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Jinga, um destino
Posfácio ao livro “Jinga de Angola, a rainha guerreira da África”, de Linda M. Heywood, ed.
Todavia, SP, 2019, pp. 263-272.
Paulo Dias Novais, primeiro governador de Angola, ela escreve: "a penetração religiosa e os
avanços espirituais dos portugueses foram tão influentes em minar a autoridade de Kasenda
quanto as conquistas militares". Ela mostra como Ngola Kasenda e sua neta manobraram de
permeio ao cristianismo do clero português, aos missionários e às facções religiosas nativas
que se confrontavam nos reinos e comunidades angolanas. A respeito do peso das tradições
nos momentos críticos da organização social, Linda Heywood chama a atenção para os
sacrifícios humanos praticados nos enterros dos reis do Dongo. Mencionando os sacrifícios
ocorridos na morte de Ndambi a Ngola, o segundo rei do Dongo (1556-1561), ela escreve,
“governantes posteriores, inclusive Njinga, consideravam esse costume de sacrifício humano
uma parte essencial dos rituais funerários em honra aos reis de Ndongo e outros membros da
elite”.
A autora sublinha ainda as tensões entre as ordens religiosas que conduziam as
missões em Angola e a maneira pela qual Jinga se associou a capuchinhos italianos e espanhóis
para tentar neutralizar a pressão militar, política e religiosa portuguesa e jesuíta tanto em
Angola como na Europa. De fato, por iniciativa própria ou aconselhada por missionários, Jinga
enviou várias cartas à Roma para obter proteção diplomática da Cúria e dos superiores dos
capuchinhos. A dimensão das quizílias entre capuchinhos e jesuítas merece ser explicitada.
Fiéis a Portugal durante o período da União Ibérica (1580-1640) e, sobretudo, à
dinastia bragantina depois da Restauração, os jesuítas lusitanos receberam mal o proselitismo
dos capuchinhos em Angola e no Congo. Dependendo diretamente do papa através da
Secretaria da Propaganda Fide, órgão romano que a partir de 1622 busca contornar a
autoridade filipina, e depois bragantina, sobre as missões ultramarinas, os capuchinhos nem
sempre se identificavam com a política colonial portuguesa. Acresce que entre os capuchinos
havia, além de espanhóis, missionários oriundos dos territórios hispânicos na Península
italiana, Sardenha e Sicília, os quais, na prática, eram súditos do trono de Madri. Por isso, na
Restauração e durante a guerra luso-espanhola (1640-1668), missionários espanhóis ou
súditos da Espanha eram vistos com desconfiança e hostilidade em Angola e no Congo. O
antagonismo se perpetuou na historiografia portuguesa sobre o centro-oeste africano até o
final do salazarismo, com autores que consideravam os capuchinhos como agentes do
imperialismo (no sentido próprio e figurado) madrilense no século XVII.
Mas havia mais. Inseridos desde o começo da invasão portuguesa na economia
atlântica e na sociedade colonial angolana, os jesuítas possuíam, para escândalo dos
capuchinhos recém-chegados, fazendas e escravos em Angola. Por vezes também faziam
tráfico de africanos de seu Colégio de Luanda para seu Colégio da Bahia, onde os escravos
eram usados ou vendidos. A respeito do reino do Congo, onde a concorrência entre as duas
ordens missionarias era mais viva ainda do que em Angola, frei Cortona, diretor da missão
capuchinha em Matamba, escreveu à Roma em 1655 para denunciar os negócios dos jesuítas
no tráfico de escravos congolês. Este era o motivo, dizia ele, da oposição dos jesuítas às
missões dos capuchinhos na região. Na realidade, sem se oporem frontalmente ao
escravismo, os capuchinhos não se envolviam no tráfico negreiro nem possuíam ou aceitavam
escravos dos sobas (chefes locais angolanos), traficantes e colonos. Na circunstância, a disputa
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entre as duas ordens missionárias no Congo e Angola se insere na geopolítica global europeia
e ultramarina.
O itinerário da vida pecaminosa de Jinga, até sua morte com reputação de santidade,
foi inicialmente registrada em dois livros redigidos por missionários capuchinhos que a
conheceram bem. Na versão dos dois autores, mal evangelizada e batizada com o nome de
Ana de Souza pelo clero português de Luanda em 1622, Jinga retornou ao paganismo e às
tradições e costumes jagas até ser salva para Cristo em 1656, graças à persistência piedosa
dos capuchinos. Desta data em diante, até sua morte, Jinga e seus súditos de Matamba
passaram a viver com "temor de Deus e piedade cristã", como escreve no seu livro Frei
Antônio da Gaeta, que persuadiu Jinga a voltar ao cristianismo. O segundo livro é de frei
Cavazzi de Montecuccolo, que deu a extrema-unção e organizou o cortejo fúnebre da rainha
de Matamba. A obra de frei Gaeta, nascido no reino de Nápoles e portanto súdito espanhol,
sublinha todo o seu mérito, e o dos capuchinhos, na conversão final da rainha de Matamba.
