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ROÇA BARROCA

Josely Vianna Baptista

COSACNAIFY
Três cantos sagrados Moradas nômades
dos Mbyá-Guarani (impressões e vestígios
do Guairá da viagem)
TRADUÇÕES POEMAS

9 Nota da autora 24 Maino i reko ypykue 102 exercício espiritual 126 a foz do rio (vinheta)
sobre as palavras Os primitivos ritos
103 anjo da Cia. de Jesus 127 Tecoma
azuis celestes do Colibri
105 reductio 128 roça ba rroca
17 Catecismo da beleza 30 Ayvu rapvta
Augusto Roa Bastos A fonte da fala 106 da saudade 129 o sebo

42 Yvy tenonde 107 Antônio de Gouveia, 130 moradas nômades


A primeira Terra clérigo em Pernambuco
131 cortejo noturno
109 nenhum gesto (vinheta)
132 29 dias
59 Breve elucidário 110 dois rios
133 sue
87 Bibliografia 112 ostro
134 do zero ao zênite
91 Taking notes 114 ar
136 onde o céu encontra
93 Em busca do tempo 115 msstones a terra
dos longos sóis eternos
116 o ouro (vinheta) 137 Ia brisa rebelada

117 coix lacryma


118 Pablo Vera 139 Notas sobre um
percurso compartilhado
119 passo
Francisco Faria
120 guirá iiandu
122 treno

123 ao rés da relva

124 salso argento

125 o verbo
Para Milton, meu pai, para quem as palavras
(milagre de mil lágrimas ao sol)
sempre foram azuis, como seus olhos.

inmemoriam
Nota da autora sobre
s palavras azuis celestes

A palavra é efetivamente para o Mbyá o objeto e o sujeito de sua arte, seu

conteúdo, sua forma. O definitivo de sua essência, de seu modo de ser, é a


palavra, e toda a sua vida se estrutura para serfundamento e suporte de
palavras verdadeiras. Desde a criação do mundo e do homem, que é vista
como criação da palavra, até a morte de cada pessoa, que é valorizada
como grau maior ou menor de palavra realizada, o Mbyá só se entende
a si mesmo em função da palavra.
Bartomeu Melià

lJma das manifestações mais importantes da mitopoética


meríndia, os cantos do Ayvu rapyta foram coletados pelo
01

p quisador León Cadogan (Assunção, 1899-1973) entre os


Mbyá-Guarani do Guairá, Paraguai, nos anos 1940, e poste-
ri rmente publicados em Ayvu rapyta: Textos míticos de los
Mbyá-Guarani dei Guairá:' O livro registra cantos míticos

I A primeira edição é de 1959 (o material foi então publicado no Boletim


) I> Antropologia da FFLCH-USP, graças ao entusiasmo de Egon Schaden).
A dição consultada para minha tradução é a de 1992, preparada por Bar-
temeu Melià (Assunção, Ceaduc-Cepag, 1992).

9
dessa etnia relatados na linguagem autêntica de suas ayvu "H l" de seu próprio coração. O Colibri, em adejos sobre a
porã tenonde - "primeiras palavras inspiradas" -, que os r" nte do deus, farta de flores, respinga água em sua boca e
índios haviam mantido, até então, em segredo. Além de ()alimenta com frutos do paraíso.
muitas notas esclarecedoras, o livro traz a pioneira tradução 2. Ayvu rapyta: "A fonte da fala". Neste canto o deus su-

dos cantos para o espanhol feita por Cadogan, ao lado dos pr mo vai desdobrando de si o fulgor do fogo e.a neblina
originais em mbyá - um dialeto do guarani.' Divide-se em qu dá vida, a fonte do amor e do som sagrado. Faz a fonte
diversos capítulos, dos quais traduzi os três primeiros, que do fala aflorar de si e fluir por seu corpo, tornando-a sagrada,
contêm alguns dos principais conceitos da cosmologia gua- palavra-alma de origem divina. Desdobra de si os homens
rani. São os seguintes: ( as mulheres que iriam refletir sua divindade, Namandu
I. Maino i reko ypykue: "Os primitivos ritos do Colibri". d Grande Coração, Karaí, Jakaira e Tupã, pais e mães ver-
Descreve a cena da criação, nos últimos confins do caos obs- dadeiros da palavra inspirada que insuflará a alma em seus
curo em que Nande Ru Papa tenonde - o deus supremo numerosos filhos futuros.
- foi de si mesmo se desdobrando e se abrindo feito flor. 3. Yvy ienonde: "A primeira Terra". Com o saber contido
Em meio aos ventos gélidos do tempo-espaço primigênio, em seu ser-de-céu e sob o sol de seu lume criador, ou seja,
quando o Sol ainda não existia e os pios da Coruja sarapin- (" m sua sabedoria e seu poder, o deus supremo faz sur-
tada Urukure a eram prenúncios do leito tenebroso, em seu gir da ponta de seu bastão a Terra, criando em seguida
desabrochar o deus se entrevê no escuro, iluminado pelo os sete céus ou firmamentos e suas escoras, as pindovv,
palmeiras azuis - indestrutíveis, eternas, milagrosas. Sur-
H m os primeiros animais. Antes de recolher-se em seu
2 Um dos mais antigos idiomas preservados, o guarani é uma língua
profundo paraíso, o deus supremo pede aos "pais e mães
aglutinante, não-flexionada, caracterizada pela união dos elementos
constitutivos dos vocábulos. Sua forma de estruturação em constelações v rdadeiros" que nomeiem seus filhos como numes pro-
rítmicas e semânticas leva cada partícula a "assumir, por seu valor po- I .tores
das fileiras de labaredas, da neblina que engendra
sicional e modulatório, a função de um sem a ou miterna", como lern- as palavras inspiradas, da chuva e do granizo, fontes de
bra Roa Bastos em "En Ia carne viva dei mito" (Bareiro Saguier, Rubén.
A Ia víbora de Ia mar. Assunção: Alcándara, 1987). Essa configuração cons-
rI'scor, para que sua sorte prospere favoravelmente, para
telada, em que a língua opera por um sistema de justaposição e síntese, que entre eles impere a temperança, e para que orientem
e sua arquitetura imagética e rítmico-sonora conferem ao guarani uma sua existência com normas próprias de conduta. Por fim,
alta potencialidade poética, realizada nos mitos cosmogônicos mbyá, sussurra em segredo o "canto sagrado" - estabelecendo a
repletos de "palavras-montagem", assonâncias, paronomásias, ritmos
comunicação entre o divino e o humano - aos "primeiros
icônicos, metáforas e onomatopeias - mimetizando o mito mbyá de que
houve, no início dos tempos, um ruído portador da sabedoria da natureza, pais verdadeiros" de seus filhos e às "primeiras mães ver-
um som do cosmos se engendrando por meio da "linguagem fundadora". dadeiras" de suas filhas.

10 11
A partir de uma leitura atenta da tradução para o espa- qll havia feito, registrando seus reparos e sugestões em no-
nhol ' e de um estudo da estrutura das palavras em mbyá, LI!'; que integram o "Breve elucidário" que a complementa,
para o que me vali de diversas obras de referência, primeira- mas preferindo quase sempre seguir o texto estabelecido
mente fiz uma tradução ultraliteral dos cantos. Em seguida, por Cadogan e revisto e anotado por Bartomeu Melià, pois
atenta aos elementos formais do original, o texto foi retra- I) I vantamento das pequenas mas significativas variações
duzido em busca de "compensações" possíveis para sua qu as versões apresentam fugiria do escopo deste trabalho.
eficácia poética em nossa língua.s Além do texto-base ori- Cotejada com a versão para o espanhol, minha tradução
ginal, Teodoro Tupã Alves (importante liderança indígena, .ipresenta principalmente variações oriundas de um partido
ex-cacique, professor na aldeia de Ocoy, em São Miguel do lradutório que prezou a materialidade quase ideogramá-
Iguaçu, Paraná) entoou-me os cantos em mbyá e eu os gra- Ii 'a da língua indígena (como quando, por exemplo, redes
vei para melhor perceber suas modulações e tessituras so- ti imagens nomeiam abstrações), em vez de acatar a op-
noras. Nessa viagem a Ocoy, mostrei a Teodoro a tradução ,< o por vezes parafrástica do castelhano. O cuidado com a
rê rma transformou-se, então, num exercício escritural em
3 Além da tradução de Cadogan e da de Pierre Clastres em A fala sa- qu tentei infundir no português um pouco do "sussurro
grada, procurei conhecer a tradução de Kaka Werá Jecupé (Tupã Tenonde 1i ncestral"da língua guarani.
- A criação do Universo, da Terra e do Homem segundo a tradição oral Gua-
Os poemas da série "Moradas nômades", que comple-
rani. São Paulo: Peirópolis, 2001) e a de Douglas Diegues (feita a partir
da mesma edição em que me baseei e publicada no site Centopeia, di- 111 ntam este Roça barroca, procuram dialogar com a sofis-
rigido por Sérgio Medeiros e Dirce Waltrick do Amarante [http://cento- Ii ada trama sonora dos cantos, no umbral em que arcaico
peia.net, seção Traduções]). Todas adotam partidos tradutórios bastante (' moderno se encontram em cruzamentos híbridos. Há ne-
diversos. Para Diegues, que é autor também de uma inventiva "bersión
I 'S indícios de algumas das inquietações que me movem,
inédita ai portunhol salbahen" do Ayvu rapyta, "el mundo verbal guaraní-
tiko lembra um pouco el planeta dei futuro imaginado por el poeta russo t' mo os ritos - em sua vertigem de talhes e detalhes - de
Khlébnikov, donde los presidentes de todos los países seriam poetas, passagem, da reprodução e da morte 5 (esta que, historica-
un mundo sem polícias nim bandidos, governado por poetas-xamãs de
m nte, a arte e a poesia tentam "exorcizar").
imensos korazones".
Antes de começar a escrevê-Ias fiz algumas viagens, reais
4 A tradução para o português da cena de origem da Bíblia hebraica -
8ere'shith -, levada a cabo por Haroldo de Campos, é um excelente exem- (' imaginárias, a comunidades Mbyá do Paraná e da região
plo de tradução criativa em que a língua de chegada está impregnada
do estranhamento da língua do original. Esse procedimento tradutório
encontra eco na "literalidade sintática" postulada por Walter Benjamin ') Falo da morte real, e também da morte do Simbólico, que pode surgir
e na "tradução-texto" de Henri Meschonnic, que propõe a reconfigura- m estados-limite, quando, como lembra Lucia Santaella em Miniaturas
ção da prosódia do texto original na tradução (cf. Haroldo de Campos. (São Paulo: HackerjCentro de Estudos em Semiótica e Psicanálise da
Bere'shith, São Paulo: Perspectiva, 1993). pue-sp, 1996), "o Real nos atropela e o Imaginário nos abandona".

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vizinha do Guairá, a fim de conhecer um pouco seu modo Aqui, em minhas breves e incompletas Moradas nômades,
de vida, os rituais remanescentes, sua paisagem. O percurso procurei uma palavra metamorfizada por essas viagens di-
foi uma espécie de "viagem de iniciação", em que se está ao v 'rsas e intemporais - ao texto arcaico e à cosmogonia pri-
mesmo tempo imerso no lusco-fusco das reminiscências e 111 va, à translação dos sentidos sob paisagens estranhas, ao
sob os súbitos insights da percepção. Ele se inspirou, sim- rorpo silencioso e ao ritmo dessa fala em estado de arte que
bolicamente, na busca da "terra sem mal" (ver Apêndice), • (l poesia - "uma das raras formas de transe relativamente

o paraíso mítico dos Guarani, ainda procurado por alguns 1 itualizadas que ainda restam no Ocidente"." Como um pe-
grupos no zênite (do árabe samt: caminho, direção, rumo - queno gesto para aproximar nossa poesia da poesia amerín-
que os escribas medievais liam erroneamente senit). A cul- dia e dar um vislumbre das belas e indestrutíveis palavras
tura indígena" com que convivemos hoje, a singularidade azuis celestes.
de sua gente e de sua cultura foram um contraponto a meu
olhar peregrino - de certo modo, nessa viagem, estrangeiro
em sua própria terra.
Tentei dar novas nuances ao trabalho que venho desen-
volvendo desde meus primeiros livros: em Ar e Corpografia,
uma espécie de "sensualização" da linguagem, a convocação
do corpo à leitura, com o uso de palavras aeradas em blocos
cerrados de texto - criando uma "estrofação sensível" em que
a dispersão das letras quer desautomatizar o olhar e trazer
o fôlego do leitor ao centro mesmo do poema; em Os poros
jlóridos, a partir do descentramento do sujeito e de um olhar
expansivo e ao sabor do acaso, esboço uma reflexão sobre
corpo/signo, unidade/fragmentação, linguagem/identidade."

6 Com a perda vertiginosa de suas florestas, os Mbyá vivem um drama


histórico.
7 Ar (São Paulo: Iluminuras, 1991), Corpografia: autópsia poética das pas-
sagens (lIuminuras, 1992) e Os porosjlóridos (publicado originalmente em
espanhol [Los poros jloridos. Cidade do México: Aldus, 2002]) - estes dois
com imagens de Francisco Faria - foram reunidos em Sol sobre nuvens
(São Paulo: Perspectiva, 2007 [Signos 43]). 11 Georges Lapassade, Les états modiJiés de conscience. Paris: PUF, 1987.

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rca da tradução para a língua portuguesa
cantos mitológicos dos Mbyá-Guarani do Guairá)"

(:1,1 bro com unção, como não poderia deixar de ser, a tra-
dI! .ão para a bela língua portuguesa desses "cantos" dos pri-
mltivos Guarani do Guairá: um povo que celebrava a palavra
1 01 no o vínculo fundamental entre o homem eo universo.
s cantos que integram o Ayvu rapyta, ou textos míticos
dos Mbyá-Guarani do Guairá, pertencem, como a Ilíada, à
mais pura tradição oral do homem. O poeta-profeta cego
l lomero compilou essa monumental obra de versos que se
I1.msmitiam de boca em boca desde os tempos mais primi-
I vo do amanhecer da civilização.
Não sabemos há quanto tempo andavam vagando pela
ltugua os cantos do Ayvu rapyta antes que León Cadogan
" r cebesse como testemunho da gratidão dos Mbyá do

uando Augusto Roa Bastos veio a São Paulo em 2003 para lançar seu
V/H"ia do Almirante, que traduzi e editei por minha pequena editora Mira-
"111,1, ouviu, encantado, trechos da primeira versão que fiz de A primeira
, Ira, lidos pela atriz Bete Coelho na penumbra do Finnegans Pub. Na
1IIIItlhã seguinte ao lançamento, entreguei a ele os manuscritos do traba-
lho, e dias depois chegou-me pelo correio este generoso texto. Roa Bastos
I ti! ceu em 26 de abril de 2005, em Assunção, aos 88 anos.

