também o dispositivo regulador em torno do qual o sentido é organizado em
do entendimento, e esses princípios, segundo demonstrou a linguística cognitiva, níveis de cognição mais abstratos. Aprendemos a produzir sentidos das nossas
têm muitas vezes natureza metafórica, envolvendo o entendimento de um tipo de experiências de um mundo circundante e, sobretudo, das experiências repetitivas,
experiência em termos de outro tipo de experiência. E isso sugere que o nosso relacionando os fenômenos por causa, efeito, trajetória, força, energia, equilíbrio,
entendimento sucede não em termos de conceitos isolados, mas em termos de segundo nossa própria condição de interação com o mundo. Enfim, se aprende-
domínios cruzados de experiência. Assim, diferentes sentidos de um dado conceito, mos algo com essas experiências, se adquirimos conhecimento nessa interação,
tal como “equilíbrio”, por exemplo, estariam conectados por extensões metafóri- essa aquisição resulta na constituição de esquemas de imagem que fertilizarão,
cas do esquema de equilíbrio. Existe um esquema — uma estrutura pré-conceitual por transferências de sentidos projetados metaforicamente, novos aprendizados,
— que pertence ao equilíbrio em nossos corpos e ao sentido de equilíbrio em incluindo aqueles que têm origem não nas ações sensório-motoras do corpo,
um grande número de domínios abstratos de nossa experiência, tais como, por mas na produção dos conceitos abstratos, contexto no qual produzimos nossas
exemplo, os estados psicológicos ou a experiência musical. As inúmeras metáforas descrições da música.
de movimento que empregamos para descrever nossa experiência da música en-
volvem tanto a intenção de tomar como objeto o som que percebemos quanto 3. Investigando as bases de um formalismo
algo que não é som, mas um movimento, uma animação que “ouvimos” no som,
musical cognitivo
e que se situa num espaço fenomênico. Assim sendo, podemos entender que as
metáforas de movimento musical constituem um “resíduo fenomênico” de nossa Diante do exposto, é possível vislumbrar que este quadro conceitual oferece
experiência espacial. É importante, no entanto, enfatizar que recorrer a metáforas fundamentação singular para o desenvolvimento de uma semântica cognitiva da
para descrever a experiência musical não é assumir que a música tem origem música, projeto que somente começou a ganhar visibilidade com as primeiras
em projeções metafóricas. Usamos metáforas, porque entendemos constituírem publicações de Lawrence Zbikowski (1995, 1997, 1999, 2000, 2002), Candace
Brower (2000) e do próprio Mark Johnson (1998) e dele com Steve Larson
those connections are activated, the more the weights are increased, until permanent connections are forged.

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(2003). Quero apresentar aqui a fundamentação teórica do programa de estudos tensões figurativas” desses elementos, configurados de modo variado em cada
que venho desenvolvendo desde O ato da escuta e a semântica do entendimento esquema de imagem, toma a forma de projeções metafóricas, da esfera das inte-
musical (Nogueira 2004), considerando o notável potencial da teoria da metáfora rações do corpo com a fisicidade do meio para o chamado processo intelectual.
conceitual para o entendimento incorporado da música “tonal” ocidental — aqui Projetar um esquema constituído num dado domínio de experiência, sobretudo
entendida como o repertório tradicional constituído a partir de qualquer proce- domínios da experiência sensório-motora (domínios-fonte), para outro domínio
dimento formal de organização harmônica dos sons (notas). Mas advirto também de experiência (um domínio-alvo), sobretudo domínios de experiência com o abs-
para a pertinência de seu emprego na abordagem teórica da música “inarmônica” trato — tal como se dá na experiência da música —, implica operar padrões de
(desprovida de conteúdos harmônicos) ou no repertório tonal mais radicalmen- inferência entre domínios.
te texturalista, cujo conteúdo harmônico é estrategicamente velado em favor da Atada a uma dada estrutura recorrente de experiência há uma lógica da ex-
escuta de outros recursos expressivos do fluxo musical. A presente discussão periência. Retomando o exemplo do esquema de “equilíbrio” já citado, podemos
enfoca especialmente a música aqui denominada “tonal”, para cujo entendimento reconhecer algumas propriedades de sua estrutura interna: a reflexão, que implica
estão em jogo, sobremaneira, os esquemas de contenção, graduação, equilíbrio, cen- paralelismo, e a simetria, que envolve proporcionalidade espacial e de forças em
tralidade, caminho, ciclo, bloqueio, superfície, atração, ligação, fusão, todos incluídos torno de um fulcro ou eixo vertical. Temos uma variedade de experiências orga-
entre os mais predominantes esquemas de imagem empregados por todos na nizadas por um único esquema, como o de equilíbrio, umas mais explicitamente
experiência da vida prática. Em seu The body in the mind (1987/1990), Mark John- relacionadas à propriedade de reflexão, outras à simetria. Entretanto, todas essas
son descreve o uso que dá ao termo esquema, esquema de imagem ou mesmo experiências serão conceituadas a partir do mesmo padrão dinâmico denomi-
esquema incorporado: “não são imagens ricas e concretas, nem tampouco figuras nado esquema de imagem de equilíbrio, que regula a projeção de sentidos entre
mentais. São estruturas que organizam nossas representações mentais num nível domínios e possibilitará, originando-se no entendimento de equilíbrio corporal, a
mais geral e abstrato que aquele em que formamos imagens mentais particu- inferência de novos conceitos como o matemático de “igualdade de valores”, o
lares” (Johnson 1990, 23–4)2. Ou seja, esquemas são padrões de memória de psicológico de “estabilidade emocional” ou o musical de “integridade formal”.
experiências recorrentes que usamos para organizar essas experiências, a fim de
“Entendimento”, neste campo conceitual, diz do modo de termos um mun-
entendê-las e reconhecê-las. São recursos mentais de categorização primordiais
do, um modo de ser no mundo ou, nas palavras de Johnson, “o modo pelo qual
com os quais construímos ordem, mas embora originados da padronização de
experimentamos nosso mundo como uma realidade compreensível” (Johnson
experiências, não devem ser entendidos como modelos fixos, pois é sua dinâmica
1987/1990, 102)3. Por isso os produtos de nossos atos de intelecção mais abs-
fluidez que permite operarem em um nível de organização mental que emerge
tratos são simplesmente extensões dessa condição primordial. E a metáfora “en-
entre uma imagem concreta particular e uma estrutura conceitual abstrata.
tendimento é visão” vem sendo abordada pela ciência cognitiva como principal
Elementos básicos de nossa experiência corporal estão refletidos, de um modo via de conceituação da atividade intelectual. A linguista Eve Sweetzer discutiu o
ou de outro, cada um por si com maior ou menor ênfase, em todos os esquemas processo de entendimento metafórico básico em seu From etymology to pragma-
acima referidos: a espacialidade (que implica delimitação), a temporalidade (que tics: Metaphorical and cultural aspects of semantic structure (1990), sugerindo que
implica ciclicidade), a força (que implica relação de estabilidade e instabilidade) e há um volume incomparável de bases experienciais para o emparelhamento das
o movimento (que combina os anteriores, implicando ainda vetorialidade). “Ex- propriedades de atos de visão e atos de intelecção. Isto é um forte argumento
para justificar o predomínio da visão como nossa base experiencial primária, a
2 Tradução livre de: image schemata are not rich, concrete images or mental pictures, either. They are structures that
organize our mental representations at a level more general and abstract than that at which we form particular mental
images. 3 Tradução livre de: the way we experience our world as a comprehensible reality.

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fonte primordial de dados sobre o mundo, desde a primeira infância — e, portan- (cross-domain mappings) de um domínio-fonte (sensório-motor) para um do-
to, desempenha papel central em nossa produção de conhecimento. Isso faz des- mínio-alvo (de experiência subjetiva). Mapeamento é um conceito desenvolvido
se fenômeno perceptivo a base metafórica mais essencial para os atos reflexivos, pela psicologia cognitiva e cumpre uma dupla função no contexto da semântica
superando notavelmente a participação de bases experienciais advindas de outras cognitiva aqui discutida: primeiramente, (1) oferece uma explicação do modo
vias sensoriais. Numa exploração notavelmente original da experiência humana como conectamos conceitos abstratos — como os empregados na descrição dos
do som, em Sound, speech, and music (1990), David Burrows também discutia os nossos sentidos da experiência da música — com conceitos de outros domínios
contrastes fenomênicos entre as experiências visuais e auditivas, e advertiu para a (sobretudo sensório-motores); e, num segundo estágio, (2) fundamenta nossas
condição do som, como objeto de audição, de ser menos atado ao domínio mate- descrições da experiência subjetiva — incluindo a percepção dos eventos musi-
rial do que os objetos da visão, pois estes possuem um sentido de solidez, clareza cais —, comumente difíceis de conceituar, em termos mais concretos e comuni-
e objetividade, características essencialmente ausentes na experiência auditiva. cáveis, tais como os conceitos usuais da experiência espacial ou gestual. Trata-se
Ou seja, a visão diz mais respeito a coisas e objetos, enquanto a audição é mais de um sistema de correlações entre domínios, explicitado pelo cruzamento de
interior e se volta mais para processos que para coisas propriamente. Burrows múltiplas correspondências entre atributos de cada um dos domínios mapeados.
frisou que por isso separação e distância caracterizam a experiência visual — um A Figura 1 apresenta um complexo conjunto de mapeamentos, a partir da me-
processo que envolve uma ação corporal externa —, enquanto a experiência táfora “tempos são objetos em movimento”, que fundamenta uma estratégia de
auditiva é conectada e permanece difusa em sua insuperável complexidade. Por conceituação de eventos musicais como objetos que se movem em direção a um
essas razões podemos admitir que a materialidade e a objetividade intrínsecas à ouvinte estacionário e por este passam.
experiência visual tornam-na o domínio predominante de constituição de nossos Domínio-fonte: Domínio-alvo:
principais esquemas de imagem. movimento físico movimento musical

A teoria do sentido incorporado de Johnson não estaria ainda completa sem Objeto físico
Movimento físico
à Evento musical
Movimento musical
à
uma investigação acerca do dispositivo que dispara a projeção metafórica, isto Velocidade do movimento à Andamento
Localização do observador à Evento musical atual
é, a fertilização semântica de um domínio por outro domínio. A questão central Objetos à frente do observador à Eventos musicais futuros
Objetos atrás do observador à Eventos musicais já experimentados
aqui é: por que certos domínios-fonte são mapeados para certos domínios-alvo? Trajetória do movimento à Figura/contorno (tal como o melódico)
E a questão subjacente é: quais induções (constraints) regulam a natureza desse Ponto de partida e de chegada
Interrupções temporárias do movimento
à
à
Evento inicial e final da figura
Silêncios e cesuras
mapeamento metafórico? É necessário, pois, explicar como projeções metafóricas Retorno a uma trajetória já percorrida
Forças externas influentes
à Recapitulação, repetição de figuras
Polarização, agrupação
à
específicas são disparadas e induzem relações de sentido e padrões de inferência.
Para isso a estratégia proposta pela teoria de Johnson é a investigação das estru- Figura 1: Mapeamento da metáfora “música são objetos em movimento”

turas internas dos esquemas de imagem em que se baseiam aquelas projeções e De fato o conceito que permeia toda a experiência do sentido musical é o de
então determinar por que um determinado mapeamento de domínio-fonte para movimento, algo que os usuários de música normalmente reconhecem fácil e es-
domínio-alvo ocorre do modo como ocorre. As conexões neuronais se esten- pontaneamente em seu engajamento com a música. Contudo não parece simples
dem de um lado a outro do cérebro entre as áreas dedicadas às experiências explicar como a música se move, o que se move nos sons da música ou como
sensório-motoras e as áreas dedicadas às experiências subjetivas. Como discutido ela nos move. O que tenho tentado salientar até aqui é que a estrutura lógica de
acima, a maior densidade inferencial dos domínios sensório-motores assimetri- certas metáforas regula nosso entendimento de movimento musical, induzindo
zam a metáfora conceitual, estabelecendo uma direção única para o fluxo das nossas inferências de movimento no ato da escuta de uma obra musical — assim
inferências. Neste âmbito conceitual metáforas são mapeamentos entre domínios como em nosso engajamento em qualquer “cena auditiva”. A teoria da metáfora

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conceitual nos permite supor que há forte possibilidade de o nosso entendimen- música se nos apresenta em graus diferenciados de precisão. Como os limites
to de movimento em música — e assim do nosso entendimento musical, em entre seções do fluxo musical correspondem a pontos de mudança, o que esta-
geral — ser inteiramente metafórico. O atributo de movimento que dispara as belece a coerência interna dos segmentos é sua relativa constância paramétrica.
projeções metafóricas na inferência de movimento musical é a mudança de estado Por isso, enquanto a configuração de uma seção ou segmento particular da obra
do fluxo sonoro da música, um processo conceituado a partir de uma sequência se mantém — segundo a sintaxe estabelecida — num relativo grau de constância,
simples ou complexa de estados distintos do meio sonoro-musical (Nogueira o limite formal é adiado.
2004, 2010a, 2011, 2014): Todavia a questão que precisa ser aqui enfatizada é que como em qualquer ex-
No curso da história do conceito de movimento em música já se supôs que ele periência, mas, sobretudo, em domínios subjetivos, há uma permanente concomi-
fosse algo ideal (um movimento cuja única realidade está na esfera mental); outros ar- tância de inferências, seja com maior ou menor intensidade. Como o fluxo sonoro
gumentaram que o movimento musical é um movimento puro, um movimento no qual na música “tonal” ocidental constitui-se, normalmente, com certa complexidade,
nada se move, sendo por isso o movimento mais real, manifesto como é em si. Outro resultante da concorrência de eventos “em camadas” (subfluxos), cada um desses
argumento é de que a espacialidade musical é mera aparência e não se assemelha à componentes texturais pode fluir — e é comum que assim ocorra — com maior
espacialidade visual. Tudo que constitui espaço como uma moldura na qual objetos são autonomia e dissociação com os demais. Essa condição pode, em maior ou menor
situados como ocupantes está ausente do continuum sonoro musical; por isso, a ideia grau, resultar, por exemplo, em ausência de recorrências texturais significativas e
de movimento em música tornava-se paradoxal: como podemos falar de movimento
apreensíveis, dificultando ou confundindo sobremodo a ativação dos processos
quando nada se move? Espaço musical e movimento musical não são análogos de espa-
cognitivos de agrupação (por meio de projeções de esquemas como os de con-
ço e movimento do mundo físico; mas quando experimentamos, por exemplo, o “subir”
tenção, atração, fusão e bloqueio), de direção (por meio de projeções de esquemas
e o “descer” em música, podemos pensar em metáforas espaciais necessárias, podemos
como os de caminho, bloqueio, ligação e graduação) ou de completamento (por
dizer até mesmo que, se estamos ouvindo sons como música, se torna necessário que
meio de projeções dos esquemas de equilíbrio, centralidade, bloqueio e ciclo), in-
“ouçamos” movimento. Não há espaço real para sons, mas há um espaço fenomênico
de sons musicais, mesmo que não possamos avançar desse espaço fenomênico para
ferências projetivas basilares — como outras tantas mais e menos associadas a
uma ordem espacial objetiva. (Nogueira 2004, 121–22) estas — para a constituição dos sentidos nos vários níveis da organização formal.
Assim sendo, defendo a hipótese de que tudo que compositores, intérpretes e
Donde a música é estruturada de modo que parte dos seus aspectos sono-
quaisquer ouvintes fazem ao executar imaginativamente a música que experimen-
ros mantém sua configuração numa faixa de similaridade por certo período de
tam é hierarquizar suas múltiplas inferências concomitantes.
tempo — estabelecendo ausência de movimento relevante com respeito a tais
aspectos. Ou seja, durante este período o fluxo musical não apresenta mudanças Na experiência da música obra e ouvinte regulam-se mutuamente, embora seja
significativas de estado, até que em dado momento alguns dos parâmetros sono- parte do trabalho de intérpretes e compositores, enquanto ouvintes, empregar
ros sofrem mudanças mais sensíveis, estabelecendo contraste e nova expressão. intencionalmente estratégias que entendam favorecer este ou aquele sentido do
Tais mudanças podem assumir relevância maior ou menor, dependendo do que texto musical no ato da escuta. O programa formalista cujos fundamentos estão
é estabelecido, no decorrer da própria obra musical, como o “normal” da sintaxe dispostos no presente trabalho encontra-se assim diante de um duplo desafio: (1)
em questão. Esses pontos de mudança comumente multiparamétrica são limites investigar a coleção de inferências musicais relacionadas a um mesmo esquema
formais, e nesse estágio de reconhecimento da forma musical é que se concentra de imagem e a consequente condição de validade desse processo de isolamento
a mais complexa ação dos nossos mecanismos metafóricos. É necessário advertir de esquemas para a abordagem de sentidos musicais específicos; e (2) investigar
que como em qualquer outra experiência de limite, o seccionamento formal da a confluência de inferências projetivas envolvidas na constituição dos sentidos

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musicais, enfatizando os modos de seleção e hierarquização desses sentidos no Referências


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Gostaria ainda de ressaltar que a primeira das contribuições que o conjunto con- ______. 1750/1993. Estética: a lógica da arte e do poema (Trad. Miriam Sutter Medeiros).
Petrópolis: Vozes.
ceitual das teorias do conhecimento incorporado oferece à teoria da música é possi-
Bregman, Albert S. 1990/1999. Auditory scene analysis: the perceptual organization of sound.
bilitar a renovação da discussão acerca da dupla perspectiva de entendimento musical:
Cambridge, MA: MIT Press.
a sintática e a semântica. Entendo que um intelectualismo moderno consolidou a ideia
Brower, Candace. 2000. “A cognitive theory of musical meaning”. Journal of Music Theory, vol.
de estrutura na experiência da música, elaborando diversas estratégias de construção e 44, n. 2, 323–79.
de reconhecimento de uma forma musical. Este formalismo sedimentou a ideia de que Burrows, David. 1990. Sound, speech, and music. Amherst: The University of Massachusetts
o entendimento musical deve ser obtido na mera apreensão de uma disposição lógica Press.
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New York: Harcourt Brace.
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ilusão da coerência estilística entre as obras assim investigadas e cotejadas, assumindo Books.
papel central de objeto do entendimento musical.Todavia, se considerarmos como no Edelman, Gerald, e Tononi, Giulio. 2000. A universe of consciousness: how matter becomes
realismo incorporado que os sentidos da música, assim como quaisquer outros sentidos imagination. New York: Basic Books.
constituídos nos mais variados campos de conhecimento, nascem de nosso engaja- Fauconnier, Gilles. 1985. Mental spaces: Aspects of meaning construction in natural language.
mento com o mundo e têm origem nas e a partir das ações do nosso corpo no meio Cambridge: MIT Press.
circundante, o entendimento musical é, antes de tudo, entendimento do processo de ______. 1999. Intentions in the experience of meaning. Cambridge: Cambridge University
Press.
abstração daqueles modelos formais, e não os modelos propriamente.
Galilei, Vincenzo. 1581/2003. Dialogue on ancient and modern music. (Trans. Claude V. Palisca).
Apontar quais aspectos de dado segmento musical estão regulando a inferência de Yale University Press.
suspensão (desequilíbrio ou incompletude) ou de conclusão (equilíbrio ou completu- Gibbs, Raymond W. 1994. The poetics of mind: figurative thought, language, and understanding.
de) formal do segmento, ou como tais aspectos propiciam essas inferências, parece ser Cambridge: Cambridge University Press.
um compromisso inadiável da agenda teórica musical. E estamos novamente frente à ______. 1999. Intentions in the experience of meaning. Cambridge: Cambridge University
tradicional controvérsia entre uma semântica formal, que em música apontaria direta- Press.

mente para o campo da referenciação (expressão, ideias, sentimentos, representação, ______. 2006. Embodiment and cognitive science. Cambridge: Cambridge University Press.

simbolismo), recorrentemente abordado pela teoria musical da Modernidade, e uma Gibbs, R., Lima, P. L. C., and Francozo, E. 2004. “Metaphor is grounded in embodied experi-
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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE III - ANÁLISE MUSIC AL COMO DISCURSO CRÍTICO

fiel à metodologia neoschenkeriana desenvolvida pelo autor. Porém, o livro para


escuta, multiplicidades, o qual este artigo se dedicará a fazer uma análise crítica é “A Geometry of Music,
Harmony and Counterpoint in the Extended Common Practice”, de Dmitri Timoczko.
singularidades: tymoczko e
a geometria da música 2. Histórico
No final do século XIX e início do século XX, surgiram duas formulações im-
Carole Gubernikoff portantes para o que já foi considerado como o final da história da harmonia
tonal: a noção de função, desenvolvida por Hugo Riemann e a de harmonia ex-
pandida, apresentada por Arnold Schoenberg.
1. Antecedentes A partir de então, o tecido da harmonia sofre uma bifurcação profunda apesar
Este texto trata de algumas concepções harmônicas e de um breve histórico de que ambas se debruçam sobre o mesmo repertório. Ambas se utilizam do
de correntes teóricas que se dedicaram à harmonia tonal no início do século XX. mesmo repertório, que desafiava as noções tradicionais de modulação, diato-
A questão do tonalismo, que parecia superada enquanto discurso teórico criativo nismo e cromatismo, tríades, tétrades, acordes e funções. Mas, os sentidos e as
e inovador durante a vigência da vanguarda, reaparece no início do século XXI conclusões não se confundem. A teoria harmônica de Arnold Schoenberg, através
em diferentes matizes. Este ímpeto se reinicia nos textos de alguns autores neor- dos conceitos de regiões harmônicas e dos estudo dos acordes errantes, formu-
rimannianos norte americanos e em livros de harmonia que se ocupam de reper- lará a teoria da harmonia expandida e de emancipação da dissonância com as
tório popular, criando uma modalidade de harmonia tonal chamada de Harmonia consequências extraordinárias do pós tonalismo, dodecafonismo, serialismos.
Popular ou Harmonia Funcional. Esta harmonia, entretanto, apesar do nome, não Hugo Riemann propôs em seu tratado, um método de simplificação da har-
pode ser confundida com as teorias elaboradas por Hugo Riemann, mas seguem monia, a partir de apenas três funções: Tônica, Dominante e Subdominante em
os princípios do pragmatismo e da simplificação do ensino e aprendizagem da dois modos, o maior e o menor. O primeiro problema de Riemann era o de le-
harmonia tonal. gitimar o modo menor como se fosse um espelho do modo maior, podendo ser
O artigo tratará de alguns aspectos da gramática da música, entendida em seu representados visualmente como duas tríades ou triângulos, invertidos. Para tanto,
sentido amplo de conter e excluir simultaneamente a prática. Para este artigo en- utilizou uma representação geométrica formada por triângulos (em referência às
tre o som e a música não há um principio de identidade, mas uma diferença que tríades). Os ângulos dos triângulos teriam dois pontos em comum e apenas meio
produz música. A gramática que sustenta a idéia musical pode ser vista do ponto grau de diferença em um dos vértices. Os demais vértices seriam pontos comuns
de vista modelar, quando procura estar o mais próximo possível dos modelos. a dois novos triângulos, um a partir da quinta superior, a dominante e o outro
Pode ser entendida também, como um devir, construído pela história e pela cul- a partir da quinta do quinto grau inferior, a subdominantes. Este movimento de
tura, que encontra sua legitimidade nas forças que a constituem. intercalação de pontos do triângulos, numa sucessão de terças produzem duas
Do ponto de vista da gramática da teoria musical, examinar o momento atual cadeias de eventos triangulares; a cadeia das quintas e as cadeias das terças. Pela
em que são incluídos na perspectiva neorriemanniana, repertórios associados imbricação dos triângulos se produz uma cadeia de graus em que se encontram
ao consumo e à indústria cultural. Exemplos recentes deste inclusão podem ser notas comuns que podem ser modificadas ou alterados em movimentos mínimos
exemplificados com os artigos e livro que Allen Forte dedicou à canção popular que produzem um esquema geométrico que Riemann chamou de tonnetz, redes
norte americana, The American Popular Ballad of the Golden Era que permanece de tons (sons). Na Figura 1 a linha horizontal segue em saltos de quintas que são

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE III - ANÁLISE MUSIC AL COMO DISCURSO CRÍTICO

intercaladas pelas terças, numa sucessão de tríades que se formam, na metade cada etapa da aprendizagem em “Leis tonais”, que seguem de perto a sequência
superior, no modo menor, e seu espelho, a tríade maior. expositiva do livro de Riemann. Koellreutter ao invés de apresentar os Tonnetz
criou tabelas circulares, que ele chamou de ábacos, em que os campos das rela-
ções se sobrepõem em círculos. Na Figura 2, a foto do ábaco que acompanha o
livro Harmonia Funcional. Nela, os círculos sobrepostos são móveis e são girados
no sentido de encontrar as funções correspondentes em relação a uma tríade de
tônica.

