Você está na página 1de 520

A CARIDADE E SEUS FRUTOS

Uma Exposição Clássica Sobre o Amor


Por Jonathan Edwards
_______________________________
Charity and Its Fruits
By Rev. Jonathan Edwards

Traduzido por Tiago F. Cunha


Revisado por Tiago F. Cunha
Capa: Rev. Dorisvan Cunha

1ª Edição em Português: Junho de 2016


1
A caridade, ou amor, é a soma de toda virtude
2
A caridade é mais excelente que os dons extraordinários
do Espírito
3
As maiores realizaçoes ou sofrimentos são vãos sem a
caridade
4
A caridade nos dispõe a suportar mansamente os danos
causados pelo outros
5
A caridade nos dispõe a fazer o bem
6
A caridade é inconsistente com um espírito invejoso
7
O espírito da caridade é um espírito humilde
8
O espírito da caridade é contrário ao egoísmo
9
A caridade se opõe a um espírito raivoso ou irado
10
A caridade opõe-se à censura
11
Toda graça verdadeira no coração tende à prática santa
na vida
12
A caridade, ou um espírito cristão, dispõe-se a suportar
todos os sofrimentos no caminho do dever
13
Todas as graças do cristianismo estao conectadas
14
A caridade, ou graça verdadeira, não pode ser destruída
pela oposição
15
O Espírito Santo deve ser comunicado para sempre aos
santos na graça da caridade, ou amor divino
16
Céu, um mundo de caridade ou amor
CAPÍTULO 1

A CARIDADE, OU AMOR, É A SOMA DE TODA VIRTUDE

A inda que eu falasse as línguas dos


homens e dos anjos e não tivesse
caridade, seria como o metal que soa ou
como o sino que tine. E ainda que tivesse o dom de
profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a
ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que
transportasse os montes, e não tivesse caridade, nada
seria. E ainda que distribuísse toda a minha fortuna
para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu
corpo para ser queimado, e não tivesse caridade, nada
disso me aproveitaria.
1 Coríntios 13:1-3

Nessas palavras observamos:


Primeiro, algo que é mencionado como de especial
importância e como peculiarmente essencial aos cristãos, a
que o apóstolo denomina caridade[1]. E vemos que essa
caridade é abundantemente insistida no Novo Testamento por
Cristo e seus apóstolos; mais insistida, de fato, que qualquer
outra virtude.
Contudo, a palavra “caridade”, como é usada no Novo
Testamento, possui significado mais amplo do que o seu uso
na linguagem comum. O que as pessoas geralmente entendem
por “caridade”, nas conversas comuns, é aquela disposição
para esperar e pensar o melhor dos outros e não distorcer suas
palavras e atos. Às vezes, é usada para descrever a disposição
em se doar aos pobres. Essas coisas, entretanto, são apenas
certos ramos específicos, ou frutos, dessa grande virtude que
é tão enfatizada por todo o Novo Testamento. A palavra, no
seu sentido próprio, significa amor, isto é, aquela disposição
ou afeição pela qual alguém é querido a outro. A palavra
original, agápē, traduzida aqui por “caridade”, poderia ter
sido melhor traduzida como “amor”, pois é essa a
correspondente adequada no português.
Assim, por caridade, no Novo Testamento, quer-se dizer a
mesma coisa que amor cristão. Ainda que seja mais frequente
seu uso para designar o amor aos homens, é não apenas isso,
mas também amor a Deus. Desse modo é manifesto seu uso
pelo apóstolo nesta epístola aos coríntios, como ele próprio se
explica em 1 Coríntios 8:1: “A ciência incha, mas o amor[2]
edifica.” Nessa passagem, a comparação é entre o
conhecimento e a caridade, e a preferência é dada à ultima,
uma vez que o conhecimento envaidece, mas a caridade
edifica. Então, nos dois versículos seguintes[3], é mais
especificamente explicado como o conhecimento geralmente
envaidece, e por que a caridade edifica. Logo, o que no
primeiro versículo é chamado caridade, no terceiro é
chamado amor a Deus, pois é evidente que se trata da mesma
coisa nos dois lugares.
Sem dúvida, neste capítulo treze de Coríntios, o apóstolo
tem em mente o mesmo assunto do oitavo, pois aqui,
novamente, compara as mesmas duas coisas lá tratadas, isto é,
o conhecimento e a caridade. “Ainda que conhecesse todos os
mistérios e toda a ciência e não tivesse caridade, nada seria”.
E, novamente: “A caridade nunca falha, mas havendo ciência,
ela desaparecerá”.
Logo, sem dúvida, por caridade, aqui, devemos entender o
amor cristão em sua plena extensão, quer exercido em
relação a Deus, quer a nossos semelhantes.
E fala-se aqui dessa caridade como aquilo que de uma
maneira especial é a coisa maior e essencial, o que se mostra
mais plenamente quando observamos:
Em segundo lugar, o que é mencionado como sendo vão
sem ela, isto é, as coisas mais excelentes que já pertenceram
aos homens naturais[4]: os mais excelentes privilégios e as
mais excelentes realizações.
Primeiro, há os mais excelentes privilégios, tais como o
falar em línguas, o dom de profecias, o entendimento de todos
os mistérios, a fé que remove montanhas etc.
Segundo, as mais excelentes realizações, tais como o
distribuir todos os bens entre os pobres, entregar o corpo para
ser queimado etc. Coisas maiores que essas homem natural
algum jamais teve ou fez, e esses são tipos de coisas nas quais
os homens são grandemente inclinados a confiar. Contudo, o
apóstolo declara que se as tivéssemos todas e não tivéssemos
a caridade nada seríamos. Portanto, a doutrina ensinada é:
TODA VIRTUDE QUE É SALVÍFICA, E QUE
DISTINGUE OS CRISTÃOS VERDADEIROS DOS
DEMAIS, ESTÁ RESUMIDA NO AMOR CRISTÃO.
Isso se mostra pelas palavras do texto, pois são
mencionadas tantas outras coisas que os homens naturais
podem ter, e coisas essas que são dos mais altos tipos
alcançáveis por eles, tanto privilégios como realizações, e,
ainda assim, é dito que elas de nada valem sem a caridade. Se,
ao contrário, essas coisas fossem salvíficas, teriam alguma
serventia sem ela.
Pelo fato de o apóstolo mencionar tantas e tão altas coisas,
e dizer que de nada adiantam sem a caridade, podemos
corretamente concluir que nada existe que tenha algum valor
sem ela. Tenha alguém o que tiver e faça o que fizer, isso nada
significa sem a caridade; o que implica certamente que ela é a
coisa maior, e que tudo o que não contenha ou implique de
algum modo em si a caridade nada é. Implica também que ela
é a vida e alma de toda a religião[5], sem a qual todas as coisas
que vestem o nome de virtudes são vazias e vãs.
Ao falar dessa doutrina, primeiro notarei a natureza desse
amor divino, e depois demonstrarei a verdade da doutrina
relacionada a ela.
I. Falarei da natureza de um amor verdadeiramente
cristão. E aqui observo:
1. Que todo amor verdadeiramente cristão é um e o
mesmo em seu princípio.
Ele pode variar em suas formas e objetos, e pode ser
exercido tanto em relação a Deus quanto aos homens, mas é o
mesmo princípio no coração que é o fundamento de cada
exercício de um amor verdadeiramente cristão, qualquer que
seja seu objeto.
Não acontece com o amor santo no coração dos cristãos
como se dá com o amor de outros homens. O amor deles,
direcionado a diferentes objetos, pode derivar de diferentes
princípios e motivos e ter diferentes objetivos; mas isso não
ocorre com um amor verdadeiramente cristão. Ele é um
quanto ao seu princípio, qualquer que seja o objeto em
relação ao qual é exercido. Provém da mesma fonte ou
princípio no coração, embora possa fluir em canais diferentes
e direções diversas. Portanto, pode-se defini-lo com justeza
com o único nome de caridade, como no texto.
Que o amor cristão é um, quaisquer que sejam os objetos
em direção aos quais flui, é evidente pelo seguinte:
Primeiro, ele procede do mesmo Espírito influenciando o
coração.
É pela espiração do mesmo Espírito que surge o verdadeiro
amor cristão, tanto a Deus quanto aos homens. O Espírito de
Deus é um Espírito de amor, e quando Ele entra na alma, o
amor vem consigo. Deus é amor, e o que tem Deus habitando
em si, pelo seu Espírito, terá também o amor habitando em si.
A natureza do Espírito Santo é amor, e é comunicando a si
mesmo, em sua própria natureza, aos santos, que o coração
deles é preenchido com a caridade divina. Assim,
descobrimos que os santos são participantes da natureza
divina, e o amor cristão é chamado de “amor do Espírito”
(Rm 15:30) e “amor no Espírito” (Cl 1:8); e as próprias
entranhas do amor e da misericórdia parecem significar a
mesma coisa que a comunhão do Espírito (Fl 2:1). Também é
esse Espírito que infunde amor a Deus (Rm 5:5); e é pela
habitação dele que a alma permanece no amor a Deus e ao
homem (1 Jo 3:23, 24; 4:12, 13).
Segundo, o amor cristão, tanto a Deus quanto ao homem, é
operado no coração pela mesma obra do Espírito.
Não há duas obras do Espírito de Deus, uma para infundir
um espírito de amor a Deus, e outra para infundir um espírito
de amor aos homens; mas, ao produzir uma, o Espírito
produz a outra também. Na obra da conversão, o Espírito
Santo renova o coração dando-lhe um caráter divino (Ef 4:23),
e é um e o mesmo caráter divino, que é assim operado no
coração, que flui em amor tanto a Deus quanto ao homem.
Terceiro, quando Deus e o homem são amados com um
amor verdadeiramente cristão, ambos são amados pelas
mesmas razões.
Quando Deus é amado corretamente, é amado por sua
excelência e pela beleza de sua natureza, especialmente a
santidade dela; e é pelo mesmo motivo que os santos são
amados, por causa da santidade. Todas as coisas que são
amadas com um amor verdadeiramente santo são amadas
pelo mesmo respeito a Deus.
O amor a Deus é o fundamento do amor gracioso aos
homens, e os homens são amados, quer por que sejam em
algum aspecto semelhantes a Deus, por possuírem sua
natureza e imagem espiritual, quer devido à relação que têm
com Ele, como seus filhos ou criaturas - como aqueles que
são abençoados por Ele, ou a quem sua misericórdia é
ofertada, ou de algum outro modo relacionado a Ele.
Apenas observo que, embora o amor cristão seja um em
seu princípio, é, contudo, distinta e variadamente denominado
de dois modos, isto é, com respeito a seus objetos e aos
modos como é exercitado, como, por exemplo, seus graus
etc. Prossigo agora,
II. Para mostrar a verdade da doutrina de que toda
virtude salvífica ou característica dos cristãos verdadeiros
está sumarizada no amor cristão.
1. Podemos argumentar a partir do que a razão ensina
sobre a natureza do amor. Se considerarmos devidamente sua
natureza, duas coisas aparecerão:
Primeiro, que o amor disporá a todos os atos
apropriados de respeito tanto por Deus quanto pelo homem.
Isso é evidente, pois um verdadeiro respeito, seja a Deus,
seja ao homem, consiste no amor. Se uma pessoa ama
sinceramente a Deus, isso a disporá a render-lhe todo o
respeito apropriado, pois as pessoas não necessitam de outro
incentivo para mostrar umas às outras todo o respeito devido
além do amor.
O amor a Deus irá dispor a pessoa a honrá-lo, adorá-lo,
cultuá-lo e reconhecer de coração sua grandeza, glória e
domínio. E assim disporá a todos os atos de obediência a
Deus, pois o servo que ama seu senhor e o súdito que ama
seu soberano estarão dispostos à devida sujeição e obediência.
O amor disporá o cristão a portar-se em relação a Deus
como um filho em relação ao pai: em meio a dificuldades,
dirigir-se a Ele por auxílio, e por nele toda sua confiança,
como nos é natural, em caso de necessidade e aflição, ir a
alguém a quem amamos em busca de compaixão e auxílio.
Ele nos conduzirá também a dar crédito à sua Palavra, e em
Deus por a confiança, pois não somos capazes de suspeitar da
credibilidade de quem temos inteira amizade. Também nos
disporá a dar a Deus louvores pelas misericórdias que dele
recebemos, do mesmo modo como estamos dispostos a ser
gratos por qualquer bondade recebida da parte de nossos
semelhantes que amamos.
O amor, novamente, disporá nossos corações à submissão
à vontade de Deus, pois estamos mais dispostos que se
cumpra a vontade dos que amamos do que a de outros.
Naturalmente desejamos que aqueles que amamos sejam
agradados e que sejamos agradáveis a eles. A verdadeira
afeição e amor a Deus disporá o coração a reconhecer o
direito que Ele tem de governar, e que é digno de o fazer, e
assim disporá nosso coração à submissão.
O amor a Deus nos disporá a andar humildemente na sua
presença, pois o que ama a Deus está disposto a reconhecer a
vasta distância entre Deus e si. Será agradável a essa pessoa
exaltar Deus, e entronizá-lo acima de tudo, e se rebaixar
diante dele. Um cristão verdadeiro se deleita em ter Deus
exaltado enquanto ele próprio é humilhado, e isso porque o
ama. Está disposto a reconhecer que Deus é digno disso, e é
com deleite que se lança ao pó perante o Altíssimo, devido a
seu amor sincero por ele.
Ademais, uma consideração devida da natureza do amor
mostrará que ele dispõe as pessoas a todos os deveres
relacionados ao próximo. Se as pessoas tiverem amor sincero
por seu próximo, isso as disporá a todos os atos de justiça
para com eles – pois o amor verdadeiro e a amizade sempre
nos dispõem a dar o que é devido a quem amamos – e nunca
falhar com eles: “O amor não pratica o mal contra o próximo”
(Rm 13:10). E o mesmo amor disporá a falar a verdade ao
próximo, e tenderá a prevenir toda mentira, fraude e engano.
As pessoas não estão dispostas a fraudar e a trair aqueles a
quem amam, pois tratar os outros dessa maneira é tratá-los
como inimigos; mas o amor destrói a inimizade. Por isso, o
apóstolo faz uso da unidade que deve haver entre os cristãos
como um argumento para induzi-los à verdade entre si (Ef
4:25).
O amor nos disporá a andar humildemente entre as
pessoas; pois um amor real e verdadeiro nos inclinará a ter
pensamentos elevados acerca dos outros, e pensar deles
melhor que de nós mesmos. Disporá as pessoas a honrarem
umas às outras, pois todos estão inclinados a pensar bem
daqueles que amam, e dar-lhes honra. Logo, pelo amor se
cumpre aqueles preceitos: “Honrai a todos” (1 Pe 2.17); e:
“Nada façais por contenda ou por vanglória, mas por
humildade; cada um considere os outros superiores a si
mesmo” (Fl 2:3).
O amor nos disporá ao contentamento com a posição na
qual Deus nos colocou, sem cobiçar coisa alguma que
pertença ao próximo, ou invejá-los por causa de qualquer bem
que possuam. Disporá as pessoas à mansidão em sua postura
para com o próximo, e a não os tratar com paixão, ou
violência, ou ardor de espírito, mas com moderação e calma,
em bondade. Avaliará e restringirá coisas como um espírito
amargo; pois o amor não contém em si a amargura, mas é
uma disposição gentil e doce, e uma afeição da alma.
Prevenirá tumultos e discussões, e disporá os homens à paz e
a perdoar a injúria recebida de outros; como é dito em
Provérbios: “O ódio excita contendas, mas o amor cobre
todas as transgressões” (Pv 10.12).
O amor disporá os homens a todos os atos de misericórdia
em relação ao próximo, quando estiverem em qualquer aflição
ou calamidade, pois temos a propensão natural de nos
compadecermos dos que amamos, quando estão aflitos.
Disporá os homens a dar aos pobres, a suportar a carga uns
dos outros, e a chorar com os que choram, bem como a
alegrar-se com os que se alegram.
O amor disporá os homens aos deveres que têm uns para
com os outros, nas suas diversas posições e relações. Disporá
um povo a todos os deveres que tem para com as autoridades,
e a dar a elas toda a honra e sujeição devidas. E disporá as
autoridades a governarem o povo sobre o qual estão
estabelecidas de maneira justa, séria e fiel, buscando o seu
bem, e não qualquer benefício próprio.
Também disporá um povo a todo dever apropriado para
com os pastores, a ouvir seus conselhos e instruções, a
submeter-se a eles na casa de Deus, e a apoiá-los, ser
simpáticos e orar por eles, pois são como os guardas de sua
alma. E disporá os ministros a fiel e incessantemente
buscarem o bem das almas de seu povo, vigiando por eles
como quem deve prestar contas.
O amor disporá à devida conduta entre superiores e
inferiores: disporá os filhos a honrarem seus pais, e os servos
a obedecerem seus senhores, não com fingimento, mas com
sinceridade de coração; e disporá os senhores ao exercício da
gentileza e bondade para com seus servos.
Assim, o amor deve dispor a todos os deveres, tanto para
com Deus quanto para com os homens. E, se assim disporá a
todos os deveres, segue-se que é a raiz e fonte e, por assim
dizer, um sumário de todas as virtudes. É um princípio que, se
for implantado no coração, sozinho, é suficiente para produzir
toda boa prática; e toda reta disposição para com Deus e o
homem está nele resumida, e dele procede, como um fruto de
uma árvore, ou um regato de uma fonte.
Segundo, a razão nos ensina que quaisquer realizações ou
aparentes virtudes que existam sem o amor são fingidas e
hipócritas.
Se não houver amor no que a pessoas fazem, então não há
respeito verdadeiro para com Deus em sua conduta; e, se
assim for, é certo que não há sinceridade também. A religião
nada é sem o devido respeito a Deus. A própria noção de
religião entre os homens é a de um exercício e expressão, por
parte da criatura, de respeito para com o Criador. Mas, se não
há respeito e amor verdadeiros, então tudo o que é chamado
religião nada mais é do que uma aparente exibição, e nela não
há verdadeira religião, mas é tudo falso e vão.
Logo, se a fé de uma pessoa for de tipo tal que não haja
verdadeiro respeito a Deus nela, a razão ensina que deve ser
vã, pois se não há amor a Deus também não pode haver real
respeito a ele. Daí, conclui-se que o amor sempre está contido
na fé verdadeira e viva, e é a sua verdadeira e própria vida e
alma, sem a qual a alma está morta, à semelhança de um
corpo sem alma. E é isso que distingue especialmente uma fé
viva das outras, porém falaremos mais disso daqui para frente.
Sem amor a Deus não pode haver verdadeira honra a ele.
Um homem nunca presta honra de coração a alguém a quem
não ama, logo, toda honra aparente ou culto que é prestado
sem amor nada mais é do que hipocrisia. Assim, a razão
ensina que não há sinceridade na obediência que é realizada
sem amor, pois, se não houver amor, nada pode ser feito de
forma espontânea e livre, mas sempre será forçado. Logo, sem
amor, não pode haver submissão de coração à vontade de
Deus, e não pode haver confiança verdadeira e cordial nele.
Aquele que não ama a Deus não confia nele; esse jamais, com
verdadeira aquiescência de alma, se lançará nas mãos de Deus
ou nos braços de sua misericórdia.
Portanto, ainda que haja boa postura nos homens em
relação ao próximo, contudo, a razão ensina que tudo é
inaceitável e vão, se ao mesmo tempo não houver no coração
real respeito para com ele, e se a conduta exterior não for
motivada pelo amor interior. E dessas duas coisas tomadas
juntas, isto é, que esse amor é de tal natureza que produzirá
todas as virtudes e disporá a todos os deveres para com Deus
e os homens, e que sem isso não pode haver virtude sincera e
nenhum dever pode ser propriamente realizado, a verdade da
doutrina é provada: que toda virtude e graça cristãs,
verdadeiras e salvíficas, podem ser resumidas no amor.
2. As Escrituras ensinam que o amor é a soma de tudo o
que está contido na lei de Deus, e de todos os deveres
requeridos em sua Palavra. Esse é o ensino da Escritura
sobre a lei em geral e sobre cada tábua da lei em particular.
Primeiro, as Escrituras ensinam isso quanto à lei e à
Palavra de Deus em geral.
Por Lei, nas Escrituras, às vezes se denomina a íntegra da
Palavra escrita de Deus, como no evangelho de João: “Não
está escrito na vossa lei: Eu disse: sois deuses?” (Jo 10.34).
Outras vezes, por lei, se denominam os cinco livros de
Moisés, como em Atos, onde se distingue entre a “lei” e os
“profetas” (At 24:14). Ainda outras vezes, por lei, se tem em
vista os dez mandamentos, como contendo a soma de todo
dever da humanidade, e de tudo que é exigido como de
universal e perpétua obrigação.
Mas, quer tomemos a lei apenas no sentido dos dez
mandamentos, quer incluindo o todo da Palavra escrita de
Deus, as Escrituras nos ensinam que a soma do que nela é
requerido é o amor. Assim, quando pela lei se tem em vista os
dez mandamentos, é dito em Romanos: “Quem ama aos
outros cumpriu a lei” (Rm 13:8).
Portanto, vários dos mandamentos são repetidos, e é
adicionado, no décimo versículo que o “amor” (que nos leva à
obediência de todos eles) é “o cumprimento da lei.” Ora, a
menos que o amor seja a soma do que a lei requer, esta não
poderia ser cumprida plenamente no amor, pois uma lei é
cumprida apenas pela obediência à soma ou ao todo do que
ela contém ou ordena. Então, o mesmo apóstolo declara
novamente: “Ora, o fim do mandamento é a caridade de um
coração puro, e de uma boa consciência, e de uma fé não
fingida” (1 Tm 1:5).
Mas, se tomarmos a lei em um sentido ainda mais extenso,
como o todo da Palavra escrita de Deus, as Escrituras ainda
nos ensinam que o amor é a soma do que nela é requerido.
Em Mateus, Cristo ensina que destes dois preceitos de amar a
Deus com todo o coração, e ao próximo como a nós mesmos,
dependem toda a lei e os profetas, isto é, toda a Palavra escrita
de Deus (Mt 22:40); pois o que, à época, era chamado de lei e
profetas era o todo da Palavra escrita de Deus então em vigor.
Segundo, as Escrituras ensinam o mesmo de cada tábua
da lei em particular.
O mandamento: “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o
teu coração...” é declarado por Cristo (Mt 22.37,38) como
sendo o cumprimento da primeira tábua da lei, ou o primeiro
grande mandamento. No próximo versículo, amar o nosso
próximo como a nós mesmos é declarado como sendo o
cumprimento da segunda tábua, como também aparece em
Romanos, onde os preceitos da segunda tábua da lei são
particularmente especificados (Rm 13.9). E é adicionado: “E,
se há algum outro mandamento, tudo nesta palavra se resume:
Amarás ao teu próximo como a ti mesmo”. Também em
Gálatas 5.14: “Porque toda a lei se cumpre numa só palavra,
nesta: Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. E o mesmo
parece ser declarado em Tiago 2.8: “Todavia, se cumprirdes,
conforme a Escritura, a lei real: Amarás a teu próximo como a
ti mesmo, bem fazeis”.
Logo, o amor parece ser a soma de toda virtude e dever
que Deus requer de nós; portanto, deve ser, sem dúvida, a
coisa mais essencial – a soma de toda virtude que seja
essencial e distinta no verdadeiro cristianismo. Aquilo que é a
soma de todos os deveres também deve ser a soma de todas
as virtudes verdadeiras.
3. A verdade da doutrina, como mostrada pelas
Escrituras, evidencia-se pelo que o apóstolo nos ensina em
Gálatas 5.6, isto é, que “a fé opera pelo amor”.
Uma fé verdadeiramente cristã é aquela que produz boas
obras; mas todas as boas obras que ela produz são pelo amor.
Disso, duas coisas são evidentes para o presente propósito:
Primeiro, que o amor verdadeiro é um ingrediente em uma
fé verdadeira e viva, e é o que é mais essencial e distinto
nela.
O amor não é ingrediente numa fé meramente especulativa,
mas é a vida e a alma de uma fé prática. Uma fé
verdadeiramente prática ou salvífica é tanto luz quanto calor,
ou melhor, luz e amor, enquanto uma fé meramente
especulativa é apenas luz sem calor, nela falta calor espiritual
ou amor divino; logo, para nada serve e é vã.
Uma fé especulativa consiste apenas no assentimento do
entendimento, mas na fé salvífica também há o
consentimento do coração[6]. A fé que é apenas do primeiro
tipo não é melhor que a dos demônios, pois eles também
possuem fé, até onde seja possível tê-la sem amor: eles creem
e tremem. Mas o consentimento verdadeiramente espiritual do
coração não pode ser diferenciado do amor do coração.
Aquele cujo coração consente em Cristo como Salvador tem
amor verdadeiro por ele como tal. Pois o fato do coração
sinceramente consentir no caminho da salvação por Cristo
não pode ser diferenciado de amar esse caminho da salvação e
descansar nele. Há um ato de escolha ou eleição na verdadeira
fé salvífica, no qual a alma escolhe Cristo para seu Salvador e
porção, e o aceita e abraça como tal. Porém, como foi
observado antes, uma eleição ou escolha pela qual ela, desse
modo, escolhe Deus e Cristo é um ato de amor – o amor de
uma alma abraçando-o como seu mais querido amigo e
porção.
A fé é um dever que Deus requer de todos. Somos
ordenados a crer e a incredulidade é um pecado proibido por
Deus. A fé é dever requerido na primeira tábua da lei, e no
primeiro mandamento dessa tábua. Portanto, conclui-se que
está compreendida no grande mandamento: “Amarás ao
Senhor, teu Deus, de todo o teu coração...”. Logo, segue-se
que o amor é a coisa mais essencial na fé verdadeira.
Que o amor é a própria vida e espírito de uma fé verdadeira
é especialmente evidente pela comparação desta declaração
do apóstolo, de que a “fé opera pelo amor”, e o último
versículo do segundo capítulo da carta de Tiago (Tg 2.26), que
declara que: “Assim como o corpo sem o espírito está morto,
assim também a fé sem obras é morta”.
A natureza funcional, ativa e atuante de algo é a sua vida; e
o que nos faz chamar algo de vivo é que nele observamos
uma natureza ativa. Essa natureza funcional e ativa no homem
é o espírito que está dentro dele. E assim como seu corpo sem
o espírito está morto, também a fé sem obras está morta. E se
quisermos saber qual é o princípio ativo da fé verdadeira, o
apóstolo nos responde em Gálatas 5.6: “A fé que opera pelo
amor”.
Portanto, é o amor que é o espírito ativo e funcional em
toda fé verdadeira. É a sua própria alma, sem a qual está
morta, como, por outro modo, ele afirma, ao salientar no texto
que a fé, sem a caridade ou amor, nada é, embora seja grande
o suficiente para remover montanhas. E quando diz, no
sétimo verso do contexto, que o amor “tudo crê, tudo espera”,
provavelmente se refere às grandes virtudes de crer e esperar
na verdade e graça de Deus, às quais compara o amor em
outras partes do capítulo, em particular no último versículo:
“Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e a caridade”.
Pois, no sétimo verso, dá preferência ao amor, antes das
outras virtudes da fé e da esperança, porque aquele inclui
estas; pois diz: “a caridade tudo crê, tudo espera”, de tal modo
que esse parece ser o seu sentido, e não meramente, como é
vulgarmente entendido, que o amor tudo crê e espera com
relação a nosso próximo.
Adicionalmente, que uma fé justificadora, como uma
marca muito distinta do cristianismo, está compreendida no
grande mandamento de amar a Deus, também aparece, muito
claramente, do que Cristo diz aos judeus (João 5. 40-43)[7].
Segundo, é ainda mais manifesto a partir desta declaração
do apóstolo, de que “a fé opera pelo amor”, que todos os
exercícios cristãos do coração, e as obras da vida, procedem
do amor.
Pois somos abundantemente ensinados, no Novo
Testamento, que toda santidade cristã começa com a fé em
Jesus Cristo. Toda obediência cristã, nas Escrituras, é
chamada de obediência por fé, como em Romanos 16:26,
onde se diz que o evangelho “se manifestou agora a todas as
nações para obediência da fé”. A obediência aqui descrita é
sem dúvida a mesma daquela referida no décimo-oitavo
versículo do capítulo anterior[8], onde Paulo fala de fazer “os
gentios obedientes por palavra e por obras”. Em Gálatas 2.20,
nos diz: “A vida que agora vivo na carne vivo-a na fé do Filho
de Deus, o qual me amou e se entregou a si mesmo por mim”.
Com frequência, nos é dito que os cristãos, até onde são
cristãos, “vivem pela fé”, o que é equivalente a dizer que
todos os exercícios graciosos e santos e as virtudes da vida
espiritual são pela fé. Mas como a fé opera essas coisas? Ora!
Nessa passagem de Gálatas é expressamente dito que ela
opera em tudo pelo amor. De onde se conclui a verdade da
doutrina, isto é, que tudo que é salvífico e distinto no
cristianismo de fato consiste, radicalmente, e está,
resumidamente, compreendido no amor.
APLICAÇÃO
Na aplicação desse assunto, podemos usá-lo como forma
de autoexame, instrução e exortação.
1. Em vista dele, examinemos a nós mesmos, e vejamos se
temos o espírito que nos é prescrito.
Do amor a Deus brota o amor ao homem, como diz o
apóstolo: “Todo aquele que crê que Jesus é o Cristo é nascido
de Deus; e todo aquele que ama ao que o gerou também ama
ao que dele é nascido” (1 João 5:1). Temos esse amor por
todos os que são filhos de Deus?
Esse amor também leva a todos que o possuem a regozijar-
se em Deus, a adorá-lo e magnificá-lo. Disso é feito o céu: “E
vi um como mar de vidro misturado com fogo e também os
que saíram vitoriosos da besta, e da sua imagem, e do seu
sinal, e do número do seu nome, que estavam junto ao mar de
vidro e tinham as harpas de Deus. E cantavam o cântico de
Moisés, servo de Deus, e o cântico do Cordeiro, dizendo:
Grandes e maravilhosas são as tuas obras, Senhor, Deus
Todo-poderoso! Justos e verdadeiros são os teus caminhos, ó
Rei dos santos! Quem te não temerá, ó Senhor, e não
magnificará o teu nome? Porque só tu és santo; por isso,
todas as nações virão e se prostrarão diante de ti, porque os
teus juízos são manifestos” (Ap 15.2-4).
Nós nos deliciamos desse modo em Deus, e nos
regozijamos em seu culto e em magnificar o seu santo nome?
Esse amor também leva os que o possuem a sinceramente
desejar e ardentemente se esforçar para fazer o bem ao
próximo: “Nisto conhecemos o amor: que Cristo deu a sua
vida por nós; e devemos dar nossa vida pelos irmãos” (1 Jo
3.16). É esse espírito, que habitou em Jesus Cristo, o mesmo
que reina em nossos corações e é visto em nossa vida diária?
O assunto também pode ser útil:
2. Como instrução.
Primeiro, essa doutrina nos mostra qual é o reto espírito
cristão.
Quando os discípulos, em seu caminho para Jerusalém,
desejaram que Cristo fizesse descer fogo do céu para
consumir os samaritanos que não o receberam, ele lhes disse
com repreensão: “Vós não sabeis de que espírito sois” (Lc
9.55). Devemos entender com isso não que eles não
conhecessem seus corações, mas que não conheciam e
sentiam verdadeiramente que tipo de disposição era
apropriada e adequada ao caráter e espírito, como discípulos
professos dele, e adequada a esta dispensação evangélica que
tinha vindo estabelecer e sob a qual agora viviam.
De fato, poderia ser, e sem dúvida era verdade, que em
muitos aspectos eles não conheciam o próprio coração. Mas a
que Cristo se refere aqui não é à falta de autoconhecimento
em geral, mas ao espírito particular que tinham manifestado
ao desejar que ele fizesse descer fogo do céu; um desejo que
mostrava não tanto o que eles não sabiam sobre como eram
os próprios corações ou disposições, mas que pareciam não
saber que tipo de espírito e índole eram apropriados à
dispensação cristã que dali por diante devia ser estabelecida, e
ao caráter cristão, do qual deviam ser exemplos. Eles
mostraram sua ignorância da verdadeira natureza do reino de
Cristo; que esse devia ser um reino de amor e paz, e não
sabiam que um espírito vingativo não era apropriado para
eles, como discípulos. Por essa razão, Cristo os repreende.
E, sem dúvida, há muitos hoje que devem ser
enormemente repreendidos por esse motivo, pois embora
estejam há tanto tempo na escola de Cristo, e debaixo dos
ensinos do evangelho, ainda permanecem em grande
equívoco quanto ao tipo de espírito que deve ser um espírito
verdadeiramente cristão, e que é apropriado aos seguidores de
Cristo e à dispensação sob a qual vivem.
Mas, se atendermos ao texto e à sua doutrina, eles nos
ensinarão que espírito é esse, ou seja, o que em sua própria
essência e aroma é o espírito do amor divino e cristão. Esse
pode, por razão de eminência, ser chamado o espírito cristão,
pois é mais insistido no Novo Testamento que qualquer outra
coisa que diga respeito quer a nosso dever ou ao nosso estado
moral. As palavras de Cristo, pelas quais ensinou aos homens
o dever deles, e deu conselhos e mandamentos a seus
discípulos e a outros, foram em grande parte gastas nos
preceitos do amor, e assim como as palavras que procediam
de sua boca eram tão cheias dessa doce e divina virtude, ele
também muito manifestamente as recomenda a nós.
Após sua ascensão, os apóstolos estavam cheios do
mesmo espírito em suas epístolas, abundantemente
recomendando o amor, a paz, a gentileza, a bondade,
profunda compaixão e benignidade, nos direcionando a essas
coisas para expressar nosso amor por Deus e Cristo, bem
como por nossos semelhantes, e, em especial, a todos que são
seus seguidores.
Os maiores motivos que Deus exibe no evangelho, acima
de qualquer coisa, são para nos induzir a este espírito, um
espírito de amor. A obra da redenção que o evangelho
apresenta, acima de tudo, fornece motivação para o amor;
pois essa obra foi a mais gloriosa e maravilhosa exibição de
amor jamais vista ou ouvida.
O amor é a coisa principal com que o evangelho se detém
ao falar de Deus e de Cristo. Ele traz à luz o amor eternamente
existente entre o Pai e o Filho, e declara como esse mesmo
amor foi manifestado em muitas coisas; como esse Cristo é o
Filho bem-amado de Deus, em quem ele se compraz; como
ele o amou de tal maneira que o levantou para o trono do
reino como Mediador, o apontou para ser o juiz do mundo, e
ordenou que toda a humanidade permanecesse diante dele em
julgamento.
No evangelho também é revelado o amor que Cristo tem
pelo Pai, e os frutos maravilhosos desse amor, em particular
por ter feito essas grandiosas coisas, e sofrido tão grandes
coisas em obediência à vontade do Pai, e pela honra de sua
justiça, lei e autoridade, como o grande governador moral. Lá
está revelado como o Pai e o Filho são um em amor, para que
fôssemos induzidos, em espírito semelhante, a ser um com
eles, e uns com os outros, conforme a oração de Cristo em
João 17:21-23: “A fim de que todos sejam um; e como és tu, ó
Pai, em mim e eu em ti, também sejam eles em nós; para que
o mundo creia que tu me enviaste. Eu lhes tenho transmitido a
glória que me tens dado, para que sejam um, como nós o
somos; eu neles, e tu em mim, a fim de que sejam
aperfeiçoados na unidade, para que o mundo conheça que tu
me enviaste e os amaste, como também amaste a mim”.
O evangelho também nos declara que o amor de Deus foi
desde a eternidade, e nos lembra que ele amou os que são
redimidos por Cristo antes da fundação do mundo; e que lhes
deu o Filho; e que o Filho os amou como sua propriedade.
Revela também o maravilhoso amor tanto do Pai quanto do
Filho aos santos, agora em glória – que Cristo não apenas os
amou enquanto estavam no mundo, mas que os amou até o
fim. E nos diz que todo esse amor nos foi concedido
enquanto ainda éramos errantes, réprobos, indignos, culpados
e até mesmo inimigos. Isso é amor, tal qual jamais foi
conhecido ou concebido em lugar algum: “Ninguém tem
maior amor do que este: de dar alguém a sua vida pelos seus
amigos” (João 15.13); “Dificilmente, alguém morreria por um
justo...Mas Deus prova o seu próprio amor para conosco pelo
fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda
pecadores...quando inimigos” (Romanos 5.7-10).
Deus e Cristo aparecem na revelação do evangelho como
vestidos com amor; como assentados, por assim dizer, em um
de misericórdia e graça, um assento de amor, rodeados com
os doces raios de amor. O amor é a luz e glória que circundam
o trono sobre o qual Deus está assentado. Parece que se tem
isso em mente na visão que o apóstolo João, este amável e
amado discípulo, teve de Deus na ilha de Patmos: “E o arco
celeste estava ao redor do trono e era semelhante à esmeralda”
(Ap 4.3); ou seja, em redor do trono sobre o qual Deus se
assentava. De modo que Deus apareceu a ele, enquanto se
assentava no trono, como se rodeado com um círculo de luz
muito doce e agradável, como as belas cores do arco-íris, e
como esmeralda, que é uma pedra preciosa de cores muito
agradáveis e belas – representando assim que a luz e glória
com as quais Deus aparece cercado no evangelho é
especialmente a glória de seu amor e graça pactual, pois o
arco-íris foi dado a Noé como um sinal de ambos.
Portanto, é evidente que esse espírito, este mesmo espírito
de amor, é o Espírito ao qual a revelação do evangelho
especialmente motiva e induz; e esse é especial e
eminentemente o espírito cristão – o correto espírito do
evangelho.
Segundo. Se assim for de fato, que tudo o que é salvífico e
distinto em um verdadeiro cristão está sumariamente
compreendido no amor, então os professantes do
cristianismo podem ser ensinados, quanto às suas
experiências, se são experiências cristãs ou não.
Se forem, então o amor é a soma e substância delas. Se as
pessoas tiverem a verdadeira luz do céu introduzida em suas
almas, não é uma luz sem calor. O conhecimento divino e o
amor divino andam juntos. Uma contemplação espiritual das
coisas divinas sempre incita o amor na alma, e arrasta o
coração, em amor, a cada objeto próprio.
Verdadeiras descobertas do caráter divino nos dispõem a
amar a Deus como o bem supremo; elas unem o coração em
amor a Cristo; inclinam a alma para transbordar em amor ao
povo de Deus e a toda a humanidade. Quando as pessoas
fazem uma verdadeira descoberta da excelência e suficiência
de Cristo, esse é o efeito. Quando experimentam uma crença
certa da verdade do evangelho, essa crença é acompanhada
pelo amor. Elas amam aquele que creem ser o Cristo, o Filho
do Deus vivo. Quando a verdade das gloriosas doutrinas e
promessas do evangelho é vista, essas doutrinas e promessas
são como muitas cordas que agarram o coração e o induzem
ao amor a Deus e a Cristo. Quando as pessoas experimentam
uma verdadeira confiança e segurança em Cristo, confiam
nele com amor, e assim o fazem com deleite e doce
aquiescência de alma. A esposa sentou-se sob a sombra de
Cristo com grande deleite, e descansou docemente sob sua
proteção, porque o amava (Ct 2:2). Quando as pessoas
experimentam verdadeiro conforto e alegria espiritual, sua
alegria é a alegria da fé e do amor. Não se regozijam em si
mesmas, mas é Deus que é sua excedente alegria.
Terceiro, essa doutrina mostra a amabilidade de um
espírito cristão. Um espírito de amor é um espírito amável. É
o espírito de Jesus Cristo; é o espírito do céu.
Quarto, essa doutrina mostra a delícia da vida cristã.
Uma vida de amor é uma vida agradável. Tanto a razão quanto
as Escrituras nos ensinam que “feliz é o homem que acha
sabedoria”; e que “seus caminhos são caminhos de delícias, e
todas as suas veredas, paz” (Pv 3:13,17).
Quinto, daí podemos aprender a razão pela qual a
contenda tende tanto para a ruína da religião. As Escrituras
nos dizem que ela tem essa tendência: “Porque, onde há
inveja e espírito faccioso, aí há perturbação e toda obra
perversa” (Tg 3.16). E isso também descobrimos por
experiência. Quando a contenda chega a um lugar, parece
impedir todo bem. E se, antes, a religião tiver florescido, logo
parece esfriar e enfraquecer. E, à luz de nossa doutrina,
podemos ver claramente a razão disso tudo. É porque a
contenda é diretamente oposta àquilo que é o próprio sumário
de tudo o que é essencial e distinto no verdadeiro
cristianismo, isto é, um espírito de amor e paz. Não é de
maravilhar-se, portanto, que o cristianismo não possa florescer
em tempo de brigas e contendas entre seus professantes. Não
é de admirar que a religião e a contenda não possam conviver.
Sexto, daí, então, que vigilância e guarda devem os
cristãos manter contra a inveja e malícia, e todo tipo de
amargura de espírito em relação ao próximo.
Pois essas coisas são o inverso da verdadeira essência do
cristianismo. E convém aos cristãos que não querem, por sua
prática, diretamente contradizer sua profissão [de fé], que
tenham cuidado de si mesmos nessa matéria. Devem suprimir
os primeiros princípios de rancor, amargura e inveja; vigiar
estritamente contra todas as exibições de semelhante espírito;
combater e lutar ao máximo contra toda índole que a isso
conduza; e evitar, tanto quanto possível, todas as tentações
que a ela conduzam.
Um cristão deve, a todo tempo, manter uma forte guarda
contra tudo que tenda a arruinar, corromper ou minar um
espírito de amor. Aquilo que impede o amor aos homens
impedirá o exercício de amor a Deus; pois, como antes foi
observado, o princípio de um amor verdadeiramente cristão é
um. Se o amor for o sumário do cristianismo, certamente
aquelas coisas que o arruínam são sobremodo impróprias aos
cristãos. Um cristão invejoso e malicioso, um cristão de
coração frio e endurecido é o maior absurdo e contradição. É
como se alguém pudesse falar de trevas brilhantes ou de
verdade falsa!
Sétimo, daí não é de se admirar que o cristianismo tão
estranhamente requeira que amemos nossos inimigos, até
mesmo os piores deles (como em Mateus 5:44), pois o amor é
a própria índole e espírito de um cristão: é a suma do
cristianismo. E se considerarmos os incentivos a amar nossos
inimigos, que são colocados diante de nós naquilo que o
evangelho revela sobre o amor de Deus e de Cristo pelos seus
inimigos, não podemos nos surpreender que sejamos
requeridos a amar nossos inimigos, bendizê-los, fazer-lhes o
bem e orar por eles: “Para que sejais filhos do Pai que está nos
céus; porque faz que o seu sol se levante sobre maus e bons e
a chuva desça sobre justos e injustos” (Mt 5.45).
3. Nosso assunto nos exorta a buscar um espírito de
amor; a nele crescer continuamente; e a superabundar em
obras de amor. Se o amor é algo tão grande no cristianismo,
tão essencial e distinto, sim, a própria suma de toda virtude
cristã, então, certamente, aqueles que se professam cristãos
devem viver e abundar nas obras de amor, pois nenhuma obra
é tão apropriada como essa. Se você se chama cristão, onde
estão suas obras de amor? Você tem abundado e abunda
nelas? Se esse princípio divino e santo está em você, reinando
sobre você, não aparecerá em sua vida em obras de amor?
Considere que obras de amor você tem feito. Você ama a
Deus? O que tem feito por ele, para a sua glória, para o avanço
de seu Reino no mundo? O quanto tem negado a si mesmo
para promover o interesse do Redentor entre os homens?
Você ama aos seus semelhantes? O que tem feito por eles?
Considere suas faltas anteriores nesses assuntos, e como é
apropriado a você, como cristão, daqui por diante, abundar
mais nas obras de amor. Não use a desculpa de que não tem
oportunidades de fazer alguma coisa para a glória de Deus,
pelo interesse do Reino do Redentor, e pelo benefício
espiritual de seu próximo.
Se seu coração estiver cheio de amor, encontrará abertura;
você achará ou criará modos suficientes para expressar seu
amor em atos. Quando uma fonte abunda com água,
espalhará torrentes. Considere que, assim como um princípio
de amor é o maior princípio no coração de um cristão
verdadeiro, também a obra do amor é o assunto principal da
vida cristã.
Que todos os cristãos considerem essas coisas; e que o
Senhor lhes dê entendimento em todas as coisas, e faça-os
sensíveis de qual espírito lhes é adequado, e os disponha a
essa vida excelente, amável e benevolente, que é
correspondente a tal espírito, para que vocês possam amar
não apenas “em palavra e língua, mas em obras e na verdade”.
CAPÍTULO 2