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Guairá. Ao salvar o indígena Mario Higinio de uma con- ronsidera que a palavra empenhada numa promessa é mais
denação injusta na prisão de Villarrica, Cadogan ganhou lorte que mil documentos.
a confiança do cacique Pablo Vera, de Yro'ysã, que decidiu Na cosmogonia desses cantos a linguagem é uma mani-
revelar-lhe os textos sagrados que eram mantidos cuidado- 1"Htaçãodo amor divino, surgida de sua reflexão como forma
samente guardados de toda intrusão estrangeira. d,' ompartilhar com todas as criaturas uma porção da divin-
Numa serena luz crepuscular, reunidos em volta de uma .lnd . Antes de existir a Terra, entre as turvações das trevas
fogueira, León Cadogan talvez tenha sido o primeiro homem p' irnitivas, o verdadeiro Pai dos Karaí, dos [akaira, dos Tupã,
branco que conheceu as profundezas das primeiras belas pa- d,'u-lhes consciência de sua divindade como deuses-patriar-
lavras ou ne'e ayvu porã tenonde. Curiosamente, elas foram I ,ISde suas descendências. E prontamente, como um reflexo

publicadas pela primeira vez no Boletim 227, Antropologia d,' eu coração, compartilhou a divindade com as Mães da
nv 5, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Univer- I"ç : Karaí Chy Ete, Jakaira Chy Ete e Tupã Chy Ete. Erna-
sidade de São Paulo, em 1959. Por obra do curso e recurso Ilações da divindade primordial, elas se transformaram nos
desta enigmática América Latina, hoje os cantos se transva- 'verdadeiros progenitores das palavras-almas". E essas pala-
sam à doçura cadenciosa da língua portuguesa por obra e VI';IS,
na boca do mouruvicha, chefe temporal, transformavam-
prodígio da poeta Josely Vianna Baptista. I' m canto poético, fundamento ontológico, preceito ético.
Tive a oportunidade de ouvir parte dessa tradução numa Alma e palavra são inseparáveis para os Guarani: o uni-
magnífica leitura realizada por uma jovem atriz durante uma verso mítico está intimamente ligado ao universo poético.
visita minha a São Paulo, e posso testemunhar a cadenciosa Não sou um etnólogo. Meus amigos Miguel Chase-Sardi
eufonia dos cantos no idioma de Camões. Ayvu é, entre os (11Ir, lizmente já falecido) e Bartomeu Melià têm muito mais
Guarani, a linguagem humana, tanto o som quanto a evoca- .rutoridadedo que eu na exegese dos textos sagrados dos
ção mental. E no canto Ayvu rapyta o poeta, mago, mistagogo, (:lwrani. Minha visão está estritamente circunscrita ao lite-
profeta e celebrante revela que o primeiro entre todos, o Pai I"rio, e ali é exuberante a beleza que nunca está separada do
Namandu, "com o saber contido em seu ser-de-céu.r e sob o pl'I1Samento. Da reflexão, que é uma volta do discurso sobre
sol de seu lume criador.j iluminou-se a fonte da fala/ e fez mesmo para mergulhar em outros níveis de significação.
com que fluísse por seu ser, divinizando-a". Desde então, a Wjomos, por exemplo, o Canto Il, "A fonte da fala", a fonte
palavra será sagrada para os Mbyá-Guarani por ser parte de d,l palavra. Ali o profeta-poeta-mistagogo nos revela que an-
Deus. Ultrajá-Ia com a mentira é uma blasfêmia. Entre os h" de a Terra existir, "O Primeiro Pai Namandu/ de si foi
indígenas, dar a palavra é dar a alma. Eles não entendiam illorando a fonte do amor".
como um simples papel traçado com signos e tinta podia ter que parece nos dizer, como que em sonhos, o profeta-
mais valor que a palavra dada. Ainda hoje, gente do campo .unã? Não está dando um testemunho da prevalência dos

19
sentimentos sobre a solidez contundente do que é material? '111(\ sonham. E esse passado inclui os antigos relatos da
Primeiro cria o amor e depois a terra onde cultivá-lo. Nestes lf'II'i), os mitos e mistérios. Por isso concelebro que o Brasil,

tempos duros, de relativização dos valores, faz bem lançar 1111 I nasceu esse resgate através do Boletim de Antropolo-
um olhar a essas culturas antiquíssimas que a civilização I .I da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade de
silenciou, talvez sem querer, como parte da estridência de f',lo Paulo, com as primeiras publicações de León Cadogan,
nossos avanços. ,11\ora devolva a si mesmo esse precioso tesouro por inter-
Adiante, o xamã-mistagogo diz que "Tendo aflorado, a uu-dio da tradução de Josely Vianna Baptista.
sós, a fonte da futura fala,! e desdobrado, a sós, um pouco H.sas palavras pronunciadas por um desconhecido cacique
de amor;/ tendo criado, a sós, um breve som sagrado.z ele ,I 1.(\6nCadogan são nosso patrimônio comum. Espero que aju-

refletiu longamente/ sobre com quem compartilhar a fonte .11'111 a fortalecer o diálogo longamente preterido entre nos-

da fala". 1),' países.

Ele não está nos dizendo, de algum modo, que a lingua-


gem e a reflexão nascem na solidão, mas estão destinadas a
ser compartilhadas? E bastam estes dois pequenos aponta- Augusto Roa Bastos
mentos para assinalar a importância do legado dos antigos
Mbyá-Guarani do Guairá e para compreender a valiosa ta-
refa que [osely Vianna Baptista assumiu ao traduzir aqueles
cantos para a doce língua portuguesa. Sei que a tarefa está
inconclusa e faço votos de que os organismos interessados
na busca dos verdadeiros sedimentos das antigas sabedo-
rias não os deixem sepultados no ossuário do esquecimento.
Compartilhamos com o Brasil e a Argentina o maravilhoso
legado da cultura guarani. Os mitos fundadores, com seus
heróis selváticos, os animais heráldicos da raça, a transmis-
são dos mistérios, os conceitos instrumentais para a com-
preensão do mundo misterioso de rios e selvas: tudo está
contido nessa revelação que é ao mesmo tempo Gênese, Le-
vítico, Salmos e Provérbios.
A base do verdadeiro diálogo entre os povos está, sem dú-
vida, no passado que eles compartilham, bem como no futuro

20 21
Maino i reko ypikue Os primitivos ritos do Colibri

Nande Ru Papa tenonde Nosso primeiro Pai, sumo, supremo,


gueterã ombojera sós foi desdobrando a si mesmo
pytu ymágui. do caos obscuro do começo.

2 Yvára pypyte, As celestes plantas dos pés,


apyka apu'a i, o breve arco do assento,
pytu yma mbytére a sós foi desdobrando, ereto,
oguerojera. do caos obscuro do começo.

3 Yvára jechaka mba'ekuaa, o lume de seus olhos-de-céu,


yvára rendupa, os divinos ouvidos,
yvára popyte, yvyra'i, as palmas celestes arvorando o cetro,
yvára popyte rakã poty, as mãos celestes com os brotos floridos
oguerojera Namanduf abriu Namandui, desabrochando
pytu yma mbytére. do caos obscuro do começo.

4 Yvára apyre katu 1 Sobre a fronte do deus


jeguaka poty as flores do cocar
ychapy recha. - olhos de orvalho.
Yvára jeguaka poty mbytérupi Entre as corolas do cocar sagrado
guyra yma, Maino i, o Colibri, pássaro original,
oveve oikóvy. pairava, esvoaçante.

24 25
Nande Rú tenondegua Nosso primeiro Pai
oyvára rete oguerojera ijave oikóvy, foi seu corpo divino desdobrando
yvytu yma ire oiko oikóvy: m meio aos ventos primitivos:
oyvy ruparã i oikuaa'ey mboyve ojeupe, ainda sem ter lume de seu leito terreno,
oyvarã, oyvyrã ainda sem ter lume
oiko ypy i va'ekue de seus futuros Céu e Terra
oikuaa'eymboyve i ojeupe, - que eram desde a origem-,
Maino i ombojejuruei; abria-lhe a boca de rocio o Colibri;
Namanduf yvarakaa Colibri lhe dava alento
Maino i. om alimentos do céu.

6 Nande Rú Namandu tenondegua ti Nosso Pai Namandu, o primeiro,


oyvarã oguerojera'ey mboyve i, antes de desdobrar de si seu céu
pytu A'e ndoechái: não se viu entre atreva,
Kuaray oiko'eyramo jepe, ainda que o sol não existisse.
opia jechakáre A'e oiko oikóvy; A luz de seu próprio coração o revelava;
oyvárapy mba'ekuaápy eu sol era
onembokuaray i oiny. o saber contido em seu ser-de-céu.

7 Namandu Ru Ete tenondegua Namandu, nosso Pai verdadeiro, o primeiro,


yvytu yma ire oiko oikóvy; vivia entre o longínquo vento sul,
opytu'ui oiny ápy onde fazia pouso para o repouso
Urukure'a i omopytu i oiny: ia a Coruja urdindo o lusco-fusco:
omoiiendúma pytu rupa. seus pios, no escuro - augúrios
do tenebroso leito.

27
8 Namandu Ru Ete tenondegua Namandu, nosso primeiro, verdadeiro Pai,
oyvarã oguerojera'ey mboyve i; untes de ir desdobrando seu futuro céu,
Yvy tenonde oguerojera'e}i mboyve i; .intes de ir desdobrando a primeira Terra,
yvytu yma ire A' e oiko oikóvy: j{\ xistia entre o sombrio vento sul:
Nande Ru oiko i ague yvytu yma, (' 'se vento primeiro em que Nosso Pai viveu
ojeupity jevyma " mpre vem outra vez
ára yma ojeupity navõ 11 fim do inverno,

ára yma iiemokandire ojeupity navõ. ;1 ntes que o inverno reviva seus renovos.

Ara yma opa ramove, inverno fenesce,


tajy potypy, ) ipê floresce,
yvytu ova ára pyaúpy: s ventos migram para o tempo novo:
oikóma yvytu pyau, ára pyau, , vêm os ventos novos, a primavera,
ára pyau iiemokandire. a rediviva primavera.

29
Ayvu rapyta A fonte da fala

Namandu Ru Ete tenondegua Namandu, nosso Pai verdadeiro, o primeiro,


oyvára petetgui, d uma pequena parte de seu ser-de-céu,
oyvárapy moa'ekuaágiu, ti saber contido em seu ser-de-céu,
okuaararávvma t' sob o sol de seu lume criador,

tataendy, tatachina ogueromonemona. alastrou o fulgor do fogo e a neblina que dá vida.

2 Oãmyvyma, Incorporando-se,
oyvárapy mba'ekuaágui, , m o saber contido em seu ser-de-céu,
okuaararâvvma l' sob o sol de seu lume criador,
ayvu rapytarã i oikuaa ojeupe. iluminou-se a fonte da fala.
Oyvárapy mba'ekuaágui, om o saber contido em seu ser-de-céu,
okuaararávvma, , sob o sol de seu lume criador,
ayvu rapyta oguerojera, nosso Pai iluminou-se a fonte da fala
ogueroyvára Nande Ru. fez com que fluísse por seu ser, divinizando-a.
Yvy oiko'eyre, Antes de a Terra existir,
pytu yma mbytére, no caos obscuro do começo,
mba'e jekuaa'esre, tudo oculto em sombras,
ayvu rapytarã i oguerojera, amandu, Pai verdadeiro, o primeiro,
ogueroyvára Namandu Ru Ete tenondegua. florou-se a fonte da fala e fez com que fluísse por seu
[ser, divinizando-a.


Ayvu rapytarã i oikuaámavy ojeupe, /\ fonte da futura palavra tendo afiorado,
oyvárapy mba'ekuaágui, \ m o saber contido em seu ser-de-céu,
okuaararávvma I' ob o sol de seu lume criador,
mborayu rapytarã oikuaa ojeupe. ti si foi aflorando a fonte do amor.
Yvy oiko'eyre,
pytú yma mbytére, 'I' ndo aflorado a fonte da fala,
mba'e jekuaa'eyre, I -ndo aflorado um pouco de amor,
okuaararávyma ç o saber contido em seu ser-de-céu,
fi

mborayu rapytarã i oikuaa ojeupe. (' sob o sol de seu lume criador,
o princípio de um som sagrado ele, a sós, criou.
4 Ayvu rapytarã i oguerojera i mavy, /\ ntes de a Terra existir,
mborayu petei i oguerojera i mavy, 110caos obscuro do começo,
oyvárapy mba'ekuaágui, tudo oculto em sombras,
okuaararávyma O princípio de um som sagrado ele, a sós, criou.
moa'e a'ã rapyta petei oguerojera.
Yvy oiko'eyre,
pytú yma mbytére,
mba'e jekuaa'eyre
mba'e a'ã petef i oguerojera ojeupe.

32 33
Ayvu rapytarã i oguerojera i mavy ojeupe; T ndo aflorado, a sós, a fonte da futura fala,
mborayu pete; oguerojera i mavy ojeupe; (' desdobrado, a sós, um pouco de amor;
mba'e a'ã pese; oguerojera i mavy ojeupe, lendo criado, a sós, um breve som sagrado,
ochareko inomâ ('I refletiu longa mente
mavaêpepa ayvu rapyta omboja'c i anguã; bre com quem compartilhar a fonte da fala;
mborayu pete: i omboja'o i anguã; H bre com quem compartilhar o amor,
mba'e a'ã íieychyrõgui omboja'o i anguã. com quem partilhar as fieiras de palavras do som sagrado.

Ochareko iíiomavy, l pois de muito meditar,


oyvárapy mba'ekuaágui, (' m o saber contido em seu ser-de-céu,
okuaararávyma (' sob o sol de seu lume criador,
oyvára irürô: i oguerojera. d sdobrou-se em quem refletiria
H 'U ser-de-céu.

34 35
rr,----------------------------

6 Ochareko iíiomavy, I) pois de refletir,


oyvárapy mba'ekuaágui, (' m o saber contido em seu ser-de-céu,
okuaararávvma (' ob o sol de seu lume criador,
Namandu Pia Guachu oguerojera. criou o Namandu de Grande Coração.

Jechaka mha'ekuaa reve oguerojera. .riou-o juntamente com o sol de seu lume criador.
Yvy oiko'eyre, Antes de a Terra existir,
pytú ymambytére, II caos obscuro do começo,
Nãmandu Py'a Guachu oguerojera. criou o Narnandu de Grande Coração.
Gua'y reta ru eterã,
gua'y reta íie'êy ru eterã, I'ara que fosse o pai de seus muitos filhos vindouros,
Namandu Py'a Guachu oguerojera. ()verdadeiro pai das almas dos numerosos filhos vindouros,
('I criou o Narnandu valoroso.
A'e va'e rakyguégui,
oyvárapy mba'ekuaágui,
okuaararávvma,
Karaí Ru Eterã,
Jakaira Ru Eterã,
Tupã Ru Eterã,
omboyvárajekuaa.
Gua'y reta ru eterã,
gua'y reta íie'êy ru eterã,
omboyvára jekuaa.

