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Muxiluandas: memória, escravidão perpétua, alforria, liberdade, parentesco e alianças

(Luanda, século XVIII) – PRIMEIRA VERSÃO

Ariane Carvalho
Doutora em História Social pela UFRJ

Roberto Guedes1
Professor do Departamento de História da UFRRJ e do PPGHIS da UFRJ

Muxiluandas, Maxiluandas, Mixiluandas, Mochiluandas, Axiluandas, negros


muxiluandas, negros do serviço de, obrigados a, escravos, servos ou negros de Sua Majestade,
ou pretos forros muxiluandas, negros trabalhadores, livres, ou tudo isso na forma singular, eis
os modos pelos quais eles constam em documentos portugueses setecentistas do reino de
Angola, principalmente nos que se reportam à cidade portuária escravista de Luanda. 2 Afirma-
se mesmo que os nomes grupo e da urbe guardem íntima associação. 3 Conforme José Pereira
do Nascimento, em todas as línguas dos grupos bantu, inclusive os Umbundu, as palavras são
compostas de prefixos, radicais e sufixos. 4 O prefixo muxi, no dicionário kimbundo-português
de autoria de Assis Júnior, remete a uma “pessoa que se exime de um dever ou repudia uma
obrigação”. Significa também um “renunciante”, um “abandonador”. Por sua vez, o radical
luanda, entre outras acepções, é um substantivo que caracteriza “o que uma pessoa paga ao
suserano pelo exercício de seu comércio, indústria, arte ou ofício”. Assim, o etinômio
muxiluanda se liga diretamente à urbe ao denotar que era o “deixador da terra de Luanda”,
“que deixa de pagar imposto, aduana, tributo”.5
Mas era também o “nome dado ao natural de qualquer das ilhas adjacentes à cidade de
Luanda. Ilhéu”6 Em termos históricos, as ilhas pertenceriam ao Ngola a Kiluange, rei do
Ndongo, que as teria cedido ao rei do Congo, que, por sua vez, teria sido “socorrido pelos
portugueses, capitaneados” pelo governador Francisco de Gouveia em 1570, quando “da
invasão e ocupação que durante 12 anos sofreu dos ngolas”. Foi a partir daquela doação que o
“indígena” muxiluanda teria deixado de pagar o imposto aduaneiro pela exportação do njimbu

1
O autor agradece os financiamentos do CNPq e da John Carter Browm Library e fontes batismais cedidas por
Roquinaldo Ferreira.
2
Para os séculos XIX e XX, vide Cardoso, Carlos Alberto Lopes, Os Axiluanda. Luanda: Editorial Culturang,
1972; CARVALHO, Ruy Duarte de. Ana A Manda. Os filhos da rede: identidade colectiva, criatividade social e
produção da diferença cultural: um caso muxiluanda. Lisboa: IICT, 1989. Axiluanda é o plural de muxiluanda.
3
Cf. a respeito desta associação, Venâncio, Carlos. A economia de Luanda e hinterland no século XVIII. Um
estudo de sociologia histórica, Lisboa: Editoral Estampa, 1996, p. 95.
4
NASCIMENTO, José Pereira do, Grammatica do Umbundu ou língua de Benguela / José Pereira do
Nascimento.- Lisboa : Imprensa Nacional, 1894, p. 5.
5
ASSIS JUNIOR, A. Dicionário Kimbundo-Porguguês. Linguístico, botânico, histórico e corográfico. Luanda,
Argente, Santos e Cia. Ltda, s/d., p. 325.
6
Idem, ibdem.
(pequeno búzio), por ele pescado, para o reino do Congo, onde serviria como moeda. 7
Portanto, antes seriam tributários do reino do Congo, mas ao se desobrigarem de pagar
impostos ao suserano congolês se tornaram muxi - luanda. Porém, Virgílio Coelho, sem
pesquisar detidamente o Congo, afirma em alusão à Luanda:
Há uma grande tendência para considerar a Ilha de Luanda como pertença do rei
do Congo e não do Ngòlà e, para isso, aponta-se que é por ser aí onde aquele rei
se abastecia de búzios, moluscos que serviam de moeda, logo de meio de
transacção no espaço Congo. É interessante notar, em primeiro lugar, que os
Túmúndòngo nunca se interessaram por estes búzios, senão como produto
alimentar, e, ver também, que apesar da profusão de informação que vai no
sentido negativo de situar a Ilha de Luanda como pertença do rei do Congo, não
há praticamente informação que nos leve a compreender como é que essa moeda
era levada para o Congo, nem como aí se processava a distribuição do produto,
nem mesmo a transacção e a utilização pelos congoleses desse tão importante
meio econômico, se se tiver em conta que, tal como deixam configurar essas
mesmas fontes, parece ser o rei do Congo o dono e senhor de tais búzios.8

Apesar de pôr em dúvida a compreensão dos usos dos búzios no Congo, o autor
acrescenta em nota que, para os falantes de kímbùndù, a palavra para búzios é jímjìmbù
(singular: njìmbù). Porém, estes búzios foram “vulgarizados nas fontes antigas através da
língua kikongo: nzimbu”9. Parece-nos que se foram vulgarizados na língua kikngo, os
nzimbos de fato circularam no Congo.
Nesse caminho, a literatura de ficção sugere que em meados do século XVII “as
moedas europeias não eram usadas aqui [em Luanda]. Só os libongos, que são esses lencinhos
feitos de entrançado de palmeira e o zimbo”, e por vezes o sal, asseverou o personagem
holandês católico Baltazar Van Dun. O escravo narrador nada entendia de dinheiro, mas
gostava de ver na “Ilha os súditos do rei do Kongo a mergulhar nas águas para recolherem a
moeda do reino, o jimbo ou zimbo”. Homens, mulheres e crianças participavam da atividade e
com os “zimbos enchiam sacos controlados pelo governador congolês”, o mani-Luanda Dom
Agostinho Corte Real, posto que, se o “continente pertencia aos reis no Ndongo, descendentes
do Ngola Kiluanje, a Ilha pertencia ao rei do Kongo por causa dos zimbos. E o grande senhor
da ilha era Dom Agostinho Corte Real, que não dependia dos portugueses e que agora tinha
estabelecido uma aliança com os mafulos [holandeses]”10. Corte Real achava que os
7
Idem, ibdem.
8
COELHO, Virgílio. “Em busca da Kábásá!...”. Estudos e reflexões sobre o “reino” do Ndòngò. Contribuições
para a história de Angola. Luanda, Kilombelombe, 2010. p. 53-54.
9
Idem, ibdem. O autor concorda, porém, que o termo luanda podia remeter a tributo, pp. 80 e segs.
10
PEPETELA, A gloriosa família. O tempo dos flamengos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 42-43. Para
as atitudes do mani-Luanda perante portugueses e holandeses, cf. p. 78-81, 90, 101-108, 215-216,222-223, 253,
284-287, 298-99, 308-311, 354, 394. Sobre a literatura histórica de Pepetela, vide DUTRA, Robson. Quem tem
medo de história? Os romances de Pepetela e a cartografia de Angola. In: CAMPOS, Adriana; SILVA, Gilvan
holandeses, diferente dos portugueses, não queriam dominar, “apenas fazer comércio, e por
isso somos seus aliados naturais”. Mas os malufos tinham que respeitar a fé católica dos
maxiluandas porque os reis do Congo a abraçaram há “muito mais de cem anos”. 11 Sendo
assim, o que a literatura sugere é que os maxiluandas continuavam a pagar em zimbos ao
tributo o Congo. Logo, maxiluanda não significaria, na ocasião da presença holandesa em
Angola, o que isento de tributar o rei congolês, pelo menos não até aquele momento.
A par da etimologia, das controvérsias e das múltiplas formas em que constam de
documentos e dicionários, aqui nos propomos a, com base nos sentidos presentes na
documentação, a compreender quem eram e o que faziam os muxiluandas setecentistas
habitantes das ilhas adjacentes, mas integrantes, da cidade de Luanda do Reino de Angola.
Até onde sabemos, parece que eram os únicos grupos que viviam na cidade escravista e seu
entorno discriminados por um etinômio próprio nas fontes portuguesas. Por que eram
diferenciados? Formavam de fato um grupo dotado de coesão? Sendo o caso, o que os
constituiria ou como se moldaram como uma agregação? Qual sua importância na sociedade
luandense do século XVIII?
Para responder a estas perguntas, baseamo-nos em F. Barth, para quem os grupos
étnicos (aqui lidos como grupos sociais) se definem a partir de contextos relacionais
concretos. Não são agrupamentos humanos essencializados com traços estáticos e imutáveis.
Ao contrário, grupos se constroem pelos vínculos que mantém entre si, criando suas
fronteiras, mesmo que portem formas de associação ou de identidade prévias. Por outro lado,
complementarmente, grupos sociais também se moldam por contatos externos.12 Com efeito,
para os muxiluandas havia marcação de fronteiras criadas em torno de si mesmos, sem que
necessariamente se identificassem (apenas) dessa maneira, porque as fontes não dão
evidências explícitas nesse sentido. Mas há alguns indícios 13, percebidos pelos batismos e
pelas relações de compadrio, que viabilizam constatar que eles eram um grupo coeso, como
veremos. Paralelamente, eles desenharam suas fronteiras também mediante laços mantidos
com diferentes agentes sociais. Logo, sua análise requer percebê-los nos elos consigo
mesmos, mas também nos relacionamentos com distintos atores; no segundo caso: brancos,
V. da (orgs.). Da África ao Brasil. Itinerários históricos da cultura negra. Vitória: Flor e Cultura, 2007, pp. 275-
291.
11
PEPETELA, A gloriosa família, p. 93-94.
12
BARTH, Fredrik, Process and form in social life, London: Routlegde & Kegan Paul, v. 1, 1981; O guru, o
iniciador e outras variações antropológicas, Rio de Janeiro, Contracapa, 2000. A perspectiva relacional da
análise também se observa, a par das diferenças entre os autores, em THOMPSON, Edward. P. A formação da
classe operária. A árvore da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, v.1, prefácio; ELIAS, Norbert. A
sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar, 1994 [1987].
13
GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e
sinais. Morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
pretos, negros, luandenses, holandeses, (súditos) portugueses, escravos etc. Evidentemente, o
sentido das relações com os outros é de mão dupla.
Igualmente, para compreender os muxiluandas cabe contemplá-los nas enunciações 14,
porque, ao serem pronunciados, eles eram constituídos a partir das falas de terceiros. Trata-se,
não de uma autoidentidade, mas de uma identificação atribuída. 15 Havia redatores de
documentos setecentistas que se guiavam por categorias prévias sobre o que delinearia os
muxiluandas nos planos social, político, cultural, religioso, econômico e, talvez
principalmente, com base na memória sobre o grupo. Mas, acepções, prévias ou não, não
nascem prontas e acabadas e nem sempre são avessas a mudanças; redefinem-se e modificam-
se porque são frutos de contextos históricos dinâmicos, ao mesmo tempo em que deles
derivam. Isto significa dizer que vigoravam ideias gerais sobre como seriam os muxiluandas,
mas também vigiam caracterizações circunstanciais. Em suma, “muxiluanda” era um termo
polissêmico, mutante e um agente social plural.
A partir destas ressalvas iniciais, neste artigo consideraremos os muxiluandas sob os
prismas da memória, das relações de trabalho, do parentesco e da aliança política, âmbitos
indissociáveis, mas aqui repartidos para efeito de narrativa. Não nos preocupamos, porém,
com uma questão estritamente identitária 16, e sim em compreender, a partir do que se dizia
sobre eles, os seus papeis no mundo em que viveram e ajudaram a construir. Uma das suas
peculiares características é que só eles, os “axiluanda, os habitantes da Ilha, tomavam banho
de mar”.17 Mas isto está longe de ser sua única singularidade. A sua escravidão também era
única.
Memória e escravidão civil
A aliança dos muxiluandas com os holandeses entre 1641 e 1648 não foi mencionada
pelo dicionarista Assis Júnior ao grupo, diferente da historiografia. De acordo com Carlos
Couto, os muxiluandas seriam súditos do rei do Congo até a época do domínio holandês em
Luanda, entre 1641 a 1648, e como o soberano do Congo se aliou aos holandeses os
muxiluandas seguiram tal pacto. Mas com a reconquista de Angola pelos portugueses eles
ficaram sujeitos a “trabalhos forçados”.18 Também nessa direção, Alberto da Costa e Silva
afirma que a reconquista de Angola alterou as forças entre os poderes da região e os
14
BRUBAKER, Rodgers, COOPER, Frederick. “Beyond ‘Identity’”. Theory and Society, 29, 2000, p. 1-47.
15
Para uma abordagem nesse sentido, cf. RAPPAPORT, Joanne. The disappearing mestizo. Configuring
difference in the colonial New Kingdom of Granada, Duke University Press, 2014.
16
Sobre as armadilhas da fixação com a identidade, cf. GARCÍA, Pedro Gómez. Las ilusiones de la ‘identidad’.
La etnia como seudoconcepto, Gazeta de Antropología, 1988, 14.
17
PEPETELA, A gloriosa família, p. 31.
18
COUTO, Os capitães-mores em Angola no Século XVIII. Lisboa: Instituto de Investigação Científica de
Angola, p. 248.
muxiluandas foram compelidos a trabalhar para os portugueses como tripulantes de seus
barcos e em obras públicas.19
Com efeito, expulsos os holandeses naqueles idos dos seiscentos, os habitantes das
ilhas, desde pelo menos 1720, foram caracterizados pelo provedor mor da fazenda real do
Reino de Angola, Francisco de Santa Bárbara e Moura, como “negros ocupados no serviço de
Vossa Majestade”, a que estavam “obrigados em castigo da traição que cometeram quando os
holandeses tomaram este reino”.20 Dezesseis anos depois destas palavras, em 1736, já
decorrido quase um século do desterro dos batavos, permanecia disseminada na memória
coletiva que os muxiluandas tinham se rebelado “à Coroa, subjugando-se aos holandeses e
seguindo às suas armas quando se assenhorearam” de Luanda. Então, prosseguiu o ouvidor
geral e provedor da fazenda real de Angola, Lourenço de Freitas Ferraz e Noronha, eles eram
vistos como “condenados por sentença à escravidão perpétua”. 21 Quase 20 anos depois destes
dizeres do ouvidor, em 1764, o governador de Angola Dom Francisco de Inocêncio Coutinho
quis baratear os custos, para a fazenda real, de transporte de mercadorias do Brasil para
Angola, bem como os de navegação de cabotagem. Para isso, afirmou que tudo sairia de graça
se a equipagem “fosse composta de Negros Mixiluandas, escravos de Sua Majestade”.22
A aliança dos Muxiluanda com os holandeses nos seiscentos, portanto, foi
constantemente rememorada ao longo dos setecentos em discursos de autoridades portuguesas
em Angola, a fim de justificar a escravidão como castigo vigente há mais de um século, bem
como para se referir à escravidão do porvir, perpétua. Esta forma de escravidão não se
findaria nem com a morte porque a noção de perpetuidade da época era transcendental. Os
muxiluandas seriam eternos escravos do rei de Portugal, o que, como se verá, fazia diferença
porque implicava, como disse um governador em 1798, em uma “espécie de escravidão”.23 Ou
seja, esta escravidão não era igual a outras.
Nos setecentos, o que dava parâmetro para a diferenciação dos Muxiluanda como
escravos perpétuos era a constante reelaboração, no decorrer dos setecentos, da memória de
sua vinculação aos holandeses nos seiscentos.24 Reforçava-se a reiteração dessa memória
acionando elementos centrais da esfera política: traição e castigo. Assim, diferente de uma

19
SILVA, Alberto da Costa e. A manilha e o libambo: a África e a escravidão, de 1500 a 1700. 2. ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2011. Capítulo 11
20
Arquivo Histórico Ultramarino, Avulsos Angola (AHU, A), Cx. 21, doc. 23.
21
AHU, A, Cx. 28, doc 23.
22
AHU, A, Cx. 48 doc 47
23
AHU, A, Cx. 87 doc. 68.
24
Sobre construção de memórias, vide, entre outros, LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Editora
da Unicamp, 2003, 5ª. ed; HALBWACHS, M. A Memória coletiva. São Paulo, Vértice / Revista dos Tribunais,
1990.
justificativa estritamente religiosa da escravidão, a punição da sujeição escravista imposta aos
muxiluandas derivava de um ato político, porém, decerto, sem que deixasse de se alicerçar em
uma dose de motivação religiosa. Trair, na cultura política moderna portuguesa, guardava
sentido político, mas este sentido estava ligado à ordem moral religiosa. No Vocabulário de
Raphael Bluteau, o substantivo traição aludia à “perfídia, falta de fidelidade ao Príncipe, ao
amigo que se fiava de nós”. O traidor era “aquele que obra contra a fidelidade que deve. O
traidor, ainda que se emende, é sempre reputado por mau”; fazia lembrar a Judas que traiu
Jesus.25
Por isso mesmo, a traição se enquadrava, como sugere o Vocabulário, nos crimes de
lesa majestade. Conforme as Ordenações Filipinas:
Lesa Majestade quer dizer traição cometida contra a pessoa do rei, ou de seu real
estado, que é tão grave e abominável crime, e que os antigos sabedores tanto
estranharam, que é comparável à lepra; porque assim que esta enfermidade enche
todo o corpo, sem nunca jamais se poder curar, e empece ainda os descendentes
de quem a tem, e aos que com ele conversam, pelo que é apartado da comunicação
da gente. Assim, o erro da traição condena o que a comete, e empece e infama os
que de sua linha descendem, posto que não tenham culpa. 26

