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RELIGIÃO, POLÍTICA, GUERRA E MULHERES

(CONGO E ANGOLA, SÉCULOS XVI E XVII)

HEYWOOD, Linda M. Jinga de Angola, a rainha guerreira da África.


Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Todavia, 2019. 320p.
SOUZA, Marina de Mello e. Além do visível: poder, catolicismo e co-
mércio no Congo e em Angola (séculos XVI e XVII). São Paulo: Edusp/
Fapesp, 2018. 320p.

É extremamente oportuno quando portuguesas na África Central


duas excelentes obras afins e Atlântica deveria ser mais notório.
complementares vêm a lume no mer- Com efeito, Jinga estremeceu o
cado editorial brasileiro, quase no Atlântico Sul português, caso se dê
mesmo ano, o que revela um momento crédito à famosa sentença do padre
ímpar de historiografia internacio- seiscentista Antônio Vieira segundo
nalizada e conectada. Ganha-se nos a qual “sem Angola, não há negros
detalhes e em visão de conjunto. e sem negros não há Pernambuco”.
Uma obra de cada vez, porém. Faz até postular se, em suas alian-
Jinga de Angola, a rainha guer- ças com os holandeses em meados
reira da África,1 de Linda Heywood, do século XVII, houve, por parte da
professora da Boston Univer- guerreira ambunda, bem como pelo
sity, analisa uma personagem que rei do Congo, alguma visão geopolí-
merece lugar de relevo na historio- tica sobre a debilidade das conquis-
grafia. Ainda que seja conhecida por tas lusas justamente no momento
especialistas, e esteja presente em da chamada “viragem atlântica”.
folguedos populares brasileiros e Então, a monarquia pluricontinental
no cinema angolano, por exemplo, portuguesa, cabe lembrar, envolta na
o papel central da rainha guerreira Guerra dos 30 Anos, sentia pesadas
que pôs em xeque as conquistas perdas no oriente, invasões holande-
sas no Brasil etc. Tudo isso em meio
ao domínio espanhol e à consecutiva
1 Do original em inglês Njinga of Angola: afirmação da nova dinastia portu-
Africa´s Warrior Queen, Harvard: Harvard
University Press, 2017. guesa dos Bragança em desacordos

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com o papado. Decerto, o livro não todas imbricadas entre si e narradas
se ocupa da geopolítica europeia a partir da trajetória de vida da rai-
e da monarquia portuguesa, mas nha do Ndongo e de Matamba.
redimensiona o impacto político A narrativa que alude à criação
da rainha Jinga no Atlântico Sul e do reino do Ndongo e aos antepas-
na correlação de forças dos esta- sados reais de Jinga demonstra que
dos europeus da época moderna. aquelas histórias não se encerram
O ocaso das monarquias ibéricas com a morte da rainha em 1663,
como potências de primeira ordem posto que seus ritos fúnebres foram
deve um pouco às guerras angolanas objeto de disputa político-religiosa
capitaneadas por Jinga. Os especia- entre os partidários do catolicismo
listas em história moderna ganha- e os de religiões africanas nativas,
riam mais se mirassem, tal como ambos os lados cientes de que os
atenta Heywood, para essa história legados de Jinga mesclavam polí-
que Antonio de Cadornega narrou tica e religião. Todos sabiam que fé
há quase quatro séculos. e poder eram indissociáveis, como
Ademais de lição de método, é também aponta Marina de Mello e
talvez a mais completa biografia his- Souza, mas em Heywood as heran-
tórica sobre a rainha africana, plena ças da rainha ademais se observam
de detalhes sobre suas experiên- em outros sentidos. As memórias
cias afetiva, familiares, de gênero, e as imagens arquitetadas sobre a
religiosa, política etc. Vai-se, para personagem foram alvo de contro-
usar termos em voga, do micro ao vérsias na época em que viveu, bem
macro com extrema facilidade. como nos séculos XVIII e XIX, nas
Com certeza, a pesquisa não será a páginas da historiografia salazarista,
última palavra sobre a personagem, na edificação da memória no pós-
mas, sem dúvida, é a mais integral -independência de Angola e, igual-
até hoje, não apenas pela variedade mente, na América portuguesa e no
de documentos abarcados, mas, Brasil imperial e republicano, onde
sobretudo, pela arguta explanação. Jinga nunca pisou, mas vive em
Tal resultado só é possível aos que folguedos populares como as con-
têm larga experiência no ofício da gadas. Na abordagem de Heywood
História. Assim, o livro é, a um só (cujo livro também é uma recons-
tempo, biografia histórica, história trução da imagem da personagem),
de gênero, história moderna, his- temos uma autora que enfatiza ques-
tória da África, dos sertões do que tões de gênero, o que não é muito
veio a ser Angola, do Atlântico, do comum nas biografias sobre Jinga.2
Brasil, de tudo isso, formando um
conjunto integrado. Na obra, o leitor 2 Sobre outras autoras que, direta ou tangen-
adentrará nas vidas política, diplo- cialmente, pesquisaram Jinga, cf. Beatrix
Heintze, Fontes para a história de Angola
mática, militar, religiosa dos povos do Século XVII. Memórias, relações e ou-
ambundos, ligadas aos imbangalas, tros manuscritos da coletânea documental

