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TEXTO #03 DA SÉRIE

#contágiosinfernais

ORGANIZADORES:
fellipedosanjos e joãoluizmoura

ESCRITO POR
AnaEster*

* Ana Ester é teóloga, doutora e mestra


em Ciências da Religião. É clériga das
Igrejas da Comunidade Metropolitana.
anaesterbh@gmail.com.
Em um domingo de quarentena, ao terminar o dia,
percebi que eu tinha ouvido seis pregações diferentes
sobre a mesma passagem bíblica. Passei mais tempo com
o celular nas mãos do que sem nada em mãos. E, mesmo
ainda quando pensava justamente sobre isso, eu dava a
“última olhada” no Facebook e no Instagram para ter
certeza de que não tinha perdido nada interessante.
O smartphone já era uma extensão do meu corpo.
E isso não era novidade alguma! Realidade “Black
Mirroriana”1, se é que me entendem. Foi nesse contexto
que uma série de questões me vieram à mente. O que
seria uma igreja virtual? Qual sua importância? A
que tipo de público atenderia? Seria esse o futuro das
comunidades de fé?
Essas perguntas foram os primeiros sintomas
das minhas inquietações. Questões, a princípio, de
ordem antropológica e eclesiológica coabitaram meu
dia-a-dia me levando a muito mais dúvidas do que a
respostas. Por isso, é importante esclarecer que este
é um ensaio exploratório. São notas sobre minhas
próprias inquietações. Meus escritos não são parte de
um estudo sistematizado sobre o pós-humano, são sim
resultados de poucas leituras sobre o tema, mas de uma
curiosidade sem fim.
Nesse sentido, é fácil perceber que saio de lugar
algum e chego em lugar nenhum. Exploro. Investigo.
Me canso. Desisto. Meus limites delineiam mais a
pesquisa do que minha curiosidade. Meu corpo sente o
1 O neologismo faz menção à série de ficção científica britânica Black
Mirror.
cansaço dos dois meses de isolamento. Mas que corpo
é esse? Já seria possível afirmar um corpo pós-humano?
Talvez, por enquanto, seja melhor pensar ser humano se
pós-humanizando, um ser humano que vai se tornando,
um devir.
Dentro de minhas contradições, preciso elucidar
uma questão fundante para este ensaio. Não parto
do pressuposto de que o pós-humano é um humano
melhorado, a ideia moderna de progresso não me
ajuda a desvelar o fenômeno que percebo em minha
própria experiência de fé. Seguindo as ideias de
Silva (2010), que segue as ideias de Hayles (1999), “o
esforço aqui, deve ser o de buscar uma versão do pós-
humano que se abra às possibilidades das tecnologias
da informação sem ser seduzida por fantasias de poder
ilimitado e de imortalidade descorporificada” (SILVA,
2010, p. 25).
O pós-humano deu nome a alguma de minhas
inquietações. Lenoir in Wolfart e Junges (2008) afirma
que “todo novo regime midiático constrói um novo
sujeito”. Isso me parece muito perceptivo. A relação
entre a tecnologia e o humano, no recorte do (ab)uso
das redes sociais, mostra o que Maia (2017) chama de
“narcose midiática”. Quantas lives estão disponíveis em
seu celular agora? Facebook, Instagram, Youtube, uma
infinidade de conteúdos disponíveis. Pessoas que eu até
imaginava como sendo introspectivas fazem seus vídeos
domésticos. Talvez haja aqui um pouco do “medo do
desaparecimento”, que Maria Homem (2020) mencionou
em seu vídeo sobre a angústia. Temos medo de sermos
esquecidos nesse período de isolamento social, por isso,
uma maneira de nos fazermos visíveis seriam as lives nas
redes sociais. É a ideia de pertencimento ao sistema-
mundo.
Esse ser humano que se conecta e integra à
tecnologia acaba criando um “outro” protótipo
humanístico no qual não se sabe onde começa o
humano e onde o humano se finda. De acordo com
Souza e Pessoa (2019), o conceito de humanidade como
o compreendemos hoje se refere à determinado sujeito,
com corpos e comportamentos particulares.

As autoras fazem menção a uma ideia


universalista de humano, na qual o
humano seria, basicamente, o homem,
branco, rico, cisgênero, heterossexual.