Figura 1 – Tonnetz de Hugo Riemann


A partir da representação destas relações em ciclos de quintas e seus relativos,
os ciclos das terças, há efetivamente uma simplificação que passou a se chamar de
Harmonia Funcional. O Tonnetz representa tanto as relações de quintas quanto as
de terças, o que permite a simplificação das relações tonais em apenas duas séries.
Dentro desta vertente encontramos diferentes versões. A primeira a ser ob-
servada é a vertente europeia centrada na figura do musicólogo Carl Dahlhaus,
Figura 2 – O Ábaco de H.J. Koellreutter e os círculos das funções.
que pode ser considera a mais erudita. Em sua tese de doutorado, defendida na
década dos sessenta, discorreu sobre a origem da harmonia tonal (Dahlhaus, Carl, Apesar de nos Estados Unidos, o estudo de obras tonais se concentrar prin-
1990). Nela, ele defende a presença virtual da harmonia tonal em obras a partir cipalmente em análise baseadas nas reduções propostas por Heinrich Schenker.
dos séculos XIV e XV, através da análise, das fórmulas de fechamento, as clausu- A influência da harmonia de Schoenberg também foi significativa, principalmente
lae. As análises deste repertório são profundamente marcadas pela presença do na concepção das regiões tonais e a expansão da tonalidade através da utilização
pensamento de Riemann que incorpora a idéia que a harmonia não só é natural- de escalas que correspondem a cada grau da tonalidade original. Em relação às
mente apreensível, como o próprio ouvido legitima a existência de uma série de teorias de Hugo Riemann, criou-se nos Estados Unidos, a partir das pesquisas de
parciais inferiores que constituem os modos menores. Na tese estava implícito, musicólogos e teóricos norte americanos, uma corrente de pensamento a partir
pela proximidade do pensamento de Riemann em sua formulação, que há uma da simplificação das relações entre acordes e pelo desenvolvimento de represen-
naturalidade nos encadeamentos de tríades que já estava presente num período tações matemáticas ou geométricas. A simplificação e a utilização de Tonnetz fo-
anterior ao da tonalidade. ram utilizadas no sentido de, ao analisar repertório extremamente complexo do
Outra vertente do pensamento funcional erudito se localiza no Brasil, principal- ponto de vista harmônico, observar como pequenos deslocamentos intervalares
mente nas cidades onde o professor de origem alemã, Hans Joachin Koellreutter, produziam grandes transformações harmônicas e centros tonais locais.
atuou e introduziu seu estudo de maneira didática e simplificada. Em seu livro, A partir da década dos anos 80, teóricos norte-americanos vêm se ocupando
Harmonia Funcional (Koellreutter, 1980) que consiste num extrato das teorias ex- em detalhar e desenvolver a circularidade produzida pelos dois grandes grupos
postas diretamente por Riemann. Koellreutter criou uma sistemática de nomear

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE III - ANÁLISE MUSIC AL COMO DISCURSO CRÍTICO

de tríades: os grupos de quintas ascendentes e descendentes, fechando a circula- var elementos do tonalismo que funcionassem como ligação da composição com
ridade vertical e os grupos de terças, superiores e inferiores, fechando os círculos a tradição musical de concerto, das bandas de música popular e de um imenso
horizontais e transversais. As diferentes versões, maiores e menores das tríades, repertório com o qual tinha afinidades estéticas e estilísticas.
produziriam material teórico suficiente para dar conta do que se convencionou Assim, logo nas primeiras páginas, Tymoczko declara seu ponto de vista como
chamar de cromatismo triádico: maiores, menores, diminutas e aumentadas. Não teórico e compositor. “O objetivo deste livro é prover categorias genéricas para
é pouco material para uma diversidade tão grande de atmosferas tonais que discutir música que não é nem classicamente tonal nem completamente atonal”.
podem ser encontradas em músicas compostas na segunda metade do século (Tymoczko, 2011)
XIX, em repertórios como os de Chopin e Brahms, em que os cromatismos não
Para tanto, apresenta e desenvolve várias ferramentas que serão formalizadas
desestabilizam centros tonais, através de dominantes locais.
através de adaptações da teoria dos conjuntos, como o uso de números sequen-
Richard Cohn, em 1998, publicou um artigo que propõe uma fundamentação ciais de 0 a 11, para determinar alturas e intervalos, expansões dos universos
do que será chamado de Teoria Neoriemanniana (Cohn, R., 1998). Neste artigo escalares e acordais, levando em considerações tríades e tétrades, em todas suas
ele apresenta as seis condições básicas para seu desenvolvimento: transformações naturezas. Uma curiosidade que valeria à pena esclarecer é como há uma coin-
triádicas; uso maximal de notas comuns; economia na condução de vozes; inver- cidência de iniciar o livro com a apresentação de uma variedade de modos e
sões dualistas ou em espelho; equivalência enarmônica; uso da tabela das relações escalas. Este método é comum nos livros de harmonia jazzística que se iniciam a
tonais. Estes seis itens reduzem as possibilidades das transformações triádicas apresentação de uma expansão das escalas maiores e menores.
batizadas de Maximally Smooth Cicles, (Ciclos Maximamente Suaves) a partir da ca-
Um outro aspecto importante é como os Tonnetz originais de Hugo Riemann
tegoria de Teoria Generalizada das Funções Tonais de Dawid Lewin (Lewin, D. 1982),
serão expandidos tanto em geometria, expandindo o quadro para figuras polié-
que apresentou uma teoria sistematizada na forma de teoremas.
dricas, quanto em combinações de tríades e tétrades. Porém, na essência destes
A partir daí, novas gerações de de compositores e teóricos se reaproximam procedimentos encontramos as mais tradicionais elaborações de classes de nota,
das teorias neorriemannianas para, a partir de uma generalização dos seis pres- por inversão, retrogradação e permutação, e a aplicação das regras básicas da
supostos apresentados por Richard Cohn, construir um universo teórico voltado condução de vozes. Encontramos em seu livro as mais antigas recomendações
tanto para a composição quanto para a análise de obras que apresentam com- dos livros de polifonia dos séculos XV e XVI e que são, basicamente, as regras
plexidade harmônica tonal. Do ponto de vista da composição, buscaram no de- do neo-riemannianismo exposto por Richard Cohn. Poderíamos argumentar que
senvolvimento desta teoria, uma maneira de garantir uma certa auralidade tonal as ousadias harmônicas dos séculos XIX, principalmente Wagner e Brahms, não
a obras “livres” do ponto de vista tonal. Para esclarecer esta motivação, vou me existiriam se não fosse a manutenção na composição musical, das tradições do
concentrar no livro e Dmitri Timoczko, A Geometry of Music (Tymoczko, D. 2011). contraponto, principalmente a preparação e a resolução de dissonâncias que são
relativamente autônomas em relação aos centros tonais. Ou seja, foi neste univer-
3. O livro de Tymozcko so sonoro de referencia que Hugo Riemann realizou sua tarefa da concisão.
Logo na introdução, Tymozcko relata como foi decepcionante sua formação na Tymoczko não ignora estas origens, as apresenta logo ao início do primeiro
graduação em composição. Para ele, seus professores estavam mais interessados capítulo para em seguida enunciar suas contribuições, às quais ele se refere como
em métodos e obras que não estavam em acordo com sua história de vida, com claims, reivindicações: 1- contraponto e harmonia se limitam mutuamente; 2- es-
sua juventude como músico de bandas de rock. Com este livro pretendia revelar calas, macro-harmonia e centricidade são independentes; 3- modulação implica
formas de compor obras com uma sonoridade tonal, ou ainda, formas de preser- em condução de vozes; 4- música pode ser compreendida geometricamente.

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As três primeiras reivindicações podem ser entendidas como uma questão mais senta, não fica muito claro. Para uma estudiosa da história da teoria musical, dão a
apropriada a um estilo composicional que a uma nova gramática. Vozes que se impressão de uma necessidade de legitimação do pensamento musical a partir de
sobrepõem, com predominância de graus conjuntos e de consonâncias teorias mais “objetivas”, como a geometria e a matemática, tomada de emprésti-
Tentarei me deter apenas no último ponto, pois este é o grande motivador mo das ciências exatas. Esta tendência já está bem clara no artigo de Lewin, quan-
do livro, que a música pode ser entendida geometricamente. Tymoczko, em seu do transforma classes de notas em entidades pertencentes ao enunciado dos
artigo The Generalized Tonnetz (Tymoczko, 2012) explica a origem e o desen- teoremas, com sua inserção dentro de uma lógica construtivista e generalizante.
volvimento de sua proposta de geometrização, ou representação geométrica, do Mesmo no livro de Tymozcko, nos últimos capítulos, quando ele passa a analisar
espaço musical. Espaço, neste contexto, se refere ao movimento entre as notas obras do repertório, as geometrias desaparecem em favor de uma análise mais
dentro de um conjunto limitado. O movimento principal se concentra em mais concentrada nos movimentos melódicos e harmônicos.
1 e menos 1 (0+1, 0-1).Seu modelo de referencia são treliças, onde pontos se
movem em direção a outros pontos e onde pequenos movimentos operam, do 4. Considerações críticas
ponto de vista musical, transformações profundas, a partir da constatação que um
Após cem anos dos questionamentos sobe a harmonia tonal, em obras e textos
movimento de semitom pode, dentro de um contexto tonal, mudar completa-
de teóricos e compositores, ao invés de haver uma preservação das conquistas
mente o entendimento do conjunto. Assim, com um passo se opera um “salto”
técnicas e estéticas da música dos períodos modernos e contemporâneo, o livro
harmônico, tendo como referência uma escala e suas tríades.
de Tymozcko parece uma tentativa de saltar por sobre estas conquistas e retomar
Entre os exemplos de geometrização de seu livro, um deles é o da constru- o caminho de um tipo de composição centrado na notas, esquecendo, pelo menos
ção de treliças tridimensionais, formada por cubos cujas faces estão ligadas pelos em seu livro-tese, as inúmeras conquistas em relação aos ritmos, às texturas, aos
vértices. A Figura 3, extraída do artigo The Generalized Tonnetz, apresenta duas timbres e às sonoridades contemporâneas
representações geométricas de tríades aumentadas.
Em 1961, em célebre conferência concedida em Darmstadt, Theodor Ador-
no expressou sua preocupação com os excessos formalistas de compositores de
vanguarda dos anos 60. Estas formalizações numéricas e matemáticas, entretanto,
levaram a indiscutíveis avanços que levaram ao desenvolvimento de aplicações mu-
sicais em computadores e em formalizações de automação e desenvolvimento de
procedimentos computacionais de síntese sonora, gravação e tratamento do som.
Em, “Por uma música informal”, Adorno inicia sua apresentação com a seguinte
frase: “Só nos tornamos músicos quando conseguimos escapar das garras do pro-
fessor de matemática; seria terrível precisar de, finalmente, recair sob seu domínio.”
(Adorno, 1982)
Neste texto ele se referia às propostas do serialismo integral que propunha
Figura 3 – Treliças e triângulos de tríades aumentadas
uma serialização total dos parâmetros musicais, muitas vezes através de enun-
Ao longo da leitura do livro, várias observações e regras tradicionais são enun- ciados enigmáticos. Entretanto, a relação da música com a matemática, com os
ciadas para, em seguida, apresentar a versão geométrica. Até que ponto esta números e com a geometria já era um tema importante e que abordado por Zar-
geometrização é uma ferramenta auxiliar para a composição, como o autor apre- lino em 1557, com o livro Istitutione Armoniche. Depois de dedicar dois volumes à

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música teórica e à música especulativa, no terceiro volume, dedicado à prática, ao Este salto que Tymoczko propõe, como se fosse a volta a uma escuta natural,
contraponto, descreve a notação musical da seguinte maneira: confirmada nos exemplos de músicas do Jazz e do Pop, pode representar um
retrocesso também para os esforços que têm se realizado em função da escuta
... como na matemática, vendo-se a necessidade dela, encontraram cifras, .... assim, necessitan- “dos outros” de nossa cultura, tanto os não europeus quanto os outros que exis-
do os músicos reduzir imediatamente suas especulações e demonstrações, e ainda o juízo do tem entre nós.
sentimento, pois a voz e os sons não podem se escritos, nem com eles pintar um mapa, nem
com qualquer outra matéria, encontraram alguns sinais, ou caracteres, aos quais chamaram Referências
figuras ou notas. (Zarlino 1558) Adorno, Th. 1982. “Pour une musique informelle”, in: Quasi una Fantasia (1963), Paris:
Gallimard.
As notas, assim como os números, são abstrações que servem para representar Cohn, R. 1998. “Introduction to Neo-Riemannian Theory: A Survey and Historical Perspec-
tive”, in Journal of Music Theory, 42/2, p. 167-180.
sons e vozes, e não o próprio som, ou o próprio instrumento.
Dahlhaus, Carl. 1990. Studies on the Origin of Harmonic Tonality. Trad de Robert O. Gjerding-
A história da teoria musical passa por momentos de legitimação através da en. Princeton, NJ: Princeton University Press.
matemática ou procurando nas ciências exatas dos números e da geometria um Koellreutter, H. J. 1980. Harmonia funcional, Introdução à teoria das funções harmônicas. São
fundamento que representasse uma garantia de autenticidade à prática musical. Paulo: Ricordi.
No século XX a legitimação passou a se dar no estudo físico do som, implicando Lewin, D. 1982. “A Formal Theory of Generalized Tonal Functions”, in Journal of Music Theory,
26/1, p. 23-60.
mais uma vez em domínios correlatos como os da ciência computacional, e da
física. Entretanto, os temas ligados à organização das notas, passados mais de cem Riemann, H. 1893. Harmony Simplified, the Theory of the Tonal Functions of Chords. London:
Augener Limited.
anos das questões colocadas pelos teóricos do final do século XIX e início do
Tymoczko, D. 2011. A Geometry of Music, Harmony and Counterpoint in the Extended Com-
século XX ressurgem, no século XXI com nova força. mon Practice. New York: Oxford.
O caso de Tymozcko parece exemplar, na medida em que rejeitou a eman- __________. 2012. “The Generalized Tonnetz”, in Journal of Music Theory, Yale: Duke Univer-
cipação da dissonância, procurando legitimidade em uma prática desenvolvida sity Press, 56/1, p.1-52.
pela indústria cultural que, até bem recentemente, foi ignorada pelos compêndios Zarlino, G. 1558. Le Istitutione Harmoniche. Venezia: Signoria di Venezia.
de harmonia ou de composição musical. Sua revolta juvenil se deu, segundo ele,
contra a extrema rigidez estilística dos departamentos de música. Entretanto pro-
curou legitimar seu discurso pelas proposta de que a música pode ser esclarecida
pela geometria. Em 1557, Zarlino já havia enfrentado este desafio e, após dois
volumes de teoria vai se dedicar ao contraponto e à composição a partir dos
ensinamentos práticos e do modelo de Willaert, seu mestre.
A história da teoria musical no século XX apresenta exemplos extraordinários
de novas formulações, como o dodecafonismo, o serialismo, as harmonias de Mes-
siaen e de Bartók, a descoberta do som como matéria e material composicional,
as frações da música de Ligeti, as harmonias e as proporções de Stockhausen, a
música espectral, e tantos outros exemplos.

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE III - ANÁLISE MUSIC AL COMO DISCURSO CRÍTICO

teoria musical:
A sinceridade do artista se tornava, agora, um critério de valor artístico, o que é resultante
natural da obra concebida como objeto estético independente. A obra possui sua própria
lei, sua própria razão de existir: ela é produzida pelo artista, não com uma finalidade – “por

analisando estrutura, uma necessidade interior” seria a expressão correta. Para o artista romântico, a auto-expres-
são não é um serviço a si mesmo ou exaltação pessoal, mas implica, necessariamente, um

estilo e contexto auto-sacrifício (Rosen, 2000:119).


É possível observar como a sonoridade simultânea de terças se torna frequente
ao longo do século XIX. Schubert, em Winterreise (1827), explora a ambiguidade
Paulo de Tarso Salles modal em um momento-chave da canção Im Dorfe (Figura 2): após uma cadência
na tônica (Ré maior, c. 15), a simultaneidade entre piano e cantor se quebra e
1. Introdução apenas o piano se encarrega de apresentar a mesma figuração no modo menor
A correlação entre estrutura e significado em uma obra musical pode ser reali- (c. 16); a voz assume sozinha a tarefa de levar ao compasso seguinte, que passa
zada por meio de uma leitura informada, voltada para o estabelecimento do con- pela dominante (c. 17), restaura a colaboração entre voz/instrumento e leva a
texto em que a obra foi criada, além é claro, da compreensão dos processos de uma cadência perfeita, só que em um acorde de tônica sem terça (c. 18). O texto
alteração de interpretação da mesma obra em função da mudança dos contextos diz: “und morgen früh ist alles zerflossen” [e pela manhã tudo desapareceu]. Nes-
de recepção aos quais ela possa ter sido submetida, o que compreende também se caso o desaparecimento da terça pode ser interpretado como representação
a consideração do contexto do intérprete. dessa perda.
Para esta apresentação, foi escolhida uma estrutura musical simples, mas signifi-
cativa para a música criada na transição do estilo romântico do século XIX para o
romantismo tardio e modernismo na primeira metade do século XX: o tricorde
maior-menor (Figura 1), consistindo na apresentação simultânea da tônica/funda-
mental e duas terças (maior e menor).

Figura 1: exemplos de tricordes do tipo maior-menor.

2. Schubert, Schumann, Chopin e Brahms


De um ponto de vista “evolucionista”, poder-se-ia dizer que o tricorde maior-
-menor, com sua ambiguidade de terças, coloca em questão a definição modal, um Figura 2: Schubert, Im Dorfe, nº 17 do ciclo Winterreise, c. 15-18.

dos pilares da estrutura tonal de uma obra musical. Trata-se de mais um sintoma Nas Cenas Infantis (1838) de Schumann o encontro das terças maior/menor
das transformações que a música experimentou durante o Romantismo, quando ocorre parcimoniosamente em quase todas as treze peças do ciclo. Logo na
a subjetividade passou a ser cada vez mais valorizada como meio de expressão primeira peça, pode-se observar a ocorrência de três combinações do tricorde
em paralelo à desvalorização de certas convenções.

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maior-menor (Figura 3): Sol-Si-Sib; Si-Sib-Ré; Si-Ré-Dó#. Na segunda peça do ciclo No movimento final da Sonata para piano Op. 1 nº 1 (1853) de Brahms ocorre
(Figura 4), agrupamento semelhante ocorre no segundo compasso (Mi#-Lá-Fá) uma sequência de acordes relacionados por função mediante, cujas transforma-
e no c. 16, após a chegada à dominante, o anacruse apresenta imediatamente a ções cromáticas também resultam em ambiguidade de terças semelhante aos
modulação de Ré maior para Sol maior por meio da alteração cromática dó#-dó. demais casos observados (Figura 6).
Situações análogas ocorrem nas demais peças.

Figura 3: Schumann, Kinderscenen Op. 15 nº 1, c. 12-17

Figura 6: Brahms, Sonata para piano nº 1, IV, c. 213-220

David Kopp comenta os ciclos de terças empregados na música do século


Figura 4: Schumann, nº 2 de Kinderscenen Op. 15 nº 2, c. 13-19 XIX, e observa que embora “a divisão do ciclo de terças maiores pelas relações
mediantes relativas diatônicas seja de longe o processo mais comum e intuitivo”
Em alguns dos Prelúdios Op. 28 (1835-39) de Chopin o choque entre as terças (como no ciclo hexatônico proposto por Cohn)1, há alternativas como a de-
é ainda mais frequente. No prelúdio nº 2 (Figura 5) a figuração de acompanha- senvolvida por Schubert no primeiro movimento de sua Quarta Sinfonia D417
mento (c. 1-4) apresenta uma das várias ocorrências desse tipo de agrupamento, (Kopp, 2002:219). Nos exemplos oferecidos por Kopp vê-se que o procedimento
ao longo da peça: Si-Lá#-Sol; um pouco mais à frente, c. 6-8, encontram-se os adotado por Schubert evita a ocorrência de oposições lineares de terça, as quais
grupamentos Mib-Sol-Mi e Ré-Mi#-Fá#. aparecem naturalmente no ciclo hexatônico de Cohn, resultando em tricordes
maior/menor (Figura 7).

1 O “ciclo hexatônico” é uma proposição teórica feita por Richard Cohn (1996).
Figura 5: Chopin, Prelúdio Op. 28 n. 2, c.1-8

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Assim como Joplin, Ernesto Nazareth frequentemente incorpora a sonoridade


maior/menor em suas polcas e tangos, como em Apanhei-te, cavaquinho de 1914
(Figura 9).

Figura 7: ilustração oferecida por Kopp (2002:220), comparando o ciclo hexatônico de


Cohn (a) e a solução de Schubert (b) para a Quarta Sinfonia.

3. Jazz e choro
Agora avançamos um pouco mais no tempo para observar a presença do Figura 9: Nazareth, Apanhei-te, cavaquinho, c. 1-7.
tricorde “maior/menor” em alguns estilos musicais do início do século XX. Na
música popular desse período já podemos encontrar exemplos com plena simul-
4. Debussy, Stravinsky e Villa-Lobos
taneidade: Scott Joplin faz uso de sonoridades análogas, que no ragtime e outros
gêneros surgidos nos Estados Unidos deram origem aos estilos jazzísticos pos- Retrocedendo um pouco no tempo, voltemos à chamada “música de concer-
teriores. Nesse contexto, o tricorde maior/menor é conhecido como blue note, to” contemporânea ao ragtime e ao choro brasileiro: no Prelúdio da suíte Pour le
como vemos na seção final de The Entertainer de 1902 (Figura 8). Piano (1901), Debussy ainda faz uso do tricorde maior/menor restrito às combi-
nações lineares (Figura 10), embora justamente reserve para o ponto culminante
do movimento uma combinação de tríades aumentadas, com distância de terça
menor entre si, as quais resultam em um hexacorde (6-20, segundo o algoritmo
usado por Forte) com nada menos que seis tricordes maior/menor embutidos;2
no entanto, na assumida assimilação e apropriação do caráter jazzístico feita em
Gollywoog’s Cakewalk da suíte Children’s Corner (1908), a sonoridade simultâ-
nea já é presente (Figura 11).