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Sem que eu queira dizer que uma A questão de gênero é central
excelente obra sobre Jinga tenha de na investigação de Linda Heywood.
ser escrita por mulheres, o livro é Novamente aqui, trata-se de história
uma aula sobre o papel feminino na da África conectada à história euro-
história da África em suas relações peia durante a época moderna, do
com conquistadores europeus moder- “lugar das mulheres na política na
nos, especialmente nas teias estabe- África e no mundo” (p. 9). Ao ressal-
lecidas com poderes portugueses, tar a função feminina na política no
enredo permeado de guerras, comér- Ndongo, terra natal da guerreira, em
cio, escravização, resistências, diplo- Matamba, mas também nos kilom-
macias e trocas religiosas e culturais. bos imbangalas, Heywood salienta
O feminino, mesmo que vestido de que o rei do Ndongo, Ngola Mbande,
masculino, como foi o caso de Jinga irmão de Jinga, era figura sombreada
em boa parte de sua vida de guerreira pela poderosa irmã, mesmo quando
jaga (ou imbangala), atuou decisiva- ela ainda não encabeçava o poder.
mente em todas aquelas searas. Desse A par e talvez mesmo por isso, para
modo, se o papel de uma pessoa consolidar-se como rei, o irmão
extremamente poderosa em certos assassinou o filho de Jinga e a este-
momentos da história é decisivo para rilizou, tal como procedeu com as
a condução e o desfecho dos proces- outras irmãs. Dizia-se que quem é
sos e para os sentidos vindouros, fez rei não tem parente!
alguma diferença o fato de Jinga ter Todavia, uma vez derrotado
sido a mulher que foi? militarmente pelos portugueses,
Ngola Mbande se valeu do prestí-
de Fernão de Sousa, Sttutgart: Franz
gio da irmã entre os ambundos e a
Steiner Verlag Wiesbaden GMBH, 1985 enviou como diplomata aos que o
(vol 1), 1988 (vol 2). Disponível em http:// venceram. A partir daí, Jinga atuou
memoria-africa.ua.pt/Library/ShowImage. decisivamente sobre a vida política
aspx?q=/Angola/FontesParaAHistoriaDe-
Angola-01&p=9; Angola nos séculos XVI da África Central. Na ocasião, 1622,
e XVII. Estudos sobre fontes, métodos e por volta de seus 40 anos de idade,
história, Luanda: Kilombelombe, 2007; seu batismo em Luanda e o famoso
Selma Pantoja, Njinga Mbandi. Mulher, episódio em que se sentou em uma
guerra e escravidão, Brasília: Thesaurus,
2000; Marina de Mello e Souza, Além do escrava-cadeira ganharam impor-
visível: poder, catolicismo e comércio no tantes conotações simbólico-polí-
Congo e em Angola (séculos XVI e XVII), ticas. Sentar-se sobre uma escrava
São Paulo: Edusp/Fapesp, 2018; Mariana significou não se deixar colocar, no
Bracks Fonseca, “Jinga de Angola: memó-
rias e representações da rainha guerreira na palco da negociação política, em
diáspora” (Tese de Doutorado, Universida- plano inferior ao governador portu-
de de São Paulo, 2018). Ver ainda o livro, guês em uma cadeira. Ao longo da
entre nós pioneiro, de Roy Arthur Glasgow, vida, esta atitude de Jinga expres-
Nzinga: resistência africana à investida do
colonialismo português em Angola (1582- sou sua perspectiva de nunca ren-
1663), São Paulo: Perspectiva, 1982. der tributo aos portugueses porque

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ela se considerava rainha do estado pessoais. Ao perceber a impossibi-
soberano do Ndongo. Antes disso, lidade da lida com os portugueses
o batismo da – ainda diplomata – apenas pela via diplomática, a rainha
Jinga e o de suas irmãs, mas não o ambunda fortaleceu elos com imban-
do seu irmão, rei do Ndondo, havia galas, ou seja, aderiu aos seus ideais
selado o compromisso do envio de guerreiros, que abrangiam caniba-
tropas portuguesas contra Cassanje, lismo, infanticídio, sacrifícios huma-
acordo de resto não cumprido. nos nos ritos fúnebres (tambos).
Na política interna do Ndongo, Ao adentrar tais ritos, Jinga fundiu,
Jinga aconselhou com êxito o seu política e religiosamente, tradições
irmão a não se deixar batizar por- ancestrais ambundas com ethos
que a adesão ao rito cristão seria guerreiros imbangalas. Fé, ritual e
lido como submissão política pelos poder eram intercambiáveis tam-
portugueses. Depois de morto o rei, bém para sociedades centro-africa-
supostamente envenenado pela irmã, nas, à revelia do cristianismo, como
Jinga ascendeu ao poder no Ndongo, observa Heywood.
em 1624, que então era uma som- Tal percurso levou Jinga à fuga
bra daquele da época de seus avôs, estratégica para leste, do Ndongo
quando ela era ainda jovem. Alme- a Matamba, e a uma aliança com
jando reconstruir o passado exitoso sociedades imbangalas, sobretudo
do reino em honra a seus antepassa- Cassanje, a quem teve que ceder.
dos, durante o seu reinado, de 1624 a A contra-ofensiva lusa colocou um
1663, Jinga pelejou para reconstruir aliado no trono do Ndongo, Ngola
“a hegemonia do Ndongo e limitar o Hari, adversário de Jinga. No con-
poder português na região” (p. 61). fronto entre ela e poderes portugue-
É a partir daí que Linda Heywood ses, por cerca de 30 anos assistiu-se
constrói a vida de Jinga em prol da ao jogo das pressões diplomáticas e
consolidação da liderança política militares de parte a parte, com osci-
ambunda e em oposição ao pro- lações políticas de sobados, dem-
cesso de conquista portuguesa, tudo bados e dos reinos do Congo e de
permeado por alianças e conflitos Cassanje, que ora estavam ao lado
com outros poderes na África Cen- de Jinga, ora dos portugueses. Aqui
tral Atlântica, nomeadamente com o talvez fosse o caso de afirmar que
reino do Congo, o Dembo, os imban- a guerra era a continuação da polí-
galas, Cassanje, e com os holandeses. tica por outros meios porque muitos
Conhecedora das tradições ambundo, dos embates tinham fins políticos.
exímia oradora, estrategista militar, Talvez também coubesse à autora
seu prestígio e poder eram realça- salientar aspectos das culturas polí-
dos, não só por descender do rei do ticas da África Central que permi-
Ndongo – de quem seria filha com tiam oscilações de vínculos políticos
sua principal concubina, Kasenda e a não separação de estratégias
–, mas também por seus atributos diplomáticas e militares.

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Não obstante tal lacuna, condução da política. Por exem-
Heywood demonstra que, no ins- plo, o governador Fernão de Sousa
tável xadrez político do Atlântico instou um seu aliado a desqualifi-
centro-africano, Jinga sabia que car Jinga perante aliados da rainha
para ser líder política também pre- com o argumento, entre outros, de
cisava ser líder espiritual. Pois era que ela “‘não era uma rainha, nem
um mundo muito distante da laici- podia ser, por ser mulher’” (p. 92).
zação do poder, tal como na Europa, Sob suas próprias condições, Jinga
em demais partes da África ou nas até se propôs a ser vassala dos por-
Américas. A aproximação da rainha tugueses, mas a recusa recebida
ambunda, confrontada no poder pelo revela que eles se calcavam em
aliado dos portugueses, Ngola Hari uma cultura política na qual a esma-
no Ndongo, conduziu-a em direção gadora maioria das mulheres das
aos rituais imbangalas. Porém, ape- famílias europeias se contentava
sar de batizada, e “imbangalada”, ela com estarem à margem da liderança
nunca deixou de lado “as próprias política. Para Heywood, Sousa era
crenças religiosas, nem os rituais desconhecedor da cultura política
tão essenciais para a elite gover- do Ndongo, na qual “as mulheres
nante de Ndongo e para os ambun- tinham um papel político na gover-
dos comuns” (p. 81). Jinga até nança” (p.104). O caso da rainha
tentou, no início de seu reinado, em Elizabeth da Inglaterra pós-reforma
1625-1626, abrir seu reino ao cris- protestante era uma exceção à regra,
tianismo, mas a conversão cristã era mas uma exceção que não estava na
essencial para a política de domínio península ibérica católica de Sousa.
portuguesa em Angola. Governa- Todavia, há alguns senões a
dores, jesuítas e outros portugue- esta diferença sugerida pela autora.
ses consideravam a propagação do Para além do silêncio sobre a opo-
cristianismo católico, sob controle sição do próprio irmão de Jinga ao
português, como aspecto basilar de direito de uma mulher ascender ao
seu projeto colonial. Mesmo assim, trono, o que atenuaria a ideia de
os poderes portugueses não confia- que a cultura política ambunda tole-
vam em Jinga, e chegaram a pensar rava o governo feminino, a autora
que ela agia mais “‘por medo do que não menciona outras personagens
por devoção’” (p. 84), leia-se, mais europeias à frente do poder polí-
por estratégia de poder do que por tico, como, por exemplo, Isabel de
devoção cristã. Castela, na Espanha, Catarina de
Além de vedado o caminho Médici, na França, Mary I, na Escó-
estrito da diplomacia cristã, tinha cia, ou mesmo Maria I, em Portugal
o agravante de gênero. A cultura de fins do século XVIII.
política europeia, em especial a ibé- Contudo, teria sido em contraste
rica, afirma Heywood, não lidava com a acepção misógina portuguesa
bem com a primazia feminina na que emergiu a aliança de Jinga com