A CARIDADE É MAIS EXCELENTE QUE OS DONS EXTRAORDINÁRIOS DO ESPÍRITO

“Ainda que eu falasse línguas, as dos homens e as dos


anjos, se eu não tivesse a caridade, seria como um bronze
que soa ou como um címbalo que tine. Ainda que eu
tivesse o dom da profecia, o conhecimento de todos os
mistérios e de toda a ciência, ainda que tivesse toda a fé, a
ponto de transportar montanhas, se não tivesse a caridade,
eu nada seria.”
- 1 Coríntios 13:1,2

T endo no último sermão mostrado que toda a


virtude nos santos que os distingue e salva
pode ser resumida no amor cristão, considero
agora as coisas com as quais ele é comparado no texto, e a
quem é dada a preferência.
As coisas comparadas no texto são de dois tipos: por um
lado, os dons extraordinários e miraculosos do Espírito, tais
como o dom de línguas, profecias, etc., que eram frequentes
naquela época, e, em particular, na igreja de Corinto. Por
outro lado, o efeito das influências ordinárias do mesmo
Espírito nos cristãos verdadeiros, isto é, a caridade ou amor
divino.
Aquele foi um tempo de milagres. Não acontecia então
como outrora entre os judeus, quando dois, ou três, ou, no
máximo, poucos em toda a nação tinham o dom de profecia.
Parecia, ao contrário, que o desejo de Moisés, registrado em
Números 11:29, houvesse em grande medida se cumprido:
“Tomara que todo o povo do SENHOR fosse profeta”.
Não apenas certas pessoas de grande eminência eram
agraciadas com esses dons, mas eram comuns a tipos
diversos, velhos e jovens, homens e mulheres, de acordo com
a profecia de Joel que, pregando acerca desses dias, previu de
antemão este grande evento: “Depois disto, derramarei o meu
Espírito sobre toda carne. Vossos filhos e vossas filhas
profetizarão, vossos anciãos terão sonhos, vossos jovens terão
visões”.
A igreja de Corinto, em especial, era muito reconhecida por
esses dons. Lá havia toda sorte de dons miraculosos, como
transparece nesta epístola, que eram concedidos àquela igreja;
e o número dos que os desfrutavam não era pequeno.
“A um”, diz o apóstolo, “o Espírito dá a mensagem de
sabedoria, a outro, a palavra de ciência segundo o mesmo
Espírito; a outro o mesmo Espírito dá a fé; a outro ainda o
único e mesmo Espírito concede o dom das curas; a outro, o
poder de fazer milagres; a outro, a profecia; a outro, o
discernimento dos espíritos; a outro, o dom de falar em
línguas, a outro ainda, o dom de as interpretar. Mas é o único
e mesmo Espírito que isso tudo realiza, distribuindo a cada
um os seus dons, conforme lhe apraz”.
Assim, alguns tinham um dom, outros, outro. “Mas,” diz o
apóstolo, “aspirai aos dons mais altos. Aliás, passo a indicar-
vos um caminho que ultrapassa a todos”. Ou seja, algo mais
excelente que todos esses dons considerados juntos, sim, algo
de tamanha importância, sem o qual todos eles se reduzem a
nada. Pois: “Ainda que eu falasse línguas, as dos homens,”
como ocorreu no dia de Pentecostes, e, em adição, “as dos
anjos”; “se eu não tivesse a caridade, seria” algo vazio e inútil,
“como um bronze que soa ou como um címbalo que tine.
Ainda que eu tivesse” não apenas isso, mas todos os dons
extraordinários do Espírito, e pudesse não apenas falar em
línguas, mas “tivesse o dom da profecia, o conhecimento de
todos os mistérios e de toda a ciência”, para perscrutar todas
as coisas profundas de Deus por inspiração imediata; “ainda
que tivesse toda a fé” para realizar todo tipo de milagres, sim,
mesmo “a ponto de transportar montanhas, se não tivesse a
caridade, eu nada seria”.
A caridade, então, que é o fruto da influência santificadora
ordinária do Espírito Santo, é preferida como mais excelente
que quaisquer, e até mesmo, todos os dons extraordinários do
Espírito. Esse é o mesmo amor cristão que, como foi
demonstrado, é a suma de toda graça salvífica. Na verdade, é
tão mais preferida que, todos eles sem ela, nada são e não
possuem valor algum.
Portanto, a doutrina ensinada é:
A INFLUÊNCIA ORDINÁRIA DO ESPÍRITO DE DEUS,
OPERANDO A GRAÇA DA CARIDADE NO CORAÇAO, É
MAIS EXCELENTE BENÇÃO QUE QUAISQUER DOS
DONS EXTRAORDINÁRIOS DO ESPÍRITO.
Aqui me esforçarei em mostrar, primeiro, o que se quer
dizer por dons ordinários e extraordinários do Espírito;
segundo, que esses dons são, de fato, grandes privilégios; e,
ainda, terceiro, que a influência ordinária do Espírito,
operando a graça da caridade, ou amor, no coração é uma
benção mais excelente.
I. Explicarei brevemente o que se quer dizer por dons
ordinários e extraordinários do Espírito, pois os teólogos
distinguem os dons e operações do Espírito de Deus em
comuns e salvíficos e em ordinários e extraordinários.
1. Os dons e operações do Espírito de Deus são
distinguidos entre os que são comuns e os que são salvíficos.
Por dons comuns do Espírito denominam-se aqueles que
são comuns tanto aos crentes quanto aos ímpios. Há certas
maneiras em que o Espírito influencia a mente dos homens
naturais da mesma forma que a dos justos. Assim, há
convicções comuns de pecado, ou seja, convicções que os
ímpios têm tanto quanto os justos. Também há iluminações
ou esclarecimentos, isto é, de tipos que são comuns a ambos.
Também há afeições religiosas, gratidão comum, aflição
comum, e coisas semelhantes.
Mas há outros dons do Espírito que são peculiares aos
santos, tais como a fé e o amor salvíficos, e todos as outras
graças salvíficas do Espírito.
2. Ordinários e extraordinários.
Os dons extraordinários do Espírito, tais como os dons de
línguas, profecias, milagres, etc., são chamados
extraordinários porque são dos tipos que não são concedidos
no curso ordinário da providência de Deus. Não são
concedidos na maneira ordinária de Deus se relacionar
providencialmente com seus filhos, mas apenas em ocasiões
especiais, como foram concedidos aos profetas e apóstolos
para capacitá-los a revelar o propósito e vontade de Deus
antes que o cânon da Escritura estivesse completo, e também
na igreja primitiva, a fim de fundá-la e estabelecê-la no
mundo. Mas desde que o cânon está completo, e a igreja
cristã plenamente fundada e estabelecida, esses dons
extraordinários cessaram.
Mas os dons ordinários do Espírito são dos tipos que
continuam na Igreja de Deus por todas as eras; esses dons são
obtidos na convicção e conversão, e também pertencem à
edificação dos santos na santidade e conforto.
Pode-se observar, então, que a distinção entre os dons do
Espírito em ordinários e extraordinários é muito diferente da
outra distinção em comuns e salvíficos. Pois alguns dos dons
ordinários, como a fé, esperança, caridade, não são dons
comuns. São do tipo que Deus ordinariamente concede a sua
Igreja em todas as eras, mas não são comuns aos justos e aos
ímpios: são peculiares aos justos.
Já os dons extraordinários são comuns. O dom de línguas,
milagres, profecias, etc., embora não sejam ordinariamente
dispensados à igreja cristã, mas apenas em circunstâncias
extraordinárias, não são, contudo, peculiares aos santos, pois
muitos ímpios possuíram esses dons: “Muitos me dirão
naquele dia: Senhor, Senhor, não foi em teu nome que
profetizamos e em teu nome que expulsamos demônios e em
teu nome que fizemos muitos milagres? Então eu lhes
declararei: Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, vós que
praticais a iniquidade” (Mt 7:22,23).
Tendo explicado esses termos, prossigo agora para mostrar:
II. Que os dons extraordinários do Espírito de Deus, de
fato, são grandes privilégios.
Quando Deus agracia alguém com um espírito de profecia;
favorece-o com inspiração imediata; ou dá-lhe o poder de
realizar milagres, curar doentes, expelir demônios, e coisas
semelhantes, grande é o privilégio. Sim, esse é um dos
maiores tipos de privilégios que Deus pode conceder aos
homens, ao lado da graça salvífica.
É um grande privilégio viver desfrutando dos meios
exteriores de graça e pertencer à igreja visível; mas ser um
profeta e operador de milagres na Igreja é privilégio ainda
maior. É grande privilégio ouvir a Palavra que foi dita pelos
profetas e pelos homens inspirados, mas é privilégio maior
ainda ser um profeta, pregar a Palavra, ser inspirado por Deus
para fazer conhecidos a outros seu propósito e vontade.
Foi um grande privilégio que Deus concedeu a Moisés,
quando o chamou para ser profeta, e o empregou como
instrumento para revelar a Lei aos filhos de Israel, e entregar à
igreja grande parte da Palavra escrita de Deus (palavra essa
que foi a primeira revelação entregue) e quando o usou como
instrumento para a realização de tantas maravilhas no Egito,
às margens do Mar Vermelho, e no deserto.
Grande foi o privilégio concedido por Deus a Davi, ao
inspirá-lo e torná-lo escritor de porção tão grandiosa e
excelente de sua Palavra, para o uso da Igreja em todos os
tempos.
Grande foi o privilégio que Deus concedeu àqueles dois
profetas, Elias e Eliseu, ao capacitá-los para operar obras tão
miraculosas e maravilhosas.
E foi muito grande o privilégio concedido a Daniel, quando
Deus lhe deu tantos dos dons extraordinários do Espírito, em
particular o entendimento das visões de Deus. Isso lhe
assegurou grande honra entre os pagãos, e até mesmo na corte
do rei da Babilônia.
Nabucodonosor, aquele grande e poderoso monarca,
admirou tanto Daniel por esses dons, que certa vez quase o
adorou como a um deus. Prostrou sua face diante dele, e
ordenou que uma oblação e sacrifício de aroma suave lhe
fossem oferecidos (Dn 2:46). Daniel foi levado a ter maior
honra que todos os sábios, magos, astrólogos e adivinhos da
Babilônia, em consequência desses dons extraordinários que
Deus lhe concedera. Ouçam como a rainha fala acerca dele
para Belsazar: “Há no teu reino um homem que tem o espírito
dos deuses santos; nos dias de teu pai, se achou nele luz, e
inteligência, e sabedoria como a sabedoria dos deuses; teu pai,
o rei Nabucodonosor, sim, teu pai, ó rei, o constituiu chefe
dos magos, dos encantadores, dos caldeus e dos feiticeiros,
porquanto espírito excelente, conhecimento e inteligência,
interpretação de sonhos, declaração de enigmas e solução de
casos difíceis se acharam neste Daniel, a quem o rei pusera o
nome de Beltessazar; chame-se, pois, a Daniel, e ele dará a
interpretação” (Dn 5.11,12).
Também foi esse privilégio que deu a Daniel grande
proeminência na corte persa: “Pareceu bem a Dario constituir
sobre o reino a cento e vinte sátrapas, que estivessem por todo
o reino; e sobre eles, três presidentes, dos quais Daniel era
um, aos quais estes sátrapas dessem conta, para que o rei não
sofresse dano. Então, o mesmo Daniel se distinguiu destes
presidentes e sátrapas, porque nele havia um espírito
excelente; e o rei pensava em estabelecê-lo sobre todo o
reino” (Dn 6:1-3). Por esse espírito excelente pretendia-se
dizer, sem dúvida, entre outras coisas, o espírito de profecia e
a inspiração divina, pelos quais ele havia sido tão honrado
pelos príncipes da Babilônia.
Foi grande o privilégio concedido por Cristo aos apóstolos,
ao enchê-los com os dons extraordinários do Espírito Santo,
inspirando-os a ensinar a todas as nações, e ao torná-los, por
assim dizer, íntimos dele, e ser as doze pedras preciosas que
são consideradas os doze fundamentos da Igreja: “A muralha
da cidade tinha doze fundamentos, e estavam sobre estes os
doze nomes dos doze apóstolos do Cordeiro” (Ap 21:14);
“Edificados sobre o fundamento dos apóstolos e profetas,
sendo ele mesmo, Cristo Jesus, a pedra angular” (Ef 2:20).
E como foi altamente favorecido o apóstolo João, quando
estava “em Espírito, no Dia do Senhor” e teve visões tão
extraordinárias, representando os grandes eventos da
providência de Deus em relação à igreja, em todas as suas
eras, até o fim do mundo.
Esses dons extraordinários do Espírito são mencionados
nas Escrituras como grandes privilégios. Assim foi o privilégio
que Deus concedeu a Moisés ao falar-lhe por meio de
revelação miraculosa extraordinária, por assim dizer, “face a
face”. E aquele derramamento do Espírito, com seus dons
extraordinários, no dia de Pentecostes, foi previsto e
anunciado pelo profeta Joel como um grande privilégio, nas
supracitadas palavras de Joel 2:28,29. E Cristo fala dos dons
de milagres e de línguas como grandes privilégios que seriam
concedidos àqueles que cressem nele (Mc 16. 17,18).
Esses dons extraordinários do Espírito têm sido vistos
como uma grande honra. Moisés e Arão foram invejados no
acampamento por causa da honra peculiar que Deus lhes
concedera (Sl 106:16). E assim Josué prontamente invejou
Eldade e Meldade porque profetizaram no arraial (Nm 11:27).
E quando os próprios anjos foram enviados a fazer o ofício
dos profetas, revelando coisas futuras, isso os colocou em
muito honroso ponto de luz.
Até mesmo o apóstolo João, tomado por grande surpresa,
foi, de imediato, se prostrar e adorar aquele anjo que foi
enviado por Cristo para lhe revelar os futuros eventos da
igreja. Mas o anjo o proíbe, reconhecendo que o privilégio do
espírito de profecia que estava sobre ele não procedia de si,
mas que o havia recebido de Jesus Cristo (Ap 19:10 e 22:8,9).
Os pagãos da cidade de Listra ficaram tão impressionados
com o poder que Paulo e Barnabé tinham para realizar
milagres que estavam prestes a lhes oferecer sacrifícios como
a deuses (At 14:11-13). E Simão, o mago, teve grande desejo
pelo dom que os apóstolos possuíam de conferir o Espírito
Santo pela imposição das mãos, e ofereceu-lhes dinheiro por
ele.
Esses dons extraordinários do Espírito são grandes
privilégios, pois há neles grande conformidade com Cristo no
seu ofício profético. E também se evidencia a grandeza do
privilégio pelo fato de que embora, às vezes, tenham sido
concedidos a homens naturais, isso se deu, contudo, muito
raramente. Comumente os agraciados com eles foram os
santos, os mais eminentes deles.
Assim foi no dia de Pentecostes, bem como nas eras mais
antigas: “Homens santos falaram da parte de Deus, movidos
pelo Espírito Santo” (2 Pe 1.21). Esses dons foram
comumente concedidos como sinais do extraordinário favor e
amor de Deus, como no caso de Daniel. Ele foi um homem
muito amado, portanto, foi admitido com esse grande
privilégio de receber essas revelações (Dn 9. 23; 10.11-19). O
apóstolo João, na condição de discípulo a quem Jesus amava,
foi escolhido acima dos outros apóstolos para ser o homem a
quem aqueles grandes eventos foram revelados, cujos
registros estão no livro de Apocalipse.
Prossigo agora para mostrar que,
III. Embora esses sejam grandes privilégios, porém, a
influência ordinária do Espírito de Deus, operando a graça
da caridade no coração, é, de longe, privilégio mais
excelente que quaisquer deles.
Essa é uma benção maior que o espírito de profecia, ou
dom de línguas, ou de milagres, mesmo que seja a remoção
de montanhas; uma benção maior que todos os dons
miraculosos que foram concedidos a Moisés, Elias, Davi e aos
doze apóstolos. Isso será evidente, se considerarmos:
1. Esta benção da graça salvadora de Deus é uma
qualidade inerente na natureza daquele que lhe é objeto.
Esse dom do Espírito de Deus, operando uma disposição
verdadeiramente cristã na alma, e incitando exercícios
graciosos nela, confere uma bênção que tem seu centro no
coração, uma bênção que torna o coração, isto é, a natureza
do homem, excelente. De fato, na realidade, a própria
excelência da natureza consiste nisso.
Porém, isso não ocorre com relação àqueles dons
extraordinários do Espírito. Eles são coisas excelentes, mas
não são propriamente a excelência da natureza de uma
pessoa, pois não são inerentes nela. Por exemplo, se uma
pessoa for agraciada com o dom de realizar milagres, esse
poder não é inerente em sua natureza. Não é propriamente
uma qualidade do coração ou da natureza dessa pessoa, como
são a verdadeira graça e a santidade.
Embora comumente os que possuem estes dons
extraordinários de profecia, línguas e realização de milagres
tenham sido pessoas santas, contudo, sua santidade não
consistia em possuírem esses dons. Eles não são algo
propriamente inerente no homem. São coisas excepcionais.
São excelentes, mas não excelências na natureza do sujeito.
São como uma bela vestimenta, que não altera a natureza de
quem a veste. São como joias preciosas, com as quais o corpo
pode ser adornado; mas a graça verdadeira é aquilo pelo qual
a própria alma se torna à semelhança de uma joia preciosa.
2. O Espírito de Deus comunica a si mesmo muito mais
ao conceder a graça salvadora do que ao conceder esses
dons extraordinários.
O Espírito Santo, é verdade, produz efeitos, nas pessoas e
pelas pessoas, com a concessão dos dons extraordinários do
Espírito. Porém, não a ponto de propriamente comunicar a
elas a si mesmo, em sua própria natureza.
Uma pessoa pode ter um estímulo extraordinário na sua
mente pelo Espírito de Deus, em que algum evento futuro
pode lhe ser revelado, ou pode lhe ser dada uma visão
extraordinária, representando algum evento futuro. Nisso
tudo, porém, é possível que o Espírito não se comunique de
forma alguma, em sua santa natureza. O Espírito de Deus
pode produzir efeito em coisas em que não comunica a si
mesmo a nós. Assim Ele se movia sobre a face das águas, mas
não a ponto de comunicar-se à agua.
Mas quando o Espírito, pela sua influência ordinária,
concede a graça salvadora, nisso comunica a si mesmo à alma,
em sua própria natureza santa – aquela sua natureza, por cuja
causa é chamado com tanta frequência na Escritura de
Espírito Santo. Por produzir esse efeito, o Espírito se torna
princípio vital interior na alma, e o sujeito se torna espiritual,
sendo denominado assim por causa do Espírito de Deus que
nele habita e de cuja natureza é participante. Na verdade, a
graça é, por assim dizer, a natureza santa do Espírito
comunicada à alma.
Mas os dons extraordinários do Espírito, tais como o
conhecimento das coisas futuras, ou o poder de realizar
milagres, não implicam nessa natureza santa. É certo que
Deus, ao conceder os dons extraordinários do Espírito,
comumente costuma conceder as influências santificadoras do
Espírito com eles; mas um não implica o outro. E se Deus der
apenas os dons extraordinários do Espírito, tais como o dom
de profecias, de milagres etc., estes sozinhos jamais tornarão
seus receptores participantes do Espírito, a ponto de serem
espirituais em si mesmo, isto é, em sua própria natureza.
3. Essa graça ou santidade, que é o efeito da influência
ordinária do Espírito de Deus nos corações dos santos, é em
que consiste a imagem espiritual de Deus; e não nesses dons
extraordinários do Espírito.
A imagem espiritual de Deus não consiste em ter poder
para realizar milagres, ou prever eventos futuros, mas em ser
santo, como Deus é santo; em ter no coração uma fonte
divina e santa, nos influenciando a ter vidas santas e celestiais.
De fato, há uma semelhança com Cristo quando se tem poder
para realizar milagres, pois Cristo teve esse poder e realizou
uma multidão de milagres: “Aquele que crê em mim também
fará as obras que eu faço e as fará maiores do que estas” (João
14.12). Mas a imagem moral e semelhança de Cristo
consistem muito mais em ter em nós mesmos a mesma mente
de Cristo; em ter o mesmo Espírito que ele teve; em ser
manso e humilde de coração; em ter um espírito de amor
cristão, e andar como Cristo andou. Isso torna uma pessoa
muito mais semelhante a Cristo do que se pudesse realizar
sempre muitos milagres.
4. Essa graça, ao contrário dos dons extraordinários do
Espírito de Deus, é um privilégio que Deus concede apenas
a seus eleitos e filhos.
Foi observado antes que, embora Deus muito comumente
escolhesse santos, e santos eminentes, para conceder os dons
extraordinários do Espírito, contudo, nem sempre foi assim,
mas esses dons são, às vezes, concedidos a outros. Eles têm
sido comuns a justos e ímpios.
Balaão é estigmatizado na Escritura como ímpio (2 Pe 2.15;
Jd 11; Ap 2.14), contudo, possuiu, por um tempo, os dons
extraordinários do Espírito de Deus. Saul era um ímpio, mas
lemos que, ocasionalmente, esteve entre os profetas. Judas foi
um dos que Jesus enviou para pregar e realizar milagres; ele é
um dos doze discípulos de quem é dito em Mateus 10.1:
“Tendo chamado os seus doze discípulos, deu-lhes Jesus
autoridade sobre espíritos imundos para os expelir e para
curar toda sorte de doenças e enfermidades”. Nos próximos
versículos, vemos quem são eles; seus nomes todos são
apresentados, e “Judas Iscariotes, que foi quem o traiu”,
estava entre os demais. No versículo 8, Cristo lhes diz: “Curai
enfermos, ressuscitai mortos, purificai leprosos, expeli
demônios”.
A graça de Deus no coração é um dom do Espírito Santo
peculiar aos santos; é uma benção que Deus reserva apenas
àqueles que são objetos de seu amor especial e peculiar. Mas
os dons extraordinários do Espírito são do tipo que Deus, às
vezes, concede àqueles a quem não ama, mas odeia, o que é
sinal seguro de que aquela graça é infinitamente mais preciosa
do que estes dons. Esse é o dom mais precioso, que é grande
evidência do amor de Deus. Mas os dons extraordinários do
Espírito não foram, nos dias da inspiração e dos milagres,
sinais certos do amor de Deus. Os profetas não costumavam
se deixar persuadir do favor e amor de Deus pelo fato de
serem profetas e terem revelações, mas por serem santos
sinceros. O mesmo acontecia com Davi (veja Sl 15.1-5; 17.1-
3; 119); e, de fato, todo o livro dos Salmos presta testemunho
disso. Também o apóstolo Paulo, embora fosse tão
grandemente privilegiado com os dons extraordinários do
Espírito, estava, não obstante, tão longe de torná-los em
evidência de seu bom estado, que declara expressamente que
sem o amor eles nada são.
E assim podemos argumentar:
5. A partir do fruto e consequência dessas duas coisas
diferentes, que uma é infinitamente mais excelente que a
outra.
A vida eterna está, pelas promessas do evangelho,
constantemente conectada com uma, e jamais com a outra. A
salvação é prometida aos que têm a graça do Espírito, mas
não àqueles que meramente têm os dons extraordinários.
Muitos podem ter tido esses últimos, e, ainda assim, foram
para o inferno. Judas Iscariotes os possuiu, e foi para o
inferno. E Cristo nos diz que muitos que os tiveram irão, no
último dia, ser ordenados a se apartar, por serem obreiros da
iniquidade (Mt 7. 22,23). Assim, quando prometeu aos
discípulos esses dons extraordinários, pediu-lhes que se
regozijassem não porque os demônios lhes eram sujeitos, mas
porque seus nomes estavam escritos nos céus; dando a
entender com isso que um poderia existir sem o outro (Lucas
10. 17-20, etc.).
Isso mostra que um é uma benção infinitamente maior que
o outro, uma vez que carrega consigo a vida eterna. Pois a
vida eterna é algo de infinita dignidade e valor, e aquilo que
está infalivelmente conectado a ela deve ser uma bênção
excelente, e infinitamente mais digna que qualquer privilégio
que alguém possa possuir, e no final das contas ir para o
inferno.
6. A felicidade em si consiste muito mais imediata e
essencialmente na graça cristã, moldada pela influência
ordinária do Espírito, do que nesses dons extraordinários.
A mais alta felicidade humana consiste na santidade, pois é
por ela que a criatura racional é unida a Deus, a fonte de todo
bem. A felicidade consiste de tal maneira em conhecer, amar e
servir a Deus, e ter a índole santa e divina da alma, e os
vívidos exercícios dela, que essas coisas farão um homem
feliz sem necessidade de nada mais. Entretanto, nenhuma
outra alegria ou privilégio de qualquer tipo fará um homem
feliz sem isso.
7. Essa índole divina da alma, que é o fruto das
influências santificadoras ordinárias do Espírito, é o
objetivo de todos os dons extraordinários do Espírito Santo.
Deus deu o dom de profecias, milagres, línguas etc., para
este fim: promover a propagação e estabelecimento do
evangelho no mundo. E o fim do evangelho é converter os
homens das trevas para a luz, e do poder do pecado e de
Satanás para servir ao Deus vivo, isto é, santificar os homens.
O propósito de todos os dons extraordinários é a
conversão dos pecadores e a edificação dos santos nessa
santidade que é fruto das influências ordinárias do Espírito
Santo. Por isso, o Espírito Santo foi derramado sobre os
apóstolos após a ascensão de Cristo, e foram capacitados a
falar em línguas, realizar milagres etc. Por isso, a muitos
outros, naquele período, foram concedidos esses dons
extraordinários do Espírito Santo: “E ele mesmo concedeu
uns para apóstolos, outros para profetas, outros para
evangelistas e outros para pastores e mestres” (Ef 4.11). Aqui,
os dons extraordinários do Espírito são mencionados e o fim
deles é expresso nas próximas palavras: “Com vistas ao
aperfeiçoamento dos santos para o desempenho do seu
serviço, para a edificação do corpo de Cristo” (Ef 4.12). E que
tipo de edificação do corpo de Cristo é essa, aprendemos no
versículo 16: “[A que] efetua o seu próprio aumento para a
edificação de si mesmo em amor”. No amor, ou seja, na
caridade, o mesmo que é dito no nosso texto, pois a palavra
no original é a mesma, e o sentido também. E assim também
ocorre em 1 Coríntios 8.1: “O amor edifica”.
Mas o fim é sempre mais excelente que os meios; essa é
uma máxima universalmente aceita. Pois os meios não têm
valor em si de outra forma a não ser quando estão
subordinados ao fim. O fim, portanto, deve ser considerado
como superior em excelência aos meios.
8. Os dons extraordinários do Espírito estão tão longe de
gerar benefícios sem aquela graça que é fruto das
influências ordinárias do Espírito; mas irão, ao contrário,
agravar a condenação daqueles que os possuem.
Sem dúvida, a condenação de Judas foi muito agravada por
ter sido ele um dos que tiveram esses privilégios. E alguns que
tiveram esses dons extraordinários cometeram o pecado
contra o Espírito Santo, e seus privilégios foram a coisa
principal que tornou seu pecado em pecado imperdoável. Isso
transparece em Hebreus 6.4-6: “É impossível, pois, que
aqueles que uma vez foram iluminados, e provaram o dom
celestial, e se tornaram participantes do Espírito Santo, e
provaram a boa palavra de Deus e os poderes do mundo
vindouro, e caíram, sim, é impossível outra vez renová-los
para arrependimento, visto que, de novo, estão crucificando
para si mesmos o Filho de Deus e expondo-o à ignomínia”.
Os que caíram eram pessoas que apostataram do
cristianismo, após terem feito uma profissão publica dele e
receberem os dons extraordinários do Espírito Santo, como a
maior parte dos cristãos daquela época recebia. Foram
instruídos no cristianismo e, através das influências comuns
do Espírito, receberam a Palavra com alegria, como os de
Mateus 13.20, e, juntamente, receberam os dons
extraordinários do Espírito. “Se fizeram participantes do
Espírito Santo”, falaram em línguas, profetizaram no nome de
Cristo e em seu nome expeliram demônios.
Ainda assim, depois de tudo isso, abertamente
renunciaram ao cristianismo, juntaram-se aos que chamavam
Cristo de impostor, como fizeram seus assassinos, e assim “de
novo crucificaram o Filho de Deus e o expuseram à
ignomínia”. É desses que o apóstolo fala: É impossível que
sejam outra vez renovados para arrependimento”.
Esses apóstatas, ao renunciar ao cristianismo, atribuíram os
poderes miraculosos que eles mesmos possuíram ao diabo.
Assim, sua situação tornou-se desesperadora, e sua
condenação deve ser grandemente agravada. Disso se
evidencia que a graça salvífica é infinitamente mais digna e
valiosa que os dons extraordinários do Espírito.
E, por fim,
9. Outra coisa que mostra a preferência dessa graça
salvífica, que é fruto das influências ordinárias do Espírito
Santo, sobre os dons extraordinários é que um falhará e a
outra não.
O apóstolo faz uso desse argumento, no contexto, para
mostrar que o amor divino é preferível aos dons
extraordinários do Espírito: “A caridade nunca falha; mas,
havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas,
cessarão; havendo ciência, desaparecerá” (v. 8). O amor divino
permanecerá por toda a eternidade, mas os dons
extraordinários do Espírito falharão no tempo. Eles são
apenas meios, e quando o fim for obtido, cessarão. Mas o
amor divino permanecerá para sempre.
APLICAÇÃO
Na aplicação desse assunto, destaco:
1. Se a graça salvífica é uma benção maior do que os
dons extraordinários do Espírito, sem dúvida, portanto,
podemos argumentar que ela é o maior privilégio e bênção
que Deus concede a qualquer pessoa neste mundo.
Pois esses dons extraordinários do Espírito Santo, tais
como o dom de línguas, milagres, profecias etc., são os mais
altos privilégios que Deus jamais concede aos homens
naturais, e privilégios que, com exceção da era apostólica,
raramente lhes foram concedidos.
Se o que foi dito for bem considerado, parecerá evidente,
além de toda dúvida, que a graça salvífica de Deus no
coração, operando uma índole santa e divina na alma, é a
maior bênção que um homem pode receber neste mundo. É
maior que quaisquer dons naturais, maior até do que as
maiores habilidades naturais, maior do que quaisquer dotes
mentais adquiridos, maior do que o conhecimento mais
profundo, maior do que qualquer riqueza e honra temporais,
maior do que ser um rei ou imperador, maior do que ser tirado
do curral, como foi Davi, e ser entronizado sobre Israel. Todas
as riquezas, honrarias e magnificências de Salomão, em toda a
sua glória, quando comparadas a ela, nada são.
Foi grande o privilégio que Deus concedeu à bendita
virgem Maria, ao conceder que dela nascesse o Filho de Deus.
O fato de uma pessoa que era infinitamente mais digna do que
os anjos; que, de fato, era o Criador e Rei da terra e do céu, o
grande Soberano do mundo, fosse concebido em seu útero,
nascesse dela, e amamentasse de seus seios, para ela foi maior
privilégio do que ser mãe do filho do maior príncipe terreno
que já existiu. Contudo, ainda isso não foi maior privilégio do
que ter a graça de Deus no coração; ter Cristo, por assim dizer,
nascido na alma, como ele próprio expressamente nos ensina:
“Ora, aconteceu que, ao dizer Jesus estas palavras, uma
mulher, que estava entre a multidão, exclamou e disse-lhe:
Bem-aventurada aquela que te concebeu, e os seios que te
amamentaram! Ele, porém, respondeu: Antes, bem-
aventurados são os que ouvem a palavra de Deus e a
guardam!” (Lc 11.27, 28).
Uma vez, quando alguns lhe disseram que sua mãe e
irmãos permaneciam do lado de fora, desejando falar-lhe, ele
aí teve ocasião para fazer-lhes saber que havia um modo mais
bendito de ser aparentado dele do que aquele que consistia em
ser sua mãe e irmão, de acordo com a carne: “Porém ele,
respondendo, disse ao que lhe falara: Quem é minha mãe? E
quem são meus irmãos? E, estendendo a mão para os seus
discípulos, disse: Eis aqui minha mãe e meus irmãos; porque
qualquer que fizer a vontade de meu Pai, que está nos céus,
este é meu irmão, e irmã, e mãe” (Mt 12.48-50).
2. Daí que esses dois tipos de privilégios não devem ser
confundidos, ao tomar coisas que têm alguma aparência de
dom extraordinário e miraculoso do Espírito como sinais
certos da graça.
Se as pessoas, a qualquer tempo, tiverem alguma
impressão extraordinária feita sobre suas mentes, que
pensarem seja de Deus, revelando-lhes algo que virá a
acontecer no futuro, isso, se fosse real, seria evidência positiva
de um dom extraordinário do Espírito Santo, isto é, o dom de
profecia.
Mas, pelo que foi dito, é evidente que isso não seria sinal
certo da graça, ou de alguma coisa salvífica. Mesmo se fosse
real, digo, pois de fato não temos razão para encarar essas
coisas, quando relatadas nestes dias, de outra maneira senão
como ilusão. E o fato de que essas impressões sejam causadas
por textos da Escritura vindo repentinamente à mente em
nada altera a situação. Pois um texto da Escritura vindo à
mente prova tanto que [aquelas impressões] são verdadeiras
quanto a leitura da Escritura o prova. Se a leitura de qualquer
texto da Escritura, a qualquer tempo, e em todos os tempos,
como está na Bíblia, não prova tal coisa, então a sua vinda
súbita à mente tampouco o prova. Pois a mesma coisa que a
Escritura fala naquela circunstância, fala nessa.
As palavras têm o mesmo sentido quando são lidas em
uma sequência e quando são subitamente trazidas à mente. E
se alguém tenta provar algo mais a partir dessas [palavras que
vêm à mente], ele procede sem garantia. Pois a vinda imediata
[das palavras] à mente não dá a elas um novo sentido, que
antes não possuíam.
Portanto, se alguém pensa estar em uma boa situação[9],
porque tal texto da Escritura lhe vem subitamente à mente, se
esse texto, como se encontra na Bíblia, não provar tal coisa,
isto é, se essa pessoa não pudesse provar isso se tão somente
tivesse lido, enquanto lia determinada sequência da Bíblia,
então, pelo fato de esse texto ter vindo à mente, ela não tem
evidência de que esteja em um bom estado.
Da mesma forma, se algo aparecer às pessoas, ainda que
tenham tido uma visão de alguma forma visível, ou ouvido
alguma voz, essas coisas não devem ser tomadas como sinais
da graça, pois se forem verdadeiras, e de Deus, não são a
graça, pois a influência extraordinária do Espírito, produzindo
visões e sonhos, como os profetas de outrora tiveram, não são
sinais garantidos da graça.
Todos os frutos do Espirito, sobre os quais devemos pôr o
peso de ser evidência de graça, estão sumarizados na caridade,
ou amor cristão, porque ela é a suma de toda graça. E o único
modo, portanto, que alguém pode saber se sua situação é boa,
é discernindo os exercícios dessa caridade divina em seus
corações, pois sem a caridade, tenham os homens quaisquer
dons que lhes agradem, eles nada são.
3. Se a graça salvífica é mais excelente do que os dons
extraordinários do Espírito, então não podemos concluir do
que a Escritura fala sobre a glória dos últimos dias da
igreja que os dons extraordinários do Espírito serão
concedidos às pessoas naqueles tempos.
Muitos estiveram prontos a pensar que, naqueles tempos
gloriosos da igreja, que ocorrerão após o chamado dos judeus
e da destruição do Anticristo, haverá muitas pessoas que serão
inspiradas e dotadas com um poder de realizar milagres.
Mas o que a Escritura diz com relação à glória daqueles
dias não prova isso, nem o torna provável. Pois foi mostrado
que o derramamento do Espírito de Deus, nas suas operações
ordinárias e salvadoras, para encher os corações dos homens
com uma índole cristã e santa, e conduzi-los aos exercícios da
vida divina, é o mais glorioso dos meios de derramamento do
Espírito que pode acontecer. É mais glorioso, muito mais
glorioso, do que o derramamento dos dons miraculosos do
Espírito.
Portanto, a glória daqueles tempos da igreja não requer
nada semelhante a esses dons extraordinários. Aqueles
tempos podem ser de longe os mais gloriosos da igreja, em
todas as suas épocas, sem esses dons. O fato de não terem o
dom de profecia, línguas, curas etc., como tiveram na era
apostólica, não impedirá que sejam, de longe, os mais
gloriosos tempos que já existiram, se o Espírito for derramado
em grande medida em suas influências santificadoras; pois
esse, como afirma expressamente o Apóstolo, é um caminho
mais excelente (1Co 12:31).
Essa glória é a maior glória da igreja de Cristo; e a maior
glória que a igreja de Cristo desfrutará em qualquer período.
Isso é o que tornará a igreja mais semelhante à igreja no céu,
onde a caridade, ou amor, tem um reino mais perfeito do que
qualquer número ou grau dos dons extraordinários do
Espírito possam ter. De modo que não temos razão alguma
para, por esse motivo, e talvez por qualquer outro, esperar que
os dons extraordinários do Espírito sejam derramados
naqueles tempos gloriosos que ainda estão por vir. Pois
naqueles tempos não haverá uma nova dispensação a ser
apresentada e nem uma nova Bíblia a ser dada.
Nem temos qualquer razão para esperar que nossas
presentes Escrituras devam ser adicionadas e aumentadas; ao
contrário, no final dos escritos sagrados que agora temos,
parece ser insinuado que nenhuma adição deve ser feita até
que Cristo venha. Veja Apocalipse 22:18-21.
4. Aqueles que receberam esse privilégio, como está
implícito na influência do Espírito Santo operando a graça
salvadora no coração, têm um motivo enorme de bendizer a
Deus!
Se apenas considerarmos seriamente o estado dos
piedosos, daqueles que foram objetos dessa benção indizível,
o que nos resta é ficar espantados com a maravilhosa graça
concedida a eles. E, quanto mais a consideramos, mais
maravilhosa e inefável parecerá.
Quando lemos nas Escrituras do grande privilégio
concedido à Virgem Maria, e ao apóstolo Paulo, quando foi
arrebatado ao terceiro céu, estamos prontos a admirar esses
privilégios como muito grandes. Porém, apesar de tudo, eles
nada são quando comparados ao privilégio de ser semelhante
a Cristo, e ter o seu amor no coração.
Portanto, que aqueles que esperam ter essa última bênção,
considerem muito mais do que têm considerado como foi
grande o favor que Deus lhes concedeu, e como é grande sua
obrigação de glorificá-lo pela obra que realizou neles, e
glorificar a Cristo, que lhes adquiriu essas bênçãos com seu
próprio sangue, e glorificar o Espírito Santo que o selou em
suas almas. Que gênero de pessoas deveriam ser essas em
toda santa conversação e piedade!
Considerem, vocês que esperam na misericórdia de Deus,
como ele os promoveu e exaltou tão altamente; vocês não
serão diligentes em viver para ele? Desonrarão a Cristo a
ponto de tê-lo em baixa conta, não lhe dando todo o seu
coração, mas seguindo após o mundo, negligenciando-o, e ao
seu serviço e à sua glória? Não serão vigilantes contra si
mesmos, contra uma disposição corrupta, mundana e
orgulhosa, que pode levá-los para longe do Deus que lhes tem
sido tão bondoso, e do Salvador que lhes adquiriu essas
bênçãos, ao custo de sua própria agonia e morte? Não irão a
cada dia fazer suas esta investigação urgente: “O que darei ao
Senhor em troca dos seus benefícios para comigo?”.
O que mais o Senhor poderia ter feito por vocês que não
tenha feito? Que privilégios lhes poderia ter concedido,
melhores em si, ou mais digno, para que constrangessem seus
corações a ações de graças? E considerem como têm vivido;
como têm feito pouco por ele; o quanto fazem por si; quão
pouco esse amor divino tem operado em seus corações para
incliná-los a viver para Deus e Cristo, e para a expansão de
seu reino. Oh! Como pessoas como vocês deveriam mostrar
seu senso dos altos privilégios que possuem, pelos exercícios
do amor; amor esse que é manifesto em relação a Deus em
obediência, submissão, reverência, prazer, alegria e esperança;
e em relação ao próximo em mansidão, simpatia, humildade,
caridade, e na prática do bem a todos que tiverem
oportunidade.
Finalmente,
5. O assunto exorta a todas as pessoas não regeneradas,
aquelas que são estranhas a essa graça, a buscar essa
bênção mais excelente para si mesmas.
Considere como são miseráveis agora vocês, que estão
totalmente destituídos desse amor, distantes da justiça,
amando as vaidades do mundo, e cheios de inimizade contra
Deus. Como vocês suportarão quando ele tratar com vocês de
acordo com o que são, apresentando-se em ira, como seu
inimigo, e executando contra vocês a ira impetuosa?
Considerem também, que são capazes desse amor; e Cristo
é poderoso e está disposto a conceder-lhes; multidões já o
obtiveram e foram abençoadas nele. Deus está buscando o
amor de vocês, e vocês estão sob a obrigação indizível de lhe
responder. O Espírito de Deus tem sido derramado
maravilhosamente aqui. Multidões foram convertidas. Quase
nenhuma família foi preterida. Em quase todas as casas alguns
foram feitos nobres, reis e sacerdotes para Deus, filhos e filhas
do Senhor Altíssimo!
Que tipo de pessoas, portanto, devemos ser nós todos:
santas, sérias, justas, humildes, caridosas, devotadas no
serviço de Deus, e fiéis para com nossos semelhantes! Como
indivíduos e como povo, Deus nos abençoou muito
ricamente, e tanto como indivíduos como povo é apropriado
que sejamos uma nação santa, sacerdócio real, um povo
peculiar. Compete a nós conceder os louvores àquele que nos
chamou das trevas para a sua maravilhosa luz: “Ouvi, pois,
isto, vós que vos esqueceis de Deus; para que vos não faça em
pedaços, sem haver quem vos livre. 23 Aquele que oferece
sacrifício de louvor me glorificará; e àquele que bem ordena o
seu caminho eu mostrarei a salvação de Deus” (Sl 50.22-23).
CAPÍTULO 3
AS MAIORES REALIZAÇOES OU
SOFRIMENTOS SÃO VÃOS SEM A CARIDADE
“E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento
dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser
queimado, e não tivesse caridade, nada disso me aproveitaria.”
1Coríntios 13:3