2 Naturalmente, a combinação de dois tricordes aumentados (3-12, segundo a tabela de Forte) sem som comum
Figura 8: Joplin, The Entertainer, c. 73-80. entre si, com distância de terça menor, resulta em um hexacorde com seis eixos de simetria, três deles por transposição e
outros três por inversão.

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE III - ANÁLISE MUSIC AL COMO DISCURSO CRÍTICO

Figura 10: Debussy, Prelúdio da suíte Pour le Piano, c. 43-45

Figura 12: Stravinsky, Círculo Místico das Adolescentes, de Le Sacre du Printemps

Villa-Lobos, em seu Segundo Quarteto de Cordas (1915), demonstra estar


Figura 11: Debussy, Gollywoog’s Cakewalk, da suíte Children’s Corner, c. 47-50 sintonizado com essas questões, realizando um curioso encadeamento melódico
no enunciado temático inicial, a cargo da viola (Figura 13). A lógica interna dessa
Uma tendência notável entre a geração de compositores sob influência de melodia reside na transformação parcimoniosa do tricorde maior/menor, esta-
Debussy na primeira metade do século XX, a qual deu origem ao chamado mo- belecendo direcionalidade. Seguindo um algoritmo proposto por Lewin (1982:
dernismo musical, foi o abandono das hierarquias resultantes de funcionalidades 29-30), a progressão é apresentada em uma tonnetz elaborada a partir do tri-
triádico-tonais e a consequente concentração nas relações intervalares como for- corde maior/menor (Figura 14).4 As propriedades do tema são exploradas pelo
ma de regular e organizar as combinações harmônicas, com especial atenção às compositor, com destaque especialmente para a chegada à recapitulação, onde o
possibilidades de distribuição das alturas em torno de eixos de simetria. Nesse tricorde é explorado também em simultaneidades.
sentido, as propriedades inerentes ao tricorde maior/menor e suas combinações
foram bem exploradas.
Stravinsky, por exemplo, em uma passagem bem conhecida de Le Sacre du
Printemps (1913), o Círculo Místico das Adolescentes (a partir do ensaio 91) há
uma sequência com três acordes do tipo maior/menor, com destaque especial
para o primeiro deles que assume claramente essa superposição modal (Figura
12). A passagem é estruturada em duas camadas autônomas, sendo a outra ba-
seada em tetracorde simétrico, resultante da sucessão de quintas justas (4-23).3 Figura 13: Villa-Lobos, Quarteto de Cordas nº 2, I, c. 1-4

4 A observação é pertinente na medida em que o conceito de tonnetz, idealizado por Hugo Riemann e aperfeiçoado
por ele mesmo em 1914-15 no artigo Ideen zu einer “Lehre von den Tonvorstellungen” (Kopp 2002:139-140), baseia-se
nas tríades maiores (“triângulos apontando para cima” e menores (“triângulos apontando para baixo”). No entanto, Lewin
3 Embora não seja o caso, na passagem escolhida, cabe lembrar que o tricorde maior-menor é subconjunto da coleção propõe diversas possibilidades de construção de redes harmônicas, ampliando consideravelmente o escopo da teoria em
octatônica, considerada como um dos principais elementos de organização de alturas na música de Stravinsky (Berger, 1963). seu artigo de 1982.

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE III - ANÁLISE MUSIC AL COMO DISCURSO CRÍTICO

Figura 16: os hexacordes da série do Concerto Op. 24 e seus eixos de


Figura 14: Villa-Lobos, Quarteto nº2, tonnetz a partir do tricorde maior/menor simetria por transposição (à esquerda) e inversão

Webern explora o alto grau de simetria da série; as relações de inversão/retro-


5. Webern gradação entre os tricordes são também importantes entre os hexacordes, que
se relacionam por inversão. Após a apresentação original da série (sucessivamente
Por fim, veremos a utilização serial do tricorde no Concerto Op. 24 (1934) de
por oboé, flauta, trompete e clarineta), o piano apresenta uma versão onde os
Webern, que explora na construção da série as propriedades de transposição
tricordes aparecem retrogradados em relação à série original (Figura 17). Essa
e inversão com que irá desenvolver o material harmônico da obra. A série é
apresentação da série está em destaque na vertical da Figura 18, ou seja, (RI9), e
dividida em quatro tricordes do tipo maior/menor, cuja ordenação de alturas os
corresponde à inversão com transposição por semitom (T1I) do hexacorde H1
distribui nas quatro formas de reflexão intervalar (O, RI, RO e IO, Figura. 15). Os
na versão original, em destaque na horizontal da Figura 18.
tricordes formam dois hexacordes (H1 e H2), do tipo 6-20 (como visto acima em
Pour le piano), cada um deles com três eixos de simetria, que correspondem às in-
variâncias completas que são produzidas por transposição e inversão (Figura 16).

Figura 17: Webern, Concerto Op. 24, c. 1-5


Figura 15: Webern, série do Concerto Op. 24

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE III - ANÁLISE MUSIC AL COMO DISCURSO CRÍTICO

motivar a atitude analítico-interpretativa.


Embora não seja possível desenvolver mais amplamente cada um dos casos
apresentados e seus exemplos, creio que esse tópico contribua como reflexão
para o pensamento analítico no estabelecimento de diálogo entre elementos da
estrutura musical com questões históricas, estilísticas e cognitivas, dentre outras
possibilidades.

Referências
BERGER, Arthur. “Problems of Pitch Organization in Stravinsky’s Music. In: Perspectives in
New Music, v. 2, n. 1, 1963, pp. 11-42.
COHN, Richard. “Maximally Smooth Cycles, Hexatonic Systems, and the Analysis of Late
Romantic Triadic Progressions.” In: Music Analysis, v. 15, n. 1, 1996, pp. 9–40.
Figura 18: Matriz T/I da série do Concerto Op. 24 de Webern (Oliveira, 1998:306)
KOPP, David. Chromatic Transformation in Nineteenth Century Music. Cambridge: Cambridge
University Press, 2002.
Portanto, o que se vê em Webern é o tratamento dado ao tricorde como
elemento gerador de simetrias, explorando propriedades latentes desse material LEWIN, David. “A Formal Theory of Generalized Tonal Functions.” In: Journal of Music Theory,
v. 26, n. 1, 1982, pp. 23-60.
para criação de estruturas mais amplas em relação à forma e demais articulações
MENEZES, Flo. Apoteose de Schoenberg. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.
estruturais.
ROSEN, Charles. A Geração Romântica. São Paulo: Edusp, 2000.

Considerações finais
Uma pequena entidade harmônica como o tricorde maior/menor enseja o
estabelecimento de várias conexões entre o uso dessa estrutura e o contexto
desse emprego. Nos compositores românticos, aproveitando a sugestão retórica
de Schubert em Im Dorfe, a ambiguidade de terças pode ser associada à ideia de
perda, ou sacrifício, onde por analogia vemos a clareza do modo se turvando pela
sonoridade conflitante das terças maior e menor; daí em diante o uso do tricorde
3-3 está associado desde à pura fruição da sonoridade, no jazz e no choro; ou na
tentativa de estabelecer novos parâmetros de estruturação harmônica e formal,
como vimos em Debussy, Stravinsky, Villa-Lobos e Webern.
Essa seria uma interpretação “normativa”, onde as conclusões analíticas são
mediadas por hipóteses mais ou menos consagradas. Todavia, uma das possibi-
lidades interessantes é justamente o questionamento das normas consentidas,
se imaginarmos que a ideia de simetria possa atrair da mesma maneira músicos
como Joplin, Webern, Villa-Lobos, Schumann e Stravinsky, para se manifestar em
estilos distintos. A potencialidade contida nos gestos musicais é algo que deve

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PARTE IV - VOC ABULÁRIO TEÓRICO-ANALÍTICO E SUA PROBLEMÁTIC A

observações sobre
música e linguagem
Lawrence Kramer
Tradução de Ilza Nogueira

O significado musical é descrito em linguagem. Gostemos ou não gostemos,


não há como evitar isso. A música encerra os significados a ela atribuídos, mas a
linguagem os revela. Tudo bem, então: como ela faz isto? E como esse acordo, que
é indispensável, conta toda a estória?
Essa pergunta sobre como a linguagem revela os significados que a música tem
é um caso especial de uma pergunta mais geral: como questões de interesse e a
forma simbólica de lidar com elas são transmitidas de um meio de apresentação
a outro1 [2]. Tal transmissão se multiplica com os meios disponíveis para ela; Assim
como nos mostra a história contemporânea de modo surpreendente, quanto
mais meios, mais mensagens, como em função expoencial. Com o passar do tem-
po, a migração de conteúdo pelos meios ganhou uma variedade de formas explí-
citas – écfrase, ilustração, poema sonoro, adaptação para filme e TV, refilmagem,
novelização, fanficção, edição hipertextual – mas ela está implícita em tudo. Nas
palavras concisas de W. J. T. Mitchell (1994: 5), “todos os meios são meios mistos”.
O modelo desse processo, e provavelmente sua condição de possibilidade,
é o ato verbal da paráfrase: a reiteração de uma elocução em outras palavras.
A linguagem assume primazia aqui, porque o mundo humano é saturado dela e
não pode ser de outra maneira. Mas a paráfrase assume primazia em relação à
linguagem, porque ela não é simplesmente uma função da linguagem, mas uma
1 “Questão de interesse” [matter of concern] é um empréstimo de: Bruno Latour (2004).
2 Nota da tradutora: “Uma ‘questão de interesse’ é o que ocorre com uma ‘questão real’ quando se adiciona a
ela toda a sua cenografia, assim como você faria se mudasse sua atenção do palco para toda a maquinaria do teatro.
É o que ocorreu com a ciência quando dela se apoderaram os recentes “estudos da ciência”, por exemplo, ... Em vez de
simplesmente estar lá, os fatos da realidade começam a parecer diferentes, a exprimir um som diferente, eles começam a
se movimentar em todas as direções, a transbordar dos seus limites, incluindo um conjunto de novos atores e revelando os
frágeis invólucros em que estão alojados. Em vez de ‘estarem lá, quer você goste ou não’, eles ainda devem estar lá, sim (isso
é uma das enormes diferenças), e têm que ser queridos, apreciados, saboreados, experimentados, montados, preparados,
testados”. (Latour, Bruno. 2008. “What is the Style of Matters of Concern ?” Assen: Royal Van Gorcum, 39)

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE IV - VOC ABULÁRIO TEÓRICO-ANALÍTICO E SUA PROBLEMÁTIC A

condição necessária. rando. Ele está sempre operando. A questão é como ele está operando em cada
A linguagem está se parafraseando continuamente. Em outras palavras, uma caso particular.
frase, afirmação ou texto nunca está só. Elocuções sempre podem ser ditas em Em terceiro lugar, a música pode parafrasear a linguagem tanto quanto a lingua-
outras palavras. Isso, o leitor terá notado, é exatamente o que eu acabei de fazer gem pode parafrasear a música. Isso acontece sempre. Acontece como um caso
– e fiz duas vezes. Esse simples fato tem sido insuficientemente comentado. Suas de gênero na canção, independentemente dos artifícios familiares de expressão
consequências são de longo alcance. Sem a possibilidade da paráfrase, nenhuma emotiva e pintura sonora, e independentemente de o ouvinte poder entender
elocução ou expressão seria inteligível. A possibilidade da paráfrase é a possibili- as palavras que estão sendo cantadas. A canção é uma paráfrase musical em sua
dade do significado. forma mais básica. Mas a canção é somente um exemplo. Qualquer justaposição
Esse princípio não se aplica menos entre os meios expressivos do que no meio de música e linguagem pode movimentar o processo de paráfrase. Essa relação
da linguagem. A apresentação implica na capacidade de parafrasear; O que não pode ser ignorada, e tem sido frequentemente, mas ela é sempre presente.
pode ser parafraseado num segundo ou num terceiro meio não pode ser apre- Das três perguntas, é a terceira que eu quero enfatizar. Fora a canção, nós
sentado num primeiro. Consequentemente, o círculo de meios sempre retorna geralmente pensamos na relação hermenêutica entre linguagem e música como
para a linguagem, mas o papel da linguagem na repetição parafrásica não é sim- tomando somente uma direção. A linguagem toma o papel ativo; a música aceita
ples. Sobretudo, a paráfrase verbal, ao menos idealmente, não para a repetição, o passivo. A linguagem busca “traduzir” a música em palavras, em algum sentido.
mas, em vez disso, propele-a progressivamente. Naturalmente, ela falha na tentativa, como diz-se que traduções quase sempre o
Como o reconhecimento do princípio da paráfrase afeta nossa compreensão fazem. E se pensarmos nessa relação em termos reversíveis? Se pensarmos sobre
da relação entre linguagem e música? Há ao menos três respostas para essa per- música, de um modo geral, atuando particularmente como canção? Reconheci-
gunta. Em primeiro lugar, o princípio da paráfrase implica em que não há uma lin- damente, a polaridade ativa-passiva envolvida nunca é absoluta; Ela é uma ficção
guagem especial para descrever a música. Qualquer vocabulário, qualquer idioma, heurística conveniente. No entanto, tendo dito isso, podemos considerar útil com-
qualquer idioleto tem o potencial da paráfrase musical, embora isso não signifique parar a maneira como a linguagem parafraseia uma peça musical com a o modo
– enfaticamente não – que todos os tipos de paráfrase sejam igualmente válidos como a música parafraseia uma obra de linguagem.
ou úteis. A paráfrase pode obscurecer tanto quanto pode esclarecer. Nesse contexto, pode ser útil recordar a observação contra-intuitiva de Walter
Em segundo lugar, a música, assim como a linguagem, pode parafrasear a si Benjamin em seu ensaio de 1923 The Task of the Translator, de que que traduções
mesma. Essa paráfrase intramusical pode operar nos níveis da composição e da não são para leitores que desconhecem a lingua original. Tradução, explica Ben-
execução. Ela pode se estender musicalmente e pode se estender verbalmnente. jamin, é um meio de vida do original, uma vida que não deve ser compreendi-
A paráfrase musical incide sobre todas as distinções de estilo e gênero; Ela alcança da metaforicamenteque, ele insiste. “A vida do original”, ele escreve, “atinge [na
desde os “covers” da música popular até as mudanças de localização dos músicos tradução] a sua última e mais abundante florescência, sempre renovável.” Essa
nas orquestras. Alguém tocando Bach no piano em 1914 provavelmente teria vida, ademais, tem um certo propósito: “Na tradução, o original ascende a um
usado o pedal com liberdade e teria suposto que o instrumento era um melho- atmosfera linguística mais alta e mais pura, por assim dizer. … Ele aponta o cami-
ramento dos teclados de Bach. O pianista de 1914 deve ter feito pleno uso de nho para… o reino predestinado de conciliação e realização das linguagens, ante-
variações de ataque e inserido crescendos e decrescendos. Mas alguém tocando riormente inacessível” (Benjamin 1969: 75). Este reino, que Benjamin admite não
a mesma peça hoje provavelmente tentaria fazer o piano soar mais como um ser “total”, pode ser compreendido como uma representação idealizada, utópica,
cravo – com pouco ou nenhum pedal, dinâmica plana e toque uniforme. Ambos do processo de paráfrase contínua. O impulso por trás desse utopismo é o lado
os pianistas estariam parafraseando – e assim, a propósito, alguém estaria fazendo positivo da dúvida modernista sobre o poder da linguagem; O mesmo impulso
isso no cravo, em 1714. A questão não é se o processo de paráfrase está ope- desempenhou um papel substancial no florecimento da teoria pós-estruturalista

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE IV - VOC ABULÁRIO TEÓRICO-ANALÍTICO E SUA PROBLEMÁTIC A

no final do século XX. Mas idealismo ou desespero não são nada mais que um ocorre e flutua – essa palavra é de Debussy, num determinado ponto – subindo
sintoma. A paráfrase pode ascender à eloquência, mas ela também é a condição em registro até que, no final, ela é somente um fragmento.
mundana da linguagem da comunicação em geral. Tudo isso é somente simples descrição, mas deve-se ir adiante e dizer que a
O problema da tradução aflige menos a música do que a linguagem, muito memória, quando parafraseada pela música, torna-se uma força, branda mas irre-
embora o fracasso da tradução seja comumente usado como um tropo para a sistível, que age menos como a comunhão extásica de Baudelaire do que como
inefabilidade da música. O poder da música agradar os ouvintes a despeito de o langor atordoante que, no poema, a comunhão domina. O próximo passo seria
suas linguagens verbais é um outro clichê – música como linguagem universal – ouvir ou tocar a música com essa linguagem em mente.
mas há, no entanto, algo a se aprender com isso. Não podemos sempre afirmar Obviamente, o intercâmbio continua em meus comentários sobre a música,
que conhecemos a linguagem original de um texto que lemos em tradução, mas que não devem ser vistos como diferentes e nem menos autoritários do que os
quando lemos uma “tradução” verbal da música nós quase sempre conhecemos de Debussy – não porque eu seja preciente, mas porque ele, não menos do que
ambas as “linguagens”. O florecimento que Benjamin descreve deve ocorrer mais eu, necessita de uma linguagem em que possa falar. Então, sua partitura, portan-
com a música do que com as palavras, não menos. to, diz ao intérprete para fazer uma passagem “tranquila e flutuante”, uma outra
Um caso exemplar da paráfrase binária palavra-música começado com a mú- “como os distantes sons de trompas” e toda a obra “harmoniosa e dócil”. O papel
sica e realizado em música é o prelúdio para piano de Debussy Les sons et les da linguagem numa ou noutra direção, como intérprete ou interpretado, é abrir e
parfums tournent dans l’air dur soir. Este é um melhor exemplo, em parte porque a expandir o espaço do discurso. Não há um idioma especial reservado para este
partitura, como sempre ocorre nos prelúdios de Debussy, é cheia de descrições propósito; O idioma musicalmente mais específico pode desempenhar-se mal
verbais da música, e em parte porque o título nos fornece o texto que a música e o menos específico pode desempenhar-se bem. Ou vice versa. A escolha da
comenta, a primeira linha[3] do poema de Baudelaire Harmonie du soir. linguagem não é uma questão de teoria, mas de circunstância: Como nós falamos
Resumidamente, o texto celebra um momento extático da memória, mas em sobre isso aqui, hoje, ou como nós compreendemos isso falando para nós aqui,
linguagem tingida de dor e violência, particularmente a imagem do por do sol hoje? A paráfrase através dos meios não é uma questão de representação mas de
como sangue coagulado. O que a música diz sobre esse texto é que seu êxtase inquirição. A relação entre música e linguagem é a mesma, não importa qual delas
está se dissolvendo, tem estado sempre se dissolvendo; O êxtase é uma ilusão esteja atuando nominalmente sobre a outra.
retrocedente. Podemos ouvir a música fazendo essa “afirmação”, quando a figura
melódica principal, que soa no início e logo é repetida literalmente, muda de to-
Referências
nalidade e sobre progressivamente na tessitura enquanto se dizima e se dissolve.
Contudo, a medida da ilusoriedade no texto é exatamente o que a música deixa Benjamin, Walter. 1969. Illuminations. Ed. de Hannah Arendt, trad. de Harry
fora; A música não faz nada que sugira o sangue coagulado ou a imagem final do Zohn. New York: Schocken Books.
poema, que identifica a memória com o ato de tomar a comunhão (o que tam- Latour, Bruno. 2004. “Why Has Critique Run out of Steam: From Matters of
bém, obviamente, envolve a ideia de sangue). A música, ou assim a música nos Fact to Matters of Concern,” Critical Inquiry 30: 225 – 48.
conta, é uma ilusão melhor, precisamente porque ela é ingênua sobre sua própria
Mitchell, W. J. T. 1994. Picture Theory: Essays on Verbal and Visual Representa-
ilusoriedade. Em outras palavras – sempre outras palavras – a música dissolve sua
tion. Chicago: University of Chicago Press.
própria presença na ordem da memória. O processo é, ao mesmo tempo, espon-
tâneo e implacável. As duas metades do tema repetido finalmente se separam; A
segunda parte assume proeminência mas muda de configuração enquanto isso
3 Nota da tradutora: De fato, trata-se do terceiro verso da primeira estrofe do poema de Baudelaire.

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE IV - VOC ABULÁRIO TEÓRICO-ANALÍTICO E SUA PROBLEMÁTIC A

sunto novamente, quando pude observar que o uso de “prolongação” tornou-se


O TRADUTOR ENQUANTO padronizado para descrever o tratamento de elaborações contrapontísticas.1

CONSTRUTOR DE PONTES Após trabalhar, ao longo dos últimos quinze anos, para ajudar o leitor brasileiro
se familiarizar com os conceitos básicos da Teoria Schenkeriana, também verifi-

ENTRE CULTURAS quei que visões analíticas inovadoras e novas abordagens para a compreensão da
música estavam sendo desenvolvidas por pesquisadores brasileiros, e que tam-
bém precisavam ser compartilhadas em dois idiomas. Esta instância de tradução
Cristina Capparelli Gerling envolveu trazer de volta ao solo brasileiro textos escritos lá fora pelos pesquisa-
dores Lúcia Barrenechea, Sérgio Barrenechea e Hermes Alvarenga que tratam da
música brasileira. Eles publicaram seus textos originais em Inglês como projetos
de pesquisa de doutorado nos Estados Unidos. Atuando como co-orientadora de
1. Introdução seus projetos e consciente de sua importância para os pesquisadores brasileiros,
Ao longo dos últimos 30 anos de minha carreira docente e, estimulada pela decidi a retraduzi-los do inglês para o português. Três Estudos Analíticos: Villa-Lobos,
necessidade de se disponibilizar textos musicais seminais aos estudantes brasilei- Mignone e Camargo Guarnieri foi publicado em 2000 e contribui para o crescente
ros com conhecimento limitado do inglês, produzi e supervisionei uma série de número de estudos provenientes do exterior sobre a música brasileira. O pri-
traduções acadêmicas.Verter esses textos para o português tem contribuído para meiro capítulo, em particular, foi de grande importância porque abriu uma nova
o alargamento dos horizontes dos leitores, trazendo diferentes culturas e pontos e valiosa linha de pesquisa, que investiga o papel do diálogo entre compositores
de vista para estudantes de música de graduação brasileiros. Ricoeur (1997) dis- (Barrenechea e Gerling, 2000).
cute em seu trabalho a ideia de que a tensão é inerente ao ato de traduzir, uma Estes textos abriram o caminho para aventuras mais ousadas em tradução.
vez que “a tradução encontra resistência, na medida em que pode ser vista como Em um festival de compositores no Novo México, em 2004, me encontrei com
uma ameaça para a língua-alvo, uma vez que podemos sempre nos perguntar se o influente professor de análise Dr. Robert Cogan, que tinha sido meu professor
essa língua pode realmente dizer o que foi dito no idioma original estrangeiro”. anos antes. Em conversa com o Dr. Cogan e a co-autora Pozzi Escot, decidimos
que o livro Sonic Design: The Nature of Sound and Music escrito em 1976, deveria
2. Breve comentário sobre textos traduzidos ser traduzido para os leitores da língua portuguesa. Tive a sorte nessa emprei-
tada de contar com a colaboração de dois excelentes alunos de graduação que
Meu primeiro encontro com esta “resistência” aconteceu entre 1989 e 1990, não se intimidaram nem com a enorme extensão do texto e, menos ainda com
quando apresentei os conceitos centrais da teoria de Heinrich Schenker para o os termos científicos altamente especializados utilizados para discutir a física do
leitor brasileiro em quatro textos introdutórios. Tive de lidar com a difícil tarefa som e timbre na música do século XX. Foi um desafio formidável. Descobrimos,
de traduzir termos com raízes linguísticas profundamente germânicas para o Por- por exemplo, que um poema de Shakespeare no primeiro capítulo precisava ser
tuguês, pois era um novo contexto. Termos que vão desde Ausfaltung até Zugm, deixado como um “trecho intraduzível” porque as perdas semânticas tornariam
passando por Bassbrechung, Kopfton, Urlinie e Ursatz, e/ou seus equivalentes em inútil o exemplo traduzido (Domenico, 2010). Não seria possível usar esse exem-
inglês, receberam novos nomes em português e, com eles, surgiu a necessidade plo em Português e manter a sua função original, enquanto exemplo no livro.
de novas e sutis distinções. O termo Prolongation, por exemplo, foi traduzido Felizmente, as restantes seis centenas de páginas colaboraram com o processo,
como “prolongação”, a fim de criar uma distinção do termo “prolongamento”, permitindo-nos fazer cada frase tão compreensível quanto possível no novo idio-
comum no português. Esta foi uma escolha consciente, mas na época tornou-se ma. Considerando-se que os autores “fornecem um quadro para a compreensão
um assunto polêmico. Em 2007, quase duas décadas depois, levantamos esse as-
1 Prolongação se refere à elaboração de estruturas contrapontísticas. Todas as peças tonais são, por isso, em termos
schenkerianos, uma prolongação da Ursatz. http://www.schenkerguide.com/displaysearch.php (Acesso em 9/15/2014).