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os holandeses, entre 1641 e 1648, do governante centro-africano que
e a montagem de uma aliança cen- lhe era hostil.
tro-africana contra os lusos que Nesse sentido, até que ponto,
abrangia o Reino do Congo e outros tal como Elisabeth e outras mulhe-
Estados nominalmente independen- res na Europa, Jinga também não
tes. Mais importante, porém, foi a foi uma exceção na África Central?
decisão de Jinga de aderir a rituais O poder não seria visto como atri-
imbangalas combinando-os com as buto masculino entre ambundos e
tradições ambundas. A partir daí, foi imbangalas? Lembremos que ela
criada uma “nova ideologia que se foi a primeira mulher governante do
baseava na inversão de categorias Ndongo e também a primeira líder
de gênero e novos ritos religiosos e a governar Matamba, um Estado
seculares” (p. 120). Essas atitudes imbangala, aderindo ao estilo jaga
deram uma feição peculiar à rainha de mando. Como afirmou a própria
guerreira, fazendo dela uma figura autora, ao adentrar as leis da kizila
lendária entre africanos e europeus, imbangalas, Jinga queria “encon-
ainda em vida. trar seu lugar em um mundo onde
Não obstante Heywood insistir as mulheres raramente tinham papel
nas marcantes diferenças entre as importante na guerra, na política e
culturas políticas ibéricas e centro- na diplomacia” (p. 129). De fato, ela
-africanas em torno do papel femi- rompeu tradições políticas de gover-
nino, deve-se refletir sobre este nos masculinos em duas sociedades
aspecto também pelos vieses polí- centro-africanas. Mas parece que
tico e religioso. Por exemplo, aliada o governo feminino em Matamba
ao Congo em 1648, Jinga enviou terminou com sua morte, já que sua
tropas para debelar uma rebelião irmã Bárbara, resgatada dos portu-
em uma província liderada por um gueses, a quem ela pretendia fazer
governante centro-africano. Além de sua sucessora, foi assassinada.
socorrer um aliado, Jinga nutria sen- Até certo ponto, para tornar-se
timentos pessoais para esta batalha líder imbangala, e talvez por isso
porque aquele governante teria dito mesmo, foi necessária uma impor-
que “ela não passava de uma mulher tante inversão de gênero. A rainha
que era ‘mais hábil com uma roca decidiu que seu círculo interno e seus
do que com uma espada’” (p. 162). seguidores a considerassem homem,
Talvez Jinga não pudesse ser dimi- e não mulher. Ela iniciou sua tran-
nuída por ser mulher, sob pena de sição de gênero, porém, casando-se
sair enfraquecida naquele contexto com um homem, Ngola Ntombo
conturbado. No entanto, relativi- (Senhor Ntombo), mas mandou que
za-se a rígida diferença relativa ao ele se vestisse como mulher. Jinga
feminino entre culturas políticas se referia a ele no feminino e exigia
ibéricas e centro-africanas, tendo que se dirigisse a ela como rei, não
em vista a argumentação misógina como rainha. Ao casar, ela ampliou

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o número de seus concubinos, nas costas dos escravos, mas essa
aos quais também se referia como era rei”. Jinga se considerava “rei,
mulheres e também lhes ordenou porque só o rei manda, e ela não tem
que se vestissem com as mesmas nenhum marido que mande nela, ela
roupas de suas guarda-costas femi- é que manda nos muitos homens que
ninas. Igualmente, ordenou que os tem no seu harém e que chama de
concubinos dormissem nos mesmos minhas esposas. É Rei Jinga Mbandi
quartos de suas guarda-costas, mas e acabou”.3 Enfim, ela não desem-
sem relações sexuais. Se se tocas- penhava papel de mulher e a repre-
sem, mesmo acidentalmente durante sentação do poder, portanto, era
o sono, “seriam mortos ou reduzidos masculina.
a impotentes ou inférteis” (p.132). Por outro lado, há uma dimensão
Essa inversão de gênero foi religiosa que pode elucidar a ques-
crucial para tornar Jinga uma líder tão ou adicionar novas explicações,
imbangala, posto que precisasse, o que poderíamos denominar de
ou quisesse, ser considerada como inversão espiritual de gênero, sem
homem, até mesmo adotando a poli- perder de vista que espiritualidade
gamia, não a poliandria, já que seus e política andavam juntas em socie-
concubinos eram tidos por mulhe- dades centro-africanas. Por exem-
res. Logo, novamente incumbe uma plo, em fins do século XVI o padre
relativização das diferentes culturas jesuíta Barreira entrevistou uma
políticas (europeia e centro-afri- importante autoridade espiritual, um
cana) sobre mulheres e poder. Se ganga, de uma província, a quem
para se tornar líder imbangala, Jinga creditavam poderes para controlar o
necessitou travestir-se em homem, clima etc. O padre se alarmou com
e seus concubinos em mulheres, a o aspecto do ganga ao perceber que
representação simbólica do poder ele parecia “estar vivendo como uma
político não seria masculina? Ate- mulher, pelo menos exteriormente”.
nua-se, novamente, a diferença Seus cabelos eram longos e soltos,
entre as culturas políticas europeias e ele se vestia com “panos normal-
e centro-africanas? Até certo ponto, mente usados somente por mulhe-
sim, o que mereceria uma atenção res”. Indagado pelo jesuíta, o ganga
maior de Heywood. Ou foi uma revelou que nascera “homem, mas o
mudança de gênero de fachada?
Tudo sugere que não, parecendo 3 Pepetela, A gloriosa família. O tempo dos
ter razão a literatura de ficção de flamengos, Rio de Janeiro: Nova Frontei-
ra, 1999, p. 96, 87, 23. Sobre a literatura
Pepetela: o escravo narrador de A histórica de Pepetela, vide Robson Dutra,
gloriosa família dizia “o meu rei “Quem tem medo de história? Os romances
Jinga”. Diferente de Jinga, na África de Pepetela e a cartografia de Angola”,
Central Atlântica as mulheres sen- in Adriana Campos e Gilvan V. da Silva
(orgs.), Da África ao Brasil. Itinerários
tavam-se no chão, exceto a “rainha históricos da cultura negra (Vitória: Flor
Jinga, que sentava em cadeirões ou e Cultura, 2007), pp. 275-291.