N os versículos anteriores deste


capítulo, a necessidade e
excelência da caridade são
apresentadas, como vimos, pela sua precedência sobre os
maiores privilégios, e devido à completa futilidade e
insignificância destes sem ela. Os privilégios mencionados em
particular são aqueles que consistem nos dons extraordinários
do Espírito de Deus. Neste versículo, coisas de outro tipo são
mencionadas, isto é, coisas de natureza moral. É declarado
que nenhuma dessas é útil sem a caridade. E, particularmente,
Primeiro, que nossas realizações são vãs sem ela. Eis um
dos tipos mais elevados de realizações exteriores
mencionadas, isto é, dar todos os bens para alimentar os
pobres. Dar ao pobre é um dever muito insistido na Palavra de
Deus, e, em particular, sob a dispensação cristã. Nos tempos
do cristianismo primitivo, as circunstâncias da Igreja eram tais
que pessoas eram por vezes chamadas a dividir tudo o que
tinham e dar aos outros. Isso ocorria, em parte, devido às
extremas necessidades daqueles que eram perseguidos e
sofriam aflições, e, em parte, por que as dificuldades que
acompanhavam o seguir a Cristo e fazer a obra do evangelho
eram tais que obrigavam os discípulos a desembaraçar-se do
cuidado e peso das posses mundanas, e a seguir em frente,
por assim dizer, sem ouro ou prata nas suas bolsas, ou alforje,
ou até mesmo duas capas.
O apóstolo Paulo nos diz que sofreu a perda de todas as
coisas por Cristo; e os cristãos primitivos, na igreja de
Jerusalém, vendiam tudo o que tinham, e depositavam num
fundo comum, e “ninguém considerava exclusivamente sua
nem uma das coisas que possuía” (Atos 4.32).
O dever de dar ao pobre era o que os cristãos coríntios,
desta vez, tinham ocasião especial para considerar; não apenas
devido aos muitos problemas dos tempos, mas também
devido à grande penúria ou fome que enormemente afligia os
irmãos da Judeia. Por essa causa, o apóstolo já havia rogado
aos coríntios, como dever deles, enviar-lhes alívio, falando
disso particularmente nesta epístola, no capítulo 16 (e também
na sua segunda epístola à mesma igreja, no oitavo e nono
capítulos). E ainda assim, embora diga tanto em ambas as
epístolas, para animá-los ainda mais no dever de dar aos
pobres é ainda bem cuidadoso em informá-los de que, embora
devessem sempre avançar nisso, embora devessem contribuir
com todos os seus bens para alimentar os pobres, se não
tivessem caridade, isso de nada adiantaria.
Segundo, o apóstolo ensina que não apenas nossas
realizações, mas também nossos sofrimentos são vãos sem a
caridade. Os homens estão prontos a superestimar o que
fazem, mas ainda mais o que sofrem. São rápidos em
considerar grande coisa quando saem da normalidade de sua
conduta, ou têm grandes custos ou sofrimentos por sua
religião. O apóstolo aqui menciona um sofrimento do mais
extremo tipo, sofrimento até a morte, e mesmo os tipos mais
terríveis de morte; e diz que mesmo isso é nada sem a
caridade. Quando alguém deu todos os seus bens, nada mais
tem para dar, a não ser a si mesmo. E o apóstolo ensina que,
quando uma pessoa deu todas as suas posses, se ela
prossegue para dar o próprio corpo, mesmo para ser
consumido pelas chamas, isso de nada valerá, se não for feito
com amor sincero no coração.
O apóstolo escreveu aos coríntios em um tempo em que os
cristãos eram com frequência chamados não apenas para dar
seus bens, mas também seus corpos, pela causa de Cristo.
Pois a igreja, à época, estava geralmente sob perseguição, e
multidões foram, então, ou logo depois, levadas à morte pelos
meios mais cruéis, pela causa do evangelho. Mas, embora
sofressem em vida, ou suportassem a morte mais agonizante,
seria tudo em vão sem a caridade.
O que se quer dizer por essa caridade já foi explicado nos
discursos anteriores sobre esses versos, nos quais foi
mostrado que a caridade é a soma de tudo o que é distinto na
religião do coração.
Portanto, a doutrina que retirarei dessas palavras é esta:
TUDO QUE OS HOMENS POSSAM FAZER, E TUDO
QUE POSSAM SOFRER, JAMAIS PODE SUBSTITUIR A
FALTA DO AMOR CRISTÃO SINCERO NO CORAÇÃO.
I. Pode haver grandes realizações, bem como grandes
sofrimentos, sem o amor cristão sincero no coração.
1. Pode haver grandes realizações sem o amor. O apóstolo
Paulo, no terceiro capitulo da epístola aos Filipenses, nos
conta as coisas que fez antes de sua conversão, enquanto era
um fariseu. No quarto versículo diz: “Se algum outro cuida
que pode confiar na carne, ainda mais eu”. Muitos dos
fariseus fizeram grandes coisas e abundaram nas realizações
religiosas. O fariseu mencionado em Lucas 18.11,12 se gabava
das grandes coisas que fizera, tanto para com Deus quanto
para com os homens, e agradecia a Deus por ter excedido
nisso os outros homens.
Muitos dos pagãos foram eminentes por suas realizações,
alguns por sua integridade, ou por sua justiça, e ainda outros
por suas grandes obras pelo bem público. Muitas pessoas,
sem qualquer sinceridade de amor nos corações, têm sido
muito magnânimas nas suas ofertas para usos piedosos e
filantrópicos, e trouxeram para si fama renomada, e tiveram
seus nomes registrados na história, para a posteridade, com
grande glória. Muitos fizeram grandes coisas por temerem o
inferno, esperando dessa forma aplacar a Deidade e fazer
expiação por seus pecados; e muitos fizeram grandes coisas
pelo orgulho, movidos por um desejo de reputação e honra
entre os homens.
Embora esses motivos não costumem influenciar as
pessoas a uma obediência total e constante dos mandamentos
de Deus, e a persistirem em um curso de realizações cristãs e
na prática de todos os deveres devidos a Deus e ao homem,
por toda a vida, contudo, é difícil dizer o quão longe esses
princípios naturais podem levar as pessoas em deveres e
realizações particulares. E assim,
2. Pode haver grandes sofrimentos pela religião, contudo,
sem sinceridade no coração. Pessoas podem suportar grandes
sofrimentos na vida, assim como os fariseus costumavam se
impor grandes severidades, penitências e inflições voluntárias.
Muitos realizaram cansativas peregrinações e se privaram
dos benefícios e prazeres da sociedade humana, ou passaram
suas vidas nos desertos e na solidão; alguns suportaram a
morte, dos quais não há motivo para pensar que tivessem
amor sincero por Deus no coração. Multidões entre os
papistas foram e aventuraram voluntariamente suas vidas nas
guerras santas, esperando merecer o céu por isso. Nas guerras
com os turcos e sarracenos, chamadas de guerras santas ou
Cruzadas, milhares foram voluntariamente a todos os perigos
do conflito, na esperança de assim assegurar o perdão dos
seus pecados e as recompensas da glória porvir. Muitos
milhares, até mesmo alguns milhões, perderam as vidas
nesses caminhos, ao ponto de haver perda considerável de
população em muitas partes da Europa.
Muitos dos muçulmanos estavam extremamente
enfurecidos, a ponto de aventurarem suas vidas e apressarem-
se, por assim dizer, em direção às espadas dos inimigos; isso
porque Maomé prometeu que todos que morressem na
guerra, na defesa da fé muçulmana, iriam imediatamente para
o Paraíso.
A história nos conta de alguns que se entregaram
voluntariamente à morte, devido à mera obstinação e teimosia
de espírito, ao invés de cederem às ordens de outros, quando
poderiam, sem desonra, salvar suas vidas. Muitos entre os
pagãos morreram por seus países, e muitos mártires por uma
falsa fé, embora jamais no mesmo número, nem da mesma
forma que os que pereceram mártires pela verdadeira religião.
Em todos esses casos, muitos sem dúvidas suportaram esses
sofrimentos, ou encontraram a morte, sem ter qualquer amor
divino sincero nos seus corações. Mas,
II. O que quer que os homens possam fazer ou sofrer, não
podem, por todas as suas realizações e sofrimentos,
substituir a falta de amor sincero no coração.
Se eles sempre se disporem nas coisas da religião; e se
sempre forem muito envolvidos em atos de justiça, bondade e
devoção; e se suas orações e jejuns forem sempre muito
multiplicados; ou se gastarem sempre seu tempo nas formas
de culto religioso, concedendo a ele dias e noites, e negando
sono aos olhos e descanso para as suas pálpebras, para que
sejam mais operantes nos exercícios religiosos, e se as coisas
que fizerem na religião forem suficientes para garantir-lhes um
nome em todo o mundo e torná-los famosos por todas as
gerações futuras, tudo seria vão sem amor sincero para com
Deus no coração.
Por isso, se alguém doar mais liberalmente para usos
religiosos ou de caridade; e se, possuindo as riquezas de um
reino, doar tudo, e, do esplendor de um príncipe terreno,
reduzir-se a um nível de mendigos, e se ele não parar por aí,
mas quando tiver feito isso tudo, permitir-se sofrer os mais
agudos sofrimentos, dando não só todos os seus bens, mas
também o seu corpo para ser vestido por trapos, ou para ser
mutilado, queimado e atormentado tanto quanto a sagacidade
do homem possa conceber, mesmo tudo isso não iria
substituir a falta de amor sincero por Deus no coração. E é
claro que não iria, pelas seguintes razões:
1. Não é o trabalho externo feito, ou os sofrimentos
suportados, que são, em si, dignos de algo diante de Deus.
Os movimentos e exercícios do corpo, ou qualquer coisa
que possa ser feita por ele, se considerados separadamente do
coração - a parte interior do homem - não é de mais
consequência ou valor à vista de Deus do que os movimentos
das coisas inanimadas. Se algo for oferecido ou dado, ainda
que seja de prata ou de ouro, ou o gado de mil pastos, ainda
que sejam mil carneiros, ou dez mil rios de óleo, não há nada
de valor neles, como coisa externa, aos olhos de Deus. Se
Deus tivesse necessidade dessas coisas, poderiam ser de
grande valor para ele, consideradas em si mesmas,
independentemente dos motivos do coração que levaram à
sua oferta.
Nós muitas vezes necessitamos de coisas boas externas e,
portanto, essas coisas, oferecidas ou dadas a nós, podem e
têm valor para nós, consideradas em si mesmas. Mas Deus
não tem necessidade de nada. Ele é todo-suficiente em si
mesmo. Ele não é alimentado pelos sacrifícios de animais,
nem enriquecido pela oferenda de prata, ou ouro, ou pérolas:
“Todos os animais da floresta são meus, e o gado sobre
milhares de montanhas. Se eu tivesse fome, não to diria, pois
o mundo é meu, e toda a sua plenitude” (Sl 50:10, 12). “Todas
as coisas vêm de ti, e do que é teu to damos. Ó Senhor, nosso
Deus, toda esta abundância, que preparamos para te edificar
uma casa ao teu santo nome, vem da tua mão, e é toda tua.”
(1 Cr. 29:14, 16).
Como não há nada rentável para Deus em qualquer dos
nossos serviços ou desempenhos, por isso não pode haver
nada aceitável à sua vista em uma mera ação externa sem
amor sincero no coração, “pois o Senhor não vê como vê o
homem, pois o homem olha o exterior, mas Deus olha para o
coração”. O coração é tão nu e aberto para ele como as ações
externas. Portanto, ele vê nossas ações e toda a nossa
conduta, não apenas como os movimentos externos de uma
máquina, mas como as ações de criaturas racionais,
inteligentes e voluntárias, agentes livres. Portanto, não pode
haver, em sua estima, excelência ou amabilidade em qualquer
coisa que possamos fazer, se o coração não for justo diante
dele.
Deus não tem prazer em quaisquer sofrimentos que
possamos suportar, em si mesmos considerados. Ele não
ganha com os tormentos que os homens possam sofrer, nem
se delicia ao vê-los expondo-se ao sofrimento, a não ser que
seja por algum bom motivo, ou para algum bom propósito e
fim. Por vezes, pode ser preciso que nossos semelhantes,
amigos e vizinhos, sofram por nós, e nos ajudem a suportar
nossos fardos, e sofram inconveniências para o nosso bem.
Mas Deus não tem essa necessidade de nós. Portanto, os
nossos sofrimentos não são aceitáveis para ele, considerados
meramente como sofrimentos suportados por nós, e não têm
significado para além do motivo que nos leva a suportá-los.
Não importa o que possa ser feito ou sofrido: nem obras,
nem sofrimentos irão substituir a falta de amor a Deus na
alma. Eles não são proveitosos para Deus, nem amáveis por si
mesmos à sua vista. Nem podem substituir a ausência do
amor a Deus e aos homens, que é a soma de tudo o que Deus
requer de suas criaturas morais.
2. O que quer que se faça ou sofra, contudo, se o coração
estiver afastado de Deus, nada é realmente dado a ele.
O ato de um indivíduo, naquilo que faz ou sofre, é em toda
situação reputado não como o ato de um mecanismo sem vida
ou de uma máquina, mas como o ato de um ser inteligente,
voluntário e moral. Pois, certamente, uma máquina não é
propriamente capaz de oferecer alguma coisa; e, se essa
máquina, que não tem vida, sendo movida por molas ou
cargas, coloca algo diante de nós, não se pode dizer
propriamente que ela nos deu algo. Harpas e címbalos, e
outros instrumentos musicais, eram há muito tempo usados
no louvor a Deus no templo e em outras partes. Mas não se
poderia dizer que esses instrumentos sem vida davam
louvores a Deus, porque não tinham pensamento, nem
entendimento, vontade, ou coração para acrescentar valor aos
seus sons agradáveis.
Logo, ainda que um homem tenha um coração, um
entendimento e uma vontade, contudo, se quando dá algo a
Deus, dá-lhe sem seu coração, verdadeiramente nada é dado a
Deus mais do que é dado pelo instrumento musical. Aquele
que não tem sinceridade em seu coração, não tem real respeito
por Deus naquilo que aparenta dar, ou em todas as suas
realizações ou sofrimentos, porquanto Deus não é seu fim
principal naquilo que faz ou dá. O que é dado, é dado para
aquilo que o indivíduo toma como seu grande fim em dar. Se
seu fim for ele próprio apenas e não Deus, e se seu objetivo
for sua própria honra ou comodidade, ou o ganho mundano,
então a oferta é apenas um oferecimento a essas coisas. O
presente é uma oferta àquele a quem se devota o coração do
doador e a quem ele o designa. É o alvo do coração que faz a
realidade do presente; e se o alvo sincero do coração não for
Deus, então, na realidade, nada lhe é dado, não importa o que
se faça ou sofra. De modo que seria um grande absurdo supor
que qualquer coisa que possa ser ofertada ou dada a Deus
pode substituir a ausência de amor por ele no coração; pois,
sem isso, nada é realmente dado, e o aparente presente é tão
somente zombaria ao Altíssimo.
Isso se evidencia ainda mais,
3. Pelo fato de esse amor, ou caridade, ser a suma de tudo
o que Deus requer de nós.
É absurdo supor que algo possa substituir a falta daquilo
que é a suma de tudo o que Deus requer. A caridade ou amor
é algo que tem sua sede no coração, e na qual, como vimos,
consiste tudo o que é salvífico e distinto no caráter cristão.
Esse é o amor de que nosso Salvador fala como o sumário de
tudo que é requerido nas duas tábuas da lei; e que o Apóstolo
declara ser o cumprimento da lei. E como podemos substituir
a sua falta, quando, ao recusá-lo, nós, com efeito, recusamos a
suma de tudo o que Deus requer de nós? Seria absurdo supor
que possamos substituir algo que é requerido oferecendo
outra coisa que [também] é requerida – que possamos
substituir uma dívida pagando outra.
Mas é absurdo ainda maior supor que possamos substituir
toda a dívida sem pagar nada, mas persistindo em recusar dar
tudo aquilo que é requerido. Quanto às coisas externas, sem o
coração, Deus fala delas não como sendo as coisas que requer
(Is 1:12), e exige que o coração lhe seja dado, se quisermos
que a oferta externa seja aceita.
4. Se fizermos uma grande exibição de respeito e amor a
Deus, em ações externas, enquanto não houver sinceridade
no coração, isso é apenas hipocrisia e, na prática, é mentir
ao Santo.
Fingir esse respeito e amor, quando não sentido no
coração, é agir como se pudéssemos enganar a Deus. É fazer
como Israel, no deserto, após ter sido libertado do Egito,
quando se diz que eles “lisonjeavam-no com a boca e com a
língua lhe mentiam” (Sl 78:36). Mas, certamente, é absurdo
que possamos substituir a falta de respeito sincero pela lisonja
e fraude, a ponto de supor que possamos substituir a falta da
verdade pela falsidade e mentira.
5. O que quer que possa ser feito ou sofrido, se não
houver sinceridade no coração, é tão somente oferta a
algum ídolo.
Como anteriormente observado, não há nada, no caso
suposto, realmente ofertado a Deus, portanto, segue-se que é
ofertado a algum outro ser, objeto ou fim; e seja lá o que isso
for, é o que as Escrituras chamam de ídolo. Em todas as
ofertas semelhantes a essa, algo é virtualmente adorado, e seja
o que for: seja o eu, ou nossos semelhantes, ou o mundo,
permite-se que isso usurpe o lugar que deveria ser dado a
Deus e receba as ofertas que lhe deveriam ser feitas.
Como é absurdo supor que possamos substituir a retenção
daquilo que é devido a Deus, ofertando algo a nosso ídolo! É
tão absurdo quanto supor que a esposa possa substituir a falta
de amor a seu marido dando sua afeição que lhe é devida a
outro homem, que é um estranho; ou que ela possa substituir
sua falta de fidelidade a ele pela culpa do adultério.
APLICAÇÃO
Na aplicação desse assunto, incumbe-nos usá-lo,
1. Como forma de autoexame.
Se for assim de fato que tudo o que possamos fazer ou
sofrer é vão, se não houver amor sincero a Deus no coração,
então isso deve nos levar a sondar a nós mesmos quanto a se
temos ou não esse amor sincero em nossos corações.
Há muitos que fazem profissão e exibição de religião, e
alguns que fazem muitas das coisas externas que ela requer; e
é possível que pensem que tenham feito e sofrido muito por
Deus e pelo seu serviço. Mas, a grande questão é: o coração
tem sido sincero nisso tudo e tem sofrido ou feito tudo pelo
respeito à glória divina?
Sem dúvida, se examinarmos a nós mesmos, podemos ver
muita hipocrisia. Mas há alguma sinceridade? Deus abomina
as maiores coisas sem sinceridade, mas aceita e se deleita nas
coisas pequenas quando fluem do amor sincero a ele. Um
copo de água fria, dado a um discípulo em amor sincero, é
mais digno à vista de Deus do que alguém dar todos os bens
para alimentar ao pobre, e até mesmo do que entregar a
riqueza de um reino, ou oferecer o corpo às chamas, sem
amor. E Deus aceita até mesmo um pequeno mas sincero
amor. Ainda que haja muita imperfeição, mas se houver
qualquer sinceridade verdadeira em nosso amor, esse pouco
não será rejeitado porque haja alguma hipocrisia nele. E aqui
pode ser útil observar que há estas quatro coisas que
pertencem à natureza da sinceridade, isto é, verdade,
liberdade, integridade e pureza.
Primeiro, verdade. Ou seja, que a aparência e exibição na
ação externa exista verdadeiramente no coração. Onde há, de
fato, verdadeiro respeito a Deus, o amor que o honra será
sentido no coração, tão extensamente quanto há exibição dele
em palavras e atos. Nesse sentido, é dito no Salmo 51: “Eis
que amas a verdade no íntimo” (Sl 51.6). E é nesse sentido
que se fala da sinceridade nas Escrituras como oposta à
hipocrisia, e que se diz que um cristão sincero é alguém que é,
de fato, como aparenta ser – alguém “sem dolo” (Jo 1:47).
Examine a si mesmo, portanto, com respeito a essa
questão. Se em suas ações externas houver uma aparência ou
exibição de respeito a Deus, investigue se isso é apenas
externo, ou se é sinceramente sentido no coração; pois, sem
amor ou caridade verdadeiros, você nada é.
A segunda coisa na natureza da sinceridade é a liberdade.
Quanto a isso, especialmente, a obediência dos cristãos é
chamada de filial, ou obediência de filhos, pois é uma
obediência inocente e livre, e não legal, servil e forçada; mas é
algo que é realizado pelo amor e com prazer. Deus é escolhido
por si mesmo; e a santidade por si mesma, e por causa de
Deus. Cristo é escolhido e seguido porque é amado, e a
religião[10] porque é amada, e a alma nela se regozija,
achando em seus deveres a mais alta felicidade e prazer.
Examine a si mesmo fielmente quanto a esse ponto, se esse
é ou não o seu caráter.
A terceira coisa que pertence à natureza dessa sinceridade é
a integridade. A palavra significa totalidade, insinuando que
onde essa sinceridade existe, Deus é buscado e a religião é
escolhida e abraçada com todo o coração, e aderida com toda
a alma. A santidade é escolhida com todo o coração. O todo
do dever é abraçado e encarado muito cordialmente, quer diga
respeito a Deus, quer ao homem; seja fácil ou difícil; tenha
referência às pequenas ou às grandes coisas. Há proporção e
plenitude no caráter. Todo o homem é renovado. O corpo
inteiro, a alma e o espírito são santificados. Cada membro é
entregue à obediência de Cristo. Todas as partes da nova
criatura são trazidas em obediência à sua vontade. As
sementes de todas as santas disposições são implantadas na
alma, e elas irão mais e mais produzir frutos na realização do
dever para a glória de Deus.
A quarta coisa que pertence à natureza da sinceridade é a
pureza. A palavra sincero frequentemente significa puro.
Assim ocorre em 1 Pedro 2.2: “Desejai ardentemente, como
crianças recém-nascidas, o genuíno [sincero, na versão do
autor] leite espiritual, para que, por ele, vos seja dado
crescimento para salvação”. Sincero, isto é puro, sem mistura,
não adulterado. Isso aparece na oposição da virtude ao
pecado. Um é referido como corrupção, impureza e
imundície; a outra, como aquilo que está livre dessas coisas. O
apóstolo compara o pecado a um corpo de morte, ou a um
corpo morto, que é a mais poluída e contaminada de todas as
coisas, enquanto que a santidade é referida como pureza e as
delícias santas como delícias puras, e os santos no céu como
sem mácula diante do trono de Deus. Investigue, então, se
essa pureza lhe pertence, e se estiver em sua posse, você
encontrará a evidência de que ama sinceramente a Deus.
Esse assunto pode também,
2. Convencer aqueles que ainda se encontram em um
estado não regenerado, de sua condição perdida.
Se for assim, de fato, que por tudo o que possa ou fazer ou
sofrer, você não pode substituir a falta de um amor santo e
sincero em seu coração, então, conclui-se que você se
encontra em uma condição arruinada até que tenha obtido a
graça regeneradora de Deus para renová-lo a um espírito reto
no seu interior. Faça o que desejar, ou suporte e sofra o que
quiser, você não pode ser libertado de sua impiedade sem a
graça conversora de Deus. Ainda que abunde em orações, isso
não tornará sua situação menos miserável, a menos que Deus,
pelo seu grande poder, se agrade em lhe dar um novo coração.
Se você se esforçar sobremodo na religião, e contrariar e negar
a si mesmo, e fizer ou sofrer o máximo, tudo será vão sem
isso.
Portanto, o que quer que tenha feito, ainda que possa se
reportar a um grande número de orações oferecidas, e muito
tempo gasto na leitura e meditação, você não tem razão em
pensar que essas coisas fizeram qualquer expiação pelos seus
pecados, ou tornaram sua situação menos deplorável, ou lhe
deixaram em outra situação que não a de uma criatura
miserável, perdida, infeliz, culpada e arruinada.
Os homens naturais, não regenerados, ficariam felizes em
ter algo para substituir a falta do amor sincero e da graça real
em seus corações. Muitos, de fato, fazem grandes coisas para
substituir essa falta, enquanto outros estão dispostos a sofrer
grandes coisas. Mas, infelizmente, como é insignificante o que
isso significa! Não importa o que possam fazer ou sofrer, isso
não muda seu caráter. Se construírem suas esperanças sobre
isso, nada fazem senão iludir-se e alimentar-se com o vento
oriental.
Se esse for o seu caso, considerem como serão miseráveis
enquanto viverem sem esperança na única fonte verdadeira de
esperança, e como serão miseráveis quando vierem a morrer,
quando a visão da rainha dos terrores[11], lhes mostrar a
nulidade e vaidade de todos os seus atos! Como serão
miseráveis quando virem Cristo vindo para o julgamento nas
nuvens do céu! Então estarão dispostos a fazer e sofrer
qualquer coisa, para que sejam aceitos por ele. Mas ações ou
sofrimentos não aproveitarão. Não expiarão os seus pecados,
nem lhe darão o favor de Deus, nem lhe salvarão das
esmagadoras tempestades de sua ira. Portanto, não descanse
em nada que tenham feito ou sofrido, ou que possam fazer ou
sofrer; descanse apenas em Cristo. Que seu coração seja cheio
de amor sincero por ele; e, então, no grande último dia, ele o
admitirá como seu seguidor e amigo.
O assunto também,
3. Exorta a todos, a ardentemente acalentar o amor
cristão sincero em seus corações.
Se assim for que isso seja de necessidade tão grande e
absoluta, então, que isso seja a coisa maior que vocês
busquem. Com diligência e oração, busquem-na; e busquem-
na de Deus, e não de vocês mesmos. Somente ele é que pode
concedê-la. É algo muito acima do poder não assistido da
natureza; pois, ainda que possa haver grandes realizações, e
também grandes sofrimentos, contudo, sem amor sincero, são
todos vãos. Essas ações e sofrimentos podem, de fato, ser
requeridas de nós, como seguidores de Cristo, e como forma
de dever; mas não devemos descansar nelas, ou sentir que
tenham qualquer mérito ou dignidade em si mesmas. Na
melhor das hipóteses, são apenas a evidência externa e o fluxo
de um espírito reto no coração.
Seja exortado, então, a acalentar o amor sincero, ou a
caridade cristã, como a coisa maior no coração. É o que você
deve ter, e sem ela não há nada que sirva de auxílio a sua
situação. Sem ela, tudo tenderá, de alguma forma, apenas para
aprofundar sua condenação, e apenas para afundá-lo nas
maiores profundidades do mundo do desespero!
CAPÍTULO 4

A CARIDADE NOS DISPÕE A SUPORTAR MANSAMENTE OS DANOS CAUSADOS PELO


OUTROS

“A caridade é sofredora, é benigna.”