37
7 A'e va'e rakyguégui, I) 'pois disso,
oyvárapy mba'ekuaágui, tom o saber contido em ser-de-céu,
okuaararávvma, t' sob o sol de seu lume criador,
Karai Ru Eterã, Iornou lúcidos da própria divindade
[akaira Ru Eierã, o v rdadeiro pai dos futuros Karaí,
Tupã Ru Eterã, () v rdadeiro pai dos futuros [akaira,
omboyvárajekuaa. o verdadeiro pai dos futuros Tupã.
Gua'y reta ru eterã,
gua'y reta ne'êy ru eterã, I pois disso,
omboyvára jekuaa. o verdadeiro Pai Namandu.
para refletir seu coração,
8 A'e va'e rakykuégui, (i'z saber-se divina
Namandu Ru Ete I futura Mãe verdadeira dos Namandu:
opia rechéiguarã o verdadeiro Pai Karaí,
omboyvárajekuaa para refletir seu coração,
Namandu Chy Eterã i; (l'Z saber-se divina
Karai Ru Ete, ;I futura Mãe verdadeira dos Karaí.
omboyvára jekuaa 'lambérn o verdadeiro Pai [akaira,
opy'a rechéiguarã para refletir seu coração,
Karaí Chy Eterã i. ("Z saber-se divina
jakaira Ru Ete, a'érami avei, ,I futura Mãe verdadeira dos Jakaira.
opy'a rechéi guarã E o verdadeiro Pai Tupã,
omboyvárajekuaa para refletir seu coração,
jakaira Chy Eterã i. r Z saber-se divina
Tupã Ru Ete, a'érami avó, :t futura Mãe verdadeira dos Tupã.
opia rechéi guarã
omboyvárajekuaa
Tupã Chy Eterã i.

39
,.
9 Guu tenondeguo. yvárapy Por terem recebido o lume
mba'ekuaa omboja'o riréma; livino do próprio Pai primeiro;
ayvu rapytarã i omboja riréma; por terem recebido a fonte da fala;
mborayu rapyta omboja'o riréma; por terem recebido a fonte do amor
moa/e a'ã neychyrõ omboja'o riréma; \ as fieiras de palavras do som sagrado;
kuaarara rapyta ogueno'ã rire, por estarem unidos à origem do saber criador,
a'ekue ípy: também os chamamos de
Ne'êy Ru Ete pavêngatu, inspirados pais verdadeiros das palavras-almas;
Ne'êy Chy Ete pavêngatu, inspiradas mães verdadeiras das palavras-almas.
ja'e.

4° 41
Yvy tenonde A primeira Terra
Primeira parte Primeira parte

Mamandu Ru Ete tenondegua verdadeiro Pai Namandu, o primeiro,


oyvy ruparã i oikokuaámavy ojeupe, " u leito na Terra para si mesmo concebendo,
oyvárapy mba'ekuaágui, -om o saber contido em seu ser-de-céu,
okuaararávvma t' sob o sol de seu lume criador,
opopygua rapyta ire r z com que da ponta de seu cetro
yvy ogueromoiiemona i oiny. f sse surgindo a Terra.

2 Pindovy ombojera yvy mbyterãre; Uma palmeira azul criou no futuro centro da Terra;
amboae ombojera Karaí ambáre; utra na morada de Karaí;
Pindovv ombojera Tupã ambáre IJ ma palmeira azul na morada de Tupã;

yvytu porã rapytáre ombojera Pindovy; na fonte dos bons sopros da Terra, uma palmeira azul;
ára yma rapytáre ombojera Pindovy; riou cinco palmeiras azuis:
Pindovy petei iiirni ombojera: a morada na Terra está atada a essas palmeiras eternas.
Pindovyre ojejokua yvy rupa.
Existem sete céus;
Mboapy meme rire oji yva; céu se assenta sobre esteios:
yva ijyta irundy: seus esteios são cetros.
yvyra'ípy ijyta. céu que se estende com os ventos
Yva itui va'e yvytúpy Nosso Pai empurrou, mandou embora.
oayiia imondôvv Mande Ru.

42 43
4 Yvyra'i mboapypy rangê omhoupáramo, Primeiro colocou três esteios no céu,
oku'e poteri yva; (' o céu ainda oscilava.
a'éramiramo, Por isso,
omboyta irundy yvyra'ípy; fincou-lhe quatro esteios-cetros,
a'éramo ae oi endaguãmy, l'ele ficou no lugar certo,
ndoku'evêima. H m se mover.

Yvy rupa mongy'a ypy i are uem primeiro sujou o leito terreno
mbói yma i; fOi a serpente do começo;
a'anga i tema iiande yvypy ãngy oiko va'e: agora em nossa Terra só resta seu reflexo:
a'ete i va'e ,Iverdadeira vive fora
oi ãngy Nande Ru yva rokâre. do céu de Nosso Pai.

6 Nande Ru tenonde yvy rupa li No leito terreno de Nosso Pai


oguerone'ê ypy i va'ekue, primeiro canto,
oguerojae'o ypy i va'ekue, primeiro lamento,
yrypa i, nakyra pytã i. roi da yrypa, a pequena cigarra vermelha.

7 Yrypa yma oime A cigarra vermelha do começo


Nande Ru yva rokáre: stá fora do céu de Nosso Pai:
a'anga i tema ãngy opytya va'e agora em nossa Terra
yvy rupáre. HÓ sua sombra resta.

44 45
8 Yamai ko yja, yamai
y apo are. por muito tempo fez as águas.
Nande yvypy of va'e que mora hoje em nossa Terra
a'ete ve'eyma: 11 o é mais o verdadeiro,

a'ete va'e oime Nande Ru yva rokáre; o verdadeiro está fora do céu de Nosso Pai:
a'anga i téma agora em nossa Terra
ãngy íiande yvypy oiko va'e. só resta seu reflexo.

9 Nande Ru, yvy ojapóvy, uando Nosso Pai fez a Terra,


ka'aguy meme aroka'e: tudo era mata:
íiuu jipói araka'e. não existiam campos.
A'éramiramo, Por isso,
íiuu ruparãre omba'apo va'erã para que fosse elaborando prados
tuku pararã i ombou. ~ z vir o tucura.
Tukw pararã i guevi oikotu i ague, No lugar em que o tucura fincou
kapi'i rembypy i oíiemoíia: 3S patas traseiras
a'égui maê oiko íiuu. foram brotando brenhas de biurás
Nuu ogueropararõrã, só então despontaram os prados.
oguerochiri tuku pararã i. E no campo tiniram,
A'ete va'e tilintaram os sons do tucura
Nande Ru yva rokárema oime: omemorando.
ãngy opyta va'e a'enga i téma. O tucura originário
stá fora do céu de Nosso Pai:
só sobrou sua sombra.

47
10 Nuu ojekuaa i mavy, 'li uando o sol iluminou o prado,
ogueroiie'eruiu ypy i va'ekue, os primeiros sons que se ouviram,
oguerovy'a ypy i va'ekue, ti uem primeiro se alegrou
inambu pytã. f' i o inhambu vermelho.
Inambu pytã inhambu vermelho
nuu oguerone'endu. ypy i va'ekue, seu pio o primitivo som no prado -
oime ãngy Nande Ru yva rokâre: agora está fora do céu de Nosso Pai:
yvy rupápy oiko i va'e, hoje no leito terreno
a'anga i téma. H6 resta seu reflexo.

11 Nande Ru yvy rupa omboai ypy i va'ekue, 'I uem primeiro feriu a Terra na morada de Nosso Pai
tatu i. roi o tatu.
A'ete va'eyma Não é mais o tatu verdadeiro
tatu i ãngy reve oiko i va'e iiande yvypy: que existe agora em nossa Terra:
a'e va'e a'anga i reitéma. sse não passa de um espectro.

12 Pytu ja, Urukure'a i. nume do escuro é o murucutu.


Nande Ru Kuarav, ko'êja. ~Nosso Pai, o Sol, lume da aurora.

49
Segunda parte Segunda parte

13 Nande Ru tenonde oiiemoovva ropy pota; Nosso primeiro Pai, antes de adentrar no céu profundo,
a'éramiramo,kórami ijayvu: assim falou:
"Ndee ae, Karaí Ru Ete, "Só tu, Karaí, pai verdadeiro,
tataendy neychyrõre, farás com que teus filhos,
mba'eve oupity'e}i va'erã ano'ã va'ére, s Karaí de Grande Coração,
remoneangarekóta nde ra'y, uardem a fileira de labaredas
Karaí Py'a Guachu. m que me inspiro.
A'évyma, Assim,
emoiieenôi "Karaí Tataendy ja", ere. nomeia-os 'Karaí senhores das labaredas'.
Oneangareko va'erã tataendy ryapurãre; Para que guardem o crepitar das labaredas,
ára pyau navõ emboguyuka i a cada primavera faz que avivem
tataendy neychyrõ, as fileiras de labaredas,
tataendy ryapu oendú anguã a fim de que os adornados com o cocar de plumas
jeguakáva jeayu porãngue i, as adornadas com flores nos cabelos,
jachukáva jeayu porangue i". scutem, sempre, o crepitar das labaredas".

14 A'e va'e rakykuégui, 11 E disse então


jakaira Ru Etépy: ao verdadeiro Pai [akaira:
"Néi, ndee reneangarekóta tatachina "Pois bem, tu irás cuidar da neblina
ne'êngatu rapytarã íre. que está na fonte das palavras inspiradas.
Cnee jeupe aikuaa va'ekuére emoneangareko nâe ray, Faz com que teus filhos guardem o que, a sós, criei,
jakaira Py'a Guachu. Jakaira de Grande Coração.
A'évyma, emoiieenôi: Assim, nomeia-os:
tatachina ne'êngatu jarã i, 'senhores da neblina das palavras inspiradas',
ere nde jeupe". diz".

5° 51
lS A'e va'e rakykuégui, "I E depois,
Tupã Ru Etépy aipo e'i: disse ao verdadeiro Pai Tupã:
"Ndee reneangarekóta Para Guachúre, "Tu cuidarás do mar
Para Guachu rakã a'ejavíre. de todos os ramos do mar.
Yvára nemboro'y rekorã ano'aukáta ndévy. Farei com que te ergas inspirando
Va'éreke, as leis que irão refrescar o firmamento.
nde ra'y Tupã reta pia guachu rupi Assim,
mba'e nemboro'y eraauka jevy yvy rupáre, por meio de teus filhos, os Tupã de Grande Coração,
nande ra'y jeayu porãngue i pe, I va sempre à morada terrena a fonte do frescor
nande rajy jeayu porãngue i pe". para nossos filhos queridos,
para nossas filhas queridas".
16 Namandu Ru Ete tenondegua
yvy rupáre jeguakáva apyre i pe, I1I O verdadeiro Pai Namandu, o primeiro,
jachukáva apyre i pe prestes a estender o bom saber sobre a Terra
arandu porã ogueroyvyiukátamavy, sobre a fronte dos adornados com o cocar de plumas,
Jakaira Ru Etépy aipo e'i: sobre a fronte das adornadas com flores nos cabelos,
disse ao verdadeiro Pai Jakaira:
17 "Néi, tatachina rangê i
emboupa nãnde ra'y apytére, I1 "Sim, primeiro farás descer
iiande rajy apytére. a neblina sobre a fronte de nossos filhos,
Ara pyau nãvõ eroatachinauka i d nossas filhas.
nde ra'y Jakaira Py'a Guachúpe 1\ cada primavera leva a neblina vivificante,

yvy rupa. por meio de teus filhos, os Jakaira de Grande Coração,


li leito terreno.
A'évare ae,
nande ra'ykue íry, S isso fará possível
nande rajykue íry oiko porã i va'erã". il sorte de nossos filhos
t' filhas ser favorável".

S3
18 A'e va'e rakykuégui: [ pois disso,
"Karai Ru Ete, Karaí, pai verdadeiro,
nâee ave tataendy farás com que o fogo sagrado
moa/e porã i emboupa i encontre abrigo
iiande ra'y jeayúpe, em nossos filhos queridos,
nande rajy jeayúpe". em nossas filhas queridas".

"Va'ére, che ra'y Tupã Ru Ete, "E por isso, Tupã, meu filho, pai verdadeiro,
mba; e nemboro'yrã ano'ã va'égui tio granizo e da chuva guardarás o frescor
iuinde ra'y pia mbytépy emboupa i. no âmago do coração de nossos filhos.
A'éramo ae, 'ó assim
yvy rupáre opu'ã va'erã reta, na vida dos que irão se erguer no leito terreno,
jeayu porã i omombiachéramo jepe mesmo dos que não querem conviver com amor,
oguerokatupyry i va'era". haverá temperança.

19 "Mba'e nemboroyguivy ae, i'J Pois com a vinda dessa névoa fria
mborayu rekorã i a'e ague nossas filhas queridas,
nomboaku aéi va'erã nossos queridos filhos vindouros,
iiande ra'y jeayurã i irão conviver nos termos do amor
iiande rajy jeayurã i". s m sofrer os excessos do calor".

54 55
20 Namandu Ru Ete tenondegua, o; t\1'amandu,pai verdadeiro, o primeiro,
omoneenoimoa i mavy gua'y ru eterã, I pois de nomear cada um dos verdadeiros pais de
gua'y ne'êy ru eterã, [seus filhos vindouros,
iamoarãre ae ae i: c cada um dos verdadeiros pais das palavras-almas
"Ko va'e rakykuégui, [de seus filhos vindouros,
opomoneenói riréma, lodos a sós em seus lugares certos, falou:
pene ambarã ae ae ire, "Agora,
yvfre jeguakáva rekorã i, depois de nomeá-Ias,
jachukáva rekorã i lodos a sós em seus lugares certos,
peê ae peikuaáne". da conduta dos adornados com o cocar de plumas,
da conduta das adornadas com flores nos cabelos,
21 Va'e rakykuégui, vós, .por vós mesmos, ireis saber".
ombojeguaka vyapu gua'y Ru Ete tenondeguápe,
ombojachuka vyapu guajy Chy Ete tenondeguâpe, I Hpor fim,
va'e rakykuégui ae s gredou o canto sagrado aos verdadeiros pais primeiros,
YVJÍreopu'ã rei reta va'erã H gredou o canto sagrado às verdadeiras mães primeiras,

oiko porã i anguã. para que os amanhãs


olhessem, vivendo e bem,
s muitos filhos eleitos para erguer-se no leito terreno.

S6 S7
reve elucidário*

mto I
primitivos ritos do Colibri

ulno ireko ypykue


"ltlino: o termo mbyá-guarani designa o colibri, ou beija-fior
(mainomby ou mainumby, em guarani clássico), presença
(' nstante em diversas mitologias ameríndias. Para os
Mbyá, o colibri - além de surgir do caos primigênio para
alimentar, com o néctar das fiores que beija, o deus que
está desabrochando - é mensageiro-conselheiro dos xa-
mãs e protetor das crianças. Em alguns mitos guarani,
(·1 surge como a personificação de um deus.
, kc>: (var.: teko; gueko; gueko): modo de ser, o modo de vida
Cuarani.

A', notas lexicológicas e os comentários foram feitos a partir de vo-


hulos, versos ou blocos de versos (conforme a necessidade de con-
I Iualização}, com aquelas se concentrando nos dois primeiros cantos,
11111' no último se repetem muitas palavras e conceitos já esclarecidos
111 rlormente. Por vezes "disseco" um verso ou estrofe para dar um
I lumbre do arcabouço da língua original, mas, para poupar o leitor de
",'"11 "oficina", tais ocorrências se limitam a uma fração mínima do
II 11 rlho percorrido para a tradução (as referências completas das obras
11111 mencionadas aparecem em bibliografia no final do elucidário).