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‘demônio’ dissera à sua mãe que ele de Jinga, portanto, também foi
morreria imediatamente se não ‘se um ato político, mas nem por isso
tornasse uma mulher’” (p. 39). menos religioso. Através dos capu-
A se dar crédito ao padre Bar- chinhos, ela aproximou-se de Roma
reira, pode ser que a inversão espiri- para se distanciar da tutela religiosa
tual de gênero, em Jinga, propiciasse do padroado português (capítulos
parâmetros para sua inversão polí- 6 e 7), tal como fizera o reino do
tica de gênero, pois religião e polí- Congo no século anterior. Como
tica eram indissociáveis. A inversão salienta Marina de Mello e Souza,
espiritual de gênero foi constatada o cristianismo conguês foi instru-
empiricamente por Linda Heywood, mento de afirmação política da elite
que talvez pudesse relacioná-la local, era uma religião de Estado à
à questão política mais a fundo. revelia dos portugueses e do clero
Mas isto não diminui a novidade de tradicional africano.
sua análise. Ao contrário, abre sen- Nesse sentido, quais os modelos
das para novas pesquisas. de Jinga para sua conduta política
Idosa(o), cansada(o) de guerra, no cenário centro-africano nos anos
novamente Jinga fez uma conver- finais de sua vida? Todos os proce-
são político-religiosa de gênero dimentos de negociação de Jinga
quando das negociações diplomá- para o resgate da irmã contaram com
ticas para o resgate de sua irmã, os diplomatas capuchinhos envia-
refém dos portugueses, com vistas à dos por Roma, a par dos jesuítas.
sucessão em Matamba. No processo O episódio gerou desavenças entre
de cristianização iniciado na virada a câmara de Luanda e o governa-
da década de 1640 para a de 1650, dor de Angola, Sousa Chichorro.
Jinga abandonaria paulatinamente Para Roma, o Conselho Ultrama-
rituais ambundos e imbangalas, rino, os capuchinhos encabeçados
mesmo sob risco de perder apoio por Gaeta e Cortona, o Reino do
político interno, mas nem por isso Congo ou os poderes imbangalas,
deixou de batizar com nome femi- incluindo Cassanje, o resgate de uma
nino cristão, de construir igrejas das irmãs de Jinga não foi alheio a
católicas, de consentir a pregação nenhum desses agentes políticos, e
de padres cristãos, com o capuchi- nem ao rei português, cuja carta de
nho Gaeta à testa, de disseminar a apoio à câmara luandense, avessa ao
cruz etc. Mais ainda: a rainha casou acordo, chegou tarde. O rei de Portu-
cristãmente com um homem, andro- gal se aliou à poderosa câmara, mas,
ginando-se, e teria até desejado, como demonstra Marina de Mello
com vistas à sua sucessão do poder e Souza, o governador de Angola,
em Matamba, o milagre da mater- contrariando seu rei, já havia se
nidade na casa dos seus 75 anos aliado aos capuchinhos e iniciado
de idade, milagre que Gaeta não o processo de negociação antes da
garantiu. Esta segunda conversão chegada da missiva. No resgate da

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irmã de Jinga estavam em jogo, pelo tradicional ambunda, que primava
lado português, a possibilidade de em trocar ou mesclar símbolos
dobrar a rainha e, do lado da guer- rituais de acordo com as conveniên-
reira, a de fortalecer seu poder e pre- cias político-religiosas, cujas razões
parar sua sucessão. são muito bem trabalhadas pela
Mas o principal modelo da rai- autora. Afinal, a imbricação entre
nha de Matamba não era nenhum política e religião precisou manipu-
daqueles atores no quadro geopolí- lar símbolos e ritos. Jinga encarnou e
tico centro-africano e europeu; em desencarnou tudo isso.
sua segunda conversão, a questão Se Linda Heywood enfatiza a
dos tributos em escravos (compo- trajetória de vida de Jinga, o livro de
nente sempre primordial nas con- Marina de Mello e Souza dá relevo
tendas entre europeus e africanos, ao pluralismo do cristianismo cató-
amiúde entre os próprios africanos) lico em sociedades centro-africanas.
não seria resolvida ao modo por- Didaticamente, o livro, fruto de uma
tuguês; e tampouco ela deixou de pesquisa de dez anos, coroa a trajetó-
requerer as antigas terras do reino ria acadêmica de uma pesquisadora
do Ndongo, que reclamava como madura. Além da abordagem sobre
suas. O leitor compreenderá nos os significados religiosos da cruz para
capítulos 6 e 7 que, ao contrário do povos centro-africanos, Marina Souza
que se supõe, nem sempre a adesão revisita o tema do cristianismo no
ao cristianismo implicava submis- Congo, objeto de um importante tra-
são política, e o modo como Jinga balho anterior de sua autoria,4 e acres-
regeu o processo se torna compreen- centa Dongo, a região dos Dembos e
sível dentro dos horizontes políticos Matamba na abordagem comparativa.
e da religiosidade ambundos, como A autora avalia o impacto do
nos deixa ver Linda Heywood. Reino do Congo quinhentista para a
O modelo político feminino de mudança de orientação da adminis-
Jinga que o leitor se deleitará em des- tração portuguesa na África Central
cobrir também é muito bem perscru- Atlântica seiscentista. A partir daí,
tado pela autora – mas será que, no aborda o cristianismo católico dos
fim da vida, Jinga teria se inspirado séculos XVI e XVII, quer como
no Reino do Congo, que se aproxi- foi politicamente vivenciado, quer
mou de Roma para frear o poderio a ação missionária de padres cató-
do padroado português? Seja como licos, sobretudo os capuchinhos.
for, não houve o menor problema A comparação de diferentes socie-
para Dona Ana de Sousa, o nome de dades centro-africanas lança uma
batismo de Jinga, retomar sua identi-
dade de gênero original. Tampouco 4 Ver Marina de Mello e Souza, Reis negros
o cristianismo na África Central, no Brasil escravista. História da Festa
de Coroação do Rei Congo, Belo Hori-
no Ndongo, em Matamba, alhures, zonte: Editora UFMG, 2002, entre outros
contrariava sempre a religiosidade títulos seus.

