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NJINGA:

RAINHAS AFRICANAS NA NETFLIX


É CONHECIMENTO HISTÓRICO?

Rainhas africanas: Njinga. Documentário histórico, Netflix. Produção execu-


tiva e narração: Jada Pinkett Smith. Direção: Tina Gharavi, Etosheia Hilton,
Susannah Ward e Victoria Adeola Thomas. Adesuwa Oni no papel de Njinga.
2023. 4 episódios, 3h 4min.

É uma grande conquista Njinga fundada por Jada e seu esposo Will
Mbandi, soberana dos reinos do Smith, e a Nutopia, produtora sediada
Ndongo e Matamba no século XVII, em Londres. Categorizada como docu-
ter sua história representada enquanto -drama, a produção intercala a drama-
seriado de TV numa plataforma tização dos episódios históricos com
mundial como a Netflix. Com depoimentos de pesquisadore/as e auto-
produção executiva e narração de ridades. Um ponto positivo é a narra-
Jada Pinkett Smith, a série Rainhas tiva/interpretação apresentada por vozes
Africanas chega para contar histórias negras, na sua maioria historiadoras.
de mulheres poderosas no continente A Rainha Diambi Kabatusuila é quem
africano, ainda pouco conhecidas do abre os depoimentos, conferindo legiti-
grande público. Vem da necessidade midade a uma história que será contada
de uma mulher preta norte-americana a partir da perspectiva da mulher afri-
ensinar referências de poder feminino cana.1 Além dela, falam historiadoras
preto na história da humanidade. Sem 1 A forma como ela foi creditada, “Woman
dúvida, uma proposta que supre uma King of the Bakwa Luntu People”, aponta
para uma tendência construída pelo cinema
demanda por narrativas não brancas no norte-americano para mulheres governantes,
cinema mundial, um sonho sonhado que se choca com as epistemologias afri-
canas sobre gênero. Certamente o povo
por muitos, como eu. bakwa luntu tem um título próprio para
A produção foi uma parceria da esta autoridade feminina de forma que não
precisaria usar o substantivo masculino
Westbrook, agência norte-americana “king” para definir seu cargo.

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e historiadores, todos negros e negras, consultadas pela produção.3 Eles nos
na sua maioria acadêmicos/as, nem leem, utilizam nossas ideias, porém
todas especializadas em história ango- se recusam a nos citar. Isso é bem
lana do período. recorrente na produção acadêmica
Apenas uma única angolana de pesquisadores norte-americanos,
aparece na série: Rosa Cruz e Silva, lamentavelmente. De forma que a série
ex-ministra da cultura de Angola, passa a ideia de que só universidades
também é a única das entrevistadas dos Estados Unidos e Europa produzem
que tem publicações sobre Njinga.2 pesquisa de qualidade. Até mesmo
A maioria são pesquisadores de univer- Rosa, a única angolana consultada,
sidades norte-americanas e europeias aparece proporcionalmente bem menos
especialistas em abolicionismo nos que os demais. Os créditos informam
Estados Unidos no século XIX, lite- os consultores: Cécile Fromont (Yale
ratura africana, reino do Congo, mas University), John Thornton (Boston
sem conhecimento profundo das fontes University) e Linda Heywood (Boston
sobre Angola no século XVII. University) apenas nos agradecimentos,
É importante refletir sobre as ausência que chama atenção pois Linda
relações Norte-Sul na produção Heywood é a grande especialista de
audiovisual, já que se trata de uma Njinga nos Estados Unidos e a narra-
representação norte-americana da tiva apresentada na série segue de perto
história africana e assim prioriza suas interpretações.4
intelectuais do Norte Global em Os depoimentos dos pesquisadores
detrimento do Sul. As pesquisas conferem legitimidade à obra audiovi-
produzidas sobre Njinga no Brasil sual, transmitem a mensagem de que
são referências importantes e foram a produção é baseada em pesquisa
histórica. Faz-se necessário analisar
2 Catálogo do Seminário Internacional Njinga
Mbande e Aimé Césaire: independência
e universalidade e da Exposição come- 3 Mariana Bracks Fonseca, “Queen Njinga of
morativa dos 350 anos do aniversário de Ndongo and Matamba”, Oxford Research
morte da soberana, Luanda: Ministério da Encyclopedia of African History, 2022; Selma
Cultura de Angola, 2013. Rosa Cruz e Silva Pantoja, “Njinga a Mbande: Power and War
tem importância central na organização in 17th Century Angola”, Oxford Research
e divulgação da memória de Njinga em Encyclopedia of African History, 2023.
Angola, atuando desde a década de 1990 na 4 Linda M. Heywood, Njinga of Angola:
sistematização das fontes e na construção African’s Warrior Queen, Harvard: Harvard
de estátuas públicas que a homenageiam. University Press, 2017.