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE IV - VOC ABULÁRIO TEÓRICO-ANALÍTICO E SUA PROBLEMÁTIC A

das composições musicais segundo quatro pontos de vista: o espaço musical, a


Autor Ano Título Veículo Editora Páginas
linguagem musical, tempo e a cor do som” (Lewin1978, 56), esperamos que este
Chaffin, 2007 Learning Clair de Lune: Music Perception, XXIV 377-393
volume forneça uma base sólida para a compreensão analítica e contribua signifi- Roger Retrieval practice and
expert memorization
cativamente para o campo da teoria da música.
Chaffin, R. 2009 Performing from Memory The Oxford handbook of Oxford 352-363
Tendo discutido a tradução de um trabalho teórico importante, em seguida fomos Logan, T.R. & Music Psychology: Hallan, University
Begosh, K.T. Cross & Taut, Eds. Press
em direção a um lado mais poético da história da música. Partindo de uma solicita-
Parncutt, 2007 Systematic Musicology Journal of Interdisciplinary 1-32
ção do Instituto Liszt em Bolonha, Itália, traduzimos um livro pouco conhecido intitu- Richard and the history and Music Studies, I
future of Western musical http://uni-graz.at/~parncutt/
lado Liszt’s Paedagogium, escrito por Lina Ramann na virada do século XIX.Tínhamos scholarship SMW.HTM
a opção de consultar ambos o original alemão e a tradução italiana. Mais uma vez, Rink, John 1995 Playing in time: rhythm, The Practice of Cambridge 254-282
metre and tempo in Performance: Studies in University
não restava dúvida quanto à impropriedade de uma tradução mecânica visto não Brahms’s Fantasias Op.116 Music Interpretation, John Press
haver qualquer possibilidade de se optar por uma exatidão literal. Nosso objetivo era Rink, Ed.

preservar o nível de inspiração que motivou a própria escrita do trabalho. Ambos, Huron,
David
1999 Music and Mind:
Foundations of Cognitive
http://www.music-cog.ohio-state.edu/Music220/Bloch.lectures/1.
Preamble.html
Eco (2004) e Ricoeur (2006) reconhecem que as traduções são tarefas impossíveis; Musicology

os resultados desapontam, pois nenhuma equivalência é completamente exata. Esta Huron, 1999 An Instinct for Music: Is http://www.music-cog.ohio-state.edu/Music220/Bloch.lectures/2.
David Music and evolutionary Origins.html
afirmação nos libertou para o exercício da preservação do espírito do original e adaptation?

deixou nossa imaginação passear por metáforas tão ornamentadas quanto ousadas. Huron, 1999 Methodology: The New http://www.music-cog.ohio-state.edu/Music220/Bloch.lectures/3.
David Empiricism: Systematic Methodogy.html
Em primeiro lugar, e principalmente por sermos pianistas, sentimos que alcançamos Musicology in a Post
Modern Age
um nível razoável de negociação entre o alemão, o italiano e o solícito encantamen-
to de Raman com os ensinamentos de Liszt. Além disso, a tradução deste texto em Figura 1. Tabela com textos traduzidos publicados em Em Pauta
particular reforçou a crença fundamental de que o professor de instrumento - neste http://seer.ufrgs.br/EmPauta, Revista do Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal do

caso particular, o professor de piano - é o elo fundamental entre gerações, servindo Rio Grande do Sul, ISSN 0103-7420, E-ISSN 1984-7491, v.20, n.34/35 (2012).

como curador tanto das opções performáticas que serão passadas para as próximas
gerações quanto daquelas que fenecem. 3. Conclusão
Dos devaneios do passado e das tardes sublimes que usufruímos com Liszt e seus Até agora trabalhamos sob a suposição de que a tradução não é o mesmo que
fiéis discípulos, embarcamos numa jornada direcionada para o final do século XX e comparar duas línguas, mas a interpretação de um texto a partir do ponto de
com o que há de mais novo na Psicologia da Música e na Musicologia Cognitiva. A vista de dois contextos culturais diversos (Eco, 2004). O nosso objetivo é atrair os
tradução desses textos demandou uma extensa busca nas áreas de Antropologia, nossos leitores para um sistema de termos mutuamente acordados na negocia-
Biologia, Psicologia, Sociologia e Filosofia para se chegar a um vocabulário apropria- ção entre idiomas. Isto é, seguindo a direção de Ricoeur (2006), nos esforçamos
do, o que dá uma noção da amplitude do nosso esforço. O resultado das acaloradas para estabelecer diálogos entre sistemas culturais diversos. Na maioria dos casos,
discussões registradas no decorrer deste trabalho apontam para o elevado nível de os resultados finais não refletem traduções literais, mas sim decisões contextuais
comprometimento e dedicação dos nossos alunos de pós-graduação Josias Matschu- e referenciais tomadas para criar os significados mais claros para os leitores da
lat, Fernando Rauber Gonçalves, Stefanie Graça de Azevedo Freitas e Maurício Zami-
língua portuguesa. Ao colocar o núcleo do significado em primeiro lugar, fomos
th de Almeida. Como pode ser visto na tabela da Figura 1, essa coleção de traduções
capazes de expressar algo que não poderia ser compreendido anteriormente. Ao
compõem a maior parte da última edição de Em Pauta.2
fazê-lo, contribuímos com novas ferramentas conceituais que permitirão o nosso
2 http://seer.ufrgs.br/EmPauta, Revista do Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal do Rio campo de conhecimento se desenvolver ainda mais na sua compreensão.
Grande do Sul, ISSN: 0103-7420 E-ISSN: 1984-7491,v. 20, n. 34/35 (2012).

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o uso da linguagem
Referências
Barrenechea, Lúcia S. e Gerling, Cristina C. 2000. “Villa Lobos e Chopin: O diálogo musical
das nacionalidades” in: Três Estudos Analíticos: Villa-Lobos, Mignone e Camargo Guarnieri. PPG-
MUS, UFRGS, 1-93.
Barros, Guilherme S. e Gerling, Cristina C. 2007. “O Conceito Schenkeriano de Organicida-
de e a Sonata K. 533 de Mozart” in: DaPesquisa. (I), 1-9.
na análise musical
________. 2007. “Análise Schenkeriana e Performance”. OPUS (XIII), 1-20. Acácio T. C. Piedade
Chaffin, Roger. 2012. “Estratégias de recuperação da memória na execução musical: apren-
dendo Clair de Lune.” in: Em Pauta (XX) 34/35, 222-244.
________. “A memória e a execução musical “.in: Em Pauta (XX) 34/35, 186-221 1. Introdução
Cogan, Robert e Escot, Pozzi. 2013. Som e Música- A natureza das estruturas sonoras. Não há vocabulários técnicos irrefutáveis nas ciências humanas e nas artes.
Editora da UFRGS. Gerling, Cristina C., Gonçalves, Fernando R., Muniagurria, Carolina A.,
tradutores. E o que há? Aparentemente, centenas de vocabulários e terminologias mais ou
Domenico, J. 2010. “Croce, Gentile and Gramsci on Translation”. International Gramsci menos correntes em termos locais, regionais, nacionais e globais, e em determina-
Journal No. 2 April, 29-38. das épocas específicas. Um ensaio ou artigo analítico não pode fazer muito mais
Eco, Humberto. 2004. Mouse or Rat: Translation as Negotiation. Ed. Phoenix. do que empregar esses vocabulários e terminologias de forma a tornar o texto
Gerling, Cristina C. 1989. “A contribuição de Heinrich Schenker para a Interpretação compreensível para um público leitor particular: aquele que compartilha estes
Musical”. OPUS. Porto Alegre, (I), 24-31, vocabulários e terminologias com o autor. Nesta micro-relação entre autor e pú-
________. 1989. “A Teoria de Heinrich Schenker- Uma Breve Introdução”. Em Pauta (I), blico particular, o vocabulário e a terminologia produzem sentido. Uma tentativa
22-34.
de mapeamento e racionalização de mundo comunicativo pode recair no erro de
________. 1990. “Considerações sobre a análise schenkeriana. Cadernos de Estudo: Análise
Musical, (II), p. 1-8. supor que este uso particular possa ser universalizado e regulamentado. O que se
________. 1990. “Musical: Para quem e Porque?. PORTO ARTE (I), 14-18. pode fazer com a confusão terminológica?
Huron, David. 2012. “Música e Mente: Fundamentos da Musicologia Cognitiva”, in: Em Pauta Há vantagens em aceitar e acatar a confusão terminológica, vou mencionar
(XX) 34/35, 5-47. duas delas. Primeiro, as terminologias livres e confusas refletem um mundo de for-
________. 2012. “Um instinto para a música: seria a música uma adaptação evolutiva?” in: ças políticas livres e confusas: aceitá-las acaba dificultando o advento de vocabu-
Em Pauta (XX) 34/35, 48-84.
lários “nacionalizados”, os quais muitas vezes são criados como ações defensivas
________. 2012. “Metodologia- O Novo Empirismo: musicologia sistemática emu ma era
pós-moderna.” in: Em Pauta (XX) 34/35, 85-144.
anti-imperialistas, uma estratégia mais geopolítica do que propriamente musical.
Segundo, a diversidade é interessante para o mundo e, muitas vezes, as confusões
Lewin, Harold. F. 1978. “Sonic Design” in: Theory and Practice, (III), 1, (February, 1978), 55-
58 Published by: Music Theory Society of New York State são ricas em testemunhos contrários ou diferentes visões de mundo. Ao invés de
Article Stable URL: http://www.jstor.org/stable/41330413 tentar corrigir erros, um caminho seria discutir a validade de um termo ou outro,
Parncutt, Richard. “Musicologia Sistemática: a história e o future do ensino acadêmico contextualizando e historicizando seu uso, sem pressupor que haja um termo
musical no ocidente. in: Em Pauta (XX) 34/35, 145-185. mais válido definitivamente. Creio que atualmente esse é o único caminho a se-
Raman, Lina. 2012. Franz Liszt, O Pedagogo Composições para Piano. Porto Alegre: Editora guir quando se fala da criação e publicação de uma obra de referência do tipo
Sulina, Freitas, Stefanie, Faistauer, Rodolfo, Matschulat, Josias, tradutores; revisão de Maria José vocabulário técnico ou dicionário de análise musical.
Carrasqueira de Moraes.
Ricouer, Paul. 2006. On Translation. Eileen Brennan, trad. Routledge. Entretanto, mesmo os artigos mais duros e densos em geral não atentam para
Rink, John. “Manipulando o tempo: ritmo, métrica e andamento nas Fantasias op. 116 de a precariedade semântica inerente a estes discursos e buscam alcançar objetivi-
Brahms. in: Em Pauta (XX) 34/35, 245-282. dade na análise das obras musicais. Com isso, acabam produzindo verdadeiras fic-

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE IV - VOC ABULÁRIO TEÓRICO-ANALÍTICO E SUA PROBLEMÁTIC A

ções, criam mundos imaginários e convidam o leitor para um passeio, engajando-o O segundo Wittgenstein, o das Investigações Filosóficas, de 1952, redimensiona
e tentando persuadi-lo a acatar suas premissas como se fossem coisas naturais. o lugar do significado, trazendo-o para o nível da própria linguagem comum (Witt-
A aderência do leitor a esse cosmos ficcional é o objetivo primário do autor e é genstein 1989). Não é mais necessário sair das aparências e descer às profundezas
uma meta fundamental para que o texto seja inteligível. O texto analítico, como da linguagem para delinear a lógica da sua estrutura gramatical, basta levar o foco
qualquer outro texto, está sempre dentro de um mundo de linguagem habitado de nossos interesses e atenções para os padrões ordinários que usamos cotidia-
pela seu autor e outras vozes internas ou agentes, e portanto os vocabulários que namente. A lógica e o sentido entre realidade e linguagem estão ali, na linguagem
habitam este texto refletem historicidades, subjetividades e nexos socioculturais ordinária, perto demais para percebermos. Assim, a representação figura-mundo
particulares. deixa de ser válida: a linguagem não é o retrato do mundo, mas uma espécie de
rede formada por inúmeros pedaços de corda que se intercomunicam. As comu-
nidades de fala empregam a linguagem de modo significativo, a linguagem pode
2. Os limites da linguagem: Wittgenstein
dizer algo, mas isto se dá dentro de um universo de consenso onde ocorrem os
Para falar das limitações e dos usos da linguagem, vou fazer alguns comentários jogos de linguagem: usar palavras requer conhecer regras do jogo da linguagem,
sobre os pensamentos do filósofo Ludwig Wittgenstein que eu acho interessante coisa comum a qualquer prática lingüística. Estas práticas estariam embebidas em
trazer aqui. No dito “primeiro” Wittgenstein, o do Tractatus Logico-Philosophicus, universos mais largos, que ele chamou de formas de vida, que podemos simplificar
de 1921, a linguagem nos fornece um retrato do mundo (Wittgenstein 1968). aqui com uma sendo diferentes formas de vida cultural1.
Mesmo em suas proposições mínimas, a linguagem consiste em retratos da rea-
Este Wittgenstein tardio conceitualiza a linguagem e o pensamento humano
lidade - os fatos. A linguagem tem a mesma forma lógica que o mundo, obedece
como fatos incorporados em sistemas sociais de comunidades que os põe em
às mesmas regras da lógica: há um isomorfismo entre mundo e linguagem. Como
uso, e nestes micromundos são auto-validativos em termos lógicos. É nas cultu-
os limites da linguagem são os limites do pensamento, as proposições lógicas da
ras particulares, ou “formas de vida”, que as linguagens naturais encontram sua
linguagem são um retrato do mundo e nada mais podem ser - nada podem dizer
aplicação adequada: os objetivos práticos. Os problemas e teorias filosóficas são
sobre qualquer outra coisa. Ou seja, as proposições lógicas são tautológicas, elas
produtos da imaginação, são meras “perplexidades” resultantes de equívocos em
de fato “não dizem nada”.
nossa forma de pensar, erros lingüísticos. A linguagem não pode ser unificada se-
Essa conclusão levou a uma idéia que as duas filosofias de Wittgenstein manti- gundo uma única estrutura lógica e formal, este sendo o problema fundamental
veram: todas as confusões e complicações filosóficas são originadas, na verdade, do Tratactus. Para o segundo Wittgenstein, a filosofia deve abandonar a busca da
em erros de linguagem, e nada têm a ver com a realidade. Ou seja, o impasse na essência da linguagem e buscar desvendar como ela funciona.
compreensão, a confusão nas terminologias e nos vocabulários, ocorre devido
ao emprego errôneo de uma palavra em uma situação na qual ela não se aplica.
A filosofia de Heidegger, por exemplo, não poderia estar tratando de fatos, mas 3. Ficções analíticas
apenas de fenômenos lingüísticos, sua compreensibilidade decorrendo de uma Saindo um pouco deste universo da filosofia analítica e da grande virada lingüís-
adesão do leitor às profundezas do universo da linguagem, e não do mundo real. tica catapultada por Wittgenstein, mas me mantendo no pragmatismo, vou tratar
Uma ressonância imediata no campo da análise musical aqui é uma dupla tau- agora rapidamente de um artigo de Marion Guck intitulado “Analytical Fictions”
tologia: a primeira, essa da própria linguagem, a outra, na descrição de um fato (Guck 1994). A autora analisa o discurso analítico em três artigos da literatura da
no mundo que é uma música. O uso da linguagem nessa descrição e análise área, escritos por autores consagrados. Uma das conclusões mais óbvias que che-
conta com “erros” lingüísticos naturalizados, como por exemplo as metáforas da ga é que a objetividade da análise musical nunca foi conquistada: ao contrário, es-
espacialidade, onde o som pode subir ou descer. Se levarmos a sério o primeiro tas três análises contam histórias do envolvimento entre analista e obra analisada.
Wittgenstein, sobre a música não se pode falar, deve-se calar. 1 Para uma discussão interessante sobre Wittgenstein e a noção de cultura, ver Gellner (1998).

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Guck discute primeiramente o artigo em que Edward T. Cone analisa o Mo- Nos artigos que usam a teoria dos conjuntos, o uso de termos como “equivalên-
ments Musicaux Nr. 6 de Schubert (Cone 1982). O discurso de Cone trata da cia”, “coleção”, “classe”, “vetor”, entre muitos outros, pressupõe uma ficção similar
música como se envolvesse com outro ser humano: o leitor é disposto como àquela do exemplo de Allen Forte acima. Isso mostra como um modelo analítico
observador do drama interno de um indivíduo, que é a música, narrado pelo carrega junto consigo toda uma discursividade. No fundo, trata-se de retoricidade,
autor do artigo. Cone postula que esta obra é uma representação das reflexões pois o esforço todo é para co-mover o leitor e fazê-lo aderir ao discurso.
de Schubert sobre seu adoecimento com sífilis, e assim, o compositor, como o O próprio termo “análise” pode ser mencionado, já que ficou atrelado ao estu-
novelista, compõe uma persona cujas experiências mentais são pintadas musical- do das estruturas musicais devido à herança formalista. Houve um intenso esforço
mente. Esta ficção analítica retrata o mundo turbulento dos pensamentos deste de purgar a subjetividade do autor e produzir conhecimento com base no mé-
indivíduo-música. todo científico, levando à crítica de Joseph Kerman e a todas as transformações
Já na análise de Allen Forte da Rapsódia para Viola, de Brahms, a ficção é com- ocorridas nos anos 80 (Cook & Everist 1999). Ainda hoje, a análise “histórica”,
pletamente diferente (Forte 1983). O artigo é uma espécie de exame de um “cultural” ou “sociológica” é afastada da área de teoria e análise e alocada em ou-
objeto inanimado dotado de material (motivico) e outros “componentes”, os tras disciplinas, embora um número cada vez maior de autores trate de aspectos
quais se “combinam”. A obra não é um indivíduo, mas um objeto fabricado. Nes- multidisciplinares em suas análises.
te artigo, e em muitos outros deste mesmo autor, o estilo é de relatório técnico
centrado nos atributos físicos do objeto que é a música. O uso do modo passivo 4. Conclusões
deleta a agentividade e a subjetividade do compositor, buscando uma neutralida- Minha conclusão principal é que no texto analítico ocorre um esforço do analista
de científica. O tratamento da obra imagina que ela foi produzida por um com- para navegar na imensa limitação da linguagem para se falar sobre qualquer coisa,
positor-engenheiro, que ali cristalizou certos atos que combinam componentes, neste caso a qualquer coisa é a música. Na busca de compreensibilidade, sua argu-
segmentos e elementos no intuito de criar um artefato. mentação, sua tentativa de trazer o leitor-ouvinte para a adesão à idéia, o autor não
Com forte base schenkeriana, Carl Schacher analisou o primeiro movimento da deveria se iludir: ele está gerando uma ficção que nada tem de objetivo, mas que
segunda sinfonia de Brahms (Schachter 1983) como uma história de envolvimen- nem por isso deixa de ter valor enquanto testemunho de uma experiência musical
to emocional e intrínseco à apreciação da obra. Contando com a dimensão esté- transmitido a uma comunidade que lhe acolhe ou refuta.
sica, Schachter descreve o desejo do ouvinte por movimento e sua experiência da Usamos metáforas para tentar falar da música. Isto é inevitável, apesar de ser pre-
tensão como fator motivador, tudo isso usando um vocabulário de expansão, com cário. O uso de metáforas funciona na criação de uma espécie de senso narrativo
termos como “alargamento”, “aumentação”, “estendido”, “extensão”, entre outros, paramusical, que é onde essas ficções analíticas habitam e se fazem necessárias. Mas
que sugerem a exploração do espaço interno na recepção da obra. Aqui não há é importante que se guarde: no uso da linguagem, a compreensibilidade é cultural,
um compositor-engenheiro, nem um indivíduo-música, mas um ouvinte que tem histórica e tênue, a certeza é frágil. Os termos técnicos aqui nada têm de tecnici-
desejos com respeito à música e que co-habita esse mundo ficcional. dade, são ferramentas na fabricação de sentido da ficção analítica. O próprio texto
Guck mostra, com estes três exemplos, como o uso de determinadas formas analítico é assim uma narrativa. Edward Cone, Allen Forte e Carl Schachter contam
verbais e terminologias constitui diferentes vocabulários empregados nos textos suas estórias, e Marion Guck a estória dessas estórias. E eu?
analíticos. Além dessas três ficções particulares, há muitas outras por aí.Talvez toda Se o primeiro Wittgenstein estiver correto, nada do que eu falei faz o menor
a produção nesta área seja bastante ficcional, no seu esforço de tecnicidade e pre- sentido, não há nada do que eu disse que corresponda a qualquer fato real. Se o
cisão. Há uma grande indefinição já nos próprios conceitos fundamentais, pilares segundo Wittgenstein estiver correto (e é este que eu prefiro), não é que eu esteja
do discurso analítico. Na língua portuguesa, veja-se por exemplo: Performance; correto, mas é certo que você conhecem as regras do jogo e, assim, compreendem
Interpretação; Sistema; Modelo; Teoria Composicional, e muitos outros conceitos. o sentido da minha estória.