1 Coríntios 13:4

O apóstolo, nos versículos


anteriores, apresenta como a
caridade – ou um espírito de
amor cristão – é, no cristianismo, algo grande e essencial; que
é muito mais necessária e excelente que quaisquer dos dons
extraordinários do Espírito; que excede de longe a todas as
realizações e sofrimentos externos e, resumindo, é a soma de
tudo o que seja distinto e salvífico no cristianismo, a própria
vida e alma de toda religião, sem a qual, ainda que déssemos
todos os bens para alimentar o pobre, e nossos corpos para
ser queimados, nada seríamos.
Agora ele prossegue, à medida que o assunto naturalmente
o conduz, para mostrar a natureza excelente da caridade,
descrevendo seus diversos frutos amáveis e excelentes. No
nosso texto, dois deles são mencionados: ela é sofredora, no
que diz respeito ao mal e dano recebidos dos outros; e
benigna, no que diz respeito ao bem a ser feito aos outros.
Manejando agora o primeiro desses pontos, me esforçarei por
demonstrar:
QUE A CARIDADE, OU UM ESPÍRITO
VERDADEIRAMENTE CRISTÃO, NOS DISPORÁ A
MANSAMENTE SUPORTAR O MAL QUE RECEBEMOS
DOS OUTROS, OU OS PREJUÍZOS QUE POSSAM NOS
CAUSAR.
A mansidão é grande parte do espírito cristão. Cristo,
naquele urgente e tocante chamado e convite que temos no
capítulo décimo-primeiro de Mateus, no qual convida a todos
os cansados e sobrecarregados a virem a ele para descansar,
menciona em particular que viessem para aprender dele, pois
adiciona: “Sou manso e humilde de coração”. A mansidão, no
que diz respeito aos danos recebidos dos homens, é chamada
de longanimidade nas Escrituras, e é sempre mencionada
como um exercício ou fruto do espírito cristão: “Mas o fruto
do Espírito é: caridade, gozo, paz, longanimidade” (Gl 5:22);
“Rogo-vos, pois, eu, o preso do Senhor, que andeis como é
digno da vocação com que fostes chamados, com toda a
humildade e mansidão, com longanimidade” (Ef 4:1,2);
“Revesti-vos, pois, como eleitos de Deus, santos e amados, de
entranhas de misericórdia, de benignidade, humildade,
mansidão, longanimidade, suportando-vos uns aos outros e
perdoando-vos uns aos outros, se algum tiver queixa contra
outro; assim como Cristo vos perdoou, assim fazei vós
também” (Cl 3:12, 13).
Ao trabalhar mais plenamente sobre este ponto, irei: i)
notar alguns dos vários tipos de danos que os outros podem
nos causar; ii) mostrar o que se quer dizer por mansamente
suportar esses danos; e, iii) como esse amor, que é a soma do
espírito cristão, nos disporá a fazer isso.
I. Notarei brevemente alguns dos vários tipos de danos
que podemos ou de fato recebemos dos outros.
Alguns prejudicam os outros nos seus negócios, pela
injustiça e desonestidade na sua maneira de relacionar-se com
eles, sendo fraudulentos e enganadores, ou pelo menos ao
levá-los a agir no escuro e ao tomar vantagem de sua
ignorância. Também ao oprimi-los, tomando vantagem de
suas necessidades; sendo-lhes infiéis ao não cumprirem com
suas promessas e pactos, e sendo remissos e relaxados em
algum empreendimento no qual seu próximo os emprega.
Eles nada visam senão obter o preço estipulado, sendo
despreocupados quanto ao máximo aproveitamento do tempo
na realização da tarefa a eles proposta; ou ao pedir preços
exorbitantes pelo que fazem; ou ao reter o que é devido ao
próximo injustamente, negligenciando pagar suas dívidas; ou
pondo o próximo desnecessariamente em problemas e
dificuldades para obterem o que é deles por direito.
Além disso, há inúmeros outros métodos pelos quais os
homens prejudicam uns aos outros em seus negócios, pela
abundância de caminhos tortuosos e perversos, nos quais
estão longe de fazer aos outros o que desejariam fosse feito a
si mesmos, e pelos quais provocam-se e prejudicam-se
mutuamente.
Alguns prejudicam o bom nome dos outros, ao reprová-los
ou falar mal deles pelas costas. Nenhum dano é mais comum
e nenhuma iniquidade mais frequente ou vil do que essa.
Outras formas de prejuízo são abundantes, mas a quantidade
de dano causado por esse tipo de maledicência não tem conta.
Outros, sem dizer o que é diretamente falso, grandemente
representam mal as coisas, pintando tudo o que diz respeito
ao próximo com as piores cores, exagerando suas faltas e as
apresentando como muito maiores do que realmente são,
sempre falando deles de uma maneira injusta e desonesta.
Grande quantidade de prejuízo é causada entre as pessoas ao
assim julgarem-se mutuamente sem caridade, interpretando
injuriosa e maldosamente as palavras e ações uns dos outros.
As pessoas podem prejudicar grandemente as outras em
seus pensamentos, ao injustamente manterem pensamentos
maldosos sobre elas, ou as tendo em baixa estima. Alguns são
profunda e continuamente prejudiciais aos outros, pelo
desprezo que habitualmente têm nos corações a respeito
deles, e pela disposição de pensar o pior deles. E, assim como
pelo fluxo de pensamentos, muito se faz para o prejuízo dos
outros por meio de palavras; pois a língua encontra-se muito
disposta a ser o instrumento ímpio da expressão dos maus
pensamentos e sentimentos da alma. Daí, nas Escrituras (Jó
5:21), ela ser chamada de açoite e ser comparada (Sl 140:3) às
peçonhas de algumas das mais venenosas espécies de
serpentes, cuja picada é capaz de levar à morte.
Às vezes, os homens prejudicam os outros nos seus
tratamentos e ações para com eles e nos atos prejudiciais que
cometem contra eles. Se vestidos de autoridade, às vezes
conduzem-se de modo bastante prejudicial para com os que
estão sob sua autoridade, se comportando muito presunçosa,
autoritária e tiranicamente para com eles.
Às vezes, os que estão sob autoridade comportam-se de
modo bastante prejudicial para com os que estão acima deles,
ao negarem-lhes o respeito e honra que lhes é devido pelas
suas posições, e desse modo a si mesmos quando as ocupam.
Alguns se conduzem de modo bastante prejudicial para
com os outros pelo exercício de um espírito em extremo
egoísta, tendo um elevado conceito de si mesmos, e
aparentemente não se preocupando com o bem ou benefício
do próximo; mas todos os seus projetos são apenas para o
bem de seus próprios interesses.
Alguns se conduzem prejudicialmente pela manifestação
de um espírito altivo e orgulhoso, como se pensassem ser
mais excelentes que todos os outros, e não devessem se
preocupar com mais ninguém senão consigo mesmos. Isso se
mostra em sua postura, conversas e ações, e pelo seu
comportamento grandemente pretencioso em geral, chegando
a tal ponto que os que estão em volta deles sentem, e com
razão, que são por eles injuriados.
Alguns se conduzem muito prejudicialmente pelo exercício
de um espírito voluntarioso, sendo tão desesperadamente
estabelecidos em ter seus próprios caminhos que irão, se
possível, curvar tudo o mais à sua própria vontade, e jamais
alterarão sua conduta nem cederão aos desejos de outros. Eles
fecham os olhos contra a luz ou motivos que os outros
possam oferecer e não têm preocupação alguma com a
inclinação de ninguém mais senão a sua própria, sendo
sempre perversos e obstinados em realizar as coisas do seu
modo.
Alguns se conduzem prejudicialmente durante o período
em que tomam parte dos assuntos públicos, agindo menos
pela preocupação com o bem público e mais com o espírito
de oposição a algum partido ou a alguma pessoa em
particular, de modo que a pessoa ou partido oposto é
prejudicada, e com frequência grandemente provocada e
exasperada.
Alguns prejudicam os outros pelo espírito malicioso e
ímpio que entretêm contra eles, com ou sem motivo. Não é
incomum que as pessoas se desgostem ou até mesmo se
odeiem, não acalentando qualquer coisa semelhante ao amor
um pelo outro nos corações. Mas, quer reconheçam ou não,
odiando realmente uns aos outros, não tendo prazer na honra
ou prosperidade do outro, mas, ao contrário, se agradando
quando são lançados na adversidade; tola e impiamente
pensando que, talvez, a queda do outro signifique a sua
própria exaltação, o que nunca ocorre.
Alguns prejudicam os outros pelo espírito de inveja que
lhes mostram, mantendo uma disposição hostil para com eles
sem razão nenhuma a não ser devido à honra e prosperidade
que lhes invejam.
Muito prejudicam os outros por um espírito de vingança,
deliberadamente pagando o mal com mal, por danos reais ou
imaginários que receberam deles. Alguns, enquanto viverem,
manterão rancor nos corações, e no momento em que se
oferecer a oportunidade, agirão contra eles com o espírito da
malícia.
E em inúmeros outros modos específicos que poderiam ser
mencionados os homens prejudicam uns aos outros, embora
esses mencionados possam ser suficientes para o presente
propósito.
II. Prossigo para mostrar o que se quer dizer por
mansamente suportar esses danos, ou como devem ser
mansamente suportados.
Aqui mostrarei, primeiro, a natureza do dever ordenado; e,
então, o porquê de ser chamado longanimidade, ou longura de
ânimo.
1. Mostrarei a natureza do dever de mansamente
suportar os danos que sofremos dos outros.
Primeiro, implica que os danos sofridos devem ser
suportados sem que nada seja feito para vingá-los.
Há muitos modos pelos quais os homens se vingam, não
apenas ao realmente infligir algum sofrimento imediato sobre
aquele que o prejudicou, mas por qualquer coisa, seja nas
palavras, seja na conduta, que mostre um espírito amargo
contra o outro pelo que fez. Logo, se após sermos ofendidos
ou prejudicados, falarmos de forma condenatória ao nosso
próximo, com o propósito de rebaixá-lo ou prejudicá-lo, e
para que gratifiquemos o espírito amargo que sentimos no
coração pelo prejuízo sofrido, isso é a vingança.
Aquele, portanto, que exerce a longanimidade cristã em
relação ao próximo suportará o dano recebido dele sem se
vingar ou retaliar, quer por atos prejudiciais, quer por palavras
rancorosas. Ele suportará sem fazer coisa alguma contra o
próximo que manifeste o espírito do ressentimento; sem falar
com ele, ou dele, com palavras vingativas, e sem permitir um
espírito vingativo no coração, ou que se manifeste em sua
prática. A tudo receberá com uma postura calma, impassível, e
com uma alma cheia de mansidão, quietude e bondade.
Manifestará isso em todo o seu proceder para com aqueles
que o prejudicaram, quer na sua presença, quer na ausência.
É por isso que essa virtude é recomendada nas Escrituras
com o nome de benignidade, ou como sempre conectado a
ela, como se pode ver em Tiago 3.17 e Gálatas 5.22. Naquele
que exercita apropriadamente o espírito cristão não haverá
uma expressão passional, temerária ou apressada, nem uma
postura amarga e exasperada, ou um ar de violência no falar
ou no gesto. Mas, ao contrário, o gesto, as palavras e o
procedimento, todos manifestarão o sabor da pacificação,
calma e benignidade. Ele talvez reprove seu próximo. Esse
pode ser claramente seu dever. Mas, se o fizer, será sem
indelicadeza e sem aquela severidade que tende apenas à
cólera. Ainda que seja com força de razão e argumento e com
clara e decidida admoestação, será sem refletir raiva ou
linguagem depreciativa. Pode mostrar desaprovação pelo que
foi feito, mas não o será com uma amostra de alto
ressentimento, e sim como uma reprovação ao ofensor pelo
pecado contra Deus, ao invés da ofensa contra si mesmo. É
mais um lamento pela sua calamidade do que um
ressentimento pelo seu prejuízo; como alguém que busca o
bem [do próximo], não seu dano; é como alguém que muito
deseja livrar o ofensor do erro no qual caiu, mais do que
igualar-se a ele pela injúria que lhe foi feita.
O dever ordenado também implica,
Segundo, que os danos sejam suportados com a
continuidade do amor no coração, e sem aquelas emoções e
paixões interiores que tendem a interrompê-lo e destruí-lo.
Os danos devem ser suportados, onde formos chamados a
sofrê-los, não apenas sem que manifestemos um ânimo
maldoso e vingativo em nossas palavras e ações, mas também
sem esse ânimo no coração. Devemos não apenas controlar
nossas paixões quando somos prejudicados e nos restringir
em dar lugar à vingança exterior, mas o dano deve ser
suportado sem o espírito de vingança no coração. Não apenas
uma postura externa polida deve ser contínua, mas também,
com ela, um amor sincero. Não devemos cessar de amar o
próximo porque ele nos prejudicou. Podemos nos
compadecer, mas não o odiar por isso.
O dever ordenado também implica,
Terceiro, que os danos sejam suportados sem que
percamos a calma e repouso de nossas mentes e corações.
Eles devem não apenas ser suportados sem uma postura
áspera, mas com uma calma interior e um repouso de espírito
contínuos. Quando se permite que os prejuízos que sofremos
perturbem nosso repouso de mente e nos coloquem em
excitação e tumulto, então cessamos de suportá-los no
verdadeiro espírito da longanimidade.
Se se permite ao prejuízo nos descompor e inquietar e
quebrar nosso descanso interior, não podemos desfrutar de
nós mesmos e não estamos em um estado apto a nos ocupar
em nossos variados deveres. Não estamos especialmente em
um estado [adequado] para os assuntos religiosos – para a
oração e a meditação.
Esse estado de mente é o contrário do espírito de
longanimidade e de mansamente suportar os prejuízos de que
se fala no texto. Os cristãos devem ainda manter a calma e
serenidade de suas mentes sossegadas, em qualquer prejuízo
que possam sofrer. Suas almas devem ser serenas, não como a
superfície instável da água, agitada por todo vento que sopra.
Não importa que males sofram ou que prejuízos possam lhes
infligir, ainda devem agir segundo o princípio das palavras do
Salvador a seus discípulos: “Na vossa paciência, possuí a
vossa alma” (Lucas 21.19).
O dever de que falamos também implica, uma vez mais,
Quarto, que em muitas situações onde somos
prejudicados, devemos estar dispostos a sofrer muito em
nossos interesses e sentimentos pela causa da paz, ao invés
de fazer o que tivermos a oportunidade e, talvez, o direito de
fazer na defesa de nós mesmos.
Quando sofremos prejuízos dos outros, o caso é que, com
frequência, um espírito cristão, se tão-somente o exercitarmos
como nos convém, nos disporá a abster-nos de tomar a
vantagem que possamos ter para vindicar e fazer justiça a nós
mesmos. Pois, agindo de outro modo, podemos ser o meio de
trazer uma grande calamidade sobre o que nos prejudicou. A
ternura por ele pode e deve nos dispor a um grande grau de
abstenção e a sofrermos, de alguma forma, nós mesmos, ao
invés de trazer excessivo sofrimento sobre ele. Ademais,
aquela conduta provavelmente levaria à violação da paz e ao
estabelecimento da hostilidade, enquanto que, nesse caminho,
pode haver esperança de ganhar nosso próximo, e de um
inimigo, torná-lo um amigo.
Essas coisas estão patentes a partir do que o apóstolo diz
aos coríntios quanto às demandas judiciais mútuas: “O só
existir entre vós demandas já é completa derrota para vós
outros. Por que não sofreis, antes, a injustiça? Por que não
sofreis, antes, o dano?” (1 Co 6.7). Não que todos os esforços
dos homens para defender-se e fazer justiça quando são
prejudicados por outros sejam censuráveis, ou que tenham
que sofrer todos os danos que agrade a seus inimigos infligir-
lhes, ao invés de aproveitar a oportunidade que tenham para
defender e vindicar-se a si mesmos, ainda que seja para o
dano daquele que lhes prejudica. Mas, em muitos, e
provavelmente na maior parte dos casos, os homens devem
ser primeiramente longânimos, no espírito da caridade
longânima do texto. E a situação pode ser frequentemente tal
que podem ser chamados a sofrer consideravelmente, como
orientará a caridade e a prudência, pela causa da paz e por um
amor cristão sincero àquele que lhes prejudica, ao invés de se
entregarem ao caminho que possam ter oportunidade.
Tendo assim mostrado o que essa virtude implica, agora
mostrarei, brevemente:
2. Por que é chamada longanimidade ou paciência
duradoura.
Ela parece ser assim chamada especialmente por dois
motivos:
Primeiro, porque devemos mansamente suportar não
apenas um pequeno dano, mas também uma enorme porção
de tratamento prejudicial dos outros.
Devemos perseverar e continuar em uma disposição calma,
sem cessar de amar nosso próximo, não apenas quando nos
prejudica um pouco, mas quando muito nos prejudica, e os
danos que nos causa são grandes. Assim, devemos suportar
não apenas alguns poucos danos, mas uma enormidade, e
ainda que nosso próximo persista no seu tratamento
prejudicial para conosco por longo tempo.
Quando se diz que a caridade suporta por muito tempo,
não podemos daí inferir que devemos suportar os danos
mansamente por uma temporada e que, após essa temporada,
devemos parar de suportá-los. O sentido não é que devamos,
de fato, suportar prejuízos por um longo tempo e, por fim,
parar de suportá-los. Mas é que devemos mansamente
persistir em suportá-los, ainda que perdurem por longo
tempo, mesmo até ao fim. O espírito da longanimidade nunca
deve cessar.
E é chamada longanimidade:
Segundo, porque em alguns casos devemos estar dispostos
a sofrer muito em nossos interesses, antes que aproveitemos
as oportunidades para nos fazer justiça.
Embora, por fim, devamos defender-nos quando levados,
por assim dizer, pela necessidade a isso, contudo, não
devemos fazê-lo por vingança, ou para prejudicar aquele que
nos prejudicou, mas tão-somente pela necessária autodefesa.
Mesmo assim, em muitos casos, deve-se ceder à paz e agir em
um espírito cristão para com o que nos prejudicou, para que
não o prejudiquemos.
Tendo assim mostrado de que maneira somos
frequentemente prejudicados pelos outros e o que implica em
mansamente suportar os prejuízos assim infligidos, venho
agora mostrar:
III. Como esse amor ou caridade, que é a soma do
espírito cristão, nos disporá a mansamente suportar esses
danos.
E pode-se demonstrar isso tanto em referência ao amor a
Deus quanto ao amor a nosso próximo.
1. O amor a Deus e ao Senhor Jesus Cristo tem a
tendência de nos dispor a isso. Pois,
Primeiro, o amor a Deus nos dispõe a imitá-lo, portanto,
nos dispõe à mesma longanimidade que ele manifesta. A
longanimidade, com frequência, é referida como um dos
atributos de Deus. Em Êxodo 34.6 é dito: “E, passando o
SENHOR por diante dele, clamou: SENHOR, SENHOR Deus
compassivo, clemente e longânimo”. Em Romanos 2.4, o
apóstolo diz: “Ou desprezas tu as riquezas da sua
benignidade, e paciência, e longanimidade?”.
Muito maravilhosamente se manifesta a longanimidade de
Deus na sua tolerância de inumeráveis injúrias dos homens, e
injúrias que são grandes e muito persistentes. Se
considerarmos a impiedade que há no mundo e então
considerarmos como Deus continua com o mundo em
existência e não o destrói, mas lhe mostra inúmeras
misericórdias; as abundâncias de sua providência e graça
diárias, fazendo seu sol nascer sobre os maus e os bons, e
enviando chuva igualmente sobre justos e injustos, ofertando
suas bênçãos espirituais incessantemente e para todos,
perceberemos como é abundante sua longanimidade para
conosco.
Se considerarmos sua longanimidade com algumas das
grandes e populosas cidades do mundo, e pensarmos como
constantemente as dádivas de sua bondade são concedidas e
consumidas por eles, e depois considerarmos como é grande a
impiedade dessas mesmas cidades, isso nos mostrará como é
maravilhosamente grande sua longanimidade.
E essa mesma longanimidade foi manifestada a muitas
pessoas particulares, em todas as eras do mundo. Ele é
longânimo com os pecadores que poupa e a quem oferece sua
misericórdia, mesmo enquanto ainda são rebeldes contra ele.
É longânimo com seu próprio povo eleito, muitos dos quais
viveram no pecado, desprezando tanto sua bondade quanto
sua ira. Contudo, por muito tempo os suportou, mesmo até ao
fim, até que fossem trazidos ao arrependimento e feitos, pela
sua graça, vasos de misericórdia e graça. E essa misericórdia
lhes mostrou enquanto eram inimigos e rebeldes, como nos
diz o apóstolo acerca de sua própria situação: “Sou grato para
com aquele que me fortaleceu, Cristo Jesus, nosso Senhor,
que me considerou fiel, designando-me para o ministério, a
mim, que, noutro tempo, era blasfemo, e perseguidor, e
insolente. Mas obtive misericórdia, pois o fiz na ignorância, na
incredulidade. Transbordou, porém, a graça de nosso Senhor
com a fé e o amor que há em Cristo Jesus. Fiel é a palavra e
digna de toda aceitação: que Cristo Jesus veio ao mundo para
salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal. Mas, por
esta mesma razão, me foi concedida misericórdia, para que,
em mim, o principal, evidenciasse Jesus Cristo a sua completa
longanimidade, e servisse eu de modelo a quantos hão de crer
nele para a vida eterna” (1 Tm 1.12-16).
Mas é da natureza do amor, ao menos em referência a um
superior, que ele sempre se inclina e se dispõe à imitação dele.
O amor do filho por seu pai o dispõe a imitar o pai, e
especialmente o amor dos filhos de Deus os dispõe a imitar
seu Pai celeste. Assim como ele é longânimo, também eles o
devem ser.
Segundo, o amor a Deus nos disporá a assim expressar
nossa gratidão pela sua longanimidade exercida em nós. O
amor não apenas nos dispõe a imitar, mas opera pela gratidão.
Aqueles que amam a Deus serão gratos a ele pela abundante
longanimidade que exerceu para com eles em particular.
Aqueles que amam a Deus, como deveriam fazer, terão tal
senso de sua maravilhosa longanimidade para com eles, nas
múltiplas injúrias que lhe ofereceram, que lhes parecerá
ninharia suportar os prejuízos que lhes foram causadas pelos
seus semelhantes.
Todas as injúrias que receberam dos outros, em
comparação com as que foram feitas a Deus, parecerão menos
do que alguns centavos em comparação com dez mil talentos.
E como aceitam gratamente e se admiram da longanimidade
de Deus para com eles, também não podem senão testificar
sua aprovação e gratidão por ela, manifestando até onde
forem capazes, a mesma longanimidade com os outros. Pois,
se se recusarem a exercer a longanimidade para com aqueles
que os prejudicaram, na prática, desaprovariam a
longanimidade de Deus para consigo mesmos; pois aquilo
que verdadeiramente aprovamos e em que nos deleitamos não
podemos, na prática, rejeitar.
Então, a gratidão pela longanimidade de Deus também nos
disporá à obediência a Deus neste particular, quando nos
ordena que sejamos longânimos para com os outros. E assim,
novamente:
Terceiro, o amor a Deus tende à humildade, a qual é uma
raiz principal de um espírito manso e longânimo. O amor a
Deus, uma vez que o exalta, tende a diminuir os pensamentos
e a estima de nós mesmos, e leva a um profundo senso de
nossa indignidade e nosso merecimento do mal. Porque
aquele que ama a Deus está sensível da odiosidade e vileza do
pecado cometido contra o ser a quem ama. Discernindo em si
uma abundância daquilo, aborrece a si mesmo em seus
próprios olhos, como indigno de qualquer bem e merecedor
de todo mal.
Sempre se acha a humildade conectada com a
longanimidade, como diz o apóstolo: “Com toda a humildade
e mansidão, com longanimidade, suportando-vos uns aos
outros em amor” (Efésios 4.2). Um espírito humilde nos
indispõe de ressentir-nos dos prejuízos; pois o que é pequeno
e indigno aos seus olhos, não pensará tanto de um prejuízo
recebido por ele, como o que se tem em alta conta, pois se
julga maior e mais alta a enormidade da ofensa contra quem é
grande e importante, da que é contra quem é desprezível e vil.
É o orgulho ou a presunção que é o principal fundamento de
um elevado e amargo ressentimento e de um espírito
implacável e vingativo.
Quarto, o amor a Deus dispõe as pessoas a levarem em
conta a mão de Deus nos danos que sofrem e não apenas a
mão do homem, e a mansamente submeterem a sua vontade
nisso.
O amor a Deus dispõe as pessoas a ver sua mão em tudo; a
confessá-lo como o governante do mundo e regente da
providência, e a reconhecer sua disposição em tudo o que
acontece. E o fato de que a mão de Deus é mais evidente em
tudo o que nos acontece do que o tratamento dos homens
deve nos conduzir, em grande medida, a não pensar nas coisas
como se de homens, mas ter-lhes respeito principalmente
como de Deus – como ordenado por seu amor e sabedoria,
mesmo quando sua fonte imediata for a malícia ou a
insensatez de um semelhante.
Se, de fato, considerarmos e sentirmos que elas procedem
da mão de Deus, então estaremos dispostos a mansamente
recebê-las e calmamente nos submetermos a elas, e a
conceder que os maiores danos recebidos dos homens são
justa e até mesmo bondosamente ordenados por Deus, e
assim estarmos longe de qualquer irritação ou tumulto de
mente por causa delas. Foi com isso em mente que Davi
aceitou tão mansa e quietamente as maldições de Simei,
quando este se adiantou e o amaldiçoou, atirando-lhe pedras
(2 Sm 16.5,10); Davi disse que o Senhor o havia encarregado
de assim proceder, e proibiu seus partidários de se vingar.
E, uma vez mais,
Quinto, o amor a Deus nos dispõe a mansamente suportar
os danos de outros, porque nos coloca muito acima dos
danos dos homens. Ele assim o faz em dois aspectos.
Em primeiro lugar, nos coloca acima do alcance dos danos
dos outros, pois nada, jamais, pode verdadeiramente ferir
aqueles que são verdadeiros amigos de Deus. Sua vida está
escondida com Cristo em Deus. Ele, como seu guardião e
amigo, os carregará nas alturas, como em asas de águia, e
todas as coisas cooperarão para o bem deles (Rm 8.28). A
ninguém será permitido que lhes machuque, enquanto forem
seguidores daquele que é bom (1 Pe 3.13).
Em segundo lugar, enquanto o amor a Deus prevalece,
tende a colocar as pessoas acima dos danos humanos, no
sentido de que, quanto mais amam a Deus, mais colocarão
nele toda a sua felicidade. Olharão para Deus como seu tudo e
buscarão sua felicidade e porção em seu favor, logo, não
apenas no quinhão de sua providência. Quanto mais amam a
Deus, menos colocam seus corações nos seus interesses
mundanos, os quais são tudo o que seus inimigos podem
tocar.
Os homens podem prejudicar o povo de Deus apenas com
respeito a seus bens terrenos. Mas, quanto mais uma pessoa
ama a Deus, menos seu coração está firmado nas coisas deste
mundo, e menos sente os prejuízos que seus inimigos possam
infligir, porque não podem alcançar além dessas coisas.
Assim, com frequência é o caso que os amigos de Deus
dificilmente pensam que os prejuízos que sofrem dos homens
são dignos de ser chamados de prejuízos; e a calma e
quietude de suas mentes dificilmente se perturba por eles.
Enquanto tiverem o favor e amizade de Deus, não estão muito
preocupados com as más obras e os prejuízos dos homens. O
amor a Deus e um senso do seu favor os dispõe a dizer sobre
os prejuízos dos homens, quando tirarem seus deleites
mundanos, como Mefibosete falou a respeito da tomada da
terra por Ziba: “Fique ele, muito embora, com tudo, pois já
voltou o rei, meu senhor, em paz à sua casa” (2 Sm 19.30).
E assim como o amor a Deus nos disporá, nesses diversos
aspectos, à longanimidade sob os danos recebidos dos outros,
também,
2. O amor ao próximo nos disporá ao mesmo.
Nesse sentido, a caridade é longânima – a longanimidade e
a paciência são sempre o fruto do amor. Como insinua o
apóstolo (Ef. 4.1,2), faz parte do nosso andar de modo digno
da nossa vocação cristã que andemos “com toda a mansidão e
humildade”. O amor suportará uma multidão de faltas e
ofensas e nos inclinará a encobrir os pecados (Pv 10.12).
Assim vemos por abundante observação e experiência que
aqueles pelos quais temos grande e forte afeição, a esses
sempre suportamos muitissimamente mais do que aqueles de
quem não gostamos ou a quem somos indiferentes. Um pai
suportará muitas coisas em seu próprio filho que reprovaria
grandemente no filho de outro. Um amigo tolera muitas coisas
em seu amigo que não toleraria em um estranho. Mas não há
necessidade de multiplicar palavras ou razões neste ramo do
assunto, pois ele é extremamente claro a todos.
Todos sabem que o amor é de tal natureza que é
diretamente contrário tanto ao ressentimento quanto à
vingança, pois essas coisas implicam rancor, o qual é o exato
reverso do amor e não pode coexistir com ele. Sem me
demorar, portanto, nesse ponto, passo, em conclusão, a fazer
algum breve aproveitamento do assunto.
APLICAÇÃO
1. Ele exorta a nós todos ao dever de mansamente
suportar os danos que possamos receber dos outros.
Que o que foi dito possa ser aproveitado por nós para
suprimir toda ira, vingança e amargura de espírito para com
aqueles que nos prejudicaram ou que possam nos prejudicar
algum dia. Quer nos prejudiquem em nossas posses ou na boa
reputação; quer abusem de nós com suas línguas ou com suas
mãos; quer sejam os que nos prejudicam superiores,
inferiores ou iguais a nós, não digamos em nosso coração:
“Eu lhe farei o mesmo que fez a mim”. Não nos esforcemos a,
como algumas vezes se diz, “sermos semelhantes a ele”, por
algum tipo de retaliação, ou ao ponto de permitirmos que
qualquer ódio, amargura ou índole vingativa surjam em
nossos corações.
Esforcemo-nos, sob toda injúria, a preservar a calma e
quietude de espírito; estarmos prontos a sofrer
consideravelmente em nossos justos direitos a fazer alguma
coisa que possa elevar nosso ânimo e nos levar a viver em
brigas e contendas. Com esse propósito ofereço para
consideração os seguintes motivos.
Primeiro, considere o exemplo que Cristo nos deu. Ele foi
de um espírito manso e quieto e de um comportamento muito
longânimo. Em 2 Coríntios 10.1, o apóstolo nos fala acerca da
mansidão e gentileza de Cristo. Ele mansamente suportou
inúmeras e enormes injúrias dos homens. Ele foi em grande
medida objeto de amargo desprezo e reprovação, e foi
desrespeitado e desprezado como alguém desprezível. Ainda
que fosse o Senhor da glória, contudo foi reputado como nada
e rejeitado e não estimado pelos homens. Foi objeto do ódio e
da malícia e de amargos insultos daqueles a quem veio salvar.
Suportou a contradição de pecadores contra si. Foi chamado
de glutão e de beberrão, mesmo sendo santo, inocente,
imaculado e separado dos pecadores. Foi, contudo, acusado
de ser amigo de publicanos e pecadores. Foi chamado de
enganador do povo e muitas vezes (como em João 10.20 e
7.20) disseram que estava louco e possesso de demônios. Às
vezes, o reprovaram (Jo 8.48), chamando-o de samaritano e
dizendo que tinha demônio (aqueles eram estimados pelos
judeus como os maiores réprobos, e, ao chamá-lo pelo último
nome, acusavam-no da mais diabólica impiedade).
Às vezes foi acusado de ser um ímpio blasfemo (Jo 10.33),
e alguém que, por esse motivo, merecia a morte. Outras vezes
o acusaram de realizar milagres com o poder e auxílio de
Belzebu, o príncipe dos demônios, e chamaram a ele próprio
de demônio (Mt 10.25). E tal era o ódio deles contra ele que
concordaram em expulsar ou expelir da sinagoga qualquer um
que dissesse que ele era o Cristo. Odiavam-no com ódio
mortal e desejavam que estivesse morto, e de tempos em
tempos esforçavam-se para matá-lo. Na verdade, estavam
quase sempre se esforçando para manchar suas mãos com seu
sangue. Sua própria vida lhes era um aborrecimento e, por
isso, o odiavam, pois não podiam suportar que estivesse vivo
(Sl 41.5).
Lemos, com frequência, (como em João 5.16), deles
buscando matá-lo. Como alguns deles sofreram para vigiá-lo
em suas palavras, para que pudessem ter algo para acusá-lo, e
assim ser capazes, com a apresentação de uma razão, de
condená-lo à morte! Muitas vezes combinaram entre si em
tirar sua vida dessa maneira. Eles frequentemente, na verdade,
pegavam em pedras para atirar-lhe, e uma vez o levaram ao
topo de uma colina para que pudessem atirá-lo de lá para
baixo e assim fazê-lo em pedaços.
Cristo, contudo, mansamente suportou essas injúrias, sem
ressentimento ou palavra de censura; com uma quietude
celestial de espírito passou por todas elas. Por fim, quando foi
mais ultrajosamente tratado, quando seu amigo professo o
traiu e seus inimigos o agarraram e o conduziram ao açoite e à
morte na cruz, foi como um cordeiro ao matadouro, não
abrindo sua boca. Nem uma só palavra de amargura escapou
dele. Não houve interrupção da calma de sua mente sob essas
pesarosas aflições e sofrimentos; nem houve o mínimo desejo
de vingança. Mas, ao contrário, orou por seus assassinos, para
que fossem perdoados, mesmo quando estavam prestes a
pregá-lo na cruz. E não apenas orou por eles, mas defendeu-
lhes junto ao Pai, dizendo que não sabiam o que faziam. Os
sofrimentos de sua vida e as agonias de sua morte não
interromperam sua longanimidade para com aqueles que o
prejudicaram.
Segundo, se não estivermos dispostos a mansamente
suportar os danos, não estamos aptos a viver no mundo, pois
nele devemos esperar encontrar muitos danos da parte
homens.
Não habitamos em um mundo de pureza, inocência e
amor, mas em um mundo que é caído e corrupto, miserável e
ímpio, e que está enormemente debaixo do reino e domínio
do pecado. O princípio do amor divino, que uma vez esteve
no coração do homem, está extinto e agora não reina senão
em alguns, e neles em um grau muito imperfeito. Aqueles
princípios que tendem à malícia e prejuízo são os princípios
sob cujo poder a generalidade do mundo se encontra.
Este mundo é um lugar onde o diabo, que é chamado de o
deus deste mundo, tem influência e domínio, e onde
multidões estão possuídas com seu espírito. A fé não é de
todos, como diz o Apóstolo (2 Te 3.2); e, de fato, somente
alguns poucos têm o espírito da fé no coração que leva a vida
a ser governada pelas regras da justiça e da bondade para com
os outros. O aspecto do mundo é bastante semelhante ao que
falou nosso Salvador, quando, ao enviar seus discípulos,
disse: “Eis que eu vos envio como ovelhas para o meio de
lobos” (Mt 10.16).
Portanto, aqueles que não possuem um espírito de
mansidão e calma, de longanimidade e tranquilidade de alma
para suportar os danos neste mundo são de fato miseráveis, e
é provável que sejam infelizes em cada passo de seu caminho
na vida. Se cada dano com que nos encontrarmos e cada
impropério e ação maliciosa e injusta colocarem nossas
mentes e corações em desordem e tumulto, e perturbarem a
calma e paz nas quais podemos nos deleitar, então não
podemos ter posse ou aproveitamento de espírito e seremos
mantidos em perturbação e tumulto perpétuos, como a barca
que é levada para lá e para cá continuamente no oceano
tempestuoso.
Pessoas que têm seus espíritos aquecidos e enfurecidos e
que se levantam em amargo ressentimento quando são
prejudicadas agem como se pensassem que alguma coisa
estranha lhes aconteceu, enquanto que são muito tolas em
assim pensar; pois não é coisa estranha de modo algum, mas
apenas o que deveria ser esperado em um mundo como este.
Portanto, não agem sabiamente aqueles que permitem que
seus espíritos sejam insuflados pelos danos que sofrem; pois
um homem sábio somente espera mais ou menos dano no
mundo, e está preparado para ele, pois, em mansidão de
espírito, está preparado para suportá-lo.
Terceiro, desse modo devemos estar muito acima dos
danos.
Aquele que estabeleceu tal espírito e disposição de mente
que os danos recebidos dos outros não o exasperam nem o
provocam, ou perturbam a calma de sua mente, vive, por
assim dizer, acima dos danos e fora de seu alcance. Ele os
conquista e cavalga sobre eles em triunfo, exaltado acima de
seus poderes. Aquele que tem tanto do exercício de um
espírito cristão, ao ponto de ser capaz de mansamente
suportar todos os danos feitos contra ele, mora nas alturas,
onde inimigo algum pode alcançá-lo.
A história nos conta que, quando os persas sitiaram a
Babilônia, os muros da cidade eram tão enormemente altos,
que os habitantes costumavam ficar no topo deles e riam de
seus inimigos. Desse modo, uma alma que é fortificada com o
espírito da mansidão cristã e com uma disposição de
calmamente suportar todos os danos pode rir-se dos inimigos
que a prejudicam. Se alguém que tenha uma disposição
maldosa contra nós, estando, portanto, disposto a nos
prejudicar ao nos maldizer, ou de alguma outra forma vir que,
ao assim fazer, pode nos perturbar e irritar, nisso ele se
gratifica.
Mas se virem que, por tudo que possam fazer, não podem
interromper a calma de nossas mentes, ou quebrar a
serenidade da alma, então são frustrados em seu desígnio e as
flechas com que nos feririam retrocederão sem que façam a
execução pretendida. Enquanto que, por outro lado, na
proporção em que permitimos que nossas mentes sejam
perturbadas e embaraçadas pelas injúrias oferecidas por um
adversário, na mesma proporção nós caímos debaixo do seu
poder.
Quarto, o espirito da longanimidade cristã e da mansidão
em suportar os prejuízos é uma marca da verdadeira
grandeza da alma.
É evidência de uma natureza nobre e verdadeira e uma real
grandeza de espírito assim manter a calma da mente em meio
a danos e males. É uma evidência da excelência de
temperamento e de fortaleza e força interior. Salomão diz:
“Melhor é o longânimo do que o herói da guerra, e o que
domina o seu espírito, do que o que toma uma cidade” (Pv
16.32); isto é, este mostra uma natureza mais nobre e
excelente, e mais verdadeira grandeza de espírito que os
grandes conquistadores da terra.
É pela pequenez de mente que a alma é facilmente
perturbada e retirada do repouso pelas invectivas e maltratos
dos homens. Pequenas torrentes de água são muito
perturbadas pelas pequenas desigualdades e obstáculos que
encontram em seu curso, e fazem grande barulho enquanto
passam por eles; ao passo que grandes e poderosas torrentes
passam pelos mesmos obstáculos calma e quietamente, sem
uma onda sequer na superfície que mostrem que estejam
perturbadas.
Aquele que é senhor de sua alma de modo tal que, quando
os outros o machucam e prejudicam, não obstante,
permanece calmo e com boa-vontade interior para com eles,
compadecendo-se e perdoando-lhes de coração, manifesta
nisso uma grandeza de espírito divinal. Esse espírito manso,
sossegado e longânimo mostra uma verdadeira grandeza de
alma, naquilo que exibe da grandiosa e verdadeira sabedoria,
como diz o apóstolo: “Quem entre vós é sábio e inteligente?
Mostre em mansidão de sabedoria, mediante condigno
proceder, as suas obras” (Tg 3.13).
O sábio Salomão, que bem conhecia o que pertencia à
sabedoria, frequentemente fala da sabedoria desse espírito
declarando que: “Da soberba só resulta a contenda, mas com
o que se aconselham se acha a sabedoria” (Pv 13.10); e
novamente que: “A discrição do homem o torna longânimo, e
sua glória é perdoar injúrias”.
Em sentido contrário, aqueles que estão prontos a
enormemente ressentir-se das injúrias e a se enfurecerem e
aborrecerem-se grandemente por elas, são frequentemente
mencionados nas Escrituras como pessoas de espírito
pequeno e tolo. Salomão diz: “O longânimo é grande em
entendimento, mas o de ânimo precipitado exalta a loucura”
(Pv 14.29); e novamente: “Melhor é o paciente do que o
arrogante. Não te apresses em irar-te, porque a ira se abriga no
íntimo dos insensatos” (Ec 7:8,9); e, de novo: “O insensato
encoleriza-se e dá-se por seguro. O que presto se ira faz
loucuras, e o homem de maus desígnios é odiado. Os simples
herdam a estultícia” (Pv 14.16,17,18). Por outro lado, um
espírito manso é expressamente mencionado na Escritura
como um espírito honrado, como em Pv 20.3: “Honroso é
para o homem o desviar-se de contendas”.
Quinto, o espírito da longanimidade e mansidão cristãs é
recomendado a nós pelo exemplo dos santos.
O exemplo de Cristo apenas pode ser e é suficiente, uma
vez que é o exemplo daquele que é nosso Cabeça, Senhor e
Mestre, de quem professamos ser seguidores e cujo exemplo
cremos ser perfeito. Contudo, alguns podem estar prontos a
dizer, com relação ao exemplo de Cristo, que ele era
impecável e não tinha corrupção em seu coração, e que não
poderia ser esperado de nós que procedêssemos em todas as
coisas como ele. Ainda que essa não seja objeção razoável,
contudo, o exemplo dos santos, que foram homens de
paixões semelhantes às nossas, não fica sem seu uso especial,
e pode, em alguns aspectos, ter uma influência particular.
Muitos dos santos estabeleceram exemplos brilhantes dessa
longanimidade que foi recomendada.
Por exemplo, com que mansidão Davi suportou o
tratamento injurioso que recebeu de Saul, quando foi caçado
por ele como uma perdiz pelas montanhas, perseguido com a
mais descabida inveja e malícia, e com desígnios assassinos,
embora tenha sempre se portado obedientemente diante dele.
E, quando teve a oportunidade colocada em suas mãos de
liquidá-lo e de livrar-se de imediato do seu poder, estando os
outros ao seu redor dispostos a pensar que era muito lícito e
louvável que assim o procedesse, contudo, uma vez que Saul
era o ungido do Senhor, preferiu antes confiar a si mesmo e a
todos os seus interesses a Deus, e aventurar sua vida em suas
mãos, e permitiu que seu inimigo ainda vivesse. Quando, após
isso, viu que sua clemência e bondade não venceram Saul,
mas que ainda o perseguia, e quando teve novamente a
ocasião de destruí-lo, escolheu antes exilar-se como um
errante e desterrado a prejudicar aquele que o teria destruído.
Outro exemplo é o de Estêvão, de quem se diz que,
quando seus perseguidores descarregavam sua fúria sobre ele,
apedrejando-o até à morte: “Então, ajoelhando-se, clamou em
alta voz: Senhor, não lhes imputes este pecado!” (At 7.59,60).
Menciona-se essa oração como algo feito com seu último
suspiro, como as últimas palavras que proferiu após orar ao
Senhor Jesus para que recebesse seu espírito. Imediatamente
após fazer essa oração por seus perseguidores, somos
informados de que caiu desacordado, perdoando-os assim e
encomendando-os à benção de Deus como o último ato de
sua vida.
Outro exemplo é o do apóstolo Paulo, que foi objeto de
inúmeros danos de homens ímpios e celerados. Desses danos
e de sua maneira de proceder sob eles, dá-nos algum relato em
1 Coríntios 4.11-13: “Até à presente hora, sofremos fome, e
sede, e nudez; e somos esbofeteados, e não temos morada
certa, e nos afadigamos, trabalhando com as nossas próprias
mãos. Quando somos injuriados, bendizemos; quando
perseguidos, suportamos; quando caluniados, procuramos
conciliação; até agora, temos chegado a ser considerados lixo
do mundo, escória de todos”. Desse modo, manifestou um
espírito manso e longânimo, quando todos os danos se
amontoaram sobre si.
E não apenas temos esses relatos a respeito dos homens
inspirados, mas temos na mera história humana não inspirada
o fantástico heroísmo e longanimidade dos mártires e de
outros cristãos, debaixo do tratamento mais irracional e ímpio
recebido dos homens. Isso tudo deve nos levar ao mesmo
espírito manso e longânimo.
Sexto, esse é o modo de ser recompensado, recebendo em
nós o exercício da longanimidade divina.
As Escrituras nos informam que, daqui por diante, Deus
lidará com os homens do modo pelo qual eles lidam com os
outros. Assim nos diz o Salmo 18.25,26: “Para com o
benigno, benigno te mostras; com o íntegro, também íntegro.
Com o puro, puro te mostras; com o perverso, inflexível”.
Também Mateus 7.2: “Pois, com o critério com que julgardes,
sereis julgados; e, com a medida com que tiverdes medido,
vos medirão também”. E novamente: “Porque, se perdoardes
aos homens as suas ofensas, também vosso Pai celeste vos
perdoará; se, porém, não perdoardes aos homens as suas
ofensas, tampouco vosso Pai vos perdoará as vossas ofensas”
(Mt 6.14,15). Por transgressões, aqui, se quer dizer o mesmo
que injúrias feitas a nós; de modo que, se não suportarmos as
injúrias dos homens contra nós, tampouco nosso Pai celeste
suportará nossas injúrias contra ele; e se não exercermos a
longanimidade para com os homens, não podemos esperar
que Deus a exercerá para conosco.
Mas, consideremos o quanto necessitamos da
longanimidade de Deus com relação às injúrias que lhe
fazemos. Quão frequente e grandemente injuriosa é nossa
postura para com Deus, e como é má a maneira que o
tratamos todo dia! E se Deus não nos suportasse e exercesse
maravilhosa longanimidade para conosco, como seríamos
miseráveis! E o que seria de nós?
Que essa consideração, portanto, influencie a nós todos a
buscarmos esse espírito excelente que foi falado, e a
desaprovar e suprimir tudo que seja de espírito ou prática
contrária. Teria uma influência muito feliz em nós como
indivíduos, e em nossas famílias, e assim em todas as nossas
associações e assuntos públicos se espírito semelhante a esse
prevalecesse. Ele preveniria a contenda e a luta, e difundiria a
gentileza e a bondade, a harmonia e o amor. Levaria para
longe a amargura e confusão e toda obra má. Nossos assuntos
seriam todos conduzidos, tanto em público quanto em
privado, sem fúria, ou aspereza, ou amargura de espírito; sem
expressões rudes e ultrajantes aos outros e sem quaisquer dos
discursos malignos, maledicentes e desdenhosos, que se
ouvem com tanta frequência entre as pessoas, os quais, ao
mesmo tempo, tantos danos trazem à sociedade, e se
constituem em temível obra para o julgamento.
Mas alguns, em seus corações, podem estar prontos a
objetar contra essa tolerância mansa e tranquila aos danos,
como foi falado; e pode ser útil mencionar e responder
brevemente a algumas dessas objeções:
Objeção 1. Alguns podem ser rápidos em dizer que os
danos que recebem das pessoas são intoleráveis; que aquele
que os prejudicou foi injusto demais no que disse ou fez; e
que foi algo tão injusto, prejudicial e injustificável, e assim por
diante, que é mais do que a carne e sangue possam suportar;
que são tratados com injustiça tal que seria suficiente para
provocar uma pedra; ou que são tratados com tanto desprezo
que são verdadeiramente pisados, e não podem senão se
ressentir. Mas, em resposta a essa objeção, perguntaria
algumas coisas:
Primeiro, você acha que as injúrias que você sofre dos
seus semelhantes é mais do que você tem oferecido a Deus?
O seu inimigo tem lhe sido mais vil, irracional, mais ingrato,
do que você tem sido ao Altíssimo e Santo? Suas ofensas têm
sido mais hediondas ou graves, ou maiores em número, do
que as suas têm sido contra seu criador, benfeitor e redentor?
Têm sido eles mais provocadores e irritantes do que sua
conduta pecaminosa contra Aquele que é o autor de todas as
nossas misericórdias, e a quem você deve as mais altas
obrigações?
Segundo, você não espera que Deus, como até aqui o tem
feito, irá suportá-lo nisso tudo, e que, apesar de tudo, exercerá
em relação a você seu amor e favor infinitos? Você não espera
que Deus lhe terá misericórdia, e que Cristo lhe abraçará com
seu amor sacrificial, ainda que você tenha sido um inimigo tão
injurioso? E não espera que, pela sua graça, ele apagará suas
transgressões e todas as suas ofensas contra ele, e o fará seu
filho por toda a eternidade e um herdeiro de seu reino?
Terceiro, quando você pensa nessa longanimidade da parte
de Deus, você não a aprova, e pensa bem dela, achando que é
não apenas digna e excelente, mas extraordinariamente
gloriosa? E você não aprova que Cristo tenha morrido por
você, e que Deus, através dele, lhe ofereça perdão e salvação?
Ou você desaprova isso? E você teria se agradaria mais de
Deus, se não tivesse lhe tolerado, mas há muito tempo o
tivesse liquidado em sua ira?
Quarto, se tal conduta for excelente e digna de aprovação
em Deus, por que não é em você? Por que você não deveria
imitá-lo? Deus é bom demais em perdoar as injúrias? É menos
odioso ofender o Senhor do céu e da terra do que alguém
ofender você? É bom ser perdoado e orar a Deus por perdão,
contudo, você não o estende aos seus semelhantes que lhe
injuriaram?
Quinto, você estaria disposto, daqui por diante, que Deus
não mais suportasse as suas injúrias e as ofensas que você
cometeu contra ele? Está disposto a ir e pedir a Deus para
lidar com você no futuro da maneira como, ao sustentar essa
objeção, você pensa em lidar com seu próximo?
Sexto, Cristo se virou contra os que o injuriavam e
insultavam, e lhes pisou quando esteve aqui em baixo? E não
foi ele injuriado muito mais gravemente do que você jamais o
foi? E você verdadeiramente não pisou o Filho de Deus, mais
do que foi pisado pelos outros? É algo mais provocador que
os homens lhe pisem e injuriem do que você pisar e injuriar a
Cristo? Essas perguntas podem responder suficientemente sua
objeção.
Objeção 2. Mas você pode dizer mais, que aqueles que lhe
prejudicaram persistem nisso, e não se arrependem, mais
ainda continuam a fazê-lo.
Mas que oportunidade pode haver para a longanimidade,
se o dano não persistisse por muito tempo? Se os danos são
contínuos, pode ser o exato propósito, na providência, de
testar se você exercerá a longanimidade e a mansidão e aquela
tolerância que foi mencionada. Deus não o suportou quando
você persistiu em ofendê-lo? Quando foi obstinado, e
voluntarioso, e perseverou nas suas injúrias contra ele, cessou
de exercer sua longanimidade sobre você?
Objeção 3. Mas você pode objetar, novamente, que seus
inimigos serão encorajados a persistirem na sua conduta;
desculpando-se ao dizer que se suportar a doano, será apenas
ainda mais prejudicado. Mas você não sabe isso, pois não tem
conhecimento do futuro ou do coração dos homens. Além
disso, Deus lhe guardará, se você obedecer aos seus
mandamentos; e ele é mais capaz de colocar um fim à ira do
homem do que você. Ele disse: “A mim me pertence a
vingança; eu é que retribuirei, diz o Senhor” (Rm 12.19). Ele
defendeu maravilhosamente Davi, como fez por muitos de
seus santos; e se você tão-somente obedecer-lhe, ele lhe será
um auxílio contra tudo o que se levante contra você. E, na
observação e experiência dos homens, geralmente se descobre
que um espirito solitário e manso põe fim às injúrias,
enquanto um espírito vingativo não faz senão provocá-la.
Acalente, então, o espírito da mansidão longânima e da
tolerância, e você possuirá na alma a paciência e a felicidade, e
a ninguém será permitido machucá-lo mais do que a sabedoria
e bondade de Deus o permitir.
CAPÍTULO 5

A CARIDADE NOS DISPÕE A FAZER O BEM

“A caridade é sofredora, é benigna.”