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a relação entre pesquisa e produção títulos, comandou diversos povos,
audiovisual. A História, enquanto disci- atuou para a reconfiguração das iden-
plina, tem regras a cumprir, pretende-se tidades étnicas em Angola, além de
portadora de uma versão do passado compor com diferentes aliados: o reino
comprovada por evidências. Já o cinema do Congo, os holandeses, os capu-
não tem compromisso com a verdade. chinhos italianos e diversos chefes
Pode-se pintar a personagem com as centro-africanos. Além de formidável
cores que agradem a seus criadores, guerreira, como a série destaca, Njinga
sem necessidade de comprovação em foi uma hábil negociadora e diplomata,
fontes históricas, e assim foi criada uma capaz de aglutinar vários sobas e gover-
representação de Njinga que, em muitos nantes em torno de suas pautas.
aspectos, não corresponde ao verificado Pelos muitos papéis que repre-
pelas pesquisas históricas. sentou, existem muitas fontes e histó-
A história de Njinga é “enro- rias produzidas sobre ela, cada qual
lada”, como seu nome profetiza.5 com uma perspectiva diferente, por
Acredito que todos os sujeitos histó- vezes conflitantes. Diversos pontos
ricos podem ser analisados sob dife- de sua trajetória são polêmicos para a
rentes prismas e perspectivas, várias historiografia, o que significa dizer que
“verdades” possíveis, mas no caso de não há um consenso entre os historia-
Njinga pesam suas múltiplas iden- dores, que têm interpretações diver-
tidades: Engambele, embaixadora gentes sobre a relação de Njinga com
D. Ana de Souza, afilhada do gover- os chamados jagas/imbangalas; sobre
nador; Ngola (rei) do Ndongo; Cambolo quem eram estes; por que ela aceitou
de Matamba; Tembanza jaga; aben- o batismo católico e sua relação com
çoada do Papa etc. Ao longo de seus a Igreja; sobre a legitimidade do poder
mais de 80 anos, Njinga acumulou feminino na África Central; e, final-
5 Segundo as tradições orais colhidas por mente, sua participação no comércio
Cavazzi, ela nasceu com o cordão umbilical transatlântico de escravizados.
enrolado no pescoço, o que foi interpretado
pelos adivinhos que acompanhavam o parto Os depoimentos dos pesquisadores
como prenúncio de uma vida conturbada, estão colocados na série para corro-
significado de seu nome, Njinga. Giovanni
Cavazzi da Montecuccolo, Manuscrito borar a narrativa ali apresentada, sem
Araldi: “Missione evangélica ao regno di
Congo”, traduzido do italiano para o inglês
abrir espaço para as divergências que
por John Thornton . existem entre as tradições e as fontes