59
ypykue: antepassado, tronco étnico (ypy: começo, princípi , iI contato prolongado com catequizadores católicos. Em
primitivo; kue: passado, o que ocorreu antes). lodo o caso, o termo foi adotado em definitivo pelos Mbyá
para designar, juntamente com o título Namandu Ru Ete,
1. ()ser supremo de sua teogonia, o Criador. (Ayvu, 28)
Nande Ru Papa tenonde I, nonde: de -enonde: "a parte que está mais adiante". Peralta:
Nande: nosso. "parte anterior de uma coisa"; em frente, diante, adiante.
ru: pai.
papa: último-último, absoluto.
Há discordâncias sobre esse conceito entre os Mbyá, con l'lira pypyte,
forme pôde constatar Cadogan ao entrevistar Tomás, de "I,yka apu'a i,
Yvytuko, e o cacique Che'iro, na época dirigente de umn I'yl {l yma mbytére
tribo do Alto Monday. Perguntado sobre por que o Pai 1/ uerojera

Primeiro Namandu, tendo criado seu corpo divino, era l'I'lIra. (guarani yvága): de yva: o céu, o paraíso; por extensão,
chamado de papa, Tomás respondeu: "Em virtude de ter- .1 alma, a parte divina do homem.
-se inspirado de fervor nosso primeiro Pai, em virtude l'I'('yte: planta do pé (literal: meio do pé).
de ter adquirido força, Ele existia nos confins do espaço, "/,yka apu'a i: apyka: cadeira, banquinho (o i final indica o di-
Tendo concebido as normas que regeriam suas futuras minutivo): condução sobrenatural, que leva ou arrebata pes-
atividades, tendo concebido sua futura morada terreno, as para a habitação divina (Léxico guarani); apu'a: redondo.
em virtude de ter existido nos últimos confins do espaço O tradicional apyka mbyá é talhado em madeira de ygary
é que nós o chamamos de 'nosso Pai último-último prl ( 'edrellafissilis; cedro). Nemboapyka significa ser concebido.
meiro'", Cadogan questiona a origem mbyá-guarani de 1'1'/(/: escuro, noite, treva.
papa e lembra a opinião do cacique Che'iro, para quem 1'1/11/:antigamente, no passado remoto.
"papa é bom para os jurua - cristãos =, mas não para nós, IIlhyte: de pyte (parte central).
para quem Namandu é o primeiro, nem para você, qu(' "Illl/;rojera: o mesmo que ombojera: fazer desabrochar, abrir
busca a sabedoria entre nós". Pouco depois, Cristino, d ' I'l .; omboiera-jera: desamarrar-se; moojera, mbojera pyau:
Yvytuko, ao narrar a Cadogan alguns mitos, disse: "Na lazer o espírito de (alguém) viver de novo, depois de mor-
mandu Ru Ete tenondegua, a quem vocês chamam de rcr, Criar (algo ou alguém) do nada, ou transformar em
Papa tenonde". Ao deparar com versões diversas em di outra coisa.
ferentes comunidades Mbyá, Cadogan levantou a hip ,,' ubrir, desatar, desenvolver (com o sentido de algo que vai
tese de se tratar de um exemplo de sincretismo, devido cndo criado aos poucos).

60
Em conversa com Teodoro Tupã Alves, este me fornec li Ao hegarmos a este ponto da leitura do canto, Teodoro
uma variante de apyka apu'a i: apyka miri: (pequenos cal r hamou-me a atenção para o verbo -enâu, dizendo que
canhares). Argumentou que estar "de apyka" é estar ereto, 111\ sua versão do canto o termo que aparece é endv: bri-

como quem se levanta após ter estado sentado de cócoras, 1110, luz.
no chão ou sobre os calcanhares. Menciono a ele as 01 ' I" t'(J popyte, yvyra'i

ções tradutórias de Cadogan (assento ritual) e de Piem' 1',lm popyte rakã poty
Clastres (nádegas) e ele as rejeita com firmeza. Vale nota I 1I!lI,)'te: palma da mão.
que para os Guarani "dar assento" é "conceber", "gerar", 1'1'/'·; parte central de algo, meio; po: mão.
"nascer", e que "assento" também é sinônimo de "náde P')'I(i: madeira, árvore (de yvyrã: lit. "futura terra", porque a
gas". Em minha tradução, mantive a acepção levantada arvore tombada se transforma novamente em terra. Por
por Cadogan e corroborada por muitos xamãs e também ('xtensão, cetro, bastão, ou, conforme a expressão adotada
por Bartomeu Melià. No entanto, como as rezas são in por Cadogan (Ayvu, 30), "vara-insígnia, emblema do po-
dividuais, permitindo flutuações de sentido e variações, d(lr de Nande Ru e também emblema de poder dos diri-
e considerando ainda possíveis equívocos devidos à ora w'ntes". Cadogan menciona que na ponta da yvyra'i surgi-
lização dos cantos ao serem registrados, introduzo aqui I: O "as chamas e a neblina que engendrarão o universo".
a versão do canto de Teodoro (que faz bastante sentid 1I~1l; ramo.

na cena do nascimento do deus), em duas traduções: "OR l'II/Y: flor. Ramos em flor das palmas das mãos celestes (de-
pequenos calcanhares" e "o breve arco dos calcanhares" dos e unhas, no vocabulário religioso).
(nesta última recuperando um pouco da "redondez" d " ucrojera Namandui
canto colhido por Cadogan). Nilmandu: de amá, chuva; e ndú, andú, sentir: o que anuncia
Ihuva, o profeta do dilúvio. No Léxico guarani, nhamaruiu
3· (. o Sol, considerado como ser sobrenatural. No dicioná-
Yvára jechaka mba 'ekuaa, 1'10 de Peralta: Yamandú: varo namandú. Célebre chefe
yvára rendupa I-Iuarani.Namandui: pequeno Namandu.
jechaka: de echaka: deslumbra; hecha: ver, perceber.
mba'ekuaa: ter conhecimento das coisas (muitas vezes d
procedência espiritual); 1'1 ra apyre katu
mba'e: coisa, objeto não humano, fantasma; kuaa: saber, IIl"aka poty
aprender. Ill.lpyrecha
yvára rendupa: i-endu: ouvir;pa: tudo): "O divino que tudo ouve". "I'yre: último; variante apyte: cumeeira, cocuruto (épelo alto da

62
cabeça que a a sabedoria do deus penetra na alma humana), k lIaray: sol.

apy: extremidade de algo, ponta. I'y'n: fígado, coração.

katu: bom, bem. Ii Iiakã: claridade (ver também - exape: iluminar). Embora o
jeguaka: jegua: adornar-se com algo, geralmente no cabelo; HoIainda estivesse por nascer, o deus era iluminado pela

adorno, ornato, enfeite. luz de seu próprio coração. Kuaarara significa sabedoria,

poty: flor. p der criador. Sua definição, segundo Cadogan, ajuda a


ychapy: orvalho. esclarecer a controversa etimologia de palavras como
"kuatahy ou kuaray, sol; V.g.: kuaa: saber; ra: criar; 'y: co-
luna, mastro, manifestação: a manifestação da sabedoria

Nande Ru tenondegua I' do poder criador (do Ser Supremo)" (Ayvu, 43).
oyvára rete oguerojera ijave oikóvy uyllárapy mba'ekuaápy
tenondegua: o que vai na frente, abrindo caminho. 11)'1 árap»: dentro de seu céu (em sua divindade); py: em,
ete: corpo. ti ntro de.
jave: durante, dentro do tempo em que certo processo estava /11ll1t'ekuaa:ter conhecimento das coisas, visíveis e invisíveis.

se realizando.
yvytu yma ire oiko oikóvy
yvytu: vento. "Ilmkure'a i omopytu i oiny
yvytu yma: vento sul; o vento primitivo, no qual surgiu I J",kure'a: espécie de coruja (Speotyto cunicularia grallaria):

Nande Ru. rnburé-do-campo, coruja-do-campo. Em omopytu, mo sig-

oyvy ruparã i oikuaa' ey mboyve ojeupe uifica pretejar, tornar malhado, por isso minha opção por
yvy rupa: leito ou morada terrena (upa: cama, sepultura; yV)I: "lusco-fusco", É notável a sonoridade da estrofe em que se

terra). Insere esse verso, com os uu que se repetem imprimindo


oikuaa'ey: kuua: saber; ey: indica negação. ,I() trecho um tom soturno.

oyvarã,oyvyrã IIltwflendúma pytU rupa


rã: indica futuro; yvyrã: futura terra. 1'1'" rupa: leito das trevas, nome religioso da noite.
ypy: origem, começo, princípio. IItloF!endúma: monhendu: fazer ouvir algum som, reza.
( ) dia e a noite não se conheciam, pois "o sol ainda não

6. lora criado, sendo a única fonte de luz o reflexo do cora-

Kuaray oiko' eyramo jepe \.1 de Nande Ru", (Ayvu, 31) O pio do mocho é prenúncio

opy' a jechakáre a' e oiko oikóvy dn noite. Augúrio: o grito da estrige + o rogo imonhendtú

65
= indício de evento futuro. No princípio, como anúnci direção, rumo ao mar. Plantaram roças enquanto foi pos-
do leito do escuro, pouco a pouco se evolvendo do vazio slvel, e depois passaram a comer o que Cuyraypoty encon-
com Nande Ru, Urukure'a foi urdindo o lusco-fusco. I rava, ou seja, aquilo que criava com seus poderes mágicos.
Alcançaram a Serra do Mar, onde Cuyraypoty mandou
8. (onstruir uma casa de paus chatos, e ali recomeçaram a
Yvy tenonde dança, Mais quatro anos se passaram e veio o dilúvio, 'isto
Yvy tenonde. a Primeira Terra, foi criada por Nande Ru e des- ': a água do mar ergueu-se como uma muralha e, inun-
truída pelo dilúvio. dando a Serra do Mar, rolou sobre a escora incandescente
Antigos mitos sobre a destruição do universo estão na ori- da Terra, para arrefecê-Ia - pois Nanderuvuçú edificaria
gem da crença na "terra sem mal" (yvy marã'ey). Um deles sobre ela um mundo novo'. As águas começaram a inun-
é o de Cuyraypoty, um grande pajé, que ao ser avisado por dar a casa. Cuyraypoty pôs-se a chorar, mas sua mulher
Nanderuvuçú (o "pai grande") de um desastre iminent , p diu que ele subisse no telhado e abrisse os braços, .para
cumpriu os rituais recomendados e salvou sua família ex· que os pássaros em apuros pudessem ali pousar. Ele devia
tensa de um terrível dilúvio (que destruiu a Primeira Terra I rnpelir para o zênite todos os pássaros bons que pousas-
- Yvy tenondev, alcançando a yvy marã'ey. Curt Nimuendajú, , m em seus braços. Quando as águas inundaram a casa,
em seu As lendas da criação e destruição do mundo como fun. atingindo os joelhos dos índios, a mulher continuou ba-
damenios da religião dos Apapocúva-Guarani, descreve em I mdo a taquara ritual numa de suas vigas. Então Guyray-

detalhes uma versão desse mito, que, por sua relação com poty começou a cantar o Neengaraí (momento mais impor-
o canto Yvy tenonde, procurarei resumir aqui: lante da dança de pajelança). Pouco depois a casa se soltou
"Descendo à Terra para avisar Cuyraypoty de que ia des- do chão, flutuou um pouco à tona d'água e logo subiu para
truir o universo, Nanderuvuçú lhe ordenou que erga ()céu. Assim que a casa cruzou as portas celestes e ficou a
nizasse uma dança de pajelança. Com seus seguidores, salvo, o dilúvio investiu sobre o céu."
Cuyraypoty dançou durante quatro anos, até que se OUVil1 , m yma ojeupity navõ

à distância o trovão (Tupã) anunciando o fim. A oeste, ~I ,/rI yma: o fim do ano velho (o inverno, no vocabulário re-
Terra já estava desmoronando, pois Nanderuvuçú tinha ligioso). Cadogan, na tradução para o espanhol, adota
retirado um dos esteios que a seguravam. Um fogo subt .1' "I mpo-espaço primigênio". Lembra que ára yma ne-
râneo começou a destruir o subsolo a partir de sua borda IYI-okandire é ressurreição do tempo novo, e completa:
ocidental, que desabou logo depois que as labaredas ch \ "Esses nomes dão a entender que a primavera (como o
garam à superfície, avançando em seguida para o leste, V irão: kuaray puku a jevy, o retorno dos sóis longos) foi

Cuyraypoty então saiu caminhanho com seu grupo nessa c riada por Nande Ru". (Ayvu, 3I)

66
ára yma iiemoicandire ojeupity navõ into II
nemokandire: kandire: ressurreição; kã: ossos; ndikuéri: se fonte da fala
mantêm frescos.
No vocabulário religioso, ára yma iiemocaruiire designa yllu rapyta
o ressurgimento do tempo-espaço primigênio em que o 'I)IIIU: linguagem humana; idioma, fala.
deus se desdobrou. O verso todo, em tradução livre, pode "/'yta: base, alicerce, origem; apy: extremidade; yta: apoio.
ria ser: cada vez que o tempo antigo/inverno revive seus fundamento da linguagem humana, a fonte da fala, é
renovos [por ossos frescosl/cada vez que renasce o tempo a palavra-alma originária, "aquela que Nossos Primeiros
do começo. "O nome implica ,que os que alcançam esse Pais repartiriam com seus numerosos filhos ao enviá-Ias
estado ascendem aos céus sem que a armação óssea do , morada terrena para se erguerem [nascerem]", con-
corpo se decomponha" (Ayvu, 101). Sabe-se que os OSSOR ~ rme relato do cacique Pablo Vera num encontro com
dos pajés eram objeto de culto entre os Guarani. No se adogan. Na versão do mburuvicha Kachirito, de Paso
culo XVII, o padre jesuíta peruano Antonio Ruiz de MOI1 [ovái, "a fonte da fala foi criada por Nosso Primeiro Pai,
toya, numa de suas incursões à floresta em busca dos 10 que a fez parte de sua divindade, para medula da palavra-
cais onde ficavam as assadas, descobriu-as queimadas p I alma". (Ayvu, 42) Aliás, foi a descoberta intrigante e ins-
membros da própria Companhia de Jesus. tigante de que ayvu (linguagem humana), ne'êy (palavra)
tajy p0fÍ'py (' e (dizer) contêm o duplo conceito de "expressar ideias" e
tajy: ipê (Tecoma), "árvore cascuda". "porção divina da alma" que levou Cadogan a debruçar-se,
potypy: florescer anos a fio, no estudo da religião guarani.
ára pyau iiemokarulire
ára pyau (literalmente, "dia novo"): nova estação. No vo ,I
bulário religioso, ára pyau iiemoícandire designa o ressu: "k llaararávyma
gimento do tempo novo. Nesse trecho do canto, press 11 k'/IIarara: sabedoria, poder criador (kuaa: saber;
tindo a primavera, os ventos se movem e dão passagem ",; radical dejera, mbojera, guerojera: criar).
aos ventos novos (norte e noroeste), que anunciam a mil Kuaarara é um dos termos sagrados mais importantes
dança de estação. para os Guarani, que não o pronunciam diante de estra-
Ilhas. Em meio ao caos obscuro do começo, o deus su-
premo foi iluminado pelo brilho de seu próprio coração,
H ndo kuaarara a fonte dessa luz que antecedeu a criação
do sol: seu "sol" era o saber contido em seu "ser-de-céu".