Percebo, então, que minhas notas sobre o tema


correm o risco de cair no mesmo essencialismo, pois
estou pensando uma categoria universal de pós-
humano, sem considerar todas as interseccionalidades,
imbricamentos, que atravessam esse outro humano.
Limites da brevidade da pesquisa.
A classificação de um humano baseado em
categorias universais, além de versar sobre “quem
tem poder para ser humano”, assenta-se, de acordo
com Maia (2017, p. 260), “em construções sociais
arbitrárias, uma vez que a fronteira traçada entre os
objetos inanimados e os seres vivos deve desaparecer
em virtude da continuidade da escala da complexidade”.
Nesse sentido, o paradigma da complexidade (MORIN,
2008) é de suma importância para uma aproximação ao
conceito de pós-humano, porque o próprio conceito de
humano já é complexo em si.
Tomando o paradigma da complexidade, Le
Breton (2013) pensa o humano a partir de seu corpo.
Para tanto, suscita algumas possibilidades conceituais
do corpo humano. Corpo-máquina, corpo-simulacro,
corpo-descartável, cibercorpo. O autor afirma que o
corpo é “um lugar a ser eliminado ou a ser modificado
de uma ou outra maneira” (LE BRETON, 2013, p.
15). A complexidade do corpo e suas relações
com as próteses constitutivas da modernidade,
metamorfoseia o humano.

Se o homem só existe por meio das formas


corporais que o colocam no mundo, qualquer
modificação de sua forma provoca outra
definição de sua humanidade. Se as fronteiras
do homem são traçadas pela forma que o
compõe, tirar dele ou nele acrescentar outros
componentes metamorfoseia a sua identidade
pessoal e as referências que lhe dizem respeito
diante dos outros. Em suma, se o corpo é um
símbolo da sociedade, como sugere Mary Douglas
(1984), qualquer jogo sobre sua forma afeta
simbolicamente o vínculo social. (LE BRETON;
2013, p. 223).
Pensar, então, em um outro corpo, um outro
humano, pressupõe perceber novas interações
sociais que passam a ser mediadas por tecnologias
que extrapolam e complexificam as relações. A
modernidade como espaço de rupturas e continuidades
é, segundo Maia (2017), uma época de constituição
submetida a “sínteses artificiais da ordem do imaginário
pela tecnologia” (MAIA, 2017 p. 32). Não o imaginário
ficcional, mas a imaginação como epistemologia, como
método de compreensão do mundo e de suas relações.


Além de muitos questionamentos que surgiram
a partir da ideia de um pós-humano hiperconectado,
também fui instigada a pensar sobre qual humano o
sistema político e econômico no qual nos inserimos
tem interesse em criar. Ainda não temos ideia sobre
as consequências econômicas do shutdown. Mas, uma
coisa me parece certa, depois de sermos relembrados
de nossa fragilidade (e da fragilidade do sistema), haverá
um interesse econômico e político profundo em investir
em um “melhoramento humano”. A ideia de um humano
que não possa ser abatido por um “inimigo invisível” não
me parece muito ficcional.
Quantos termos já não foram criados para tentar
explicar as novas relações que se dão nesse ambiente
de avanço tecnológico? Por exemplo, tecnociência, que,
segundo Silva (2010), implica no contexto tecnológico da
ciência abarcando o mundo das técnicas e das máquinas;
ou ainda, biotecnologia, que também de acordo com
Silva (2010, p. 35) é “o conjunto de conhecimentos
técnicos e métodos que permite a utilização de agentes
biológicos (organismos, células, organelas, moléculas),
como parte integrante e ativa para obter bens ou
assegurar serviços”.
Um outro exemplo de tecnologias emergentes
que me ajudam a pensar nesse desejo do capital pelo
“aprimoramento humano” é a nanotecnologia. Segundo
Maia (2017, p. 262), “na verdade as tecnologias emergentes
como a engenharia genética, a nanotecnologia, a
inteligência artificial ou mesmo a criónica poderão
possibilitar, de facto, ao ser humano a superação dos
seus limites físicos, psicológicos e mentais”. Nesse
sentido, é possível se pensar em “máquinas biológicas”
(LENOIR in WOLFART; JUNGES, 2008) percebendo-se
que um dos resultados da nanotecnologia é justamente
a transformação da biologia em máquina.