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE IV - VOC ABULÁRIO TEÓRICO-ANALÍTICO E SUA PROBLEMÁTIC A

aspectos sobre a tradução de


Referências
Cone, Edward T. 1982. “Schubert’s Promissory Note: An Exercise in Music Hermeneutics”.
Nineteenth-Century Music 5: 233-41.
Cook, Nicholas & Everist, Mark (eds.). 1999. Rethinking Music. London: Oxford University
Press.
vocabulário teórico-analítico:
Forte, Allen. “Motive and Rhythmic Contour in the Alto Rhapsody”. Journal of Music Theory
27: 255-71.
o caso das traduções de obras
Gellner, Ernest. 1998. Language and Solitude. Wittgenstein, Malinowski and the Habsburg
Dilemma. Cambridge: Cambridge University Press.
teóricas de arnold schoenberg
Guck, Marion. 1994. “Analytical Fictions”. Music Theory Spectrum 16 (2):217-30.
Norton Dudeque
Schachter, Carl. 1983. “The First Movement of Brahms’s Second Symphony: The First Theme
and its Consequences”. Music Analysis 2:55-68.
Wittgenstein, Ludwig. 1968 [1921]. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Editora da USP.
Wittgenstein, Ludwig. 1989 [1952]. Investigações Filosóficas. Coleção Os Pensadores, São O mapeamento de termos específicos em teoria e análise musical em portu-
Paulo: Nova Cultural. guês é uma tarefa devida de longa data. Neste texto abordo assuntos pertinentes
ao vocabulário técnico da área, entre os quais destaco: tradução de termos, tra-
dução de ideias às quais os termos se referem; acuidade e corretismo em tradu-
ção. Se por um lado podemos observar que a tradução, adaptação e adoção de
termos específicos devem apresentar um alto grau de consistência para com o
sentido do termo original, por outro, também pode-se observar que um alarga-
mento do sentido original de um determinado termo sugere um distanciamento
e, possivelmente, um desenvolvimento do sentido original daquele termo ou con-
cepção. Com o intuito de ilustrar estes aspectos discuto brevemente as traduções
para português de obras teóricas de Arnold Schoenberg.
As traduções dos livros de Schoenberg para português realizadas nas últi-
mas duas décadas são importantes pois alguns destes textos se tornaram material
de referência para estudantes e professores de ensino superior no Brasil. No en-
tanto, um exame sobre estas traduções pode ilustrar aspectos sobre a compre-
ensão das ideias ali contidas, diferenças na tradução de termos específicos, assim
como abordagens distintas adotadas nos trabalhos de tradução.
Certamente, a obra de Schoenberg mais conhecida é o Harmonielehre de
1911, traduzido para o português em 1999 por Marden Maluf, como Harmonia.
Outras obras de Schoenberg traduzidas são os textos criados nos EUA, tradu-
zidos por Eduardo Seincmann. São estes: Fundamentos da Composição Musical
(1991), Exercícios Preliminares em Contraponto (2001) e Funções Estruturais da Har-

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE IV - VOC ABULÁRIO TEÓRICO-ANALÍTICO E SUA PROBLEMÁTIC A

monia (2004). Nestas traduções encontram-se termos e concepções importantes tações de alunos de Schoenberg presentes no Arnold Schoenberg Centre em
para a teoria e análise musical, sendo que, por vezes, as traduções não encontram Viena. No entanto, Robert Wason, quando resenhando a tradução para o inglês
perfeita concordância entre si. do Harmonielehre, propõe que o termo se refere ao direcionamento que a escala
menor deve tomar em termos de condução de voz. Para tal ele propõe que Wen-
depunktgesetze seja traduzido como “the four directional laws of the minor scale”
1.
(as quatro leis direcionais da escala menor) (vide Wason, 1980, p. 310-311). Com-
Quando da publicação da tradução do Harmonielehre em 1999, realizei uma
parando-se com a tradução do termo em Exercícios Preliminares em Contraponto,
breve resenha, publicada na revista PerMusi da UFMG, abordando aspectos de ca-
realizada por Seincmann, o termo passa a ser “pontos decisivos” dentro do con-
ráter musicológico que pudessem ser interessantes e que dizem respeito à tradu-
texto de neutralização no modo menor. Naturalmente que entende-se do que se
ção e compreensão do sentido original de termos, assim como aspectos relativos
trata e como a condução de voz na tonalidade menor é realizada de acordo com
à concepção de noções presentes no livro de Schoenberg.
Schoenberg. Mas mesmo assim há discrepância de tradução. Este exemplo simples
Primeiramente, aspectos sobre a origem do livro de Schoenberg podem con- e não tão grave pode ser apenas o início de uma investigação que traz algumas
tribuir para o entendimento de várias concepções importantes para a teoria da consequências mais sérias nas traduções mencionadas.
harmonia de Schoenberg. O texto do Harmonielehre têm sua origem ligada di-
retamente à prática pedagógica de Schoenberg, como ele mesmo declara já na
primeira linha do prefácio à primeira edição: “Este livro, eu o aprendi de meus
2.
alunos” (p. 31). É importante lembrarmos que entre os alunos de Schoenberg à Um segundo caso está presente nos termos que são relacionados à conexão
época estavam, Alban Berg, Anton Webern, Egon Wellesz, Erwin Stein, entre ou- entre acordes, ou seja, a distinção entre sucessão e progressão harmônica. Cabe
tros. Mas uma das influências teóricas mais perceptíveis em várias das concepções aqui observar que Schoenberg fazia uma diferenciação entre sucessão harmônica
apresentadas no livro de Schoenberg é a do teórico austríaco Simon Sechter. Fato e progressão harmônica. Em Structural Functions of Harmony, Schoenberg se refere
importante uma vez que contribui para o entendimento de conceitos presentes às sucessões harmônicas (succession), traduzido como sequência por Seincmann,
no livro.1 e às progressões harmônicas. Schoenberg enfatiza que a primeira não produz
movimento harmônico, ou seja “uma sequência não tem objetivo”, diz ele, en-
Um primeiro termo traduzido suscita reflexão. Podemos analisar brevemente
quanto que uma progressão “almeja um propósito definido” (vide Schoenberg,
o que Schoenberg diz a respeito do modo menor. Ele defende que, para se ex-
1969 [1954], p. 1, [2001], p. 17). Neste caso, e pela concepção de Schoenberg, são
pressar uma tonalidade menor de forma eficaz, deve-se seguir a neutralização das
duas ideias distintas com funções diferentes. Cada termo denota, portanto, um
quatro notas variáveis da escala menor melódica (6º e 7º graus) o que determina
significado distinto.
a condução melódica das vozes. Para tal, Schoenberg utiliza o termo Wendepunk-
tgesetze, traduzido como “pontos de trajeto obrigatório” (Schoenberg, 1999, p. A inconsistência surge quando lemos no Harmonia que o termo utilizado para
158). O termo utilizado na tradução do livro para o inglês, e que Schoenberg encadeamentos da fundamental de acordes é traduzido por sucessão. De fato, o
utilizava nas suas aulas nos Estados Unidos, é turning-points, como atestam as ano- termo utilizado na versão inglesa do Harmonielehre é progressão das fundamen-
tais (root progression), denotando uma precisão maior em relação ao sentido ori-
1 Também é importante lembrar que por conta desta influência e das novas proposições de Schoenberg, o ginal do termo, ou seja, movimento entre as fundamentais de acordes.
Harmonielehre obteve uma crítica bastante negativa por parte de Hugo Riemann, que escreveu que a obra de Schoenberg
é uma mistura de teorias antiquadas e derivadas do sistema de Simon Sechter, além de uma negação hiper-moderna de Mais um exemplo ocorre com os termos “sucessões crescentes” [Steigende
toda teoria musical (Riemann, 1922, v. 2/iii, p. 254). Vide Riemann, 1922, p. 254; e também o verbete ‘Schönberg, Arnold’ no
Riemann Musiklexikon (Leipzig, 1916).
Schritte] e “sucessões decrescentes” [Fallende Schritte]. O tradutor argumenta que

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE IV - VOC ABULÁRIO TEÓRICO-ANALÍTICO E SUA PROBLEMÁTIC A

assim traduz para evitar uma confusão terminológica, e observa que “o ascen- Musik’, 1856]). Esta e outras noções semelhantes evoluíram para uma abordagem
dente e descendente” se referem ao conteúdo harmônico e não a um movi- orgânica da forma musical, um ponto de vista adotado por Schoenberg em sua
mento melódico (por exemplo, de quinta ascendente) (pp. 184–5, rodapé). Mas obra teórico-analítica e composicional, e frequentemente associado à noção de
devemos lembrar que os termos progressões ascendentes e descendentes já são Grundgestalt.
amplamente adotados em trabalhos que tratam da teoria “Schoenberguiana” e No entanto, para a compreensão da noção de Grundgestalt se faz necessário
“Schenkeriana”, e são corroboradas pelo próprio Schoenberg como ele mesmo que recorramos a outros autores, pois o próprio Schoenberg nunca abordou
esclarece em nota de rodapé. Ademais, o entendimento de sucessão harmônica o termo e sua definição de forma exaustiva a ponto de esclarecer seu sentido.
permite até que desenvolvamos um pensamento que se aproxima ao de prolon- Assim, Erwin Stein e Josef Rufer definem o entendimento de Grundgestalt de ma-
gamento harmônico, até mesmo de acordo com o que faz Sechter em seu Die neiras distintas e que dependem da utilização analítica específica. Para o primeiro,
Gründsatze der musikalischen Komposition de 1853 (Princípios da Composição o termo está associado à forma da série dodecafônica (Stein, 1953, p. 65), já Rufer,
Musical). Portanto, não seria o caso de se ter mantido os termos já consagrados? declara que a Grundgestalt deve ser considerada para todos os tipos de música
Se utilizamos, como ocorre no Harmonia, o termo sucessão em vez de progressão (Rufer, 1954, p. vi-vii). Mas ambos se referem sempre à uma “forma básica” (basic
caímos em contradição terminológica e de significado. shape) ou à uma ideia básica que gera o material necessário para a obra musical.
Entre as novidades que o Harmonielehre traz em seu conteúdo, está uma das Neste sentido, talvez uma tradução que se aproxime ao sentido do termo seja
primeiras teorizações sobre novos elementos da linguagem harmônica, tais como: ideia básica.
tonalidade flutuante e tonalidade suspensa, o uso da escala de tons inteiros, acor- Já Developing Variation, traduzido por Seincmann como variação progressiva [ou,
des com cinco ou mais sons, e acordes quartais (acordes construídos através da literalmente, variação por desenvolvimento] (Schoenberg, 1991, p. 36), e assim ado-
sobreposição de quartas justas). Apesar de haver concordância de tradução dos tado em textos sobre o assunto, também merece uma breve reflexão. Quando
termos, parece não haver concordância de definição na própria obra de Scho- Schoenberg formula sua ideia sobre variação progressiva ele também propõe sua
enberg e tampouco entre teóricos que estudam e escrevem sobre estes assuntos, versão da fórmula “unidade na diversidade”. Esta noção, como Dahlhaus sugere,
como apontado por Antenor Ferreira em 2005. propicia a criação de variedade em estruturas localizadas e em larga-escala através
da integração do material básico, representado pela Grundgestalt e desenvolvido
3. por variação progressiva, à estrutura formal da obra (Dahlhaus, 1991, pp. 51–52).
Nos livros traduzidos de Schoenberg, encontram-se dois conceitos centrais O termo “variação progressiva” denota aspectos diferentes de uma técnica
tanto para o entendimento das composições de Schoenberg quanto para a aná- de composição. Ele implica uma noção de “crescimento e desenvolvimento” re-
lise musical: Grundgestalt e Developing variation. lacionado à abordagem orgânica de variação motívica, distinta daquela associada
à técnica de variação, como em um Tema e Variações. Neste sentido, a conexão
O conceito de Grundgestalt é uma tentativa de Schoenberg de reformular uma
entre diferentes motivos pode ser entendida como não tendo uma relação direta,
ideia sobre unidade na música que se origina na teoria musical dos séculos XVIII
ou seja, variações progressivas de um mesmo motivo podem ter seu conteúdo
e XIX. Teóricos como Adolph B. Marx já tinham explorado noções semelhantes.
essencial derivado de uma característica comum, muito embora esta não seja uma
Marx enfatizava a importância de um motivo básico a partir do qual todo o mate-
condição sine qua non. Portanto, em variações progressivas de um motivo básico,
rial temático restante deveria ser derivado e entendia que o pensamento musical
pode não existir uma relação facilmente identificável entre as variações mais lon-
inicial deveria ser o motivo, o qual tomava a forma de “uma configuração primá-
gínquas. Por exemplo, em uma série de 4 motivos desenvolvidos a partir de um
ria”, uma [Urgestalt] de todo material musical (Marx, 1997, p. 66 [‘Die Form in der

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básico, o segundo pode ter uma relação direta com o primeiro, mas as terceira e é a elaboração de um dicionário de termos para teoria e análise musical longa-
quarta variações podem ou não apresentar características que sejam relacionadas mente esperado. Assim, alguns aspectos deste volume podem ser adiantados: 1.
ao motivo inicial. Assim, o sentido de variação progressiva é o de desenvolvimento formato de verbetes expandidos (ou glossário expandido); 2. os verbetes devem
de uma ideia básica. Nos textos do próprio Schoenberg percebe-se sempre uma ser concebidos de maneira crítica e por reconhecidos especialistas da área; 3. Um
preocupação em definir que variação por desenvolvimento “progride” até o surgi- criterioso levantamento de quais termos a serem incluídos no volume também
mento de uma segunda ideia musical, derivada da primeira. Bastaria observarmos se faz necessário; 4. Possibilidade de atualizações periódicas do volume, para tal
os fragmentos de análise do Quarteto k. 465 (A Dissonância) de Mozart deixados propõe-se que haja também uma versão online.
por Schoenberg.2 Nestes fragmentos percebe-se claramente como o motivo da
Grundgestalt é desenvolvido e progride até chegarmos em uma nova ideia musical, Referências
o tema secundário da forma sonata.
Beard, David and Gloag, Kenneth. Musicology, the key concepts. London: Routledge, 2005.
Talvez aqui devêssemos revisar esta tradução e adotar a tradução de variação
Dahlhaus, Carl. Ludwig van Beethoven, Approaches to His Music. Trad. Mary Whittall. Oxford:
por desenvolvimento, uma vez que demonstraria uma fidelidade maior para com
Oxford University Press, 1991.
o sentido original do termo.
Dunsby, Jonathan. “Criteria of correctness in music theory and analysis”. In Theory, analysis
and meaning in music. Ed.: Anthony Pople. Cambridge: CUP, 1994. P. 77-85.
Comentários Finais
Ferreira, Antenor. “Poliônimo: Definição de alguns termos relativos aos procedimentos
Os problemas que surgem, assim, das traduções são bastante variados. Uma
pós-tonais”. Anais do XV Congresso da ANPPOM. São Paulo: ANPPOM, 2005, p. 577-586.
discussão inicial refere-se ao fato de que traduções publicadas têm uma alta pro-
babilidade de que os termos ali presentes sejam perpetuados por conta do meio Marx, A. B. Musical Form in the Age of Beethoven - Selected Writings on Theory and Method.
físico, do texto impresso, até mesmo quando temos alternativas de traduções Trad.: Scott Burnham, Ed. Ian Bent (General Editor). Cambridge: Cambridge University Press,
mais acuradas e mais fiéis ao sentido original do termo. Assim, um primeiro ques- 1997.
tionamento surge sobre nossa disposição, competência, habilidade e possibilidade
_________. “Die Form in Der Musik.” Ed. Dr. J A Romberg, vol. 2: 21–48. Leipzig: Romberg’s
real de revisar de maneira crítica as traduções já realizadas. Realizaríamos estas
Verlag, 1856.
revisões críticas? Me parece que é necessário.
Riemann, Hugo. “Handbuch Der Musikgeschichte.” Vol. v. 2/iii. Leipzig: Breitkopf und Härtel,
Um segunda reflexão, diz respeito ao corretismo na tradução de termos e
1922.
seu significado de textos da área. Este corretismo deveria corresponder, em grau
máximo, ao significado do sentido original do texto [do termo]. Para tal, por Rufer, Joseph. Composition with Twelve Notes Related Only One to Another. London: Barrie &
vezes, devemos lançar mão de estudos sobre a origem do texto, seu contexto Jenkins Limited, 1954.
teórico-histórico, e até mesmo social. Se este não for o caso, teremos então um
Schoenberg, Arnold. Harmonielehre. Wien: Universal-Edition, 1922.
desenvolvimento do sentido original do termo e, possivelmente, uma tradução
equivocada. ________. Theory of Harmony. Trad. inglês: Roy E Carter. London: Faber & Faber, 1978.

Concluindo, e como propósito geral desta mesa temática e do Grupo de Estu- ________. Harmonia. Trad.: Marden Maluf. São Paulo: Editora UNESP, 1999.
dos “vocabulário teórico-analítico na Língua Portuguesa: consensos e dissensos”, ________. Preliminary Exercises in Counterpoint. Ed. Leonard Stein. London: Faber & Faber,
2 Vide Zusammenhang, Kontrapunkt, Intrumentation, Formenlehre (1917) e no manuscrito Gedanke (1934-36), 1963.
traduzido para o inglês como The Musical Idea.

212 213
O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO

________. Exercícios Preliminares em Contraponto. Trad.: Eduardo Seincman. São Paulo: Via
Lettera, 2001.

________. Fundamentals of Musical Composition. Ed. Gerald Strang. London: Faber & Faber,
1967.

________. Fundamentos Da Composição Musical. Trad.: Eduardo Seincman São Paulo: Edusp,
1991.

________. Structural Functions of Harmony. Ed. Leonard Stein. London: Faber & Faber, 1969.

________. Funções Estruturais Da Harmonia. Trad.: Eduardo Seincman. São Paulo: Via Lettera,
2004.

________. Coherence, Counterpoint, Instrumentation, Instruction in Form. Ed. Severine Neff.


Trad.: Charlotte M Cross e Severine Neff. Lincoln: University of Nebraska Press, 1994.

________. The Musical Idea and the Logic, Technique, and Art of Its Presentation. Ed. e Trad.:
Patricia Carpenter e Severine Neff. New York: Columbia University Press, 1995.

Sechter, Simon. Die Grundsätze Der Musikalischen Komposition. 4 vol. Leipzig: Breitkopf und
Härtel, 1853.

Stein, Erwin. Orpheus in New Guises. London: Rockliff Publishing CO., 1953.

Wason, Robert W. Resenha sobre “Theory of Harmony” de Arnold Schoenberg. Ed. e Trad.
de Roy E Carter. Journal of Music Theory, 1981.

214
PARTE IV - VOC ABULÁRIO TEÓRICO-ANALÍTICO E SUA PROBLEMÁTIC A

por que teoria da música?1


Michael Klein
Tradução de Ilza Nogueira
Felizmente ou infelizmente, os Estados Unidos são responsáveis pelo reconhe-
cimento da Teoria da Música como uma disciplina à parte da composição ou da
musicologia na academia. Isso não quer dizer que não houvessem teóricos antes
de 1977, quando a Society for Music Theory foi formada. Rameau foi teórico, mas
era primariamente compositor. Riemann foi teórico, mas era primariamente mu-
sicólogo e organista. Até Heinrich Schenker, que nem foi compositor (ou pelo
menos não foi um bom compositor) nem musicólogo, fez a vida como pianista. A
questão é que, quando pesquisadores se reuniram em Northwestern University
para criar a Society for Music Theory, sua preocupação era a de que a Teoria da
Música deveria ser reconhecida como uma disciplina por seus próprios méritos.
Eles também estavam preocupados com o fato de que o ensino da Teoria da Mú-
sica era inadequado, porque foi sempre deixado a compositores ou musicólogos,
considerados menos rigorosos em suas abordagens da análise musical.
Tendo formado a Society for Music Theory, esse novo grupo de teóricos rapi-
damente instituiu revistas e sociedades regionais, e cuidaram de Yale como um
modelo para novos programas de Doutorado (Ph.D.). Em grande medida, os ob-
jetivos desses primeiros teóricos americanos foram atingidos. A Teoria da Música
é agora uma disciplina estabelecida, considerada separada da composição e da
musicologia nos Estados Unidos. Agora, a Teoria da Música é principalmente ensi-
nada por teóricos, em vez de compositors e musicólogos. E o número de revistas
dedicadas à Teoria da Música ainda está crescendo. A Society for Music Theory ex-
portou a ideia do teórico profissional para o Canadá, o Reino Unido, a Bélgica, a
Coréia do Sul e outros países.
No entanto, a reação ao teórico profissional foi imediata. Notoriamente, em seu
livro Contemplating Music, o musicólogo Joseph Kerman se queixou de que os mú-
sicos teóricos americanos estavam somente interessados em análise schenkeriana
e pós-tonal, e que esse foco exclusivo na análise removeu a música da cultura e
da história que a sustentavam. Os músicos teóricos responderam à primeira das
queixas de Kerman. Os schenkerianos, por exemplo, estão mais marginalizados no
campo e novas formas de análise vieram à proa, incluindo a análise neo-riemania-
1 Título original: Why Music Theory?