68 69
tataendy, tatachina ogueromoiíemoiía amor", e que, nesse sentido, a tradução de Cadogan "não é
tataendy: chamas (manifestação visível da divindade). Kara lalsa, mas imprópria" (A fala sagrada, 31). Clastres optou por
Ru Ete é o nume protetor das chamas divinas. De tata: lima expressão, "o que está destinado a reunir", por acredi-
ata: fogo e endy: brilho, luz. tar que o termo irradia o conceito de "solidariedade tribal".
tatachina (tatachi: fumaça; na: semelhante a): termo p I
tencente ao vocabulário religioso, nomeia a neblina que
aparece no fim do inverno, prenunciando o viço da prl ",I, 'e a'ã rapyta petei. oguerojera
mavera e o calor. Namandu vai multiplicando o fogo fui /11l1u'ea'ã: canto ou hino sagrado.
gurante e a névoa que dá vida. Essa neblina, que para OH 11',1 (ha'à): empenhar-se (em busca de força espiritual).
Mbyá propicia a revitalização de todos os seres, tem s \I Cantos e rezas são um esforço em busca de alento e co-
"duplo terreno" na fumaça de tabaco que "ascende" ao rugem. Os Guarani "recebem em sonhos" seus próprios
ser exalada pelos sacerdotes indígenas em seus rituais, cantos rituais. Tomo a liberdade de relatar aqui uma ex-
simbolizando um meio de comunicação com o deus prl p riência ocorrida em Ocoy, quando lá estive para conver-
meiro. [akaira Ru Ete é seu nume protetor. sar com os índios sobre os mitos que estava traduzindo.
Eu levava em mãos os originais dos cantos e um esboço
2.
d tradução. Entreguei-os a Teodoro. Ele primeiro pre-
Oãmyvyma s nteou meu filho Pedro Jerônimo com um arco e flecha
à: estar erguido; py, mby: partícula verbal; ma: já ti sua própria lavra, e então começou a "cantar" sua ver-
- Incorporando-se/Tendo se erguido, fi o do primeiro canto, parando, por vezes, para relem-
ou seja, tendo tomado a forma humana. brar alguma passagem, e consultando o manuscrito com
g nuíno interesse. Depois me levou até o líder religioso
3· da aldeia. Logo estávamos rodeados de moradores, que
mborayu rapytarã oikuaa ojeupe c mentavam passagens dos cantos, discordavam aqui e
Embora literalmente mborayu signifique "amor", seu sentido ali do registro, aportavam e explicavam variantes, numa
neste canto é controverso. A tradução de Cadogan, "am I r união memorável de revivificação do mito.
ao próximo", encontra eco na acepção dada por Montoya en I
seu Tesoro de Ia Lengua Guarani, qual seja, o amor de Deus
por suas criaturas e vice-versa. Discordando, Pierre Clas IIIvaêpepa ayvu rapyta omboja'o i anguã
tres argumenta que os missionários adotaram tendencio /II/lOja'o:repartir, distribuir. Diz-se também amboja'o
samente o termo mborayu "para exprimir a ideia cristã do utanâu: assimilo sabedoria dos deuses.

7° 71
- sobre com quem compartilhar a fonte da fala concepção e o nascimento de um Guarani se resume a
mba'e a'ã neychyrõgui omboja'o i anguã rn ato poético de encamação da palavra, toda a vida do
11

neychyrõ: repetir-se, pôr-se em filas. mesmo será recriação desse ato inicial, de diversas ma-
- sobre com quem compartilhar as séries de palavras do 1\ iras". (trad. D. Diegues)
som sagrado.
I
6. /lraíRu Eterã
Namandu Py'a Guachu o verdadeiro pai dos futuros Karaí
guachu: grande; py'a: fígado, coração; py'a guachu: lit.: de Karaí é o nume protetor do fogo. Assim, surgiriam labare-
gado grande; aqueles que têm grande coração, os valorosoH, das nas mãos e nos pés dos tocados pela inspiração divina.
gua'y reta ne'êy ru eterã I\s chamas seriam a manifestação visível da divindade. Clas-
ne'êy:espírito que os deuses enviam para encamar-se na criança t res
estende o sentido para chama, fogo solar e calor, suge-
que está para nascer; porção divina da alma, palavra-alma, rindo que o movimento do sol "garante aos Guarani que os
- Da palavra-alma de seus muitos futuros filhos o verda deuses não estão mortos". (Afala sagrada, 39) Vale notar
deiro pai. que para às Guarani o fim do mundo está ligado ao sol: a
O conceito de palavra-almaé central na mitologia dOH 'L'na começará a ruir pelo poente, e o sol não mais surgirá.
Mbyá. Vimos como se descreve a criação da linguagem I"kaira Ru Eterã
pelo deus supremo, sendo, ela, portanto, de origem di o verdadeiro pai dos futuros [akaira
vina, embrião da palavra-alma que os deuses enviam lakaira é o nume protetor da primavera e da neblina
à Terra para "habitar" um recém-nascido. Em E! Gua vivificante.
rani: experiencia religiosa, Bartomeu Melià afirma que a I'upã Ru Eterã
união sexual entre um homem e uma mulher é a oca - o verdadeiro pai dos futuros Tupã
sião "para que se dê esse ato poético mediante o qual ti 'Iupã é o nume protetor das tempestades, trovões, raios, re-

palavra sonhada pelo pai é comunicada à mãe, que dess lâmpagos, nuvens, águas. Segundo Chase-Sardi, embora
modo engravida dessa mesma palavra. O fato de ser g . houvesse muitos outros deuses na teogonia guarani a ca-
rado e concebido um ser humano é designado metafi tequização colonial o "transformou em único e supremo
ricamente pelos Mbyá com a expressão: onemboapyka, Deus" (Neblina vivificante, 13).
'se dá assento', com clara alusão ao modo como Nandc
Ru (Nosso Pai), senta-se em seu banquinho ritual, ilu-
minando-se a si mesmo em meio às trevas. (...) Se a lVamandu Chy Eterã i

72 73
Chy: mãe. nto III
- a futura Mãe verdadeira dos Namandu rimeira Terra

9· I'V tenonde
Ne'êy Ru Ete pavêngatu, I \ canto narra a criação da Primeira Terra, que depois
Ne'êy Chy Ete pavêngatu ti destruída pelo dilúvio foi substituída por Yvy Pvau, a
- inspirados pais verdadeiros das palavras-almas: NovaTerra.
inspiradas mães verdadeiras das palavras-almas
Ne'êy é o espírito enviado pelos deuses para que se en rlmeira parte
carne na criança prestes a nascer, diz Cadogan. Seu longo
comentário sobre o papel da palavra na religião guarani,
fruto de exaustivas pesquisas, é valioso para sua compre IIflílPyguarapyta ire
ensão: "Em guarani comum ne'ê significa linguagem hu 1"1 pygua: variante de popoka: bengala, bastão.
mana, aplicando-se também ao cantar das aves, ao chir-
riar de algus insetos, etc. Em mbyá, aplica-se ao ruído de
insetos, aves e animais; em ne'ê porã tenonde significa 'as Iltldovy ombojera yvy mbyterãre
primeiras palavras bonitas', por exemplo, as tradições I'i"dovy; pindo ovy: palmeira azul.
mitos 'esotéricos', embora para designar estes aplique-se Foi criando uma palmeira azul-eterno no futuro centro
mais frequentemente a frase ayvu porão Ne'enguchu: voz da Terra
forte, potente; a mudança de voz na puberdade; com a pa Pindovy nomeia as "palmeiras eternas, milagrosas, in-
lavra nemone'ê designam algumas mensagens recebidas c.lestrutíveis. Os mburuvicha mais aferrados às antigas
dos deuses, especialmente as recebidas de Karaí Ru Et , Iradiçõesensinam que as vestimentas dos deuses são
Nestes casos, a pronúncia de ne'ê é idêntica à que tem em amarelo claro: [u, 'cor do sol'; e 'azul claro', cor do céu
nosso guarani. Tem, no entanto, outro significado: 'porçã limpo: ovy. Estas cores são consideradas, por conse-
divina da alma' ou 'palavra-alma', e neste caso é pronun- guinte, sagradas e emblemáticas da divindade; sendo
ciada ne'eng, com o som da ng final inglesa e alemã, s indestrutíveis, eternas, tal como o sol e o céu, são empre-
guida de um brevíssimo y nasal. [...] Ne'êy, a palavra-alma gadas para traduzir esses conceitos" (Ayvu, 60). As pal-
de origem divina, não deve ser confundida com ãngue, pa- meiras pindo (Attalea compta) têm um belo porte. Suas
lavra empregada no vernáculo para designar a alma de um nozes são muito duras, com algumas sementes ricas em
defunto" (Ayvu, 43). leo utilizável. Mas não só o óleo é importante para a

74 75
economia indígena: além de fornecerem palmito para ti

alimentação, das fibras da pindoba se fazem cordas parti l/lIapy meme rire oy yva
os arcos, que são talhados em sua madeira, e as palmas ,,,II()upyme me rive: o número 7; um depois de duas vezes três.
servem de cobertura para as casas. Existem sete céus
amboae amba: geralmente designa a morada dos deuses. Y"II ljyta irundy
Pindovy ombojera Tupã ambáre I""""dy: quatro (literalmente, "grupo de companheiros", em
- criou uma palmeira azul no poente/na morada de Tupã I' ferência aos quatro dedos da mão menos o polegar).

A morada de Tupã fica no oeste. 1"1/: suporte vertical, esteio.


yvytu porã rapytáre ombojera Pindovy o céu sobre quatro colunas/esteios
yvytu porã rapyta: a origem dos ventos bons, norte e noro Pierre Clastres comenta que Namandu mantém "os apoios
este, que anunciam a chegada da primavera dos firmamentos" contra o vento originário, o vento sul (A
yvytu (de yvy - terra; e pytu: fôlego, ar expulso, sopro): vent , {àla sagrada, 35).
- na fonte dos bons ventos foi criando a palmeira azul IIIJ itui va' e yvytúpy

ára yma rapytáre ombojera Pindovy O céu que se estende com os ventos
ára yma rapyta: origem ou alicerce do espaço primigênio, .omenta Cadogan que a tradução dada por Montoya (Te-
segundo a interpretação de Cadogan. Certa vez ele ouviu soro, 401) de ituí é rebosar (transbordar); mas em mbyá-
um guarani dizer que os deuses mudam os alicerces d guarani parece, antes, significar "estender-se, encontrar-
espaço originário para que se dê a mudança das estações: fi em quantidade considerável".

oguerova Nande Ru ára yma rapyta (Ayvu, 59). cl//yfiaimondóvy Nande Ru


- Na origem dos primeiros tempos criou uma palmeira IIIounha: empurrar; mondovy: fazendo ir embora; oayFía
celeste; esta quinta palmeira fica no sul. imondovy: empurrou-o enviando-o.
Pindovy petei itirúi ombojera empurrou-o e o fez ir embora Nosso Pai.
petei iiirui: o número 5; literalmente, uma série de compa-
nheiros, ou os dedos da mão.
- criou cinco palmeiras celestes 11',ramo ae oi endaguãmy, ndoku'evéimo
Pindovvre ojejokua yvy rupa r estar localizado (em certo lugar).
jokua: amarra;jejokua: amarrar-se ou ficar amarrado. IIII'e ramo: mas (indicando mudança na ação ou contraste
- o leito terreno está amarrado às palmeiras celestes / a ntre tópicos);'ha'e: aquilo, aquele, aquela, ele, ela (aponta
morada na Terra está atada às palmeiras azuis para alguém ou algo já mencionado anteriormente).
",tO: indica negação.

76 77
ku'e: mover-se, andar.
- Daí ele ficou no lugar, 1I1I1.eroíie'êypy i va'ekue
e já não se movia. nl"a: entre outras acepções, ruído, som, chilro.
aquele que primeiro cantou
5· "~,,erojae'o ypy i va'ekue
Yvy rupa mongy'a ypy i are /""'0: chorar; erojae'o: prantear, lamentar.
mongy'a: sujar; ngy'a: variante de ky'a: sujo. aquele que primeiro ali chorou
ypy: começo, primeiro. ~rypa i, iíakyra pytã i
- Quem primeiro sujou a morada terrena n",kirã: espécie de cigarra.
mbóiyma i I'yt,ã: vermelho.
mbói: cobra; mbói yma i: a serpente primigênia. - foi a yrypa, a pequena cigarra vermelha.
Trata-se da Leimadophis almadensis, uma serpente venenosa, Esta cigarra foi, pois, o primeiro habitante da Terra.
Alguns pesquisadores consideram a possibilidade, dado s "
a serpente o primeiro animal nomeado quando foi criada"
primeira Terra, de se tratar de impregnação do mito cristão, umai ko }ja, y apo are
a'anga i tema iíande yvypy ãngy oiko va'e y/lmai: inseto aquático.
a'anga: arremedo, reflexo, imagem. y: água.
- só sua imagem continua existindo em nossa Terra IIflo: fazer.

Yvy tenonde: a Primeira Terra, de cuja criação trata este ca- Estapassagem simboliza a criação dos rios e mares da Terra.
pítulo, foi destruída pelo dilúvio, depois de ter feito ascen-
der aos paraísos todos os seres que a povoavam, os virtuo-
sos em forma humana, e os pecadores metamorfoseados ku'aguy meme araka'e
em seres irracionais. Criada Yvy Pyau, a Nova Terra, a qu k(,~'aguy:selva (ka'a: erva-mate, e guy: baixo).
habitamos, em substituição ao mundo destruído, foi povo- urcca:«: acontecimento remoto, em geral não presenciado
ada de imagens dos habitantes de Yvy tenonde. Como pod pelo falante.
se inferir do contexto, a víbora íiandurie, o inseto aquático - antes tudo era floresta
vamai, o gafanhoto, o inhambu e o tatu não são seres hu- uujipói araka'e
manos que sofreram a metempsicose, mas que aparec . tluu: campo (v.grama, capim, nhuy, iíuy).
ram já em sua forma atual na primeira Terra" (Ayvu, 61). fIO; ocorre somente no negativo: existir, haver.
- campo antes não havia

78 79
nuu ruparãre omba'apo va'erã j'lI~mbupytã
tuku para rã i ombou ,"vy'a: estar alegre por causa de, comprazer-se com.
moae'apo: trabalhar, fazer. I""mbu pytã: grande perdiz vermelha, ou martinete dos
parã: tinir; tuku pararã i: espécie de gafanhoto verde que Sl' campos, chamada ynambu guasu em guarani (em Peralta
eleva muito alto no ar e emite um chiado agudo e pen ' () ynambu guasu aparece também como da espécie Rhyn-
trante, e outro chiado menos agudo (parãrã) (Ayvu, 61). t;hotus rufescens); inhambuapé é o que corresponde exata-
- para que fosse elaborando prados mente a essa espécie.
o tucura ele fez vir o primeiro que se alegrou,
Tuku pararã i guevi oikotu i ague foi o inhambuapé.
guevi: andar para trás, andar de costas; evi: traseiro.
-kutu: ferir, perfurar. 1.
- No lugar em que o tucura fincou as patas traseiras, Ntmde Ru yvy rupa omboai ypy i va'ekue,
kapi 'i rembypy i onemona ,,,tu i
embypy: pé de mato. ,,/: ferimento.
kapi'i: rosário (planta); biurá: capim da família das grarní- ",hoai: causar ferimento em; ferir.
neas, de cujos frutos se fazem colares. - Aquele que primeiro feriu o leito de terra de Nosso Pai
- se desdobraram brenhas de biurás foi o tatu.
Nl,tu ogueropararãrã, O tatu simboliza a criação do mundo subterrâneo.
oguerochiri tuku pararã i
chirfrf: chiado agudo (no Diccionario Guarani-Espanhol d
Peralta e Osuna, chirirf aparece como ruído muito suave; I'ytú ja, Urukure'a i
ruído como o que produz a cascavel); parãrã, como vimos, Urukure'a: espécie de coruja (Speotyto cunicularia).
é chiado menos agudo; ruído como de lata vazia. Caburé-do-campo.
- O dono do escuro é o caburé-do-campo.
10. fJande Ru Kuaray, ko'ê ja
ogueroiie'endú ypy i va'ekue - Nosso Pai, o Sol, dono da aurora.
nhejne'e: falar, gorjear etc.; nhendu: produzir som; -endu: ouvir.
- o primeiro que ali cantou.j os sons que ali primeiro se
fizeram ouvir,
oguerovy'a ypy i va'ekue,