Não há certeza se os maxiluandas foram condenados por crime de lesa majestade, mas
entre os atos que a caracterizavam estava o de “se em tempo de guerra algum se fosse para os
inimigos do rei para fazer guerra aos lugares do seu reino”. 27 Precisamente, este seria o caso
dos maxiluandas porque, ademais de aliados aos holandeses, a noção de reino extrapolava o
território português na Europa, porque vigia a ideia de uma monarquia pluricontinental. 28 O
crime de lesa majestade era punido com pena de morte conforme as Ordenações Filipinas, o
que podia ser um dever de Estado 29 porque, na estrutura jurídico-política portuguesa, a traição
25
BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Português e Latino. Rio de Janeiro: UERJ, 2000. 1712-1727. Todas as
consultas a Bluteau, no texto, se basearam em http://www.brasiliana.usp.br/en/dicionario.
26
Código Philippino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal recopiladas por mandado d’el rei Philipphe I,
Livro V, Título VI, Ano de 1603, p. 1153. Ed. Fac-similar organizada por Cândido Mendes de Almeida. Brasília,
Senado Federal, 2004.
27
Idem, ibdem.
28
FRAGOSO, João; MONTEIRO, Gonçalo Nuno (org.). Um reino e suas repúblicas no Atlântico:
comunicações políticas entre Portugal e Brasil e Angola nos séculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2017.
29
CASTRO, João Henrique Ferreira de. “Castigar sempre foi razão de Estado”? Os debates e a política de
punição às revoltas ocorridas no Brasil (1660-1732). Niterói: UFF, PPGHIS, Tese de Doutorado, 2016, capítulo
3. No mundo ocidental moderno, o pecado era fundamental nas justificas da escravidão. A escravidão, como
castigo, era uma forma de purgar o pecado. DAVIS, David Brion. O problema da escravidão na cultura
ocidental. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000; VAINFAS, Ronaldo. Ideologia e escravidão: os letrados
e a sociedade escravista do Brasil colonial. Petrópolis: Vozes, 1986; MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do
corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas (1660-1860). São
Paulo: Companhia das Letras, 2004. Em sociedades africanas, aspectos religiosos e transcendentais também se
relacionavam à escravidão. Ver, entre outros, MEMEL-FÔTE, Harris. Culture et nature dans les représentations
africaines de l´esclavage et de la traite négrière. Cas des sociétés lignagéres. In HENRIQUES, Isabel de Castro;
SALA-MOLINS, Louis (Orgs.). Déraison, esclavage et droite. Les fondaments idéologiques e juridiques de la
se associava, no século XVII, ao desamor, justamente quando o amor e a amizade eram forças
de coesão social e da estabilidade política de uma monarquia com frágeis instituições
estatais.30
Os condenados por crime de lesa majestade eram punidos com “morte natural
cruelmente, e todos os seus bens, que tiver ao tempo da condenação, serão confiscados para a
Coroa do Reino”. Mas se os traidores morressem antes da prisão e da condenação, ainda
depois da morte se podia “inquirir contra ele, para que, achando-se verdadeiramente culpado,
seja sua memória danada, e seus bens confiscados para a Coroa do Reino”.31
No entanto, mesmo cientes de que as aplicações das penas eram teatralizadas32, não
sabemos se os maxiluandas dos seiscentos tidos por traidores receberam a pena capital 33, mas
os setecentistas carregaram a memória danada de seus ascendentes. Assim, não foi à toa que,
no desenrolar do século XVIII, como se viu, invariavelmente a traição e sua punição
memorável fossem, respectivamente, evocados à época e a posterior presença dos holandeses
em Luanda como meios de justificar a escravidão dos muxiluandas. A danação da memória
permeou todo o setecentos, pelo menos. Ainda em 26 de abril de 1798, o governador Miguel
Antônio de Melo, em carta a Dom Rodrigo de Souza Coutinho, se referiu à escravidão
perpétua dos muxiluandas.34 A danação da memória dos maxiluandas era indissociável de sua
escravidão perpétua.
Contudo, Miguel Antônio de Melo percebeu mudanças e nuances, isto é, percebeu que
a perpetuidade se modificara, sem que necessariamente deixasse de ser eterna. Afirmou pelo
ato de escrita memorável que em 1641 os “negros maxiluandas” haviam facilitado a entrada

traite négreère et de l’ésclavage. Col. Mémoire des peuples. La route de l´esclavage. Éditions UNESCO, 2002 ;
STILWELL, Sean. Slavery and Slaving in African History. Cambridge: Cambridge University Press, 2014.
30
CARDIM, Pedro. Amor e amizade na cultura política dos séculos XVI e XVII. Revista Lusitania Sacra, 2ª
série, 11, 1999; Religião e ordem social. In Revista de História das Ideias, Coimbra, n.22, 2001; ‘Governo’ e
‘política’ no Portugal de seiscentos. O olhar do jesuíta Antônio Viera. In Penélope, n. 28, 2003; HESPANHA,
António Manuel de. Imbecillitas. As bem-aventuranças da inferioridade nas sociedades de Antigo Regime. São
Paulo: Annablume, 2010. Decerto o perdão era importantíssimo e os forros eram vistos como remidos do
cativeiro, como veremos.
31
Código Philippino Livro V, Título VI, Ano de 1603, p. 1154.
32
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Rio de Janeiro; Ed. Vozes, 2013. (1ª ed. 1975);
LARA, Silvia H. Campos da Violência, escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro – 1750- 1808. São
Paulo, Paz e Terra, 1988; ABRAHÃO, Juliana Diogo. Degredos e Degredados em Angola no Século XVIII.
Seropédica, UFRRJ, PPHR, Dissertação de Mestrado, 2018.
33
Foi o caso, porém, de uma das irmãs da rainha Jinga, condenada à morte por espionagem e traição.
HEYWOOD, Linda, Njinga of Angola: Africa´s warrior queen. Havard: Harvard University Press, 2017, p. .
Ademais, houve, em 1642, cabeças de sobas cortadas por terem passado ao lado holandês, mesmo quando estes
ainda ocupavam Luanda. No imediato pós-restauração, houve muitas degolas. Araújo, Ana Maria Soares de.
“Não há couza que mais danifique os homens que a ambição e soberba”: redes de poder e revoltas em Angola
sob a administração ultramarina portuguesa pós-restauração (1640-1667). Alagoas: UFAL, PPGHIS, Dissertação
de Mestrado, 2020, p. 54, 83-84 e capítulo 3.
34
AHU, A, Cx. 87, doc. 68.
dos inimigos, de quem receberam amparo. Porém, prossegue a lembrança narrativa do
governador em fins do século XVIII, Salvador Corrêa de Sá reconquistara o reino de Angola
aos holandeses em 1648 e os muxiluandas foram condenados a que “perpetuamente ficassem
obrigados a assistir nas coisas do Real serviço, com a condição de servos e modo de
escravidão que os Romanos inventaram”. Além disso, confiscou-se “as ilhas fronteiras a esta
cidade”35 de Luanda, todas de soberania do rei do Congo36, onde viviam seus súditos
muxiluandas, porque, em 1641, o Congo era aliado dos holandeses e da rainha Jinga nas
contendas contra os portugueses.37 Desse modo, tendo as terras apoderadas pela coroa
portuguesa, os muxiluanda não viviam mais em território sob jurisdição do rei do Congo, mas
da coroa portuguesa. Também em fins do século XVIII, o cronista miliar Elias Alexandre da
Silva Correa descreveu o episódio do seguinte modo:
Restaurada a cidade (...) e expulsados de uma vez os inimigos estranhos,
começaram os do país a sentir o justo castigo do seu infame procedimento.
Congo foi o primeiro. Este rei, que havendo gozado as primícias da
beneficência portuguesa, auxiliou e acolheu os holandeses na Ilha de Luanda,
prestando-lhe os seus súditos todas as utilidades em dano nosso. Bartolomeu
de Vasconcelos marchou a puni-lo, e depois de vencido o obrigou a ceder aos
portugueses o domínio da dita ilha.
(...)
Os habitantes dela, em castigo de sua perfídia, ficaram condenados a servir à
coroa gratuitamente, nas baixas ocupações da conquista, como remar,
carregar, etc. etc., dando-lhes somente o sustento enquanto servem.38

A construção da memória do passado glorioso, evidentemente, produziu documentos


históricos, tal como a escrita, provavelmente entre ___ e ___, da História de Angola, de
autoria de Elias Alexandre da Silva Correra. Naqueles mesmos fins do século XVIII, o
cronista militar escrevera a obra para reforçar o pedido de uma mercê almejada, a promoção
na carreira militar e por isso sublinhou os “grandes feitos” portugueses.39
35
AHU, A, Cx. 87, doc. 68. Sobre os holandeses na África Central, especialmente em Luanda, BOXER, Heywoo
36
AHU, A, Cx. 87, doc. 68.
37
Sobre as guerras angolanas seiscentistas, vide, entre outros, Glasgow, Roy Arthur, Nzinga. Resistência
africana à investida do colonialismo português em Angola (1582-1663), São Paulo: Perspectiva, 1982; Heintze,
Beatrix, Fontes para a história de Angola do Século XVII. Memórias, relações e outros manuscritos da coletânea
documental de Fernão de Sousa, Sttutgart: Franz Steiner Verlag Wiesbaden GMBH, 1985 (vol 1), 1988 (vol 2);
Angola nos séculos XVI e XVII. Estudos sobre fontes, métodos e história, Luanda: Kilombelombe, 2007; Pantoja,
Selma, Njinga Mbandi. Mulher, guerra e escravidão, Brasília: Thesaurus, 2000; Heywood, Njinga of Angola,
2017; Souza, Marina de Mello e, Além do visível. Poder, catolicismo e comércio no Congo e em Angola (Séculos
XVI e XVII), São Paulo: Edusp/Fapesp, 2018.
38
CORREA, História de Angola, Vol II, p. 265-266.
39
Cf. cf. MÚRIAS, Manoel. Nota prévia. In CORRÊA, História de Angola, CORRÊA, Elias Alexandre da Silva.
História de Angola. Lisboa: Editorial Ática, 1937, 2 Vols; PEREIRA, Magnus. Rede de mercês e carreira: o
desterro d’Angola de um militar luso-brasileiro (1782-1789). In História. Questões e Debates, v. 45, p. 97-128,
2007; ________, CRUZ, Ana Lúcia R. B. Elias Alexandre da Silva Correia. Um militar brasileiro em Angola.
Curitiba, Ed. UFPR, 2014. LEITE, Ingrid da S. O. Textos militares e mercês numa Angola que se pretendia
A crônica militar que almejava mercê, consequentemente, também reconstruiu a
memória sobre os muxiluandas associada à época do domínio holandês. Na verdade, a perene
lembrança da reconquista do reino de Angola aos holandeses estava longe de se restringir à
escravidão perpétua dos muxiluandas. No século XVIII, a memória da reconquista era
reforçada de várias formas. Por exemplo, o corpo político instituído na câmara municipal
luandense, composto por sua elite, lembrava a restauração em suas festividades, a exemplo do
registro de uma carta que o senado da câmara escreveu ao ministro do convento de São José
sobre a “Restauração”, avisando-o que, em 1782, a “festividade da Sé desta Cidade com
procissão que sai da Igreja do Convento de V. Reverendíssima”. O cortejo seria acompanhado
pelo próprio senado “em memória da felicidade da Restauração desta cidade do poder dos
holandeses”, por ordens “de Sua Majestade”.40 Evento anual41, a procissão repactuava, ao
reconstruir a memória da restauração, o compromisso político entre o senado da câmara e o
rei, o que, aliás, os súditos também faziam em petições particulares no decorrer dos
setecentos, ao menos em sua primeira metade.42 A reconstrução da memória da restauração
pela elite luandense, em suma, se concretizava em atos públicos e particulares evocando a
reconquista.
Era assim porque, bem antes das festividades de 1782, alicerçados nos direitos da
reconquista de Luanda aos holandeses, os cidadãos que integravam a câmara da cidade
haviam solicitado, ainda em 1759, os mesmos privilégios dados aos cidadãos da cidade do
Porto.43 Estas prerrogativas eram invocadas por cidadãos e camaristas luandenses para marcar
“reformada”: um estudo de caso dos autores Elias Alexandre da Silva Correa e Paulo Martins Pinheiro de
Lacerda. Niterói: UFF, PPGHIS, Tese de Doutorado, 2015; Tráfico e escravidão em Elias Alexandre da Silva
Correa (Angola, século XVIII). In: DEMETRIO, Denise; SANTIROCCHI, Ítalo; GUEDES, Roberto (orgs.).
Doze capítulos sobre escravizar gente e governar escravos: Brasil e Angola, séculos XVII-XIX. Rio de Janeiro:
Mauad, 2017.
40
Biblioteca Municipal de Luanda (BML), Códice 21, fl. 62.
41
“Em memória deste fausto dia [15 de agosto de 1648] celebra o Senado da Câmara na Catedral de São Paulo,
uma anual e solene festividade precedida de procissão, que sai da igreja e convento de São José, acompanhada
da mesma câmara e cidadãos, em ação de graças por um tão prodigioso sucesso, e que servirá sempre de honrosa
memória à nação portuguesa”. CORREA, História de Angola, Vol II, p. 264.
42
LEITE, Ingrid da S. O. A “expulsão” dos holandeses como moeda de troca para obtenção de mercês em
Angola (século XVII E XVIII), 2020 (em elaboração).
43
AHU, A,, Cx. 44, doc. 86 e 88; cx. 41, doc. 42, 19 e 90. Sobre os privilégios dos cidadãos do Porto e de
Lisboa, cf. RIHGB, v. 8, pp. 512-526, 1867. Já os camaristas de Massangano pediram, ainda em 1661, que se
edificasse uma Santa Casa da Misericórdia na vila como mercê pela reconquista. OLIVEIRA, Ingrid Silva de.
Militar, camarário e ‘bom cristão’: o cronista Cadornega e suas estratégias de ascensão social nas possessões
portuguesas na África do século XVII. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 10, p. 223-238, 2008. O tema
das memórias das reconquistas de territórios portugueses aos holandeses tem sido fartamente analisada pela
historiografia sobre Brasil de Antigo Regime e, mais recentemente, sobre o Reino de Angola, sobretudo pelo
viés da política de mercês. ALBUQUERQUE, Cleonir Xavier de. A remuneração de serviços da guerra
holandesa: a propósito de um sermão do Padre Vieira. Recife: Imprensa Universitária da UFPE, 1968; DUTRA,
Francis. Ser mulato nos primórdios da modernidade portuguesa. Tempo, Niterói, v. 30, p. 106-107, 2011;
MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio: o imaginário da restauração pernambucana. São Paulo: Alameda
Editorial, 2008; OLIVEIRA, Ingrid. Cadornega e os principais de Angola no século XVII. In GUEDES,
o seu lugar de poder nas procissões anuais e em todas as ocasiões em se viam ameaçados pelo
que julgavam abusos cometidos por detentores de cargos de nomeação régia em Angola,
nomeadamente nos confrontos políticos entre eles, de um lado, e, de outro, governadores e/ou
ouvidores, como o exemplifica uma carta que a câmara escreveu à rainha de Portugal em 28
de agosto de 1782, causando a posterior destituição do ouvidor.44
O privilégio dos luandenses advinha da reconquista de Angola aos holandeses em
1648. Sua memória era tão secularmente reconstruída como a punição da escravidão perpétua
aos muxiluandas. Ambas eram pronunciadas com frequência, mas fica-se por saber se os
muxiluandas eram representados subalternamente nas festas de rememorização da
restauração.
Seja como for, tais como as procissões, os privilégios dos cidadãos de Luanda e a
escrita da história em Angola, que traziam um passado àquela contemporaneidade, as
lembranças da escravidão perpétua também reedificavam o teatro do poder português na
cidade, e provavelmente no reino de Angola em seu conjunto. Neste último caso, não se
devem desprezar os ecos daquela escravidão em demais presídios, sobados avassalados – e
mesmo ente sociedades africanas hostis aos portugueses –, e em tudo o mais que os súditos e
as autoridades portugueses concebessem como reino de Angola. Pelo menos em 1771, uma
carta da câmara de Massangano ao governador Francisco de Souza Coutinho sublinhou que
ele era “no reino de Angola outro Salvador Correa de Sá e Benevides, que, se este o restaurou
do holandês, Vossa Excelência se esmera em restaurá-lo do maior consumo em que se acha da
suma pobreza, já felicitando o comércio”. 45 Se também foi o caso dos maxiluandas, a
rememorização de sua escravidão perpétua extrapolaria Luanda e tinha implicações nos
pronunciamentos políticas da própria monarquia portuguesa na África Central Atlântica. Não
foi em vão que ela se fez presente nos escritos das maiores autoridades angolanos de
nomeação régia ao longo do século XVIII, como ouvidores e governadores em 1720, 1736,
1764 e 1798.