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históricas sobre sua longa vida. Não há ocupar o reino de Matamba e a assumir
discussão historiográfica, as falas dos a identidade jaga-imbangala. Por toda
pesquisadores são utilizadas apenas vida, Njinga vai justificar suas guerras
como recurso narrativo no desenrolar por este golpe. Entre os anos de 1626 e
da história. 1630, Njinga desafiou os portugueses
A temporada dedicada a Njinga de inúmeras formas, é o momento em
tem quatro episódios. O primeiro que mais se percebe sua inteligência
aspecto a se observar é a má distri- militar e perspicácia em iludir e enganar
buição dos temas entre os episódios. os adversários que a perseguiam nas
O primeiro começa em 1617, com ilhas do rio Kwanza. Ela usou diversas
Njinga já adulta, em treino militar, estratégias para permanecer livre.
como a filha favorita do Ngola, gover- A partir de seu conhecimento da
nante do Ndongo, morto em uma geografia local, fez ataques noturnos,
batalha contra os portugueses naquele empreendeu fugas mirabolantes como
mesmo ano. O segundo episódio vai a de Quina Kinene, quando desceu
da posse de seu irmão, Ngola Mbandi, um desfiladeiro gigantesco amarrada
até seu batismo em 1622. Njinga em cipós, além do uso constante da
torna-se governante no terceiro diplomacia, ao enviar embaixadores e
episódio, ou seja, os mais de quarenta espiões que transmitiam sua adesão ao
anos de seu governo são resumidos catolicismo. Nos poucos minutos que
nos dois últimos episódios. tratam desse período, a série mostra
Os anos de maior confronto uma derrota de Njinga que não encontra
(1626-1630) foram resumidos a poucos respaldo nas fontes históricas.
minutos. A série anulou totalmente o A série apresenta pouco da geniali-
fato mais impactante de sua trajetória: dade e astúcia da soberana. Preferiram
o golpe político planejado pelo gover- construir uma personagem sensível, que
nador português Fernão de Sousa, em chora diante do tráfico transatlântico.
1626, quando Njinga foi declarada Ao invés de discutirem os contextos
soberana ilegítima do reino do Ndongo, políticos, econômicos e sociais de sua
sendo entronizado como Ngola um época, optaram por carregar no senti-
soba de outra linhagem, Ari a Kiluanje. mentalismo. Por exemplo, quando
Foi este golpe que levou Njinga a mostram um Ngola Mbandi deprimido,

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sem apresentar as razões para tal. Ora, ela aparece aconselhada, em total
ele estava isolado politicamente após inocência, pela esposa do governador
ser derrotado, exilado e sem boa parte João Correia de Sousa, aquela que se
de seus funcionários, portanto, não tornou sua madrinha e lhe explicou
se trata de uma tristeza por fraqueza sobre a religião europeia. Essa repre-
emocional; sua morte foi conse- sentação choca-se com a astúcia e
quência do expansionismo predatório perspicácia da rainha na famosa cena
do governador português Luiz Mendes descrita por diversas fontes, dentre as
de Vasconcelos. As cartas do capitão- quais destaco o capuchinho Giovanni
-general Fernão de Sousa confirmam: Cavazzi (1621-1678), que não teste-
“El Rey d’Angola é falecido de uns munhou o episódio, mas o registrou
pós de peçonha que tomou de paixão cerca de quarenta anos mais tarde a
por lhe não cumprir o governador partir do que ouviu durante suas visitas
João Correa de Sous a promessa que à corte da rainha na década de 1660.
lhe tinha feito de mudar o presídio da O religioso escreveu que, antes de
Amabaca para a Luinha”.6 partir, Ngola Mbandi pediu à irmã
Apresento mais alguns pontos que
que aceitasse ir até Luanda como
a série trabalhou de forma equivocada medianeira da paz entre ele e os
historicamente. Portugueses, com autoridade de
concluir o negócio da melhor maneira
que lhe fosse sugerida pela sua
prudência. Acrescentou que, se os
Relação com o catolicismo portugueses mostrassem o desejo de a
atrair ao Cristianismo e de a baptizar,
não se recusasse, preferindo os inte-
A cena de batismo de Njinga apre- resses reais ao particular génio dela;
senta uma protagonista confusa, inde- tanto mais – dizia aquele descrente
cisa sobre o que é o catolicismo. – que as aparências exteriores eram
uma coisa e os sentimentos interiores
Na posição de embaixadora do Ndongo, outra coisa.7

6 Carta de Fernão de Sousa ao governo” apud É importante frisar que Njinga não
Beatrix Heintze, Fontes para a história de
Angola do século XVII, v. II: Cartas e docu- tinha inocência alguma em relação ao
mentos oficiais da colectánea documental
catolicismo, que já estava presente no
de Fernão de Sousa (1624-1635), Stuttgart:
Franz Steiner Verlag Wiesbaden, 1988,
p. 85, documento 36. 7 Cavazzi, Descrição histórica, v. II, p. 66.