80 81
Segunda parte dw pyau: começo do ano, primavera.
mhoguy: levantar.
13· flku: indica que o sujeito age indiretamente, através de outra
Depois de delinear a primeira Terra, Namandu "define aH
pessoa.
funções dos deuses precedentes gerados. Mais próximo - a cada primavera faz com que avivem
dos humanos do que ele, assegurarão a permanência
das representações terrestres do divino, da vida sobre I •
a primeira Terra como imagem da divindade" (A fala IlIkaira Ru Etépy
sagrada, 39). - ao verdadeiro Pai Jakaira
Nande Ru tenonde oiíemboyva ropy pota Jakaira é o num e protetor da neblina que surge no fim
oiíemboyva ropy: retira-se para o interior ou profundezas do do inverno, infundindo viço a tudo e todos, como vimos.
céu. Com o mesmo significado, emprega-se "onemboacho Em A fala sagrada, Clastres destaca a relação entre a ne-
jáva ropy, sendo achojáva (aho'i háva) outro termo empre- blina (que reuniria "a substância divina do humano, as
gado para designar os paraísos, v.g., os lugares onde OH Belas Palavras") e a fumaça do cachimbo dos sacerdotes
deuses se cobrem, se subtraem à vista", comentaCadogan, profetas, que por meio dela podem ouvir as mensagens
"Opy é a casa dos cantos, plegárias e danças rituais; dos qu ' nviadas por Jakaira.
entram nesta casa para dedicar-se aos exercícios espirituais 116raiíemboro'y rekorã ano'aukâta ndévy
se diz: oike opy: introduz-se no interior da casa, subenten /ltlmboro'y: esfriar o tempo.
dendo-se que é para dedicar-se à oração" (Ayvu, 6r). ko: vida, sistema cultural, conjunto de costumes.
Oiíeangareko va' erã tataendy ryapurãre yvára nemboro'y rekorã: leis que produzirão o refrescamento
tataendy ryapu: ruído de crepitar de chamas; yapu: crepitar; da divindade. Exemplos são a temperança e a moderação,
tataendy ryapu: lit. barulho do brilho do fogo. "sendo suas manifestações visíveis a chuva e o granizo"
- irão cuidar do crepitar das labaredas (Ayvu, 63).
"Todo trovão que se ouve ao sul - especialmente na pri
mavera - é produzido pelas fileiras delas a cargo de Kora;
Ru Ete, que as destampa para que os homens escutem seu urandu porã
ruído. Karaí Ru Ete também é chamado de tataendy ryapu urandu porã: ciência boa.
ja: o dono do ruído do crepitar de chamas" (Ayvu,63). urandu: sabedoria.
ára pyau iíavõ emboguyuka i
navõ: cada vez.

82
19· - o som sagrado da mulher às verdadeiras primeiras
mborayu rekorã i a'e ague mães de suas filhas
rekorã: regras, leis; reko: modo de ser; condição, conduta. y.,yre opu'ã rei reta va'erã
- as normas para reger o amor/ os modos de ser e convi /llko porã i anguã
ver do amor II/I'ã: levantar-se, melhorar.
nomboaku aéi va'erã Ikoporã: prosperar.
mboaku aéi: aquecer demais, excitar até um ponto perigos Iria: muito(s).
Habitando o coração, o frescor traz a temperança (yvára - se erguessem na Terra os muitos que irão viver bem.
nemboro'y), e com isso preserva-se o mborayu, os modos de
ser e conviver com amor. O equilíbrio se alcança pela alt I'

nância entre o fogo, o calor de Karaí, e a chuva, o frio de Tupí ,

20.

omoiieenoimha i mavy gua 'y ru eterã


neenoi: chamar-se; nomeação.
- depois de nomear cada um dos verdadeiros pais de seus
futuros filhos
iambarãre ae ae i:
mba: todos.
ae: sozinho.
ae'i: sozinho, em particular, em lugar à parte.
- todos sozinhos em seu próprio lugar:

21.

ombojeguaka vyapu gua 'y Ru Ete tenondeguâpe,


ombojachuka vyapu guajy Chy Ete tenondeguâpe
mbo: mandar, causar.
pu: som.
- o som sagrado do homem aos verdadeiros primeiros
pais de seus filhos,

85
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88 89
aking notes

trrra preta" é o sítio onde se


ncontram fragmentos de cerâmica indígena,
lia no dicionário, imaginando cacos de
louça de cozinha sob estratos de argila,
Illscasde urnas funerárias sob o claro
alcário, plumárias enterradas nos
apões desmatados, itãs, sambás, tambás
ntre tíbias e fêmures, lembrando o
velho índio que proibiu à Espanha o açoite e
quebradura de cântaros de chicha,
tudo isso pressentindo, e entre outros verbetes,
o huvisco divino sobre o solo
r stado, um fervor de agáricos nos tocos
lo basalto, pontuando, aliás,
os rastros que apagava (com o
latigado couro da sola dos sapatos)
I) retomar ao asfalto

91
m busca do tempo
os longos sóis eternos
"terra sem mal" dos Guarani)

.liefe da primeira missão jesuítica enviada ao Brasil para


utequizar os nativos, o padre português Manuel da Nó-
br iga, ao desembarcar nas terras da América em I549, afir-
maria que aqui bastavam umas poucas letras, "pois tudo
orno papel em branco": ele ignorava (em mais de um
rntido] a multiplicidade de culturas dos mais de mil po-
YO indígenas que aqui viviam e - embora não possuíssem
H rita - sua riqueza sutil. Para os colonizadores e evangeli-
zadores europeus desembarcados das caravelas, seu "Novo
Mundo" era um lugar povoado por homens primitivos, sel-
vagens, "sem fé, sem lei, sem rei". Muito rio e muito san-
j.\ueteriam de correr para o mar antes de alguns começa-
rem a perceber que os habitantes do continente americano
lormavam verdadeiras sociedades, com seus costumes,
t'US hábitos, suas tradições, suas crenças - em suma, suas

próprias culturas.
Uma dessas crenças era a da yvy marã'ey. O termo gua-
rani yvy marã'ey significa, ao pé da letra, "terra que não se es-
traga", "terra que não se acaba", "terra que não se corrompe".
Mas muitos o têm interpretado como "terra sem mal" e, por

93
extensão, "paraíso" - superpondo ao termo um conc illl Relatos de viajantes mencionam pajés que não se esta-
judaico-cristão alheio à cultura indígena. O jesuíta Ruiz di Icciam com a aldeia: viviam vagando pela mata, de as-
Montoya o traduz, em seu Tesoro de Ia Lengua Guarani, pOl ntamento em assentamento, morando provisoriamente
"solo intacto, que não foi edificado", "solo virgem", interpu- 111choupanas construídas à margem da comunidade.
tação defendida atualmente por um grande conhecedor d,1 unta-se que eram bem recebidos mesmo em aldeias ini-
cultura guarani, o antropólogo e linguista Bartomeu Mella migas, podendo transitar livremente pelo território. Às ve-
para quem a "terra sem mal" e as migrações a elas asso I i acreditavam ter visões ou ver em sonhos a localização
das (ou associáveis) estariam estreitamente ligadas à proCUl1Í "terra sem mal". Então seguiam para a aldeia e falavam
de terras novas onde estabelecer, ainda que provisoriamente, IS demais sobre sua "visão", considerada de inspiração
aldeias e roças. Pois as culturas ameríndias em terras bra: I Ivina.
leiras (à diferença da Mesoamérica) eram seminômades. Numa de suas Cartas do Brasil, o missionário Manuel da
Entre as diversas nuances interpretativas do mito, a ab I Nóbrega descreveu o discurso de um pajé ouvido na clareira
dagem de Hélene e Pierre Clastres vê as migrações ligada uma floresta brasileira em meados do século XVI:
à "terra sem mal"como resultado de crises internas às pr I
prias sociedades indígenas, descartando assim a ideia, tam 11mchegando o feiticeiro !hes diz que não curem de trabalhar, nem vão à
bém aventada, de que o mito fosse a resposta de um povo roça, que o mantimento por si crescerá, e que nunca !hesfaltará que comer,
oprimido pelo colonizador. Pois outros autores defendem I r que por si virá à casa, e que as enxadas irão a cavar e as frechas irão ao
tese de que as migrações teriam sido deflagradas por urna mato por caça para seu senhor e que hão de matar muitos dos seus contrá-
grande crise nas sociedades indígenas pós-conquista (com o rios, e cativarão muitos para seus comeres e promete-lhes larga vida, e que
extermínio, a escravização e a dolorosa catequização jesuítn ClS velhas se hão de tomar moças, e as filhas que as deem a quem quiser e
minando as culturas nativas). rlutras coisas semilhantes lhes diz e promete.
A despeito das controvérsias sobre o sentido do termo,
incontáveis deslocamentos se deram por matas e ri ses pajés acreditavam poder localizar tal terra de abun-
da América associados a essa crença. Embora se saiba d ' ncia, liberdade e imortalidade (e que podia ser encontrada
migrações semelhantes realizadas por outros grupos ind 111 vida) através de práticas rituais, como ojeroky nembo'e (a
genas, as mais conhecidas são as longas caminhadas do nça-oração) e os jejuns prolongados - tornando o corpo
Tupi-Guarani, e em particular dos Guarani (etnia que inclui li leve que ele poderia voar sobre os mares e pousar, final-
subgrupos como os Nandeva. os Kaiowá e os Mbyá), doeu ncnte, na yvy marã'ey.
mentadas desde a chegada dos europeus no século XVI, ma. A "terra sem mal" estaria, assim, ao alcance daqueles que
provavelmente anteriores a ela. nfrentassern coletivamente a árdua viagem, e que também

94 95
fortalecessem os rituais antropofágicos de importância ('li líred Métraux. Ele conta que os índios veem em toda catás-
tral em sua cultura, matando e devorando os inimigos. \J()~ um sinal do desastre:
Por razões práticas e culturais revigoradas e cimentada
pelo mito, aldeias inteiras enfrentavam difíceis deslocamcu Quando os sonhos, visões ou simples fenômenos naturais insólitos fa-
tos, alimentando-se do que pudessem levar (principalmente zem pressentir a algum feiticeiro a aproximação do perigo, este, se-
mandioca cultivada) e do que conseguissem encontrar I1I ffuindo o exemplo de Guyraypoty, procura escapar-se-lhe, reunindo
mata. Quando a fome, apesar de tudo, começava a imperui, t:m tomo de si e sob sua direção os mancebos, que se entregam ao
eram obrigados a parar e plantar uma roça, para depois HI' Jejum e à dança; todo um ano consagrado à dança mal chega para
guir viagem. É interessante refletir aqui sobre a tradição gUI revelar a orientação ou caminho a seguir. '
rani da reciprocidade, lembrada até hoje pelos anciãos. U 111
deles, na aldeia guarani de Ocoy, conta que para as árvor ' I'mbora algumas fontes refiram que a yvy marã'ev ficaria a
produzirem bons frutos elas têm de ser plantadas por outro: II ste, ou no "centro da escora da Terra", em geral as trilhas
- ou seja, deixadas para quem está vindo pela floresta. Este til' perambulação tomavam o rumo leste, no prumo do sol
seria o motivo de suas constantes mudanças (upare ore rov(~) nascente.
Na origem da crença na "terra sem mal", encontram-se É curioso que para os Guarani o fim do mundo também
antigos mitos sobre a destruição do universo, como o di' teja ligado ao sol. Nesse tempo, a Terra começará a ruir
Cuyraypoty, o grande pajé que ao ser avisado por Nanderu p '10 poente, e o sol não surgirá mais, pois será devorado,
vuçú (o "pai grande") de um desastre iminente, cumpriu I [untamente com a lua, pelo morcego Mbopí recovp». Então o
rituais recomendados e salvou sua família extensa de UIII I guar azul será solto, e acabará com toda a gente, em meio a
terrível dilúvio (que destruiu a Primeira Terra - Yvy tenondl'), randes chuvas e incêndios. Não deve ser à toa, portanto, que
alcançando a yvy marã'ey. (I termo guarani ko'eramo, usado para nomear o "amanhã",
Variações desse mito sempre se ouviram ao redor da ~I traduza-se literalmente por "se amanhecer".
gueira ou na opy, a casa de rezas. Os anciãos das cornunidn Na visão de Bartomeu Melià sobre a yvy marõ'ev, a "mobi-
des, com a visão cataclísmica característica da cultura gua lidade social" guarani (um dos eixos de sua cultura) possui,
rani, nunca deixaram de lembrar que o mundo acabaria di' inda, um viés ecológico. Ele pondera que, sendo a "terra
novo, da noite para o dia - o que ao lado das predições dOI em mal" uma terra, e não um paraíso que se encontra de-
pajés certamente fortaleceu o ímpeto de aldeias que partiam pois da morte, ela não é imaginada pelos índios como um
em busca, entre outras coisas, da yvy marã'ey. lérn":
Os Guarani modernos ainda acreditam que a destrul
ção do mundo está próxima, segundo o antropólogo suí (I 1 A religião dos Tupinambá. São Paulo: Editora NacionaljEdusp. 1979. p. 177·

96 97
Ao ser terra, ela tem de ser boa. O guarani tem uma visão estética, inc/I/ ianças por fome e desnutrição e o alto índice de suicídios
sive, da Terra. Para o guarani a Terra é um corpo belo, na qual as árvorr ntre os Guarani.
são como a cabeleira, a pele é, às vezes, resplandecente, brilhante, e os JI' As questões fundiárias das terras guarani no litoral e a
nômenos de erosão são as doenças. Isto está na concepção que nós chamll onservação da Mata Atlântica formam, afinal, as duas faces
mos mitica, mas que é uma concepção muito real para eles. Inclusive hoje dI' uma mesma moeda:
o guarani estabelece relações com esta concepção da Terra. Ante o desmll
tamento, diz: "Vocês estão deixando a Terra doente". Quando veem q/lr Os índios Guarani Mbyá do litoral procuram fundar suas aldeias
estão loteando a Terra para vendê-Ia, dizem: "Vocês não veem que estOu com base nos preceitos míticos que fundamentam especialmente a sua
vendendo pedaços do corpo humano, ou seja, estão cameando a Terra?".' relação com a Mata Atlântica, na qual, simbólica ou praticamente,
condicionam sua sobrevivência. Esses lugares, procurados ainda hoje
Atualmente, a porcentagem de terras reservadas aos pOVOA pelos Mbyá, apresentam, através de elementos da flora e da [auna
indígenas no Brasil é mínima, principalmente se levarmo H típicos da Mata Atlântica, de formações rochosas e mesmo de ruínas
em conta seu passado histórico e suas necessidades soei . de edificações antigas, indícios que confirmam essa tradição. Formar
culturais. Os Guarani há tempos sofrem com a drástica di. aldeias nesses lugares 'eleitos' significa estar mais perto do mundo ce-
minuição de seus territórios, pois toda a sua organizaçã lestial, pois, para muitos, é a partir desses locais que o acesso a yvy
gira em torno do tekoha, marã'ey, 'terra sem mal', é facilitado - objetivo histórico perpetuado
pelos Mbyá através de seus mitos.4
lugar que reúne condições flsicas (geográficas e ecológicas) e estratégicas
que permitem compor, a partir de uma famaia extensa com chefia espi H muitas motivações que originaram e envolvem o mito es-
ritual própria, um espaço político-social fundamentado na religião e na I rão para sempre emaranhadas na memória dos períodos
agricultura de subsistência. J pré-colonial e colonial, nos relatos de viajantes e nas inúme-
as análises que se cruzam, se sobrepõem e se contrapõem.
Com o desmatamento feroz a que vêm sendo submetidas Mas o maior mistério a cercar a yvy marã'ey talvez seja, afi-
as florestas sul-americanas, esse "lugar" está deixando d nal, o modo como os Guarani, depois de eincoséculos de
existir, e consequêneias disso são, por exemplo, a morte d pressão, conseguem sobreviver à margem da "barbárie"
ontemporânea. Olhando a névoa, a nuvem, o orvalho, o
lento do roçado em que respira a neblina vivificante, eles
2 "A evangelização guarani do cristianismo", trad. Douglas Diegue ,
v m mantendo com dificuldade seu tekoha, onde praticam
TVE Regional/Secretaria da Cultura do Mato Grosso do Sul. 7/5/2004.
3 Maria Inês Ladeira, "Guarani Mbyá: situação fundiária e territoriali-
dade", in www.socioambiental.org. 4 Idem.