Roberto. Dinâmica imperial no Antigo Regime Português: escravidão, governos, fronteiras, poderes, legados
(Séculos XVII-XIX). Rio de Janeiro: Muad X, 2011, pp. 155-172. KRAUSE, Thiago Nascimento. Em busca da
honra: a remuneração dos serviços da guerra holandesa e os hábitos das Ordens Militares (Bahia e Pernambuco,
1641 ? 1683). 1a. ed. São Paulo: Annablume, 2012; MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio: o imaginário da
restauração pernambucana. São Paulo: Alameda Editorial, 2008; OLIVEIRA, Ingrid. Cadornega e os principais
de Angola no século XVII. In GUEDES, Roberto. Dinâmica imperial no Antigo Regime Português: escravidão,
governos, fronteiras, poderes, legados (Séculos XVII-XIX). Rio de Janeiro: Muad X, 2011, pp. 155-172.
44
Biblioteca Municipal de Luanda (BML), Códice 21, fls 63-70, 76. Guedes, Roberto. O cabeça de motim José
Vieira Dias, o tráfico e a terrível falta d'água (Luanda, finais do século XVIII). In: Guedes, Roberto. (Org.).
África: brasileiros e portugueses (séculos XVI-XIX).Rio de Janeiro: Mauad, 2013, p. 113-146.
45
Arquivo Histórico de Angola (AHA), Ofícios para o Interior, Códice 80, fls 50-51.
Sintetizando, mesmo em fins do século XVIII, a época da reconquista portuguesa do
reino de Angola, passada, mas rememorada, ainda conforme o relato do governador Miguel
Antônio de Melo, de 1798, frisava que os “ditos Negros” muxiluandas viviam por “mais de
um século” naquela “espécie de escravidão”, de “obrigação às coisas do Real serviço na
condição de servos e de escravidão Romana”.46 Embora este governador quisesse atenuar
aquela submissão – uma espécie de escravidão – nem assim ele deixou de reforça-la pela
memória que enunciava. Ao fim e ao cabo, essa memória política proclamava,
pejorativamente, os muxiluandas como grupo a partir de uma identificação externa secular,
mas não era uma autoidentidade.
Entretanto, as palavras do governador indicam outros aspectos. Servos e escravos
romanos, cabe lembrar, prescindiam de justificativas religiosas cristãs da escravidão. Os
muxiluandas, também. Por quê? Aquela sua “espécie de escravidão” era diferente da clássica
escravidão ocidental que se justificava pela religiosidade cristã, em especial a religião católica
na monarquia portuguesa. Mas a escravidão perpétua do grupo era uma escravidão civil
exclusiva ao rei de Portugal. Vejamos.
Ainda que na concepção política moderna ibérica, em particular a portuguesa, traição
guardasse um grande quê de dimensão moral-religiosa, para a justificativa da escravidão
eterna prevaleceu uma base quase estritamente civil, oriunda daquela traição seiscentista e da
inesgotável reconstrução de sua memória punitiva baseada no direito de guerra de reconquista
aos holandeses. Assim, no caso muxiluanda, havia uma íntima relação entre memória política
e justificativa da escravidão. Antes de qualquer coisa, a escravidão do grupo derivava de um
direito de reconquista, não era uma escravidão explicada pelo pecado, e não era doméstica ou
de foro particular, pelo menos não predominantemente. Outrora súdita do rei do Congo,
tratava-se, a partir da reconquista e da memória política, da escravidão civil de toda a
sociedade muxiluanda, cujo único senhor era Sua Majestade portuguesa. Por este motivo,
nessa “espécie de escravidão”, as enunciações setecentistas deixavam evidente sua
perpetuidade por traição ao Rei. Eram, por isso mesmo, escravos ou servos à romana, do
serviço de Sua Majestade etc., mas não escravos de uma pessoa particular, de Beltrano ou de
Fulano, até o atual estágio da pesquisa, pelo menos. Mesmo que houvesse uso particular do
trabalho escravo ou outra forma de trabalho forçado dos muxiluandas, a justificativa da sua
escravidão recaía na prerrogativa real de reconquista.47
46
AHU, A, Cx. 87, doc. 68.
47
Para uma comparação no Reino de Angola, vide THORNTON, John K. “Central African Names and African-
American Naming Patterns.” The William and Mary Quarterly, 50, 4, 1993; FERREIRA, Roquinaldo. Cross-
Cultural Exchange in the Atlantic world: Angola and Brazil during the era of the slave trade. Cambridge:
Cambridge U. P., 2012; SANTOS, Catarina. M. Les mots e les normes juridiques de l`esclavage dans la colonie
Um exemplo desta escravidão civil ao rei de Portugal se observa em uma petição, de
27 de agosto de 1736, enviada pelo ouvidor geral e provedor da fazenda real, Lourenço de
Freitas Ferraz e Noronha, ao próprio monarca luso. Ele argumentou que os “pretos
Muxiluandas” foram condenados por sentença à “escravidão perpétua” por “se rebelarem à
Coroa, subjugando-se aos holandeses”, o que os tornava “sujeitos a se empregarem em tudo o
que se lhes ordena de Vossa Majestade”. Dos muxiluandas, os governadores costumavam, há
“muitos anos”, empregar oito a cada mês no “serviço de sua casa” e no escaler, quando
trabalhavam para o rei, recebendo seu pagamento mensal custeado pela própria fazenda real.
Contrariado, Lourenço Noronha afirmou que, ao chegar a Luanda como ouvidor e provedor
da fazenda, percebeu que a tenuidade do seu “ordenado (respeitando a carestia da terra)” não
era suficiente para “comprar escravos” que lhe conviessem. De tal modo, pediu ao governador
Rodrigo César de Menezes que lhe desse “seis dos ditos muxiluandas para o serviço” de sua
“casa” e do escaler no qual frequentemente embarcava para fiscalizar o movimento dos
navios. No entanto, ao contrário do govenador, reclamou que era ele próprio ouvidor quem
fornecia o sustento mensal aos muxiluandas, mas com os mesmos custos que a fazenda real
despendia com os que trabalhavam para o “Governador”. Essa diferença de tratamento não
lhe agradava e assim pediu que a fazenda real também arcasse com o sustento dos
muxiluandas que o serviriam. 48
O ouvir/provedor adicionou que o ordenado do governador era maior do que o seu e
que raramente o capitão-general se valia “dos ditos Muxiloandas no escaler”, enquanto ele o
fazia assiduamente por serem necessários à sua ocupação. Acrescentou ainda como
argumento a necessidade do trabalho dos muxiluandas, “não em utilidade do meu serviço,
mas sim do de Vossa Majestade, e do público”, especificamente o despacho dos navios a que
era obrigado a vigiar. À vista do exposto, o ouvidor requereu que o rei mandasse que a real
fazenda pagasse a “subsistência dos ditos Muxiloandas” que lhe “serviam”. Baseado na ideia
de escravidão perpétua do grupo, solicitou ainda que a fazenda real também pagasse o
sustento dos que trabalhassem para “os futuros Ouvidores, na mesma forma em que se paga

portugaise d`Angola aux XVIIe et XVIII e siecles (les mucanos comme jugmentes de liberte). Brésil(s): Cahiers
du Brésil Contemporain. Paris: EHESS/CRBC/Maison des Sciences de l`homme, 2012, pp. 139-144; CURTO,
José C. As if from a free womb: baptismal manumissions in the Conceição Parish, Luanda, 1778-1807.
Portuguese Studies Review 10 (1), 2002; CANDIDO, Mariana. An African slaving port and the Atlantic world.
Benguela and its Hinterland. Cambridge: Cambridge U. P., 2013; OLIVEIRA, Vanessa S. The Donas of Luanda,
c. 1770-1867: from Atlantic slave trading to ‘legitimate’ commerce. Dissertation (Doctor of Philosophy),
Toronto: Ontario, York University, 2016.
48
AHU, A, Cx. 28, doc. 23.
aos que servem aos governadores”, e tal graça real devia retroceder ao “tempo em que entrei a
servir este lugar em diante”.49
Em 27 de agosto de 1736, o caso chegou ao conselho ultramarino que o encaminhou
para as vistas ao procurador da fazenda, que protocolarmente solicitou, em 1 de outubro do
mesmo ano, parecer do governador de Angola com cópia de sua ordem sobre o assunto. O
governador indeferiu a solicitação do ouvidor/provedor com os argumentos de que cada um
devia sustentar os cativos de sua casa, que não se devia examinar o que já era estabelecido e
que, se fosse atendida a súplica “dos provedores, a pedirão também os mais ministros”, como
se experimentou no Brasil com o sustento dos cavalos. Central, no entanto, foi a alegação do
governador de que sua exclusividade para o desfrute dos serviços do grupo pagos às custas da
fazenda real se respaldava na “maior prerrogativa do seu lugar”.50
A escravidão civil dos muxiluandas ao rei de Portugal se revela aí de forma exemplar.
Toda a argumentação do ouvidor deu relevo às obrigações ocupacionais de seu cargo, mesmo
em sua casa, bem como o pagamento dos muxiluandas em prol do emprego público e do
serviço ao rei, não do seu serviço particular. O indeferimento do governador, por sua vez,
amparou-se, principalmente, em seu privilégio oriundo de lugar-tenente do rei de Portugal no
reino de Angola: a maior prerrogativa do seu lugar. Como a traição era um ato contra o rei
ou o estado, cabia apenas ao seu lugar-tenente em Angola a exclusividade dos serviços dos
muxiluandas providos pelo erário régio e a decisão sobre a permissão para o usufruto do
trabalho dos escravos perpétuos. O privilégio de ser servido e o de definir para quem eles
trabalhariam reforçavam, portanto, o próprio poder governador como maior preposto do rei
perante outras autoridades, tal como robusteciam o poder do próprio rei de Portugal em
Angola. Não foi sem azo que o conselho ultramarino e o procurador da fazenda em Lisboa
incumbiram ao governador a deliberação sobre a matéria. Disso sabia até o ouvidor/provedor
porque dirigiu a carta ao rei para que o governador autorizasse a petição.
Em resumo, pelas palavras do governador, do rei, do ouvidor/provedor, do conselho
ultramarino, do procurador da fazenda, o consenso era o de que a escravidão eterna dos
muxiluandas era civil e devida ao rei, não era doméstica e não se justificava religiosamente.
Aquela “espécie de escravidão” era fruto da reconquista e se atrelava a questões de memória
política e de razão de Estado.
Talvez também por questões de razão de Estado, a traição dos muxiluanda guarde
ainda um outro ponto bastante singular, em termos de jurisdição e jurisprudência: a própria

49
Idem.
50
Idem.
condenação à pena de escravidão perpétua. Este tipo de condenação foi inovador51, ao menos
ela fugia ao previsto nas Ordenações Filipinas no que tange ao crime de lesa majestade. Pena
de morte, por enforcamento, por degola52, por morte natural, com execuções públicas
teatralizadas etc., eram recorrentes na monarquia portuguesa dos séculos XVII e XVIII,
inclusive no Reino Angola.53 Mas não há certeza se foi aplicada ao grupo. Evidentemente,
pode ser que a pena de não enforcamento dos muxiluandas se devesse a questões político-
demográficas (muitos a executar54 em uma região estratégica: a entrada da cidade) e ao fato de
terem agido como súditos do rei do Congo, não de moto próprio. Poderia ser, também, a
afirmação de poder da coroa sobre os outrora aliados de seus inimigos, sendo exemplar nesse
sentido para todo o reino de Angola – ou mesmo o perdão à pena de morte, porque para
perdoar e punir é preciso exercer poder. De qualquer maneira, o ato de traição dos
muxiluandas no meado do século XVII impôs-lhe uma pena única reiteradamente
reconstruída pela memória por mais de um século e meio. Não encontramos, até o momento
da pesquisa, nenhum outro grupo político contrário aos portugueses que tenha sido condenado
à escravidão perpétua no Reino de Angola e cuja memória fosse danada ao longo dos
setecentos. Como dissemos, a escravidão perpétua se inscrevia na danação da memória, mas
somente se os traidores por crime de lesa majestade estivessem mortos antes de sua
condenação. Mas os maxiluandas descendentes dos traidores carregaram a danação da
memória dos ascendentes (executados ou não), danação associada à escravidão perpétua, à
obrigação de servir. Mesmo que tenham sido condenados à morte nos seiscentos, ainda assim
a difamação da memória na forma de escravidão perpétua era exclusiva aos maxiluandas.
Mas era, sobretudo, uma escravidão quase estritamente civil.
Assim, afora a acepção político-religiosa do que implicava a traição – desamor e
inimizade desagregadores da sociedade civil-religiosa –, para se criar e delimitar os
muxiluandas como grupo político também se acionou uma condenação a uma única “espécie
de escravidão”. A ideia de escravidão perpétua, portanto, também definiu as fronteiras
externas (de fora para dentro) do que seriam os muxiluandas: escravos civis.

51
Ainda que guarde semelhanças com outras justificativas de guerra justa, vide, para uma comparação com o
Brasil indígena, cf. PERRONE-MOISÉS, Beatriz. “Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação
indigenista do período colonial (séculos XVI a XVIII)”. In CUNHA, Manoela Carneiro da (org.). História dos
Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992; RUIZ, Rafael. Francisco de Vitória e os direitos dos
índios americanos. A evolução da legislação indigenista castelhana no século XVI. Porto Alegre: EDIPUCRS,
2002.
52
Elias Correa se refere a 14 sobas “traidores” degolados, II, P. 266 QUANDO?
53
Cf. ABRAHÃO, Degredos e degredados, 2018.
54
Mas isto não se aplica a todos. Tropas portuguesas teriam matado, em 1642, oito mil pessoas de um sobado
avassalado que mudou de lado. Araújo, Não há couza, 2020, p. 54.
Isso tem uma lógica coerente porque, em termos de vocabulário religioso da
escravidão católica, a expressão “escravidão perpétua” era quase uma contradição em termos,
haja vista que a escravidão de base católica era considerada como uma purgação do pecado
oriundo da própria escravidão. A escravidão cristã era fruto do pecado e a alforria podia
representar sua remissão. Para ser perpétua, a escravidão não poderia ser justificada
religiosamente se houvesse a perspectiva de purgação do pecado, de perdão, da remissão.
A propósito, o padre Raphael Bluteau afirma que escravo forro era:
aquele a quem o seu próprio senhor tem dado a liberdade. Manumissus (...)
Escravo forro (quando já não se atende à pessoa, que lhe deu a liberdade).
Libertus, ou libertinus (...). Escrava forra. Liberta, ou libertina (...). O Estado
de escravo forro. Libertinitas, atis (...). Deixar no testamento o escravo forro.

Até aí o padre Bluteau se ateve a questões civis, mas ele sabia das dimensões
religiosas da escravidão e da alforria de uma monarquia católica e por isso não encerrou nos
significados não cristãos romanos as razões que levavam à liberdade. De tal modo, definiu
liberto como “escravo forro. Escravo que tem carta de alforria. Libertinus”, ao passo que o
“filho do liberto” era o “libetinus”. Por fim, e principalmente, o padre remeteu à purgação do
pecado que conduzia à alforria, à remissão do cativeiro:

Amar a Deus, porque nos remio, é tributo de libertos. 55

O tributo do liberto era uma obrigação religiosa associada ao primeiro dos dez
mandamentos: amar a Deus sobre todas as coisas. Daí, na própria definição vocabular de
liberto se reservava espaço para uma esfera religiosa. Nestas condições, a alforria era, de fato,
uma purgação do pecado da escravidão, uma remissão do cativeiro. 56 Logo, por motivos de fé
católica a sujeição escrava era potencialmente transitória, até porque a eternidade cristã
implicava uma dimensão espiritual além do mundo dos vivos. A morte terrena, também,
findava com a escravidão, mas só se a escravidão não fosse eterna. Antes do mundo do além,
contudo, a potencialidade da alforria associada a motivos religiosos também se materializava
no fato de os senhores frequentemente alegarem os bons serviços, incluindo a obediência (um
dever cristão), como justificativa para alforriar seus escravos.
Evidentemente, nada disso esgota a explicação sobre as alforrias católicas, mas ajuda a
entender porque a escravidão dos muxiluandas fora de foro civil e porque ela, assim

55
BLUTEAU, Vocabulário Português, 2000 [1712-1727].
56
SOARES, Márcio de Sousa de. A Remissão do Cativeiro: a dádiva da alforria e o governo dos escravos nos
Campos dos Goitacazes, c.1750 -c.1830. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009.
concebida, podia ser perpétua. Poupados da pena de morte, restou-lhes a escravidão eterna
sempre rememorada, cujas razões, coerentemente, não podiam ser religiosas.
Entretanto, tudo muda, até a perpetuidade.

O mercado de peixe, a fazenda real e os serviços muxiluandas


Naquela mesma carta de 26 de abril de 1798, o governador Miguel Antônio de Melo,
apesar de se reportar à memória política retroalimentada sobre os muxiluandas, também
mencionou sua submissão escravista circunstancial. Logo depois de dizer que os muxiluanda
estavam submetidos, “por mais de um século” àquela “espécie de escravidão”, ele acrescentou
que, no “princípio”, ela era “talvez custosa”, porém, “depois”, em dado momento, ela se
tornou “ou pouco advertida ou pouco estranha a seus gênios, costumes e interesses”. 57 Não
sabemos os critérios do governador para definir as fases da escravidão eterna dos
muxiluandas, porém ele indica que ela foi se modificando por obra dos próprios escravizados,
que a julgavam estranha às suas personalidades (gênios), aos seus costumes (tipos de sujeição,
ou à sua própria escravidão, talvez) e aos seus interesses. Neste último quesito reside algo
importante, porque se supõe que a escravidão devia interessar aos que a sofriam, o que, por
sua vez, sugere negociação das condições do que autoridades portuguesas chamavam de
escravidão58, o que analisaremos adiante. Por ora, cumpre perscrutar como o resultado do
trabalho forçado dos muxiluandas, na condição de servos, de escravos, de negros de obrigação
do rei etc., impactava na própria arrecadação da fazenda real em Angola e no mercado de
peixe da cidade de Luanda.
O propósito daquela carta do governador Miguel Antônio de Melo ao ministro em 26
de abril de 1798 era regular o fornecimento de peixe para a cidade, que então sofria com sua
falta e sua carestia (alta do preço), ainda mais porque Luanda atravessava uma crise de fome
em 1798-99.59 Segundo o governante, a maior ocupação dos muxiluandas sempre fora a pesca,
o que acarretava “abundância de sustento” ao povo, a muitos “do sertão” e ainda convinha ao
comércio.60 Os muxiluandas se diferenciavam de outros ambundos “precisamente pelo
exercício da sua atividade econômica principal: a pesca”.61 Embora o critério econômico não
fosse o único a caracterizá-los, de fato o peixe por eles pescado chegava até mesmo ao Brasil,
seco ou salgado, onde era “estimado, não por sadio, mas por gostoso e de alheios mares”.62 Ou
57
AHU, A, Cx. 87, doc. 68.
58
Sobre formas de negociar as condições da escravidão, vide Eugénia, Reis, etc. COLOCAR AS NOTAS E
59
Venâncio, A economia de Luanda, p. 75.
60
AHU, A, Cx. 87 doc. 68.
61
Venâncio, A economia de Luanda, p. 95.
62
AHU, A, Cx. 87, doc. 68
seja, no Brasil os pescados à muxiluanda eram reputados como iguaria alimentar. Nos sertões
de Angola, os peixes salgados eram cruciais para a alimentação das tropas e dos comerciantes,
e chegavam aos presídios.63 Em Luanda, entretanto, era um componente da dieta básica
porque de sua “abundância nascia a barateza”. 64 Com 50 mil réis, uma família de 12 pessoas
se saciava à farta com o peixe fornecido pelos muxiluandas, como se testemunhava ainda em
1783.65
Em síntese, o peixe era um alimento de “primeira necessidade, tanto pelo consumo da
capital, como pelo que se embarca nos Navios de Escravatura e se encaminha para o
Sertão”66, e os muxiluandas eram indispensáveis para suprir diferentes demandas de peixe. 67 O
pescado maxiluanda ia dos sertões de Angola ao Brasil, fazia parte de um mercado global.
No entanto, como eles estavam sempre “constrangidos a maiores” e “continuados
serviços” que costumam prestar, despovoaram as ilhas e abandonaram as pescarias, o que,
(in)evitavelmente68, provocou falta de peixe na quitanda luandense e alta de preços. A carestia
era de tal monta que se comprava por 600 réis em 1798 o que se adquiria pela duodécima
parte em 1783, disse o governador.69 Fazendo as contas, o que se adquiria a 600 réis em 1783
se obtinha a 7.200 em 1798. Tratava-se de uma inflação 120% em 16 anos, 7,5% ao ano em
média, cumulativamente.
Todavia, se, por um lado, o preço do peixe subia, por outro a arrecadação real com a
atividade pesqueira declinava. Assim, os efeitos deletérios não recaíam apenas sobre o
mercado de peixe. O erário régio deixava de arrecadar porque o valor do contrato da dízima
do pescado não compensava aos arrematantes. Todas “estas coisas juntas” contribuíram para a
“diminuição que da real fazenda” em 1798, o que fez o governador tomar medidas para
repovoar as ilhas e tentar regular o trabalho dos muxiluandas na pescaria.70
De fato, o valor da arrecadação da fazenda real com os dízimos do pescado apesentou
tendência declinante em fins do século XVIII. Em 29 de março de 1798, obedecendo a uma