O que é realmente interessante na nanotecnologia


que está sendo desenvolvida é que a mais
precisa máquina que conhecemos é o ribossomo
dentro da célula. É um tipo de máquina que faz
produtos muito precisos, proteínas, e moléculas
que organizam o corpo. Esse é um exemplo
para mostrar que, para se construir máquinas
como as descritas (ribossomo), as pessoas estão
controlando máquinas biológicas. (LENOIR in
WOLFART; JUNGES, 2008).

Tecnociência, biotecnologia, nanotecnologia, e


acabei me lembrando de um termo muito recente em
meu vocabulário o biohacking. A tecnologia biohacking é
aquela usada por meio de aplicativos de smartphones
que dadificam informações sobre sono, alimentação,
passos. Esse tipo de tecnologia foi extremamente usado
no controle do COVID-19 na China. O que se percebe a
partir desses poucos exemplos é que existe uma explosão
tecnológica e discursiva a respeito de novas possibilidades
de ser e estar no mundo, como explica:

O processo pelo qual o humano vai


paulatinamente se convertendo em mescla
de presença material e padrão informacional
(HAYLES, 1999) está totalmente imiscuído nas
agências, sentidos e afetos humanos e, portanto,
torna-se constitutivo das dinâmicas materiais-
discursivas que configuram o ambiente cognitivo,
sociológico, estético e ético com que as ciências
humanas. (BUZATO, 2019, p. 479)

Pois bem, minhas percepções em tempos


de COVID-19 me chamaram a atenção
para essas duas facetas do humano:
1. um ser humano hiperconectado;
2. um ser humano a ser aprimorado.

Importa ressaltar que a ideia de aprimoramento


vai de encontro à minha tentativa de não pensar o
pós-humano por meio de processos evolutivos ou
da concepção moderna de progresso, entretanto
é essa a ideia que me vem à mente ao perceber os
jogos evolutivos propostos pelo sistema do capital. A
complexidade de definição do termo me faz perceber
que é necessário um diagnóstico mais acurado que
levante algumas suspeitas sobre o que vem a ser o pós-
humano conceitualmente. Maia explica a dificuldade
dessa empreitada conceitual:
É notório que os conceitos de transumano2 e de
pós-humano encontram um campo vasto, fluido
e até contraditório que dificulta a sua definição
perante aquilo que é a proliferação dos muitos
conceitos e ideias que pretendem traduzir ou
defender a transcendência, melhoramento,
ultrapassagem ou a superação do humano.
(MAIA, 2017, p. 261).

Sem ignorar a polissemia do conceito, faz-se


necessário inicialmente um resgate de seu surgimento.
Segundo Silva (2010), o termo pós-humano foi criado
em 1977, pelo norte-americano Ihab Hassan. A pesquisa
de Maia traz algumas outras informações importantes
sobre o primeiro uso do termo:

Num contexto em que a cultura ocidental


foi produzindo, ao longo de vários séculos,
ideias e conceitos sobre o aperfeiçoamento do
humano, uma genealogia do pós- humanismo
encontra referência a este tipo de termos desde
o século XVII. Oliver Krüger, por exemplo,
cita o Dicionário Inglês de Oxford para indicar
na Glossografia de Thomas Blount, de 1656, o
primeiro uso da palavra “posthumain” (Krüger,
2004, in Herbrechter, 2009/2013, p.33). Por
sua vez, Neil Badmington cita o teosofista H.P.
Blavatsky, em 1888, como o primeiro comentador
do “post-Human” (Badmington, 2006, in

2 Não é objetivo deste ensaio elaborar diferenças conceituais entre


pós-humano e transhumano. Optei, neste momento, operar com
o conceito de pós-humanismo, mas pode ser que minhas reflexões
futuras se darão em outro campo linguístico e conceitual.
Herbrechter, 2009/2013, p.33). No entanto,
ambos os autores identificam o primeiro uso
crítico do conceito ‘post-humanism’ na obra de
Ihab Hassan, de 1977, Prometheus as Performer:
Toward a Posthumanist Culture? A University
Masque in Five Scenes, uma paródia do estado
contemporâneo da pós-modernidade na forma
de uma disputa medieval. (MAIA, 2017, p. 55).