1 Coríntios 13.4

N o último discurso a partir


dessas palavras, foi mostrado
que a caridade, ou amor
cristão, é longânima, ou seja, nos dispõe a mansamente
suportar as injúrias recebidas dos outros. Agora me proponho
a mostrar que é bondosa, ou, em outras palavras, A
CARIDADE, OU UM ESPÍRITO VERDADEIRAMENTE
CRISTÃO, NOS DISPORÁ A LIVREMENTE FAZER O
BEM AOS OUTROS
Abordando esse ponto, irei (1) desvendar brevemente a
natureza do dever de fazer o bem aos outros, e (2) mostrar
que um espírito cristão nos disporá a isso.
I. Mostrarei brevemente a natureza do dever de fazer o
bem aos outros.
Aqui, três coisas devem ser consideradas: o ato, fazer o
bem; os objetos, ou aqueles a quem devemos fazer o bem; e o
modo pelo qual deve ser feito, isto é, livremente.
1. O ato que é a matéria do dever, que é fazer o bem aos
outros.
Há muitas maneiras pelas quais as pessoas podem fazer o
bem às outras, e pelas quais estão obrigados a assim o fazer,
na medida em que tiverem oportunidade.
Primeiro, as pessoas podem fazer o bem às almas dos
outros, que é o modo mais excelente de se fazer o bem.
As pessoas podem ser, e com frequência são, os
instrumentos do bem espiritual e eterno dos outros. Quando
alguém assim procede, é o instrumento de maior bem a eles
do que se lhes houvesse dado todas as riquezas do universo.
Podemos fazer bem às almas dos outros nos esforçando
para instruir os ignorantes e conduzi-los ao conhecimento das
grandes coisas da religião; aconselhando-os e admoestando-
os; animando-os ao seu dever e a um oportuno e completo
cuidado pelo bem-estar de suas almas; apresentando-lhes
bons exemplos, o que de tudo é o mais necessário e,
geralmente, o meio mais eficaz de todos na promoção do bem
de suas almas. Esses exemplos devem acompanhar os outros
meios de se fazer o bem às almas dos homens, tais como a
instrução, aconselhamento, avisos e reprovações, sendo
necessário para dar força a esses meios e torná-los eficazes.
São mais promissores em torná-los efetivos do que qualquer
outra coisa, e, sem eles, é provável que aqueles outros meios
sejam vãos.
Os homens podem fazer o bem às almas das pessoas
ímpias, sendo os meios no resgate delas de suas condutas
viciosas; ou às almas dos que negligenciam o santuário,
persuadindo-os a irem à casa de Deus; ou às almas dos
pecadores seguros e descuidados, conscientizando-os de sua
miséria e perigo. Podem ser, assim, os instrumentos no seu
despertamento e meios na sua conversão, e em trazê-los para
o lar de Cristo. Assim, podem pertencer ao número daqueles a
respeito de quem lemos que “a muitos conduzem à justiça”
(Dn 12.3) e que “resplandecerão como o fulgor do
firmamento”.
Os santos também podem ser os instrumentos do conforto
e estabelecimento uns dos outros; do fortalecimento mútuo na
fé e na obediência; da vivificação, animação e edificação; do
livramento mútuo das disposições débeis e mortas; do auxílio
nas tentações, para que se prossiga na vida divina; do
aconselhamento uns dos outros em casos duvidosos e
difíceis; do encorajamento mútuo sob trevas ou em provação;
e, em geral, promovendo a alegria e força espiritual uns dos
outros, sendo assim mutuamente auxiliadores na sua jornada
para a glória.
Segundo, as pessoas podem fazer o bem a outras nas
coisas exteriores e relativas a este mundo.
Podem ajudar os outros nas suas dificuldades e
calamidades exteriores, pois há inúmeros tipos de
calamidades temporais a que está sujeita a humanidade, nas
quais permanece em bastante necessidade de ajuda de seus
amigos e semelhantes. Muitos têm fome, ou sede, ou são
estrangeiros, estão nus, doentes, ou em prisão (Mt 25.35,36),
ou sofrem de alguma outra forma. A todos esses devemos
ministrar.
Podemos fazer o bem aos outros promovendo suas
condições ou propriedades materiais; ou apoiando seu bom
nome, promovendo, assim, sua estima e aceitação entre os
homens; ou por qualquer coisa que possa verdadeiramente
somar a seu conforto e felicidade no mundo, seja na palavra
bondosa, seja na obra discreta e benevolente. Esforçando-nos,
assim, para lhes fazer o bem externamente, estamos na maior
vantagem de fazer bem às suas almas; pois quando nossas
instruções, conselhos, avisos e bons exemplos são
acompanhados com essa bondade exterior, esta última tende a
abrir o caminho para o melhor efeito daqueles primeiros, e
tende a dar-lhes sua plena força e a levar aquelas pessoas a
apreciarem nossos esforços quando buscarmos seu bem
espiritual.
Assim, podemos contribuir para o bem dos outros de três
modos: dando-lhes as coisas que precisam e que possuímos;
fazendo por eles e esforçando-nos para ajudá-los e promover
seu bem estar; e sofrendo por eles, auxiliando-os a
suportarem seus fardos, fazendo tudo em nosso poder para
tornar esses fardos leves.
Em cada um desses modos, o cristianismo requer que
façamos o bem aos outros. Ele requer que demos aos outros:
“Dai, e dar-se-vos-á” (Lc 6.38). Requer que façamos pelos
outros, e trabalhemos por eles: “Porque, vos recordais,
irmãos, do nosso labor e fadiga; e de como, noite e dia
labutando para não vivermos à custa de nenhum de vós, vos
proclamamos o evangelho de Deus” (1 Ts 2.9); e :“Porque
Deus não é injusto para ficar esquecido do vosso trabalho e
do amor que evidenciastes para com o seu nome, pois
servistes e ainda servis aos santos” (Hb 6.10). E requer de nós
que, se for necessário, soframos pelos outros: “Levai as cargas
uns dos outros e, assim, cumprireis a lei de Cristo” (Gl 6.2); E:
“Nisto conhecemos o amor: que Cristo deu a sua vida por
nós; e devemos dar nossa vida pelos irmãos” (1 Jo 3.16). De
modo que, de todas essas maneiras, as Escrituras requerem
que façamos o bem a todos.
Passo então a falar, 2. Dos objetos deste ato, ou daqueles a
quem devemos fazer o bem.
As Escrituras com frequência referem-se a eles pela
expressão “nosso próximo”, pois o dever diante de nós está
implícito no mandamento de que amemos nosso próximo
como a nós mesmos. Mas aqui, talvez, estejamos apressados
a, como o jovem advogado que veio a Cristo (Lc 10.29),
perguntar: “Quem é nosso próximo?” E, assim como a
resposta de Cristo lhe ensinou que o samaritano era próximo
dos judeus, embora os samaritanos e judeus estimassem uns
aos outros como vis e malditos e como amargos inimigos,
também podemos ser ensinados sobre quem são aqueles a
quem devemos fazer o bem, em três aspectos: Primeiro,
devemos fazer o bem tanto ao bom quanto ao mau. Isso
devemos fazer, se quisermos imitar nosso Pai celeste, pois
“ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre
justos e injustos” (Mt 5.45). O mundo está cheio de tipos
variados de pessoas, algumas boas, outras más; devemos
fazer o bem a todas. Devemos, na realidade, em especial,
“fazer o bem aos da família da fé”, ou aos que tenhamos
razão, no exercício da caridade, de reputar como santos. Mas,
ainda que devamos abundar no exercício da beneficência a
eles, o bem que fazemos não deve ser confinado a eles, mas
devemos fazer o bem a todos os homens, quando tivermos
oportunidade.
Enquanto vivermos neste mundo, devemos esperar
encontrar alguns homens de características muito más e de
inclinações e práticas odiosas. Alguns são orgulhosos, outros
imorais, invejosos, profanos, injustos ou severos, e alguns
desprezam a Deus. Mas quaisquer uma ou todas essas más
qualidades não devem impedir nossa beneficência, ou
prevenir que lhes façamos o bem enquanto tivermos
oportunidade. Por esse exato motivo é que devemos, ao
contrário, ser diligentes em beneficiá-los, para que os
ganhemos para Cristo; e em especial devemos ser diligentes
para beneficiá-los nas coisas espirituais.
Segundo, devemos fazer o bem tanto a amigos quanto a
inimigos.
Somos obrigados a fazer o bem aos nossos amigos, não
apenas pela obrigação sob a qual nos encontramos de lhes
fazer o bem na condição de nossos semelhantes e de pessoas
feitas à imagem de Deus, mas pela obrigação da amizade,
gratidão e afeição que lhes devotamos. Também somos
obrigados a fazer o bem aos nossos inimigos, pois nosso
Salvador diz: “Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos
perseguem” (Mt 5.44). Fazer o bem aos que nos prejudicam é
a única retaliação que incumbe a nós, como cristãos, pois
somos ensinados a “não tornar a ninguém mal por mal” (Rm
12.17), mas, ao contrário, “a vencer o mal com o bem” (Rm
12.20). E ainda está escrito: “Evitai que alguém retribua a
outrem mal por mal; pelo contrário, segui sempre o bem entre
vós e para com todos” (1 Te 5.15); e ainda: “não pagando mal
por mal ou injúria por injúria; antes, pelo contrário,
bendizendo, pois para isto mesmo fostes chamados, a fim de
receberdes bênção por herança” (1 Pe 3.9).
Terceiro, devemos fazer o bem tanto aos gratos quanto
aos ingratos. A isso somos obrigados pelo exemplo de nosso
Pai celeste, pois ele “é benigno até para com os ingratos e
maus” (Lc 6.35). E o mandamento é que devemos “ser
misericordiosos, como ele é misericordioso”. Muitos objetam
que façamos o bem aos outros, dizendo: “Se eu fizer, jamais
me agradecerão; pela minha bondade, me recompensarão
com abuso e injúria”. Assim, estão prontos a se escusarem do
exercício da bondade, especialmente àqueles que talvez
tenham se lhes mostrado ingratos. Mas essas pessoas não
olham o suficiente para Cristo e, ou mostram sua falta de
familiaridade com os preceitos do cristianismo, ou sua
indisposição de acalentar seu espírito.
Tendo assim falado do dever de fazer o bem e das pessoas
a quem devemos fazê-lo, passo, como proposto, a falar, 3. Da
maneira pela qual devemos fazer o bem aos outros. Ela está
expressa na única palavra “livremente”. Isso parece estar
implícito nas palavras do texto; pois ser bondoso é ter
disposição para livremente fazer o bem. Qualquer bem que
seja feito, não há propriamente bondade no seu autor a menos
que seja feito livremente. E fazer o bem livremente implica em
três coisas: Primeiro, que a nossa prática do bem não seja
baseada em um espírito mercenário.
Não devemos fazê-lo por causa de qualquer recompensa
recebida ou esperada daquele a quem fazemos o bem. O
mandamento é: “Fazei o bem e emprestai, sem esperar
nenhuma paga” (Lc 6.35). Frequentemente, as pessoas farão o
bem às outras esperando receber o mesmo tanto novamente;
mas devemos fazer o bem aos pobres e necessitados, de quem
nada podemos esperar em retorno. O mandamento de Cristo
é: “Quando deres um jantar ou uma ceia, não convides os teus
amigos, nem teus irmãos, nem teus parentes, nem vizinhos
ricos; para não suceder que eles, por sua vez, te convidem e
sejas recompensado. Antes, ao dares um banquete, convida
os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos; e serás bem-
aventurado, pelo fato de não terem eles com que
recompensar-te; a tua recompensa, porém, tu a receberás na
ressurreição dos justos” (Lc 14.12-14).
Para que a nossa prática do bem seja livre, e não
mercenária, é necessário que o que fazemos seja feito não por
causa de qualquer bem temporal, ou para promover nosso
interesse temporal, ou honra, ou lucro, mas devido ao espírito
de amor.
Segundo, que a nossa prática do bem seja livre é requisito
para que o façamos alegre ou sinceramente, e com verdadeira
boa vontade para com aquele que beneficiaremos.
O que é feito sinceramente é feito pelo amor, e o que é feito
pelo amor é feito com prazer, e não com murmuração ou má
vontade e relutância de espírito. “Sede hospitaleiros”, diz o
apóstolo (1 Pe 4.9), “sem murmuração”. E Paulo diz: “Cada
um contribua segundo tiver proposto no coração, não com
tristeza ou por necessidade; porque Deus ama a quem dá com
alegria” (2 Co 9.7). Esse requisito ou qualificação na nossa
prática do bem é bastante insistido nas Escrituras. “O que
contribui,” diz o apóstolo “faça com liberalidade; o que
preside, com diligência; quem exerce misericórdia, com
alegria” (Rm 12.8). E Deus dá uma responsabilidade estrita:
“Não seja maligno o teu coração, quando lho deres” (Dt
15.10). Em uma palavra, a própria ideia de dar de boa vontade
é apresentada por toda a Bíblia como implicando que demos
com um espírito cordial e alegre. Dar livremente também
implica, Terceiro, que o façamos liberal e abundantemente.
Não devemos ser escassos e poupadores em nossas
dádivas ou esforços, mas devemos ter os corações e as mãos
abertas. Devemos “abundar em toda boa obra” (2 Co 9.8,11),
“enriquecendo-vos, em tudo, para toda generosidade”. Assim,
Deus requer que quando dermos ao pobre, devamos “lhe abrir
de todo a mão” (Dt 15.8). E nos é dito que “a alma generosa
prosperará” (Pv 11.25). O apóstolo queria que os coríntios
fossem abundantes em suas contribuições aos santos pobres
na Judeia, assegurando-lhes que “aquele que semeia pouco,
pouco também ceifará; e o que semeia com fartura com
abundância também ceifará” (2 Co 9.6).
Tendo assim explicado a natureza desse dever de
livremente fazer o bem aos outros, prossigo agora para
mostrar, II. Que um espírito cristão nos disporá a assim
fazer o bem aos outros. E isso se mostra a partir de duas
considerações: 1. A coisa principal nesse amor, que é a soma
do espírito cristão, é a benevolência ou a boa vontade com
os outros.
Já vimos o que é o amor cristão, e como é variadamente
denominado de acordo com seus vários objetos e exercícios;
e, particularmente, como, no que diz respeito ao bem
desfrutado ou a ser desfrutado pelo objeto amado, é chamado
o amor de benevolência, e, no que diz respeito ao bem a ser
desfrutado no objeto amado, é chamado de amor de
complacência.
O amor de benevolência é aquela disposição que nos leva a
ter desejo ou prazer no bem do outro; e essa é a coisa
principal no amor cristão. Com efeito, é a coisa mais essencial
nele, e aquilo pelo que nosso amor é, em grande parte, uma
imitação do amor e da graça eterna de Deus e do amor
sacrificial de Cristo, que consistem na benevolência ou boa
vontade aos homens, como foi cantado pelos anjos no seu
nascimento (Lc 2.14). De modo que a coisa principal no amor
cristão é a boa vontade, ou uma disposição para se deleitar e
buscar o bem daqueles que são objetos desse amor.
2. A evidência mais natural e conclusiva de que tal
princípio é verdadeiro e sincero é que seja eficaz.
A evidência mais natural e conclusiva de nosso desejo ou
disposição em fazer o bem aos outros é quando o fazemos.
Em cada caso, nada pode ser mais claro do que o fato de que
a natural e conclusiva evidência da vontade é a ação; e a ação
sempre segue a vontade, onde há poder para agir. A evidência
natural e conclusiva de que uma pessoa sinceramente deseja o
bem de outra é que ela o busca na sua prática: pois tudo o que
verdadeiramente desejamos, realmente assim buscamos.
As Escrituras, portanto, falam de fazer o bem como a
evidência própria e plena do amor; e elas com frequência
falam de amar em obras ou prática como sendo equivalente a
amar em verdade e realidade: “Filhinhos, não amemos de
palavra, nem de língua, mas de fato e de verdade. E nisto
conheceremos que somos da verdade”, isto é, saberemos que
somos sinceros. E novamente: “Se um irmão ou uma irmã
estiverem carecidos de roupa e necessitados do alimento
cotidiano, e qualquer dentre vós lhes disser: Ide em paz,
aquecei-vos e fartai-vos, sem, contudo, lhes dar o necessário
para o corpo, qual é o proveito disso?” (Tg 2.15-16). Não há
proveito algum para eles, logo, não há nenhuma evidência de
sinceridade de sua parte e que você realmente deseje que
sejam vestidos e alimentados. Sinceridade de desejo levaria
não meramente a palavras, mas a atos de benevolência.
APLICAÇÃO
Na aplicação desse assunto, concluindo, podemos usá-lo,
1. Como reprovação.
Se um espírito verdadeiramente cristão dispõe as pessoas a
fazer o bem livremente às outras, então todos que são de
espírito e prática contrários podem ser reprovados. Um
espírito maligno e malicioso é o exato oposto disso, pois
dispõe as pessoas a fazer o mal às outras, e não o bem. E, do
mesmo modo, é um espírito fechado e egoísta, pelo qual as
pessoas estão totalmente inclinadas a seus próprios interesses,
e totalmente indispostas a renunciar a seus próprios fins por
causa dos outros.
Também são de um espírito e prática muito opostos ao
espírito de amor aqueles que exibem um ânimo
exorbitantemente ganancioso e avarento, e que aproveitam
toda oportunidade para obter tudo que puderem de seus
conhecidos, ao se relacionarem com eles. Pedem-lhes pelo
que fizeram ou lhes venderam mais do que verdadeiramente
merecem, e achacam-nos ao máximo com suas demandas
exorbitantes. Não se preocupam em avaliar as coisas para seus
semelhantes, mas, por assim dizer, forçam-nas para que
possam obter o máximo delas. E os que fazem essas coisas,
em geral, são muito egoístas também ao comprar dos outros,
reduzindo e comprimindo em busca dos menores preços, e se
opondo a pagar pela coisa seu preço justo.
Esse espírito e prática são muito opostos ao espírito
cristão, e são severamente reprovados pela grande lei do amor,
isto é, que façamos aos outros como queremos que nos
façam.
O assunto que estamos considerando também, 2. Exorta a
todos ao dever de livremente fazer o bem aos outros.
Visto que esse é um dever cristão e uma virtude apropriada
ao evangelho, e para a qual o espírito cristão, se o possuímos,
vai nos dispor, procuremos, enquanto temos oportunidade,
fazer o bem para as almas e os corpos de outros, esforçando-
nos para sermos uma bênção para eles no tempo e na
eternidade. Com esse propósito, estejamos dispostos a fazer,
ou dar, ou sofrer, para que possamos fazer o bem do mesmo
modo a amigos e inimigos, maus e bons, gratos e ingratos.
Que nossa benevolência e beneficência sejam universais,
constantes, livres, habituais, e de acordo com as nossas
oportunidades e capacidades; pois isso é essencial à
verdadeira piedade e exigido pelos mandamentos de Deus! E
aqui várias coisas devem ser consideradas: Em primeiro
lugar, que grande honra é ser feito um instrumento do bem
no mundo! Quando enchemos nossas vidas com a prática do
bem, Deus coloca sobre nós a alta honra de nos tornar uma
bênção para o mundo - uma honra, como a que colocou sobre
Abraão, quando disse: “De ti farei uma grande nação, e te
abençoarei, e te engrandecerei o nome. Sê tu uma bênção!”
(Gênesis 12:2). A própria luz da natureza ensina que essa é
uma grande honra. Portanto, os reis e governantes do Oriente
costumavam assumir para si o título de benfeitores, ou seja,
“executores do bem”, como o mais honrado que podiam
conceber (Lucas 22:25). Era algo comum em terras pagãs que,
quando aqueles que tinham feito uma grande porção de bem
em sua vida morriam, os povos entre os quais eles habitavam
os reputassem como deuses, e construíssem templos em sua
honra e para o seu culto.
No limite em que Deus faz os homens os instrumentos de
fazer o bem para os outros, ele os torna como os corpos
celestes - o sol, a lua e as estrelas, que abençoam o mundo
através do derramamento da sua luz; ele os faz como os anjos,
que são espíritos ministradores para os outros, para o bem
deles. Sim, os faz como ele mesmo, a grande fonte de todo o
bem, que está sempre derramando suas bênçãos sobre a
humanidade.
Em segundo lugar, fazer livremente o bem para os outros,
é tão somente fazer a eles o que gostaríamos que fizessem a
nós.
Se outros têm uma boa vontade sincera para conosco e nos
mostram uma grande porção de bondade; e estão prontos
para nos ajudar quando estamos em necessidade; e se, com
esse propósito, são livres para fazer, ou dar, ou sofrer por nós,
e suportar nossos fardos, e sentir por nós em nossas
calamidades, sendo calorosos e liberais em tudo isso, nós
muito grandemente aprovamos o seu espírito e conduta. E
não apenas aprovamos, mas grandemente recomendamos, e
talvez aproveitemos as ocasiões para falar bem dessas
pessoas, nunca pensando, no entanto, que ultrapassaram o
seu dever, mas que agem como deveriam fazer. Lembremo-
nos, então, que, se isso é tão nobre e digno de ser elogiado em
outros quando somos seus objetos, então devemos fazer o
mesmo para eles e para todos. O que nós assim aprovamos
devemos exemplificar em nossa própria conduta.
Em terceiro lugar, consideremos como Deus e Cristo têm
sido bons para nós, e quanto bem recebemos deles.
A sua bondade nas coisas concernentes a este mundo tem
sido muito grande. As misericórdias divinas se renovam para
nós todas as manhãs e todas as noites: são tão incessantes
como o nosso ser. E coisas boas ainda maiores Deus
concedeu para o nosso bem espiritual e eterno. Deu-nos o que
é de mais valor do que todos os reinos da terra. Deu o seu
Filho unigênito e bem-amado, o maior presente que poderia
dar. E Cristo não apenas fez, mas sofreu grandes coisas, e deu
a si mesmo para morrer por nós; e tudo livremente, sem
murmuração ou esperança de recompensa. “Sendo rico”, com
todas as riquezas do universo, “se fez pobre por amor de vós,
para que, pela sua pobreza, vos tornásseis ricos” (2 Cor. 8:9).
E que grandes coisas Deus tem feito para os que dentre nós
são convertidos e foram trazidos para o lar de Cristo;
libertando-nos do pecado, justificando-nos e santificando-nos,
fazendo-nos reis e sacerdotes para Deus e nos dando um
direito “a uma herança incorruptível, sem mácula,
imarcescível, reservada nos céus para vós outros” (1 Pe 1:4). E
tudo isso quando não éramos bons, mas maus e ingratos, e
merecíamos em nós mesmos apenas a ira.
Em quarto lugar, vamos considerar que grandes
recompensas são prometidas àqueles que livremente fazem o
bem aos outros. Deus prometeu que para “com o benigno,
benigno se mostraria” (Sl 18:25); e não há praticamente
qualquer dever mencionado em toda a Bíblia que tenha tantas
promessas de recompensa como este, seja para este mundo
ou o mundo porvir.
Para este mundo, como nosso Salvador declara: “Mais
bem-aventurado é dar que receber” (At 20:35). Aquele que dá
generosamente é mais abençoado nos dons abundantes que
ele compartilha do que aquele que recebe a recompensa. O
que é oferecido ao fazer o bem aos outros não é perdido,
como se tivesse sido atirado ao mar. É, antes, como nos diz
Salomão (Eclesiastes 11:1), como a semente que os orientais
plantam espalhando-a pelas águas quando vêm as enchentes,
a qual afunda até o leito, e lá se enraíza, e germina, e depois é
encontrada novamente, em abundante colheita. O que assim é
dado é emprestado ao Senhor (Pv 19:17), e o que temos,
portanto, lhe emprestado, ele vai nos pagar novamente. E não
somente irá pagar, mas vai aumentar muito o seu valor.
Porque, se damos, é declarado (Lucas 6:38), que “de boa
medida, recalcada, sacudida, transbordante, generosamente
vos darão”. Na verdade, essa é a maneira de aumentar; pois é
dito (Pv 11:24.) “A quem dá liberalmente, ainda se lhe
acrescenta mais e mais; ao que retém mais do que é justo, ser-
lhe-á em pura perda”, e novamente (Isaías 32: 8) “o liberal
projeta coisas liberais, e pela liberalidade está em pé”.
Até mesmo o que os homens não regenerados dão dessa
forma, Deus muitas vezes parece recompensar com grandes
bênçãos temporais. Sua própria declaração é (Pv 28:27) que
“o que dá ao pobre não terá falta”, e a promessa não se
restringe aos santos. E nossa observação da providência
mostra que os presentes dos homens para os pobres são
quase sempre recompensados por Deus, como a semente que
semeiam no campo. É fácil para Deus compensar e mais do
que compensar a nós todos para que, assim, doemos para o
bem dos outros. É sobre esse tipo de doação, que o apóstolo
diz aos coríntios, que “o que semeia com abundância, com
abundância ceifará”, acrescentando que “Deus ama ao que dá
com alegria”, e que ele “pode fazer-vos abundar em toda
graça” (2 Co 9:6-8), isto é, fazer com que todos as suas
dádivas abundem para eles mesmos.
Muitas pessoas pouco consideram o quanto a sua
prosperidade depende da providência. E, no entanto, mesmo
para este mundo, é “a bênção de Deus que enriquece” (Pv
10:22); e daquele que tem consideração pelo pobre está
escrito, que “o Senhor o livrará no dia do mal” (Sl. 41:1). E se
dermos na forma e com o espírito da caridade cristã,
devemos, portanto, ajuntar tesouros no céu, e receber
finalmente as recompensas da eternidade. Isso é aquele
entesourar que não falha, do qual Cristo fala (Lucas 0:33), e
com relação ao qual declara que, apesar de os pobres a quem
beneficiamos não poderem nos recompensar, “seremos
recompensados na ressureição dos justos” (Lucas 14:13, 14).
Esta, então, é a melhor maneira de dispor para nós mesmos
no tempo ou para a eternidade. É a melhor maneira de dispor
para nós mesmos, e a melhor maneira de dispor para nossa
posteridade; pois do homem bom, que mostra favor e
empresta, está escrito que “o seu poder se exaltará em glória”,
e que “a sua descendência será poderosa na terra; será
abençoada a geração dos justos. Na sua casa há prosperidade
e riqueza, e a sua justiça permanece para sempre” (Sl 112).
E quando Cristo vier para o julgamento, e todas as pessoas
forem reunidas diante dele, em seguida, para aqueles que
foram gentis e benevolentes, no verdadeiro espírito do amor
cristão, para com os sofredores e pobres, deve dizer: “Vinde,
benditos de meu Pai! Entrai na posse do reino que vos está
preparado desde a fundação do mundo. Porque tive fome, e
me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era
forasteiro, e me hospedastes; estava nu, e me vestistes;
enfermo, e me visitastes; preso, e fostes ver-me”; “Em
verdade vos afirmo que, sempre que o fizestes a um destes
meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes” (Mt 25: 34-36,
40).
CAPÍTULO 6

A CARIDADE É INCONSISTENTE COM UM ESPÍRITO INVEJOSO

“A caridade não é invejosa.”


1 Coríntios 13:4

D epois de já ter visto a natureza


e tendência da caridade cristã,
ou amor divino, com respeito
ao mal recebido de outros, que é “longânima”; e também, no
que diz respeito a fazer o bem aos outros, que “é benigna”,
chegamos agora aos sentimentos e condutas a que a mesma
caridade nos guiará em relação ao bem que os outros
possuem e os que nós mesmos possuímos.
Em relação ao bem em posse dos outros, o apóstolo
declara que é a natureza e tendência da caridade, ou do
verdadeiro amor cristão, não os invejar pela posse de qualquer
bem que tenham, pois: “A caridade não é invejosa”. O ensino
dessas palavras claramente é:
A CARIDADE, OU UM ESPÍRITO
VERDADEIRAMENTE CRISTÃO, É O EXATO OPOSTO
DE UM ESPÍRITO INVEJOSO.
Ao abordar esse pensamento, irei mostrar: 1. qual é a
natureza de um espírito invejoso; 2. em que um espírito
cristão se opõe a ele; e, 3. a razão e evidência da doutrina.
I. A natureza da inveja.
A inveja pode ser definida como sendo um estado de
insatisfação e de oposição à prosperidade e felicidade dos
outros, em comparação com a nossa. O que a pessoa invejosa
se opõe e desgosta é a superioridade comparativa do estado
de honra, prosperidade ou felicidade que outro possa
desfrutar com aquilo que possui. E esse espírito é
especialmente chamado inveja quando não gostamos e nos
opomos à honra ou prosperidade do outro porque, em geral, é
maior do que a nossa, ou porque, em particular, eles tenham
alguma honra ou prazer que não temos.
É uma disposição natural nas pessoas que amem a posição
de superioridade, e essa disposição é diretamente contrariada
quando veem outros acima delas. É devido a esse espírito que
as pessoas desgostam e se opõem à prosperidade dos outros,
porque acham que ela torna aqueles que a possuem
superiores, em algum aspecto, a elas próprias. Devido a essa
mesma disposição, uma pessoa pode não gostar se outra for
igual a ela em honra ou em felicidade, ou em ter as mesmas
fontes de prazeres que ela tem. Pois como é muito comum
aos homens, não podem suportar um rival que lhes seja
superior, se é que podem suportar algum, pois amam ser
singulares e únicos em sua eminência e progresso.
Isso é chamado de inveja nas Escrituras. Assim, Moisés
fala da inveja de Josué por sua causa, quando Eldade e
Medade foram admitidos ao mesmo privilégio que o dele, ao
lhes ser concedido o espírito de profecia, dizendo: “Tens tu
ciúmes por mim? Quem dera que todo o povo do Senhor
fosse profeta, e que o Senhor pusesse o seu Espírito sobre
eles!” (Nm 11:29). E somos informados que os irmãos de José
o invejaram quando ouviram o seu sonho, que insinuava que
seus pais e irmãos ainda iriam se curvar diante dele, e que teria
proeminência sobre eles (Gn 37:11). Devido a esse espírito, as
pessoas não apenas se indispõem a que as outras estejam
acima delas ou lhes sejam iguais, mas que até mesmo se
aproximem delas. Pois o desejo de ser distinguido na
prosperidade e honra é ainda mais satisfeito na exata
proporção em que são exaltadas e que os outros estejam
debaixo delas, de modo que sua eminência comparativa possa
ser notável e visível a todos.
E essa disposição pode ser exercida, seja em referência à
prosperidade que os outros possam obter e de que são
capazes, ou em referência ao que eles realmente tenham
obtido. Na última forma, que é a mais comum, o sentimento
de inveja se manifestará em dois aspectos: em primeiro lugar,
no que diz respeito à sua prosperidade, e, em seguida, em
relação a eles mesmos.
1. Ele irá se manifestar em um mal-estar e insatisfação
com a prosperidade dos outros.
Em vez de sentir alegria na prosperidade alheia, a pessoa
invejosa ficará incomodada com ela. Será um agravo ao seu
espírito vê-los subir tão alto e alcançar essas honrarias e
proeminências. Não lhe é um sentimento confortável ouvir
que tenham obtido essas e aquelas vantagens, e honras, e
preferência, mas, pelo contrário, isso lhe é sobremodo
desagradável. Ela tem muito mais o espírito de Hamã, que, à
vista de toda “a glória de suas riquezas, a multidão de seus
filhos, e todas as coisas em que o rei o tinha engrandecido”,
ainda podia dizer: “Porém tudo isto não me satisfaz, enquanto
vir o judeu Mordecai assentado à porta do rei” (Et 5.13).
Devido a esse espírito, a pessoa invejosa está pronta a
alegrar-se com tudo o que acontece que diminua a honra e o
conforto dos outros. Ela tem prazer em vê-los rebaixados, e
até mesmo planejará sobre como proceder para reduzir a
propriedade deles, como fez Hamã para humilhar e derrubar
Mordecai. E, muitas vezes, como Hamã, ela vai mostrar o seu
mal-estar não somente com planejamento e intrigas, mas por
esforços reais de um tipo ou outro para derrubá-los. Terá
prazer em abraçar a primeira oportunidade que se oferecer de
puxá-los para baixo. E é devido a essa disposição que até
mesmo a visão da prosperidade dos outros muitas vezes
incentiva o invejoso a falar contra eles e a maldizê-los, mesmo
quando talvez nem o conheçam. Invejando-lhes a importância
que tenham obtido, esperam que falando mal deles, em
alguma medida, diminuam suas honras, e reduzam-nos na
estima dos homens. Isso sugere, uma vez mais,
2. Que a oposição dos invejosos à prosperidade dos outros
vai se manifestar, por esse motivo, em uma antipatia por
suas pessoas.
Vendo como os outros prosperam e as honras que
alcançam, o invejoso os antipatiza e até mesmo os odeia, por
conta dessa honra e prosperidade. Ele entretém e acalenta um
espírito maligno direcionado a eles, sem que haja nenhuma
razão senão o fato de que tenham prosperado. Está
amargurado contra eles em espírito, unicamente porque são
eminentes em nome ou fortuna. Assim diz-se de Hamã que
“estava cheio de indignação contra Mordecai”, porque o viu
“à porta do rei”, e porque “ele não se levantava nem tremia
diante dele” (Est 5:9). E os irmãos de José “odiavam-no, e não
podiam falar com ele pacificamente”, porque seu pai o amava,
e quando ele tinha um sonho que implicava a inferioridade
deles “eles o odiaram ainda mais” (Gn 37:4,5).
Assim, os invejosos geralmente se ressentem da
prosperidade dos outros e das honras que recebem, como se
nisso fossem culpados de alguma injúria contra eles. Às
vezes, há um ódio firmado no coração contra os outros por
esse motivo, levando-os, como no caso dos irmãos de José
(Gn 37.19-28), a atos de grande crueldade e impiedade. Mas o
que foi dito deve ser suficiente para expor a natureza da
inveja. Agora prossigo para mostrar,
II. Em que um espírito cristão se opõe a esse da inveja.
1. Um espírito cristão desaprova o exercício e expressões
deste ânimo invejoso.
Aquele que, no curso de sua vida e ações, é influenciado
por princípios cristãos, ainda que tenha inveja, bem como
outros sentimentos corruptos em seu coração, irá, não
obstante, aborrecer esse espírito como indigno em si, como
cristão, e contrário à natureza, vontade e espírito de Deus. Ele
o vê como algo muito odioso e abominável, e vê sua
odiosidade não apenas nos outros, mas também, e
igualmente, em si mesmo. Portanto, tão logo perceba essas
emoções surgindo dentro de si, em qualquer ocasião, ou em
relação a qualquer pessoa, até onde for influenciado por um
espírito cristão, ficará alarmado com isso, lutará e não
permitirá seu exercício sequer por um instante. Não permitirá
que irrompa e se mostre em palavras ou ações; ficará aflito
com qualquer dos movimentos que veja em seu coração,
crucificará dentre de si a disposição odiosa, e fará tudo em seu
poder para ir no sentido contrário a ela nas suas ações
exteriores.
2. Um espírito cristão não apenas se opõe ao exercício e
expressões exteriores de um ânimo invejoso, mas tende a
mortificar sua fonte e disposição no coração.
Na proporção em que um espírito cristão prevalece, não
apenas restringe as ações exteriores da inveja, mas tende a
mortificar e subjugar o próprio princípio no coração; de modo
que, na exata proporção do poder daquele espírito, o
indivíduo cessará de sentir qualquer inclinação a se afligir com
a prosperidade dos outros, e cessará ainda mais de aborrecê-
los, ou acalentar qualquer má disposição para com eles por
esse motivo.
Um espírito cristão nos dispõe a sentir contentamento com
nossa própria condição e com a posição em que Deus nos
colocou entre os homens; a uma quietude e satisfação de
espírito com relação às porções e distribuições de posições e
posses que Deus, na sua sabedoria e bondosa providência, fez
para nós e para os outros. Seja nossa posição tão elevada
quanto a dos anjos ou tão baixa quanto a dos mendigos à
porta do homem rico (Lc 16.20), devemos igualmente estar
satisfeitos com ela, como o posto no qual Deus nos colocou, e
devemos igualmente resguardar a nós mesmos se estivermos
nos esforçando fielmente para servi-lo por meio dela. Como o
apóstolo, devemos aprender, se tão somente tivermos um
espírito cristão, “a estar contentes em toda e qualquer
situação” (Fl 4.11).
3. Mas um espírito cristão não apenas desaprova o
exercício e expressão da inveja, e tende a mortificar sua fonte
e disposição no coração, mas também nos dispõe a regozijar-
nos na prosperidade dos outros.
Dispõe-nos a uma alegre e habitual observância daquela
regra dada pelo apóstolo: “Alegrai-vos com os que se alegram
e chorai com os que choram” (Rm 12.10), isto é, que
simpatizemos com suas posições e condição, como se no
espírito sentíssemos que é a nossa própria. Tal benevolência e
boa vontade lançará fora o espírito maligno da inveja e nos
capacitará a encontrar a felicidade ao ver nosso vizinho
prosperar.
Agora prossigo para mostrar,
III. A razão e evidência da doutrina enunciada; ou
mostrar que assim é, e por que assim é, que um espírito
cristão desse modo se opõe ao espírito da inveja.
E isso se afigurará se considerarmos três coisas: primeiro,
o quanto um espírito e prática contrários a um ânimo invejoso
são insistidos nos preceitos que Cristo deu; segundo, o
quanto a história e doutrinas do evangelho proclamam para
reforçar esses preceitos; e, terceiro, o quanto um espírito de
amor cristão nos disporá a submetermo-nos à autoridade
desses preceitos e à influência dos motivos que o reforçam.
1. Um espírito e prática inteiramente contrários a um
ânimo invejoso são muitos insistidos nos preceitos de
Cristo.
O Novo Testamento está cheio de preceitos de boa vontade
para com os outros, e de preceitos ordenando os princípios da
mansidão, humildade e beneficência, os quais são todos
opostos a um ânimo invejoso. Em adição a esses, temos
muitos avisos específicos contra a inveja em si.
O apóstolo exorta que “andemos honestamente, como de
dia, não em contendas e inveja” (Rm 13.13); e novamente
culpa os coríntios por ainda serem carnais, porque havia
inveja entre eles (1 Co 3.3); e, de novo, menciona seus
temores quanto a eles, de que não encontrasse entre eles
invejas, e isso também em conexão, como a inveja
geralmente está, com “contendas, iras, porfias, detrações,
intrigas, orgulho e tumultos” (2 Co 12.20). Em Gálatas 5.21, a
inveja é classificada entre as obras abomináveis da carne, tais
como “homicídios, bebedices, glutonarias”. Em 1 Timóteo
6.4, é condenada como algo que evidencia grande impiedade.
Novamente, em Tito 3.3, é mencionada como um dos pecados
odiosos em que viviam os cristãos antes da conversão, mas
dos quais agora foram redimidos, e que, portanto, devem
confessar e abandonar. E, no mesmo espírito, o apóstolo
Tiago (3.14,16) fala da inveja como demasiadamente contrária
ao cristianismo, e como conectada com toda obra maligna,
sendo terrena, sensual, diabólica; e nos adverte contra ela
dizendo: “Irmãos, não vos queixeis uns dos outros, para não
serdes julgados. Eis que o juiz está às portas” (5.9). Para citar
ainda outro exemplo, o apóstolo Pedro nos avisa contra toda
inveja, como conectada com vários males, e como obstáculo
ao nosso crescimento nas coisas divinas (1 Pe 2.1,2).
Vemos assim que o Novo Testamento está cheio de
preceitos que Cristo nos deixou, que ordenam o exato oposto
do espírito da inveja. E esses preceitos,
2. São fortemente reforçados pelas doutrinas e história
do evangelho.
Se considerarmos o esquema cristão de doutrina,
descobriremos que ele tende fortemente a reforçar os
preceitos que consideramos; pois todo ele, do início ao fim,
tende fortemente em direção contrária a de um espírito
invejoso. Em todas as suas atitudes e ensinos, a forma cristã
de doutrina milita contra um espírito invejoso. As coisas que
ensina relativamente a Deus são totalmente contrárias àquele
espírito, pois nele ouvimos o quão distante Deus estava de
nos dar, de má vontade, nossa maior honra e benção, e como
ele nada nos recusou como se nos fosse excessivo, ou grande
ou bom demais para nos ser dado. Não nos deu de má
vontade seu Filho unigênito e bem-amado, que lhe era mais
caro do que tudo; nem nos deu de má vontade a mais alta
honra e benção em e por ele.
As doutrinas do evangelho também nos ensinam como
Cristo esteve distante de nos conceder de má vontade
qualquer coisa que pudesse fazer por nós ou nos dar. Não foi
de má vontade que nos ofereceu uma vida gasta no labor e
sofrimento, ou seu próprio sangue precioso, o qual derramou
por nós na cruz; nem nos dará de má vontade um trono de
glória consigo nos céus, onde devemos viver e reinar com ele
para sempre.
O sistema cristão de doutrina nos ensina como Cristo veio
ao mundo para nos libertar do poder da inveja que nos tinha
Satanás; pois o diabo, com miserável vileza, invejava a
felicidade que teve, no princípio, a humanidade, e não podia
tolerar vê-los em seu feliz estado no Éden. Portanto, esforçou-
se ao máximo para a sua ruína, a qual acabou efetuando. E o
evangelho também ensina como Cristo veio ao mundo para
destruir as obras do diabo, e nos libertar daquela miséria a que
a inveja deste nos trouxe, e para purificar nossas naturezas de
todo traço desse mesmo espírito, para que fôssemos aptos
para o céu.
E se, em adição à doutrina do evangelho, considerarmos a
sua história, descobriremos que também esta tende
grandemente a reforçar aqueles preceitos que proíbem a
inveja. E isso é particularmente verdadeiro na história da vida
de Cristo e no exemplo que nos apresentou. Como ele estava
longe de um ânimo invejoso! Como estava contente nas
humildes e aflitas circunstâncias a que voluntariamente se
colocou por nossa causa! E como estava distante de invejar
aqueles que tinham riqueza e honra mundanas, ou cobiçar
suas condições! Ele, ao contrário, escolheu continuar em seu
próprio estado rebaixado; e quando a multidão, cheia de
admiração com seu ensino e milagres, em uma ocasião estava
pronta para fazer dele um rei, recusou a alta honra que
pretendiam impor sobre si e retirou-se do meio deles (Jo 6.15),
indo para uma montanha, sozinho.
Quando João Batista foi tão grandemente honrado pelo
povo, como um distinto profeta, e toda a Judeia e Jerusalém
saía para ouvi-lo e ser por ele batizada, Cristo não o invejou,
mas ele próprio saiu para ser batizado no Jordão, embora
fosse senhor e mestre de João, e este, como testificou ele
próprio, tivesse necessidade de ser batizado por Cristo. Tão
longe esteve de oferecer de má vontade aos seus discípulos
quaisquer honras ou privilégios como grandes demais para
eles, que lhes disse e prometeu (Jo 14.12) que, após a sua
morte e ascensão, fariam maiores obras do que tinha feito
enquanto permanecera com eles. E, como descobrimos nos
Atos dos Apóstolos, tudo o que predissera, em pouco tempo,
se tornou realidade.
3. O verdadeiro espírito do amor cristão nos disporá a
submeter-nos à autoridade desses preceitos e à influência
dos motivos que os reforçam.
O espírito do amor nos disporá a isso diretamente, por sua
tendência imediata, e indiretamente, no que ensina e nos leva
à humildade.
Primeiro, o amor cristão nos dispõe a ouvir os preceitos
que proíbem a inveja, e as razões evangélicas contra ela, por
sua própria tendência imediata. A natureza da caridade ou
amor cristão aos homens é diretamente contrária à inveja, pois
o amor não inveja, mas se regozija com o bem daqueles que
são amados. Certamente, o amor ao nosso próximo não nos
dispõe a odiá-lo por sua prosperidade ou ficarmos infelizes
com o seu bem. E o amor a Deus também tem uma tendência
direta a nos influenciar a obedecer a seus mandamentos. O
fruto natural, genuíno e uniforme do amor a Deus é a
obediência; portanto, ele tenderá à obediência àqueles
mandamentos pelos quais proíbe a inveja, bem como aos
demais. Sim, a eles mais especialmente, pois o amor a
nenhum mandamento se deleita em obedecer mais do que aos
que requerem o amor. Assim, o amor a Deus nos disporá a
seguir seu exemplo, no que ele não nos negou suas múltiplas
bênçãos, mas se regozijou no nosso prazer; e nos disporá a
imitar o exemplo de Cristo, em não dar de má vontade sua
vida por nossa causa, e a imitar o exemplo que nos apresentou
durante toda a sua vida na terra.
Segundo, um espírito de amor cristão dispõe ao mesmo,
também indiretamente, inclinando-nos à humildade. É o
orgulho que é a maior raiz e fonte da inveja. É devido ao
orgulho no coração das pessoas que elas têm tamanho desejo
de se distinguirem e ser superiores a todas os outros em honra
e prosperidade, e que as torna tão inquietas e insatisfeitas em
ver os outros acima de si. Mas um espírito de amor tende a
mortificar o orgulho e a trabalhar a humildade no coração.
O amor a Deus tende nessa direção, uma vez que implica
um senso da excelência infinita de Deus, e, portanto, tende a
um senso de nossa nulidade e indignidade comparativas
[diante dele]. O amor aos homens tende a uma conduta
humilde entre eles, uma vez que nos dispõe a reconhecer a
excelência das outras pessoas, e que as honras que lhes são
concedidas são justas, e a estimá-las melhor do que a nós
mesmos, e assim mais merecedoras de distinção do que nós
somos. Mas agora não me demorarei particularmente nesse
ponto, pois, num discurso futuro terei ocasião para mostrar
mais plenamente como o amor cristão tende à humildade.
APLICAÇÃO
Passando, então, em conclusão, à aplicação do assunto,
observo:
1. Ele deveria nos levar ao autoexame, quanto a se
estamos em algum grau sob a influência de um espírito
invejoso.
Examinemo-nos quanto ao tempo passado e olhemos
nossa conduta passada em meio às pessoas. Muitos de nós
somos há muito tempo membros da sociedade humana,
vivendo às custas dos outros e tendo que lidar com eles de
muitas maneiras. Estamos conectados com eles em muitas
ocasiões, tanto em assuntos públicos quanto privados. Temos
visto outros prosperando e pode ser que tenham prosperado
mais em seus negócios do que nós mesmos.
Eles tiveram mais do mundo, possuíram maiores riquezas e
viveram com mais tranquilidade e em circunstâncias muito
mais favoráveis do que desfrutamos. É possível que vejamos
alguns dos que, até aqui, costumávamos encarar como nossos
iguais, ou até mesmo inferiores, prosperando em riquezas, ou
avançando em honra e prosperidade, enquanto fomos
deixados para trás. Até agora, eles alcançaram um estado
muito superior ao nosso próprio.
É possível que tenhamos visto muitas mudanças, e
tenhamos sido chamados a suportar enormes provações,
durante grande parte do curso de nossa vida; e, certamente,
temos visto outros abundando em tudo o que mundo estima
como de valor, enquanto temos sido, em comparação com
eles, destituídos dessas coisas. Questionemo-nos, agora,
como essas coisas nos afetaram, e como permaneceram
nossos corações, e qual foi nossa conduta nessas
circunstâncias. Não terá havido um grande grau de sentimento
de insatisfação, inquietação e desconforto; um desejo de ver
aqueles que prosperaram caírem? Não ficamos felizes em
ouvir qualquer coisa que tenha ocorrido para a desvantagem
deles? Nos presságios que expressamos sobre eles, não
estivemos, na verdade, a proferir nossos desejos? Em palavra
ou obra não estivemos prontos a fazer aquilo que poderia, por
algum motivo, diminuir sua prosperidade ou honra? Alguma
vez já acalentamos um espírito amargo ou maldoso contra
alguém por causa de sua prosperidade, ou estivemos prontos,
por esse motivo, a encará-lo com um olho mau, ou a nos opor
a ele nos assuntos públicos? Ou, devido a um espírito
invejoso, a alinhar-nos com quem se opõe a ele? Quando
olhamos de volta para o passado, não vemos isso nessas e em
muitas outras coisas semelhantes em que, com frequência,
exercitamos e permitimos um espírito invejoso; e, muitas
vezes, nossos corações não ficaram em chamas devido à
inveja dos outros?
Voltando do passado para o presente, que espírito você
encontra agora, quando perscruta seu coração? Você carrega
qualquer inveja antiga em seu coração contra este ou aquele
homem que vê sentando com você de Sabbath[12] a Sabbath
na casa de Deus, e de tempos em tempos à mesa do Senhor?
Você não considera a prosperidade de um ou outro
desagradável? O fato de que estão mais elevados do que você
não torna sua vida desagradável? Não lhe seria um verdadeiro
conforto vê-los em queda, para que a queda e abatimento
deles fossem uma fonte de alegria e júbilo interior em seu
coração? Esse mesmo espírito não lhe levou, com frequência,
a pensar mal ou falar com desprezo, indelicadeza ou
severidade dos tais para aqueles a sua volta?
E que aqueles que estão acima dos outros em prosperidade
questionem se não permitem e exercitam um espírito de
oposição à felicidade comparativa daqueles abaixo de si.
Acaso há em você uma disposição para a vanglória por estar
acima deles, e um desejo de que não subam mais alto, para
que não venham a igualá-lo ou sobrepujá-lo? Por esse motivo
você não está disposto a vê-los cair, e até mesmo a ajudar ao
máximo na sua queda, para que não venham em algum tempo
a porventura estar acima de você? Isso tudo não mostra que
você se encontra excessivamente preso à influência de um
espírito invejoso?
Mas pode ser que nisso tudo você se justifique ao não dar
o nome de inveja, mas algum outro nome, e tendo várias
desculpas para seu espírito invejoso pelo que você se
considera justificado na sua prática. Alguns se prontificam em
dizer que os outros não são dignos da honra e prosperidade
que possuem; que não têm nem metade da aptidão e
dignidade da honra e prosperidade que possuem, como
muitos outros de seus semelhantes que estão abaixo deles.
Onde, pergunto, está o homem no mundo que inveja outro
por sua honra ou prosperidade, que não esteja pronto a pensar
ou dizer que esse outro não é digno de sua prosperidade ou
honras? Os irmãos de José o consideraram digno do amor
peculiar que seu pai lhe tinha? Hamã achava Mordecai digno
da honra que o rei lhe conferia? Ou os judeus pensavam que
os gentios fossem dignos dos privilégios estendidos a eles sob
o evangelho, quando estavam tão cheios de inveja por esse
motivo, como relatado nos Atos dos Apóstolos (13.45; 17.5)?
É geralmente o caso que, quando outros são promovidos
em sua honra, ou, por qualquer outro aspecto, chegam a uma
prosperidade notável, alguns estão sempre prontos a
aproveitar-se da ocasião para referir sobre suas faltas, e
apresentar sua indignidade e remexer todo mal possível a
respeito deles. O fato é que não se trata tanto de suas faltas,
uma vez que essas passariam desapercebidas se estivessem na
obscuridade; mas é que eles prosperaram, e aqueles que falam
sobre suas faltas são invejosos de sua prosperidade, e,
portanto, falam contra eles.
Desejaria que essas pessoas que pensam que estão
justificadas na sua oposição aos outros, porque estes não
seriam dignos de sua prosperidade, diligentemente
inquirissem o que é que as magoa e perturba tanto: se as faltas
dos seus semelhantes ou sua prosperidade. Se for suas faltas,
então você se afligiria por causa delas quer fossem pessoas
prósperas ou não. Se verdadeiramente aflito com suas faltas,
então você seria muito cauteloso em falar deles exceto para os
próprios, e, ainda assim, no verdadeiro espírito da compaixão
e da amizade cristã.
Mas você pode dizer que eles fazem um mau uso de sua
prosperidade e honra; que eles se exaltam por isso, e não
conseguem suportar ou não sabem como lidar com ela; que
são insuportáveis e desdenhosos, e não há o que lhes fazer na
sua prosperidade; que seria melhor se caíssem, uma vez que
isso tenderia a humilhá-los; que a melhor coisa, para o próprio
bem deles, é traze-los ao seu devido lugar e ao que lhes é mais
adequado. Mas, nesse ponto, permita-me instá-los a
investigarem minuciosamente quanto a se vocês, na verdade,
estão a lamentar o dano que a prosperidade deles lhes causa, e
se lamentam por causa deles e por que os amam. Suas
lamentações provêm da piedade ou da inveja? Se vocês
desgostam de sua prosperidade por que não lhes é o melhor,
mas os prejudica, então vocês se afligirão com suas
calamidades e não com sua prosperidade. Você sinceramente
os amará; e, devido a esse amor, estará sinceramente triste por
sua calamidade e sentirá uma verdadeira compaixão de
coração por eles, pelo fato de que as desvantagens de seu
próspero estado são tão maiores do que as vantagens. Mas é
esse na verdade seu real sentimento? Não engane a si mesmo.
É com a calamidade deles que você se aflige, ou é meramente
por que prosperam? Você se aflige por eles, porque sua
prosperidade lhes prejudica, ou por você mesmo, que a
prosperidade deles não é sua?
E, nesse ponto, que todos também investiguem se não
invejam os outros pela sua prosperidade espiritual. Lembre-se
qual foi o espírito de Caim com relação a Abel, da semente da
serpente com relação à semente da mulher, de Ismael com
relação a Isaque, dos judeus em relação a Cristo, do irmão
mais velho com relação ao pródigo. Cuide para que não
acalente esse espírito; mas, ao contrário, regozije-se no bom
estado dos outros, tanto quanto se fosse o seu próprio.
2. O assunto também nos exorta a desaprovar e descartar
qualquer coisa que se aproxime de um espírito invejoso.
Tão contrário é um espírito de inveja ao espírito cristão, tão
maligno em si, e tão prejudicial aos outros, que deveria ser
reprovado e descartado por todos, especialmente por aqueles
que professam ser cristãos. Numerosas pessoas acalentam a
esperança de que esse é seu caráter, e que foram agraciadas
com um novo espírito, justamente o espírito de Cristo. Que
seja então evidente a todos que esse é o seu espírito pelo
exercício dessa caridade que não inveja. Na linguagem do
Apóstolo: “Quem entre vós é sábio e inteligente? Mostre em
mansidão de sabedoria, mediante condigno proceder, as suas
obras. Se, pelo contrário, tendes em vosso coração inveja
amargurada e sentimento faccioso, nem vos glorieis disso,
nem mintais contra a verdade. Esta não é a sabedoria que
desce lá do alto; antes, é terrena, animal e demoníaca. Pois,
onde há inveja e sentimento faccioso, aí há confusão e toda
espécie de coisas ruins” (Tg 3.13-16).
A inveja é o exato oposto do espírito do céu, onde todos se
regozijam na felicidade dos outros; e é o exato espírito do
próprio inferno, que é muito odioso, que se alimenta da ruína
da prosperidade e felicidade dos outros, razão pela qual alguns
compararam os invejosos às lagartas, que muito se deleitam
em devorar as mais exuberantes árvores e plantas. Assim
como uma disposição invejosa é muito odiosa em si mesma,
também é muito desconfortável e intranquila para seu
possuidor. Como é a disposição do diabo e dos que
compartilham sua semelhança, também é a disposição do
inferno e dos participantes de sua miséria. Na forte linguagem
de Salomão: “O ânimo sereno é a vida do corpo, mas a inveja
é a podridão dos ossos” (Pv 19.30).
A inveja é como um câncer poderoso e consumidor,
devorando os órgãos vitais, é ofensiva e cheia de corrupção. É
a mais tola maneira de se prejudicar; pois o invejoso perturba
desnecessariamente a si mesmo, sentindo-se desconfortável
apenas por causa da prosperidade alheia, quando essa
prosperidade não lhe prejudica, nem diminui seus prazeres e
bênçãos. Mas não estão dispostos a aproveitar o que têm, por
que outros também o estão desfrutando.
Então, que a consideração da tolice, infâmia e abjeção
desse espírito tão ímpio nos leve a abominá-lo e a nos
esquivar de suas escusas, e sinceramente buscar o espírito do
amor cristão, esse excelente espírito da caridade divina que
nos levará sempre a regozijar-nos com o bem-estar dos
outros, e que encherá nossos corações com felicidade. Esse
amor “é de Deus” (1 Jo 4.7); e aquele que habita nele “habita
em Deus, e Deus nele” (1 Jo 4.16).
CAPÍTULO 7