63
Idem. Filho de Baltazar Van Dun, casado com a filha maxiluanda do mani-Luanda, Rodrigo montou um
negócio de salgar e secar peixe. Esse “peixe salgado ou seco, conforme o gosto, podia ser vendido aos barcos e
para alimentação dos escravos da cidade. E o resto trocado no interior por escravos”. Pepetela, A gloriosa
família, (p. 111.
64
AHU, A, Cx. 87 doc. 68
65
AHU, A, Cx. 87 doc. 67.
66
BML, Códice 24, fls. 91.
67
Venâncio, A economia de Luanda, p. 75-95.
68
Nem sempre a carestia se associa à alta de preços porque a economia moral etc. travam o laissez-faire.
POLANYI, Karl. A Grande Transformação. Rio de Janeiro: Editora Compus, 2002 [1944]. THOMPSON,
Edward P. Costumes em comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras,
1998, Capítulos 4 e 5.
69
AHU, A, Cx. 87, doc. 68.
70
Idem.
portaria do governador, Antônio José Manzoni de Crasto, contador geral e deputado da junta
da arrecadação e administração da real fazenda em Angola, avaliou, com base no arquivo da
junta, os valores arrecadados com o dízimo do peixe. Salientou as oscilações de preços do
contrato da dízima e as causas públicas que acarretaram a diminuição do “patrimônio régio”.
Para os triênios de cada período do contrato, salvo para o interregno entre 1700 e 1785,
quando o rendimento anual da dízima foi de 550$000, o contador geral arrolou os valores
anuais. As arrecadações anuais para cada triênio foram: 855$000 de 1786 a 1788; 1:666$666
de 1789 a 1791; 930$000 de 1792 a 1794; 930$000 de 1795 a 1797; e de 1798 a 1800 no
valor de 800$000 cada ano, além do 1% para obras pias à custa dos contratadores, o que
vigorava desde 1789.71
No entanto, não nos iludamos com os números, porque nem mesmo a aritmética
política72, expressão muito comum a partir da época pombalina, podia não ser tão exata, e
ainda mais os cômputos da fazenda real relacionados a um mercado não regulado pela lei da
oferta e da procura. O contador argumentou que de todo aquele referido, “na verdade se
mostra que o maior rendimento” fora de 885$000 de cada um dos anos de 1786 a 1788, e o de
1:666$666 relativos a cada ano do biênio de 1789 a 1790, ao passo que o menor rendimento
era o de 800$00 do “contrato atual”. Ao explicar as oscilações dos valores, o deputado da
junta asseverou que as “intrigas” e o “orgulho de seus lançadores” motivaram a elevação do
valor no triênio findo em 1788, ao preço de 885$000 por ano. Porém, passados alguns dias da
arrematação, um dos lançadores ofereceu à fazenda real mais um terço do valor contratado, o
que a junta indeferiu por conhecer que o objetivo da oferta era “arruinar o arrematante, além
de se não dever ofender a fé pública com que se tinha feito uma arrematação, conforme a lei”.
Preservar o arremate, mesmo feito por orgulho, era uma questão de manter o contrato social, a
fé pública. Além disso, a junta também reconheceu que, no triênio de 1789 a 1791, “era
excessivo o preço” de 1:666$666 em que se arrematara cada um dos anos. 73 Assim, o
deputado demonstra que o reino de Angola não era uma sociedade baseada na lei da oferta e
da procura porque intrigas, orgulhos e noções de justiça interferiam nos preços, não as
simples demanda e oferta.
Traduzindo, os valores eram cambiantes, algo bastante comum a quaisquer mercados
pré-industriais, sobretudo porque o abastecimento de cidades coloniais era, frequentemente,
uma questão política.74 A falta de peixe e a carestia também remetiam a contendas políticas
entre os arrematantes, e até ao titubear sobre os valores do triênio de 1789 a 1791. Isto
71
AHU, A, Cx. 87, doc 53.
72
AHU, Códice 555.
73
AHU, A, Cx. 87 doc 53.
também significa dizer que os preços dos peixes fornecidos pelos muxiluandas estavam
imbricados a conflitos políticos entre arrematantes e a negociações destes com a fazenda real
em Angola.
Porém, o diagnóstico para a queda da arrecadação real em 1798 era único, preciso, e
não se ligava a questões de conflitos entre arrematantes. Se as variações dos valores dos
contratos nos triênios anteriores tinham causas diversas (orgulho, intriga, falta de peixes, etc.),
o valor de 800$000 por ano do “contrato atual” de 1798, “menor que os dos mais anos”, se
devia à “constante, pública e notória a falta de pescadores e dos aparelhos com que tramam as
suas redes”.75 Em síntese, faltavam pescadores muxiluandas e instrumentos de trabalho para
sua pesca.
Sendo assim, uma vez que os muxiluandas eram condenados à escravidão perpétua e
forçados a trabalhar para o rei português, por que não se lhes impôs a obrigação de pescar e
abastecer a cidade?
Ainda que duvidemos da avaliação singular do deputado da junta para o ano de 1798,
porque ela foi elaborada sob encomenda do governador, cujo propósito era legislar sobre o
mercado de peixe, não se pode perder de vista que a escravidão dos muxiluandas era de
determinada “espécie”, era uma escravidão diferente porque, ainda que perpétua, não deixava
de ser, também, circunstancial. Com efeito, alegar falta de muxiluandas e de instrumentos de
pesca servia de base argumentativa para o governador Miguel Antônio de Melo justificar suas
medidas. Ele podia estar mentindo ou exagerando, mas mesmo a mentira, para pegar, precisa
ser plausível. Realmente, podia faltar trabalhador maxiluanda na pesca.

BML- Colocar depois

De espécie de escravidão a serviços de práticos


Com o diagnóstico da falta de maxiluanda na pesca em sua cabeça, no mesmo ano de
1798 Miguel Antônio de Melo tomou providências para reativar a atividade pesqueira. Porém,

74
Polanyi, A grande transformação; Thompson, Costumes em comum; SIMÕES FILHO, A. M. Política de
abastecimento na economia mercantil. O celeiro público da Bahia (1875-1866). Salvador: UFBA-PPGHIS, Tese
de Doutorado, 2011; PEREIRA, A. Poder Local e vida cotidiana (Salvador, século XVIII). Vitória da
Conquista: Edições UESB, 2013; GRAHAN, R. Alimentar a cidade. Das vendedoras de rua à reforma liberal
(Salvador, 1780-1860). São Paulo: Companhia das Letras, 2013; POETTERING, Jorun; RAMOS, Gefferson
Rodrigues. (Org.). Em benefício do povo: obras, governo e sociedade na cidade colonial. Rio de Janeiro: Mauad
X, 2016, p. 202-219; GUEDES, Roberto. O terreiro público e o senado da câmara: conflitos entre poderes locais
(Luanda, fins do século XVIII). In: Carla Maria Carvalho de Almeida. (Org.). Diálogos com o império: câmaras
ultramarinas e comunicação política na monarquia pluricontinental portuguesa (séculos XVII e XVIII). 1ed.,
2019, p. 297-332.
75
AHU, A, Cx. 87, doc 53.
ele disse que a falta de muxiluandas se devia ao fato de eles estarem em outras ocupações.
Sendo o caso, que outras atividades desempenhavam e sob quais relações de trabalho?
Com efeito, a falta de pescadores e de instrumentos não era específica ao ano de 1798,
posto que pelo menos desde 1789 se aludisse a ela. 76 Em 1798, porém, atravessava-se uma
crise de fome em Luanda, e neste mesmo ano o próprio tráfico de cativos a partir do porto
luandense já não era mais o mesmo de anos anteriores. Benguela, aliás, rivalizava com
Luanda como porto fornecedor de escravos ao Brasil naquele mesmo ido de 1798.77 Foi neste
contexto que, ao se reportar a Dom Rodrigo de Souza Coutinho, em 1798, Miguel Antônio de
Melo fez importantes considerações sobre o trabalho forçado dos “negros maxiluandas”,
relacionando-o à memória, ao mercado de peixe, à fazenda real etc; e à sua condenação
perpétua a que “ficassem obrigados a assistir nas coisas do real serviço, com a condição de
servos e modo de escravidão que os Romanos inventaram, e algumas Nações europeias ainda
hoje conhecem e conservam”.78 Não deixa de ser curioso que o governador caracterizasse o
grupo como obrigados a servir a coisas do real serviço, à condição de servos e modo de
escravidão que os romanos inventaram, mas que, porém, contudo, entretanto, como que quase
se desculpando, nações europeias do século das luzes ainda conheciam. Não se referiu a eles
apenas, e principalmente, como “escravos”. Foi a partir daí que ele frisou que, por “mais de
um século têm os ditos Negros vivido nesta espécie de escravidão, ao princípio talvez custosa,
porém depois ou pouco advertida ou pouco estranha a seus gênios, costumes e interesses”.79 A
espécie de escravidão implicava uma escravidão diferente, cujos serviços forçados eram:
tripular embarcações reais, trabalhar nas obras públicas, servir a “alguns particulares” – tudo
indica que seriam alguns mesmo, e, como se viu, com a necessária anuência do governador. 80
Há vários exemplos, de fato, de atividades não pesqueiras dos muxiluandas. O governador
Antônio de Lencastre, preocupado com as questões em torno da História Natural e para o bem
do serviço real, enviou um elefante para o reino de Portugal em 1763, frisando que o bicho ia
“muito doméstico, criado com o sustento ordinário do campo” e que nunca havia bebido
vinho, talvez uma técnica para domesticá-lo. Para o trato do animal durante a viagem ia junto
a ele “um negro forro Mixiluanada, que sempre lhe assistiu”, e que era “obrigado ao serviço
de Sua Majestade como os mais da dita Ilha com o ânimo de recolher-se no primeiro navio
das companhias” de comércio da época pombalina.81 Aí, o maxiluanda era “negro forro”
76
Idem.
77
AHU, A, Cx. 87 docs. 67 e 68.
78
Idem.
79
Idem.
80
Idem Idem..
81
AHU, A, Cx 47, doc 59.
obrigado ao serviço do rei, não era escravo. Uma das obrigações dos muxiluandas, portanto,
era domesticar elefantes, o que sugere que também poderiam estar envolvidos com sua caça e
com a produção de marfim.82 Este serviço, decerto, extrapolava os limites das ilhas de onde o
grupo era originário.
Os muxiluandas, porém, não apenas pescavam, salgavam peixes, serviam nos
escaleres, na casa do governador ou na de poucos particulares. Lidavam também com a
navegação costeira, entre Cabinda e Luanda, talvez, como notaremos adiante, mas,
certamente, entre Luanda em Benguela. Em 1772, o governador Francisco Inocêncio de Souza
Coutinho mandara um ofício ao secretário de Estado da Marinha e Ultramar sobre uma nau
holandesa Beckvliet, que era um “navio grande” em situação precária, sem água e
mantimentos e com muitos 200 mortos a bordo. Os sobreviventes eram 49 “espectros”,
“restos de gente”, socorridos por uma embarcação de “Sua Majestade” que seguia para
Benguela.83 Não há especificação se a embarcação real fazia o trajeto Lisboa-Benguela, mas
pode-se supor que muxiluandas navegavam na rota marítima entre estas cidades e entre
Lisboa e Luanda, provavelmente passando pelo Brasil. No caso em questão a embarcação era
de Sua Majestade, mas o muxiluanda que fora para Portugal a tratar do elefante na viagem
embarcou em um navio de alguma companhia de comércio. Para esse fim, em 1763 Antônio
Lencastre disse que o “negro forro maxiluanda” viajaria a bordo do “primeiro navio das
companhias, permitindo-lhe essa mercê”. 84 Em 1764, quando Francisco Inocêncio de Sousa
Coutinho quis reduzir despesas da fazenda real com fretes, afirmou que elas “ficariam de
graça, pelos que daqui podia levar, sendo a equipagem composta de Negros Mixiluandas,
escravos de Sua Majestade”.85 Como se vê, os maxiluandas, preferencialmente vistos como
escravos do rei, prestavam serviços em naus reais e, se houvesse permissão, também em
embarcações particulares.
Outrossim, a importância dos muxiluandas no serviço real se evidencia em uma
missiva do governador José de Almeida Vasconcelos (1784-1790), Barão de Moçâmedes, ao
capitão e cabo da Barra do Bengo, José Ferreira da Silva, em 12 de novembro de 1788. O
governador ordenou que todas as embarcações que saíssem do rio Bengo com mantimentos
destinados ao Terreiro Público de Luanda seriam acompanhadas de um muxiluanda que
deveria presenciar a entrega do mantimento no terreiro. 86 Tratava-se da tentativa de controle

82
Nota para marfim, se o editor permitir por causa do tamaho.
83
AHU, A, Cx. 56, docs. 10, 13.
84
AHU, A, Cx 47, doc 59.
85
AHU, A, Cx. 48, doc 47.
86
PADAB DVD10,21 DSC00172 Códice 283-C-17-2
de abastecimento de alimentos, o que requeria a confiança no serviço de fiscalização dos
muxiluandas.
Essa confiabilidade depositada nos muxiluandas se aponta também em um pedido
feito pelo governador da capitania anexa de Benguela, Alexandre José Botelho de
Vasconcelos, em 7 de janeiro de 1799. Botelho solicitara ao governador do reino de Angola,
Miguel Antônio de Mello, uma lancha “capaz” e “forte”, já que antiga fora destruída. O
governador de Benguela reforçou seu argumento e disse que era “obrigado” a comunicar ao
governador de Angola que para a conversação da lancha era necessário que de “seis em seis
meses” se deslocasse da “capital” para Benguela “seis Muxiluandas” para o serviço da lancha,
como se praticava no tempo do governo de Manoel de Almeida e Vasconcelos (1790 a 1797).
Em Benguela se precisava de peritos maxiluandas “por não entenderem de remo os negros
que aqui há”, como lhe representara “o mesmo Mestre”. A autoridade em Benguela suplicara
à “Vossa Excelência” que se dignasse a mandar os seis maxiluandas, entre os quais “um que
entenda de Calafate”.87 Explicitamente, o comércio de cabotagem entre Luanda e Benguela,
que inclusive dava base ao tráfico de cativos, posto que de Benguela iam cativos para
Luanda88, de onde eram remetidos às Américas, requeria serviços náuticos de maxiluandas.
Na verdade, a falta de maxiluandas causava prejuízos para ambas as cidades costeiras
(Luanda e Benguela) naqueles fins do século XVIII, pelo menos era o que se dizia. Vimos
que, em 1798, Miguel Antônio de Melo e o deputado da junta alegavam que a falta de
maxiluandas ocasionava inflação de preço, carestia de peixes e perda de arrecadação à
fazenda real. Similarmente, em Benguela, o governador afirmou que a perda da lancha
anterior se deveu à falta de experiência do “Mestre branco”, o que gerou a sua dispensa. Em
seu lugar, o contramestre “preto”, que recebia 200 réis por dia, também não demonstrou a
experiência necessária para a condução da lancha. Além da ausência de trabalho
especializado, as queixas também incidiam sobre o estrago de mercadorias porque a lancha
chegara “carregada da cal”, mas por causa da “grande calema” 89 não foi possível descarregá-
la. Pior foi que “arrojou a lancha à praia”, o que levou à perda da cal, e ela ainda “desatracou

87
PADAB DVD13,40 BR RJIHGB 126 DSC00399 Códice 256-C-11-3
88
Um mapa em forma circular contém um “resumo dos escravos exportados de Benguela para a América nos
cinco anos sucessivos de 1789 a 1793 e que pagaram os direitos à Sua Majestade, não compreendendo os
escravos que de Benguela vão para Angola dos quais (pelo menos) 2/3 passam à América a pagam direitos”. De
Benguela às Américas teriam saído 38.578 cativos e 46 crias no período, sobretudo para o Rio de Janeiro. AHU,
Cx. 79, doc. 67. Sobre o tráfico negreiro entre Benguela e Brasil, ver Curto, Mariana e Cruz e Silva, se houver
espaço.
89
Calema era “a maresia exaltada” que prejudicava a navegação nos rios necessária ao abastecimento de
alimentos das cidades. CORRÊA, História de Angola, 1937, Vol I, pp. 118-119.
bastantemente”, quebrando-se. Seria “bem dificultoso o seu conserto” porque se carecia de
quem o fizesse, principalmente “Calafate”, e de materiais adequados nos armazéns reais.90
Como se vê, o governador de Benguela reconhecia a necessidade, a experiência e a
especialização do trabalho naval dos muxiluandas, pois somente eles seriam capazes de sua
prestar esses serviços, inclusive a lida com manutenção das embarcações. 91 Certamente, sua
sabedoria laboral como pescadores e canoeiros os transformou em importantes marinheiros e
artesãos no serviço naval real. Entre as autoridades governantes, e certamente não apenas
entre elas, havia uma visão compartilhada sobre o papel central dos maxiluandas para a
viabilização da navegação nos reinos de Angola e de Benguela. Por isso mesmo, a solução
para o socorro do navio grande holandês também incidiu sobre um muxiluanda.
Aquele ofício do governador Sousa Coutinho de 1772 fora baseado em uma carta dos
capitães do navio de Sua Majestade e em uma devassa sobre o episódio. Saída de Amsterdã, a
embarcação holandesa da Companhia da Ásia se destinava a este continente, porém nas
proximidades de Tafelbay – ou Table Bay, uma baía natural no extremo norte da Península
do Cabo, na atual África do Sul92 – uma moção a impediu de aportar, mesmo depois de lutar
três meses contra terríveis tempestades. Desesperados, os comandantes da embarcação
ficaram à deriva pela costa no sentido contrário, até que por “fortuna” encontraram uma
embarcação real que ia para Benguela. Os holandeses deram sinais e pediram em socorro que
fossem conduzidos a Luanda.93
Amparar um navio estrangeiro era uma questão entre estados. É fato que não se tratava
de embarcações capitaneadas por franceses e ingleses em suas tensas relações geopolíticas
com os portugueses ao Norte de Luanda entre o último quartel do século XVIII e inícios do
século XIX94, mas de uma nau holandesa, nação outrora inimiga dos portugueses. Ademais, a
Guerra dos Sete Anos (1756-1763) ainda era fresca na memória dos governantes e, conquanto