219
O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE IV - VOC ABULÁRIO TEÓRICO-ANALÍTICO E SUA PROBLEMÁTIC A

na, a teoria transformacional, teorias esquemáticas, a teoria cognitiva, etc. Ademais, Então, a ideologia não admitida por trás da Teoria da Música nos Estados Uni-
os teóricos agora consideram um repertório mais amplo, incluindo jazz, música dos implica na compreensão de que essa disciplina, considera em si, não conta
popular, música não ocidental, hip-hop, blues, música de grupos marginalizados, muito. Resulta que as técnicas altamente desenvolvidas e os modelos da Teoria da
etc. Mas os músicos teóricos nos Estados Unidos ainda se preocupam com análise Música e da Análise fornecem muito mais detalhes sobre a música do que o real-
às custas da cultura, da história, da subjetividade e dos campos maiores incluídos mente necessário para qualquer atração pela composição, interpretação, estética
no que nós chamamos de “teoria crítica”. ou qualquer outra coisa que possa justificar instituir a Teoria da Música como uma
Como escrevi em um dos capítulos do meu livro Intertextuality in Western Art disciplina que mereça nossa atenção. Adaptando um argumento de Fredric Jame-
Music, os teóricos da música tentaram justificar seu profundo interesse nas minú- son a respeito de conteúdo e forma das artes (2007: xvii), a Teoria da Música se
cias da análise musical, dizendo-nos como isso pode ajudar outros subcampos da compromete com uma forma da forma, uma estratégia utópica, que, ignorando a
música. Supõe-se, por exemplo, que a Teoria da Música ajude os compositores. história e a cultura, libera a música de qulquer poder representativo que ela tem
Não há dúvida de que isso é verdade. No entanto, eu suspeito que poucos com- em fazer história e cultura.
positores usem ou necessitem das ferramentas altamente refinadas que a Teoria Se meus colegas dos Estados Unidos lessem este texto, eles poderiam argu-
da Música desenvolveu. Muito poucos dos modernos textos canônicos da Teoria mentar que eu tracei um quadro unilateral da Teoria da Música. Eles poderiam
da Música tratam a análise como um degrau para a composição. Schenker, por dizer que, além das subdisciplinas que eu mencionei, há teóricos da música envol-
exemplo, reivindicou que sua teoria, intencionalmente, não foi sobre como com- vidos com problemas de hermenêutica, semiótica, subjetividade, estudos culturais,
por. E Allen Forte reivindicou que a teoria de classes de notas foi projetada para etc. Eu concordaria que, quando os teóricos da música voltam sua atenção para
nos fornecer uma estrutura sistemática que revelasse a unidade subjacente da essas áreas, seu trabalho é geralmente mais sedutor do que quando eles olham
música pós-tonal. Diz-se que a Teoria da Música também é boa para os intérpre- para a contestada noção de “música em si”. Como único exemplo, Steven Rings,
tes, cuja lamentável ignorância da estrutura musical demonstra negligência por um na Universidade de Chicago, escreveu um livro muito denso sobre cromatismo,
compromisso profundo com a partitura. No entanto, penso que os últimos co- intitulado Tonality and Transformation, o qual, com suas muitas tabelas, gráficos e
mentários de Wallace Berry sobre esse tópico ainda ressoam verdadeiros (Berry termos especializados, atrairia somente um pequeno público, mesmo dentro da
1989, 1): “surpreendentemente, em termos gerais, a Teoria da Música tem pouco Teoria da Música, e seria inteiramente indecifrável para qualquer um fora deste
a dizer sobre problemas de interpretação, pois estes podem, sensatamente, deri- campo. Mas Rings também escreveu um artigo mais hermenêutico sobre o prelú-
var de observações … sobre forma musical, estrutura e processo.” Pessoalmente, dio de Debussy Des pas sur la neige (2008), que discute noções de tempo e me-
como pianista praticante, admito que muito pouco do que sei sobre estrutura mória como o que ele denomina “fenômenos materiais”. Aqui a Teoria da Música
musical tem impacto sobre como eu interpreto a música para a performance. representa uma parte num argumento maior envolvendo história e cultura, que
Gosto de saber em que tonalidade está a peça e onde as frases começam e ter- geralmente falta na obra de outros teóricos.
minam. Mas essas são tarefas analíticas de muito baixo nível. Não posso imaginar Não posso deixar de notar, no entanto, que os músicos teóricos nos Estados
tentar captar todos os detalhes de uma análise schenkeriana ou de uma rede Unidos geralmente perdem completamente o alvo quando voltam suas ferra-
transformacional numa performance. Ademais, não posso imaginar querer captar mentas analíticas para áreas como hermenêutica, estudos culturais, etc. Em vez de
essas coisas na performance. apontar o dedo aos meus colegas, vou relatar uma estória sobre uma oficina que
O que isso lega para a Teoria da Música nos Estados Unidos é uma relação que dei em City University, New York, onde há um programa de doutorado vicejante
geralmente não se exprime entre Análise musical e Estética. Teóricos naturalmen- em Teoria da Música. Essa oficina teve luar há um ano e se ocupou do tópico
te escolhem peças que eles gostam para analisar e continuam nos mostrando hermenêutica. Para ilustrar a análise hermenêutica, levei a Romance em Fá maior
todas as intrincadas relações que podem encontrar para racionalizar, em primeiro op. 118 n.º 5 de Brahms. Pouco depois que eu comecei, notei sinais de descon-
lugar, por que gostam daquela peça. Mas essa tática, novamente, desengata nossos forto entre muitos estudantes. Quando lhes perguntei o que havia de errado,
gostos da história, da cultura e das relações de poder que nos formam. um respondeu: “Isso realmente é Teoria da Música?” E um outro disse: “Eu estou
perturbado com o fato de que nada disso parece muito científico; eu estaria mais

220 221
O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE IV - VOC ABULÁRIO TEÓRICO-ANALÍTICO E SUA PROBLEMÁTIC A

confortável se houvesse algum critério para falsificabilidade.” Finalmente, um estu- Referências


dante observou: “Tudo isso parece tão subjetivo.” Desassosegado com a ideia da Berry, Wallace. 1989. Musical Structure and Performance. New Haven: Yale University Press.
falsificabilidade, eu perguntei se algum dos estudantes conhecia o livro de Thomas Jameson, Fredric. 2007. The Modernist Papers. New York: Verso.
Kuhn A Estrutura das Revoluções Científicas. Como vocês podem imaginar, nenhum
Lacan, Jacques. 2006. “The Function and Field of Speech and Language in Psychoanalysis”.
deles leu o livro. Mesmo que se admita que a Teoria da Música é uma disciplina Écrits (1966), trad. de Bruce Fink. New York: W. W. Norton.
científica (algo que eu não admitiria), ficou claro que esses teóricos iniciantes
Rings, Steven. 2008. “Mystéres limpides: Time and Transformation in Debussy’s Des pas sur la
não tinham ideia de que assuntos de método científico estão longe de acomoda- neige”. 19th-Century Music 32 (2):178-208.
rem-se na filosofia da ciência. Então, grande parte da minha oficina voltou-se da
hermenêutica em direção à teoria crítica, sobre a qual os estudantes não sabiam
absolutamente nada.
Isso me traz ao seguinte ponto: Eu concebo a Teoria da Música muito amplamen-
te, como qualquer pensamento disciplinado sobre música. O que disciplina esse
pensamento não é uma fórmula matemática, ou algum apêlo a métodos científicos,
mas uma ampla literatura em teoria crítica que inclui, mas não se limita a: Freud,
Lacan, Saussure, Peirce, Foucualt, Wittgenstein, Barthes, Kristeva, Ricouer, Adorno,
Said, Benjamin, Riffaterre, Bergson, Derrida, Deleuze, Jameson e muito mais do que
eu posso mencionar aqui. A Teoria da Música não deve pensar-se como uma disci-
plina estreita mas como uma disciplina ampla, que almeje dedicar-se aos problemas
da modernidade e da pós-modernidade. Ela não pode focar-se em tecnologias
que somente outros teóricos compreendam, mas deve encontrar uma forma de
dirigir-se às questões da história e da cultura, que outras disciplinas confrontam
todos os dias. Apropriando-me de uma questão posta pelo meu amigo e colega
Patrick McCreless: se a Teoria da Música estivesse no centro do conhecimento,
quão longe desse centro ela poderia andar? A resposta de McCreless foi a de que
a Teoria da Música nos Estados Unidos não percorre muito longe em direção a
outras disciplinas. Portanto, a tarefa que se impõe a qualquer sociedade de Teoria
da Música e análise precisa ser a de encontrar uma forma de não ser surpreendida
num ‘jogo de contas de vidro’.2 Ou, ampliando um argumento de Lacan, se nossa
incumbência é reconhecer que nosso inconsciente é nossa história, então talvez a
música seja a parte de nosso inconsciente e de nossa história, que pede que nos
exprimamos, e nos exprimamos sem as abstrações de tabelas, gráficos e símbolos
enigmáticos (Lacan 2006, 217). Se a Teoria da Música puder voltar sua atenção
para essa incumbência, ela se tornará uma disciplina digna da academia.
2 A expressão “jogo de contas de vidro” se refere ao romance de Herman Hesse Das Glasperlenspiel (em
português, O Jogo das Contas de Vidro), cujo enredo gira em torno de uma província fictícia na Europa central – Castalia –
numa remota época futura, habitada por uma comunidade devotada a propósitos puramente intelectuais. Nessa “torre de
marfim”, inteiramente abstraídos dos problemas da vida fora de Castalia, os habitantes têm a missão de cultivar um jogo,
cujo domínio das regras, altamente sofisticadas e requerendo anos de estudo de música, matemática e história cultural, não
são explicadas detalhadamente no romance (como se fossem obscuras às próprias personagens que o jogam). [Nota da
tradutora]

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE IV - VOC ABULÁRIO TEÓRICO-ANALÍTICO E SUA PROBLEMÁTIC A

mundo e um conhecimento de análise que não foi além da aprovação num dos
o estudo de música como roteiro qualificativos que fez de doutorado. Tomo como axioma o fato de música ser feita
por gente e para gente. Disso partirão as provocações, já que me parece ser esse
de vida: apreensões e ilusões o divisor de águas entre etnomusicólogos e teóricos de outras paragens.

Manuel Veiga 2. Consolidação da área de música no Brasil


A consolidação da área de música como pesquisa e pós-graduação, bem como
seu aspecto associativo têm uma história recente no Brasil que apenas se tan-
1. Agradecimentos e advertências gencia aqui. Têm um marco em 1987, com o SINAPPEM, realizado por Ilza na
UFPB, dando ímpeto à ação do CNPq que, graças a Frederick M. Litto nos abria
Lembrar e agradecer não são verbos mais importantes que criar e renovar, mas
finalmente as portas (1984). Lá fui colocado como o primeiro representante de
apenas mais corteses. Gente de talento deve ser admirada, tanto os que sejam
música, talvez porque comigo houvessem entrado na universidade brasileira um
corajosos e batalhadores, dispostos a enfrentar a tradicional paranoia dos artistas
primeiro pós-graduado formalmente doutor em música, a duras penas, e a disci-
e a indiferença da maioria, quanto os prudentes e contemplativos. Precisamos dos
plina de Etnomusicologia (1981). Uma doutrina holística, a gosto da maioria dos
dois, preferentemente reunidos num só, como ocorre com Ilza Nogueira. Quanto
etnomusicólogos, impediria uma fragmentação da área de música e uma filtragem
ao idoso, ilusoriamente sábio, tropeçando de costas para o tempo, peca pela tei-
que a dividisse e excluísse os aspectos do fazer dos da reflexão científica. No
mosia ou vaidade se cede a um convite como este que o traz aqui e torna impe-
CNPq, a inestimável ajuda e visão de Marisa Kassim nos viabilizaram a ANPPOM,
rativo criticar ilusões e transmitir apreensões, sem desânimo para os outros.Talvez
também proposta por iniciativa de Ilza. Vieram em seguida, a ABEM e a ABET. A
isso possa ser feito sem sacrifício de sua humildade (o saber de quem não sabe),
Associação Brasileira de Teoria e Análise Musical, TeMA surge agora como um
nem desacato possível a qualquer teórico e analista de música cujos monumentos
fórum necessário e poderá tornar-se de fato “um marco para o futuro” como
pontuam séculos. Apenas um reframing ou descontextualização será tentado, que
diz sua criadora na apresentação feita para este Primeiro Congresso. Vejo aqui o
leve à reflexão, sem nenhuma presunção de fornecer respostas.
surgimento de um núcleo promotor da transdisciplinaridade de que ainda care-
Em torno do conhecimento literal e lógico de um problema é sempre possível cemos e que a enorme complexidade do fenômeno musical e seu estudo exigem.
reconhecer uma multiplicidade de outros saberes, mais ou menos ocultos, que Vale reproduzir o parágrafo da apresentação em que se fundamentam as minhas
alteram os significados. O questionamento deve começar por nós mesmos, pois expectativas e que me servirá de foco:
nos afeiçoamos a maneiras de pensar que nos dificultam entender os pontos
A sigla “TeMA” não representa somente a associação das duas disciplinas interco-
de vista do outro e bloqueiam o aprofundamento de nossas questões. Nossos
nexas. Ela também sugere uma proposição a ser desenvolvida, qual seja: O incremento
sentidos nos trazem informações para processamento no cérebro mutável que a
evolução nos trouxe, não raro sendo iludidas pelos próprios sentidos1. Pouco sei da pesquisa teórico-analítica no Brasil, de forma ampla e irrestrita, incluindo reper tó-
sobre Jacques Derrida além de sua afirmação de que não há nada fora do texto; rios de todas as culturas, o aspecto formal e o crítico em abordagens hermenêuticas,
mas me apercebo com convicção de quanto há no contexto cujo estudo nos cognitivas, sistemáticas e históricas, integrando as perspectivas do ouvinte, do compo-
afasta do vazio e pode nos levar a camadas mais aprofundadas de conhecimen- sitor, do executante e do educador. Nesse amplo contexto, a TeMA deverá buscar a
to que a literalidade. Para todos os efeitos, me confesso um projeto inacabado interlocução com os diversos campos do conhecimento, procurando corresponder às
de etnomusicólogo, apenas um mediador, com alguma vivência das músicas do expectativas do mundo globalizado contemporâneo. (Nogueira 2014, 11)

1 Refiro-me às figuras de Gestalt, reversíveis, em que a percepção das formas é instável, a exemplo do “vaso de
Não ousaria retocar a bela redação do parágrafo e a reflexão profunda da qual
Rubin”, do “tridente de Schuster” e do “cubo de Necker”, entre muitos outros. Mas tomá-las apenas como ilusões de ótica resultou. Mas ainda assim me confesso surpreendido (sem ofensa!).
me parece insuficiente, desde quando o nosso aparato cognitivo, biofísico e muito mais, está envolvido, matéria da ciência
cognitiva, isto é, do estudo interdisciplinar da mente humana.

224 225
O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE IV - VOC ABULÁRIO TEÓRICO-ANALÍTICO E SUA PROBLEMÁTIC A

3. Resistências à Etnomusicologia uma cultura e uma ameaça ao entendimento da cultura do outro. Vou observá-lo
fora da escala local, em dois graus e épocas diferentes.
Ouvi pela primeira vez a palavra “ethnomusicology” e vi o ícone da SEM em
torno de 1969, por via de K. Peter Etzkorn, O ilustre sociólogo de música inte-
ressara-se pela Etnomusicologia que tomava corpo nos Estados Unidos, e nos fez 4.1. Waldo S. Pratt
uma visita inesperada em Salvador, em período de recesso da então EMAC. Nada
Tomar Waldo Selden Pratt (1857-1939) como um indicador se justifica pela
se seguiu até 1976, quando tive de emitir um parecer no Conselho Estadual de
ampla formação que teve, incluindo graus avançados em arqueologia clássica e
Cultura da Bahia, sobre uma coletânea de Esther Pedreira (Folclore Musicado da
estética, em renomadas universidades americanas, além dos estudos informais de
Bahia). O manuscrito jazia nos subterrâneos do Itamaraty desde 1951, aguardan-
música. Justifica-se também pelo desempenho que o projetou como musicólo-
do publicação.
go, lexicógrafo, hinologista, museólogo e pedagogo, professor e conferencista em
Não posso afirmar precisamente a partir de quando as preocupações acadê- importantes Seminários Teológicos e no Institute of Musical Arts, predecessor da
micas de Gerard Béhague (1937-2005) se deslocaram com mais intensidade da Juilliard School of Music, em Nova York.
musicologia histórica para a etnomusicologia, mas isso não me parece ter ocor-
Foi o tutor da adoção do termo “Musicology” em países de língua inglesa: “On
rido antes de 1966 (data de seu doutorado em Tulane, sob Gilbert Chase) ou,
Behalf of Musicology” foi publicado no primeiro exemplar do primeiro volume do
mais aproximadamente, a partir de 1968, quando o conheci ainda ocupado com
Musical Quaterly, em Janeiro de 1915. Em 1919 o termo já constava do Oxford
música de compositores mineiros, na esteira de Francisco Curt Lange. Béhague se
English Dictionary. Na tentativa de arrumar a casa (definir a disciplina) se ombreia
tornaria uma figura focal no desenvolvimento da Etnomusicologia entre nós e da
com Guido Adler (1885) e Hugo Riemann (1915) seus predecessores para os
pós-graduação em música na Bahia.
falantes de língua alemã.
A despeito dos laços que Gerard manteve com o Grupo de Compositores
É injusto criticá-lo com os olhos do presente (uma teleologia em reverso), o
da Bahia, ainda assim diria que o Centro de Estudos Afro-Orientais lhe dava mais
que faço sem prejuízo do tributo à pessoa, mas como ilustração de equívocos de
guarida que os Seminários de Música (atual Escola de Música da UFBA). O desin-
seu tempo. As ilusões que Boaventura de Sousa Santos identifica já se revelam
teresse da instituição pela música de candomblé era objeto de crítica do antro-
aqui, e a elas voltarei mais adiante2.
pólogo Vivaldo Costa Lima, e era um absurdo. Essa crítica, aliás, já vinha de Arthur
Ramos (1903-1949), dirigida aos músicos em geral. Pratt foi homem de notável erudição musical, como é patente em sua publica-
ção de 1907, revista em 1927 e ainda em 1930. Este livro, The History of Music: A
Handbook and Guide for Students, nasceu de uma apostila fragmentária de 1897,
4. Etnocentrismo e não se destinava, em suas 734 pp., a ser mais que uma obra de referência para
Entre os compositores (Ernst Widmer, particularmente, o mais eclético), o li- estudantes. Profusamente ilustrado do ponto de vista organológico, inclui instru-
vro de Esther Pedreira, mesmo de pouco valor etnográfico, lhes trouxe material mentos chineses, japoneses, hindus, burmeses (mianmarenses), javaneses, persas
folclórico para diversos usos e níveis de elaboração. Quanto à Etnomusicologia, (iranianos), árabes, egípcios e gregos, a maioria ricamente ornados. Tem-se uma
a aceitação permaneceria ainda polêmica mesmo com a presença do etnomusi- ideia da maneira de pensar do autor, fiel à sua época, a partir do próprio uso do
cólogo e compositor filipino José Maceda (1917-2004), no ano que passou entre artigo definido e do singular, no título: “A história da música”, não “Uma história;
nós, nos Seminários de Música. Veterano do Programa de Etnomusicologia da da música”, tampouco “das músicas” (monolitismo, como se verá abaixo) A Parte
UCLA, de Mantle Hood e Charles Seeger, teve seus preciosos instrumentos con- I lida com “Uncivilized and Ancient Music”. Aqui destina seu Cap. 2, ao que chama
fiscados pela Direção da instituição, entre eles alguns gongos de um gamelão de
2 Ilustre sociólogo do direito e professor da Universidade de Coimbra, Boaventura de Sousa Santos se ocupa dos
inestimável valor histórico e artístico, por conta de um gravador de fita que se confrontos entre os direitos humanos e as teologias políticas que buscam cada vez mais presença na esfera pública.Tivemos
extraviara. Esse vexame também sinaliza uma história, bem mais difusa, que nos exemplos disso nas tragicômicas eleições brasileiras de Outubro de 2014. As ilusões de que fala em sua obra, Se Deus Fosse
um Activista dos Direitos Humanos (2014), parecem-me aplicáveis aos descasos que estamos comentando. Mantenho,
interessa aqui: o etnocentrismo. É, ao mesmo tempo, um mecanismo de defesa de sem qualquer propósito nacionalista, que um povo tem o direito de se reconhecer em sua própria música, a despeito de
hegemonias reinantes.

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO PARTE IV - VOC ABULÁRIO TEÓRICO-ANALÍTICO E SUA PROBLEMÁTIC A

de “Semi-Civilized Music”, incluindo China, Índia, os Maometanos, Babilônia e Assí- 4.2. Joseph Kerman
ria, Israel e Egito. Deixa música grega e romana para um terceiro capítulo, não sei Para uma segunda medida, mais recente, de limitações potencialmente peri-
se apenas como antigas, ou também incivilizadas, vistas assim do ponto de vista gosas e carentes de dosagem, penso em Joseph Wilfred Kerman (1924-2014), a
triunfalista (etnocêntrico) que adota para as altas culturas musicais orientais. Teria quem todos dedicamos merecido respeito. Kerman nos deixou este ano, tendo
sido difícil, mesmo no tempo dele, considerar Sócrates, Platão e Aristóteles como sido um dos críticos definidores de uma musicologia mais abrangente. Assim, é
incivilizados. Aparentemente homem de culto cristão, deixa a seguinte nota de outra injustiça focalizá-lo por um parágrafo da Introdução de seu Contemplating
interesse, ainda com um traço racista (confunde raça com cultura), em adição às Music: Challenges to Musicology para ilustrar o que parece mais uma imprudência
quinze linhas que dedica às especulações sobre as origens de música (p. 31, meu do que um erro, a depender do grau. Comentando sobre a amplitude que assume
grifo): no campo da Musicologia, confessa (1985, 19):
The traditions of many races recount the inpartation of instruments or of mu- For better or for worse, I am not very much interested in non-Western music,
sical ideas to men by the gods. These myths are significant, not as historic state- or in the popular music of the West (for worse, in that this must betray a real
ments of fact, but as testimonies to the strange potency and charm residing in limitation of mind and sensibility; for better perhaps, in that it may lend a certain
musical tones. intensity to what I do within these limitations).
Se precisássemos dedicar algum espaço a uma noção mais ampla do que possa “Para melhor”, sem dúvida, a ninguém é dado um conhecimento aprofundado
ser música, não aos universais empíricos de música, que desconhecemos ou até de mais que umas poucas culturas musicais do mundo e nem todas elas nos serão
mesmo não queremos conhecer, a ajuda não viria das enciclopédias e dicionários agradáveis aos ouvidos.4 “Para pior”, é que essa limitação da mente e da sensibi-
de música, mas de dicionários de Filosofia, como o de Nicola Abbagnano, cuja 4.ª lidade, não pode ser tomada como um alvará para os que pretendam teorizar
edição cito, s.v. “Música” (2003, 689): sobre música sem suficiente abrangência do fenômeno.5 É também uma postura
Duas são as definições filosóficas fundamentais dadas da M[úsica]. A primeira contagiosa e comodista. Já ouvi declarações semelhantes de vários amigos ilustres,
considera-a como revelação de uma realidade privilegiada e divina ao homem: entre os quais (poupando Ilza, pela metamorfose) Jamary Oliveira, Ricardo Bor-
revelação que pode assumir a forma do conhecimento ou do sentimento. A se- dini, Ernani Aguiar e Manoel Moraes (em Lisboa), todos meus amigos, pensantes,
gunda considera-a como uma técnica ou um conjunto de técnicas expressivas que compositores, teóricos, executantes de excelente cepa, à revelia de outros bons
concernem à sintaxe dos sons. músicos que preferem permanecer apenas cabeças-duras e talvez ignorantes.
Não sendo filósofo e estando agnóstico (pelo menos no momento), trocaria o
aspecto metafísico e religioso por uma evolução multilinear complexa, física, men-
tal e cultural, da capacidade de simbolizar que a espécie desenvolveu em resposta 5. Teoria versus gramática
a necessidades. Já conhecemos instrumentos sonoros (flautas) datados de cerca No campo da Teoria Musical, o etnocentrismo poderá impedir que se chegas-
de 43.000 anos. Considerando estados sucessivos de consciência de nossos ante- se a uma verdadeira teoria geral de música, mantendo-a em nível de gramáticas
passados, voto na possibilidade de religião, linguagem e música serem coevas, esta excessivamente detalhadas e efêmeras, funções do tempo e do lugar, até de insti-
última voltada para a comunicação com o sobrenatural (que não tenho a mínima tuições e de caprichos de pequenos grupos. Essas gramáticas constituem um tipo
ideia do que seja)3. O problema da segunda concepção não está em si mesma, já de discurso distinto do discurso musical propriamente dito e têm uma relação
que não há música sem sistema, mas em considera-la apenas como uma sintaxe complexa com ele. A gramatização pode vir ex post facto, como uma sistematiza-
de sons. ção de uma prática musical que se esvai (como o Gradus ad Parnassum de Fux),
4 Música ritual tibetana, por exemplo, uma das grandes tradições musicais do mundo, desafia nosso vocabulário
técnico e o poder das palavras. Nossas noções de belo e feio não se aplicam a ela. Se se aplicassem, teríamos de dizer que
é feia. Música de gamelão balinesa, por seu lado, palatável e atraente a nossos gostos, seduziu e influenciou compositores
3 Música e religião são ambas universais da cultura e se relacionam de diversas maneiras, quer nos sistemas ocidentais de Debussy a Glass. Num caso ou noutro, as metáforas descrevem melhor que nossos termos técnicos.
de crença, quer no controle do poder. Publiquei recentemente “Religião e Música: variações em busca de um tema” no
Caderno do Centro de Recursos Humanos da FFCH/UFBA (cf. Veiga 2013b). 5 Sem dúvida, a polivalência pode associar-se à superficialidade e não estou pregando isto.