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vizinho reino do Congo havia mais de vância que a madrinha portuguesa
cento e trinta anos. O batismo do rei ganha na narrativa da Netflix, sendo
Nzinga a Kuwu, em 1491, impactara aquela que orienta Njinga ao catolicismo,
profundamente as relações de poder na que a convence (como se ela hesitasse),
África Central. Há vários documentos sendo que nem o nome dela é ponto
que evidenciam as relações entre as consensual na historiografia. Por que
cortes do Congo e de Ndongo, ao a série resolveu criar uma personagem
longo do século XVI, inclusive a branca, sem relevância histórica alguma,
interferência do Mani Congo para ao invés de mostrar a sagacidade de
a libertação do padre Francisco de Njinga diante do catolicismo?
Gouveia, que viveu como prisioneiro Há diversas interpretações sobre o
do Ngola por muitos anos.8 significado do batismo de Njinga. Roy
Nas cenas que se desenrolam Glasgow entende que ela ficou deslum-
em Luanda, Njinga aparece acuada, brada pela cultura europeia, com seus
ignorada pelos homens portugueses, luxuosos palácios, e por isso aceitou
enquanto as fontes destacam o impacto o catolicismo.11 Joseph Miller enxerga
que sua presença provocou, sendo ela como uma deslealdade em relação aos
recebida com todas as honras, presentes cultos dos ancestrais em benefício de
e salvas de tiros.9 ritos estrangeiros.12 Marina de Mello e
Segundo Cadornega, foram padri- Souza mostra as profundas imbricações
nhos de batismo o governador João entre comércio, poder e catolicismo na
Correia de Sousa e D. Jerónima Mendes, África Central naquele contexto, em
esposa do capitão-mor de cavalos; que “a pregação católica era compo-
Luís Gomes Machado, já que antes de nente central do império português”.13
D. António de Lencastre (1772-1779),
Nacional Casa da Moeda, 1972 [1680],
nenhum governador levara a esposa v. 1, p. 115.
para Angola.10 Chama atenção a rele- 11 Roy Glasgow, Nzinga: resistência afri-
cana à investida do colonialismo português
8 “Carta do padre Fernando de Gouveia em Angola, 1582-1663, São Paulo:
para o padre Diego Mirão, 1 nov. 1564”, Perspectiva, 1982.
apud Luiz Felner, Angola no século XVI- 12 Joseph Miller, “Nzinga of Matamba in a
documentos, Lisboa: Alfa, 1989, p. 36. new perspective”, The Journal of African
9 Cavazzi, Descrição histórica, v. II, p. 66. History, v. 6, n.2 (1975), pp. 201-216.
10 António de Oliveira de Cadornega, História 13 Marina de Mello e Souza, “Catolicismo e
geral das guerras angolanas, Lisboa: comércio na região do Congo e de Angola,
Agência Geral do Ultramar; Imprensa séculos XVI e XVII” in João Fragoso et