O ESPÍRITO DA CARIDADE É UM ESPÍRITO


HUMILDE

“A caridade não se ufana, não se ensoberbece, não se


conduz inconvenientemente.”
1 Coríntios 13.4,5

H avendo mostrado a natureza e


tendência da caridade, ou
amor cristão, com respeito à
maneira como respondemos aos danos e como devemos fazer
o bem aos outros, isto é, que ela “é sofredora e é benigna”; e
também com respeito ao bem que os outros possuem
comparados com os que possuímos, que a caridade “não
inveja”; o apóstolo agora prossegue para mostrar que, em
relação ao que nós mesmos podemos ser ou ter, a caridade
não se orgulha; que ela “não se ufana, não se ensoberbece,
não se conduz inconvenientemente”. Assim como, por um
lado, nos impede de invejar o que os outros possuem, por
outro, nos impede de nos gloriar naquilo que nós mesmos
possuímos.
Paulo acabara de declarar que a caridade era contrária a um
espírito invejoso; agora declara que é igualmente oposta
àquele espírito que especialmente provoca os homens à inveja
e pelo qual frequentemente afetam ou se escusam por
invejarem os outros, qual seja, que os outros se exibem com
sua honra e prosperidade e se gabam com as coisas que
possuem. Quando as pessoas obtiveram a prosperidade ou se
avantajaram, e os outros observam que elas se exibem e se
jactanciam nela, isso tende a provocar a inveja e a tornar os
demais inquietos à vista de sua prosperidade.
Mas se alguém tem prosperidade ou vantagem e, não
obstante isso, não se vangloria nem se conduz de modo
inconveniente por esse motivo, isso tende a reconciliar os
outros às suas altas circunstâncias, e deixá-los satisfeitos com
o aproveitamento de sua posição. Como já observado,
quando as pessoas invejam as outros, são inclinadas a se
desculpar e justificar em assim agir pela pretensão de que
estas não fazem bom uso de sua prosperidade, mas se
orgulham e envaidecem por causa dela. Mas o apóstolo
mostra como o amor cristão, ou caridade, tende a fazer com
que todos se conduzam adequadamente com sua condição,
seja ela qual for. Se for inferior à de outrem, a não os invejar;
se superior, a não se orgulhar nem envaidecer com a
prosperidade.
Nas palavras do texto podemos observar que um espírito
de amor cristão é referido como oposto a um espírito
orgulhoso, e que dois graus dessa conduta são mencionados.
O grau mais elevado é expresso por alguém que “se
ufana”, ou seja, que se conduz de tal maneira que chega a
mostrar claramente que se gloria naquilo que tem ou é. O grau
inferior é expresso por alguém que “se conduz
inconvenientemente”, ou seja, que não se conduz de modo
conveniente e decente no aproveitamento de sua
prosperidade, mas agindo de tal maneira que chega a mostrar
que pensa que o mero fato de ser próspero o exalta acima dos
outros. E o espírito da caridade ou amor é referido como
oposto não apenas a uma conduta orgulhosa, mas a um
espírito orgulhoso, ou orgulho no coração, pois a caridade
“não se ensoberbece”. A doutrina que somos ensinados,
então, nessas palavras é esta: O ESPÍRITO DA CARIDADE,
OU AMOR CRISTÃO, É UM ESPÍRITO HUMILDE.
Ao falar dessa doutrina, mostrarei, 1. O que é a humildade;
e, 2. Como um espírito cristão, ou espírito de caridade, é um
espírito humilde.
I. Mostrarei o que é a humildade.
A humildade pode ser definida como um hábito da mente e
do coração que corresponde à nossa indignidade e vileza
comparativa diante de Deus, ou a um senso de nossa própria
insignificância comparativa à sua vista, em conjunto com a
disposição a se adotar a conduta correspondente a esse hábito.
Ela consiste em parte no entendimento ou no pensamento e
conhecimento que temos de nós mesmos; em parte na
vontade; em parte no senso ou estima que temos de nós
mesmos; e em parte na disposição que temos de nos conduzir
conforme esse senso ou estima. E a primeira coisa na
humildade é: 1. Um senso de nossa inferioridade
comparativa.
Digo inferioridade comparativa porque a humildade é uma
graça própria de seres que são gloriosos e excelentes em
muitos aspectos. Assim os santos e anjos no céu são
excelentes em humildade; e esta é apropriada e adequada
neles, embora sejam seres puros, imaculados e gloriosos,
perfeitos em santidade e excelentes em mente e força. Mas,
embora sejam assim gloriosos, contudo têm inferioridade
comparativa diante de Deus, do que estão sensíveis; pois é
dito que ele “se inclina[13], para ver o que está nos céus e na
terra” (Sl 113.6).
Semelhantemente, o homem Jesus Cristo, que é a mais
excelente e gloriosa de todas as criaturas[14], é, porém, manso
e humilde de coração e excede a todos os outros seres em
humildade. Esta é uma das excelências de Cristo, porque ele
não é apenas Deus, mas homem, e, como homem, era
humilde. Pois a humildade não é e não pode ser um atributo
da natureza divina. A natureza de Deus é de fato infinitamente
oposta ao orgulho, e, ainda assim, a humildade não pode ser
propriamente predicada a ele; pois, se pudesse, seria evidência
de imperfeição, a qual é impossível em Deus. Deus, que é
infinito em excelência e glória, e infinitamente acima de todas
as coisas, não pode ter qualquer inferioridade comparativa, e
obviamente não pode ter qualquer tipo de inferioridade
comparativa a que esteja sensível; portanto, não pode ser
humilde. Mas a humildade é uma excelência apropriada a
todos os seres inteligentes criados, pois eles todos são
infinitamente pequenos e inferiores diante de Deus, e muitos
deles são, de alguma forma, inferiores e humildes em
comparação com alguns de seus semelhantes.
A humildade implica a observância daquela regra
apostólica de que não pensemos de nós mesmos mais do que
convém, mas que pensemos sobriamente, não somente
conforme a medida de fé, mas de outras coisas (Rm 12.3). E
essa humildade, como uma virtude nos homens, implica em
um senso de sua inferioridade comparativa, tanto em relação a
Deus como em relação aos seus semelhantes.
Em primeiro lugar, no que primária e principalmente
consiste a humildade é em um senso de nossa inferioridade
quando comparados a Deus, ou um senso da distância
infinita que há entre ele e nós mesmos. Somos criatura
pequenas e desprezíveis, verdadeiros vermes do pó, e
devemos sentir que somos como nada e menos do que nada
em comparação com a majestade do céu e terra. Foi esse
senso de nulidade que Abraão expressou quando disse: “Eis
que me atrevo a falar ao Senhor, eu que sou pó e cinza” (Gn
18:27). Não há humildade verdadeira sem algo dessa
disposição; pois, por mais que possamos estar sensíveis de
nossa inferioridade quando comparados a alguns de nossos
semelhantes, não somos verdadeiramente humildes, a menos
que tenhamos um senso de nossa nulidade quando
comparados a Deus.
Alguns têm um pensamento humilde a respeito de si
mesmos quando comparam-se a outras pessoas, devido à
inferioridade de suas circunstâncias ou à melancolia e ao
espírito desanimado que lhes seja natural, ou por alguma
outra causa, ao mesmo tempo em que nada sabem da
distância infinita que há entre eles e Deus. Ainda que estejam
prontos a considerar-se como humildes de espírito, contudo,
não possuem qualquer humildade verdadeira. Aquilo que,
acima de todas as outras coisas, nos concerne saber a respeito
de nós mesmos é o que somos em comparação com Deus,
que é o nosso criador e aquele em quem vivemos, nos
movemos e existimos, e que é infinitamente perfeito em todas
as coisas. Se somos ignorantes de nossa inferioridade em
comparação com ele, então a coisa mais essencial e aquilo que
é indispensável na verdadeira humildade está em falta. Mas,
onde realmente se tem esse senso, dele surge, Em segundo
lugar, um senso de nossa inferioridade em comparação a
muitos de nossos semelhantes.
Pois o ser humano é não apenas desprezível em
comparação a Deus, mas é muito desprezível quando
comparado a multidões de criaturas de classe superior no
universo; e muitas pessoas são inferiores em comparação a
alguns de seus semelhantes. Quando um senso dessa
inferioridade comparativa surge a partir do senso adequado de
nossa inferioridade da maneira como Deus a vê, então ele tem
a natureza da verdadeira humildade.
Aquele que tem um senso e uma estima correta de si
mesmo em comparação a Deus provavelmente terá seus olhos
abertos para ver-se corretamente em todos os aspectos. Ver
verdadeiramente qual é a sua posição em relação ao primeiro e
maior de todos os seres tenderá bastante a ajudá-lo a ter uma
justa apreensão do lugar que ocupa entre as criaturas. Aquele
que não conhece corretamente o primeiro e maior dos seres,
que é a fonte e origem de todos os outros seres, não pode
verdadeiramente conhecer coisa alguma corretamente. Mas,
tanto quanto tenha chegado ao conhecimento do primeiro,
também está preparado e é conduzido ao conhecimento das
outras coisas, bem como de si mesmo em relação aos outros,
e qual a sua posição entre eles.
Isso tudo se aplicaria aos homens considerados na
condição de seres não caídos, e teria sido verdadeiro de nossa
raça, não tivessem nossos primeiros pais caído e assim
envolvido sua posteridade no pecado. Mas a humildade nos
homens caídos implica um senso de uma inferioridade dez
vezes maior, tanto diante de Deus quanto diante dos homens.
A inferioridade natural do homem consiste em ser
infinitamente inferior a Deus em perfeição natural, e em Deus
lhe ser infinitamente superior em grandeza, poder, sabedoria,
majestade, etc.
Uma pessoa verdadeiramente humilde está sensível da
pequena extensão de seu próprio conhecimento e da grande
extensão da sua ignorância, e da pequena extensão de seu
entendimento quando comparado ao entendimento de Deus.
Ela está sensível de sua fraqueza; de como é pequena a sua
força; e de quão pouco ela é capaz de fazer. Está sensível de
sua distância natural de Deus; de sua dependência dele; da
insuficiência de seu próprio poder e sabedoria, e que é
sustentada e provida pelo poder de Deus e precisa da
sabedoria de Deus para conduzi-la e guiá-la, e de seu poder
para capacitá-la a fazer o que deveria fazer por si mesma. Está
sensível de sua sujeição a Deus, e que a grandeza de Deus
consiste propriamente em sua autoridade, pela qual é o
soberano Senhor e Rei sobre tudo; e está disposta a ser súdito
dessa autoridade, uma vez que sente que lhe incumbe
submeter-se à vontade divina e submeter-se em todas as
coisas à autoridade de Deus.
O homem teve esse tipo de pequenez comparativa antes da
queda. Ele era, então, infinitamente ínfimo e inferior em
comparação a Deus; mas sua inferioridade natural se tornou
muito maior desde a queda, pois a ruína moral de sua
natureza debilitou grandemente suas faculdades naturais,
embora não as tenha extinguido.
O homem verdadeiramente humilde, desde a queda,
também está sensível de sua inferioridade e vileza morais.
Isso consiste em sua pecaminosidade. Sua inferioridade
natural é a pequenez como criatura; sua inferioridade moral
é sua vileza e imundície como um pecador.
O homem não caído estava infinitamente distante de Deus
em suas qualidades ou atributos naturais; o homem caído está
infinitamente distante dele, também, como pecador e, por
conseguinte, impuro. Uma pessoa verdadeiramente humilde
está em alguma medida sensível de sua inferioridade
comparativa neste aspecto, no que vê como é enormemente
poluída ante um Deus infinitamente santo, em cuja vista os
céus não são limpos. Ele vê como Deus é puro, e como é
imundo e abominável diante dele. Isaías teve esse senso de
sua inferioridade comparativa, quando viu a glória de Deus e
clamou: “Ai de mim! Estou perdido! Porque sou homem de
lábios impuros, habito no meio de um povo de impuros
lábios, e os meus olhos viram o Rei, o SENHOR dos
Exércitos!” (Is 6.5).
Um humilde senso de nossa inferioridade nesse aspecto
implica em autoexecração, tal como a que levou Jó a
exclamar: “Eu te conhecia só de ouvir, mas agora os meus
olhos te veem. Por isso, me abomino e me arrependo no pó e
na cinza” (Jó 42:5-6). Também implica contrição e
quebrantamento de coração semelhante a que teve Davi,
quando diz: “Sacrifícios agradáveis a Deus são o espírito
quebrantado; coração compungido e contrito, não o
desprezarás, ó Deus” (Sl 51.17). E tal qual Isaías contemplou
quando declarou: “Porque assim diz o Alto, o Sublime, que
habita a eternidade, o qual tem o nome de Santo: Habito no
alto e santo lugar, mas habito também com o contrito e
abatido de espírito, para vivificar o espírito dos abatidos e
vivificar o coração dos contritos” (Is 57.15). Tanto o senso de
nossa pequenez quanto o senso de nossa vileza moral diante
de Deus estão implícitos naquela pobreza de espírito, da qual
fala o Salvador quando diz: “Bem-aventurados os humildes
de espírito, porque deles é o reino dos céus” (Mt 5.3).
Para que haja esse senso de nossa inferioridade e
indignidade, que está implícito na humildade, é não apenas
necessário que conheçamos a Deus e tenhamos um senso de
sua grandeza, sem o qual não podemos conhecer a nós
mesmos, mas também devemos ter um senso correto de sua
excelência e amabilidade. Os demônios e espíritos
condenados veem grande porção da grandeza, da sabedoria e
da onipotência de Deus. Deus os faz sensíveis dessas coisas
pelo que eles veem no seu trato e sentem em seus próprios
sofrimentos. Por mais indispostos que estejam de sabê-lo,
Deus os faz saber o quanto está acima deles agora, e eles
deverão saber e sentir ainda mais, no julgamento e após ele.
Mas não têm humildade, nem jamais a terão, porque veem e
sentem a grandeza de Deus, mas nada veem ou sentem de sua
amabilidade. E sem isso não pode haver verdadeira
humildade, pois esta não pode existir a menos que a criatura
sinta sua distância de Deus, não apenas com relação à sua
grandeza, mas também quanto à amabilidade.
Os anjos e os espíritos redimidos no céu veem ambas as
coisas; não apenas o quanto Deus é maior do que eles, mas o
quanto é mais amoroso também; de modo que, embora não
tenham corrupção e imundície alguma, como têm os homens
caídos, contudo, quando comparados a Deus, é dito: “Nem os
céus são puros aos seus olhos” (Jó 15:15); e: “aos seus anjos
atribui imperfeições” (Jó 4:18). A partir desse senso de sua
inferioridade comparativa, as pessoas são sensibilizadas de
como são indignas da misericórdia de Deus ou de sua
lembrança graciosa. Jacó expressou esse senso, quando disse:
“Sou indigno de todas as misericórdias e de toda a fidelidade
que tens usado para com teu servo” (Gn 32:10); e Davi,
quando exclamou: “Quem sou eu, SENHOR Deus, e qual é a
minha casa, para que me tenhas trazido até aqui?” (1 Cr
17.16). E esse senso têm todos os que são verdadeiramente
humildes na presença de Deus.
Mas, como a humildade consiste em um senso de nossa
inferioridade comparativa, também ela implica, 2. Uma
disposição para uma postura e conduta correspondentes.
Sem essas coisas não há verdadeira humildade. Se fosse
possível que nosso entendimento pudesse ser iluminado para
enxergar nossa inferioridade e, ao mesmo tempo, a vontade e
a disposição da alma não consentissem nisso, e não se
conformassem ao que é correspondente ao nosso senso disso,
mas a ele se opusesse, então não haveria humildade alguma.
Como acabou de ser dito, os demônios e espíritos
condenados veem bastante de sua inferioridade comparativa
diante de Deus, em alguns aspectos. Sabem que Deus está
infinitamente acima deles em poder, conhecimento e
majestade. Contudo, não conhecendo nem sentindo sua
amabilidade e excelência, suas vontades e disposições de
modo algum consentem e se conformam com o que incumbe
a essa inferioridade; daí que não tenham humildade, mas
sejam cheios de orgulho.
Sem pretender mencionar todas as coisas em nossa
conduta correspondentes a um senso adequado de nossa
inferioridade e vileza ao qual a humildade nos disporá (pois
isso incluiria o todo de nosso dever para com Deus e para
com os homens), especificarei algumas coisas que são dignas
de nota, tanto em referência a Deus quanto em referência ao
homem.
Primeiro, algumas coisas em nossa conduta relacionada a
Deus, a que a humildade nos disporá. Como a primeira delas,
a humildade dispõe uma pessoa a sincera e livremente
reconhecer sua inferioridade ou pequenez diante de Deus.
Ela vê como é adequado e justo que deva fazer assim e o faz
voluntariamente, e até mesmo com prazer. Confessa
livremente sua própria nulidade e vileza, e reputa-se indigna
de qualquer misericórdia e merecedora de toda miséria. É a
disposição da alma humilde curvar-se diante de Deus e
humilhar-se no pó na sua presença.
A humildade também dispõe alguém a ser desconfiado de
si mesmo e a depender apenas de Deus. A pessoa orgulhosa,
que tem uma alta opinião de sua própria sabedoria, força ou
justiça é autoconfiante. Mas os humildes não estão dispostos
a confiar em si mesmos, sendo, ao contrário, hesitantes
quanto à própria autossuficiência. É a disposição deles
repousar em Deus, e com deleite lançar-se totalmente nele
como seu refúgio, justiça e força.
Ademais, a pessoa humilde está disposta a renunciar a
toda a glória do bem que tenha ou faça, e dá-la
completamente a Deus. Se há qualquer coisa de boa nela, ou
qualquer bem feito por ela, não é a sua disposição se gloriar
ou se jactanciar nisso diante de Deus, mas atribuir tudo a ele,
e, na linguagem do salmista, dizer: “Não a nós, SENHOR, não
a nós, mas ao teu nome dá glória, por amor da tua
misericórdia e da tua fidelidade” (Sl 115.1).
Também é a disposição da pessoa humilde sujeitar-se
totalmente a Deus. Seu coração não se opõe a uma sujeição
plena e absoluta à vontade divina, mas se inclina a ela. Está
disposto a ser súdito dos mandamentos e leis de Deus, pois vê
que é justo e melhor que aquele que é assim tão infinitamente
inferior a Deus deva ser também seu súdito; e que é uma
honra que pertence a Deus reinar sobre ele e lhe dar leis. E
está igualmente disposto a ser súdito da providência e da
disposição diária de Deus, e a se submeter-se alegremente à
sua vontade conforme manifestada naquilo que lhe ordena.
Ainda que Deus ordene a aflição e situações humildes e
deprimentes como a sua porção no mundo, não murmura;
mas, sentindo sua inferioridade e indignidade, está sensível
que um quinhão de aflições e provações é o seu merecimento,
e que suas circunstâncias são melhores do que seu mérito.
Conquanto seja duro o trato divino, com a fé que com tanta
frequência vemos manifestada naqueles que são eminentes
em graça, está pronto a dizer com Jó: “Ainda que ele me
mate, nele esperarei” [ARC]. E como a humildade implica
uma disposição para essa conduta com relação a Deus,
também, Em segundo lugar, ela nos dispõe a uma conduta em
relação aos homens correspondente à nossa inferioridade
comparativa. E isso mostrarei ao apontar que tipo de conduta
a humildade tende a prevenir.
Ela tende, em primeiro lugar, a prevenir uma conduta
cobiçosa e ambiciosa entre os homens.
A pessoa que está sob a influência de um espírito humilde,
está contente com aquela situação que Deus se agradou em
colocá-la em meio aos demais. Não está ávida de honra e não
simula para parecer mais elevada e exaltada sobre seu
próximo. Ela age com base no princípio daquele dito do
profeta: “E procuras tu grandezas? Não as procures” (Jr 45.5);
e também daquela injunção do apóstolo: “Não ambicioneis
coisas altas” (Rm 12.16) [ARC].
A humildade tende também a prevenir uma conduta de
ostentação.
Se a pessoa verdadeiramente humilde tem alguma
vantagem ou benefício de qualquer tipo, seja temporal, seja
espiritual, acima de seu próximo, não fará uso disso para se
exibir. Se tiver maiores talentos naturais do que outros, não se
adiantará para os alardear e mostrar, nem será diligente para
que os outros saibam de sua superioridade nesse aspecto. Se
tem uma notável experiência espiritual, não será cuidadosa
para que as pessoas venham a conhecê-la por causa da honra
que daí possam obter; nem se esforça para ser estimada dos
homens como um santo eminente e um servo fiel do céu; pois
a essa pessoa é coisa pequena o que os homens possam
pensar de si.
Se se destaca em alguma coisa, ou faz seu dever em algum
aspecto com dificuldade e autonegação, não pretende que os
homens devam observar isso, nem é cuidadosa para que não
venham a ignorá-la em seus esforços. Ela não tem a conduta
dos fariseus que, como é dito: “Praticam, porém, todas as
suas obras com o fim de serem vistos dos homens” (Mt 23.5).
Mas, se tiver feito alguma coisa em sinceridade, contenta-se
que o grande Ser que vê em segredo veja e o aprove.
A humildade tende também a prevenir uma conduta
arrogante e pretenciosa.
Aquele que se encontra sob a influência de um espírito
humilde não se adianta para tomar muito sobre si; e, quando
está entre os outros, não se conduz em relação a eles como se
esperasse e insistisse que grande porção de respeito lhe
devesse ser mostrado. Sua conduta não carrega consigo a
ideia de que ele é o melhor entre aqueles ao seu redor, e que é
aquele a quem as principais deferências devam ser mostradas,
e cujo julgamento principalmente deva ser buscado e seguido.
Não se conduz como se esperasse que todos estivessem
obrigados a se curvar e se sujeitar a si, e dar-lhe lugar como se
ninguém mais tivesse a sua importância. Não coloca um ar
pretencioso em sua conversa comum, nem na gerência de
seus negócios, nem nos deveres da religião. Não se adianta
para tomar sobre si aquilo que não lhe pertence, como se
tivesse poder em situações onde de fato não tem, como se a
terra estivesse sujeita à sua ordem e devesse aquiescer às suas
inclinações e propósitos.
Ao contrário, dá toda a devida deferência ao julgamento e
inclinações dos outros, e sua conduta carrega consigo a
impressão de que sinceramente recebe e age com aquele
ensino do apóstolo: “Nada façais por partidarismo ou
vanglória, mas por humildade, considerando cada um os
outros superiores a si mesmo” (Fl 2.3). Ao falar das coisas da
religião não tem a empáfia, tanto no discurso quanto na
postura, de alguém que se considera como um dos maiores
santos de todo o grupo, mas ao contrário, conduz-se como se
pensasse, na expressão do apóstolo, que fosse “o menor de
todos os santos” (Ef 3:8).
A humildade tende também a prevenir uma conduta
zombadora.
Tratar os outros com desdém e desprezo é uma das piores
e mais ofensivas manifestações do orgulho para com eles.
Mas aqueles que se encontram sob a influência de um espírito
humilde, longe estão de tal conduta. Não desprezam ou
desdenham dos que estão abaixo de si, com um ar altivo e
arrogante, como se faltasse a esses a dignidade para sequer se
aproximarem deles ou receberem qualquer deferência de sua
parte. Estão sensíveis de que não há essa distância toda entre
si e seus semelhantes que fomente essa conduta. Não é
possível encontrá-los tratando com desprezo e desdém aquilo
que os outros dizem, ou falando do que fazem com reflexões
zombeteiras e sarcásticas, ou sentando-se e relatando o que os
outros possam ter dito ou feito, apenas para zombar deles.
Ao contrário, a humildade dispõe uma pessoa a uma
conduta condescendente para com os mais mansos e
desprezados, e a tratar os inferiores com cortesia e afabilidade,
como alguém sensível de sua própria fraqueza e
insignificância diante de Deus, sabendo que é somente Deus
quem o torna, em qualquer aspecto, diferente dos demais ou
lhe dá vantagem sobre eles. Os verdadeiramente humildes
sempre terão o ânimo para “condescender com o que é
humilde” (Rm 12:16). Ainda que sejam grandes homens e se
encontrem em lugares de confiança e honra públicas, a
humildade os disporá a tratar seus inferiores da maneira que
foi exposta, e não de modo altivo e desdenhoso, como, por
exemplo, se exibindo pela sua grandeza.
A humildade também tende a prevenir uma conduta
voluntariosa e teimosa.
Aqueles que estão sob a influência de um espírito humilde
não irão impor sua própria vontade, seja nos assuntos
públicos seja nos privados. Não serão rígidos e inflexíveis,
insistindo que tudo deva ser de acordo com lhes ocorreu
primeiro propor. Nem manifestarão uma indisposição para
ceder, criando toda a dificuldade de que sejam capazes, ou
deixando os outros tão inquietos como eles mesmos, ao
impedir que qualquer coisa seja feita com calma, se não for de
acordo com sua própria vontade e propósito.
Não são como alguns descritos pelo apóstolo Pedro,
“Atrevidos, arrogantes” (2Pe 2.10), sempre propensos a pôr
em prática suas próprias opiniões, e, se isso não puder ser
feito, inclinando-se, então, à oposição e aborrecimento dos
outros. Ao contrário, a humildade disporá as pessoas a ter um
espírito complacente com os outros; prontos, pela causa da
paz, a gratificá-los, ceder em muitas coisas às suas inclinações,
e a render-se aos seus julgamentos onde estes não forem
inconsistentes com a verdade e a santidade.
Uma pessoa verdadeiramente humilde em nada é inflexível
senão na causa de seu Senhor e Mestre, que é a causa da
verdade e da virtude. Nisso é inflexível, pois Deus e a
consciência o requerem; mas em coisas de somenos
importância e que não envolvem seus princípios como um
seguidor de Cristo, e em coisas que dizem respeito apenas aos
seus interesses privados, está preparada para ceder aos outros.
E se vê que os outros são teimosos e despropositados em sua
voluntariedade, não permite que isso a provoque a ser teimosa
e voluntariosa em sua oposição a eles; mas, de modo
contrário, age segundo os princípios de passagens tais quais
Romanos 12.19, 1 Coríntios 6.7 e Mateus 5.40,41: “Não vos
vingueis a vós mesmos, amados, mas dai lugar à ira;” “Por
que não sofreis, antes, a injustiça? Por que não sofreis, antes,
o dano?” “E, ao que quer demandar contigo e tirar-te a túnica,
deixa-lhe também a capa. Se alguém te obrigar a andar uma
milha, vai com ele duas”.
Ademais, a humildade tenderá a prevenir uma conduta de
nivelamento.
Algumas pessoas estão prontas a nivelar aqueles que estão
acima de si, trazendo-os para o seu nível; ao passo que jamais
se dispõem a nivelar os que estão abaixo de si até a sua
posição. Mas o que está sob a influência da humildade evitará
ambos os extremos.
Por um lado, será favorável a que todos subam o máximo
que sua diligência e dignidade de caráter os permitir; por outro
lado, estará disposto a que seus superiores sejam conhecidos
e reconhecidos no seu devido lugar, e que tenham prestadas a
si todas as honras que lhes sejam devidas. Ele não desejará
que todos permaneçam no mesmo nível, pois sabe que é
melhor que haja gradações na sociedade; que alguns devam
estar acima de outros, e que devam ser honrados e
apresentados como tais. Portanto, está disposto a se contentar
com esse arranjo divino e, de acordo com ele, conformar tanto
seu espírito quanto sua conduta a preceitos tais como os
seguintes: “Pagai a todos o que lhes é devido: a quem tributo,
tributo; a quem imposto, imposto; a quem respeito, respeito; a
quem honra, honra” (Rm 13.7); “Lembra-lhes que se sujeitem
aos que governam, às autoridades; sejam obedientes, estejam
prontos para toda boa obra” (Tt 3.1).
A humildade também tende, uma vez mais, a prevenir uma
conduta autoindulgente.
Aquele que está sob a influência de um espírito humilde, se
caiu em alguma falta, como estão todos sujeitos em algum
momento a cair, ou se em alguma coisa prejudicou a outro, ou
desonrou o nome e caráter cristão, estará disposto a
reconhecer sua falta e a tomar sobre si mesmo a vergonha.
Não será difícil trazer-lhe ao senso de sua falta, nem testificar
esse senso por meio de um reconhecimento adequado de seu
erro. Estará interiormente humilhado por ele e pronto a
mostrar sua humildade na maneira que aponta o apóstolo
quando diz: “Confessai, pois, os vossos pecados uns aos
outros” (Tg 5.16).
É o orgulho que torna as pessoas tão excessivamente
indispostas em confessar suas faltas, quando caíram em
alguma, e que as faz pensar que lhes é vergonhoso o que, na
verdade, é a sua maior honra. Mas a humildade na conduta
disporá as pessoas ao dever nesse aspecto; e, se ela prevalecer
como deveria, os conduzirá a fazê-lo com espontaneidade e
até mesmo deleite. Quando alguém tiver que dar a essa pessoa
uma admoestação ou reprovação cristã por alguma falta, a
humildade a disporá a recebê-la amavelmente, e até mesmo
agradecidamente. É o orgulho que deixa as pessoas tão
desconfortáveis quando são reprovadas por quaisquer de seus
semelhantes, de modo que frequentemente não o toleram,
mas ficam iradas e manifestam grande amargura de espírito. A
humildade, ao contrário, não apenas as disporá a tolerar essas
reprovações, mas a estimá-las e apreciá-las como marcas de
bondade e amizade. “Fira-me o justo”, diz o salmista, “será
isso mercê; repreenda-me, será como óleo sobre a minha
cabeça, a qual não há de rejeitá-lo” (Sl 141.5).
Havendo mostrado qual é a natureza da humildade e aonde
nos levará tanto em espírito quanto em conduta, com respeito
a Deus e aos nossos semelhantes, agora prossigo, como
proposto, para mostrar: II. Que o espírito da caridade é um
espírito humilde.
E isso farei em duas particularidades. Primeiro, mostrando
como o espírito de caridade ou amor divino implica e tende à
humildade e depois mostrando como esses exercícios dessa
caridade, da maneira como o evangelho tende a apresentá-los,
especialmente tendem e implicam nisso.
1. Um espírito de caridade ou amor divino pressupõe e
tende à humildade.
Primeiro, ele implica na humildade. O espírito da caridade
ou amor divino, como já foi mostrado, é a soma do espírito
cristão, e é claro que pressupõe a humildade em si, como uma
qualificação essencial. O verdadeiro amor divino é um amor
humilde; e o amor que não é humilde não é verdadeiramente
divino. Isso se mostra claramente a partir de duas
considerações: porque um senso da amabilidade de Deus é
peculiarmente essa descoberta de Deus que opera a
humildade, e porque, quando Deus é verdadeiramente amado,
é amado como um superior infinito. Na primeira
consideração, Porque um senso da amabilidade de Deus é
peculiarmente essa descoberta de Deus que gera a
humildade.
Um senso ou descoberta da grandeza de Deus, sem uma
visão de sua amabilidade, não fará isso, mas é a descoberta de
sua amabilidade que a efetua e que torna a alma
verdadeiramente humilde. Toda graça é forjada no coração
através do conhecimento de Deus ou pela clara descoberta de
suas perfeiçoes. O conhecimento dessas perfeições é o
fundamento de toda graça. É a descoberta ou senso de Deus
como amável, e não apenas como amável, mas como
infinitamente acima de nós em amabilidade, que gera a
humildade no coração. Ter meramente um senso do fato de
que Deus está infinitamente acima de nós, e de que haja uma
distância infinita entre ele e nós em grandeza, não gerará a
humildade. Isso não terá efeito algum em tornar o coração
humilde, a menos que também estejamos sensíveis de que há
uma distância infinita entre nós e ele em sua amabilidade.
Isso é evidente a partir da obra da lei no coração do
pecador e da experiência dos demônios e espíritos
condenados. Pela obra da lei no coração, as pessoas podem
ter um senso da terrível grandeza de Deus, contudo não têm
humildade alguma, uma vez que não têm um senso de sua
amabilidade. Toda a obra do Espírito, da lei e do evangelho no
coração é forjada pela convicção; e há um tipo de convicção
que os homens naturais têm de Deus que os desperta e os faz
pressentir o perigo em que se encontram. E essa é uma
convicção da terrível grandeza de Deus, revelando a si mesmo
nas exigências e denúncias da lei. Mas isso eles podem ter, e
frequentemente têm, e ainda assim não possuem humildade
alguma. E a razão é que eles não têm nenhuma noção do
quanto Deus está acima deles em amabilidade. Isso é a única
coisa que lhes falta, e, sem isso, não serão humildes.
O mesmo é manifesto pelas experiências dos demônios e
espíritos condenados. Estes têm um claro senso de que Deus
lhes é infinitamente superior em grandeza, mas não têm
humildade alguma, pois não sentem o quanto lhes é superior
em amabilidade. Como foi observado, Deus faz os demônios
e almas perdidas saberem que está acima deles em grandeza e
poder, e que são como nada em suas mãos; e, ainda assim,
são orgulhosos e não têm humildade. No dia de julgamento, e
após ele, verão ainda mais de sua grandeza. Quando Cristo
vier nas nuvens do céu, cercado por seus anjos, e com a glória
de seu Pai, então os ímpios, mesmos os reis e os grandes
regentes, os ricos capitães e os homens poderosos do mundo,
verão que ele está infinitamente acima deles em grandeza.
Quando virem essa terrível majestade, se esconderão de sua
face. Os demônios também o verão, e tremerão nessa ocasião,
muito mais do que agora tremem ao pensar sobre isso. E os
demônios e ímpios virão a saber que ele é o Senhor. Eles o
saberão como testemunhas. Eles saberão pelo que veem e
pelo que sentirão quando a sentença lhes vier a ser executada
que Deus, de fato, está acima deles, e que nada são diante
dele, como dito pelo profeta Ezequiel: “Com os seus próprios
juízos, os julgarei; e saberão que eu sou o SENHOR” (Ez
7.27).
Mas ainda que tão clara e terrivelmente vejam que Deus
está infinitamente acima deles em grandeza, contudo, não
terão humildade alguma. Verão a si mesmos a uma distância
infinita de Deus, mas seus corações não consentirão com essa
distância, nem sentirão do modo adequado a ela. Porque não
verão a amabilidade de Deus, não saberão a sua distância
infinita de Deus nesse aspecto, e, portanto, não serão
conduzidos à humildade. A experiência deles atesta isto, qual
seja, que é um senso da distância infinita da criatura para o
Criador em amabilidade que é a causa da verdadeira
humildade. É isso que causa a humildade nos anjos no céu e
nos santos na terra. E, uma vez que é um senso da
amabilidade de Deus que gera a humildade, daí podemos
aprender que o amor divino pressupõe a humildade, pois o
amor é tão somente a disposição do coração em direção ao
Deus que é amoroso. Se o conhecimento de Deus como
amável causa a humildade, então um respeito a Deus como
amável pressupõe a humildade. Desse amor a Deus surge um
amor cristão ao próximo. Portanto, segue-se que, tanto o
amor a Deus quanto o amor ao homem, os quais unidos são a
exata coisa que o apóstolo nomeia caridade, também
pressupõem a humildade.
Ademais, afigura-se que o amor divino pressupõe a
humildade, porque quando Deus é verdadeiramente amado, é
amado como um superior infinito.
O verdadeiro amor a Deus não é amá-lo como a um igual;
pois todos os que o amam, honram-no como Deus, isto é,
como um ser infinitamente superior a todos os outros em
grandeza e excelência. É o amor a um ser que é infinitamente
perfeito em todos os seus atributos, o supremo Senhor e
absoluto soberano do universo. Mas se amamos a Deus como
infinitamente superior a nós mesmos, então o amor é exercido
em nós na condição de infinitos inferiores, sendo, portanto,
um amor humilde. Em exercitá-lo, encaramo-nos como
infinitamente desprezíveis e pequenos diante de Deus, e o
amor procede de nós enquanto tais. Mas amar a Deus nessa
maneira é amá-lo com humildade e com um amor humilde.
Assim, o amor divino pressupõe a humildade. Mas, Em
segundo lugar, ele também tende à humildade.
A humildade é não apenas uma qualidade no amor divino,
mas é também um efeito dele. O amor divino não apenas
pressupõe a humildade em sua natureza, mas também tende a
acalentá-la e produzi-la, e a invocar seus exercícios como
consequência e frutos do amor. A humildade é não apenas
pressuposta, sendo, por assim dizer, uma parte do amor, mas
é um fruto e produto uniforme do amor. E isso, em especial,
de duas maneiras.
Em primeiro lugar, o amor inclina o coração àquele
espírito e conduta que são convenientes à distância do
amado.
É a inimizade contra Deus que torna os corações das
pessoas tão opostos a ele e àquela conduta que contém em si
um pleno e apropriado reconhecimento da distância entre elas
e Deus. As pessoas estão dispostos a honrar e a reconhecer a
superioridade sobre si mesmas das pessoas por quem têm
grande amor. Também reconhecem que estão muito abaixo
delas; e estão dispostas a lhes dar a honra desse
reconhecimento, especialmente se forem seus superiores mais
elevados. Os demônios conhecem sua distância de Deus, mas
não a aceitam; e o chefe dos demônios afetou ser igual a
Deus, e até mesmo maior do que ele, porque não lhe tinha
amor algum. Assim, em certa medida, ocorre com as
pessoaas, enquanto não possuem o amor divino. Mas, quando
o amor entra no coração, então a inclinação da alma é para
todo aquele respeito humilde que convém à distância entre
Deus e nós. Assim, o amor ao homem, que surge do amor a
Deus, nos dispõe a uma conduta humilde para com eles, nos
inclinando a lhes dar toda a honra e respeito que lhes é
devido.
Semelhantemente, em segundo lugar, o amor a Deus tende
à repugnância ao pecado contra Deus, e a estarmos
humildes diante dele por esse motivo.
Quanto mais algo for amado, tanto mais seu contrário será
odiado. Portanto, na mesma proporção em que amamos a
Deus, teremos repugnância do pecado contra ele. E, tendo tal
repugnância do pecado contra Deus, isso nos levará a
aborrecer-nos a nós mesmos e, por esse motivo, a nos
humilharmos na presença de Deus.
Havendo mostrado como o amor divino, que é a soma da
índole cristã, pressupõe e tende à humildade, venho agora a
mostrar, 2. Como o evangelho tende a promover esses
exercícios de amor, a que especialmente implica e tende.
Um espírito cristão e um espírito do evangelho são os
mesmos. Aquilo a que a revelação cristã tende a conduzir é a
um espírito cristão; mas a revelação cristã é o mesmo que o
evangelho. Agora, esses exercícios de amor, do tipo que o
evangelho tende a produzir, de fato, de maneira especial,
tendem à humildade e a pressupõem. E isso por diversos
motivos.
Primeiro, porque o evangelho nos leva a amar a Deus
como um Deus infinitamente condescendente.
O evangelho, acima de todas as outras coisas no mundo,
proclama a grandiosa condescendência de Deus. Nenhuma
outra manifestação que Deus fez de si mesmo exibe essa
condescendência maravilhosa como o faz a revelação cristã. O
evangelho ensina como Deus, que se humilha para
contemplar as coisas que estão no céu e na terra, curvou-se
tão baixo a ponto a fim de condescender de forma
infinitamente graciosa com pobres e vis vermes do pó, e a se
preocupar com a salvação deles, e a ponto de enviar seu Filho
unigênito para morrer por eles, para que pudessem ser
perdoados, elevados, honrados, trazidos à eterna comunhão
com ele, e ao perfeito gozo dele no céu para sempre.
De modo que o amor a que a revelação cristã nos conduz é
o amor a Deus como esse Deus condescendente, e a
exercícios tais de amor que nos incumbe ter para com um
Deus de tão infinita condescendência. E esses atos de amor
são, por necessidade, atos humildes de amor, pois não há
disposição na criatura que seja mais adaptada à
condescendência do Criador do que a humildade. A
condescendência de Deus não é propriamente humildade,
pois, pelas razões já dadas, a humildade é uma virtude apenas
daqueles seres que têm inferioridade comparativa. Ainda
assim, pela sua infinita condescendência, Deus mostra que
sua natureza está infinitamente distante e é hostil ao orgulho.
Portanto, às vezes se fala de sua condescendência como
humildade; e a humildade de nossa parte é a mais apropriada
conformidade à condescendência de Deus que pode existir na
criatura. Sua condescendência tende a produzir humildade de
nossa parte.
Segundo, o evangelho nos leva a amar a Cristo como uma
pessoa humilde.
Cristo é o Deus-homem, possuindo tanto a natureza divina
quanto a humana; assim, tem não apenas condescendência,
que é uma perfeição divina, mas também a humildade, que é
uma excelência da criatura. Destarte, o evangelho nos
proclama Cristo como alguém manso e humilde de coração;
como o mais perfeito e excelente exemplo de humildade que
já existiu; como alguém em quem as maiores realizações e
expressões de humildade foram manifestas no rebaixamento
de si mesmo. Ainda que tivesse “a forma de Deus”, ele “a si
mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se
em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana,
a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e
morte de cruz” (Fl 2.7-9).
E o evangelho nos leva a amar a Cristo como essa pessoa
humilde; e, portanto, amá-lo com amor tal que seja
apropriado ser exercido para com alguém dessa qualidade, o
que significa exercer um amor humilde. Isso é ainda mais
verdadeiro porque o evangelho nos leva a amar a Cristo não
apenas como uma pessoa humilde, mas como um Salvador e
Senhor e mestre humilde. Se nosso Senhor e mestre é
humilde, e o amamos como tal, certamente incumbe a nós,
que somos seus discípulos e servos, ser assim também; pois,
certamente, não é conveniente que o servo seja mais
orgulhoso ou menos humilde do que seu senhor. Como o
próprio Cristo nos diz: “O discípulo não está acima do seu
mestre, nem o servo, acima do seu senhor. Basta ao discípulo
ser como o seu mestre, e ao servo, como o seu senhor” (Mt
10.24,25); e novamente nos diz que seu próprio exemplo de
humildade objetiva nossa imitação; e ainda declara aos seus
discípulos: “Sabeis que os governadores dos povos os
dominam e que os maiorais exercem autoridade sobre eles.
Não é assim entre vós; pelo contrário, quem quiser tornar-se
grande entre vós, será esse o que vos sirva; e quem quiser ser
o primeiro entre vós será vosso servo; tal como o Filho do
Homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a
sua vida em resgate por muitos” (Mt 20.25-28).
Terceiro, o evangelho nos leva a amar a Cristo como o
Salvador crucificado.
Como nosso Salvador e Senhor, ele sofreu a maior
ignomínia e foi levado à morte mais ignominiosa, ainda que
fosse o Senhor da glória. Isso pode muito bem inflamar a
humildade de seus seguidores e levá-los a um humilde amor
por ele. Pois, por ter Deus enviado seu Filho ao mundo para
sofrer morte tão ignominiosa, ele, na realidade, por assim
dizer, verteu desprezo sobre toda a glória terrena de que os
homens costumam se orgulhar, pelo fato de o ter como
Salvador e cabeça de todos os seus eleitos, para que
aparecesse em circunstâncias tão remotas da glória terrena, e
em circunstâncias da maior ignomínia e vergonha terrenas.
Cristo, ao estar disposto a ser assim humilhado e assim sofrer,
não apenas lançou desprezo sobre toda glória e grandeza
mundanas, mas mostrou sua humildade da maneira mais
clara. Se nós, então, nos consideramos seguidores do Jesus
manso, humilde e crucificado, devemos andar humildemente
diante de Deus e dos homens, todos os dias de nossa vida
terrena.
Quarto, o evangelho tende ainda mais a nos conduzir aos
exercícios humildes do amor, pois nos conduz a amar a
Cristo como aquele que foi crucificado por nossa causa.
O mero fato de que Cristo foi crucificado é um grande
argumento para a nossa humildade como seus seguidores.
Mas o fato de ser crucificado por nossa causa é um
argumento muito maior. Pois o fato de Cristo ter sido
crucificado por nossa causa é o maior testemunho de Deus
contra nossos pecados que jamais foi dado. Mostra mais da
repugnância de Deus aos nossos pecados do que qualquer
outro ato ou evento que Deus já realizou ou permitiu. A
medida da repugnância de Deus aos nossos pecados se
mostra por tê-los punido tão severamente, e sua ira executada
contra eles do modo que o foi até mesmo quando imputados
na pessoa de seu próprio Filho.
De modo que esse é o maior estímulo à nossa humildade
que pode ser apresentado, e isso por dois motivos. Porque é a
maior manifestação da vileza daquilo pelo que deveríamos ser
humildes, e também o maior argumento para que amemos o
espírito humilde, o qual o evangelho apresenta. Mais do que
em qualquer de seus atos, a excelência de Cristo e o amor de
Cristo se mostram mais claramente pelo fato de ter se
entregado para ser crucificado por nós; de modo que essas
coisas, quando tomadas conjuntamente, acima de todas as
coisas tendem a produzir em nós os exercícios do amor
humilde.
Na aplicação desse assunto, podemos ver, 1. A excelência
de um espírito cristão.
É-nos dito que: “O justo é mais excelente do que o seu
próximo” [Pv 12.26 (ACF)]. E muito dessa excelência no
verdadeiro cristão consiste em seu espírito manso e humilde,
que o torna muito semelhante ao seu Salvador. Desse espírito
fala o apóstolo como o mais rico de todos os ornamentos:
“Seja, porém, o homem interior do coração, unido ao
incorruptível trajo de um espírito manso e tranquilo, que é de
grande valor diante de Deus” (1Pe 3.4). O assunto deve nos
levar: 2. A examinarmos a nós mesmos para ver se temos de
fato esse espírito.
O profeta diz: “Eis o soberbo! Sua alma não é reta nele”
(Hc 2.4). E o fato de que “Deus resiste aos soberbos” (Tg 4.6),
ou, como diz o original, “coloca-se em linha de batalha contra
ele”, mostra o quanto abomina um espírito orgulhoso. Não é
toda exibição e aparência de humildade que resistirá ao teste
do evangelho. Há varias imitações dela que não alcançam a
realidade. Alguns vestem uma humildade afetada; outros têm
um ânimo naturalmente depressivo e lhes faltam a virilidade
de caráter; outros são melancólicos ou desanimados; outros,
devido à culpa de consciência pelas quais, por um pouco,
ficam deprimidos, parecem quebrantados de espírito; outros
parecem grandemente abatidos quando estão em adversidade
e aflição e têm uma comoção natural do coração quando estão
sob iluminações comuns da verdade; para outros, há um falso
tipo de humildade, operada pelas ilusões de Satanás. E todos
esses podem ser tomados erroneamente como humildes.
Examine a si mesmo, portanto, e veja qual é a natureza de
sua humildade, se não é desses tipos superficiais, ou se é de
fato trabalhada pelo Espírito Santo em seu coração; e não
descanse satisfeito, até que tenha achado que o espírito e
conduta daqueles a quem o evangelho considera humildes
sejam os seus.
3. O assunto exorta aqueles que são estranhos à graça de
Deus a buscarem essa graça, para que possam assim
alcançar esse espírito de humildade.
Se esse for o seu caso, você agora está destituído do
espírito cristão, que é um espírito de graça; e assim totalmente
destituído da humildade. Seu espírito é orgulhoso; e, embora
você possa não parecer se conduzir de maneira muita
orgulhosa entre as pessoas, contudo, está se levantando contra
Deus ao recusar-se a submeter seu coração e vida a ele. E ao
fazer isso está menosprezando e desafiando a soberania de
Deus e ousando contender com seu criador, ainda que ele
ameace terrivelmente os que fazem isso. Você está
orgulhosamente lançando desprezo sobre a autoridade de
Deus, recusando-se a obedecer-lhe, e continuando a viver em
desobediência; recusando-se a se conformar à sua vontade e a
aquiescer às humildes condições e modo de salvação por
Cristo, confiando em sua própria força e justiça, ao invés
daquilo que Cristo tão livremente oferece.
Agora, quanto a esse espírito, considere que seja, de
maneira especial, o pecado dos demônios. O apóstolo diz:
“Não seja neófito, para que não se ensoberbeça e incorra na
condenação do diabo” (1Tm 3.6). E considere também como
esse espirito é odioso e abominável a Deus, e como
terrivelmente o ameaçou declarando que: “Abominável é ao
SENHOR todo arrogante de coração; é evidente que não
ficará impune” (Pv 16.5); e novamente: “Seis coisas o
SENHOR aborrece, e a sétima a sua alma abomina: olhos
altivos...” (Pv 6.16,17); e novamente: “A soberba do homem o
abaterá, mas o humilde de espírito obterá honra” (Pv 29.23).
Considere também como Faraó, Corá, Hamã, Belsazar e
Herodes foram terrivelmente punidos por seu orgulho de
coração e conduta. E seja admoestado, pelo exemplo deles, a
acalentar um espírito humilde e a andar humildemente com
Deus e diante dos homens. Finalmente, 4. Que todos sejam
exortados a buscar o máximo de um espírito humilde, e se
esforçarem para ser humildes em toda a sua conduta com
Deus e com os homens.
Busque um profundo e duradouro senso de sua
inferioridade comparativa diante de Deus e do homem.
Conheça Deus. Confesse sua nulidade e desmerecimento
diante dele. Não confie em si mesmo. Confie apenas em
Deus. Renuncie a toda glória exceto a que procede dele.
Renda-se de coração à sua vontade e serviço. Evite uma
conduta gananciosa, ambiciosa, ostentadora, pretenciosa,
arrogante, desdenhosa, teimosa, voluntariosa, niveladora,
autoindulgente; e lute por mais e mais do espírito humilde que
Cristo manifestou enquanto esteve na terra.
Considere os muitos motivos para esse espírito. A
humildade é um traço muito essencial e distinto em toda a
verdadeira piedade. É o acompanhante de cada graça, e de
modo peculiar tende à pureza do sentimento cristão. É o
enfeite do espírito; a fonte de alguns dos mais doces
exercícios da experiência cristã; o sacrifício mais aceitável que
podemos oferecer a Deus; o objeto das mais ricas de suas
promessas; o espírito com o qual ele habitará na terra, e que
coroará com glória no céu, no porvir. Busque seriamente,
então, e diligente e devotamente acalente um espírito humilde,
e Deus andará com você cá embaixo, e quando mais alguns
dias tiverem passado, o receberá para as honras concedidas ao
seu povo à mão direita de Cristo.
CAPÍTULO 8