90
PADAB DVD13,40 BR RJIHGB 126 DSC00399 Códice 256-C-11-3 [PADRONIZAR CITAÇÕES DO
PADAB]
91
O trabalho de calafates e artesãos mestres nas ribeiras era crucial à navegação atlântica e de cabotagem. Cf.
SILVA, Henrique Nelson da. O paradoxo do trabalho: o corporativismo artesanal e as trajetórias de vida dos
oficiais mecânicos, século XVIII. Recife, UFPE, PPGHIS, Tese de doutorado, 2018, capítulos 2 e 4; MARTINS,
João Furtado. Os carpinteiros na inquisição de Lisboa no século XVIII: trabalho, sociabilidades e cultura
material. Librosdelacorte.es, Monográfico 6, año 9, 2017.
92
VVAA, AHU, Catálogo parcial do fundo do Conselho Ultramarino da série Angola, 2014-2017, p. 904.
93
AHU, Cx. 56, docs. 10, 13.
94
Havia conflitos ao Norte de Angola envoltos à geopolítica europeia e, sobretudo, aos interesses dos poderes
africanos, nomeadamente o soba Mambuco, o Marquês de Mossul e o Dembo Nambuangongo. Vide CRUZ,
Ariane Carvalho da. Militares e militarização no reino de Angola: patentes, guerras, comércio e vassalagem
(segunda metade do século XVIII). Seropédica, UFRRJ, PPHR, Dissertação de Mestrado, 2012; Guerras nos
sertões de Angola: sobas, guerra preta e escravização (1749-1797). Rio de Janeiro: UFRJ, PPGHIS, Tese de
Doutorado, 2020; OLIVEIRA, Marcelo Rodrigues. Divisão Naval da Costa d'Leste: a expansão da Guerra
Cisplatina para o litoral africano (1825-1830). Seropédica, UFRRJ, PPHR, Dissertação de Mestrado, 2017.
Portugal e Holanda não tenham sido seus grandes protagonistas, a questão do navio se
relacionava à “fé dos Tratados e ao Direito da Hospitalidade”, como realçou o governador de
Angola, o que o colocava no “mais horrível embaraço”, por estas razões, e também por ter
que tomar decisões sobre os destinos do navio e dos tripulantes. Os holandeses queriam fretar
ou comprar uma pequena embarcação para conduzi-los a Tafelbay, de onde regressariam com
ajuda para recuperar seu navio grande, mas o governador português não consentiu porque
havia várias “ordens antigas” que proibiam esta navegação, talvez tão antigas quanto a guerra
contra os holandeses nos seiscentos. Assim, apesar de o caso ser “insólito e estranho”, ele
sentenciou: “eu me não arrisco a tomar sobre mim este peso”.95
Em contraproposta, Sousa Coutinho ofertou aos holandeses que seus oficiais
passassem a um navio português capitaneado por portugueses que rebocasse a nau avariada ao
Brasil, onde havia portos com mais infraestrutura e facilidades para executar as ordens reais
sobre o assunto. Do contrário, os holandeses esperariam um ano e meio por outra decisão. O
desfecho do episódio fica para outra ocasião porque o mais interessante é que a primeira frase
da carta que o governador de Angola escreveu ao secretário da marinha e ultramar em Lisboa
foi a seguinte: “Ilmo e Exmo Senhor / O mestre não teve outro meio de livrar-se deles mais que
dar-lhes um Muxiluanda prático, que os conduzisse como V. Ex a verá da carta inclusa”.96
Igualmente, a referida carta inclusa no desfecho do documento é explícita sobre o papel do
muxiluanda:
Ilmo e Exmo Senhor [Governador]
Na barra do Quanza [em Angola], topei com esse navio holandês [saído de
Amsterdã] e me atirou três peças para eu lhe ir falar e chegando à fala me
fizeram atracar; os achei a aguarem-se desesperados dizendo que não tinham o
que comer e nem gente e que eu lhe havia de levar o navio a São Paulo [de
Assunção de Luanda] porque eles rodavam há sete meses em o mar e que não
sabiam nada desta terra, e que assim andavam perdidos no mar; e não vi outro
modo de me desviar deles se não dar-lhe um Michuluanda por prático para
levar o navio até a capital e V Exa fazer dele o que for servido, e o dito navio
me disseram que ia para a Índia. Hoje, 17 de janeiro de 1771@
Domingos de Alvarenga Antônio Pereira
Vai com duzentas pessoas mortas.

Basicamente, Sousa Coutinho repetiu os argumentos de Domingos de Alvarenga e de


Antônio Pereira sobre a atuação do muxiluanda, que era um prático, palavra que significa
“experimentado, versado, perito, &c.”.97 O &c. (etecetera), como veremos adiante, não é

95
AHU, A, Cx. 56, docs. 10, 13.
96
AHU, A, Cx. 56, docs. 10, 13.
97
BLUTEAU, Vocabulário Português, 2000 [1712-1727].
detalhe, posto que, além de exímios marinheiros, os muxiluandas, em termos ocupacionais,
não eram apenas versados nesta atividade, e nem se resumiam também a exímios pescadores e
vendedores de peixe, o que já não era pouco.
Na lida marítima, entretanto, tudo indica que o grupo tinha fama de ser composto por
bons marinheiros. Para aquela situação de socorro tão delicada, os mestres do navio
referendaram sua decisão com base na perícia naval do muxiluanda, reconhecidamente apto a
conduzir em segurança o navio danificado e os “espectros” até a capital. Por seu mote, além
de se respaldar, indiretamente, via carta, na perícia do muxiluanda perante o secretário de
assuntos ultramarinos, Sousa Coutinho, quando negara aos holandeses a compra ou o aluguel
da nau até Telbey, argumentou também que era impossível que aqueles “restos de gente”
pudessem navegar para qualquer parte em uma nau, mas, principalmente, enfatizou que
“aqui”, no reino de Angola, “não há marinheiros que excedam a navegação do porto”, mas
mesmo que houvesse ele não lhes daria “sem expressa ordem de Sua Majestade. Depois, a sua
demora, vindo a depender da Europa, será muito larga e muito dispendiosa, fazendo um
excessivo peso à pequena guarnição do país”.98
Luanda, em suma, não teria muitas embarcações, nem muitos marinheiros à sua
disposição, ainda mais peritos. Sua guarnição se desguarneceria, leia-se, sua defesa e sua
logística naval se enfraqueceriam, até mesmo na fiscalização de contrabandos. Peritos na
cabotagem no litoral da África Central Atlântica, os muxiluandas eram especializados na arte
da navegação, inclusive militar. Eram cruciais à cabotagem nas costas do reino de Angola e
no de Benguela.
Ou será que Sousa Coutinho estava exagerando, uma vez que visava justificar sua
decisão perante o primeiro ministro em Lisboa?
Pode ser, mas os marinheiros muxiluandas também trabalhavam no escaler do
provedor desde 172099, labutavam nas embarcações do governador e nos escaleres vigilantes
do ouvidor desde 1736100, conduziam elefantes para Lisboa em navios das companhias pelos
menos em 1763 por ordem de Lencastre101, eram hábeis em fazer fretes reais ao Brasil em
1764, como dissera o próprio Sousa Coutinho. 102 Lembremos que a queda na arrecadação real
dos dízimos do peixe de 1798, segundo o contador geral Crasto, se devia à “constante, pública
e notória falta de pescadores e dos aparelhos com que tramam as suas redes”. 103 Ao que tudo
98
AHU, Cx. 56, docs. 10, 13.
99
AHU, A, Cx. 21 doc 23.
100
AHU, A, Cx 28, doc 23.
101
AHU, A, Cx 47, doc 59.
102
AHU, A, Cx. 48 doc 47.
103
AHU, A, Cx. 87 doc 53.
indica, se se carecia de pescadores muxiluandas era porque, entre outras atividades, eles
estavam na navegação, em que havia pouca gente qualificada para trabalhar nos mares
costeiros dos reinos de Angola e Benguela. Neste mesmo ano de 1798, quando o governador
Miguel Antônio de Melo quis amenizar a crise de fome, incentivar a pesca e incrementar a
arrecadação real, ele argumentou que eram os “Muxiluandas os únicos Negros que mostram
algum afeto à terra em que nasceram e se criaram” e por isso lhes custava “muito serem
tirados dela”. Por outro lado, eles desertavam de suas ilhas “unicamente porque os obrigam a
largas navegações”. Forçados ou desertores de suas amadas terras por causa das largas
navegações, a intenção do governador era que, uma vez seguros, eles viveriam quietos e
voltariam a “povoar as Ilhas”, fazendo renascer “as pescarias desta costa”.104
Fica-se por saber para onde eles fugiam. No entanto, Miguel Antônio de Melo, em
1798, concordava com Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, em 1764 e 1772, e com
Lencastre, em 1763, que os muxiluandas se empregavam em largas navegações costeira e
transatlântica. Os governadores e o contador geral sugerem nas entrelinhas, também, que a
pesca e a navegação concorriam pela mão de obra muxiluanda e que o grupo perito
desfrutasse de oportunidades de trabalho nas artes da navegação e da pesca. Será que os
muxiluandas tiraram algum proveito disso? Uma análise mais apurada desta questão ficará
para outra ocasião; por ora sabe-se apenas que a remuneração do trabalho na escravidão
perpétua dos muxiluandas – sim, era uma escravidão perpétua, mas havia pagamento pelo
trabalho, diferente do que afirmara Elias Corrêa (supra) – era maior para os que se dedicavam
à navegação. Importa, antes, ressaltar que eles também eram chamados de negros forros e
sujeitos a serviços que, aparentemente pelo menos, nem sempre eram forçados, mas
negociados, até mesmo com os prepostos do rei em Angola. Como disse Miguel Antônio de
Melo, a escravidão perpétua ia se modificando porque ela era suscetível a costumes, gênios e
interesses. Eles podiam se interessar por seu trabalho na pesca, pelo menos ganhavam mais
recursos no trabalho de navegação do que em outras atividades. Por exemplo, naquela carta de
1798, Miguel Antônio de Melo afirmou que:
(...) como quer que os Muxiluandas entrassem a ser constrangidos a maiores ou
aos mais continuados serviços dos que costumam fazer e prestar, já tripulando as
embarcações reais, já servindo nas obras públicas, já a alguns particulares, ou
porque a paga que é de estilo receberem não excede 1.200 reis, e um exeque de
farinha de mandioca por mês aqueles que aqui vivem e servem, e aos marinheiros
de 3.000 reis além da ordinária ração de caldeira do Navio, ou por outras
circunstâncias que não tenho presentes por modo que o possa com certeza
individuar, o resultado tem sido despovoarem os Muxiluandas as ilhas (...)

104
AHU, A, Cx. 87 docs. 67 e 68.
Pelas palavras do governador, os maxiluandas, além de constrangidos ao trabalho,
recebiam pouco por ele em 1798, apenas 1.200 réis mensais, inferiores aos 3.000 dos
marinheiros. Por sua vez, vimos, o governador de Benguela afirmara em 1799 que o
contramestre “preto” que ficara no lugar do mestre recebia 200 réis por dia, apesar de não ter
destreza e experiência necessárias para conduzir lanchas. Duzentos réis por dia em 20 dias de
trabalho por mês rendem 4.000 réis mensais. Não há certeza se os marinheiros aludidos pelo
governador abrangem os maxiluandas. Porém, será mesmo que eles ganhavam tão pouco ou o
governador forçou a barra para fazer valer sua retórica? Não há certeza; sabemos apenas que
os maxiluandas fugiam quando a remuneração ou o constrangimento ao trabalho não lhes
aprazia, como asseverou Miguel Antônio de Melo.
Daí que aquela espécie de escravidão implicava pagamento e possibilidade dos
maxiluandas em escolher em que e como trabalhar, ainda que, vexados, negociassem suas
condições de trabalho e de remuneração de forma nem sempre satisfatória, o que não
minimiza a dependência dos serviços por eles prestados.
Ademais, na verdade, quase todas as autoridades portuguesas não se referiram,
prioritariamente, aos muxiluandas como trabalhadores, mas como constrangidos a servir,
escravos, e negros forros em fins do século XVIII [ver a primeira vez em que foram
chamados de forros ou de livres]. Isso significa que era a sua condição servil, sua espécie de
escravidão perpétua adequada às circunstâncias, o que os fazia exercer as ocupações de
marinhagem, ou o serviço a particulares, ou as obras públicas etc. Dito de outro modo, as
ocupações exercidas eram secundárias em relação à sua condição servil de escravos
perpétuos. Era esta condição que os constrangia ao trabalho e ao serviço forçados, não o
contrário. Das relações de dependência escravista advinham os trabalhos compulsórios,
fossem executados por negociação, coerção ou constrangimento, tudo derivado de sua
escravidão perpétua. Porém, como afirmamos, a perpetuidade não era estática. Os
maxiluandas eram práticos e souberam cobrar um alto preço às autoridades portuguesas,
inclusive um preço político.

De olho no governo: a política dos maxiluandas


Miguel Antônio de Melo realçou que os maxiluandas eram os únicos Negros que
mostram algum afeto à terra em que nasceram e se criaram. Ao mandar quantificar a
população maxiluanda para recrutá-los à pesca, o governador sugere que os seus integrantes
estavam dispersos em algumas ilhas da enseada luandense, defronte à cidade, sendo as
maiores as de São João da Cazanga e da N. S. do Cabo. Então, como sói acontecia, mandou
fazer um mapa de população, tão comum nas paragens portuguesas, como em outras
monarquias, no último quartel dos setecentos105, a saber:
Quadro 1
“Mapa das 6 Ilhas que compreendem a freguesia que antigamente houve de São João Batista da Cazanga pelos
indivíduos que nela se contam as quais se mostram muxiluandas, suas ocupações, condições, tirado por ordem do
Ilmo e Exmo Senhor Dom Miguel Antônio de Melo, Governador e Capitão General deste Reino e suas conquistas,
segundo as suas antiguidades, dada ao Capitão Mor das mesmas Ilhas Manoel de Ornelas Vasconcelos”.106

Oficiais Condições Sexos Pescarias

Sua Majestade
Total da Soma
No Serviço de
Sargento mor
Capitão Mor
No das Ilhas

De Zimbo
Mulheres

De canoa
Ajudante

Escravos

De linha
Macotas

Homens

De rede
Livres
Sito a 7 de abril
de 1798

1 De São João [da 2 43 22 21 10 8 6 21 1 43


Cazanga]
2 De Macoco 1 69 39 30 18 8 7 29 69
3 De Mussulo 13 40 13 27 10 5 3 27 40
4 Do Desterro 2 114 51 63 33 18 16 63 3 114
5 Do Bimbi Eicata 1 73 37 36 13 31 18 36 73
6 De N.S. do Cabo 1 1 1 11 6 5 3 2 1 5 11
Soma 1 1 1 19 350 16 182 87 72 51 181 4 350
8

Manoel de Ornelas e Vasconcelos107

Quadro 2
Estimativas da população residente e de cativos exportados
(Luanda, 1781,1796-1799)
População
Cativos exportados
Livre (a) Escrava (a) Total (a) por Luanda (b)

105
MARCÍLIO, Maria Luiza. Crescimento demográfico e evolução agrária paulista (1700-1836). São Paulo:
Hucitec, 2000; CURTO, José. The Anatomy of a demographic explosion. Luanda, 1844-1850. In The
International Journal of African Historical Studies, vol 32, n. 2-3, 2009, pp. 381-405; ______ e GERVAIS,
Raimond. The population history of Luanda duting the late transatlantic slave trade, 1781-1844. African
Economic History, 2001, 29, pp. 1-59; SANTOS, Catarina Madeira. Um governo polido para Angola.
Lisboa/Paris: UNL/EHESS, 2005; CANDIDO, Mariana Pinho. Enslaving frontiers: slaves, trade and identity in
Benguela (1780-1850). Toronto/Ontario: York University, 2006. Dissertation submitted to the faculty to the
graduate for the degree of Doctor of Philosophy.[Atualizar citação da Mariana]; WAGNER, Ana Paula.
População no império português: recenseamentos na África Oriental portuguesa na segunda metade do século
XVIII. Curitiba, UFPR, Programa de Pós-Graduação em História, 2009; CORREA, Carolina P. Cambambe,
Angola, no contexto do comércio Atlântico de escravos (1790-1850). Rio de Janeiro, UFRJ, PPGHIS, Tese de
Doutorado, 2019.
106
AHU, Cx. 87 doc. 62.
107
Idem.
Anos # % # % # % #
1797 3.637 40,4 4.339 48,2 7.976 88,6 9.007
1798 3.651 34,6 4.362 41,4 8.013 76,0 10.544
1799 3.150 37,5 3.264 38,9 6.414 76,4 8.394
Fonte:
(a) CURTO, José C.; GERVASIS, Raymond R. The Population History of Luanda during the Late Atlantic
Slave Trade, 1781-1844. African Economic History, Vol. 29. (2001), pp. 50,58.
(b) CURTO, José C. Álcool e escravos. O comércio luso-brasileiro do álcool em Mpinda, Luanda e
Benguela durante o tráfico atlântico de escravos (c. 1480-1830) e o seu impacto nas sociedades da Africa
Central Ocidental. Lisboa: Vulgata, 2002, p. 343.
Obs: Percentuais da população com referência no número de cativos exportados pela cidade de Luanda.
Os cálculos percentuais são nossos.