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No meu entendimento, não se trata de “sob o pretexto inconsistente de que
fé, como pregou Cavazzi: “sentindo não queria ser baptizado por um padre
ela que Nosso Senhor batia à porta do que nascera duma sua escrava, quali-
seu coração mediante a Sua graça”. ficativo usado para indicar os súbdi-
Tampouco adotar o nome Anna de tos”.15 Dionísio de Faria não aparece
Souza pode ser visto como acultu- na série, o que seria bem interessante
ração, mas como estratégia de nego- para mostrar como o clero na África
ciação. A paz com Portugal passava Central foi, em boa medida, constituído
pela aceitação do catolicismo. Ser por africanos. Um padre negro teria
apadrinhada pelo governador garan- sido uma boa oportunidade de eviden-
tiria estabilidade política ao Ndongo. ciar a inserção da elite centro-africana
A grande perspicácia de Njinga levou nas relações políticas e diplomáticas
à assinatura de um acordo de paz com o Vaticano.16 Ao contrário, na
altamente favorável ao Ndongo, que cena em que o batismo é oferecido a
manteve sua soberania preservada Ngola Mbandi, a personagem Njinga
e reconhecida mesmo com o Ngola condena abruptamente o catolicismo,
exilado e a capital Cabaça incendiada. chegando a ameaçar o irmão ao dizer
É importante frisar que a paz interes- que o batismo representaria traição aos
sava aos portugueses tanto quanto ao ancestrais. Esta passagem é bem proble-
Ndongo, sobretudo pela presença do mática para a compreensão das relações
jaga Kasanje, um “inimigo comum” entre catolicismo, poder e comércio
forjado pelos próprios portugueses.14 na África Central. Ao longo de sua
Para batizar Ngola Mbandi, o irmão vida, Njinga negociara com sacer-
de Njinga, conforme parte do acordo, dotes cristãos, que recebiam o mesmo
foi enviado o padre Dionísio de Faria, nome dos líderes espirituais locais,
natural do reino de Matamba, acompa- nganga. Ela soube usar os símbolos
nhado por um capitão representando o e autoridades cristãs sem romper com
governador. Ngola Mbandi se zangou, sua cultura original. Esse traço de sua

alii (orgs), Nas rotas do império (Vitória: 15 Cavazzi, Descrição histórica. v. II, p. 69.
EDUFES; Lisboa: IICT, 2006), pp. 279-298. 16 Marina de Mello e Souza, Além do visível:
14 Mariana Bracks Fonseca, Nzinga Mbandi e poder, catolicismo e comércio no Congo e
as guerras de resistência em Angola, século em Angola (Séculos XVI e XVII), São Paulo:
XVII, Belo Horizonte: Mazza edições, 2015. Edusp, 2018.

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“plasticidade” / “xenofilia” é caracte- preceitos da igreja e passou a proibir
rístico da cosmopercepção africana, os ritos ancestrais, inclusive punia os
em que elementos da cultura estran- feiticeiros com degredo como escravos
geira são adicionados, somados, sem para o Brasil.19 Aparece de forma super-
que gere exclusão dos elementos tradi- ficial o padre negro Calisto Zelotes dos
cionais.17 Cavazzi afirma que, em seus Reis Magos, natural de São Salvador do
últimos anos, Njinga rezava na cruz e Congo, presente no batismo de Njinga
logo depois honrava os ossos de seus em 1622, e que em 1648 participou
ancestrais, evidenciando a coexistência da missão de Uando como intérprete,
de ambos sistemas espirituais na sua tendo sido aprisionado pelos jagas
religiosidade. até Njinga resgatá-lo e transformá-lo
Ainda sobre a relação de Njinga em “mestre” em Matamba. Zelotes é
com o catolicismo, chama atenção a um bom exemplo de clero africano,
anulação dos capuchinhos italianos, contudo estas circunstâncias não são
como Antonio Gaeta, que a reconduziu evidenciadas pela série.
ao catolicismo em 1656, e Cavazzi, Njinga também se comunicou
seu confessor e quem lhe deu a extre- com o Papa Alexandre VII, a quem
ma-unção, autor de dados importan- escreveu diversas cartas e de quem
tíssimos sobre ela.18 No final de sua recebeu missiva abençoando-a. Para ler
vida, Njinga assumiu-se publicamente publicamente a carta do Papa, Njinga
como cristã, carregou ela mesma as organizou festividades públicas que
pedras para a construção da igreja Santa duraram sete dias. Também enviou
Maria de Matamba, onde frequentava missões diplomáticas a Roma, uma
missas, tornou obrigatório o batismo em abril de 1658 e outra em agosto
em seu reino, casou-se segundo os de 1662, o que evidencia seu desejo
de se aproximar do líder máximo da
17 Cheikh Anta Diop, A unidade cultural da
Igreja como forma de obter proteção
África Negra. Esferas do Patriarcado e
do Matriarcado na Antiguidade Clássica, e prestígio no mundo cristão. Toda
Luanda: Pedago, 2016.
esta relação complexa foi ignorada
18 Antonio da Napoli Gaeta, La Maravigliosa
Conversione alla Santa Fe de di Cristo della na produção, que por vezes apresenta
Regina Singa e del suo Regno di Matamba
nell’Africa Merdionale, Nápoles: Francesco o catolicismo como um inimigo de
Maria Gioia da Napoli, 1668; e Cavazzi,
Descrição histórica. 19 Cavazzi, Descrição histórica, v. 2, p. 84.