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perspectiva instigante sobre as dife- De um modo ou de outro, porém,
renças e semelhanças do catolicismo no livro de Mello e Souza, tal
no Congo e nas demais searas. como em Heywood, religião, fé e
No Congo, o catolicismo, que comércio (sobretudo de cativos),
segundo a expectativa portuguesa a tríade basilar do contato entre
deveria ter sido instrumento de con- europeus e africanos, andavam
trole político, redundou em uma juntas e misturadas. A historiadora
vertente autônoma devido ao modo foca nos catolicismos europeus
pelo qual aquela religião foi apro- (jesuíta e, sobretudo, capuchinho),
priada pela sociedade conguesa, suas variantes em África Central
que se valeu de suas próprias estru- Atlântica e, principalmente, nas
turas religiosas para implementá-la. experiências e apropriações do
Estreitando relações com Roma, catolicismo por parte de sociedades
desde cedo os reis do Congo invo- africanas. Ela rompe definitiva-
caram sua condição de cristãos para mente com a ideia de um catoli-
manter autonomia perante Lisboa e o cismo monolítico na região, bloco
padroado português. Os portugueses homogêneo quebrado no século
contavam com a submissão africana XVII pelos poderes africanos e por
para fazer face à presença holandesa desavenças entre jesuítas represen-
na região nos momentos iniciais da tando o padroado régio e capuchi-
dinastia de Bragança, quando da res- nhos a serviço do papado.
tauração, em 1640, do trono portu- Com o fracasso do projeto de
guês então sob controle espanhol. Na religião como instrumento de pro-
época, Portugal estava em conflito dução de súditos no Congo, des-
com o papado, que pendia para o lado confiadas do clero nativo e do clero
espanhol. Nessa mesma altura, as eli- romano representado pelos capu-
tes políticas do Congo reforçaram, chinhos, as autoridades portuguesas
via cristianismo, seu poder diante de puseram as armas à frente da fé em
seus concorrentes, mormente os reli- sua lida com outros povos centro-
giosos, valendo-se do próprio catoli- -africanos. Daí resultaram muitos
cismo para sua a legitimação. conflitos de portugueses contra
Desta maneira, o que do ponto Dongo (Ndongo), Matamba e na
de vista da administração portu- região dos Dembos. Mas, a par das
guesa deveria ser um instrumento armas, nada significa que a geopo-
de dominação no Congo, como lítica da África Central Atlântica se
ponta de lança para toda a África livraria das questões de fé. Porém,
Central, tendo em vista a influência aqui cabe indagar se efetivamente
deste reino sobre outras sociedades a experiência quinhentista de con-
centro-africanas, acabou por refor- versão da elite do Congo propiciou
çar, sob novas bases, o poder con- um saber acumulado de conquista
guês diante de outras sociedades e portuguesa entre a dinastia de Avis,
da própria governança portuguesa. o domínio dos Felipes e a afirmação

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da nova monarquia de Bragança.5 Compreender o mundo dos mor-
Essa questão, entretanto, não reduz tos africanos é um exercício que per-
o valor da abordagem comparativa corre toda a obra e leva à explicação
da autora sobre os conflitos e apro- do mundo político-social dos vivos.
ximações entre sistemas religiosos O que está além do visível no Congo,
distintos na região africana. no Dongo, em Matamba nos séculos
Para compreender o pluralismo XVI e XVII é percebido através de
do catolicismo, Marina de Mello certos signos, a começar pela cruz
e Souza entende que é preciso cristã. Se para a monarquia portu-
adentrar as estruturas religiosas guesa, a cruz nas áreas de conquista
das sociedades africanas que per- simbolizava conversão e conquista,
mitiram-nas interpretar a religião ou, como afirmara Charles Boxer, em
europeia a partir de seus próprios quem a autora se assenta, “‘a insepa-
interesses. Nesse esforço, a autora rável relação entre cruz e coroa, trono
dialoga com uma vasta bibliografia e altar, religião e império’” (p. 27),
especializada. Este diálogo, com- eram outras as acepções centro-africa-
binado ao manuseio de relatos de nas. Aqui, porém, vale uma ressalva.
época e de trabalhos antropológi- Ao enfatizar a instrumentalização
cos baseados na história oral, con- da religião católica pelas monarquias
duziu a historiadora a uma seara já ibéricas, sobretudo a portuguesa,
fartamente trilhada por estudiosos, como meio de conquista, a análise
mas, mesmo assim, e quiçá por de Marina Mello e Souza deu pouco
isso mesmo, essa opção lhe deu relevo aos traços sacro-políticos do
base para propor novas explicações próprio catolicismo europeu. Des-
sobre os significados de elementos tarte, ao comparar as relações “entre
sagrados centro-africanas e sobre o poder político e a religião nos dois
as inseparáveis interconexões entre universos, o europeu e o centro-afri-
fé, política e comércio, ou seja, cano”, afirma que, embora semelhan-
buscando enxergar Além do visível, tes em essência, “eram extremamente
feliz título do livro. distintas” (p. 12). A natureza do poder
político europeu tenderia cada vez
mais a se “separar da esfera religiosa e
5 Ausências de projetos, de ordenamento
unidirecional, reorientações de sentido e aproximar-se dos interesses relativos
pragmatismo ao acaso foram comuns na à dimensão material da vida humana,
expansão portuguesa. Vide, entre outros, ou seja, à esfera a economia” (p. 12),
Luis Felipe Thomaz, De Ceuta a Timor, 2a. ao passo que a natureza do poder polí-
ed., Lisboa: Difel, 1998; António Manuel
Hespanha, “A constituição do império por- tico centro-africano se guiava pela
tuguês. Revisão de alguns enviesamentos”, “perspectiva que integrava os homens
in João Fragoso, Maria de Fátima Gouvêa a um contexto maior do qual eram
e Fernanda Bicalho (orgs.), O Antigo indissociáveis, e fortemente apoiado
Regime nos trópicos. A dinâmica imperial
portuguesa (Rio de Janeiro: Civilização na esfera simbólica” (p.13). Anco-
Brasileira, 2001), pp. 163-188. rada principalmente na obra de Boxer