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com repercussão na construção de repertórios conservadores. Pode vir também 5.2. Análise e reducionismo
a priori, como uma imposição ao que deve ser feito, em cujo caso a composição
Quanto à análise musical, relacionada à gramática e a uma única modalidade de
musical se torna uma demonstração da qualidade e acerto da teoria, como ora
criação musical (composição/improvisação, mas há outras!) a preocupação parece
ocorre. Em tempos de ruptura (“música nova”), não raro compositores transitam
ser com o oposto, isto é, com o reducionismo. Não sou um especialista, e posso
entre as duas opções como fez Monteverdi com suas duas práticas, e Widmer, en-
estar insistindo em questões já superadas, como a proposta de Ilza sugere.
tre nós, com suas fases progressivas e regressivas. Teorias de fato fariam bem em
combinar ou fundir, no mínimo, uma teoria de cultura com uma teoria de música, De origem, a análise musical insistiu em operar apenas com os elementos es-
e submeterem-se ao teste da transculturalidade. O axioma que nos pode servir tritamente musicais, à exclusão de todos os outros, inclusive textos, no caso da
de guia já foi lembrado, bastando observar que essa “gente” que faz e usa música música vocal. Constituía-se assim numa espécie de Física da música. Necessária,
pode estar em estado de transe e de êxtase, até de alucinações6. como um dos primeiros passos para uma descrição de música, é insuficiente não
apenas para descrevê-la, mas para interpretá-la e, ainda mais, para explicá-la. En-
tendo isso talvez tanto como uma afinidade de origem com a matemática, como
5.1. Charles Seeger: teoria geral e melógrafos veremos adiante, quanto como uma reação à literatice romântica que transfor-
Entre os musicólogos sistemáticos e etnomusicólogos, não poderia esquecer a mava qualquer música, abstrata que fosse, em alguma forma de narrativa, música
contribuição teórica de Charles Louis Seeger, Jr. (1886-1979). Já não o encontrei de programa. Música e matemática, porém, são coisas muito diferentes, é preciso
em meus tempos de UCLA (1976-1981), mas ainda pude apreciar o profundo insistir.
respeito que comandou ao qual se aliavam comentários ao grau de abstração e A etnomusicologia, em princípio, não parece ter passado do sistema analítico
dificuldade de leitura de seus textos em busca de uma teoria geral de música. de Mieczslaw Kolinsky (1901-1981), tão criticado quanto usado: Kolinsky desen-
Ainda assim, é difícil negar a influência que exerceu sobre todos nós, inclusive pelo volveu métodos que podem ser aplicados transculturalmente, mas com sacrifício
interesse que teve pela música latino-americana. Coube a ele um papel central e das alturas reais. As tentativas de Alan Lomax (1915-2002) de incluir o contexto
único em relacionar musicologia a outras disciplinas e domínios da cultura (opinião pela assunção de um número elevado de parâmetros a serem avaliados, por sua
de Bruno Nettl que, acredito, seria subscrita por Kerman à vista do espaço que vez. não independem da subjetividade dos avaliadores, embora de quando em vez
lhe reserva em suas contemplações de música e desafios à musicologia (Kerman revelem correlações surpreendentes. Tampouco as análises semióticas e semioló-
1985, 155-162, et passim). Do lado prático, entretanto, os melógrafos, no labora- gicas que nos chegaram através de Nicolas Ruwet (1932-2001) e de Jean-Jacques
tório de Etnomusicologia, já então comandado por Nazir Jairazbhoy (1927-2009), Nattiez (nascido em 1945) têm satisfeito os etnomusicólogos insistentes na inclu-
se prestavam a transcrições aurais com ajuda eletrônica, supostamente objetivas são de análises das ideias e dos comportamentos, na tentativa de irem além da
e extremamente detalhadas de melodias, particularmente as microtonais de pai- descrição de música.
xão do mestre Nazir, especialista em música sul-asiática e indiana. As aplicações Sempre me intriguei com o uso de termo resolução em definições de análise,
com canções folclóricas brasileiras que tentei, no que captavam dos desvios de também presente em dicionários de filosofia. Ainda aparece com Ian D. Bent no
afinação da informante, o sistema tonal subjacente desaparecia. Quanto a Nazir, New Grove I (1980, Vol. 1, 340) como “The resolution of a musical structure into
ouvi dele várias vezes comentários sobre as discrepâncias que encontrava entre relatively simpler constituent elements, and the investigation of the functions of
a teoria da música indiana, com seus srutis microtonais, e as análises melográficas those elements within that structure”.7 O próprio termo “análise” teve na Antigui-
que realizava de execuções fielmente gravadas. dade [Aristóteles] e em boa parte da Idade Moderna uma acepção matemática
(diz José Ferrater Mora, Dicionário de Filosofia, São Paulo: Martins Fontes, 2001, 22).
6 Oliver Sachs, neurologista, cunhou o termo “musicofilia” como título de uma de suas publicações: Musicophilia:
Tales of Music and the Brain (2007), traduzida entre nós como Alucinações musicais: Relatos sobre as relações entre a Confira-se também o Dicionário de Filosofia de Abbagnano: “um processo analítico
música e o cérebro. A julgar por mim, a despeito de ter forte perda auditiva, ouço música internamente quase todo o tempo, é considerado bem sucedido quando tal resolução é realizada” (op. cit., 51).
às vezes meras fórmulas que se repetem, ou trechos de peças que estudei e que cheguei a conhecer bem, ora parcialmente
esquecidas. Emperro em falhas de memória. Não sei se o mesmo ocorre com todo mundo ou, se mais particularmente com
músicos profissionais. Atribuo isso ao que chamamos de “ouvido interno”, essencial para o executante. Quanto aos estados 7 Não pude verificar a 2.ª ed. do New Grove nem a versão eletrônica atual.
alterados de consciência, a obra clássica é do etnomusicólogo Gilbert Rouget (2008). Há tradução para o Inglês.

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6. Eles sabem 7. Nós não sabemos: As ilusões


Em qualquer circunstância em que se fale de música, alguém, como parte de O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, tratando de direitos hu-
uma comunidade, tem um conceito do que seja, mesmo que não o verbalize. Não manos e de teologias políticas crescentemente globalizadas e concorrentes, fala
tanto assim o estudioso de fora que se coloque perante a variedade de culturas de quatro ilusões que se aplicam aos nossos estudos de música: a teleologia, o
musicais do outro sem se dar conta dos enigmas de sua própria música. Traba- triunfalismo, a descontextualização e o monolitismo (2014, 15-20).
lhamos com “recortes” de um tecido talvez inconsútil, mas cujos limites e urdidu- Dois dos quatro termos (teleologia e triunfalismo) podem ser consultados no
ras às vezes definimos arbitrariamente. Paradoxalmente, nossa intimidade com o Houaiss. Os dois outros (descontextualização e monolitismo) não o são, mas po-
fenômeno musical chega ao ponto de não o questionarmos. Sejamos emissores dem ser facilmente inferidos. Na acepção do sociólogo, a “teleologia” consiste em
(poiésis) ou receptores de mensagens musicais (estésis), todos estamos imersos ler a história de frente para trás, diz ele. Partir do consenso atual e ler a história
em algum tipo de musicofilia, fruto de nossa própria vivência e da experiência do passada “como um caminhar orientado para conduzir a este resultado.” O “triun-
mundo ao nosso redor, assim como da capacidade de simbolizar que a espécie falismo” para ele consiste na ilusão de que a vitória de uma ideia seja um bem
desenvolveu. Relativismo cultural é um dos conceitos que a Antropologia tem humano incondicional; outras ideias, inerentemente inferiores (é outro nome para
mantido, como os de evolução, cultura, estrutura e função. Gostamos, entretanto, nosso etnocentrismo). Ainda nos termos dele, a “descontextualização” implica na
de gaiolas nas quais nos aprisionamos por dicotomias de toda ordem: natureza/ crença de que o sentido de um discurso não seja contingente, dependente de um
cultura, arte/ciência, popular/erudito, urbano/rural, religioso/secular, continuidade/ contexto específico, correndo o risco de ser desvirtuado em seus objetivos num
mudança, uirapurus/pássaros-lira...8 contexto e épocas distintos. O “monolitismo” consiste em negar ou minimizar as
Voltando ao parágrafo de Ilza, a autora tão corretamente preocupada com a contradições e tensões internas de teorias, ou seja, o desconhecimento das am-
inclusão de repertórios de todas as culturas, tampouco esquece a diversidade de bivalências, diz ele. O meritório Pratt, ou melhor, a Weltaunschauung [cosmovisão]
perspectivas, entre as quais a do ouvinte é parte. Não se trata de fazer Gebrau- de seu tempo nos deve servir de advertência para que construamos a nossa de
chsmusik, – a liberdade do criador já não é muita e precisa ser poupada, a bem da maneira mais justa.
qualidade -- mas de considerar a recepção como parte integrante do processo
criativo. Em adição, música tem usos e funções (e disfunções, devo acrescentar)
que, ao contrário do que se pensa, dão-lhe um poder de mobilização que a ma-
8. As preocupações
temática desconhece. Não se pode, portanto, desvincular o estudo dos aspectos Mesmo sem que se adote um tom apocalítico, temos de convir que vivemos
teóricos de música de possíveis consequências e responsabilidades éticas. numa época difícil e ameaçadora para o mundo todo. Já discutimos sustentabili-
dade de música num outro importante evento, no VI ENABET, em João Pessoa,
Um último comentário, apenas um complemento, é a omissão do biológico. O
coordenado por Alice Satomi. Pareceu-me, entretanto, que não adianta se discutir
parágrafo estimulante de Ilza menciona aspectos cognitivos, o que é um reconhe-
sustentabilidade de música e de repertórios musicais em relação ao meio-am-
cimento da componente psicológica de qualquer música. Mas a mente precisa de
biente, se a própria sustentabilidade do Homo musicus não for levada em conta e
corpo: soma, não apenas psique. Para a própria Etnomusicologia, tão ciosa do con-
tenha prioridade. O estudo do passado remotíssimo pelo menos deixa uma ideia
texto, a Biomusicologia ainda é uma estranha, inacessível para a maioria de nós,
mais clara do que seja dignidade em música, o que me parece relevante nesta era
como se música pudesse existir sem corpo e se transmitir no vácuo. Nem o risco
de ruptura, de mudanças vertiginosas e abissais, pelo menos como uma referência.
de exclusão total dos músicos como executantes, substituídos por execuções ele-
trônicas, chega a dispensar a necessidade de um ouvido ouvinte.9 A ideologia atual insiste em que devamos ser autônomos, mas estamos de fato
cada vez mais robotizados, dependentes de uma miríade de mercados em que
temos opções de venda de nossos produtos, mas que não dão lugar à produção
8 Os uirapurus e pássaros-lira correm por minha conta (Cf. Veiga, 2013a). de conhecimento que não tenha valor de venda. Malgrado as ilusórias opções, não
9 A leitura de obras do biofísico e filósofo francês Henri Atlan (nascido em 1931) poderá nos ajudar. Aplica
cibernética e teoria da informação a organismos vivos. Vi citações da obra A tort et à raison: intercritique de la science et du temos a de saída do sistema, acrescenta Boaventura de Sousa Santos (2014, 7).
mythe,.Collection Science ouverte (Paris?: Seuil, 1986), [não lida].

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Ser humano, mais que um neutro etnomusicólogo, me faz preocupar com a la musique et de la possession, 2.ª ed. Paris: Gallimard.
alienação de nossos estudos e de nossas devoções. O historiador marxista Eric Sachs, Oliver. 2007. Musicophilia: Tales of Music and the Brain. New York: Knopf. Edição bra-
Hobsbaum, em sua obra Tempos de Rutura: Cultura e Sociedade no século XX (Lis- sileira, 2007, Alucinações Musicais: relatos sobre as relações entre a música e o cérebro, trad. de
boa: Divina Comédia, 2014) ousa fazer-se futurólogo. “Para onde vão as artes?”, Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
indagou. Observou uma participação mínima em torno do que fazemos, num Santos, Boaventura de Sousa. 2014. Se Deus fosse um activista dos Direitos Humanos. Coim-
período em que as artes sofrem a maior revolução de sua história e em que bra: Edições Almedina.
vivemos saturados de música. A do Século XXI, lhe pareceu, chegará a nossos ou- Veiga, Manuel. 2013a. “Etnomusicologia brasileira e ética: a escuta ao índio”, in Eliane Azeve-
vidos sem participação humana. Estimou que o potencial da música de concerto, do e João Calos Salles, orgs. Ética e ciência (Salvador: Academia de Ciências da Bahia, 119-
175). Disponível em <http://cienciasbahia.org.br/wp-content/uploads/2013/10/eticaeciencia.
até numa cidade de mais de um milhão de habitantes “consiste, na melhor das
pdf>. Acesso em 10.12.2014.
hipóteses, em vinte mil damas e cavalheiros mais idosos [e] não parece estar a
__________. 2013b. “Religião e música: variações em busca de um tema”. Caderno CRH
engrossar” (2014, 30). Pela minha regra de três, isso não passa de 2%, em cidades
69, 477-491. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/ccrh/v26n69/05.pdf>, acesso em
privilegiadas. De um lado, no Brasil, temos gêneros musicais como o arrocha, com 10.12.2014.
site oficial coletivo para difusão em massa do mau gosto. De outro lado temos
bons compositores compondo para si mesmos, produzindo esperantos que pou-
cos absorvem, na vertigem das mudanças em que estamos. Precisamos diminuir
essas distâncias. Não saber para onde vão as artes é o mínimo: Quem pretender
ter hoje alguma noção do rumo e do futuro de nossa espécie estará mentindo.
Sem desânimo, temos de juntar esforços e sonhar de olhos bem abertos.

Referências
Abbagnano, Nicola. 2003. Dicionário de Filosofia. Tradução da 1.ª edição brasileira coorde-
nada e revista por Alfredo Bosi. Revisão da tradução e tradução dos novos textos por Ivone
Castilho Benedetti. 4.ª edição. São Paulo, Martins Fontes.
Bent, Ian D. “Analysis”. 1980. In: SADIE, Stanley (org.) The New Grove Dictionary of Music
and Musicians. Londres: Macmillan, 340-388.
Hobsbawm, Eric. 2014. Tempos de rutura: Cultura e Sociedade no século XX. Tradução de
Manuel Santos Marques. Lisboa: Divina Comédia.
Kerman, Joseph Wilfred. 1985. Contemplating Music: Challenges to Musicology. Cambridge,
MA:Harvard Unversity Press.
Mora, José Ferreter. 2001. Dicionário de Filosofia. Tradução de Roberto Leal Ferreira e Álvaro
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Nogueira, Ilza. 2014. “TeMA: um marco para o futuro”. In: Nogueira, Ilza (org.), TeMA – I
Congresso Anual, Programa e Resumos. Salvador: EMUS/UFBA.
Pratt, Waldo Selden. 1930. The History of Music: A Handbook and Guide for Students. Revised
Edition. New York: G. Schirmer.
__________. 1915. “On Behalf of Musicology”. The Musical Quarterly,Vol. 1, N.º 1 (Jan. 1915),
1-16.
Rouget, Gilbert. 2008. La musique et la transe: esquisse d’une théorie générale des relations de

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pensamento, oposição a tudo que destrua suas condições de existência. Afinal,


o sentido da teoria livre pensar é só pensar, como ensinou Millor Fernandes, mas, ao mesmo tempo,
é bem mais do que isso.
Paulo Costa Lima Bem sabemos, a construção de sentido não ocorre num vácuo social. Não po-
demos reinventar o modernismo, muito menos sua perspectiva teórica — mas
também há de se ponderar que a responsabilidade pela preservação dos seus
Para melhor saudar a criação de uma Associação de Teoria da Música, tudo ganhos e do seu legado nos toca de perto, tanto quanto a escolha das próximas
indica que devamos revisitar a pergunta sobre o sentido da teoria — no caso, o palavras a serem ditas, palavras que sempre guardam a responsabilidade da leitura
sentido da Teoria da Música. retroativa, aquilo que dissermos agora terá efeito de interpretação sobre tudo
Qual o sentido da teoria numa época que até se diz pós-teoria? Que transfor- que já atravessamos. Isso em meio a um processo mundial de industrialização
mou o espetáculo em paradigma de tudo, da política à vida privada, ameaçando da captação de atenção; nesse sentido, cada pensador é uma espécie de ativista,
destruí-las em suas essências — num caso, uma estética um tanto desvairada que e estando isolado fica bem mais frágil. Os objetos mais próximos, desvinculados
ameaça romper o laço entre ética e política, no outro, uma exposição tão agres- de uma agenda mundial projetada pelas mídias, enfrentam um déficit enorme de
siva daquilo que sustentava o habitat do indivíduo, a ponto de comprometer o atenção. E com a vigência de um processo que esvazia a própria potencialização
próprio estatuto da diferença e da individualidade. de Causas e de coletivização por essa via, damos de frente com um tipo de capi-
Uma época que valoriza o valor de face das coisas, valor de superfície (o valor talismo consumista “que nos persuade a sermos indulgentes (...) e a nos gratificar
do Face). A eficácia e o mercado como paradigmas de accountability, princípio que tão despudoradamente quanto possível” — nos diz Eagleton. E mais: “Qualquer
tende a unificar shopping centers e universidades, cada vez mais estruturados em um que deixe de se deleitar orgasticamente, em gozo sensual, será visitado no
torno de um sistema de mérito e prestação de contas que, em nome dessa con- meio da noite por um assassino brutal e temível conhecido como superego, cuja
tabilidade e do estilo de vida que acarreta, parece sufocar o espaço para reflexão. penalidade para a não-gratificação é uma culpa atroz” (2005, 19). Dessa compa-
Vivemos com a sensação de que não existe propriamente tempo para refletir, ração diária que o cidadão vivente é obrigado a fazer com relação às exigências
apenas o corre-corre da produção — já brinquei numa crônica com a imagem de postas em circulação pelos mais diversos sistemas de gratificação e recompensa
uma garçonete servindo currículos absolutamente ajustados e requentados para — mais na direção da perversão que da neurose — surge um resíduo estrutural
o mercado — tudo isso, ameaçando aquela viga estrutural da nossa narrativa se- de depressão e de agressividade desgarrada (aparentemente ilógica), pronta para
cular da formação do espírito, a ideia de Bildung. emergir nas situações mais imprevisíveis.
E, sem falsa retórica, permanece a resposta de que o sentido da teoria é Almejar a teoria, em nossos dias, significa revisitar suas condições de gratifica-
justamente a construção do sentido — sua condição de meio, de vida da ção, o que está muito próximo da questão da formação de mercados, da oferta e
especulação, de reflexão sobre premissas que nos orientam, enlace entre fazer do consumo de aportes teóricos, tal como já nos falava Nattiez há duas décadas
e pensar, de torneamento de conceitos, de codificação de práticas, antecipação atrás sobre famílias analíticas e enfoques disponíveis no mercado (1990).Tudo isso
de verdades, Gradus ad Parnasum, empoderamento do outro (na medida em se constitui numa tarefa bastante delicada, especialmente num contexto como o
que s legitima um espaço ‘público’ de reconhecimento da capacidade de razão, nosso, que herda fortemente do colonialismo os traços de uma cultura letrada
via teoria, de todos os indivíduos), ou ainda como interface ou gestão articulada secundária e dependente, que tem se esforçado duramente por formas muitas
entre causalidade e imaginação, diretamente na malha da criação. E desde já, ou vezes triviais de associação com atores e ideias da mainstream, dos centros do
desde sempre, sua condição de resistência, sua natureza em prol da liberdade, a mundo, dos seus eixos de historicidade, sem refletir em maior profundidade so-
liberdade de imaginar e de gerir escolhas, sua oposição à homogeneização do bre as situações assim desencadeadas.

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Constituídos em sociedade, em sodalício, como gostam de falar as academias, Ora, retomando o fio da pergunta inicial — que o sentido da teoria é cons-
haveremos de tocar no problema da relação entre teoria e lugar de fala — e já o trução de sentido — devemos dar ainda um passo adiante para afirmar que essa
fazemos criando grupos de estudo sobre a questão da terminologia em teoria e construção de sentido que habita um espaço de liberdade, de construção e ges-
análise, e sobre os feitos marcantes que constituíram a trajetória de pensamento tão de escolhas, acaba nos revelando um vazio, um vazio deixado, ou melhor, um
teórico no Brasil. Não se trata de uma reedição da agenda nacionalista, trata-se da vazio construído pela própria experiência música. Para além daquilo que se reúne
capacidade de resistir e reconhecer processos de historicidade entre nós mesmos e se congrega na experiência música há essa dimensão de um vazio a ser preen-
— tantas vezes absolutamente ignorados pelas literaturas internacionais. Trata-se chido. Vá lá que apareça como desafio ao reinado da lógica e ferramentas do dis-
justamente da luta pela possibilidade de que a questão da identidade permane- curso, ou como intuição do subjacente, das relações e processos, ou mesmo das
ça em aberto, sem totalizações nacionalistas ou cooptações da agenda global. É estruturas que sustentam; vá lá que responda ao vazio de sentido que também
como se a responsabilidade com a teoria e com o livre pensar nos colocasse di- nos constitui como sujeitos, se quisermos a verve lacaniana/freudiana, ou à trama
retamente no campo da contravenção — aquela terceira margem que sobrevive de construção de sujeitos no espaço social, nas águas da cultura.
em alternativa ao embate entre nacional e global (na análise de Charles Melman). Ora, pra que serve uma Associação de Teoria da Música? Justamente para não
E claro, falamos dessa fissura ou placa tectônica (mas também em conexões deixar que esse vazio constitutivo da experiência música seja apropriado inde-
e permanências) entre o capitalismo industrial e o capitalismo tardio ou cultural, vidamente por discursos e práticas circulantes. Nasce a TeMA, portanto, com a
entre modernismo e pós-modernismo, entre paradigma estrutural-organicista e responsabilidade de projetar uma agenda capaz de mobilizar os nossos quadros,
enfoques hermenêuticos — mas também sabemos que, com mais de dois mil e de dar passos de transformação. Tem ainda a responsabilidade da recuperação
anos de existência, a Teoria da Música já exerceu papéis muito distintos em ter- da memória de tantos que trabalharam e contribuíram nessa direção. Serve para
mos de epistemologia. Já nos fizemos em liames do universo, isso mesmo, a Teoria congregar, para discutir a oferta de modelos e paradigmas, para aferir níveis de
da Música como liame imaginário de uma certa concepção de universo que exis- formação, para incentivar as novas gerações na preservação do tesouro que sa-
tiu durante séculos e séculos no regime de uma episteme da similitude; e também bemos existir e do qual somos, de muitas formas, guardiões, para orientar todas
nos fizemos em sistema harmônico gravitacional nos primórdios da episteme as instituições que estejam interessadas em discutir a formação profissional em
ordenadora, antes mesmo que uma teoria da gravitação estivesse madura. E todas música, o papel da teoria nesse processo, e para incentivar trabalhos de alto nível
essas camadas estão aí a nos alertar contra convicções muito açodadas, e mesmo em nosso campo, premiando os melhores, promovendo diálogos internacionais e
como objetos de ressignificação e de revisita. sempre multilaterais sobre nossas prioridades.
Temos também de refletir com mais apuro sobre a presença da Teoria da Música Resta-me louvar a iniciativa de criação da TeMA, agradecer o empenho e a visão
nas diversas áreas de concentração dos estudos em música. Isso toca em nossa ca- que animam sua Presidente eleita, a Prof.ª Dr.ª Ilza Nogueira, assim como todos os
pacidade de diálogo transversal com o campo da interpretação musical, com a edu- participantes deste congresso inaugural. Agradecer o apoio recebido do CNPq,
cação musical, com a musicologia histórica, com a etnomusicologia, e com a própria da CAPES e da FAPESB, sem o qual não haveria a possibilidade de realização des-
área da composição, que teve e tem papel especial com relação à teoria entre nós. te encontro. Agradecer também à UFBA, na pessoa do Reitor João Carlos Salles, e
Com a diversificação dos enfoques teórico-analíticos e a fragmentação das identi- à Escola de Música da UFBA, pela disposição imediata de participar demonstrada
dades disciplinares, passamos a ter modos de apropriação muito diversificados, qua- pelo seu Diretor Prof. Dr. Heinz Schwebel. Agradecer também à OCA-Oficina de
se como se houvesse uma teoria para a interpretação, outra para a etnomusicologia, Composição Agora, que se associou ao projeto de várias formas, a mais visível
e assim por diante. Embora as necessidades de apoio à problematização, mais que sendo a realização em paralelo das atividades do MAB-2014.
isso, de apoio à constituição de objetos de estudo, sejam certamente distintas, há a Longa vida ao nosso tema, que ele resista a todos os impulsos de variação e
necessidade visível de coordenação desse movimento polifônico. de contraste, que ele nem seja tema, seja motivo, seja processo, estrutura e/ou

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO

narrativa, e que aqueles que participam da fundação desta Associação, além de


todos que vierem reforçar esse caminho, possam tecer uma nova manhã para a
Teoria da Música feita a partir do Brasil.