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Njinga, não como uma dentre tantas “jaga” foi uma criação das fontes portu-
possibilidades de aumentar seu poder. guesas, atribuído a diversos grupos
que eles consideravam incivilizados.21
Outro ponto problemático é a relação
Relação entre Njinga e os jagas de Njinga com os jagas. Glasgow
vinculou a dinastia Ngola a Kiluanje
Quem eram os jagas em Angola no aos jagas, assim Njinga já era conec-
século XVII? Esta ainda é uma questão tada a esta dupla identidade e fora
polêmica na historiografia. Seriam os educada nas artes militares, preparada
mesmos que invadiram o Congo no desde pequena para assumir a lide-
século anterior? Seriam os imban- rança tanto dos jagas como dos mbun-
galas o grupo que se deslocou da dos.22 Heintze, em consonância com as
Lunda sob a liderança de Kinguri? fontes de Fernão de Sousa, afirmou que
Há intensos debates e diferentes inter- somente a partir da fuga de Kindonga
pretações sobre a identidade destes Njinga conseguiu refúgio junto ao Jaga
guerreiros.20 Miller afirma que o termo Caza Cangola e ganhou o mais impor-
20 Jan Vansina, “The Foundation of the
tante título feminino do kilombo, o de
Kingdom of Kasanje”, The Journal tembanza, que quer dizer senhora ou
of African History, v. 4, n. 3 (1963),
pp. 355-374; “More on the Invasions of
Kongo and Angola by the Jaga and the mausolée por les Jaga”, Cahiers d’Etudes
Lunda”, The Journal of African History, Africaines, v. 20, n. 79 (1980), pp. 387-389;
v. 7, n. 3 (1966), pp. 421-429; Henrique Anne Hilton, “The Jaga Reconsidered”,
Dias de Carvalho, O Jagado de Cassange, The Journal of Africa History, v. 22, n. 2
Lisboa: Typ. de Cristovão Augusto (1981), pp. 191-202; Mariana Candido,
Rodrigues,1898 ; David Birmingham, “Jagas e sobas no ‘Reino de Benguela’:
“The Date and Significance of the Imbangala vassalagem e criação de novas categorias
Invasion of Angola”, The Journal of African políticas e sociais no contexto da expansão
History, v. 6, n. 2 (1965), pp. 143-152; portuguesa na África durante os séculos
Beatrix Heintze, Angola nos séculos XVI XVI e XVII” in Alexandre V. Ribeiro et alii
e XVII. Estudos sobre Fontes, Métodos e (orgs.), África: histórias conectadas (Niterói:
História, Luanda: Kilombelombe, 2007; PPGH-UFF, 2014), pp. 41-77; José Rivair
Joseph Miller, “The Imbangala and the Macedo, “Jagas, canibalismo e ‘Guerra
Chronology of Early Central African Preta’: os mbangalas, entre o mito europeu
History”, The Journal of African History, e as realidades sociais da África Central
v. 13, n. 4 (1972), pp. 594-574; “Requiem do século XVII, Revista de História, v. 32,
for the Jaga”, Cahiers d’Etudes Africaines, v. n. 1 (2013), pp. 53-78.
13, n. 49 (1973), pp.121-149; John Thornton, 21 Joseph Miller, Poder político e parentesco: os
“A Ressurection for the Jaga”, Cahiers antigos estados mbundu em Angola, Luanda:
d’Études Africaines, v. 18, n. 69 (1978), Arquivo Histórico Nacional, 1995, p. 189.
pp. 223-227; François Bontinck, “Un 22 Glasgow, Nzinga, p. 41.