Segundo o mapa dos habitantes das ilhas, os maxiluandas seriam 350 pessoas, o que
equivale a quase 10% da população livre da cidade de Luanda no mesmo ano de 1798
(quadros 1 e 2). Sendo assim, eles não eram poucos. Seriam 8% do contingente escravo.
Seriam, mas não eram porque os outrora escravos perpétuos não foram considerados como
escravos no mapa, que representa uma classificação social em forma de censo. Não havia
sequer um maxiluanda de condição escrava e apenas quatro estavam empregados no serviço
real. É notório que o mapa, embora inclua a condição escrava entre as categorias
classificatórias, deixe em branco o espaço reservado a este preenchimento, em todas as ilhas.
Com certeza, a perpetuidade da escravidão não foi eterna. Repetindo o poeta Vinicius de
Moraes: Que não seja imortal, posto que é chama. Mas que seja infinito enquanto dure!
Equilibrada sexualmente, com pouca vantagem para as mulheres, as ocupações diziam
respeito apenas à pesca. É possível que a divisão dessa atividade abranja pessoas que
praticavam mais de um tipo de pesca, pois a soma dos totais de cada tipo alcança 391
maxiluandas, mais do que a totalidade do grupo. A principal pesca era a do zimbo, abarcando
mais da metade das pessoas. Como dissera o escravo narrador do romance A gloriosa família,
ele se aprazia em ver na ilha de Luanda “os súditos do rei do Kongo a mergulhar nas águas
para recolherem a moeda do reino, o jimbo ou zimbo”. Homens, mulheres e crianças
pescavam zimbo ainda em fins do século XVIII.
Também chama atenção que a condição de livres dos maxiluandas abarcava 19 oficiais
militares, que eram 5,4% da população ou um oficial militar para cada 17,4 ilhéus. Estes
militares eram, basicamente, macotas [Ari, veja isso aí, mete uma nota explicando isso]. Com
efeito, os maxiluandas estavam muito longe de serem apenas escravos perpétuos, pelo menos
em fins do século XVIII. Mesmo antes, na verdade. Porém, por que o quadro deu realce,
posto que se lê da esquerda para a direita, aos oficiais militares?
Até aqui ressaltamos que as narrativas de governadores sobre os muxiluandas
destacam os diversos papéis exercidos por estes homens em distintas relações de dependência.
Porém, nem mesmo a retórica da escravidão perpétua impediu que eles recebessem
nomeações militares. Não é novidade que diante da necessidade da defesa, a monarquia lusa
preenchesse postos militares com base em critérios locais, inclusive em Angola. 108 Nessa
seara, uma boa medida do reconhecimento da dimensão militar dos maxiluandas, além dos
macotas, pode ser aferida em cartas patentes que contemplaram nomeações do tripé
organizacional das tropas militares portuguesas (tropas de linha, auxiliares e ordenanças), e
que também evidenciam nomenclaturas político-militares africanas. Entre os anos de 1753 e
de 1772, há 43 nomeações para cargos locais em apenas um códice de cartas patentes. Foram
privilegiados os postos de capitão tendala, capitão dos homens pretos livres, de dembo e
senhorio, e capitão-mor da guerra preta. O de capitão tendala mor recebeu inclusive
confirmação régia.109 Entre as 43 nomeações, duas contemplaram os muxiluandas, indicando a
formação de um regimento específico destes homens. As duas nomeações foram realizadas
pelo governador Antônio de Vasconcelos (1758-64), em 1763.
Em 3 de junho deste ano, Dom Francisco Matias de Domingos recebeu a patente de
governador dos pretos Muxiluandas da Ilha de São João da Cazanga e Nambios do rio
Cuanza.110 Francisco era preto, natural do sítio do Mossulo da jurisdição da freguesia da Ilha
de São João da Cazanga, filho dos também pretos Mateus de Domingos e Maria Adão. Passou
a ocupar o posto em razão do falecimento do preto Dom George Antônio e por portar todos os
requisitos necessários para gozar de “jurisdição, privilégios e franquezas que em razão do
dito”. Na mesma carta patente, o governador português de Angola mandou que todos os
muxiluandas e nambios reconhecessem e obedecessem ao nomeado como governador.
108
Dentre outros, cf. KRAAY, Hendrik. O cotidiano dos soldados na guarnição da Bahia (1850-89). In
CASTRO, C., IZECKSOHN, V., KRAAY, H. (orgs.), Nova História Militar Brasileira. Rio de Janeiro:
FGV/Bom Texto, 2004; MELLO, Christiane Figueiredo Pagano. Forças Militares no Brasil Colonial: Corpos de
Auxiliares e de Ordenanças na Segunda Metade do Século XVIII. Rio de Janeiro: E-Papers, 2009; COTTA.
Francis Albert. Negros e mestiços nas milícias da América Portuguesa. Belo Horizonte: Crisálida, 2010;
GOMES, José Eudes. As milícias D’El Rey: Tropas militares e poder no Ceará setecentista. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2010. PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: Povos Indígenas e a colonização do Sertão
Nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: Hucitec: Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp, 2002;
GODOY, Silvana
109
Nicolau de Nazareth foi nomeado Capitão Tendala-Mor por D. José I, em 12 de junho de 1760. IHGB,
PADAB, AHA, Códice 308 – C-21-3, fl. 118v.
110
Nambios eram os pilotos de canoas (dongos). SILVA, Rosa Cruz e. O corredor do Kwanza: a reurbanização
dos espaços – Makunde, Kalumbo, Massangano, Muxima, Dondo e Kambambe. Século XIX. In: SANTOS,
Maria Emilia Madeira (dir.). III Reunião internacional de história de África. A África e a instalação do sistema
colonial (c. 1885 – c. 1930). Actas. Lisboa: IICT, 2000, p. 157-173
[Fonte?] Por isso, Francisco Matias carregava o título de Dom que, conforme o dicionário
Bluteau, era um título honorífico dado só aos reis e seus descendentes, aos ricos homens, e a
cavaleiros que tinham o privilégio real por grandes serviços. Ainda que o uso deste título
tenha se vulgarizado, levando a muitas queixas de sua usurpação, 111 fato é que títulos
honoríficos foram usados por chefes políticos africanos, a exemplo de Dom, Marquês, entre
outros, talvez na tentativa de se inserir no universo jurídico português, e nos eventuais
benefícios daí derivados, mas também como forma de diferenciação social e política local –
Decerto, nada disso impedia conflitos entre os agraciados e os outros súditos portugueses.
Assim, em 6 de julho de 1763, Dom Manoel Luís Francisco recebeu a patente de
sargento-mor dos muxiluandas da Ilha de São João da Cazanga e Nambios do Rio Cuanza.
Manoel era homem preto natural da Ilha de São João da Cazanga, filho de Luiz Francisco e de
Andreza de Manoel. Ascendeu ao posto por falecimento do preto Dom Antônio Gaspar
Rodrigues. Nesse caso, o governador justificou a nomeação pelo fato de o povo da Ilha de São
João da Cazanga já ter feito eleição para o cargo. [Fonte?] Ou seja, o governador português
apenas referendou a escolha local, e novamente povos da África Centro-Ocidental se
apropriaram da escrita lato senso a partir de seus interesses.112
Cumpre destacar, portanto, que as patentes reconheciam e reforçavam as lideranças
maxiluandas, que ao que tudo indica se estendiam para além das ilhas porque as cartas
patentes aludidas também mencionam os militares maxiluandas como governadores dos
nambios do rio Kwanza. A jurisdição do governador maxiluanda incluía os moradores das
ilhas e os canoeiros do rio. Lembremos que o governador Barão de Moçâmedes dissera a um
capitão e cabo da Barra do Bengo, em 1788, que todas as embarcações que saíssem do rio
Bengo com mantimentos destinados ao Terreiro Público de Luanda seriam acompanhadas de
um muxiluanda que presenciara a entrega dos alimentos. 113 Logo, os muxiluandas
fiscalizavam não só o que circulava pelo Kwanza, mas também pelo Bengo, rios
importantíssimos para o abastecimento da cidade, de onde fluíam os alimentos oriundos dos
arimos.114 Logo, a fiscalização militar dos maxiluandas nos rios devia ser socialmente

111
BLUTEAU, Vocabulário Português, 2000 [1712-1727].
112
Cf. TAVARES, Ana Paula; SANTOS, Catarina Madeira. Africae Monumenta: a apropriação da escrita pelos
Africanos: volume I – Arquivo Caculo Cacahenda. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 2002;
SANTOS, C. M. Escrever o poder: os autos de vassalagem e a vulgarização da escrita entre as elites africanas
Ndembu. Revista de História, 155, 2º, 2006.
113
PADAB DVD10,21 DSC00172 Códice 283-C-17-2
114
FREUDENTHAL, Ainda. Arimos e fazendas. A transição agrária em Angola (1850-1880). Luanda, Chá de
Caxinde, 2005; OLIVEIRA, The Donas of Luanda, , 2016.
reconhecida, ao menos era legalmente sancionada por autoridades portuguesas e votada pelos
próprios maxiluandas.
Mencionava-se a naturalidade na maior parte das cartas patentes, mas não era comum
que os militares fossem nelas classificados pela cor social. Nas duas dadas àqueles homens
muxiluandas em 1763, o vocabulário classificatório social da cor esteve presente, tanto para
os nomeados, quanto para os seus pais e os ocupantes anteriores. Os governadores eram
pretos. Já em um inventário de patentes, provisões, bandos e ordens dos governadores feito à
época do governador de D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, há alusão a oito
nomeações para governador dos muxiluandas. Muitos dos documentos inventariados neste
códice não existem mais ou ainda não foram localizados por pesquisadores, porém
conseguimos saber o nome dos agraciados em seus respectivos cargos. Como se trata de um
inventário, e não do conteúdo propriamente dito das cartas patentes, não é possível saber
informações sobre cor, naturalidade e filiação, por exemplo (quadro 3).
Quadro 3 – Nomeações para Governador dos Muxiluandas (1669-1713)
Dom Afonso João Patentes do Livro 3º do Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor
Francisco de Távora / Ano de 1669 até 1676
Dom Ambrósio João Patentes do Senhor Pires de Saldanha / Ano de 1676
Dom João Gregório Patentes do Senhor Luiz Lobo da Silva / Ano de 1684 e 1688
Dom João Ambrósio Patentes dos Ilustríssimos e Excelentíssimos Senhores D. João
de Alencastro, Gonçalo de Alcaçova e Henrique Jacques /
Anos 1688 a 1695
Dom Jorge Patentes dos Ilustríssimos e Excelentíssimos Senhores D. João
de Alencastro, Gonçalo de Alcaçova e Henrique Jacques /
Anos 1688 a 1695
Dom Cristóvão Antônio Patentes dos Senhores Luiz César, Bernardino de Távora, o
Senado da Câmara e D. Lourenço de Almada.
Anos 1697 até 1713
Dom Domingos João Patentes dos Senhores Luiz César, Bernardino de Távora, o
Ambrósio Senado da Câmara e D. Lourenço de Almada. / Anos 1697 até
1713
Dom Francisco Clemente Patentes dos Senhores Luiz César, Bernardino de Távora, o
Senado da Câmara e D. Lourenço de Almada. / Anos 1697 até
1713
Fonte: Códice 3261-182 G – 6-2-68 – Arquivo Histórico de Angola secção: Luanda – Governo Geral:
Patentes, Provisões, Bandos e Ordens dos Governadores Gerais, 1654 a 1764; 288 folhas. (Inventário
do Arquivo no tempo de Sousa Coutinho)

Por este códice sabemos que o governo luso reconhecia patentes do cargo de
governador dos muxiluandas pelo menos desde 1669, passados apenas 21 anos da expulsão
dos holandeses. Todos os nomeados foram referidos com o título de Dom, o que significa que
a “espécie de escravidão” civil dos maxiluandas, que inclusive era remunerada, não foi
obstáculo è reprodução e ao reconhecimento da autoridade de suas lideranças. [Tem uma
lacuna enorme para o período de 1713 a 1770. Ver isso depois]
Provavelmente, este reconhecimento implicava na repactuação política entre
autoridades portuguesa e maxiluanda, manifesta em diversas ocasiões. Por exemplo, em
portarias de 1770 e 1771 o governador ordenou socorrer os muxiluandas que conduziam água
e cavalos para as tropas portuguesas.115 Além disso, Souza Coutinho ordenou “que os Negros
trabalhadores do Seu Real Serviço tivessem o competente jornal, de cujo suor pudessem
alimentar-se e às suas famílias”, destacando a particularidade do trabalho dos muxiluandas
que continuamente eram empregados nas embarcações reais. Segundo o governador o
pagamento se justificava pelo temor à deserção que seria causada pela falta de meios de
ganhar para com o que se vestir. No entanto, o jornal não deveria exceder o “preço comum da
terra”.116 Em outra portaria, Dom Francisco de Sousa Coutinho reforçou a ordem sobre a
necessidade de um vencimento para os muxiluandas e também dava orientações sobre o
tratamento que deveriam receber:

é consequente desta disposição que a terra seja livre da cruel vexação que lhes
fazem os oficiais das tropas, e o patrão-mor, todas as vezes que por força de
alguma ordem são obrigados a ir ao mar [...] mande dar ao capitão das obras, João
Garcez de Souza, um livro em que tenha na ribeira matriculados todos os forros
marinheiros, que voluntariamente quiseram servir à mesma ribeira, para que pela
mesma matrícula possam servir com regularidade e com justiça, e serem sempre
prontos a todas as diligências do real serviço.117

Apesar de os maxiluandas serem vexados por oficiais das tropas – tropas


majoritariamente formadas por naturais do reino de Angola, mas também composta por
brasileiros e reinóis118 – notamos a grande preocupação do governador em assegurar o que ele
considerava bom tratamento aos “negros trabalhadores”, “forros marinheiros” – aí, no
discurso voltado para dentro do reino de Angola, para a cidade de Luanda, eles não foram
considerados escravos, o que quase só acontecia nas missivas enviadas por governadores e
ouvidores para o reino de Portugal. Numa palavra, até mesmo pela omissão da referência à
escravidão do grupo, implicava, por parte da maior autoridade portuguesa, em respaldar os

115
PADAB DVD9,18 DSC00049 Códice 271-C-14-4.
116
PADAB DVD9,18 DSC00192 Códice 271-C-14-4.
117
PADAB DVD9,18 DSC00199 Códice 271-C-14-4.
118
CRUZ, Militares e militarização, 2012; Guerras nos sertões de Angola, 2020.
maxiluandas quando de seus embates com membros das tropas militares portuguesas na
cidade.
Por isso mesmo, os muxiluandas também estiveram presentes nos relatos sobre as
guerras em Angola na segunda metade do século XVIII, sobretudo por suas habilidades
navais e como fornecedores de alimento (peixes). À época do governo triunvirato do Frei Luís
Anunciação e Azevedo, do Dr. Ouvidor Francisco Machado Peçanha e do Coronel Pedro
Alvares de Andrade (1783-1784), que durou dois anos, o governo português entrou em grande
conflito com o importante potentado de Cabinda, o Mambuco. Os portugueses exigiram
exclusividade comercial, já que o Mambuco fazia comércio com os franceses 119, mas o
Mambuco recusou a proposta com a alegação de querer comerciar com todas as nações,
justificando a organização de uma expedição militar por parte dos portugueses para invadir
Cabinda e expulsar nações estrangeiras.120
Foi nesse contexto que os governadores interinos escreveram ao secretário de estado
da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, sobre as ações tomadas após a partida da
expedição de Cabinda, a necessidade de reparação dos armamentos da capital e dos presídios,
a falta de munições, a necessidade de armar a fragata de Luanda e de se prover a ribeira das
naus com remadores. Foram os muxiluandas que supriram a demanda de remadores:

As providências de economia, que temos dado, abrangem mais alguma coisa:


porque na Ribeira nunca houve remadores efetivos, e quando se precisava
repentinamente de alguma embarcação de remos, iam-se tirar com demora a
diferentes Navios, e particulares; o que agora não se sucede, porque dos pretos
Maxiluandas, que todos os meses, por destacamentos, vem dez servir ao trem,
como sempre vieram, dando-se lhe farinha, e mil e duzentos réis a cada um; há
sempre remadores para os casos repentinos, sem aumentar despesa alguma, e
poupa-se o que até agora se fazia com os que se ocupavam nestes exércitos. 121

Como se nota, os serviços de navegação dos maxiluandas não eram apenas mercantis,
mas também militares. Trabalhavam no trem real e poupavam à coroa gastos com particulares
e com capital político para conseguir remadores. Havia uma regular prestação de serviço
mensal dos muxiluandas, que iam por destacamento, mas recebiam uma espécie de soldo, e
alimentação em serviço.

119
Autoridades africanas impuseram suas condições no tráfico interno de cativos sempre que podiam, como
frequentemente acontecia. Um exemplo é o Soba de Cassanje, que controlava a feira de mesmo nome.
CARVALHO, Flávia M. de. Uma saga no sertão africano: o jaga Cassange e a diplomacia comercial portuguesa
no final do século XVIII. In DEMETRIO, SANTIROCCHI, GUEDES, Doze capítulos, 2017.
120
AHU, A, Caixa 68, doc. 57.
121
AHU, A, Caixa 68, doc. 57.
Em correspondência dirigida ao governador de 12 de agosto de 1783, o tenente
coronel Luís Cordeiro Pinheiro Furtado, que participou ativamente das expedições de
Cabinda, se queixou das deficiências das tropas militares. Ao se reportar aos negros do
serviço e aos muxiluandas, aludiu à deserção, à existência de jurisdições e níveis de fidelidade
ao governo português.

Os negros do serviço têm igual e irremediavelmente desertado quase todos de


modo que me não restam, com os Muxiluandas, mais de 62, e se faz necessário
virem mais, e os melhores são da jurisdição da Cuanza, que são os que se têm
conservado, sendo os do Golungo os que têm desertado.122

Como se vê, apesar de serem originários e de terem afeição pelas Ilhas de Luanda, os
maxiluandas formaram corpos militares em outras jurisdições, o caso do Kwanza,
precisamente a área para a qual se nomeava os governadores dos nambios. Tais corpos,
compostos por ou sob jurisdição dos maxiluandas, eram classificados como melhores tendo
como critério a fidelidade política, na perspectiva da administração portuguesa.
Certamente, os maxiluandas cobravam sua conta e impunham sua política aos
portugueses quando lhes convinha. Assim, em 26 de janeiro de 1789, o governador Barão de
Moçâmedes (1784-1790) relatou a infeliz retirada de um escaler fundeado ao sul de Cabinda,
na embocadura do rio Zaire, e que “se viu a ponto de perder a vida com toda a sua equipagem
por força de uma estranha efervescência do mar, que aqui chamam calemba”. Nesta ocasião, o
mestre do escaler afirmou que conseguiu salvar vidas, perdendo apenas um muxiluanda.
Segundo o governador, os “negros do país”, Cabinda, aprisionaram todos e destinaram os
brancos à “infalível morte”, mas os franceses interferiram comprando os prisioneiros, não sem
interesses político-mercantis. Remeteram o mestre do escaler ao governador para propor o
resgate em razão de “duas cabeças por uma”. Diante desta situação, o governador português
convocou ministros e oficiais de maior patente para deliberarem sobre a matéria123:

Sobre isto resolvi convocar os ministros e oficiais de maior patente para deliberar
assim sobre o resgate dos prisioneiros, como sobre a sua espécie, e modo de
condução, pois, ainda que eu não duvidasse na sua necessidade, respectivamente
aos brancos, queria que os pareceres concordassem sobre o dos pretos, sendo certo
que estes eram Maxiluandas, gente destinada unicamente ao serviço real, livres, e
cujos parentes e co-nacionais tinham os olhos no procedimento do Governo,

122
AHU, Angola, Caixa 60, doc. 1.
123
AHU, Cx. 60, doc. 1.
sobre o destino dos seus, reclamando a sua liberdade perdida em ação do mesmo
serviço.124 [grifos nossos]

Por tais argumentos todos concordaram em fazer o resgate enviando a Fragata Luanda
embarcado nela o capitão Elias Alexandre e Silva Correa, a quem o governador encarregou a
entrega de cativos que seriam negociados para o resgate, provavelmente porque o militar era
versado em francês. A fala do governador deixa em evidência a especificidade das relações
entre os muxiluandas, “gente destinada unicamente ao serviço real”, e o governo português.
Os maxiluandas eram pretos, assim pejorativamente qualificados pelo governador, mas suas
cabeças valiam tanto quanto a dos brancos. Cada cabeça de branco ou de maxiluanda valia
duas cabeças de pretos. Isto sugere, no mínimo, igualdade nas relações entre portugueses e
maxiluandas, repactuada em diferentes governos.
Nesse sentido, as palavras do governador demonstram também as alterações do
estatuto jurídico maxiluanda ao longo do tempo. Se em 1764 D. Francisco Inocêncio de Souza
Coutinho afirmou que os muxiluandas eram “escravos de Sua Majestade”, para o Barão de
Moçâmedes, em 1789, eles eram “livres”. Onze anos depois, o governador Mello se referiu à
espécie de escravidão, então avessa à personalidade, ao gênio e aos interesses maxiluandas.
Em 1789, a liberdade maxiluanda teria sido perdida durante o serviço real em função do
aprisionamento em Cabinda pelos opositores “negros do país”. Como foi possível, para quem
era eternamente escravo, ter a mesma equivalência, em cabeça (escravo), dos brancos?
O Barão de Moçâmedes não titubeou em explicitar que a principal justificativa do
envio de um resgate foi o temor de que os “co-nacionais” muxiluandas reclamassem ao
governo luso a liberdade dos parentes. Os maxiluandas estavam de “olhos no procedimento
do governo”. Figurativa e explicitamente, o governador sabia que os serviços maxiluandas,
agora livres, aos portugueses tinham um preço mercantil (duas cabeças de cativos por um
maxiluanda) e um custo de manutenção de sua fidelidade política, na mesma proporção. A
política dos maxiluandas, cujas lideranças eram eleitas por si mesmos e reconhecidas pelos
lugares-tenentes dos reis portugueses ao longo do século XVIII, redefiniu a conceituação
externa do próprio grupo. De escravos, negros do serviço, obrigados a servir, de escravidão
perpétua, tornaram-se livres que negociavam com o governo português, “negros forros”.
Quem desprezaria a força política de 10% da população livre, uma população crucial à
vida econômica, militar e política da cidade capital Luanda e, por conseguinte, do reino de