O título do livro, publicado em 1668, não deixa por menos: "La Meravigliosa Conversione alla
santa Fede di Christo delle Regina Singa e del suo regno di Matamba ...».
Participante ativo das negociações entre o governador de Angola e a rainha de
Matamba sobre o tratado de paz firmado em 1656, Gaeta reproduz em seu livro as explicações
dela sobre sua apostasia. Segundo Jinga, seu abandono do cristianismo deveu-se à ausência
de missionários em Matamba e à violência dos portugueses que lhe roubaram o reino do
Dongo em 1624.
O livro de frei Cavazzi incorpora partes do livro de Gaeta e tem por titulo, Istorica
Descrizione de tre regni Congo, Matamba ed Angola (1687). A obra foi em seguida traduzida
em várias línguas, divulgando a história da conversão da rainha de Matamba para os leitores,
missionários e fiéis da Europa e do Atlântico Sul. Cavazzi ficou fascinado por Jinga e foi seu
primeiro biógrafo. Aliás, junto com John Thornton, Linda Heywood prefaciou uma tradução
recente, ornada de uma excelente cartografia, dos capítulos da Istorica descrizione referentes
à rainha de Matamba, publicada em Paris sob o título, Njinga, reine d’Angola. La relation
d’Antonio Cavazzi de Montecuccolo, (2010). Em português, há a tradução do livro Cavazzi
acrescida dos comentários do capuchinho frei Graziano Maria Saccardo da Leguzzano editada
em dois volumes em Lisboa (1965). Como escreveu o historiador angolano Adriano Parreira,
as notas do comentador são tão substanciosas e magistrais que os dois volumes deveriam ser
considerados como uma nova obra, designada como edição Cavazzi-Leguzzano. Linda
Heywood faz uma leitura fina das observações de Gaeta e Cavazzi sobre a Jinga, assim como
dos autores que se inspiraram nos escritos dos dois missionários.
Note-se que quando os dois livros foram publicados na Itália, a Europa ainda sofria as
consequências do mais sangrento conflito de sua história, a guerra de Trinta Anos (1618-
1648). Movida por conflitos religiosos e jogos de poder entre as potências, esta guerra deu
lugar a fanatismos, massacres e pilhagens cuja lembrança pode ter levado leitores de Cavazzi
a relativizar as violências retratadas no reino de Matamba.
Outra fonte importante da época é o livro de Antônio de Oliveira de Cadornega,
História Geral das Guerras Angolanas (1680-81). Cadornega viveu 51 anos em Massangano e
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Luanda e seu livro se baseia na documentação das câmaras das duas cidades e na tradição
oral dos angolistas (colonos portugueses de Angola) e dos nativos angolanos ("negros
noticiosos"). Seu livro defende o ponto de vista dos colonos, suas lutas e seus méritos para
explicitamente compará-los aos colonos do Brasil, os brasílicos, que haviam vencido e
expulsado os holandeses de Pernambuco. Nada de similar foi escrito em nenhum outro
enclave europeu na África até a emergência, nas últimas décadas do século XIX, da identidade
"pied-noir" na Argélia francesa. Embora a História Geral só tenha tido uma edição completa
em 1940, seu texto não era desconhecido. Havia uma cópia completa do manuscrito na
Academia de Ciências de Lisboa, outra, também completa, com partes traduzidas em francês,
na Biblioteca Real (depois Nacional) de Paris desde os anos 1730 e uma cópia de um dos 3
volumes no British Museum desde meados do século XIX.
Um ponto a ser ressaltado na obra dos três autores, concerne a longevidade de jinga,
parte integrante de sua reputação e da lenda criada em torno de seu reinado em Matamba.
Na sua fala reproduzida no livro de frei Gaeta, Jinga diz que foi batizada "fanciulla",
isto é, jovem ou donzela. A expressão cola mal com os 40 anos que ela teria nesta altura
(1622), conforme o ano de seu nascimento indicado por Cavazzi (1582), retomada neste livro
por Linda Heywood e pela maioria dos autores. Outro acontecimento, o combate de Jinga na
ribeira do rio Dande, na batalha de Sengas de Kavanga, travada em 1646 contra os
portugueses, que Linda Heywood considera "épica" e descreve com vivacidade, também lança
dúvidas sobre sua suposta data de nascimento. No confronto, Cadornega combatia junto com
as tropas que atacaram o quilombo (acampamento de guerra) de Jinga e foi testemunha
ocular da bravura da rainha de Matamba. As forças de Luanda dispunham de mosqueteiros
portugueses e angolistas, combatentes angolanos ou são-tomenses vestidos à portuguesa
(“cangoandas”), esquadrões de arqueiros e zagaieiros nativos, e tinham até pequenos
canhões que atiravam metralha. Mas Jinga não arredou o pé e lutou com seus soldados,
"como se fora um valente generalíssimo, tomando ela a vanguarda e acometimento de nosso
exército", nas palavras de Cadornega. Ora, segundo a data proposta por Cavazzi, Jinga teria
nesta época 64 anos. Idade meio avançada, considerando as agruras de sua vida guerreira,
para combater e comandar seus soldados durante um dia inteiro e na caída da noite, conseguir
furar o cerco inimigo e escapar ilesa.