Referências
Eagleton, Terry. 2005. Depois da Teoria: um olhar sobre os Estudos Cuturais e o pós-modernis-
mo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
Jay, Martin. 1998. Cultural Semantics: keywords of our time. Amherst, University of Massachu-
setts Press.
Nattiez, Jean-Jacques. 1990. Music and Discourse: toward a semiology of music. Chicago, The
University of Chicago Press.
Stiegler, Bernard. 2010. For a new critique of political economy. Cambridge: Polity Press.

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NOTAS SOBRE OS AUTORES

notas sobre os autores


Acácio Piedade <acaciopiedade@gmail.com>
Universidade do Estado de Santa Catarina
Graduado em Composição pela Universidade Estadual de Campinas (1985), Mestre e Doutor
em Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (1997, 2004), realizou estágio pós-
doutoral em Musicologia na Université de Paris IV, Sorbonne (2010-2011). É Professor Associado
do Departamento de Música da UDESC, ministrando as disciplinas Análise e Composição.
É também professor do Programa de Pós-Graduação em Música desta universidade, onde
ministra disciplinas nos campos da Musicologia, Etnomusicologia e Análise, tendo orientado
pesquisas que envolvem as relações entre música, cultura e sociedade. Compositor, violonista
e pianista, tem pesquisado as interconexões entre análise e composição, particularmente na
música experimental contemporânea. Sua perspectiva analítica prioriza a questão da significação
musical, principalmente a dimensão da retórica.

Alex Pochat <alexpochat@gmail.com>


Universidade Federal da Bahia
Compositor, intérprete e produtor cultural, é Bacharel em Composição e Regência pela UFBA,
Mestre em Composição pela mesma instituição, onde atualmente cursa o doutorado, também
em Composição, sob a orientação do Prof. Dr. Paulo Costa Lima. É membro-fundador da
Associação Civil Oficina de Composição Agora (OCA) e da Associação Brasileira de Teoria
e Análise Musical (TeMA), cuja Diretoria integra como Tesoureiro. Tem atuação em música de
concerto e popular, com apresentações (e mais de 10 CDs gravados) como compositor e/
ou intérprete no Brasil e no exterior (Índia, Portugal, Suécia, Inglaterra, África do Sul, EUA).
Produz e coordena projetos e festivais premiados de música de concerto, já tendo realizado a
produção musical/executiva de mais de 20 CDs de música popular e tradicional. No período
de 2006 a 20012, foi produtor musical da Fundação Gregório de Mattos.

Carole Gubernikoff <carole.gubernikoff@gmail.com>


Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Bacharel em Composição pela Universidade de São Paulo (1979), Mestre em Comunicação
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1985) e Doutora em Comunicação pela mesma
universidade (1993). Durante o doutoramento, fez estágio no IRCAM (Paris) com bolsa do
CNPq. Realizou pesquisas de Pós-Doutorado na Universidade de Colúmbia (1997-1998)
e na École Normale Supérieure de Lettres et Science Humaines (Paris). É pesquisadora

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO NOTAS SOBRE OS AUTORES

de produtividade do CNPq, desenvolvendo estudos sobre “Pierre Boulez e o pensamento em Brasília (UnB, 1970-1975) e Salvador (UFBA, 1975-1994). Atualmente reside em Salvador,
musical da segunda metade do século XX”, “a reescrita” e “a escuta”. É Professora Titular da atuando como compositor e educador. É membro fundador do Grupo de Compositores da
UNIRIO, atuando desde 2012 como Decana do Centro de Letras e Artes. Suas especialidades Bahia e da Sociedade Brasileira de Música Contemporânea. Tem diversas obras gravadas e
profissionais são: análise musical, teoria musical, estética, composição e música contemporânea. partituras editadas, além de ser autor de dois livros sobre temas de estética e criação na música
e na literatura. Seu catálogo de obras encontra-se publicado na internet pelo projeto “Marcos
Cristina Capparelli Gerling <ccgerling@gmail.com> Históricos da Composição Contemporânea na UFBA” (https://www.mhccufba.ufba.br).
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Ilza Nogueira <nogueira.ilza@gmail.com>
Professora Titular de Música na UFRGS, distingue-se por conciliar uma intensa agenda acadêmica
Universidade Federal da Paraíba
e artística. Pesquisadora do CNPq, tem trabalhos apresentados em renomadas instituições
Doutora em Composição pela University of New York at Buffalo (Ph.D., 1985), professora
estrangeiras e publicados em revistas especializadas no Brasil e no exterior. Como pianista,
aposentada da Universidade Federal da Paraíba, desde abril de 2003 é membro efetivo da
tem também produzido gravações do repertório latino-americano e brasileiro para piano solo
Academia Brasileira de Música (Cadeira 27). Sua formação de compositora foi orientada por
e música de câmara. D urante sua formação, obteve o título de Mestre em Música, “com
Ernst Widmer. (Universidade Federal da Bahia, 1969-71), Mauricio Kagel (Musikhochschule
honras” do New England Conservatory e de Doutor em Música da Universidade de Boston.
Koeln, 1972-77), Lejaren Hiller e Morton Feldman (SUNY at Buffalo, 1982-85). Ao lado da
Realizou estágios pós-doutorais nas Universidades de Iowa e Connecticut. Tendo recebido
composição, realizou estudos em teoria da música orientados por John Clough (SUNY-Buffalo)
anteriormente duas bolsa da Comissão Fulbright para o doutorado e pós-doutorado, em 2014
e Janet Schmalfeldt (Yale University, 1989-1990). Como pesquisadora no campo da teoria
recebeu apoio pela terceira vez para dar continuidade às suas atividades artísticas e de pesquisa
analítica da música, dedica-se especialmente ao estudo do repertório brasileiro contemporâneo,
da música latino-americana para piano através da “Indiana Chair”  da Universidade de Indiana
e principalmente às obras do Grupo de Compositores da Bahia. É autora do livro Ernst Widmer,
em Bloomington. É Vice-Presidente da TeMA, eleita para o biênio 2015-2016.
Perfil Estilístico (UFBA, 1997), e dos catálogos de obras de Ernst Widmer, Lindembergue Cardoso,
Fernando Cerqueira e Agnaldo Ribeiro, publicados eletronicamente e disponibilizados no site
Fausto Borém <fborem@ufmg.br> da pesquisa que coordena, sob os auspícios do CNPq: “Marcos Históricos da Composição
Universidade Federal de Minas Gerais Contemporânea na UFBA” (https://www.mhccufba.ufba.br). É Presidente da TeMA, eleita para
Professor Titular da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde o biênio 2015-2016.
criou o Mestrado e a Revista Per Musi, é pesquisador do CNPq desde 1994. Seus resultados Lawrence Kramer <kramer@fordham.edu>
de pesquisa incluem um livro, três capítulos, dezenas de artigos sobre práticas de performance Fordham University
e suas interfaces (composição, análise, musicologia, etnomusicologia e educação musical) em Professor Emérito de Música e Inglês na Universidade Fordham (New York City, USA), além
periódicos nacionais e internacionais, dezenas de edições de partituras e recitais nos principais de eminente musicólogo é um compositor premiado, cujas obras têm sido executadas
eventos nacionais e internacionais de contrabaixo. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no internacionalmente. Seus inúmeros livros sobre música incluem, recentemente: Expression and
exterior como solista, teórico, compositor e professor. Acompanhou músicos eruditos como Truth: On the Music of Knowledge (University of California Press, 2012), Interpreting Music
Yo-Yo Ma, Midori, Menahen Pressler, Yoel Levi, Arnaldo Cohen, Fábio Mechetti e Luis Otávio (California, 2010), e Why Classical Music Still Matters (California, 2007). Musical Meaning and
Santos e músicos populares como Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Henry Mancini, Bill Mays, Human Values (Fordham University Press, 2009), co-editado com Keith Chapin, é uma coletânea
Kristin Korb, Grupo UAKTI, Toninho Horta, Juarez Moreira, Tavinho Moura, Roberto Corrêa e baseada numa conferência internacional realizada em honra de Kramer, em 2007. Nessa
Túlio Mourão. Participou do CD e DVD O Aleph de Fabiano Araújo Costa. conferência foram estreadas nove canções do seu ciclo The Wanderer and his Shadow para
voz e violoncelo sobre textos adaptados de Nietzsche (The Gay Science). A estreia marcou
Fernando Cerqueira <f.b.cerqueira@hotmail.com> seu retorno à composição, após 15 anos de intensivo trabalho em musicologia. Execuções
Universidade Federal da Bahia vêm se sucedendo continuamente, desde então. Seu movimento para quarteto “Clouds, Wind,
Natural de Ilhéus (Bahia), é graduado em Composição e Instrumento (clarineta) pela UFBA, Stars” foi distinguido com o “Composers Concordance ‘Generations’ Prize” em 2013. Outras
Mestre em Teoria da Literatura pela mesma instituição, tendo desenvolvido uma dissertação estreias recentes incluem: “Song Acts” (soprano, barítono e piano, Viena 2009), “That Lonesome
sobre a relação entre Poesia e Música. Trabalhou como clarinetista e professor de Composição Whistle” (ciclo de canções, New York 2010), “Crossing the Water” (cantata, Santa Fé 2011),
“A Short History (of the Twentieth Century)” (voz e percussão, Kracóvia 2012), “Pulsation”

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO NOTAS SOBRE OS AUTORES

(quarteto com piano, Ghent, Bélgica 2013), “Words on the Wind” (voz e conjunto de câmera, para teatro. Suas obras têm sido apresentadas em diversos festivais como, por exemplo,
New York 2013), “Songs and Silences to Poems by Wallace Stevens” (voz e piano, Londres XVI e XVIII Bienal de Música Brasileira Contemporânea (Rio de Janeiro), Bienal de Música
2013), Quarteto de Cordas N.º 2, “Whirligig and After” (New York City 2013), e Quarteto de Brasileira Contemporânea de Mato Grosso, Cor tona Sessions for New Music (Itália),
Cordas N.º 6, “Dark Matter – Late Light” (New York City 2013). Festival Internacional de Inverno de Campos do Jordão (Brasil), Académie Internationale de
Musique et de Danse du Domaine Forget (Canadá), etc. Marcílio Onofre recebeu diversos
Liduino Pitombeira <lpitombeira@gmail.com> prêmios como, por exemplo, VII Concorso Internazionale di Strumenti per Composizione
Soloista (Itália), 2010 DuoSolo Emerging Composer Competition (EUA), 6th SCCM New
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Composition (China), Concurso Nacional de Composição Camargo Guarnieri (Brasil)
Doutor (Ph.D.) em Composição e Teoria pela Louisiana State University (EUA), é professor
e Prêmio Música Clássica da Fundação Nacional de Ar tes (Brasil). Sua música tem sido
de composição na Escola de Música da UFRJ. Suas obras têm sido executadas por diversos
interpretada por grupos como Arditti String Quar tet, Nouvel Ensemble Moderne, Grupo
grupos no Brasil e no exterior, incluindo o Quinteto de Sopros da Filarmônica de Berlim, a
Sonantis, Grupo Brassil, etc.
Orquestra Filarmônica de Poznan (Polônia) e a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo.
Foi premiado em concursos de composição no Brasil e nos Estados Unidos. Suas peças são
Marcos Vinício Nogueira <mvinicio@centroin.com.br>
publicadas pela Peters, Bella Musica, Criadores do Brasil (OSESP), Conners, Alry, RioArte e
Irmãos Vitale. Tem publicado diversos artigos em anais de congressos e revistas, tais como Per Universidade Federal do Rio de Janeiro
Musi, Música Hodie e Opus. Doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com
tese intitulada O ato da escuta e a semântica do entendimento musical, Mestre em Música
Manuel Veiga <maviriveiju@gmail.com> pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e Bacharel em Música
(Composição) pela UFRJ. É professor do Departamento de Composição da Escola de Música
Universidade Federal da Bahia
da UFRJ, desde 1998, e docente do Programa de Pós-Graduação em Música da mesma
Doutor (Ph.D.) em Música (Etnomusicologia) pela Universidade da Califórnia (UCLA), Bacharel
instituição, na qual desenvolve projeto de pesquisa denominado A poética da mente musical.
e Mestre (Piano) pela Juilliard School of Music (New York), é Professor Emérito da Universidade
Pesquisador atuante nas subáreas de Composição musical, Cognição musical e Teoria da Música,
Federal da Bahia, (UFBA), membro da Academia Brasileira de Música e da Academia de
vem, desde 1999, publicando trabalhos em torno do viés da pesquisa cognitiva em Música, com
Ciências da Bahia. Tem experiência na área de Artes (Música), nas subáreas das ciências musicais
ênfase na investigação do sentido e da percepção formal aplicados ao ato compositivo. Desde
(etnomusicologia, musicologia histórica) e de música aplicada. Publicações recentes: Religião
1987, atua como compositor e instrumentista em festivais e mostras de música de concerto
e música: variações em busca de um tema,  Caderno CHR, v. 26, n. 69 (set/dez 2013): 477-
contemporânea.
510, disponível em <http://www.scielo.br/pdf/ccrh/v26n69/05.pdf>; Etnomusicologia brasileira
e ética: a escuta ao índio. Ética e Ciência, Academia de Ciências da Bahia, p. 119-175, 2013;
Michael Klein <mklein01@temple.edu>
Sustentabilidade e música: uma visão enviesada, Música e Cultura (Associação Brasileira de
Etnomusicologia), v. 8, n. 1, p.19-33, 2013; Musicologia brasileira: revisita a Guilherme de Melo, Temple University
Atas do I Colóquio/Encontro Nordestino de Musicologia Histórica (PPGMUS – UFBA), p. 1- Professor e Chefe do Depar tamento de Estudos Musicais em Temple University (Phyladelphia,
24, 2012; Uma mesa-redonda do Primeiro Encontro da ABET em Belém. Música e Cultura USA), é autor de Inter textuality in Western Ar t Music (Indiana University Press, 2005) e
(Associação Brasileira de Etnomusicologia), v. 6, p. 10-16, 2011. tem publicado uma grande variedade de temas em impor tantes periódicos internacionais:
Music Theory Spectrum, Nineteenth-Century Music, Journal of Music Theory, Journal of the
Marcílio Onofre <onofremarcilio7@gmail.com> American Liszt Society e Indiana Theory Review. Em 2005, recebeu um prêmio da Society
for Music Theory pelo seu ar tigo “Chopin’s 4th Ballade as Musical Narrative”, publicado
Universidade Federal da Paraíba
em Music Theory Spectrum. Com o co-editor Nicholas Reyland, publicou em 2012 uma
Compositor, pianista e pesquisador, membro do Laboratório de Composição Musical –
coleção de ensaios intitulada Music and Narrative since 1900 (Indiana University Press,
COMPOMUS/UFPB, é Bacharel em instrumento (piano) pela Universidade Federal da
2013). Seu próximo livro, Music and the Crises of the Modern Subject, dirige-se aos
Paraíba, Mestre em Composição pela mesma instituição (orientação do Prof. Dr. Eli-Eri
problemas da subjetividade moderna (segundo o modelo lacaniano) e suas implicações
Moura) e possui o “Ar tist Diploma” em Composição pela Akademia Muzyczna w Krakowie
(Cracóvia, Polônia, orientação de Krzysztof Penderecki, bolsa do Mozar teum Brasileiro). para a compreensão da música.
Sua produção musical inclui obras solo, música de câmara, orquestral e também música

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O PENSAMENTO MUSIC AL CRIATIVO NOTAS SOBRE OS AUTORES

Norton Dudeque <nortondudeque@gmail.com> e revistas especializadas. Recentemente concluiu seu pós-doutorado na University of
Universidade Federal do Paraná California Riverside, onde se dedicou à pesquisa sobre os quar tetos de cordas de Villa-
Doutor (Ph.D.) em Teoria da Música (University of Reading, 2002), Mestre em Musicologia Lobos. Leciona Harmonia, Contraponto e Análise Musical no depar tamento de Música da
(USP,1997), realizou estágio de pós-doutorado no Kings College London (Grã-Bretanha) em Escola de Comunicações e Ar tes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Tem par ticipado
2012. É Professor Associado do Departamento de Música e Artes Visuais da Universidade Federal de congressos, simpósios e seminários no Brasil e no exterior. É idealizador e par ticipa
do Paraná (UFPR), onde atua na área de Teoria e Análise Musical. Bolsista de Produtividade em da organização do ETAM (Encontro de Teoria e Análise Musical USP/UNESP/UNICAMP,
Pesquisa do CNPq, participa dos grupos de pesquisa “Arte e cultura: estudos transdisciplinares” 2009, 2011 e 2013) e do Simpósio Internacional Villa-Lobos (USP, 2009 e 2012). Coordena
(UFPR) e “PAMVILLA - Perspectivas Analíticas para a Música de Villa-Lobos” (USP). É editor da o PAMVILLA (Perspectivas Analíticas para a Música de Villa-Lobos), grupo de pesquisa
revista “Música em Perspectiva” e membro de Corpo Editorial das Revistas “Per Musi” e “Opus”. dedicado à investigação da obra villalobiana.
Tem publicações nacionais e internacionais com destaque para “Music Theory and Analysis in the
Writings of Arnold Schoenberg (1874–1951)” (Ashgate, 2005) e a tradução de “Music Analysis in Rodolfo Coelho de Souza <rcoelho@usp.br>
Theory and Practice” de Jonathan Dunsby e Arnold Whittall (Editora da UFPR, 2012). Universidade de São Paulo – Ribeirão Preto
Professor Livre Docente do Depar tamento de Música da Faculdade de Filosofia, Ciências
Paulo Costa Lima <paulocostalima@terra.com.br> e Letras da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto, onde coordena o Laboratório
Universidade Federal da Bahia de Teoria e Análise Musical (Lateam). É Mestre em Musicologia (Escola de Comunicações
Membro da Academia Brasileira de Música (2014), da Academia de Letras da Bahia (2009) e da e Ar tes da USP, 1994) e Doutor em Composição Musical (University of Texas at Austin,
Academia de Ciências da Bahia (2011). Graduado em Composição (University of Illionis, 1977), 2000), tendo realizado pesquisas de pós-doutorado e, 2009 com Elliot Antokoletz e Russell
é Mestre em Educação Musical (University of Illinois, 1978), Doutor em Educação (Universidade Pinkston (University of Texas at Austin). Atua nas áreas de Musicologia Analítica, Composição
Federal da Bahia, 1999) e Doutor em Artes (Universidade de São Paulo, 2000). É professor da e Tecnologia da Música, pesquisando sobre a música brasileira do romantismo e modernismo,
Universidade Federal da Bahia, onde, ao lado da carreira docente, destacou-se como Diretor teorias analíticas da música atonal e composição auxiliada por computadores. É autor de
da Escola de Música (1988-1992) e Pro-Reitor de Extensão (1996-2002). Quando Presidente cerca de cinquenta trabalhos (capítulos e ar tigos) publicados em revistas acadêmicas e
da Fundação Gregório de Mattos (2005-2008), órgão responsável pela cultura em Salvador, foi anais de congressos nacionais e internacionais. Tem mais de 60 composições,  a maioria
homenageado com a mais alta comenda do Legislativo Municipal, a Medalha Thomé de Souza, delas publicadas por editoras do Brasil e do exterior, gravadas em CDs e executadas em
pela relevância dos projetos implantados e desenvolvidos. Como professor, orienta uma nova impor tantes eventos nacionais e internacionais. Entre elas destacam-se “O Livro dos Sons”
geração de compositores baianos, com os quais fundou o grupo OCA (Oficina de Composição (2010, orquestra e sons eletrônicos), “Concer to para Computador e Orquestra” (2000) e
Agora). Registra em seu catálogo 102 composições e 330 performances em mais de 15 países. “Tristes Trópicos” (1991, orquestra). É Editor da TeMA, eleito para o biênio 2015-2016.
É pesquisador bolsista do CNPq, tendo como principais interesses de pesquisa: composição e
semântica cultural, ensino de composição, música e psicanálise, gestão da cultura e da universidade.
É autor de cinco livros (1999, 2005, 2010 e 2012) e organizou outros dez;Vem publicando artigos
e capítulos (cerca de 60) em edições nacionais e internacionais; Escreve regularmente para o
portal Terra Magazine (âmbito nacional), e colabora com o Jornal A Tarde (Salvador-BA), já tendo
publicado mais de trezentos artigos e crônicas.

Paulo de Tarso Salles <ptsalles@usp.br>


Universidade de São Paulo
Desenvolve pesquisas na área de Teoria e Análise Musical. Compositor e violonista, dedica-
se à música dos séculos XX e XXI, em especial de compositores brasileiros. Escreveu os
livros Aber turas e impasses: a música no pós-modernismo (Ed. Unesp, 2005) e Villa-Lobos:
processos composicionais  (Ed. Unicamp, 2009), além de diversos ar tigos em periódicos

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A sigla “TeMA” não representa somente a associação das duas disciplinas
interconexas: Teoria Musical e Análise. Ela também sugere uma proposição
a ser desenvolvida, qual seja: O incremento da pesquisa teórico-analítica no
Brasil, de forma ampla e irrestrita, incluindo repertórios de todas as culturas,
o aspecto formal e o crítico em abordagens hermenêuticas, cognitivas,
sistemáticas e históricas, integrando as perspectivas do ouvinte, do compositor,
do executante e do educador. Nesse amplo contexto, a TeMA deverá buscar
a interlocução com os diversos campos do conhecimento, procurando
corresponder às expectativas do mundo globalizado contemporâneo.”

Ilza Nogueira

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