124
AHU, Cx. 60, doc. 1.
Angola?! Que força era essa que dava coesão e autoridade política aos parentes co-nacionais
maxiluandas?
O batismo e compadrio maxiluanda [terminar de escrever essa parte]
No meado do século XVII, o holandês católico Baltazar Van Dun era compadre do
mani-Luanda Dom Agostinho Corte Real, e seu escravo sentenciou que ninguém era
“compadre do governador [maxiluanda] Dom Agostinho Corte Real em vão”. 125 O batismo e
o compadrio, como ritualização de pactos políticos entre autoridades africanas e portuguesas
na África Central Atlântica, tem sido analisado sob diferentes prismas, fenômenos efetuados
desde o início da atuação dos portugueses na região [NOTA]. Não raro, as celebrações de
pacto se expressavam no apadrinhamento de autoridades africanas por autoridades
portuguesas. Geralmente, esses eventos ocorriam também na própria cidade de Luanda, a
exemplo do famoso batismo da então embaixadora Nzinga em ___[nota pra Heywood, onde
tá a Pantoja, no IM?]. No século XVIII, essas cerimônias ocorreriam na freguesia de Nossa
Senhora da Conceição, cidade alta, onde se localizavam residências das autoridades e prédios
administrativos portugueses. Na lida com mais de sete mil registros de batismo para a cidade
de Luanda, entre 1760 e 1804, ainda não localizamos sequer um batismo de soba na cidade
baixa. Assim, o pacto político era ritualizado na freguesia zona administrativa. Por sua vez,
batismos de escravos destinados às Américas, chamados de “cabeças” e “crias”, sem nome
cristão, sem padrinhos e sem madrinhas 126, se realizavam na freguesia de Nossa Senhora dos
Remédios, na zona portuária.127 Um exemplo de ritualização político-religiosa se constata em
um cerimonial ocorrido em 4 de janeiro de 1776, quando o padre Antônio Rodrigues da Costa
disse:

batizei nesta sé ao Fidalgo Dom Antônio, preto da provia[província] de Bihê, e a Dom


Pedro Jose, souveta da província do Galangue, e lhe pus os santos óleos. Foram
padrinhos o Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Governador Dom Antônio de
Lencastre, por seu procurador o Ajudante de Ordens Pedro José Correa de Quevedo, e
a mulher do dito Governador a Senhora Dona Guiomar de Menezes, por seu
procurador o Capitão Albano de Caldas e Araújo &ca.128

125
PEPETELA, A gloriosa família, pp. 152, 137
126
GUEDES, Roberto; FERREIRA, Roquinaldo. Erasing the note that says slave Efigênia da Silva, baptism,
godparenting, names, cabeças, crias, slave trade, slavery and freedom (Luanda, c. 1770-c. 1811). Almanack,
2020 (no prelo).
127
Sobre a disposição das freguesias e bairros nas partes alta e baixa de Luanda, vide MOURÃO, Fernando A.
A. Configurações dos núcleos humanos de Luanda, do século XVI ao XIX. In Actas do Seminário Encontro de
Povos e Culturas em Angola. Lisboa: CNCDP, 1997, pp. 111-225, passim; VENÂNCIO, A economia de
Luanda, 1996, pp. 31-44. Pepetela, Luandando. Luanda: Elf Aquitaine Angola, 1980-90, pp. 48-61.
128
Arquivo da Arquidiocese de Angola, Livro de Batismos da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição (Sé)
[AALNSC], 1760-1786. Fl. QUAL A FOLHA?.
Como o governador de Angola havia sido o padrinho de Jinga no século XVII, da
mesma forma se procedia no último quartel dos setecentos, ocasião em que o nome cristão do
soba era o mesmo do governador (Antônio) e o do sobeta o mesmo do procurador do
governador (Pedro), ainda com o amadrinhamento da esposa do lugar-tenente do rei, Senhora
Dona Guiomar de Menezes. Governadores de Angola não se prestavam a apadrinhar muitas
pessoas, eram seletivos. Na freguesia em questão, entre 1770 e 1786, só serviram como
padrinhos em seis ocasiões, incluindo aqueles soba e sobeta. Além deles, Antônio de
Lencastre apadrinhou, em sua própria capela, as filhas gêmeas de Manoel Antônio Tavares e
Dona Páscoa Maria Ornelas Vasconcelos. Guiomar Mariana de Menezes e Francisca
Felizarda de Menezes, respectivamente, “mulher dito senhor governador” e filha do “mesmo
senhor”, serviram como madrinhas, cada uma dando a cada uma das gêmeas os seus nomes:
Guiomar e Francisca. O governador Lencastre ainda apadrinhou João Antônio da Rosa, de
“nação prussiana”, cujos pais são de nome ilegível. Por seu lado, o governador Joé Gonçalo
da Câmara batizou Leonor, filha de Antônio José Botelho de Vasconcelos, futuro governador
de Benguela, e de Dona Margarida Rodrigues do Vale. A madrinha foi Ana Leonor de Beça
Teixeira, por seu procurador e marido Pedro José Correia de Quevedo, o mesmo ajudante de
ordens que servira de procurador do governador Antônio de Lencastre no batismo dos sobas.
Sendo assim, quando se tratava de batismos de autoridades (africanas, portuguesas ou
das elites locais), os governadores faziam-se presentes e/ou representados por seus
procuradores ajudantes de ordens. A outra criança batizada por José Gonçalo da Câmara,
também nomeada Leonor, era filha de Antônio Machado Almeida Peixoto e de Dona Mariana
Fonseca Moreira Rangel, tendo por Protetora Nossa Senhora do Rosário, sua madrinha
espiritual. Por fim, o “Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Barão de Moçâmedes,
Governador e Capitão-general deste Reino”, José de Almeida Vasconcelos, fora padrinho de
João, filho de José Rodrigues Martins Rocha e de Dona Rita Mariana da Cunha,
acompanhado pela madrinha “Ilustríssima e Excelentíssima Senhora Baronesa Dona” Mariana
Antônia Portugal, sua esposa. Quando, porém, o governador e sua esposa fizeram batizar seu
filho, o já nascido “Senhor Manoel Almeida”, deram-no para ser protegido por Nossa Senhora
do Monte Carmelo e apadrinhado por José Maria de Souza, “Ilustríssimo Senhor Dom Moço
Fidalgo da Casa de Sua Majestade Fidelíssima” Rei de Portugal, padrinho representado por
seu procurador José Almeida de Azevedo Almeida Vasconcelos, “Ilustríssimo Senhor
Ajudante de Ordens deste Governo”. Fora o próprio “Excelentíssimo e Reverendíssimo
Senhor Dom Frei Bispo de Malaca Eleito de Angola” quem realizara o batismo.129
129
AALNSC, 1760-1786. Fls. 68, 88, 132v, 237v, 259v e 346.
Como se vê, elites locais e autoridades portuguesas do Reino de Angola mantinham
relações compadrescas entre si, devidamente referidas com as formas tituladas de tratamento,
incluindo Dom ou Senhor, tais como atribuídos ao soba e sobeta. Igualmente, os nomes e
sobrenomes não eram conferidos de modo aleatório. A tendência em Luanda era a de pais,
mães, padrinhos e madrinhas livres serem reconhecidos com nomes e sobrenomes, sem
mesmo serem registrados como “livres”. Escravos e forros, todavia, tendencialmente eram
apenas mencionados com nomes compostos (Antônio João, por exemplo), sendo o segundo
nome das mulheres também de flexão masculina (Maria Antônio). Como quase todos eram
batizados apenas com os prenomes (João, Maria, José etc.), os sobrenomes e a segunda parte
do nome composto eram adicionados ao longo da vida, ou seja, eram socialmente construídos,
levando em conta posições familiares, condição jurídica etc. Estas práticas de nomeação
hierarquizantes demonstradas nos batismos e compadrios, com suas variações, eram a norma
nas paragens da monarquia portuguesa.130 Elas marcavam e definiam alianças e hierarquias
sociais.131
Os senhores militares, na freguesia de Nossa Senhora da Conceição (Sé catedral),
fizeram batizar 256 filhos de escravas que receberam como compadres 46 (18%) padrinhos
também militares. Quer dizer, quase um em cada cinco padrinhos era militar, o que é muito
porque o leque de escolha era amplo. Isto por si só sugere alguma forma de vínculo entre
militares, mas os quais envolviam os escravos. Interessante é que estes pais espirituais
militares nunca eram de patente superior às dos senhores das mães dos cativos batizados.
Exemplar nesse sentido foram os apadrinhamentos de 35 filhos de cativas do coronel João
Monteiro de Moraes.132 Nada menos do que 15 padrinhos eram militares. Entre os demais,
havia cinco eclesiásticos, quatro homens sem título, dois forros maxiluandas, e nove eram
escravos. Dos escravos, quatro eram do próprio coronel, um da Santa Casa de Misericória e
um do doutor juiz de fora. Evidentemente, a patente militar do senhor coronel influenciou os
laços de compadresco de suas escravas, que se tornaram comadres, sobretudo, de militares,
seguidos por padres, escravos de militares, e, não menos importante, de forros maxiluandas.
Entre outros exemplos, algo muito similar se observa nos batismos e compadrescos
estabelecidos pelos ajudantes de ordens. Assim, João Miguel Ornelas Vasconcelos apadrinhou
seus netos Rodrigo e Helena, filhos de sua filha Páscoa Maria Ornelas Vasconcelos (aquele

130
HAMEISTER, M. D. Para dar calor à nova povoação: estudo sobre estratégias sociais e familiares a partir dos
registros batismais da Vila do Rio Grande (1738-1763). Rio de Janeiro: UFRJ: PPGHIS, Tese de Doutorado,
2006, capítulo O segredo do pagé.
131
GUEDES, FERREIRA, Erasing, 2020.
132
AALNSC, 1760-1786.
mesmo casal cujas gêmeas foram apadrinhados pelo governador Lencastre e amadrinhados
por sua mulher e sua filha). O ajudante de ordens também foi padrinho de Maria, filha de pai
incógnito e de Violante Joaquim, preta forra, sendo madrinha a sua esposa Dona Maria da
Conceição Silva, cujo procurador foi seu filho capitão Ornelas de Vasconcelos.
Desconhecemos os elos do ajudante de ordens e de sua família com a preta forra. Mais
explícita é a motivação da participação do ajudante de ordens João Miguel de Ornelas
Vasconcelos no apadrinhamento de Tibúrcio, “vindo do sertão”, escravo de ninguém menos
do que o próprio governador Antônio de Lencastre, em 1773. Este governador, sua mulher e
sua filha foram padrinhos das netas gêmeas do ajudante de ordens, com a devida prática de
nomeação de homônimos. Por sua vez, o ajudante de ordens apadrinhou um escravo adulto do
governador.133 Não precisa de muita tinta e papel para explicar que essa troca, que abrangia
apadrinhar cativos do governador e ver seus netos batizados pele lugar-tenente do rei,
reforçava os laços clientelares entre militares os de maior prerrogativa do seu lugar, talvez
em prol de futuras promoções na carreira, cujas nomeações eram feitas pelos governadores.
Estes, por sua vez, se enredavam em redes locais para poder governar a contento. Por tudo
isso, era bastante comum que militares de mais baixa patente apadrinhassem cativos de
militares com patente superior.134
O que os maxiluandas têm a ver com isso? Diferente da extensão dos laços
compadrescos com outros grupos, seus vínculos tendiam a ser mais fechados em si mesmos, o
que é indício, como afirmamos no início deste texto, que suas fronteiras se definiam em suas
próprias relações. Porém, só dispomos de registros para a freguesia da Sé para os anos de
1770 a 1789. É neste contexto de intensa escravização, belicismo e concorrência mercantil
que os forros Muxiluanda são observados em termos de identidade política expressa no
compadrio. Antes, notamos que eles eram de autoridade reconhecida pelos governadores que
os nomeavam como governadores das ilhas e dos nambios do Kwanza. Lembremos que, além
do título de Dom, os governadores dos maxiluandas tinham semelhanças em seus nomes,
entre 1669 e 1713 (quadro 3). Cinco dos oito carregavam o João e três o Ambrósio, o que
inidca parentesco e/ou sucessão linhageira no cargo. A amostragem de batismos de é de 2.306
assentos. Mais do que diferenciar os forros muxiluandas perante os demais forros, livres e
escravos, os assentos lavrados por um único padre, Antônio Rodrigues da Costa, viabilizam a
análise de aspectos indissociáveis: a identidade política e social via compadrio Muxiluanda e

133
AALNSC 70v, 106, 159v, 191v
134
GUEDES, Roberto. Na pia batismal: família e compadrio entre escravos na freguesia de São José do Rio de
Janeiro (Primeira Metade do Século XIX). Niterói, UFF, PPGHIS, Dissertação de Mestrado, 2000.
a ritualização da política. Isto implica em dizer que ser muxiluanda em Luanda de fins do
século XVIII guardava significado de identidade política.
No jogo das trocas com autoridades portuguesas, eles cobraram seus interesses, mas
para isso era preciso força de grupo, e é isto mesmo o que os batismos demonstram. Aqui não
se tratava só de atribuição de terceiros, haja vista que os Muxiluanda adotaram o batismo e
compadrio cristão para estabelecer alianças políticas e fortalecerem-se como grupo. Assim,
em 31 de dezembro de 1770, o padre Costa batizou Francisco, filho do casal de “forros
maxiluandas” João Fernandes e Catarina Francisco. Os pais descritos como forros, na
verdade, não eram necessariamente escravos que receberam a liberdade, logo, não passaram
por uma experiência de escravidão. A expressão “forro maxiluanda”, ou “preto forro
maxiluanda”, redigida na forma plural (forros muxiluandas) ou com declinação feminina
(forra muxiluanda), aludia a uma espécie de estatuto social ou a uma consideração política e
social atribuídos aos Muxiluanda. É certo que a ideia de perpetuidade da escravidão, em 1798,
foi aludida por Miguel Antônio de Melo, mas para ser questionada, sabemos. Nos assentos de
batismo eles já eram vistos como forros desde 1770. Nesta documentação – que revela um
emprego cotidiano do vocabulário classificatório, diferente das falas pontuais dos
governadores em dados momentos – quase sempre eles eram “pretos forros maxiluandas”,
“forros maxiluandas” ou “pretos forros maxiluandas da Ilha de São João da Cazangue” ou
outras ilhas, como as do Mossulo, Bimbi, muxiluanda da Barra do Bengo, do Bengo etc.135
Os forros maxiluandas eram um grupo diferenciado, inclusive entre os libertos. Numa
pequena amostragem inicial, nota-se que não havia poucas libertas entre as mães que levaram
seus filhos ao batismo na mesma freguesia e naqueles mesmos anos. Entre 1770 e 1786, eram
832 (70,4%) escravas, 255 (21,6%) forras e 94 (8%) sem alusão à condição jurídico-social
(aqui consideradas livres). A maternidade era predominantemente escrava, mas as forras eram
mais do que o dobro das livres e havia uma manumitida para cada 3,2 escravas. Não é
possível, ainda, saber se se trata de intensa prática de alforria na cidade de Luanda como
componente estrutural da escravidão na cidade 136 ou se os assentos batismais de algum modo
atestam estatutos sociais de forros reconhecidos como tais, ou, ainda, se se tratava de ambas
as possibilidades. Sendo o apontamento batismal crucial ao reconhecimento da categoria

135
Por este último caso, consideramos como os maxiluandas todos os pretos forros do sitio do Bengo porque,
realçamos, os nambios do Bengo eram governador por maxiluandas. [Ver depois os elos compadrescos por ilhas]
136
Para a ideia de alforria como componente estrutural da escravidão no Brasil, cf. CUNHA, M. M. Negros
Estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à África. São Paulo: Brasiliense, 1985; SOARES, A remissão do
cativeiro, 2009.
jurídico-social para os agentes coevos, o que significava ser ao mesmo tempo forro e
maxiluanda, e como o grupo se valia do batismo e do compadrio?
As mães forras maxiluandas, que eram 8,2% entre as libertas (um indicador de sua
presença entre os forros), faziam parte do grupo político muxiluanda memoravelmente danado
por autoridades portuguesas, mas pelos idos de 1780 estavam aliados aos portugueses quando
intensas guerras eclodiam nos sertões ao Norte de Luanda, quando pressionavam de olhos
bem abertos o procedimento do governo. O mesmo relato se reportava a um pedido de
trabalhadores por causa da “tão grave” “falta de negros”, mas a resposta sublinhou a falta não
“tão grande porque, pelo livro da matrícula seguido”, o tenente coronel e o escrivão da
fazenda real constataram que “até ao presente não falta nenhum dos negros oficiais de ofícios,
Maxiluandas, nem dos escravos dos oficias, nem Calcetas, e a falta é tão somente nos negros
boçais de trabalho que eram 110 (...)”. Ora, quando os portugueses tentavam construir um
forte em Cabinda, muito diferente dos negros boçais de trabalho, os maxiluandas, portanto,
eram reconhecidos como oficiais mecânicos e senhores de escravos.137
Mas não apenas isso, eles eram, naquele momento, aliados de primeira hora dos
brancos, cabeça a cabeça, ambos ameaçados e barganhados pelos franceses aliados do
Mambuco. Lembremos que Elias Alexandre Corrêa da Silva afirmava que nos “sertões de
Angola apelidam brancos aqueles negros cujo hábito e distinção os põem ao alcance de andar
calçados”.138 Os brancos eram abastados, calçados, cujas cabeças eram da mesma proporção a
dos maxiluandas na guerra. Mas o que mais importa aqui é que os maxiluanda eram tidos por
co-nacionais aparentados. Assim, naquele contexto belicista, cuja periodização em grande
parte coincide com os registros de batismo da Sé (1770-1786), é muito provável que assinalar
a categoria de forro nos livros batismais não significava, para os maxiluandas, que tivessem
sido ex-escravos, exceto talvez pelo rei, o que não parece o caso porque em 1798 ainda
viviam em “espécie de escravidão”. Sendo assim, forro maxiluanda era um estatuto social,