Por isso, junto com Arlindo Correia, faço parte da minoria dos historiadores que
questiona sua data de nascimento e penso que quando morreu, em 1663, Jinga tinha idade
bem inferior aos provectos 81 anos indicados por Cavazzi. De todo modo, na época da
conclusão de seu manuscrito (1681), 18 anos depois da morte de Jinga, Cadornega diz que
havia gente em Angola acreditando que ela ainda vivia, escondida em seu quilombo, “velha e
despossuída de seu reino e senhorios”. Volto em seguida à lenda sobre a longevidade e os
feitos de Jinga.
Linda Heywwod destaca o marco histórico causado pela invasão holandesa em Angola
no ano de 1641, depois de terem conquistado parte do Nordeste brasileiro em 1630: " Em
1641, um novo ator entrou em cena na África central". Na realidade, no mesmo movimento,
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entra em cena na África central um segundo novo ator: o brasílico, o português estabelecido
no Brasil. Ponto que deve ser ressaltado para os leitores desta tradução brasileira do livro.
Nos socorros vindos da Bahia e do Rio de Janeiro para atacar os holandeses e Jinga
chegam, desde 1644, oficiais, soldados e traficantes que vão introduzir, mais duradouramente
que os holandeses, seus interesses no centro-oeste africano. Comandando a força
expedicionária saída da Guanabara que expulsa os holandeses de Angola e São Tomé em 1648,
Salvador Correa de Sá, governador do Rio do Janeiro, filho e neto de governadores da mesma
capitania, senhor de engenhos na região de Campos, assume o governo angolano. Com suas
tropas da expedição, majoritariamente financiada por negreiros fluminenses, ele ataca Jinga
e outros reinos da região. Em 1650, um ano e meio apenas depois de sua posse em Luanda, o
capuchinho frei Bonaventura de Sorrento, missionando em Angola desde 1645, denunciava
numa carta à Propanga Fide, em Roma, a carnificina e as escravizações perpetradas pelo
governador Salvador de Sá e suas tropas formada em boa parte por brasílicos: “Desbarataram
muitas aldeias, mataram muita gente e fizeram mais de 7.000 escravos”.
Jinga também registrou o novo patamar da ofensiva negreira desencadeada pelos
escravocratas brasílicos, considerando Salvador de Sá como um dos mais vorazes
governadores de sua época. Ele havia se comprometido a libertar Kambu, irmã de Jinga de
aprisionada em Luanda, recebeu muitos escravos que ela mandou como pagamento do
resgate, mas não cumpriu promessa e continuou guerreando Matamba. Linda Heywood
descreve as chantagens e as extorsões a que Jinga foi submetida para obter a libertação de
Kambu em 1656. Em 1655, quatro anos depois de Salvador Correa de Sá ter deixado o governo
de Angola, a rainha Jinga ainda reclamava para o novo governador em Luanda, "estou tão
queixosa dos governadores passados, que me prometeram entregarem minha irmã, pela qual
tenho dado infinitas peças [escravos] ... e nunca me entregaram ela; mais ainda, ... moviam
logo guerras, com que me inquietaram e fizeram sempre andar feita jaga, usando tiranias ...e
de quem estou mais queixosa é do governador Salvador Correa, a quem dei as peças".
A ofensiva negreira brasílica prossegue após o governo de Salvador Correa (1648-
1651), com capitães e tropas vindas de Pernambuco, e sobretudo com os dois heróis da guerra
contra os holandeses premiados por João IV com governo de Angola, João Fernandes de Vieira
(1658-1661) e André Vidal de Negreiros (1661-1666). Trazendo mais tropas brasílicas, estes
governadores expandem o domínio territorial português e a pilhagem negreira. Aclimatadas
aos combates e às doenças tropicais (ao contrário das tropas europeias, lusas e holandesas
presentes em Angola), integrando veteranos de guerras contra os holandeses, índios e
quilombolas, as tropas brasílicas tem um papel decisivo em algumas batalhas chaves. A partir
desta época acentua-se um elemento central da afirmação dos interesses brasílicos e depois
de 1822, brasileiros, no Atlântico Sul, a navegação bilateral entre o Brasil e Angola, em
detrimento das viagens triangulares que começavam e terminavam em Lisboa.
Linda Heywood aponta os reides de preação de nativos das tropas do e André Vidal de
Negreiros em Matamba em 1663, pouco antes da morte de Jinga, quando foram escravizados
e enviados para Pernambuco e Paraíba, terra de Negreiros, mais de 4.000 súditos de Jinga e
de seus aliados. A ofensiva de Vidal de Negreiros encetava os reides que culminaram com a
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