A primeira ideia de Ihab Hassan ao propor o termo


era uma ideia imagética do ódio do ser humano contra
si mesmo. Silva (2010) explica que o autor acreditava
que esse neologismo poderia ser usado como mais uma
“imagem do recorrente ódio do homem por si mesmo”
(SILVA, 2010, p. 14). Percebe-se que a polissemia do
termo e seus usos durante as décadas criaram novos
sentidos para pós-humano.

De um lado, compreendido sob o aspecto corporal,


existe uma visão eufórica e hiperotimista de um
futuro caracterizado pela libertação do orgânico,
se projetando na dimensão do imaterial. De outro
lado, compreendido sob o aspecto da tecnociência,
é o espaço de construção de identidades funcionais
e tecnológicas, onde a prevalência da racionalidade
cede lugar à tecnociência, permitindo, assim, falar
de um terceiro ciclo evolutivo da espécie. E de
outro lado ainda, compreendido sob o aspecto
sociocultural, o pós-humano é o contrário da auto-
referência, é a consciência de que o ser humano
não apenas não é a medida do mundo, mas não
é nem mesmo a medida de si mesmo, ou seja, de
que o humano já era, perdeu-se nos confrontos
dos acontecimentos. (SILVA, 2010, p. 14).
Trabalhando com o conceito de transhumano,
Alves (2017) explica o aperfeiçoamento humano fará
surgir um transhumano, ou ainda, um ser pós-humano
ou pós-sapiens. Perceba aqui novamente a ideia de
aperfeiçoamento. Para Alves (2017) o transhumano será
constituído pelo “avanço da ciência e da tecnologia, que
permitirá a aplicação de técnicas das áreas de genética,
nanotecnologia, robótica e neurociência, possibilitando
superar os limites impostos ao ser humano por seu
próprio corpo biológico natural”.
Um interessante ponto de partida para
compreensão do conceito é a ideia de Silva (2010) ao
afirmar que o pós-humanismo poderia ser descrito, de
acordo com suas aplicações atuais, como a combinação
entre a imaginação, a ciência e a tecnologia, com
transformações na cultura e na consciência. Essa
definição será ampliada no próximo tópico por meio
possibilidades decoloniais da compressão do pós-
humano.
Abordar um conceito permeado da ideia de
evolução, progresso e aprimoramento se tornou um
desafio para mim. Como seria possível uma aproximação
com a temática de maneira a perceber no pós-humano
uma maneira não somente criativa, como também
libertária de ser e estar no mundo? Afinal de contas,
como explica Ali (2019), seria necessário perguntar, por
exemplo, pelo papel das tecnologias na manutenção da
colonialidade, “incluindo sua manifestação sistêmica
como supremacia branca global”. Para Ali, é necessária
a descolonização da computação, por meio do
descentramento do eurocentrismo e do ocidentalismo.

Eu argumento que, na medida em que a


computação é um fenômeno moderno, e a
modernidade é fundamentada e permanece
amarrada com o colonialismo e suas lógicas
estruturais facilitadoras – o que os teóricos
descoloniais chamam de colonialidade – então
pode ser que a computação continue a ter os
traços do legado sistêmico do colonialismo.
(ALI, 2019).

A tentativa de pensar o pós-humano a partir de


preceitos decoloniais passa por uma crítica aos princípios
colonizadores da tecnologia. Ali (2019) propõe o escopo
de uma “computação descolonial” como sendo não
apenas uma crítica à “internet das coisas”, como também
o questionamento a outros conceitos, como governança
da internet, big data e dataficação. É possível perceber,
então, que a decolonialidade vai operar com o conceito
de pós-humano de maneira estendida, ou seja, por meio
de uma crítica e subversão de tudo o que constitui o
pós-humano, como, por exemplo, as tecnologias.
De maneira resumida, Souza e Pessoa (2019)
afirmam que por decolonialidade

entendemos os movimentos para nos


desvincularmos dos modos de viver, pensar e
ser (MIGNOLO, 2007) que foram construídos
como resultado do processo de colonização e
mantidos mesmo após o fim do colonialismo na
forma de, por exemplo, hierarquias raciais, de
classe, sexuais, de gênero, linguísticas, espirituais
e epistêmicas, que caracterizam nosso sistema
mundial eurocentrista (GROSFOGUEL, 2010).
(SOUZA; PESSOA, p. 521, 2019, tradução nossa3).