137
AHU, CU, Angola, Cx. 60, doc. 1.
138
CORRÊA, História de Angola, vol 1, p. 120. Ver sobre o assunto, entre outros, Miller, J. Way of death.
Merchant capitalism and the angolan slave trade, 1730-1830. Wisconsin, Wisconsin U. P., 1988, p. 192;
VENÂNCIO, A economia de Luanda, 1996, p. 46; PANTOJA, S. Três leituras e duas cidades: Luanda e Rio de
Janeiro no Setecentos. In PANTOJA, S; SARAIVA, J. F (Orgs.). Angola e o Brasil nas rotas do Atlântico Sul.
Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, pp. 112 e segs; CRUZ E SILVA, R.. The saga of Kakonda and Kilengues:
relations betwenn Benguela na its interior, 1791-1796. In CURTO, J. C; LOVEJOY, P. E. Enslaving conections:
changing cultures of Africa and Brazil during the era of slavery. New York: Humanity Books, 2004, pp. 248-
250.
jurídico e político139, considerando que os batismos registram lugares sociais, eram
documentos aos quais frequentemente se recorria para atestar uma condição jurídico-social.
No entanto, os batismos assinalam mais do que a condição de forros dos maxiluandas.
Eles eram senhores, como dissera o relato supra.
Uma indicação da condição senhorial é dada pela forra maxiluanda Beatriz Sebastião
(quadro 4), que às vezes nem sequer foi considerada forra maxiluanda, e nem mesmo como
forra, logo, seria livre. A omissão da condição de forro é importante porque o cura Costa
exclusivamente aludiu a ela ou a de escravo, silenciando sobre a livre. Quase ninguém foi
caracterizado literalmente como livre, apenas como forro ou escravo. Logo, o silêncio do
coadjutor sobre a condição jurídico-social assegurava o estatuto de livre, o que, como
exemplificado por Beatriz Sebastião, aproximava os forros maxiluandas aos livres porque,
além da omissão, também eram vistos como senhores e senhoras de cativos nos batismos,
podendo aproximar à condição de forro à de senhor. Talvez por isso ainda não encontramos
ninguém pedindo para corrigir o assento de batismo por ter sido caracterizado como forro,
muito menos os maxiluandas. Pedia-se, sim, para consertar registros nos quais as pessoas
eram, erroneamente, lançadas como escravas.140

Quadro 4 – Menções a Beatriz Sebastião em registros paroquiais


Nome Condição Papel no ato do batismo
Beatriz Sebastião  Não informa Senhora da Madrinha
Beatriz Sebastião Forra Maxiluanda Senhora da Madrinha
Beatriz Sebastião Forra Maxiluanda Senhora da Madrinha
Beatriz Sebastião  Não informa Senhora do Padrinho
Beatriz Sebastião Forra Maxiluanda Senhora do Padrinho
Beatriz Sebastião Forra Maxiluanda Senhora do Pai
Beatriz Sebastião  Não informa Senhora do Procurador da Madrinha
Beatriz Sebastião  Não informa Senhora do Procurador do Padrinho
Fonte: AALNSC, 1760-1786.

139
Em São Paulo seiscentista, por exemplo, a palavra forro não necessariamente implicava prática de alforria.
Frequentemente, significava um estatuto social elaborado por colonos mestiços para driblar os impedimentos
legais da escravidão indígena. Na perspectiva dos colonos calcados nos usos e costumes locais, os índios forros
trabalhavam forçosamente, mas não podiam ser vendidos como os escravos. GODOY, S. A. Mestiçagem,
guerras de conquista e governo dos índios. A vila de São Paulo na construção da monarquia portuguesa na
América (Séculos XVI e XVII). Rio de Janeiro: UFRJ-PPGHIS, Tese de Doutorado, 2017, capítulos 5 e 6.
140
GUEDES, FERREIRA, Ereasing, 2020.
Com efeito, apesar da omissão reveladora da liberdade de quase metade dos registros
em que Beatriz Sebastião consta, nota-se no quadro 4 e na transcrição abaixo que ela também
era ou estava descrita como forra141, mas era, igualmente, uma senhora maxiluanda, assim
reconhecida pelo poder senhorial exercido sobre outros:
Aos [04/01/1773] batizei nesta freguesia da Sé a Pascoa, filha natural de Paulo[ou
Pedro] Felipe, escravo de Beatrix Sebastião forra maxiluanda, e de Engrácia João,
escrava de Juliana Silvestre, forra maxiluanda, e lhe pus os Santos Óleos. Foram
padrinhos Sebastião Domingos e Maria Domingas, escravos da mesma Beatrix
Sebastião &ca. O Cura Antônio Roiz da Costa.142

Silenciados ou não sobre seu estatuto, quando se tratava de senhores forros, os


maxiluanda se sobressaíam, a exemplo de Juliana Silvestre também acima reconhecida como
senhora. Nas 29 vezes em que as senhoras das mães cativas foram referidas como forras, em
13 eram maxiluandas, 10 eram pretas forras, uma era parda e das demais eram apenas
“forras”. A par do silêncio que omite casos como o de Beatriz Sebastião, até agora tudo indica
que, perante forros de origem e grupos variados, os maxiluandas compunham quase a metade
dos senhores.
O que se constata inicialmente pelos registros de batismo é que as senhoras em Luanda
correspondiam a 37,3% dos donos das mães dos cativos batizados, 46% eram homens e os
demais eram instituições. Assim, frequentemente a condição senhorial implicava em ser
senhora de cativos, fenômeno comum alhures143, e Beatriz Sebastião estava entre os que
exerciam poder sobre escravos.144 Sendo senhores de cativos, de cabeças iguais a dos brancos,

141
Como salienta Ana Tostes, definitivamente ninguém era, mas estava, no caso pardo. TOSTES, Ana Cabral. O
lugar social dos homens “pardos” no cenário rural da cidade do Rio de Janeiro (Recôncavo da Guanabara,
freguesia de Nossa Senhora do Desterro de Campo Grande, século XVIII). Rio de Janeiro: UFRJ, PPGHIS,
Dissertação de Mestrado, 2012.
142
AALNSC, 1760-1786, fl. 60.
143
CAPELA, J. Donas, senhores e escravos. Porto: Afrontamento, 1995; PANTOJA, S. A dimensão atlântica das
quitandeiras. In FURTADO, Diálogos oceânicos, 2001, p. 45-67; OLIVEIRA, The Donas of Luanda, 2016;
FARIA, S. Sinhás pretas, damas mercadoras: as pretas minas nas cidades do Rio de Janeiro e de São João del-
Rey (1700-1850). Niterói: Depto de História, Tese de Professor Titular, 2004; OLIVEIRA, M. I. O liberto: o seu
mundo e os outros, Salvador: 1790-1890. Salvador: Ed. Corrupio, 1988; RAMOS, D. A mulher e a família em
Vila Rica do Ouro Preto: 1754-1838. In NADALIN, S O. et. all.(Orgs.) História e população: estudos sobre a
América Latina. São Paulo: ABEP, 1990; BARICKMAN, B. J. As cores do escravismo: escravistas ‘pretos’,
‘pardos’ e ‘cabras’ no Recôncavo Baiano, 1835. In População e Família. São Paulo, n. 2, pp. 7-59, 1999;
PAIVA, E. F. Escravidão e universo cultural na colônia: Minas Gerais, 1716-1789. Belo Horizonte: Editora da
UFMG, 2001.
144
Os registros batismais abrangem um universo maior de proprietários do que os inventários post-mortem.
Demonstrou-se que certos senhores possuíam escravos ao longo da vida, mas podiam ficar desperovidos da
posse escrava ao longo da vida. O leque social senhorial é mais amplo e demonstrável pelos registros de batismo,
o que, evidentemente, não invalida os inventários como documento crucial para perscrutar a posse escrava. Vide
MATHEUS, M. S. A produção da diferença: escravidão e desigualdade social ao Sul do império brasileiro
(Bagé, 1820-1870). Rio de Janeiro: UFRJ-PPGHIS, Tese de Doutorado, 2016, capítulo 4. [Ver a estrutura de
posse depois]
trabalhadores especializados e de força política capaz de olhar o governo, como seriam os elos
compadrescos estabelecidos pelo grupo?
Tenderam a ser diferenciados, talvez por sua identidade específica, inclusive entre os
homens. Assim, de 23 pais (apenas os homens) maxiluandas, 15 tiveram como compadres
(padrinhos, apenas) forros também maxiluandas, dois tiveram compadres militares, dois
optaram por escravos, dos quais um era cativo de um sargento mor (uma das mais altas
patentes militares), ao passo que o outro compadre cativo pertencia a uma senhora
maxiluanda. Quatro pais maxiluanda guerreiros fizeram compadres livres além daqueles dois
militares. Constata-se, portanto, que os maxiluandas quase não deram seus filhos para serem
batizados por escravos (e mesmo assim não quaisquer escravos) e nunca elegeram compadres
libertos não maxiluandas. Cerravam suas relações compadrescas principalmente entre si
reforçando sua coesão interna ou se uniam a livres, o que é perfeitamente compreensível
devido à sua condição senhorial e ao seu estreito vínculo com súditos portugueses, ao que
tudo indica.
A adoção do batismo pelos maxiluandas muito provavelmente guardava relação com
estruturas religiosas próprias a sociedades africanas voltadas à incorporação de símbolos e
rituais de outras religiões.145 Assim, pode ser que povos do reino de Angola se apropriassem
do ritual do batismo e do compadrio, tal como faziam com outros símbolos e práticas
religiosas. Como religião e política eram inseparáveis no reino de Angola 146, provavelmente
os batismos e a ritualização da política geravam compadrios políticos, bem condizente com o
que dizia Manuel António de Almeida: “Era no tempo do Rei [D. João VI] (...). Já naquele
tempo (...) o empenho, o compadresco, eram uma mola real de todo o movimento social”.147
Assim, sendo, além de buscarem padrinhos preferenciais, eles também apadrinhavam.
A quem?
Das 27 vezes em que serviram como padrinhos, em 11 apadrinharam filhos de
escravas, ou seja, hierárquica e superiormente se faziam padrinhos de filhos de cativos, mas

145
CRAEMER, Willy de; VANSINA, Jan; FOX, Renee. Religious Movements in Central Africa: a theoretical
study. Comparative studies in society and history, 18, 4, 1976, pp. 458-475; THORNTON, John. Religião e vida
ceremonial no Congo e áreas umbundo. In: HEYWOOD, Linda (org). Diáspora negra no Brasil. São Paulo
Contexto, 2008; A cultural history of the Atlantic world, 1250–1820. Cambridge: Cambridge U. P., 2012; Afro-
Christian syncretism in the kingdom of Kongo. Journal of African History, 54, 2013, p. 53-77; pp. 81-100. For
other aspects, see PARÉS, Luís Nicolau O rei, o pai e a morte. A religião vodum na antiga costa dos escravos na
África ocidental. São Paulo: Cia das Letras, 2016. HEYWOOD, Njinga of Angola, 2017; SOUZA, Além do
visível, 2018. Para aspectos em Angola, vide REGINALDO, L. Rosários dos Pretos, ‘São Benedito de
Quissama’: irmandades e devoções negras no mundo atlântico (Portugal e Angola, século XVIII). Studia
Historica, História Moderna, 38, n. 1, 2016, pp. 123-151; MARCUSSI, Alexandre Almeida. O dever
catequético. A evangelização dos escravos em Luanda nos séculos XVII e XVIII. Revista 7 Mares, n. 2, 2013.
146
HEYWOOD, Njinga of Angola, 2017; SOUZA, Além do visível, 2018
147
ALMEIDA, M. A. de. Memória de um sargento de milícias. São Paulo: Ática, 1985, pp. 9, 126.
não lhes davam seus filhos para batizar. Ademais destes 11 batizados, sete eram rebentos de
pais e/ou mães escravos que pertenciam a senhores maxiluandas. Os demais nove homens
maxiluandas apadrinharam filhos de pais e/ou mães também forros maxiluandas. Pode-se
dizer, portanto, que 18 relações compadrescas entre senhores maxiluandas e/ou seus escravos
eram mediadas por compadres do mesmo grupo, mas os próprios senhores raramente
apadrinhavam seus próprios cativos. Davam-lhes outros compadres, ainda que também
maxiluandas. O batismo, à revelia da dimensão religiosa para o grupo, não findou com a
hierarquia escravista. Por outro lado, havia coesão maxiluanda, cujas alianças compadrescas
tendiam a reforçar suas amarras políticas e sociais, até fazendo uso dos batismos que
envolviam seus escravos. Eles eram co-nacionais aparentados entre si, hierarquicamente.
Vimos que entre os militares os de patente inferior apadrinhavam cativos de militares
de patente superior. Possivelmente, o mesmo acontecia entre os maxiluandas. Beatriz
Sebastião, por exemplo, não amadrinhou escravos. [Ver depois que maxiluanda servia de
padrinho de senhor maxiluanda e a partir daí a hierarquia entre eles]. “Dom Adão Mateus” e
sua esposa Vitoria Diogo, “pretos forros maxiluandas” deram sua filha, Violante, para serem
apadrinhada por José Caetano Viana e Maria de Souza Cabral, em 10 de dezembro de 1780. O
segundo filho do casal foi apadrinhado por João da Costa Barros, um militar não assim
caracterizado no assento148, e pela mesma Maria de Souza em 17 de setembro de 1785. Porém,
quando o “preto maxiluanda Dom Adão” fez batizar o filho de seu casal de “pretos escravos”,
os padrinhos foram Francisco Manoel e Catarina Adão. Adão era o nome do segundo filho
batizado do próprio Dom Adão, seguindo a tendência de os senhores governadores da ilha em
repetirem os nomes, que identificavam o poder do grupo, interna e externamente. Entre os
milhares de crianças batizados na Sé, entre 1770 e 1786, só havia quatro Adãos, um deles o
filho do nome do poder na ilha.
Por sua vez, o padrinho de Dom Adão só batizou filhos de escravos, noutros registros
era apenas “preto forro”, e madrinha Catarina Adão era “preta forra” em outro registro. Ou
seja, Dom Adão se aliava com livres militares quando batizou seus filhos, mas seu escravo foi
apadrinhado por forros. Devia haver, portanto, uma diferenciação entre os forros maxiluandas
e outros forros, e também uma relação hierárquica entre os homens maxiluandas. Mas a
relação com padrinhos de fora também servia a alianças. Por exemplo, além de serem
apadrinhados por um cativo de um sargento mor, quem era um dos outros dois militares que

148
1776. Requerimento de João da Costa Barros, ao rei [D. José I], solicitando confirmação da carta patente
passada pelo governador e capitão-general de Angola, António de Lencastre, no posto de capitão da fortaleza de
Santo Amaro na cidade de Luanda, que vagou por falecimento de Amaro Gomes da Cruz. Anexo: carta patente,
AHU-Angola, cx. 61, doc. 6 [VER DETALHES]
foi padrinho de filhos de forros maxiluandas? Era o capitão-tendala mor Nicolau de Nazareth,
acompanhado da madrinha escrava, com sobrenome, do próprio cura da Sé:
Aos cinco de abril de mil setecentos e setenta e dois batizei nesta freguesia [não te direi
só para fazer raiva] a Valentim, filho natural de Miguel João, forro maxiluanda, e de
Luiza Agostinho, forra do Sitio de Cecle, e lhe pus os Santos Óleos. Foram padrinhos o
Capitão Nicolau de Nazareth, por seu procurador José Moreira da Silva, e Francisca
Pinto Delgado minha escrava &a.
O Cura Antonio Rodrigues da Costa.

Filho de pai português e de mãe africana, falante de português e de quimbundo,


traficante de água no Bengo, escritor, senhor de muitos escravos, esse compadre dos
maxiluandas era súdito português e tinha importante participação na política lusa de tentativa
de submissão de sobas. Ele era um dos homens que lia e traduzia os autos de vassalagem para
os sobas avassalados, como se constata:
Ato de obediência, sujeição e vassalagem que ao Muito Alto e Poderoso Rei
Fidelíssimo Dom José o I, Nosso Senhor, e seus Reais Sucessores faz nas mãos do
Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Dom Francisco Inocêncio de Sousa
Coutinho, governador e capitão general destes reinos e suas conquistas, o
potentado Holo Marimba Goge, por seus embaixadores dom Thomás Planga-a-
Temo, Holo-Ria-Quibalacace e Quienda.
(...)
o qual vai selado com o selo grande das armas de Sua Excelência, e assinado
pelos ditos Embaixadores na presença (...) do capitão tendala Nicolau de
Nazareth, o qual lhes explicou em língua do país tudo o que contém os ditos
sete artigos.
 
São Paulo de Assunção 24 de dezembro de 1771
Antônio Lobo da Costa e G.ª Nocolau de Naze 
Sinal de D. Francisco + Cazumbu Sinal de D. Pedro + Manebunda guenda149

Como o padrinho dos maxiluandas aparecia nos batismos realizados na sé catedral?

Quadro 5 – Títulos e tipos de participação de Nicolau de Nazareth em registros de


batismo da freguesia de Nossa Senhora da Conceição
Títulos Tipos de Participação Data Folha
Capitão Senhor do padrinho 29/06/1777 170
Capitão Padrinho de forro maxiluanda 05/04/1772 38v
Senhor do pai 28/12/1780 259
Capitão Padrinho de filho de escrava 04/05/1782 292v

149
Fonte: Arquivos de Angola. vol. III, nov. de 1937, vol. 29. Sobre a biografia de Nicolau de Nazareth, cf.
CARVALHO, Ariane; GUEDES, Roberto. Filho capitão tendala mor, pai sargento mor: serviços de guerra, fé,
conflito e aliança política no Reino de Angola (século XVIII). (trabalho em finalização).
Senhor do padrinho 11/05/1782 295v
Capitão Senhor do padrinho 03/11/1782 308
Capitão Senhor do pai 19/10/1783 329v
Tenente coronel Senhor do pai 30/03/1785 Não informa
Tenente coronel Senhor do pai 17/04/1786 Não informa
Tenente coronel Senhor do pai e da madrinha 30/06/1786 Não informa
(atualizar)
Nos batismos, a condição de tendala de Nicolau de Nazareth é omitida, mas, como se
vê, ele é reconhecido, sobretudo, como senhor de cativos. Como padrinho, similarmente aos
ajudantes de ordens, ele não apadrinhou muita gente. Fê-lo, no entanto, em 1772, para um
filho de maxiluanda quando era capitão, certamente capitão tendala mor. Dito de outro modo,
politicamente, o compadre e os próprios maxiluandas eram semelhantes, posto que se punham
a serviço da ordem portuguesa em Angola.
* * *
Os costumes, gênios e interesses dos muxiluandas modificaram suas condições no
decorrer do século XVIII. O vocabulário e as formas variadas de nomeá-los demonstram que
deixaram de ser escravos perpétuos, ainda que a memória sobre eles continuasse danada.
[Fazer uma conclusão decente]

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