98 99
o teko ("modo de ser") de seus antepassados, enquanto bn
cam preservar, na pouca terra que lhes restou, a natureza t
a "fala indestrutível" (ayvu marà'ey) que os deuses deixara 111
aos seus cuidados.
exercício espiritual anjo da Cia. de Jesus

Aqui poucas letras bastam, presume de pez

pois tudo é como papel em branco. lavares de prata

Manuel da Nóbrega. Carta 8 (I549) zinabre na cruz

risco sublinha trechos


no portulano da Bíblia
da areia com o sumo escuro
o roteiro do errar que os taras maceram
(do latim errare): no monturo dos
viagem sem rumo brejos
e sem fim,
como a dos ascetas ora e delira
e dos apaixonados, vendo o surto
fadados ao êxtase de urupês no farelo
e ao naufrágio doslenhos,rubros
talhos a prumo
em vieiras carnudas,
febricitantes
cravos no sepulcro
dos valas

sete ferrolhos
na cela dos sentidos,
dorme descalço e nu
sobre a alfombra
de abrolhos
(tenebris ad lucem)
da terra do Brasil,

102 103
pródiga em ouro, reductio
malária e minas
de ânimas seu hábito, roto,
tomou-se um estorvo;
esqueceu no percurso
o cajado, a cruz
e os cordões de veludo

sumido na floresta
a fome descamou-o
até o espírito:
vivendo de raízes,
tubérculos maduros,
restos de couro ruço,
ungiu-se, a descoberto,
num algibe de chuva
oculto na bromélia

então reviu em sonho


o berço de menino, o regaço
matemo, o abraço proibido
e sua vã memória
converteu-se em
dilúvio

1°4 1°5
da saudade Antônio de Gouveia,
clérigo em Pernambuco
(...) entre espinhos crepúsculos pisando (circa 1570)
Góngora
padre do ouro, nigromante,
nesta rota versado em magia e minas,
sem rumo veio ao Brasil em degredo,
celebrou missas estranhas,
sua semente matou índios prisioneiros,
mareja roubou cunhãs dos amantes
sal de lágrimas
tentando se defender
vem brotar da fama de suas façanhas,
(soledad) rascunhou de próprio punho,
da própria debochado, um testemunho
rocha sobre os hábitos absurdos
deste outro lado do mundo
(murmúrio
(à flor) mergulhou o bico-de-pena
de olho num tintório de urucum
d'água (que pensem que escrevo a sangue
em grota) este documento acre),
misturando ao suco rubro
a resina de um bom cedro
(não falte ao escriba lacre,
para seu vômito acerbo)

preparou um chá com o funcho


que carregava no bolso
e fez um feroz discurso
contra os feitiços dos bruxos

106 107
(ô ave de mau agouro,
leva esse teu voo esconso
para qualquer outro pouso)

com pensamentos infusos,


esgueirou-se até o arbusto,
e acocorado na relva,
lançou o hábito às ervas

depois espantou um besouro


de suas sandálias de couro, NENHUM GESTO
limpando (sirva de adubo) SEM PASSADO
a bosta com um sabugo NENHUM ROSTO
- acúleos de ora-pro-nóbis, SEM O OUTRO
nobre oiro dos conversos! -,
e, sem perdão do perjúrio,
rubricou no papel sujo:

De uma aldeia em Pernambuco,


Neste outubro controverso.
Deste em Christo filho indigno,
padre Antônio de Gouveia.

108 109
dois rios - seu curso
um leito
espatas de palmeira de troncos lisos,
de borco sobre a terra crivo de tocos
que llueva, que llueva pretos, restos
Ia virgen de Ia cueva de ossos toscos,
esqueletos
chove forte - rentes frisos -
nos barrancos, (terror)
entre o roxo de silêncio
dos torrões,
sobre os seixos
e o musgo
do veio do rio
expulsos
(gume que o limo
recobre
de um visco frio -
pedregulho)
chove no fundo
barrento
repleto de pigmentos
que os pingos
trazem à tona
em diluídos vermelhos

chove forte
(como ontem)
no fluxo escuro
do rio

110 111
ostro de teu corpo
sem nome
[...] recorremos aquellago bermejo,
de condenados sitio doloroso. (o rosto
Dante, via Roa Bastos um esboço fosco
de barro e emplastro
sigo O trilho estreito de borra e mosto
entre verdes e pretos - hibiscos
que o escuro confunde murchos
no arvoredo estames
hematomas)
vejo, entre os tufos
o rio turvo, seu rumor
salobre entre arbustos
o leito fundo
que desce
lento

insetos secos
e gravetos

no veio brusco
em que os juncos
emboscam
ciscos e detritos
de novo encontro
(sono sombrio)
os círculos de lodo
em teus olhos
o contorno tosco

112 113
I
, I

ar misiones

pois que deuses desejo campânulas frouxas


nesse deserto bem ime oscilam entre as ruínas:
nso (um cinza-chumbo primeira chuva
nos nubla e a vênus: n depois das sombras
uvem de nuvens) e que nítidas
erros corrijo nesse en dos sóis longos
g e n h o de si n s, sem equ
ívoco (um cinza-chumb pétalas crespas
o nubla esse cinza: lin estremecem entre
has oblíquas), se nos s o preto dos gravetos
em-fins eu meço esse m que o vento açoita
esmo começo tão com f e o estouro das vagens
im medido (aguça as z i em sementes
n i a s, zum nas g Li c i n i a (pequenas naves
s: cinza-azulado que a singrando o pasto
nula o dia) e se o mun com seu folhedo
do segue redondo e im negro de brotos
perfeito nesse moment e destroços)
o em que tudo está mudo - caroços de outono,
? (palavras líquidas) restos do estio -

relíquias

114 115
coix lacryma

sobre o sisal
um corpo nu entre
fieiras de esferas
lisas - frutos cinzas
que o sol enegreceu
em lágrimas-de-
nossa-senhora, contas
-de-santa-maria-:
o OURO breve rosário de biurás,
O OUTRO tesouro fúnebre
OS TRAPOS ROÍDOS de urubus
PELOS RATOS

os frutos duros
com que os dedos
grão a grão
sangram no corpo
o luto, o rosto
mudo sobre folhas
murchas (lágrimas),
miúdas, rubras,
úmidas

116 117
Pablo Vera

Os selvagens crêem numa cousa PASSO

que cresce como uma abóbora. após passo:


Hans Staden. Duas viagens ao Brasil antúrios murchos
no basalto
homens em roda
esfumaçam um maracá lodo
em forma de rosto ou folhedo:
com folhas sobre o restolho
de tabaco em fogo, o couro sangrento
enquanto o velho
dos pedregulhos
(nas cãs a coifa na sola
de algodão e fibras os talhos
de caraguatá,
perfurada por retrizes o solo árduo
topázio de japu,
penas sanguíneas mas alado
de peito de pavó
e o rajado da gorja
de um tucano
-de-bico-preto,
alaranjado)

com máscara de fumo


e voz de criança
(um deus fala por ele),
remem ora um futuro
de júbilos e sustos

118 "9
guirá iiandu o êxtase à flor da pele
a intempérie, a prece
Para Teodoro a dança em excesso
(sob a Constelação da Ema, cujas penas são transportem o corpo adverso
desenhadas por claro-escuros da Via Láctea) e o espírito pulse
e respire
pode que a noite e confronte
hoje o mar que o separa
se furte a amanhecer da terra indestrutível
a terra desmorone
nos bordos do poente quem sabe o paraíso
e outra vez o sol que descrevem os antigos
como antes não esteja além do vasto
não desponte nevoeiro e sargaço
mas no árduo percurso
em busca de outro sol vencido passo a passo
pode alguém se perder sem bússola ou mapa do céu
abandonando o humano em pergaminho
para encontrar seu deus
- o mesmo que ao nascer talvez além do zênite
deu-lhe um nome secreto que ofusca o caminho
de sua divindade deixando um invisível
perfeito e repleto roteiro para os olhos
que enfrentam o escuro
pode que na viagem entre os dois
no trajeto disperso crepúsculos
um homem adivinhe
a vereda possível
sem fim, de sol a sol
até que a fome e a febre

120
121
treno

AO RÉS DA RELVA
no rumo
de seu desfecho cores
um homem ouve acordam amarelas
o som rouco
que vem do sopro quem sabe sejam só
nos colmos (garapuvu guaperubu)
flores dispersas, flores
longos e ocos
do torém (guapivuçu guaperevu)
rente ao limo do açude
sem remo
ou um viés de sol

em silêncio
réstia do alvorecer
seu bote
transpõe a rebelar-se
(a sós)
a esmo
guapuruvus
o curso do termo
extremo pétalas

122
12 3
:0

salso argento

"não vá se escalavrar nas cracas o


do rochedo ao recolher o guano, meu filho; VERBO

o mar ruge como um jaguar; seja


pode-se lanhar o nevoeiro com suas garras; alento
os vagalhões arrojam mesmo as gaivotas ao
que cagam branco nos penhascos, estridor
como antes me afogaram; doe
suas leiras podem esperar do vento a
uma esteira verde que esterque as sementes, ode
e da noite o aljofre que dá força; o
não desça hoje o penedo em busca do silêncio
excremento, o
ou ficarei órfão antes do nascimento" nome
- disse-lhe o menino, mergulhando ao
num remoinho de círculos concêntricos desespero
dome
o
acordou com o murucutu noturno, medo
e seus olhos eram uma poça de sal
quando avisou a mulher:

"nosso filho está vindo, de algum lugar,


e fala palavras iguais às de meu pai"

124 125
Tecoma

soltas
do caule
as pétalas
do ipê
descolorem
a penugem
dos talos
(de repente
A FOZ DO RIO
leves,
O RISO DO MENINO
da carola
O ÓLEO NO MIOLO
livres),
DA NOZ
em alvoroço
viçam
- após lento
pouso -
de sol
o capim

126
127
roça barroca

As almas são visíveis em forma de sombras. o SEBO


Da religião Guarani, via Schaden que acende
o lume
viu O primeiro sol éomesmo
depois do inverno que unge
desembrulhar, folho por as mãos
folho, os rebentos que abrem
sulcos
em cada greta entre raízes
e grumo e restolhos,
do terreno tegumentos
foi descobrindo de mudas,
grelos cogumelos
e vergônteas, no estrume
ocelos verdes
e outros
arremedos

no alfobre
farto de bolor
e mofo,
sobre os sulcos
cheios
de refolhos
- em cada covo
um eco de silêncio,
a própria sombra
um paroxismo
de roxos

128 129
moradas nômades
cortejo noturno

carunchos e cupins roem, trouxe na lua crescente


vorazes, a choupana de ripas uma canastra de peixes
(as guelras membranas baças
pendem do esteio ramos de trigo, de romãs despedaçadas)
feito amuleto para celeiros cheios;
tachos esfarelam crostas de grãos moídos nos lampejos da minguante
e redes balançam seus esgarços, um puçá de caranguejos:
perto do chão onde uma nódoa preta tanino do mangue-bravo
mostra o antigo fogo fez o azul das carapaças

tudo abandono, e, no entanto, das fasquias de taquara


lá fora o pomar semeado fisgou argolas de palha;
para os que agora cruzam as plumas de maguari
(trouxas vazias), um transbordando das cabaças
por um, os onze mil
guapuruvus no cesto da lua nova
frutos roxos de figueira,
gavelas, paveias, feixes
para o leito sobre a areia
29 dias

restos de flores de goivo, SUE


gomos e lábios vermelhos o secar do poço
- o lento engenho do jogo soe
no começo dos afagos o oco do cepo
brote
(sobre o leito frondoso o bulbo do fruto
o alvorecer poento vente
encontre os noivos reclusos o pólen poento
dentro do próprio desejo) (ventre)

dedos trêmulos e beijos


sobre seus cabelos negros
- lampejo sombrio do gozo
no fôlego dos abraços

(junto aos latejos do fogo


o poente poeirento
encontre os noivos desnudos
no assombro do silêncio)

restos de flores de goivo


sobre seus cabelos negros

133
do zero ao zênite do negrume
evolveu-se
no tempo (a flor de plumas
em que os ventos na fronte),
frios como sol
eram sopros e nume e fronde
(dobres) florescendo
fúnebres
entre as trevas
e o vazio

como um broto
que se abre
(só, sobre si,
com luz
dentro),
o deus
- do breu-
desdobrou-se

seu dorso
riscou no escuro
o ouro
de seu contorno,
do escuro
foi erguendo
o tronco
que se entrevou
no lúmen
do próprio
útero

135
134
onde o céu encontra a terra

o breu devore à noite LA BRISA REBELADA


o próprio rastro; en dos o tres ráfagas
no solo ocre, de rojo, ahoga el árbol
o escuro escureça, arrojando ai voleo
noite tão noite los rojos sangriensos
que se dobre em dia de sus pétalos

os charcos zoem tengo briznas en los ojos


outra vez insetos;
virem os regos mi alpargata mojada
de lodo va pisando sin. pesar
em que chafurdo Ias flores náufragas
- com o sol-
pó púrpuro,
ou longos rolos
que o vento
eleva e enovela

a prumo o sol ofusque


a si mesmo,
e a tarde entardeça
num crepúsculo

bojo de sombras,
lusco-fusco de névoas
(frutos apodrecendo
na gamela)