Nesse sentido, a decolonialidade implica na tentativa


de subversão da ordem instituída pela colonização.
Segundo Vieira (2020), a colonialidade é um conjunto de
estruturas e significações nos quais a própria lógica do
conhecimento produz hierarquias, entre pessoas, saberes
e poderes, distinguindo de forma hierárquica as pessoas
no mundo. A colonialidade funda as relações da maneira
como as conhecemos hoje. A decolonialidade é um
projeto que se volta para o passado, por meio da crítica

3 We mean the movements towards delinking ourselves from the modes of


living, thinking and being (MIGNOLO, 2007) that were built as a result of
the process of colonization and have been maintained even after the end of
colonialism in the form of, for example, racial, class, sexual, gender, linguistic,
spiritual and epistemic hierarchies, which characterize our Eurocentrist
world-system (GROSFOGUEL, 2010).
e da problematização dos discursos eurocêntricos, para
construir um futuro outro.

Uma abordagem decolonial do pós-


humano questiona sim o colonialismo
tecnológico, mas não somente isso.
Questiona o próprio conceito de
humano como sendo um construto
eurocêntrico, pois como mencionei no
início do texto, o ideal humano seria
o homem, branco, rico, cisgênero e
heterossexual.

Uma das primeiras questões a serem subvertidas


pela decolonialidade seriam os binarismos ou
dicotomias, ou seja, o mundo estabelecido por meio de
binários opositores.
O pós-humanismo não funciona como área ou
disciplina, mas como uma frente heterogênea, por vezes
contraditória, de debate filosófico, prática cultural,
inovação tecnocientífica e militância política. Nele se
enredam argumentos, objetos, teorias, métodos e,
principalmente, indagações e provocações que emergem
da ruptura de binários constitutivos do humanismo,
como: sujeito vs. objeto, cultura vs. natureza, humano
vs. não-humano (máquina, animal, objeto) ou mente vs.
corpo etc. (BUZATO, 2019, p. 480).
O rompimento das estruturas binárias consegue
perceber o pós-humano não como um humano +
máquina, mas como um ser conjunto, pensando, por
exemplo, o corpo como prótese ao ser imbricado com
a tecnologia, abrindo a perspectiva para pensar ambos
como construtos sociais. Uma outra consequência
do rompimento com o binarismo seria perceber
humanos e não-humanos como participantes da
cultura. Nesse sentido, o pós-humano em uma
perspectiva decolonial rompe com a dicotomia e com
a essencialização das categorias.
Além da decolonialidade, um outro campo
teórico tem se engajado no uso do pós-humanismo
de maneira a romper com os binarismos: o feminismo
pós-humanismo crítico. Segundo Maia (2017), o pós-
humanismo crítico é uma “abordagem filosófica e
intelectual crítica em relação ao humanismo europeísta
e universalista” (MAIA, 2017, p. 262-263).