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sobre a Igreja católica militante, a província do Soyo foram batizados
autora passou ao largo da vasta e no catolicismo, o que foi visto de
sólida historiografia sobre Igreja cató- forma diferente pelo clero católico
lica, bem como as manifestações da e pelos centro-africanos. Os primei-
segunda escolástica no mundo ibérico ros liam o batismo como conversão,
e nas áreas de conquista. Contudo, e por isso Roma e Portugal aceita-
certamente esta ausência se deveu à vam o Congo como um reino cristão,
opção por compreender o catolicismo mas os segundos o liam a partir de
pela ótica das sociedades africanas, suas crenças tradicionais associadas
objeto principal do livro. a ritos e objetos de culto católicos.
E só a partir daí foi possível ino- Em poucas palavras, alicerçada em
var na interpretação dos significa- farta literatura antropológica, Marina
dos da cruz e de outros símbolos do Souza grifa a ampla capacidade de
sagrado centro-africano, ponto alto religiões centro-africanas em incor-
do livro já em seu primeiro capítulo. porar, e mesmo substituir, símbolos
Após discorrer sobre a organização sagrados de outras religiões, deco-
político-social conguesa associada à dificando-os a seu modo – o que,
esfera do sagrado (procedimento de aliás, não deve causar estranheza aos
cada capítulo/sociedade abordada), cristãos, posto que a cruz antecede à
Souza enfatiza as três esferas do crucificação de Cristo.
mundo invisível: a dos ancestrais, a É tentador expor ao leitor a sagaz
dos mbumba e a dos nkadi mpemba. interpretação que Marina de Mello
A primeira era formada pelos chefes e Souza fornece da incorporação de
fundadores de linhagens e abran- símbolos cristãos pelos congueses
gia dimensões míticas. A eles eram quinhentistas, principalmente a cruz,
dedicados cultos em seus túmulos mas seria um spoiler. Garanto, toda-
pelos principais de cada linhagem. A via, que depois da leitura da obra
dimensão mbumba contemplava os qualquer cristão ou estudioso do
espíritos da terra e da água, ligava-se cristianismo nunca mais olhará para
ao território e à fertilidade, e seu culto a cruz do mesmo jeito, e também
era da alçada do kitome (sacerdote). repensarão a importância dos sonhos,
Por fim, a esfera nkadi mpemba se atentarão ao movimento religioso cir-
imbricava ao mundo social, ao poder cular anti-horário da vida e da morte
de proteção e cura, mas igualmente à em torno da cruz, à matéria de que as
destruição. Seu sacerdote era o ganga, cruzes são feitas, seu lugar nos alta-
que operava através dos minkisi (obje- res, às procissões etc. Mais do que
tos rituais) para fins de adivinhações, um diálogo de surdos, o catolicismo
curas, julgamentos etc. O poder no simbolizado na cruz no Congo esta-
Congo devia ser legitimado por estas beleceu uma convergência de con-
três dimensões. cepções europeias e centro-africanas.
Contudo, ainda em fins do século A cruz no Congo estava ligada ao
XV, o mani do Congo e o mani da poder, fundamentando-o sob novas

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bases, mas sem romper em nada com de prática escrita de registro do
o tradicional sistema religioso con- poder, ou melhor, almejava uma
guês. Entretanto, ao que tudo indica, “lusitanização do Congo” (p. 74),
a convergência se limitava à absorção no final predominou, lato sensu,
de símbolos católicos por parte das uma apropriação da escrita pelos
culturas religiosas centro-africanas. africanos6 estabelecida sobre estru-
Aqui cabe uma questão que talvez turas político-religiosas próprias
possa valer para toda a obra. Se o sis- incapazes de dissociar o mundo dos
tema religioso centro-africano permi- vivos do mundo invisível.
tia e viabilizava a incorporação e/ou a Chave para os demais, o capítulo
substituição de símbolos sagrados, de 1 analisa as imbricações entre reli-
que maneira os bacongos, os ambun- gião, poder e vida social em culturas
dos, e mesmo os jagas, observaram centro-africanas, especialmente no
a queima e a destruição, por parte de Congo do século XVI, onde a incor-
padres europeus, do que chamavam poração de elementos do catolicismo
de “ídolos”? Liam-nas como parte de serviu a interesses políticos congue-
um processo substituição de símbolos ses, quer no fortalecimento do poder
sagrados para acomodar a nova reli- de sua elite perante poderes locais
gião? Marina de Mello e Souza não religiosos, quer perante seus aliados,
faz esta indagação, mas só cheguei quer nos momentos de sucessão,
a ela a partir do seu livro, repleto de quer, sobretudo, na legitimação do
exemplos de tal natureza retirados poder do mani Congo e na edifica-
de uma leitura atenta e minuciosa de ção de uma religião de Estado.
cronistas religiosos e militares já há Os demais capítulos, quase sem-
muito utilizados pela literatura espe- pre referidos no primeiro, completam
cializada. Dessa maneira, a autora a visão de conjunto de sociedades da
ensina que é sempre possível ao histo- África Central Atlântica dos séculos
riador inovar na leitura de documen- XVI e XVII, excluída Benguela, mais
tos e relatos já bastante conhecidos. ao Sul. No capítulo 2, a autora aborda
O livro, de fato, estimula novos cami- a conquista/construção de Angola
nhos para futuras pesquisas. sobre partes do Dembo e do outrora
A “nova” base religiosa do poder “Ndongo como estado independen-
no Congo viabilizou o estreitamento te”7 pelos portugueses associados a
dos laços do reino do Congo não
apenas com Lisboa, mas, principal-
6 Ana Paula Tavares e Catarina Madeira
mente, com Roma. A elite conguesa Santos, Africae Monumenta. A apropriação
enviou seus filhos para serem ali da escrita pelos Africanos, Lisboa: IICT;
educados e desviou-se do padroado Arquivo Caculo Cacahenda, 2002.
régio calcado mormente nos jesuí- 7 Sobre a derrocada do Ndongo, cf. Beatrix
tas. Se, de um lado, a monarquia Heintze, O fim do Ndongo com estado
independente, in _______. Angola nos
portuguesa visava criar um novo séculos XVI e XVII, Luanda: Editorial
Portugal no Congo, até em termos Kilombelombe, 2007, pp. 278-386.

Afro-Ásia, 60 (2019), 277-294 289


sobas aliados e/ou avassalados, as Cortona, Battel, Cavazzi e Fernão de
contendas e resistência dos ambun- Sousa. Ela demonstra que, envolta
dos, capitaneados por Jinga no até a alma em conflitos com os portu-
Dongo e Matamba, e suas alianças gueses durante a primeira metade do
com os povos jagas a Leste. Além do século XVII, Jinga tornou-se “uma
realce às estruturas político-sociais guerreira afamada pelo seu talento
ambundas assentadas na religiosi- para a guerra e por suas capacidades
dade, tão importante é a apreciação mágicas, adquiridas junto aos jagas”.
da organização político-social dos Na ocasião, os jagas, é bom lembrar,
jagas em seus quilombos, edifica- eram então os mais temidos guerrei-
dos sobre ritos de iniciação e sobre ros da África Central Atlântica, quer
as leis da kizila, mas não em prin- por modo de vida baseado na guerra
cípios linhageiros, diferentemente e no saque, quer pelos “seus poderes
dos ambundos. Avessa aos intentos junto às forças invisíveis dos grandes
geopolíticos e mercantis portugue- chefes do passado” (p. 114).
ses, em sua tentativa de controlar as Pelo exposto, aprendemos que a
rotas de fornecimento de escravos, manipulação das estruturas cosmo-
Jinga, personagem central do capí- gônicas ambundas permitiu à Jinga
tulo, abandona princípios linhageiros alternar “suas identidades conforme
ambundos e, tal como salientou Linda as circunstâncias, transitando entre
Heywood, adere aos ritos jagas para ngola do Dongo, portanto, ambunda,
com eles selar alianças, sobretudo chefe jaga e tembanza, detentora de
com o poderoso Cassanje. poderes especiais”; e, depois de idosa,
Nesse cenário em que as armas cansada de guerrear como jaga, aban-
antecederiam a cruz devido ao fra- donada por Cassanje e baqueada pelos
casso da lusitanização do Congo qui- portugueses, tornar-se-ia “dona Ana
nhentista e da crescente demanda por de Sousa, cristã batizada e iniciada na
cativos, as forças da então jaga Jinga religião dos brancos” (p. 141).
se coligaram aos holandeses. Uma O capítulo 3 é um desdobra-
vez fortalecida, sua base religiosa foi mento do anterior, novamente com
a pedra angular para promover sua realce à personagem Ana de Sousa,
conversão aos rituais jagas, em nego- que buscava a paz e desta vez ins-
ciação que implicou a incorporação trumentalizou o catolicismo a seu
e/ou o abandono de dados símbolos e favor, sem deixar de ser religiosa-
rituais, inclusive de poder. mente ambunda, entretanto. Ade-
Assim, em exame que sublinha mais de uma lição de método na lida
a interligação entre religiões e poder com diferentes discursos coevos, o
exclusivamente entre povos centro- que repetidamente deve ser frisado,
-africanos (ambundos e imbangalas), Marina de Mello e Souza enfa-
Marina de Mello e Souza interpreta tiza como os mesmos pensamentos
fontes já muito manuseadas, mor- religiosos que antes levaram Jinga
mente as narrativas de Cadornega, em direção ao ritos jagas também