137
Notas sobre um
percurso compartilhado

'onheci a poesia de Josely Vianna Baptista imediatamente


antes da publicação de seu primeiro livro, Ar, pela Editora
lluminuras, de Samuel León, em 1991. Havia voltado ao
Brasil depois de anos de trabalho no exterior e havia reen-
contrado [osely, por acaso, na coordenação de editoração
da Secretaria de Estado da Cultura do Paraná. Havia mui-
tos anos, ainda nos tempos da universidade, eu a conhe-
c ra e descobrira, meio atônito, ser ela a tradutora para o
português do Paradiso de Lezama Lima, romance de uma
beleza irradiante e de uma linguagem gongórica, sendo o
trabalho de trazê-lo para a nossa língua um feito de dimen-
sões quase épicas. Surpreendeu-me, naquela época, que tal
empreitada tivesse sido feita por uma pessoa tão jovem, o
que já evidenciava uma capacidade incomum, uma visão
de risco de corte inteiramente artístico, uma compreensão
quase inata dos recursos poéticos da língua portuguesa,
11m senso de medida para dar às imagens uma concisão e
acuidade que reverberavam na escrita e no som das pala-
vras. Nos anos subsequentes ela se firmou como uma das
mais talentosas tradutoras de literatura e poesia hispânica e

139
hispanoamericana (na opinião de alguns escritores, como nova organização espacial da escrita já seria significativa
Wilson Bueno, como a mais brilhante tradutora de textos (lembro-me da mesma reação surpresa de Antonio Dias, na
literários do espanhol que conseguimos ter). Hoje, depois Bienal de São Paulo de 1994, quando lhe apresentei o livro
r
de quase uma centena de títulos traduzidos para as maiores de Josely com esses poemas que ela chama de "aerados").
editoras brasileiras, e de um prêmio Jabuti pela tradução Mas além disso, havia ali, submerso na rarefeita atmosfera
de poemários de Borges, Josely é reconhecida como aquela gráfica com que esses poemas eram apresentados, um tra-
tradutora que consegue verter para a nossa língua textos de balho com a língua e com a linguagem capaz de criar ime-
uma dificuldade ímpar com correção quase microscópica, e diatamente relações sinestésicas entre o texto e as imagens
que, além disso, encontra neles a sonoridade e a personali- criadas. Finalmente, as próprias imagens eram de uma
dade adequadas para fazê-los reviver em português. beleza extraordinária, espécie de alucinação dos sentidos
Porém, quando a reencontrei, naquela oportunidade em que transportava a imaginação para uma fronteira em que
que ela me mostrou os manuscritos de Ar, minha surpresa, a contemplação não perdia o foco, mas reverberava numa
perante uma carga de invenção de um calibre diverso, foi esfera quase metafísica - dois exemplos que me ocorrem,
de uma qualidade muito mais substantiva. Primeiramente, imediatamente, são estes seus poemas:
saltava aos olhos a maneira como ela apresentava os tex-
tos da maioria dos poemas: as letras espaçadas umas das
outras como se donas de um significado próprio, como se amoram a sombra na
indivíduos de uma constelação de outras letras na página morada do ipê pét
impressa, que só após os instantes iniciais desvelam-se, a I a s tem p o rãs, e eu
lentamente, em vocábulos e depois em frases e, finalmente, te beijo enquanto
em poemas. Soube por ela que a intenção não era somente figos caem do céu
plástica, mas também funcional, a de quebrar o ritmo da c o m o cometas
leitura e forçar uma nova "respiração" da fala que a acompa-
nha, mesmo mentalmente. Ar, o nome do livro, nesse sen-
tido, era um título perfeito, pois não somente referia esses n a m a d r
aspectos do texto como impregnava-se, já no início do livro, u g a d a a
da noção de alento vital, na dedicatória ao mesmo tempo g u d a q u
transcendente e martirizada da poeta, "à liga da palavra- a I a d a g
-alma dos Guarani - iie'eng - e a seus suicidas". Natural- a a á g u
mente, para um artista plástico, essa "descoberta" de uma a p n g a
A aparição daqueles textos na minha frente, nos ma- construção da imagem. E havia, então, esse acontecimento
nuscritos que ela me entregara meio timidamente para ler, totalmente inusitado. Convidá-Ia para desenvolver um tra-
deixara-me aturdido. Não conseguia abarcar o tamanho do balho conjunto foi uma consequência quase inevitável disso
panorama que se alargava naqueles papéis impressos. Não tudo, Nem mesmo sabíamos como desenvolver o trabalho,
eram somente as evidentes qualidades do texto, da sua cria- não tínhamos proposta nenhuma, mas me era evidente
ção e da sua poesia e da sua estrutura, mas, de um modo que havia um extenso campo de diálogo entre ambas as
totalmente inusitado, havia ali também uma temática que - criações artísticas.
indo de uma visão amorosa de momentos diversos de um Foi assim que, nem mesmo Ar havia sido lançado, o
cotidiano transfigurado pelos sentidos a reflexões que re- futuro Corpografia já havia nascido, fruto da vizinhança
feriam o universo das culturas ameríndias - tinha uma dos trabalhos criados. Efetivamente, Corpografia (autópsia
evidente ponte para dialogar com meu próprio trabalho ar- poética das passagens), o segundo livro de [osely, veio à luz
tístico, que já estava imerso num imaginário que pulsava pouco mais de um ano depois, após um período de ati-
entre visões de paisagens da natureza brasileira e as ima- vidade intensa em que ambos criamos um método de
gens surgidas dos relatos dos tempos da descoberta, de uma trabalho que veio a se consolidar durante os anos subse-
qualidade quase onírica, para trazer à paisagem natural quentes. O "método" era, na verdade, a interpenetração de
uma beleza própria das visões de um paraíso na Terra, d texto e imagem, elaborados de maneira independente um
um paraíso perdido. Mas de um paraíso selvagem, arredio do outro e organizados em grandes conjuntos, ou séries,
e incomensurável, sem muita descrição ou narrativa possí- de imagens e poemas. Em Corpografia, Josely continuou
vel. Um paraíso sem história exceto aquela dos sentidos, da sua experiência com a "aeração" dos textos, radicalizando-
memória dos sentidos, e, nesse particular, expresso numa -a em grandes retângulos de letras que ocuparam todo o
fatura gráfica de intensidade e resolução muito pessoais spaço das páginas. O trabalho, reinterpretado para um
personalizadas, que o aproximavam, de certo modo, da tem- ontexto das artes visuais, ganhou várias instalações no
peratura mais íntima daquele trabalho poético, Se me pel'· Brasil e no exterior, tendo uma delas chegado à Bienal de
.mito essa digressão sobre o meu próprio trabalho artístico' Havana em 1994, com os textos ocupando, naquela forma
para mostrar as conexões com os poemas de [osely que me "aerada", toda a extensão das paredes, transformadas em
eram evidentes. Entre a temática do imaginário ameríndi símiles das páginas do próprio livro. A arte visual, consti-
que ela sinalizava e a visão da paisagem de uma natureza tuída de grandes desenhos e montagens que se utilizavam
arquetípica, que se situava entre o onírico e o real, havia, en- de fotos trabalhadas, desenhos e painéis de laca brilhante,
tão, uma ponte. Havia o espaço e havia o "ar". E havia um :1 pontuava o interior do espaço desse grande "livro" criado
lor amoroso na sua construção do texto, tal como na minha no espaço expositivo.

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Corpografia foi o início de um work in progress que perdu- A partir de meados dos anos 2000 eu e [osely começa-
rou por mais de uma década e meia, e resultou ainda num mos a reunir em livro e exposições o conjunto desse tra-
segundo trabalho, Os poros jlóridos, que ganhou várias ver- balho verbo-visual desenvolvido por mais de uma década.
sões em livro no Brasil e no exterior, tendo sido primeira- Efetivamente, Sol sobre nuvens, da Signos, traz a reunião
mente publicado no México, pela Aldus (a edição trazia o dos seus primeiros livros e ainda poemas inéditos. Por seu
texto integral, inédito, em português, e a tradução para turno, o projeto Moradas nômades/Fímbrias, que desenvolvi
o espanhol realizada por Reynaldo Jiménez e Roberto Echa- junto com Josely e com o poeta Luis Dolhnikoff, foi con-
varren], e depois nos EUA, pela 1913 Press (em tradução de cebido para duas grandes exposições, no Instituto Tomie
Chris Daniels). Poros, como sucintamente o chamávamos, Ohtake, em São Paulo, e no Museu Oscar Niemeyer, em
somente ganhou sua publicação integral no Brasil anos Curitiba, e nele eu e Josely apresentamos uma síntese dos
mais tarde, em 20°7, ao integrar a edição de Sol sobre nu- vários projetos poético-visuais que desenvolvemos nos anos
vens, o livro que Haroldo de Campos convidou Josely a edi- anteriores, e, pela primeira vez, tentamos uma aproximação
tar na coleção Signos, da Editora Perspectiva. Haroldo não do que seria o futuro Roça barroca, com séries inteiramente
chegou a ver o livro concluído, e a edição foi a lume sob dedicadas a "Moradas nômades" (que deu título ao projeto)
a coordenação de Augusto de Campos, que o coroou com e a "Do zero ao zênite". Alguns desses poemas de Josely
uma bela e importante apresentação do trabalho de Josely. foram também incluídos em The Oxford Book of Laiin Ame-
Poros foi uma experiência diferente: já não mais havia os rican Poetry (Oxford University Press, 2009. Org. Cecilia Vi-
poemas aerados de Ar e Corpografia, mas os textos, em blocos cuna e E. Livon-Grosman), antologia que cobre quinhentos
isolados, flutuavam na página. Várias vozes interpenetravam- anos da poesia do continente, indo de escritos maias anô-
-se, e Josely usou as páginas do livro aberto como uma espé- nimos do século XVII aos dias atuais, e na qual é a única
cie de projeção em planta de um palco onde as vozes, ali re- representante brasileira de sua geração.
presentadas pelos blocos isolados de texto, estariam situadas. Roça barroca, o presente livro, nasce como consequên-
Continuava a trabalhar, assim, um método de organização cia poética desse trabalho que [osely, de maneira paciente
plástica do texto, e a continuidade da presença estrutural desse e rigorosa, desenvolveu por mais de quinze anos. Fiel ao
elemento plástico, agora em outra chave, presente nos dois li- percurso já iniciado em Ar e desenvolvido nos trabalhos
vros anteriores. Osporos jlóridos ganhou várias instalações em subsequentes, Roça barroca foi inicialmente pensado como
galerias e museus e fez seu percurso dentro do circuito das um arco narrativo cujo percurso unia aquela transfiguração
artes plásticas, tendo chegado à exposição Naturalezas Con- de momentos do cotidiano (que, justamente, se iniciava
juradas, no Instituto Wifredo Lam, em Havana, sob a cura- na "roça" que mantivemos no fundo dos quintais da casa
doria de Magda González-Mora e Eugenio Valdés Figueroa. em que moramos no interior do Paraná, e que por anos foi

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hispanoamericanos, de maneiras diversas mas congru nt s,
objeto de cuidados dela e do nosso filho Pedro [erônimo,
procuram criar nas Américas (e nesse arco podemos incluir
que cresceu escolhendo o que ali queria cultivar e o que dali
o mencionado Lezama Lima, como o nosso Oswald, com
colhia para preparar seu almoço) e estendia-se unindo pas-
seu ideário antropofágico).
sado e presente, natureza e cultura, numa síntese poética de
No decurso da resolução do livro, Josely resolve, apro-
um trabalho que sempre refletiu o impacto da perspectiva
priadamente, incorporar a tradução dos três primeiros can-
ameríndia sobre o imaginário da criação dos mitos funda-
tos do Ayvu rapyta, os cantos sagrados dos povos guaranis
dores das Américas. E, claro, do impacto que esse trágico
que narram a criação do mundo, que ela já iniciara sob os
encontro de civilizações acaba por desferir na sobrevivência
auspícios da Bolsa Vitae de Artes e que ganhou sua forma
dos povos ameríndios e da cultura ameríndia, lato senso.
final, depois de minuciosa elaboração, para a presente edi-
Imageticamente, Roça foi concebido por [osely, então, como
ção. Esse trabalho surgiu ao longo do final dos anos 1990,
um lento aprofundamento na natureza, na história e na cul-
quando por meses desenvolvemos um trabalho junto aos
tura, criado in media res, que se iniciava em cenas do coti-
Guarani da Reserva de Ocoí, nas imediações da Tríplice
diano que lentamente, como num mergulho de memória
Fronteira. Por longo tempo, a presente forma com que os
e imagens transfiguradas, transportariam a voz poética da
cânticos do Ayvu hoje são cantados pelos indígenas (a base
autora aos aspectos cada vez mais sombrios da natureza em
oral de transmissão do mito supõe essas modificações e in-
lenta desagregação (como em "Ostro" e "Dois Rios") e ao co-
corporações, numa construção dinâmica do relato) foi co-
tidiano ameríndio (como no tableau de um tríptico formado
mentada pelo então cacique mbyá Teodoro Alves a [osely,
por "Cortejo noturno", "29 dias" e "Coix lacryma"), já aí si-
que a confrontou com a versão já clássica coletada por Ca-
tuado numa esfera quase atemporal, para finalmente mer-
dogan. Como grande tradutora que sempre foi, Iosely pro-
gulhá-lo em quadros que simbolizam o drama do encontro
duziu a primeira versão verdadeiramente poética desses
disruptivo de civilizações em cenas situadas no decurso dos
cânticos sagrados para nossa língua natal. Esse inusitado e
séculos da Conquista (como em "Antônio de Gouveia, clé-
ousado trabalho de tessitura da filigrana de sonoridades dos
rigo em Pernambuco").
Uma seção final, profética e transfigurada, também foi cantos indígenas em sua recriação no português ganhou,
entre outras, uma elogiosa apreciação de Bartomeu Meliá,
imaginada como metáfora de resistência da memória e
conhecido não somente por sua erudição no que tange a
persistência dos afetos (pelo menos um poema foi assim
concebido, "salso argento"). Fiel a esse seu imaginário essa temática como por seu intransigente rigor.
Roça barroca, projeto premiado com uma bolsa de cria-
poético, [osely elaborou um projeto alentado para dar voz
ção do Programa Petrobras Cultural, e que agora é dado à
ao momento da "contraconquista", já preconizado pelo
programa cultural que muitos dos criadores brasileiros e estampa pela Cosac Naify, acaba se configurando como o

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primeiro grande passo dessa síntese que a autora imagi-
nou no início de seu projeto poético/político, que combina
invenção artística, intervenção cultural, diálogo multidisci-
plinar e revisão (senão reavaliação) de nossa herança cultu-
ral. Apenas uma instalação verbo-visual desse novo e im-
portante trabalho veio a lume, na exposição que realizei no
Largo das Artes, no Rio de Janeiro, em 2009- Fruto seminal,
Roça barroca aí está e aí permanecerá, como na imagem da
roça ameríndia transfigurada em um dos poemas do livro:

[...] tudo abandono, e, no entanto,


lá fora o pomar semeado
para os que agora cruzam
(trouxas vazias), um
por um, os onze mil
guapuruvus

Francisco Faria
Rio de Janeiro, outubro de 20Il

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