A crítica feminista vai contra


os binarismos, mas não apenas.
Critica, também, o projeto social
e econômico baseado na ideia de
“evolução da espécie”, que ameaça a
própria vida.
Interessante ressaltar que o feminismo pós-
humanista crítico não encara o tecnológico como
um mal absoluto, mas, ainda segundo Maia (2017),
percebe a tecnologia como um “instrumento possível
de emancipação no quadro da reconfiguração social
das relações de poder entre humanos e não-humanos”.
Uma das autoras que merece destaque nessa linha
de pensamento é a filósofa italiana/australiana Rosi
Braidotti, que por meio de um feminismo pós-humanista
crítico propôs um “método de desfamiliarização”
criando formas alternativas e criativas de coexistência
(MAIA, 2017).
Depois dessa rápida, mas complexa passagem por
tantos termos importantes à essa exploração, percebi
que realmente havia sido infectada. O tema me causava
interesse tal que passei a repensar possibilidades
teológicas a partir desses pressupostos. Afinal, um pós-
humano impulsiona uma transformação teológica,
se partirmos do entendimento de que pensar
religião implica pensar uma antropologia religiosa.
Grandezas teologais poderiam (e deveriam) ser revistas
a partir deste novo/outro/pós-humano.
Um dos temas que me veio à mente foi
eclesiologia. Afinal, foram aquelas benditas (ou
malditas?) seis reflexões de domingo que me levaram
a essa contaminação. Se a Igreja é o corpo de Cristo,
de acordo com o Cristianismo (I Coríntios 12:12-14;
Romanos 12:5; Efésios 3:6, 5:23, Colossenses 1:18, 1:24),
que corpo é esse que se une ao templo e à minha
existência virtualmente? Qual será o papel da tecnologia
em nossos ritos e liturgias depois do isolamento social?
Esse período de virtualidade experimental mudaria para
sempre nossa relação com o Templo? Seria esse o futuro
de nossas comunidades de fé?
O desassossego de minhas questões me levou a
pensar em um “Corpo virtual de Cristo”. Emprestei
de Santo Agostinho o conceito de Corpus Totum (Cristo
todo inteiro, Cristo íntegro, Cristo + Igreja) para pensar
em um Virtuale Corpus Totum. Santo Agostinho, segundo
Souza (2018), a partir do conceito bíblico de “monte”
(montanha), vê no monte a imagem do Cristo e de seu
corpo (Igreja). Souza (2018) explica que Corpus Totum é
o Corpo de Cristo estendido como um grande monte,
espalhando suas ladeiras até os confins do universo”
(SOUZA, 2018, p. 87). O monte como uma imagem
física, mas também simbólica do Cristo e de seu corpo,
me fizeram questionar se estaria incorrendo em um
erro conceitual ao pensar em uma virtualidade dessa
mesma fusão entre o Cristo e sua Igreja. Mas, o erro
exploratório sempre faz parte da jornada investigativa.
É preciso arriscar, virtualmente ou não.
Virtuale Corpus Totum4 é um termo que dá nome a
esse fenômeno eclesiológico de outras perspectivas e
possibilidades de ser Igreja que surgem no horizonte
teológico do pós-humano. O uso da tecnologia como
forma de se ritualizar a experiência com o Sagrado
tem se demonstrado, principalmente neste período
de isolamento social em decorrência da pandemia pelo
novo coronavírus, uma alternativa criativa para novas
possibilidades comunitárias, na qual o encontro é
mediado pela virtualidade. Pensar a partir de um
Virtuale Corpus Totum não virtualiza apenas a Igreja,
mas o próprio Cristo.
Um Cristo virtual pode soar como sendo uma
heresia imperdoável, mas se o conceito for percebido
em um contexto de decolonialidade é possível se pensar
uma possibilidade cristológica libertadora. Afinal, o
conceito de humano, como mencionado anteriormente,
é um conceito colonizado. Virtualidade e realidade
não devem ser compreendidas aqui como binários
4 Toda a minha gratidão ao Monge Marcelo Barros pela ajuda com a
formulação do termo em Latim.
opositores, mas como possibilidades imbricáveis. O
Cristo virtual é o que expande não somente o conceito
de humano, mas a possibilidade da condição humana,
por meio de um corpo ressurreto, um corpo outro,
muitas vezes irreconhecível por seus discípulos e
discípulas (João 20:15, 21:4, Lucas 24:13-35). Afinal, como
afirma Silva (2010, p. 61) a ressurreição é uma “dimensão
que escapa à experiência humana”.
Virtuale Corpus Totum é a expressão eclesiológica
que sugere uma Igreja pós-humana, ou ainda, uma
Igreja do/para o pós-humano. Tomado a partir da
decolonialidade, isso implica em afirmar que existe
no conceito o objetivo de se transpassar as barreiras
dicotômicas que percebe o mundo em binários. Cristo
e Igreja, humano e não-humano. O binarismo destes
termos trabalha em favor de uma lógica colonial que
promove hierarquias. O Cristo sobre a Igreja, o humano
sobre o não-humano. O pensamento decolonial vai de
encontro a essas forças estruturantes criando outras
possibilidades de se ser/viver Igreja. Importa, então, que
o Virtuale Corpus Totum seja criativamente imaginado a
partir de uma proposição decolonial, porque somente
assim, ainda que minimamente, poderei lidar com o
universalismo do conceito de pós-humano que apontei
logo no início deste ensaio.
Rever minha experiência de fé e conceitos tão
caros à minha caminhada cristã me fazem querer dar
nome a todas essas minhas inquietações. Confesso, que
o primeiro título deste ensaio foi “Teologia Ciborgue”.
Parecia-me o nome ideal! Entretanto, ainda que não
localizado em português, verifiquei que já existe um
autor pensando a partir destes termos. Scott A. Midson
publicou, em 2017, o livro Cyborg Theology: humans,
technology and God. Confesso que não li o livro. Fazer
qualquer compra com o Euro valendo mais de R$ 6,00
me parece impossível. Eu precisava de um nome meu.
Esse ato pode soar arrogante, afinal não há ineditismo
no pensamento teológico pós-humanista. Entretanto,
é subversivo uma mulher dar nome, principalmente
uma mulher lésbica, que optou em não ter filhos/as.
Afinal, foi dado ao homem, branco, rico, cisgênero e
heterossexual o poder de dar nome às coisas.
Pois bem, já que Teologia Ciborgue não era mais
uma opção, optei por Teologia Biônica. Não havia
nada inovador no termo, biônico já está quase em
desuso diante de tantos termos tecnológicos. Teologia
Cyberhumana, Teologia High-Tech, Teologia Biohacking,
tantas seriam as opções. Mas, a palavra biônica tem
uma memória afetiva para mim. No final da década de
1970, tinha um seriado chamado “A mulher biônica”,
que contava a história de uma mulher que tinha sido
reconstruída depois de um acidente. Confesso que essa
história me lembra a do Robocop, mas uma Teologia
Robocop não me soou bem! Prefiro as mulheres, se é
que me entende. Além disso, na década de 1980, tinha
um brinquedo chamado “Mão biônica” (atenção, a mão
biônica é diferente da “Super Garra”). Meu pai comprou
uma “mão biônica” para mim na Loja Bakana. Quem
é de Belo Horizonte vai se lembrar! Eu tentava fazer
tudo com a mão biônica, mal sabia eu que as próteses
(PRECIADO) me acompanhariam por tanto tempo.
Assim, apesar de pouco inovativo em um contexto de
pós-humano, achei oportuno reinventar o termo por
meio de seu uso decolonial. Rever memórias e subverter
o presente e o futuro.
Teologia Biônica. Estava batizada assim. Espero que
não encontre nenhuma teologia homônima no caminho!
E, caso encontre, acredito que o esforço decolonial
exige exercícios comunitários de revisão dos saberes. É
tempo de se escrever a quatro, seis, oito mãos (depois
de bem lavadas, é claro!). É tempo de se pensar e criar
juntes outras formas de ser e viver Igreja.
Esse inquieto ensaio deixou mais dúvidas do que
respostas.