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viabilizaram conversão, politica- paz e de comércio com os portugue-
mente estratégica, ao catolicismo. ses” (p. 194). Há um claro contraste,
Aí, deve-se sublinhar o paralelismo no caso da Matamba de Jinga, com
traçado pela autora com a experiên- a análise de Linda Heywood, que
cia do Congo de mais de um século aposta na conversão sincera da rai-
antes. A tentativa de Jinga foi promo- nha, mesmo se feita de uma perspec-
ver a “umbundização” de Matamba, tiva religiosa ambunda.
o que gerou conflitos locais, mas Entretanto, quaisquer que fos-
também adesões. Novamente se sem os catolicismos dos centro-afri-
fazem presentes as diferentes acep- canos, o papel do clero católico, de
ções e perspectivas sobre o sagrado catequistas, de mestres e de intér-
suscitadas pela comparação. Em pretes foi fundamental. É o que a
Matamba, o catolicismo jamais se historiadora discute no capítulo 4,
converteu em religião de Estado ou no qual sublinha as experiências
serviu para legitimação do poder, ao de padres na lida com conflitos e
contrário do que ocorrera no Congo. aproximações entre dois sistemas
Logo, se houve aproximações entre religiosos, e entre os próprios siste-
as estruturas religiosas ambundas e mas centro-africanos. Aqui se visua-
conguesas, que permitiram a incor- lizam as tensões entre membros do
poração de elementos cristãos, não clero católico, especialmente entre
menos importantes foram as diferen- jesuítas e capuchinhos. O envio dos
ças. Mas, em quaisquer casos, poder capuchinhos pela Propaganda Fide,
e religião estavam umbilicalmente em 1645, foi uma tentativa de Roma
interligados, até mesmo no post-mor- para frear, ou melhor concorrer, com
tem de Jinga – o que aproxima a aná- os amplos privilégios antes concedi-
lise de Souza à de Heywood quanto dos do padroado régio português,
às batalhas em torno do funeral e da mas os africanos não foram per-
memória de Jinga. sonagens passivos neste processo.
Mas Souza salienta, ainda, a con- Ainda em 1618 e 1619, o monarca
versão católica do jaga Cassanje no congolês d. Álvaro III (1616-1622)
pós-vida terrena de Jinga. Teria sido trocou por carta informações sobre
uma conversão estritamente voltada a os capuchinhos com o embaixador
fins mercantis para facilitar o escoa- do Congo em Roma. Também soli-
mento de cativos para o tráfico. Seria citou ao papa Paulo V o envio de
uma adesão ao catolicismo muito padres capuchinhos, o que redundou
diferente do efetivado no Dongo e na primeira expedição destes padres
no Congo, mas sem que o Cassanje ao Congo, em 1645.8 A busca de
deixasse de se apropriar de elemen-
tos cristãos. Em Matamba e em Cas- 8 Rosana Andréa Gonçalves, África Indô-
sanje, “o batismo dos chefes pareceu mita: missionários capuchinhos no Reino
do Congo (século XVII) (Dissertação de
ser gesto eminentemente formal, Mestrado, Universidade de São Paulo,
com vistas a estabelecer relações de 2008), pp. 39-40.

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autonomia se intensificou a partir com base em experiências de vida
de então. Porém, no Dongo e no catequética de alguns padres. Perante
Dembo, o catolicismo, precedido a escassez documental, ela consegue
pelas armas, dobrou sobas e dem- tirar leite de pedra para perceber as
bos e foi instrumento de domínio vivências missionárias do filho da
político português, ao passo que em terra Dionísio Dias Barreto, do mes-
Matamba, vimos, o poder de suas tiço Calisto Zelotes dos Reis Magos,
elites prescindiu do catolicismo, parte do clero local, ou do jesuíta
salvo as tentativas nesse sentido de Pedro Tavares, estrangeiro queimador
dona Ana de Sousa, a antiga Jinga, de “ídolo.” É um ótimo exemplo de
nos derradeiros anos de sua vida. história social do clero católico entre
Nessas distintas frentes, a autora dois sistemas religiosos na África
analisa a atuação do clero euro- Central Atlântica seiscentista. E por
peu, especialmente os capuchi- meio destes fragmentos de trajetó-
nhos. Há na abordagem, no entanto, rias a autora interpreta as estruturas
uma ausência do missionarismo religiosas ambundas, as resistências
jesuíta, também ausente na obra de religiosas centro-africanas, as expec-
Heywood. Os jesuítas são apenas tativas do clero etc. No fim das con-
lembrados sob a ótica dos capuchi- tas, a exemplo da visitação pastoral
nhos, que sobre eles criaram ima- do padre jesuíta Pedro Tavares, o
gens depreciativas. Os segundos tempo passava e tudo voltava a ser
seriam mais catequistas, os primei- como antes, porque, em 1762, o
ros, mercadores. Os representantes “padre Manuel Ribeiro, ao percorrer
da Propaganda Fide seriam media- os mesmos lugares, encontrou situa-
dores entre mundos político-religio- ção bastante semelhante” (p. 261).
sos distintos, diplomatas, espécies O batismo, a propósito, também
de go-betweens.9 Antes da chegada continuava a ser significado a partir
dos capuchinhos, todavia, foi o de diferentes perspectivas que não
clero nativo (filhos das elites locais segundo a ortodoxia católica.
ou mestiços) que exerceu papel fun- Além do Visível revela os elos entre
damental na vida político-religiosa, o mundo dos vivos e o dos mortos para
mediando conflitos, servindo como a estruturação de sociedades centro-
embaixadores de parte à parte, -africanas, apontando os movimentos
como conselheiros de poderosos religiosos que tornaram o cristianismo
africanos etc. multifacetado, quer fosse um cristia-
A autora estuda os dois sistemas nismo à frente das armas, quer fosse
religiosos (centro-africano e europeu) um que as antecedia, inclusive pelos
ponto de vista africanos. Transladan-
do-se dos valores religiosos ambun-
9 Cf. o conceito em Alida Metcalf, Go-be- dos e jagas, e destes ao cristianismo,
tweens and the Colonization of Brazil,
1500-1600, Texas: The University of Texas a Jinga tanto de Linda Heywood
Press, 2005. como a de Marina de Mello e Souza