O ESPÍRITO DA CARIDADE É CONTRÁRIO AO EGOÍSMO

“Não busca os seus interesses.”


1 Coríntios 13.5

H avendo mostrado a natureza


da caridade com respeito ao
bem dos outros, nas duas
particularidades de que lhes é bondosa e não inveja a
prosperidade e bênçãos deles; e também com respeito a nosso
próprio bem, que ela não é orgulhosa, seja no espírito, seja na
conduta, passo ao próximo ponto apresentado pelo apóstolo,
isto é, que a caridade “não busca os seus interesses”. A
doutrina dessas palavras claramente é: QUE O ESPÍRITO DE
CARIDADE, OU AMOR CRISTÃO, É CONTRÁRIO AO
EGOÍSMO
A ruína que a queda trouxe sobre a alma humana consiste
especialmente em fazê-la perder os princípios mais nobres e
benevolentes de sua natureza, caindo totalmente debaixo do
poder e governo do amor-próprio.
Antes, e quando Deus havia criado o ser humano, era
exaltado, nobre e generoso; mas agora está degradado e é
ignóbil e egoísta. Imediatamente após a queda, a mente
humana encolheu de sua primitiva grandeza e expansividade
para uma enorme pequenez e contração; em muitos outros
aspectos, mas especialmente nesse.
Antes, a sua alma estava debaixo do governo daquele
nobre princípio do amor divino, pela qual era alargada para
compreender todas as criaturas e o bem-estar delas. E não
apenas isso, mas não estava confinada a limites tão estreitos
como as fronteiras da criação, mas desabrochava no exercício
do santo amor pelo Criador e se expandia no oceano infinito
do bem, e era, por assim dizer, engolida por ele, tornando-se
um com ele. Mas tão logo transgrediu contra Deus, esses
nobres princípios imediatamente se perderam, e toda essa
excelente largueza da alma humana se foi. Daí em diante, ela
mesma se encolheu, por assim dizer, em um pequeno espaço,
circunscrita e apertadamente fechada em si mesma, excluindo
todas as demais coisas. O pecado, à semelhança de algum
poderoso adstringente, contraiu sua alma às minúsculas
dimensões do egoísmo; e Deus foi esquecido, e as criaturas
esquecidas, e o homem retirou-se para dentro de si mesmo e
se tornou totalmente governado por princípios e sentimentos
egoístas. O amor-próprio se tornou o senhor absoluto de sua
alma e os princípios mais nobres e espirituais de seu ser
criaram asas e voaram para longe.
Mas Deus, em misericórdia ao homem miserável, adentrou
na obra da redenção e, pelo glorioso evangelho de seu Filho,
iniciou a obra de trazer a alma humana de seu confinamento e
contração de volta àqueles nobres e divinos princípios, pelos
quais era animada e governada no princípio. É por meio da
obra da cruz que ele está fazendo isso, pois nossa união com
Cristo nos dá participação na sua natureza. E assim o
cristianismo restaura a excelente largueza, expansividade e
liberalidade da alma, e novamente a possui com esse amor
divino ou caridade que lemos no texto, pelo qual ela
novamente abraça suas criaturas semelhantes e se devota e é
absorvida no Criador. E assim a caridade, que é a suma do
espírito cristão, participa de tal modo na gloriosa plenitude da
natureza divina que ela “não busca os seus interesses,” isto é,
é contrária ao egoísmo.
Ao lidar com esse assunto, primeiramente mostrarei a
natureza daquele egoísmo do qual a caridade é o oposto;
depois, como a caridade se opõe a ele; e, então, algumas das
evidências em favor da doutrina apresentada.
I. Mostrarei a natureza desse egoísmo ao qual a caridade
é oposta. E aqui observarei: 1. Negativamente: que a
caridade, ou o espírito de amor cristão, não é contrária a
todo amor-próprio.
Não é algo contrário ao cristianismo que o homem ame a si
mesmo, ou, o que dá no mesmo, que ame sua própria
felicidade. Se o cristianismo de fato tendesse a destruir o amor
do homem por si mesmo e por sua própria felicidade, nisso
tenderia a destruir o próprio espírito da humanidade. Mas o
próprio anúncio do evangelho como um sistema de “paz na
terra e boa vontade para com os homens!” (Lc 2.14) mostra
que não apenas ele não é destrutivo para a humanidade, mas,
em seu mais alto grau, promove seu espírito.
O amor do homem por sua própria felicidade é tão
necessário à sua natureza quanto a faculdade da vontade; e é
impossível que esse amor seja destruído de qualquer outra
maneira que não seja destruído também o sujeito desse amor.
Os santos amam sua própria felicidade. Aqueles que são
perfeitos na felicidade, os santos e anjos no céu, amam sua
própria felicidade; de outra forma, aquela felicidade que Deus
lhes dá não lhes seria felicidade alguma, pois a pessoa não
pode desfrutar nenhuma felicidade naquilo a que não ama.
Que o amor de nós mesmos não é ilícito é também
evidente pelo fato de que a lei de Deus faz do amor-próprio
uma regra e medida pela qual nosso amor aos outros deve ser
regulado. Assim Cristo ordena: “Amarás o teu próximo como
a ti mesmo” (Mt 19.19), o que certamente pressupõe que
podemos e devemos amar a nós mesmos. Não é dito mais do
que a ti mesmo, mas como a ti mesmo. Mas somos ordenados
a amar nosso próximo juntamente com Deus; portanto,
somos ordenados a amar a nós mesmos juntamente com o
amor que devemos exercer em relação ao próprio Deus.
O mesmo se mostra pelo fato de as Escrituras, do seu
início ao fim, estarem repletas de motivos que são
apresentados com o exato propósito de operar sobre o
princípio do amor-próprio. Assim são todas as promessas e
ameaças da palavra de Deus, seus chamados e convites, seus
conselhos para que busquemos nosso próprio bem e seus
avisos para que tenhamos cuidado de nossa miséria. Essas
coisas podem não ter influência em nós de nenhuma outra
forma, senão que tendem a operar sobre nossas esperanças e
temores. Senão, com que outro propósito se faria qualquer
promessa de felicidade, ou se apresentaria qualquer ameaça de
miséria para quem não tem amor algum pela primeira ou
temor pela última? Ou que razão haveria para aconselhar
alguém a buscar uma e rejeitar a outra? Assim, está claro que,
negativamente, a caridade, ou o espírito do amor cristão, não é
contrária a todo amor-próprio. Mas observo ainda mais: 2.
Afirmativamente, que o egoísmo ao qual a caridade, ou o
amor cristão, se opõe é apenas um amor-próprio
desordenado.
Aqui, contudo, surge a questão: Em que consiste essa
desordem? Esse é um ponto que deve ser bem determinado e
claramente estabelecido, pois a refutação de muitas hesitações
e dúvidas que as pessoas têm frequentemente depende disso.
Portanto, respondo: Primeiro, que a desordem do amor-
próprio não consiste em que o amor à nossa própria
felicidade seja, absolutamente considerado, grande demais
em grau.
Não suponho que se possa dizer de alguém que seu amor
pela própria felicidade, se considerarmos esse amor
absolutamente e não comparativamente, pode estar em um
grau muito elevado, ou que seja algo que esteja sujeito quer a
diminuir ou a aumentar. Pois entendo que o amor-próprio,
nesse sentido, não é um resultado da queda, mas necessário e
pertinente à natureza de todos os seres inteligentes, que Deus
fez de maneira semelhante em todos. Os santos e pecadores, e
todos indistintamente, amam a felicidade e têm a mesma
inclinação inalterável e instintiva para desejá-la e buscá-la.
A mudança que ocorre em uma pessoa quando é
convertida e santificada não é que seu amor pela felicidade
seja diminuído, mas apenas que é regulado com respeito a
seus exercícios e influência e às condutas e objetos a que
conduz. Quem dirá que as almas felizes no céu não amam a
felicidade, tanto quanto os espíritos miseráveis no inferno? Se
seu amor pela felicidade diminuísse por terem sido feitas
santas, então isso diminuiria sua própria felicidade, pois,
quanto menos alguém ama a felicidade, menos a aprecia e,
por conseguinte, menos ele é feliz.
Quando Deus traz a alma de um estado e condição
miseráveis para um estado feliz, pela conversão, lhe dá
felicidade que antes não tinha, mas não tira, ao mesmo tempo,
algo de seu amor pela felicidade. Assim, quando um santo
cresce em graça, é feito ainda mais feliz do que era antes. Mas
seu amor pela felicidade e sua apreciação dela não cresce
menos que sua própria felicidade, pois isso seria aumentar sua
felicidade em um aspecto e diminuí-la em outro. Mas, em
todos os casos em que Deus torna uma alma miserável feliz,
ou uma alma feliz ainda mais feliz, perdura o mesmo amor
pela felicidade que antes existia.
Assim, indubitavelmente, os santos devem ter o mesmo
tanto de um princípio de amor por sua própria felicidade, ou
amor por si mesmos, o que é a mesma coisa, quanto têm os
ímpios. De modo que, se considerarmos o amor dos homens
por si mesmos, ou por sua própria felicidade, absolutamente,
resta evidente que a desordem do amor-próprio não consiste
em ser de grau muito elevado, pois é semelhante em todos.
Mas, observo, Em segundo lugar, que a desordem do amor-
próprio, em que o egoísmo corrupto verdadeiramente
consiste, sustenta-se em duas coisas: em ser muito grande
comparativamente, e em colocar nossa felicidade naquilo
que está confinado ao eu.
Em primeiro lugar, o grau do amor-próprio pode ser
exagerado comparativamente, e assim o grau de sua
influência pode ser desordenado. Ainda que o grau do amor
das pessoas pela própria felicidade, tomado absolutamente,
possa ser o mesmo em todas, contudo, a proporção que seu
amor pelo eu detém comparado a seu amor pelos outros, pode
não ser o mesmo. Se comparamos o amor-próprio do homem
ao seu amor pelos outros, pode-se dizer que ele ama a si
mesmo em demasia, isto é, em proporção exagerada. E
embora isso possa se dever a uma deficiência de amor pelos
outros, ao invés de excesso de amor-próprio, contudo, o
amor-próprio, por esse excesso em sua proporção, torna-se
ele próprio desordenado nisto: que se torna desordenado em
sua influência e governo sobre o homem. Pois ainda que o
princípio do amor-próprio, considerado em si mesmo, não
seja de modo algum maior do que se houvesse uma devida
proporção de amor a Deus e ao próximo, contudo, a
proporção sendo maior, sua influência e governo do homem
se torna maior; e assim sua influência se torna desordenada
devido à fraqueza ou ausência de outro amor que restrinja ou
regule essa influência.
Como forma de ilustração, podemos supor o caso de um
servo em uma família, que anteriormente fora colocado em
uma posição de servo, e cuja influência nos assuntos
familiares não era desordenada enquanto a força de seu
senhor era maior que a sua. Contudo, se posteriormente o
senhor se enfraquecer e perder seu vigor, e o resto da família
perder seu poder de outrora, ainda que a força do servo de
forma alguma tenha aumentado, contudo, a proporção de sua
força tendo aumentado, sua influência pode-se tornar
desordenada; e, da sua posição de sujeição e servidão, pode-
se tornar o senhor naquela casa. De modo semelhante, o
amor-próprio se torna desordenado. Antes da queda, o
homem amava a si mesmo e a sua própria felicidade tanto
quanto depois da queda. Mas, então, um princípio superior de
amor divino tinha o trono, e era de tal vigor que regulava e
dirigia totalmente o amor-próprio. Mas, desde a queda, o
princípio de amor divino perdeu sua força, ou melhor, está
morto, de modo que o amor-próprio, persistindo em seu vigor
anterior, e não tendo princípio superior a regulá-lo, torna-se
desordenado em sua influência, e governa onde deveria ser
governado e apenas um servo.
O amor-próprio, então, pode se tornar desordenado em sua
influência sendo comparativamente grande demais; quer por
que o amor a Deus e as criaturas semelhantes seja pequeno
demais, como acontece com os santos que neste mundo têm
grandes resquícios da corrupção; quer por que aquele amor
simplesmente não existe, como é o caso de todos os que não
têm o amor divino em seus corações. Assim, a desordem do
amor-próprio, com respeito ao seu grau, não é como
considerado absolutamente, mas comparativamente ou com
respeito ao grau de sua influência. Em alguns aspectos os
ímpios não amam a si mesmos o suficiente – não tanto
quanto os piedosos; pois não amam o caminho de seu próprio
bem-estar e felicidade; e, nesse sentido, às vezes se diz que os
ímpios odeiam a si mesmos, embora, em sentido diverso,
amem a si mesmos exageradamente.
Ademais, é verdade que, em segundo lugar, o amor-
próprio, ou o amor de alguém por sua própria felicidade, pode
ser desordenado em colocar essa felicidade em coisas que
estão confinadas a si mesmo.
Nesse caso, o erro não está tanto no grau de seu amor a si
mesmo, quanto está no canal pelo qual ele flui. Não está no
grau em que ama sua própria felicidade, mas em colocar sua
felicidade onde não deveria, e em limitar e confinar seu amor.
Alguns, embora amem sua própria felicidade, não colocam
essa felicidade em seu próprio e restrito bem, ou naquele bem
que é limitado a si mesmos; mas a colocam mais no bem
comum, naquilo que serve ao bem dos outros, ou no bem a
ser desfrutado em e pelos outros. O amor de alguém por sua
própria felicidade, quando corre nesse último canal, não é o
que é chamado de egoísmo, mas é o exato oposto disso.
Mas há outros que, em seu amor por sua própria felicidade,
colocam essa felicidade nas boas coisas que estão confinada
ou limitadas a si mesmos, excluindo os outros. E isso é
egoísmo. É isso que é a coisa mais clara e diretamente
significada por aquele amor-próprio que a Escritura condena.
Quando se diz que a caridade não busca seus interesses,
devemos entendê-lo como seus próprios interesses privados –
o bem limitado a si mesma. A expressão “seu próprio”, é uma
expressão de apropriação, e carrega propriamente em seu
significado a ideia de limitação a si mesmo. Semelhantemente,
a expressão em Filipenses 2.21, que “buscam o que é seu
próprio”, carrega a ideia de um bem confinado e
autoapropriado, ou o bem que uma pessoa tem isoladamente
e para si mesma, e no qual não tem comunhão alguma ou
parceria com outro, mas que circunscreveu e limitou de tal
maneira a si própria que excluiu a todos os outros. E assim
também deve ser entendida a expressão em 2 Timóteo 3.2:
“Porque os homens serão amantes de si mesmos[15]” [ARC]
pois a frase é de significado mais restrito, limitado ao eu
apenas, e exclui a todos os outros.
Uma pessoa pode amar a si mesma tanto quanto
possível, e pode estar no exercício de um alto amor por sua
própria felicidade, incessantemente anelando por ela, e, ainda
assim, pode assentar essa felicidade de tal maneira que no
exato ato de buscá-la ainda se encontra no mais elevado
exercício de amor a Deus. Isso ocorre quando, por exemplo, a
felicidade que ele almeja é desfrutar de Deus, ou contemplar
sua glória, ou manter comunhão com ele.
Ou uma pessoa pode assentar sua felicidade em
glorificar a Deus. Pode parecer-lhe que a maior felicidade
concebível é dar glória a Deus tanto quanto esteja ao seu
alcance, e ela pode almejar por essa felicidade. E, em almejá-
la, ela ama aquilo para o que olha como sua felicidade; pois se
não amasse o que, nesse caso, estima como sua felicidade,
não a almejaria; e amar sua felicidade é amar a si mesmo.
Nesse mesmo ato, ama a Deus, porque coloca nele a sua
felicidade; pois nada pode mais apropriadamente ser chamado
amor a qualquer ser ou coisa do que colocar nele a nossa
felicidade.
Desse modo, as pessoas podem colocar sua felicidade
consideravelmente no bem de outros, seus vizinhos[16], por
exemplo, e desejar a felicidade que consiste em buscar o bem
deles; podem, em buscá-lo, amar a si mesmas e a sua própria
felicidade. Contudo, isso não é egoísmo, pois não é um amor-
próprio confinado, mas o amor-próprio do indivíduo flui em
tal canal a ponto de abranger outros consigo. O eu a quem
ama é, por assim dizer, alargado e multiplicado, de modo que,
no mesmo ato em que ama a si mesmo também ama os
outros. E esse é o espírito cristão, o excelente e nobre espírito
do evangelho de Jesus Cristo. Essa é a natureza desse amor
divino, ou caridade cristã, que é referida no texto. Um espírito
cristão opõe-se àquele espírito egoísta que consiste no amor-
próprio que se sai em busca apenas de objetos que estão
confinados e limitados – tais como as riquezas mundanas de
alguém, ou a honra que consiste em alguém ser estabelecido
em posição mais elevada que seu próximo no mundo, ou o
agrado e gratificação dos apetites e luxúrias corporais.
Tendo mostrado o que é esse egoísmo a que um espírito
cristão se opõe, passo, como proposto, a mostrar: II. Como o
espírito da caridade, ou o espírito cristão, é contrário ao
egoísmo.
Isso pode ser mostrado nestes dois particulares, que um
espírito de caridade, ou amor cristão, nos leva a buscar não
apenas nossas próprias coisas, mas aquelas dos outros; e que
ele nos dispõe, em muitos casos, a renunciar ou nos separar
de nossas próprias coisas por causa dos outros.
1. O espírito da caridade ou amor leva os que o
possuem a buscar não apenas suas próprias coisas, mas as
de outros.
Primeiro, esse espírito buscar agradar e glorificar a
Deus.
As coisas que são agradáveis a Deus e a Cristo e que
tendem à gloria divina são chamadas as coisas de Cristo, em
oposição às nossas próprias coisas, como por exemplo, onde
está dito: “Todos eles buscam o que é seu próprio, não o que é
de Cristo Jesus” (Fl 2.21). O cristianismo requer que façamos
de Deus e de Cristo nosso fim principal; e todos os cristãos,
até onde vivem como cristãos, vivem de tal maneira que para
eles “o viver é Cristo”. Requer-se que os cristãos vivam para
agradar a Deus, e de modo tal que: “Experimenteis qual seja a
boa, agradável e perfeita vontade de Deus” (Rm 12.2).
Devemos ser servos de Cristo a tal ponto que, em todas as
coisas, busquemos agradar nosso mestre, como diz o
apóstolo: “Não servindo à vista, como para agradar a homens,
mas como servos de Cristo, fazendo, de coração, a vontade de
Deus” (Ef 6.6). E assim se requer de nós em todas as coisas
“quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer, fazei
tudo para a glória de Deus” (1Co 10.31).
E esse, certamente, é o espírito que é oposto ao
egoísmo.
Em segundo lugar, aqueles que têm o espírito da
caridade, ou amor cristão, tem o ânimo para buscar o bem de
seus semelhantes.
Assim ordena o apóstolo: “Não tenha cada um em vista
o que é propriamente seu, senão também cada qual o que é
dos outros” (Fl 2.4). Devemos buscar o bem espiritual dos
outros e, se temos um espírito cristão, devemos desejar e
buscar seu bem-estar espiritual e felicidade, sua salvação do
inferno, e que possam glorificar e desfrutar de Deus para
sempre. E o mesmo ânimo nos disporá a desejar e buscar a
prosperidade de outros, como diz o apóstolo: “Ninguém
busque o seu próprio interesse, e sim o de outrem” (1Co
10.24). E deveríamos buscar de tal maneira a satisfação deles,
que nisso pudéssemos, ao mesmo tempo, buscar o seu ganho,
como novamente é dito pelo apóstolo: “Assim como também
eu procuro, em tudo, ser agradável a todos, não buscando o
meu próprio interesse, mas o de muitos, para que sejam
salvos” (1Co 10.33-11.1); e novamente: “Portanto, cada um de
nós agrade ao próximo no que é bom para edificação” (Rm
15.2).
Mas, mais particularmente neste tópico, observarei que
um espírito de caridade, ou amor cristão, como exercido em
relação aos nossos semelhantes, opõe-se ao egoísmo, ao
mesmo tempo em que é um espírito solidário e
misericordioso. Ele dispõe as pessoas a considerarem não
apenas suas próprias dificuldades, mas também os pesos e
aflições dos outros, e a dificuldade de suas circunstâncias, e a
considerar o caso daqueles que estão em apertos e
necessidades, como se fossem suas. Uma pessoa egoísta está
pronta a fazer muito caso das aflições que ela próprio suporta,
como se suas privações ou sofrimentos fossem maiores dos
que os de todo mundo. Se não está sofrendo, tende a pensar
que não é chamada para poupar aquilo que tem em posse para
o auxílio dos outros. Uma pessoa egoísta não está apta a
discernir as necessidades alheias, mas, ao contrário, as ignora
e dificilmente pode ser persuadida a vê-las ou senti-las.
Mas uma pessoa de espírito caridoso está apta a ver as
aflições dos outros, e a observar quando elas se agravam, e a
se encher de preocupação por eles, como ficaria se estivessem
ela mesma em dificuldades. Está pronta a ajudá-los e se
deleita em suprir suas necessidades e aliviar suas dificuldades.
Ela regozija-se em obedecer aquela injunção do apóstolo:
“Revesti-vos, pois, como eleitos de Deus, santos e amados, de
ternos afetos de misericórdia, de bondade” (Cl 3.12); e a
acalentar o espírito de “sabedoria lá do alto”, que é “plena de
misericórdia” (Tg 3.17); e como o homem bom referido pelo
salmista, ser “misericordioso”, isto é, cheio de misericórdia (Sl
37.26).
E, assim como é solidário e misericordioso, também o
espírito da caridade, como exercido em relação aos nossos
semelhantes, é o oposto de egoísmo, haja vista que é um
espírito liberal. Busca não apenas o bem daqueles que estão
em aflição, mas está pronto a comunicar a todos e é apressado
em promover seu bem, enquanto possa haver oportunidade:
“Não negligencieis, igualmente, a prática do bem e a mútua
cooperação” (Hb 13.16). Ele obedece à exortação: “Por isso,
enquanto tivermos oportunidade, façamos o bem a todos”.
Mas sobre este ponto não me demorarei, haja vista já o ter
tratado extensamente na palestra “A caridade é bondosa”[17]
(Gl 6.10).
Assim como o espírito da caridade, ou amor cristão, se
opõe ao egoísmo, visto que é misericordioso e liberal, da
mesma maneira também nisto, que ele dispõe uma pessoa a
ter um espírito público.
Uma pessoa com um espírito reto não é alguém de
opiniões estreitas e privadas, mas está grandemente
interessado e preocupado com o bem da comunidade a qual
pertence, e particularmente da cidade ou vila onde reside, e
pelo verdadeiro bem estar da sociedade da qual é um
membro. Deus ordenou aos judeus que foram levados cativos
para a Babilônia que buscassem o bem daquela cidade,
embora não fosse seu lugar nativo, mas tão somente a cidade
do seu cativeiro. Sua ordem foi: “Procurai a paz da cidade
para onde vos desterrei e orai por ela ao SENHOR; porque na
sua paz vós tereis paz” (Jr 29.7).
Uma pessoa de um espírito verdadeiramente cristão será
zelosa pelo bem de seu país e do lugar de sua residência, e se
disporá a se gastar pelo seu melhoramento. Um homem foi
recomendado a Cristo pelos judeus (Lc 7.5) como alguém que
amava a nação deles e tinha-lhes feito uma sinagoga; e é dito a
respeito de alguns de Israel que muito provocavam a Deus,
pois: “Não se afligiam com a ruína de José” (Am 6.6). Foi
registrado, para a honra eterna de Ester, que ela mesma
jejuava e orava e incitava os outros a jejuarem e orarem pelo
bem-estar de seu povo. Também o apóstolo Paulo expressa a
mais profunda preocupação pelo bem estar de seus
compatriotas (Rm 9.1-3).
Aqueles que possuem o espírito cristão da caridade são
de um espírito ainda mais amplo, pois estão não apenas
preocupados com a prosperidade da comunidade, mas pelo
bem estar da igreja de Deus e de todo o povo de Deus
individualmente. Desse espírito foi Moisés, o homem de
Deus, e portanto fervorosamente intercedeu pelo povo visível
de Deus, e declarou-se pronto a morrer para que eles
pudessem ser poupados (Ex 32.11 e 32). E desse espírito era
Paulo, que estava tão preocupado com o bem estar de todos,
tanto judeus quanto gentios, que estava disposto a se tornar
como eles (1 Co 9.19-23) se possivelmente pudesse salvar
alguns deles.
Especialmente o espírito do amor cristão disporá os que
permanecem em uma posição pública, tais como os ministros
e magistrados, e todos os oficiais públicos a buscarem o bem
público. Disporá os magistrados a agirem como pais da
comunidade, com aquele cuidado e zelo pelo bem público que
o pai de família tem por sua casa. Fará com que sejam
vigilantes contra os perigos públicos e preparados para usar
seus poderes para a promoção do benefício público; não
sendo governados por motivos egoístas em sua
administração; não buscando apenas, ou principalmente,
enriquecer-se, ou tornar-se grandes e adiantar-se em saquear
os outros, como fazem com frequência os governantes
ímpios, mas lutando para agir pelo verdadeiro bem-estar de
todos a quem sua autoridade se estende.
O mesmo espírito disporá os pastores a não buscarem o
próprio benefício, esforçando-se para tirar tudo o que
puderem de seu povo para se enriquecerem e às suas famílias,
mas a buscarem o bem do rebanho sobre o qual o Pastor os
colocou; a alimentá-lo, vigiá-lo e conduzi-lo para as boas
pastagens, e a defendê-lo dos lobos e animais selvagens que
os devorariam. E assim, qualquer que seja o posto em que
sejamos colocados, devemos mostrar que somos solícitos
pelo bem público, de modo que o mundo possa ser melhor
para a nossa vivência, e para que, quando partirmos, possa ser
dito a nosso respeito o que foi nobremente dito acerca de
Davi, que nós “servimos à nossa própria geração, conforme o
desígnio de Deus” (At 13.36).
Mas,
2. O espírito da caridade, ou amor, também nos
dispõe, em muitos casos, a renunciar e a deixar nossos
próprios interesses de lado, por causa dos outros.
Ele nos dispõe a deixar de lado nosso interesse privado
temporal e a total e livremente renunciá-lo pela causa da honra
de Deus e do avanço do reino de Cristo. Era esse o espírito do
apóstolo Paulo quando exclamou: “Pois estou pronto não só
para ser preso, mas até para morrer em Jerusalém pelo nome
do Senhor Jesus” (At 21.13). E o mesmo espírito irá, com
frequência, nos dispor a abandonar ou renunciar aos nossos
interesses privados pelo bem de nosso próximo. Ele nos
deixará prontos a, em cada ocasião, auxiliá-los e ajudá-los,
levando-nos a voluntariamente renunciar a um bem menor
nosso tendo em vista um bem maior para o nosso próximo. E
o caso pode ser até mesmo tal que “devemos dar nossa vida
pelos irmãos” (1Jo 3.16). Mas não me demorarei nesse ponto
agora, uma vez que provavelmente terei ocasião para falar
mais dele em alguma outra parte do contexto. Passo, então,
como proposto, III. A notar algumas das evidências que
sustentam a doutrina que foi exposta.
A verdade da doutrina de que o espírito da caridade ou
amor cristão é o oposto de um espírito egoísta aparecerá se
considerarmos a natureza do amor em geral, a natureza
peculiar do amor cristão ou divino, e a natureza do amor
cristão a Deus e ao homem em particular. E, 1. A natureza do
amor em geral. Este, até onde seja real e verdadeiramente
sincero, é de uma natureza difusiva e esposa os interesses de
outros. Assim ocorre com o amor de afeição natural e com a
amizade terrena. Até onde haja qualquer verdadeira afeição ou
amizade, os partidos entre os quais subsiste não buscam
apenas seus próprios interesses privados, mas esposam e
buscam os interesses uns dos outros. Eles buscam não apenas
as suas próprias coisas, mas também as de seus amigos. O
egoísmo é um princípio que contrai o coração e o confina ao
eu, enquanto que o amor o alarga e o estende aos outros. Pelo
amor, o eu do homem é tão estendido e alargado que os
outros, até onde sejam amados, por assim dizer, realmente
tornam-se parte deles mesmos. De modo que, onde quer que
o interesse deles é promovido, ele crê que o seu próprio
também o é; e onde quer que o interesse deles seja
prejudicado, o seu também o é. Ainda mais isso aparecerá se
considerarmos, 2. A natureza peculiar do amor cristão ou
divino.
Quanto à caridade, ou amor cristão, é peculiarmente
verdadeiro que ela está acima do princípio egoísta. Embora
todo amor verdadeiro pelos outros busque o bem e espose os
interesses dos que são amados, contudo, todo outro amor, à
exceção desse, tem seu fundamento, em certo sentido, no
princípio do egoísmo. Assim ocorre com a afeição natural que
os pais têm pelos filhos, e com o amor que os parentes têm
uns pelos outros. Se excetuarmos os impulsos do instinto, o
amor-próprio é a fonte principal dele. É porque os homens
amam a si mesmos que amam essas pessoas e coisas que
possuem ou a quem são proximamente relacionados, e a
quem encaram como suas posses, pessoas essas que, pela
constituição da sociedade, têm seu interesse e honra ligados
com a deles.
E assim ocorre nas mais íntimas relações que há entre
os seres humanos. O amor-próprio é a fonte de onde
procedem. Algumas vezes, a gratidão natural, por bons
desdobramentos que lhes tenham lhes sido feitos por outros,
ou por benefícios recebidos deles, dispõe as pessoas, pelo
amor-próprio, a um respeito similar por aqueles que lhes
mostraram bondade ou por quem seu interesse próprio foi
promovido. Outras vezes, os homens naturais, são levados à
amizade com outros por qualidades que veem ou encontram
neles, de onde esperam a promoção de seu próprio bem
temporal. Se veem que os outros estão dispostos a lhes serem
respeitosos e a lhes dar honra, então o amor a sua própria
honra os levará à amizade desses; ou, se o veem
generosamente dispostos para com eles, então o amor a seu
próprio ganho os disporá à amizade deles por esse motivo; ou
se encontrarem nos outros grande concordância consigo
mesmos em disposição e maneiras, o amor-próprio pode
dispô-los à amizade deles devido às diversões que esperam ter
em sua companhia, ou porque essa concordância com eles em
sua índole e modos carrega consigo a aprovação de sua
própria índole e caminhos.
Assim, há muitos outros modos nos quais o amor-
próprio é a fonte daquele amor e amizade que frequentemente
surge entre os homens naturais. A maior parte do amor que
existe no mundo surge desses princípios, portanto, não vai
muito além da natureza. E a natureza não pode ir além do
amor-próprio, mas tudo o que os homens fazem é, de uma
forma ou de outra, dessa raiz.
Mas o amor divino, ou a caridade que é falada no texto,
é algo que está acima do amor-próprio, uma vez que é algo
sobrenatural, ou acima e além do que é natural. Não é um
ramo que brota da raiz do amor-próprio, como a afeição
natural, as amizades mundanas e o amor que os homens
podem ter uns pelos outros. Mas, assim como o amor-próprio
é gerado dos princípios naturais, o amor divino é gerado pelos
princípios sobrenaturais. O último é algo de um tipo mais alto
e mais nobre do que qualquer planta que cresce naturalmente
em solo semelhante ao coração humano. É uma planta
transplantada na alma a partir do jardim do céu, pelo Espírito
Santo e bendito de Deus. Logo, tem sua vida em Deus, e não
em si mesmo. Portanto, não há outro amor que esteja tão
acima do princípio egoísta como o amor cristão; nenhum que
seja tão livre e desinteressado, e em cujo exercício Deus seja
tão amado por si mesmo e por sua própria causa, e os homens
amados não por causa de sua relação com o eu, mas por causa
de sua relação com Deus como seus filhos, ou como aqueles