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dona da casa. Njinga assumiu o papel que nessa construção, os portugueses
de sacerdotisa do unguento Magia a aparecem como benevolentes, neces-
Samba, capaz de tornar os guerreiros sários, quando na verdade foram eles
invencíveis e passou a ser rigorosa no que armaram Cassanje para atacar o
cumprimento das leis ou kijila.23 Ndongo. O governador Luís Mendes
Dois chefes jagas aparecem na de Vasconcelos forneceu armas a este
série da Netflix: Caza e Cassanje. líder militar para invadir Cabaça,
O primeiro era guardião do herdeiro em 1617, mas não contavam com sua
do Ndongo, que foi seduzido para que deslealdade. Após a vitória sobre o
Njinga matasse seu sobrinho. A relação Ngola, Cassanje se recusou a desocupar
é apresentada como um flerte amoroso, as terras e passou a bloquear as rotas
sem explorar as estratégias políticas comerciais, cobrando altos preços pelos
envolvidas, e termina rapidamente, escravizados que trafegavam por elas,
quando na realidade fez toda a dife- tornando o comércio mais inseguro e
rença na trajetória de Njinga. Como sob seu controle.
tembanza, Njinga passou a comandar A união entre Njinga e Cassanje
milhares de guerreiros destemidos e é representada com uma linda cena
bem treinados e só assim pode fazer em que sexo e rito se entrelaçam. Mas
frente à intensa perseguição dos portu- essa relação não pode ser entendida
gueses. Foram os jagas-imbangalas como casamento de forma literal; como
que lhe garantiram segurança militar explicou Miller, é muito mais simbólico
para se deslocar por vastos territórios. no sentido de união entre duas forças
Já Cassanje é apresentado de políticas.24 A cena em que Cassanje
forma ainda mais problemática. manda entregar a lunga é consonante as
Na cena das negociações de paz, em fontes históricas, contudo a série mostra
1622, é dito: “Os portugueses prome- pouco essa insígnia de poder, a mais
teram ajudar a proteger o povo dela importante entre os jagas, que simboliza
contra o Imbangala Cassanje”. Reparem o comando militar máximo.25 Apesar da
união com Casanje ter durado pouco,
23 Heintze, Angola nos séculos XVI e XVII,
p. 344. Kijila em kimbundu (quizila ou kizila 24 Joseph Miller, Poder político e parentesco,
em kikongo) significa proibição, interdição, p. 132.
legislação, o conjunto de fundamentos que 25 A lunga é um instrumento de ferro com
regiam o kilombo jaga. duas campânulas, percutido por uma vareta.

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Njinga assumiu a identidade jaga e definir. Tanto que uma das exigências
seguiu as leis da kijila – assim como de Ngola Mbandi para a paz de 1622
todos seus seguidores – até retornar ao era a devolução de seus kijicu injus-
catolicismo em 1656. tamente aprisionados nas guerras de
Mendes de Vasconcelos, pois deles
dependiam a prosperidade do reino.
Njinga e o tráfico A série apresenta a sociedade
transatlântico de escravos mbundu como se desconhecessem
o comércio de pessoas, o que é uma
Este, sem dúvida, é o ponto mais inverdade. Seria mais honesto discutir
polêmico da série, que se inicia com como a escravidão transatlântica se
a narração de Jada Pinket Smith: diferenciava das formas de trabalho
“Somos um povo que nasceu fugindo compulsório existentes na África e
da extinção”. O eixo central da quais foram as consequências do tráfico
narrativa é a luta de Njinga contra o para as dinâmicas sociais e econô-
comércio de escravos. Em várias cenas, micas. Aí se percebe a ideologia na
a personagem se revolta com o tráfico construção da narrativa, que falsifica
negreiro como se fosse uma abolicio- fatos históricos para sustentar a ideia de
nista. Seu heroísmo consiste na luta que Njinga lutou contra a escravidão.
contra a escravidão, o que é completa- Há documentos que comprovam a
mente anacrônico para o século XVII. venda de escravizados por ela para
Em Angola, nesse período, as rela- a Holanda na década de 1640.26
ções comerciais internacionais eram Foi desta forma que Njinga obteve
balizadas pela medida padrão “peça” armas de fogo. Ao invés de mostrarem
– um homem adulto em plenas condi- Njinga negando-se ao comércio de
ções físicas. Sabe-se que a sociedade gente, poderiam ter problematizado
mbundu era dividida entre povo da seu envolvimento nele: por que os
murinda (livres) e kijicu (não-livres), chefes africanos foram obrigados a
contudo, estes últimos não podem ser se envolver no comércio negreiro?
confundidos com a noção de escravo
26 National Archief (NA), Haia, West-Indische
que o comércio transatlântico vai Compagnie Archiven, Extract uyt het
register der resoultien gehouden in Angola
(MS 5759), Ouman e Lems à reinha Ana
No Brasil é mais conhecido pelo nome
Njinga, 10 jun. 1647.
iorubá agogô.