Foi apenas uma tentativa de esboçar


desconfortos suscitados pela minha
atual experiência de como vivenciar
as celebrações de minha própria
comunidade de fé.

Outras tantas dúvidas surgem a partir daqui. Talvez,


justamente aqui diante das dúvidas, o Virtuale Corpus
Totum me pareça mais salvífico, pois, é na criatividade de
nossa imaginação teológica que poderemos criar novos
caminhos de solidariedade nos quais a virtualidade seja
um dispositivo libertador para se repensar o humano e
a vida.
REFERÊNCIAS

ALI, Syed Mustafa Ali. Descolonizar a computação:


entrevista com Syed Mustafa Ali. Digilabour.
18 abr 2019. Disponível em: https://digilabour.
com.br/2019/04/18/descolonizar-a-computacao-
entrevista-com-syed-mustafa-ali/. Acesso em 9
maio 2020.
ALVES, José Eustáquio Diniz Alves. Transhumano: a união
do ser humano com os robôs e a inteligência
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out. 2017. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.
br/78-noticias/572333-transumano-a-uniao-do-ser-
humano-com-os-robos-e-a-inteligencia-artificial.
Acesso em 10 maio 2020.
BUZATO, Marcelo El Khouri. O pós-humano é agora: uma
apresentação. Trabalhos em Linguística Aplicada.
Vol.58, no.2, Campinas, Maio/Ago 2019. Disponível
em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_art-
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YouTube. 16 mar. 2020. Disponível em: https://www.
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LE BRETON, David. Adeus ao corpo: antropologia e
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Teologia biônica: contágio pós-humanos decoloniais/ Ana Ester.


Serie: contágios infernais. São Paulo: Recriar, 2020. 32 p.

Supervisão Editorial: Iago Freitas Gonçalves


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