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é o maior exemplo de que fé, poder e que, tal como a política, a economia
comércio de cativos centro-africanos não tinha uma esfera autônoma, não
moldaram as histórias da África, visí- se explicava por si mesma, na África
vel e invisivelmente conectadas com Central Atlântica ou alhures, na época
o mundo atlântico por duas grandes moderna.11 Se o tráfico de cativos era
historiadoras. Ambas, portanto, dão o pano de fundo das relações de poder
seguimento a uma linha de estudos na África Central, qual o peso da reli-
que cada vez mais se consolida: a his- gião para o entendimento do tráfico
tória do contato das religiões africanas na perspectiva dos povos centro-afri-
com o cristianismo em África. canos? As autoras não se dirigem a
Igualmente, o comércio atlântico este tema crucial
e interno de cativos foi o contexto Em ambos os livros, há outras
da maior parte dos conflitos e con- lacunas: a missionação jesuíta; os
vergências entre africanos e euro- motivos das desavenças políticas
peus na região, assunto amplamente entre centro-africanos e suas próprias
estudado por diversos estudiosos, disputas em torno do controle do trá-
inclusive nas duas obras aqui resenha- fico interno de cativos; a relação das
das. Elas salientam que, no mais das chamadas guerras angolanas com as
vezes, o controle sobre rotas e áreas reorientações geopolíticas no Atlân-
de “produção” de cativos na África tico Sul, com a chamada viragem
Central, quer por parte dos europeus, atlântica portuguesa na passagem da
quer por parte dos africanos, foi o monarquia de Avis à dos Bragança,
principal motivo dos embates e alian- permeadas pela União Ibérica; e o
ças. Ainda que essas historiadoras não diálogo com o revisionismo sobre a
tragam novidades no que diz respeito natureza do Estado Moderno (ambas
a estes assuntos, nem por isso eles dei- as autoras ainda estão muito presas
xaram de ser contemplados na justa à ideia do Estado leviatã hobbesiano
medida. O que não há, no entanto, é na abordagem do poder português na
uma análise sobre como as estruturas África em pauta).
políticas e religiosas centro-africanas Em suma, se as obras primam
também moldaram a escravidão e o pela abordagem da política interna
comércio de cativos,10 tendo em vista centro-africana, há silêncios sobre

10 A exemplo do que faz Harris Memel-Fôte, «L’esclavage dans les sociétés lignagères
“Culture et nature dans les représentations de l’Afrique noire. Exemple de la Côte
africaines de l’esclavage et de la traite d’Ivoire précoloniale, 1700-1920» (Tese
négrière. Cas des sociétés lignagéres“, de doutorado, École des Hautes Etudes en
in Isabel de Castro Henriques e Louis Sciences Sociales, 1988).
Sala-Molins (orgs.), Déraison, esclavage 11 Joseph Miller, Way of Death: Merchant
et droite. Les fondaments idéologiques Capitalism and the Angolan Slave Trade,
e juridiques de la traite négreère et de 1730-1830, Madison: The University of
l’esclavage. Col. Mémoire des peuples. Wisconsin Press, 1988; e Karl Polanyi, A
La route de l’esclavage (Bruxelas: Édi- grande transformação: as origens de nossa
tions Unesco, 2002), pp. 195-202; idem, época, 4a ed., Rio de Janeiro: Campus, 2000.

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a geopolítica do Atlântico Sul. Pelo católica no Congo e, principalmente,
menos se poderia sugerir algo sobre dos modos pelos quais sociedades
como essas dinâmicas se interliga- centro-africanos leram a nova reli-
vam. Seria oportuno analisar como gião. Talvez não se concorde integral-
a conturbada conjuntura política dos mente com a hipótese porque há um
séculos XVI e XVII na região foi esquematismo e uma linearidade na
importante tanto para a África Central ideia de que, na passagem do século
e os centro-africanos, quanto para a XVI para o XVII, a evangelização
formação do mundo atlântico.12 Fal- deu lugar às armas como principal
tou aqui um pouco de connected his- estratégia de conquista portuguesa.
tories. Há, por fim, uma ausência que Porém, a proposta é instigante.
não é exclusiva desses dois títulos. Por sua vez, Linda Heywood
Historiadores que lidam com a África optou pelos pormenores da história
Central Atlântica e África Ocidental de vida de Jinga como fio condutor
quase não dialogam entre si, embora de uma análise que agrega religião,
frequentemente tratem de temáticas política, gênero e comércio de cati-
afins. vos na África Central. Estes aspec-
Estou ciente, porém, de que tos são contemplados em minúcia no
as referidas lacunas se devem às que talvez seja a mais completa bio-
escolhas das autoras de olhar com grafia sobre Jinga até agora escrita,
lupa para personagens e sociedades e engajada a ponto de a autora, às
centro-africanas. A obra de Souza vezes, tomar partido pela persona-
fornece uma visão de síntese compa- gem que estudou, uma vez Jinga bus-
rativa, tendo o reino do Congo qui- cava “recuperar o reino que lhe fora
nhentista como vetor do que sucedeu injustamente tirado”, mas ela “ficaria
aos centro-africanos no Dongo e em orgulhosa dos membros da procissão
Matamba seiscentistas – a análise fúnebre que fizeram a curta cami-
secundariza a região do Dembo. nhada, carregando seu corpo numa
Conclui que a pluralidade do cristia- cama [...]. Jinga não esperaria nada
nismo na região deriva das experiên- menos do que isso” (p. 138, 241, 243).
cias malsucedidas da própria Igreja Exageros e lacunas à parte, o
mérito desses livros é incontestável.
12 John K. Thornton, Africa and the Africans Eles oferecem um quadro amplo da
in the Making of the Atlantic World, 1400-
1800, Cambridge: Cambridge University
história das sociedades centro-afri-
Press, 1992; e sobretudo Luís Felipe de canas dos séculos XVI e XVII. São
Alencastro, O trato dos viventes: forma- contribuições de peso para a historio-
ção do Brasil no Atlântico Sul, São Paulo: grafia da África, juntos ou separados.
Companhia das Letras, 2000.

Roberto Guedes
Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro
robertoguedesferreira@gmail.com

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