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Quais as possibilidades de resistência tão polêmica que é o envolvimento de
que tinham? Quem foi vendido por autoridades africanas no comércio
Njinga? Certamente eram seus prisio- de pessoas. É de se notar também a
neiros de guerra, seus inimigos e não completa ausência dos “brasílicos” e do
seu próprio povo. Reino do Congo, que seria oportunidade
Ainda que não se possa falar que a de mostrar Njinga como hábil articula-
luta de Njinga era contra a escravidão dora de alianças externas.
em si, é preciso entender que suas ações Certamente, a série é uma bela
militares visavam enfraquecer Portugal produção, que mostra a força e poder
e minar seus interesses econômicos na de uma soberana africana, com grandes
região. Njinga agiu estrategicamente méritos. Há liberdade artística em
para desconstruir as redes do tráfico construir a imagem da Njinga contra a
luso, seus exércitos atacavam as forta- escravidão, uma vez que não há regras,
lezas portuguesas, atacavam as feiras bancas de avaliação, rigor científico
onde se vendiam cativos, assaltavam que exija das produtoras e roteiristas
caravanas que os levavam ao litoral, coerência com as fontes. O propósito
interrompiam a navegação dos rios, de criar uma representação heroica
de forma que ela conseguiu de fato de uma mulher negra é legítimo,
impedir a escravização de centenas louvável, engrandecedor. Contudo há
de almas. Fernão de Sousa justificava que se refletir sobre como a indústria
o baixo número de embarques pelas audiovisual se vale da pesquisa histó-
guerras movidas por Njinga.27 rica sem o menor compromisso com
Na intenção de promover a imagem a discussão científica, tampouco com
de uma heroína antiescravista, a série os pesquisadores. Os depoimentos são
pecou por anacronismo e perdeu uma gravados, depois recortados, editados
boa oportunidade, que a linguagem e montados de acordo com os rotei-
docudrama oferece, para discutir questão ristas e suas convicções. Ainda que
historiadores sejam consultados,
27 “Carta de Fernão de Souza à Coroa, 6 set.
1625” apud Heintze, Fontes para a história inclusive do Brasil,28 o que é apre-
de Angola, v. II, p. 142, 333; “Relatório
do governador a seus filhos, 1630” apud 28 Eu, Mariana Bracks, fui entrevistada pela
Heintze, Fontes para a história de Angola, produtora Nutopia e aqui registro meu
v. I, p. 227; Cadornega, História geral das protesto contra a atitude desrespeitosa de
guerras angolanas, v. I, p. 77. utilizarem informações por mim fornecidas,

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sentado ao público é uma construção em representações cinematográficas
fictícia, que em muitos aspectos não sobre histórias passadas no continente,
encontra fundamentos nos docu- mas criadas a partir dos Estados Unidos
mentos históricos. e Europa, que não seguem um proto-
A relação entre indústria audio- colo ético, nem com os pesquisadores
visual e História da África merece especialistas, tampouco com as socie-
atenção, uma vez que cresce o interesse dades e culturas que buscam apresentar.

Mariana Bracks Fonseca


Universidade Federal de Sergipe

doi: 10.9771/aa.v0i67.55012

sem que dessem o devido crédito, nem a


mim nem aos pesquisadores brasileiros
que citei.

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