que são criaturas de seu poder, estando debaixo da influência
de seu Espírito.
Portanto, o amor divino, ou caridade, acima de todos os
outros amores no mundo, é contrário a um espírito egoísta.
Outros, ou o amor natural, podem, em alguns aspectos, ser
contrários ao egoísmo, tanto quanto podem e frequentemente
movem os homens a exercer muita liberalidade e
generosidade para com aqueles que amam. Contudo, em
outros aspectos, concordam com um espírito egoísta, porque,
se o traçarmos às suas origens, eles surgem da mesma raiz,
isto é, um princípio de amor-próprio. Mas o amor divino tem
sua fonte onde está sua raiz, em Jesus Cristo. Logo, não é
deste mundo, mas de um superior; e tende para lá, de onde
veio. E assim como não surge do eu, também não tende para
o eu. Ele deleita-se na honra e glória de Deus, por sua própria
causa, e não meramente por causa do eu; e ele busca e se
deleita no bem dos homens, por causa deles e por causa de
Deus.
Que o amor divino é, com efeito, um princípio muito
superior e contrário a um espírito egoísta, transparece do fato
de que é exercido até mesmo para com os inimigos; que é de
sua natureza e tendência manifestar-se para os ingratos e
maus, aqueles que nos prejudicam e odeiam, o que é
diretamente contrário à tendência de um princípio egoísta e
inteiramente acima da natureza – é menos à semelhança do
homem do que à semelhança de Deus. Que o amor cristão, ou
caridade, é contrário a uma espírito egoísta, aparece mais
claramente, 3. Da natureza deste amor a Deus e ao homem
em particular.
Primeiro, da natureza deste amor a Deus.
Se considerarmos o que as Escrituras nos dizem acerca
da natureza do amor a Deus, descobrimos que elas ensinam
que aqueles que verdadeiramente amam a Deus o amam a
ponto de se devotarem totalmente a ele e ao seu serviço. Isso
nos é ensinado na suma dos dez mandamentos: “Amarás,
pois, o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua
alma, de todo o teu entendimento e de toda a tua força” (Mc
12.30). Nessas palavras se contém uma descrição de um amor
reto a Deus; e elas nos ensinam que aqueles que o amam
retamente, devotam-se totalmente a ele. Devotam-lhe tudo:
todo o seu coração, e toda a sua alma, e toda a sua mente, e
toda a sua força, ou todos os seus poderes e faculdades.
Certamente, uma pessoa que entrega isso tudo totalmente a
Deus nada retém, mas se lhe devota inteira e totalmente, sem
reservas; e todos os que têm amor verdadeiro por Deus têm
uma disposição para isso. Nisso vemos o quanto um princípio
de amor verdadeiro por Deus está acima do egoísmo. Pois se
o eu for devotado totalmente a Deus, então há algo, acima do
eu, que o supera. Algo superior ao eu, que o toma e faz dele
uma oferta a Deus. Um egoísta jamais se devota a outrem. A
sua natureza é devotar tudo o mais a si. Aqueles que têm
amor verdadeiro por Deus o amam como Deus, e como o
Bem Supremo, enquanto que é a natureza do egoísmo
estabelecer o eu no lugar de Deus e fazer do eu um ídolo. Os
homens tudo devotam ao ser a quem reputam como o
supremo. Mas os que amam a Deus como Deus a ele tudo
devotam.
Que o amor cristão, ou caridade, é contrário a um
espírito egoísta, aparecerá ainda mais se considerarmos o que
as Escrituras nos ensinam, Em segundo lugar, sobre a
natureza deste amor para com os homens.
E há duas descrições principais e muito notáveis que a
Bíblia nos dá de um amor verdadeiramente gracioso para com
o nosso próximo, cada uma das quais será observada.
A primeira dessas é o requisito de que amemos nosso
próximo como a nós mesmos. Temos isso no Antigo
Testamento: “Não te vingarás, nem guardarás ira contra os
filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti
mesmo. Eu sou o SENHOR” (Lv 19.18). Jesus faz essa
citação (Mt 22:39) como a suma de todos os deveres da
segunda tábua da lei. Isso é contrário ao egoísmo, pois o amor
não é de natureza tal que confine o coração ao eu, mas o
conduz aos outros bem como a si mesmo. Dispõe-nos a ver
nosso próximo, por assim dizer, como um com nós mesmos,
e não apenas a considerar nossas próprias circunstâncias e
interesses, mas a considerar as faltas de nosso próximo, como
consideramos as nossas próprias; não apenas a ter em conta
nossos próprios desejos, mas os desejos de outrem, e agir
com eles como gostaríamos que agissem conosco.
E a segunda notável descrição que nos dão as Escrituras
da caridade cristã, que mostra o quão contrária é ao egoísmo,
é aquela de amar aos outros como Cristo nos amou. “Novo
mandamento”, diz Cristo, “vos dou: que vos ameis uns aos
outros; assim como eu vos amei, que também vos ameis uns
aos outros” (Jo 13.34). É chamado de novo mandamento, em
contraste com o antigo: “Amarás o teu próximo como a ti
mesmo” (Lv 19.18). Não que o dever de amar os outros, que é
a matéria do mandamento, fosse novo, pois o mesmo tipo de
amor requerido agora era requerido outrora, sob a antiga
aliança. Mas é chamado de novo mandamento no sentido de
que a regra e motivo anexos aos quais devemos mais
especialmente atentar agora, nestes dias do evangelho, são
novos. A regra e motivo mais especialmente postos em
destaque outrora era o amor por nós mesmos, que deveríamos
amar nosso próximo como a nós mesmos. Mas a regra e
motivo mais especialmente destacados agora, nestes dias do
evangelho, e desde que o amor de Cristo foi tão
maravilhosamente manifesto, é o amor de Cristo por nós, que
devemos amar nosso próximo como Cristo nos amou. Aqui é
chamado de novo mandamento; e assim, em João 15.12,
Cristo o chama de seu mandamento, dizendo enfaticamente:
“O meu mandamento é este: que vos ameis uns aos outros,
assim como eu vos amei”. O mandamento de Moisés é que
amemos uns aos outros como amamos a nós mesmos; mas o
mandamento de Deus, nosso Salvador, é que amemos uns aos
outros como Cristo nos amou. Em sua essência, é o mesmo
mandamento que outrora foi dado, mas com nova luz
resplandecendo sobre si pelo amor de Jesus Cristo, e um novo
reforço a si anexado, por ele, além do que anexara Moisés. De
modo que essa regra de amar os outros como Cristo nos
amou, mais claramente, e em um grau mais avançado, nos
mostram nosso dever e obrigação com respeito a amar nosso
próximo do que o disposto por Moisés.
Mas, para retornar dessa digressão, consideremos como
essa descrição que Cristo dá acerca do amor cristão aos outros
mostra-o como oposto ao egoísmo, considerando de que
maneira Cristo expressou amor por nós, e o quanto há no
exemplo de seu amor para reforçar o contrário de um espírito
egoísta. E isso podemos ver em quatro coisas: Primeiro,
Cristo fixou o seu amor naqueles que eram seus inimigos.
Não apenas não havia amor algum por si naqueles em
quem fixou o seu amor, mas eles estavam cheios de inimizade
e de um princípio de verdadeiro ódio por ele. “Deus prova o
seu próprio amor para conosco pelo fato de ter Cristo morrido
por nós, sendo nós ainda pecadores” (Rm 5.8); “Porque, se
nós, quando inimigos, fomos reconciliados com Deus
mediante a morte do seu Filho...” (Rm 5.10).
Segundo, tal foi o amor de Cristo por nós que se
agradou, em alguns aspectos, de olhar para nós como se
fosse para si mesmo.
Pelo seu amor por nós, se tão somente o aceitarmos, ele
nos esposou de tal maneira e uniu seu coração ao nosso, que
se agrada em falar-nos e nos trata como a si próprio. Seus
eleitos lhe foram, desde a eternidade, queridos como a menina
dos seus olhos. Ele lhes viu de tal modo como a si mesmo que
considerou suas preocupações como se fossem dele, e seus
interesse como se dele fossem; e até mesmo fez da culpa deles
a sua própria, por uma graciosa assunção dela para si mesmo,
para que pudesse ser vista como se fosse dele, por aquela
imputação divina em virtude da qual são tratados como
inocentes, enquanto Cristo sofre por eles. E seu amor buscou
uni-los a si mesmo, a ponto de torná-los, por assim dizer,
membros de seu corpo, de modo que são seu corpo e seus
ossos, como parece que ele mesmo diz em Mateus 25.40,
quando declara: “Em verdade vos afirmo que, sempre que o
fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o
fizestes”.
Terceiro, tal foi o amor de Cristo por nós, que ele, por
assim dizer, gastou-se por nossa causa.
Seu amor não repousou em mero sentimento ou em
esforços leves e pequenos sacrifícios, mas ainda que fôssemos
inimigos, contudo, nos amor de tal maneira que teve vigor
para negar a si mesmo, realizar os maiores esforços e suportar
os maiores sofrimentos por nossa causa. Ele abriu mão de seu
próprio sossego, conforto, interesse, honra e riqueza e tornou-
se pobre, proscrito e desprezado, não tendo onde reclinar a
cabeça, e tudo por nós! E não apenas isso, mas derramou seu
próprio sangue por nós, e ofereceu a si mesmo como
sacrifício à justiça de Deus, para que fossemos perdoados e
aceitos e salvos!
Quarto, Cristo assim nos amou, sem qualquer
expectativa de jamais ser recompensado por nós pelo seu
amor.
Ele não estava em necessidade de alguma coisa que
pudéssemos fazer por ele, e sabia muito bem que nunca
seríamos capazes de recompensá-lo por sua bondade por nós
e nem mesmo fazer alguma coisa nesse sentido. Sabia que
éramos pobres, miseráveis, párias de mãos vazias, que
poderíamos dele receber, mas nada lhe dar em troca. Sabia
que não tínhamos dinheiro algum ou preço com que
pudéssemos comprar alguma coisa, e que deveria nos dar
livremente todas as coisas de que necessitávamos, pois, do
contrário, estaríamos eternamente privados delas.
Não deveríamos estar longe de um espírito egoísta e ser
totalmente avessos a ele, se amarmos uns aos outros segundo
esse estilo, ou se tivermos a mesma disposição de amor pelos
outros que havia em Cristo por nós mesmos? Se esse for
nosso ânimo, nosso amor pelos outros não dependerá do
amor deles por nós. Devemos fazer, porém, o que Cristo fez,
amá-los ainda que sejam inimigos. Devemos não apenas
buscar nossos próprios benefícios, mas devemos estar tão
unidos em nossos corações que olhemos para seus interesses
como se fossem nossos. Devemos nos esforçar para
interessarmo-nos em seu bem como Cristo estava no nosso; e
devemos estar prontos a renunciar e abrir mão de nossos
próprios interesses pelos de outros, como fez Cristo conosco.
Devemos fazer essas coisas voluntária e prontamente pelos
outros, sem qualquer expectativa de sermos recompensados
por elas, assim como Cristo fez coisas grandiosas em nosso
favor sem qualquer expectativa de recompensa ou retorno. Se
esse for nosso ânimo, não estaremos sob a influência de um
espírito egoísta, mas seremos altruístas em princípio, coração
e vida.
APLICAÇÃO
Na aplicação deste assunto, o maior uso que lhe farei é
o de dissuadir a todos de um espírito e prática egoístas, e
de exortar a todos a buscarem o espírito da caridade,
vivendo vidas que sejam contrárias ao egoísmo.
Busque que, pelo amor divino, seu coração seja
devotado a Deus e à sua glória e a amar seu próximo como a
si mesmo, ou, antes, à maneira como Cristo o amou. Não
busque cada um seus próprios interesses, mas busque cada
um os interesses dos outros. E para incitá-lo a isso, em adição
aos motivos já apresentados, considere três coisas, Primeiro,
que você não pertence a si mesmo.
Assim como você não criou a si mesmo, também não
foi criado para si mesmo. Você não é nem o autor nem o fim
de sua existência. Nem é você que sustenta seu ser, ou que se
sustenta. Você não depende de si mesmo. Há outro que o fez
e o preserva e o sustenta, e de quem você depende. E ele o fez
para si mesmo e para o bem de seus semelhantes, e não para
si mesmo. Ele pôs diante de você fins mais nobres do que o
eu, ou seja, o bem-estar de seus semelhantes e da sociedade, e
os interesses de seu reino. É para esses que você deve
trabalhar e viver, não apenas no tempo, mas pela eternidade.
E se vocês são cristãos, como muitos professam ser,
então, em um sentido peculiar, “Não sois de vós mesmos?
Porque fostes comprados por preço. Agora, pois, glorificai a
Deus no vosso corpo” (1Co 6.19-20). Veja também 1Pedro
1.19. Insta-se esse ponto como um argumento do porquê os
cristãos não devem buscar a si mesmo, mas a glória de Deus.
O apóstolo acrescenta: “Glorificai a Deus no vosso corpo”.
Por natureza, vocês estavam em uma condição miserável e
perdida, cativos nas mãos da justiça divina e escravos
miseráveis nas cadeias do pecado e Satanás. Mas Cristo os
redimiu, destarte, vocês são dele por direito de compra. É por
um direito muito justo que pertencem a ele e não a si mesmos.
Portanto, você não deve, daqui para frente, tratar-se
como pertencente a si mesmo, promovendo seus próprios
interesses ou prazer apenas, ou principalmente. Pois, se assim
fizer, será culpado de roubar de Cristo. E, assim como você
não pertence a si mesmo, também as coisas que tem não lhe
pertencem. Suas habilidades do corpo e mente, suas posses
exteriores, seu tempo, talentos, influência, confortos, nada
disso é seu. Você não tem direito algum de usá-las como se
fosse seu proprietário absoluto, como é provável que faça, se
as imagina apenas para seu benefício privado, e não para a
honra de Cristo e para o bem de seus semelhantes. Considere,
Em segundo lugar, como você, pela sua exata profissão de
cristão, está unido a Cristo e a seus companheiros de fé.
Cristo, e todos os cristãos, estão de tal modo ligados
que perfazem um único corpo; e deste corpo Cristo é a
cabeça, sendo os cristãos os membros. “Assim também nós,
conquanto muitos, somos um só corpo em Cristo e membros
uns dos outros” (Rm 12.5); e novamente: “Porque, assim
como o corpo é um e tem muitos membros, e todos os
membros, sendo muitos, constituem um só corpo, assim
também com respeito a Cristo” (1Co 12.12). Como é
impróprio, portanto, que os cristãos sejam egoístas e
preocupados apenas com seus interesses particulares!
No corpo natural, a mão está pronto para servir à
cabeça, e todos os membros prontos estão para servirem uns
aos outros. O que a mão faz é feito apenas para sua vantagem
própria? Não são elas continuamente empregadas para as
outras partes do corpo tanto quanto para si mesmas? A obra
que faz dia após dia não é para o bem comum de todo o
corpo? E o mesmo pode ser dito do olho, dos dentes, dos pés,
que todos estão empregados não para si mesmos, ou para seu
próprio bem-estar limitado e parcial, mas para o bem comum
de todo o corpo. Se a cabeça for desonrada, não serão todos
os membros do corpo imediatamente empregados e ativados
para remover a desonra e por honra sobre a cabeça? Se
qualquer membro do corpo for ferido e enfraquecido, e estiver
dolorido, não são todos os membros do corpo imediatamente
alistados para resguardar esse membro fraco ou sofredor? Não
são os olhos empregados para olhar em volta por ele, e os
ouvidos em atender as instruções dos médicos, e os pés em ir
aonde o alívio possa ser buscado, e as mãos em aplicar os
remédios fornecidos?
Assim deveria ser com o corpo cristão. Todos os seus
membros deveriam ser auxiliadores e confortadores uns dos
outros, promovendo, assim, seu bem-estar e felicidade
mútuos, e a glória de Cristo, a cabeça. Uma vez mais,
considere, Terceiro, que ao buscar a glória de Deus e o bem
de seus semelhantes, você toma o caminho mais certo para
assegurar que Deus busque seus interesses e promova seu
bem-estar.
Se você se devotar a Deus, fazendo um sacrifício de
todos os seus interesses particulares para ele, você não está se
menosprezando. Embora pareça que esteja negligenciando,
negando e descuidando de si mesmo ao imitar a benevolência
divina, Deus cuidará de você, e ele se certificará que seu
interesse seja satisfeito, e seu bem-estar assegurado! Você não
será um perdedor por todos os sacrifícios que lhe fez. Seja
dito para a sua glória que não será seu devedor, mas o
recompensará cem vezes mais ainda nesta vida, além das
recompensas eternas que lhe concederá no porvir. Ele mesmo
declarou: “E todo aquele que tiver deixado casas, ou irmãos,
ou irmãs, ou pai, ou mãe ou mulher, ou filhos, ou campos, por
causa do meu nome, receberá muitas vezes mais” (outro
evangelista acrescenta, “nesta vida presente”), “e herdará a
vida eterna” (Mt 19:29). E a essência dessa declaração aplica-
se a todos os sacrifícios feitos para Cristo ou para nossos
semelhantes. Cristo expressa a grandeza da recompensa para
esta vida por um número definido; mas não usa de número,
por maior que seja, para apresentar a recompensa que lhes é
prometida na eternidade. Apenas diz que receberão a vida
eterna, porque a recompensa é tão vultosa e excede de tal
maneira todos os custos e autonegação que as pessoas
possam ter tido por causa de Cristo que número algum é
suficiente para descrevê-la.
Se você é egoísta e faz de si mesmo e de seus interesses
particulares os seus ídolos, Deus o entregará a si mesmo e lhe
permitirá promover seus próprios interesses tanto quanto
possa fazê-lo. Mas se não busca egoisticamente o que é seu,
mas busca de fato o que é de Jesus Cristo e o que é de seu
próximo, então Deus se ocupará de seus próprios interesses e
felicidade, e ele é infinitamente mais apto para prover e
promover essas coisas do que você. Os recursos do universo
se movem ao seu comando, e ele pode facilmente ordená-los
todos para que sirvam ao seu bem-estar. De modo que não
buscar o que é seu, no sentido egoísta, é o melhor modo de
buscar o que é seu, em um sentido melhor. É o curso mais
direto que você pode tomar para assegurar sua mais alta
felicidade. Quando se requer que você não seja egoísta, não se
requer que você, como já foi dito, não ame e busque sua
própria felicidade, mas apenas que não busque principalmente
seus próprios interesses privados e confinados.
Mas se você põe sua felicidade em Deus, em glorificá-
lo, e em servi-lo ao fazer o bem, deste modo, acima de todos
os outros, você promoverá sua saúde, honra e prazer cá em
baixo, e obterá no porvir uma coroa de imarcescível glória, e
prazeres para sempre à mão direita de Deus. Se você busca,
no espírito do egoísmo, agarrar tudo como seu, perderá tudo e
será expelido do mundo, no fim, nu e desamparado, para a
pobreza e desprezo eternos. Mas se você não busca o que é
seu, mas as coisas de Cristo e o bem de seu próximo, o
próprio Deus será seu, e Cristo será seu, e o Espírito Santo, e
todas as coisas serão suas. Sim, “todas as coisas” serão suas,
seja Paulo, Apolo ou Cefas, ou o mundo, a vida, a morte, ou
as coisas presentes ou porvir; tudo é seu; e você é de Cristo; e
Cristo é de Deus (1 Co 3.21,22).
Que essas coisas, então, nos inclinem todos a sermos
menos egoístas do que somos, e a buscar mais do contrário,
do mais excelente espírito. O egoísmo é um princípio que nos
é nato e, de fato, toda a corrupção de nossa natureza consiste
radicalmente nisso. Mas, considerando o conhecimento que
temos do cristianismo, e como são numerosas e poderosas as
motivações que apresenta, devemos ser bem menos egoístas
do que somos, e menos prontos em buscar nossos próprios
interesses e eles apenas. O quanto há deste espírito maligno, e
quão pouco daquele espírito excelente, nobre, difusivo que
agora foi posto diante de nós! Mas, seja qual for a causa disso,
quer surja do fato de que temos noções muito estreitas do
cristianismo, e de não termos aprendido Cristo como
deveríamos ter feito, quer dos hábitos de egoísmo nos legado
pelos nossos pais, seja qual for a causa, lutemos para superá-
la, para que possamos crescer na graça de um espírito
altruísta, e assim glorificarmos a Deus e fazermos o bem aos
homens.
CAPÍTULO 9

A CARIDADE SE OPÕE A UM ESPÍRITO RAIVOSO OU IRADO

“A caridade não se irrita”


1 Coríntios 13:5

H avendo
declarado
que a
caridade é contrária aos vícios capitais do orgulho e egoísmo,
essas fontes profundas e sempre fluentes de pecado e
impiedade no coração, o apóstolo prossegue para mostrar que
também é contrária a duas coisas que são comumente os
frutos deste orgulho e egoísmo, isto é, um espírito raivoso e
severo. Neste momento, chamo sua atenção para o primeiro
dos dois pontos, ou seja, que a caridade “não se irrita”. A
doutrina aqui estabelecida para nós é, QUE O ESPÍRITO DA
CARIDADE, OU AMOR CRISTÃO, É O OPOSTO DE UM
ESPÍRITO OU DISPOSIÇÃO RAIVOSOS OU IRADOS.
Ao falar desta doutrina, investigarei primeiro em que
consiste esse espírito ou índole raivosa ao qual o espírito
cristão é contrário; e, depois, darei a razão pela qual um
espírito cristão lhe é contrário.
I. O que é esse espírito raivoso ou colérico ao qual a
caridade, ou o espírito cristão, é contrário.
Não é a todo tipo de ira que o cristianismo se opõe e é
contrário. É dito em Efésios 4.26: “Irai-vos e não pequeis”.
Isso parece implicar que haja algo como a ira não pecaminosa,
ou que seja possível irar-se em alguns casos e ainda assim não
ofender a Deus. Portanto, pode-se responder, em uma única
palavra, que o espírito cristão, ou o espírito da caridade, opõe-
se a toda ira indevida ou imprópria em quatro aspectos: em
sua natureza, ocasião, fim e medida.
1. A ira pode ser indevida e imprópria com respeito à
sua natureza.
A ira pode ser definida como uma oposição de espírito
séria e mais ou menos violenta contra qualquer mal real ou
suposto, ou em vista de qualquer falta ou ofensa de outro.
Toda ira é oposição de mente contra um mal real ou
imaginário. Mas nem toda oposição da mente contra o mal é
propriamente chamada de ira. Há uma oposição do
julgamento que não é ira; pois a ira é a oposição não do
julgamento frio, mas do espírito do homem, isto é, da sua
disposição de coração. Mas aqui, novamente, não é toda a
oposição do espírito contra o mal que pode ser chamada de
ira. Há uma oposição do espírito contra o mal natural que
sofremos, como, por exemplo, no luto e na dor, que é muito
diferente da ira.
Em distinção a isso, a ira é a oposição ao mal moral, ou
ao mal real ou suposto em agentes voluntários, ou ao menos
em agentes que são considerados como voluntários ou que
ajam pelo próprio arbítrio, e contra o mal que se supõe seja
sua culpa. Mas, novamente, não é toda oposição de espírito
contra o mal ou culpabilidade dos agentes morais que é ira;
pois pode haver um desgosto, sem que o espírito fique
agitado e irado. E esse desgosto é uma oposição da vontade e
do julgamento, e nem sempre dos sentimentos. Para que
ocorra a ira é necessário que estes sejam movidos. Em toda ira
deve haver seriedade e oposição de sentimento, e o espírito
deve ser movido e atiçado dentro de nós. A ira é uma das
paixões ou afeições da alma, embora quando chamada de
afeição deva ser, na maior parte das vezes, encarada como
uma má afeição.
Essa sendo a natureza da ira em geral, pode ser
mostrado agora de que modo ela é indevida e imprópria em
sua natureza. E isso ocorre com toda ira que contém má
vontade ou desejo de vingança. Alguns definiram a ira como
sendo um desejo de vingança. Mas não se pode considerar
isso como uma definição da ira em geral, pois, se assim o
fosse, não haveria ira que não implicasse a má vontade e o
desejo que algum outro pudesse ser prejudicado. Mas, sem
dúvida, há alguma coisa como a ira que é consistente com a
boa vontade; pois um pai pode estar irado com seu filho, ou
seja, pode achar em si mesmo uma firmeza e oposição de
espírito à má conduta de seu filho, e seu espírito pode se
empenhar e se animar na oposição a essa conduta e a seu
filho, enquanto persistir nela. Contudo, ao mesmo tempo, não
terá propriamente nenhuma má vontade para com a criança,
mas ao contrário, uma verdadeira boa vontade. Longe de
desejar seu prejuízo, pode ter exatamente os mais altos
desejos pelo seu verdadeiro bem-estar, e sua própria ira será
tão somente sua oposição àquilo que pensa prejudicar seu
filho. Isso mostra que a ira, em sua natureza geral, antes
consiste na oposição do espírito ao mal do que no desejo de
vingança.
Se a natureza da ira em geral consistisse na má vontade
e no desejo de vingança, nenhuma ira seria legítima em caso
algum, pois não nos é permitido entreter a má vontade para
com os outros em nenhum momento, mas devemos ter boa
vontade para com todos. Cristo requer de nós que desejemos
o bem e oremos pela prosperidade de todos, até mesmo de
nossos inimigos, e daqueles que maliciosamente nos usam e
perseguem (Mt 5.44). A regra dada pelo apóstolo é: “Abençoai
os que vos perseguem, abençoai e não amaldiçoeis” (Rm
12.14). Ou seja, devemos apenas desejar o bem e orar pelo
bem dos outros, e de modo nenhum desejar o mal. Assim
toda vingança é proibida, exceto a vingança que a justiça
pública traz sobre o transgressor, na aplicação da qual os
homens não agem por si mesmos, mas por Deus. A regra é:
“Não te vingarás, nem guardarás ira contra os filhos do teu
povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o
SENHOR” (Lv 19.18). E diz o apóstolo: “Não vos vingueis a
vós mesmos, amados, mas dai lugar à ira; porque está escrito:
A mim me pertence a vingança; eu é que retribuirei, diz o
Senhor” (Rm 12.19). De modo que o cristianismo se opõe a
toda ira que contém a má vontade ou um desejo de vingança e
a proíbe com as mais temíveis sanções.
Às vezes, por ira, do modo como é referida na Escritura,
tem-se em vista apenas o pior sentido dela, ou aquele sentido
que implica a má vontade e o desejo de vingança. Nesse
sentido, toda ira é proibida, como em Efésios 4.31: “Longe de
vós, toda amargura, e cólera, e ira, e gritaria, e blasfêmias, e
bem assim toda malícia”; e novamente em Colossenses 3.8:
“Agora, porém, despojai-vos, igualmente, de tudo isto: ira,
indignação, maldade, maledicência, linguagem obscena do
vosso falar”.
Logo, a ira pode ser irregular e pecaminosa com respeito
à sua natureza. E também, 2. A ira pode ser indevida e não
cristã com respeito à sua ocasião.
Essa impropriedade consiste em ela ser sem justa causa.
Cristo fala disso quando diz: “Todo aquele que sem motivo se
irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento” (Mt 5.22).
Isso pode ocorrer de três maneiras: Primeiro, quando a
ocasião da ira é aquela em que não há nenhuma falta na
pessoa que é seu objeto.
Isso não é tão raro de acontecer. Muitas pessoas têm tal
disposição orgulhosa e irritante que ficarão iradas com
qualquer coisa que em qualquer aspecto lhes seja contrária, ou
importuna, ou oposta a seus desejos, quer se tenha alguém
para culpar por isso ou não. Assim, as pessoas por vezes se
irritam com outras por coisas que não lhe são imputáveis, mas
que acontecem meramente pela sua ignorância involuntária ou
pela sua impotência. Ficam irritadas que não tenham agido
melhor, quando a causa única se deveu às circunstâncias, que
eram tais que não poderiam ter agido de maneira diferente.
Outras vezes as pessoas se irritam com outras não
apenas por coisas que não lhes são imputáveis, mas por aquilo
que é realmente bom e pelo que deveriam ser elogiadas. Esse
sempre é o caso quando as pessoas se iram contra Deus e se
irritam com Sua providência e dispensações para com elas.
Assim, ser aborrecido e impaciente e murmurar contra a
conduta de Deus é tipo muito horrível de ira. Não obstante, é
este com muita frequência o caso neste mundo mau. Disso os
israelitas foram com muita frequência culpados e, por essa
causa, muitos deles foram destruídos no deserto. E essa foi a
culpa de Jonas, embora fosse um bom homem, quando se
irou contra Deus sem motivo – irou-se contra aquilo pelo que
deveria louvá-lo, isto é, sua grande misericórdia para com os
ninivitas.
Frequentemente também os ânimos das pessoas se
mantêm em grande aborrecimento, devido às coisas lhes
serem contrárias, e por encontrarem tribulações,
desapontamentos e confusão em seus negócios, quando não
reconhecem que é com Deus que se irritam e estão iradas, e
nem mesmo parecem dispostas a se convencerem disso. Mas,
de fato, essa irritação não pode ser interpretada de outra
forma; e seja lá o que finjam, no final das contas, isso visa ao
autor da providência – é contra o Deus que ordena esses
eventos difíceis, de modo que é murmuração e irritação contra
Ele.
Também é muito comum que as pessoas se irem contra
as outras, por terem feito o que é correto e tão somente aquilo
que é seu dever. Jamais houve tanta amargura e ferocidade de
ira entre os homens, de um para com o outro, e tanta
hostilidade e malícia, por qualquer coisa, como tem havido
pela prática do que é correto. A história não registra maiores
crueldades do que aquelas praticadas contra o povo de Deus
por causa de sua profissão e prática da religião.
Como se irritavam os escribas e fariseus com Cristo, por
fazer a vontade do Pai naquilo que fazia e dizia aqui na terra!
Quando as pessoas se iram contra outras, ou contra
autoridades civis ou eclesiásticas, por procederem
regularmente contra elas por seus erros ou pecados, iram-se
por que elas fazem o que é certo. E esse é o caso quando se
irritam com seu próximo ou irmãos na igreja por sustentarem
um testemunho fidedigno contra elas, e por se esforçarem por
lhes trazerem à justiça quando o caso requer.
Com frequência, as pessoas se iram contra as outras não
apenas por fazerem o certo, mas por fazerem coisas que são
atos de amizade para eles, como quando nos iramos com os
outros por administrarem a reprovação cristã por qualquer
coisa de errado que observarem em nós. Isto o salmista
afirmou que aceitaria como uma bondade: “Fira-me o justo,
será isso mercê; repreenda-me, será como óleo sobre a minha
cabeça, a qual não há de rejeitá-lo” (Sl 141.5). Mas os que
com isso se iram, tola e pecaminosamente o tomam como
uma injúria. Em todas essas coisas, nossa ira é indevida e
insensata com respeito à sua ocasião, quando essa ocasião
não é culpa daqueles com quem nos iramos. E assim,
Segundo, a ira é indevida e não cristã quanto à sua ocasião
quando as pessoas se iram em ocasiões insignificantes e
triviais, e quando, embora haja algo para se culpar, contudo a
falta é tão pequena e de tamanha insignificância que não é
digna de nossa agitação e atenção.
Deus não nos chama a ter nossos espíritos
incessantemente comprometidos na oposição e aguçados na
ira, a menos que seja em algumas ocasiões importantes.
Aquele que se ira a cada pequena falta que possa encontrar
em outros é certamente alguém com quem ocorre o oposto do
que é expresso no texto. Daquele que é provocado com cada
coisinha, cada banalidade, certamente não se pode dizer que
“não se irrita facilmente”. Alguns são de tal espírito iracundo
e irritável que são tirados do sério por toda coisinha, e por
coisas nos outros, na família, na sociedade ou nos negócios
que não são faltas maiores do que eles cometem diariamente.
Aqueles que se irritam assim com toda falta que veem nos
outros certamente devem esperar estar sempre em um estado
de agitação e suas mentes jamais sossegarão. Pois nada se
pode esperar neste mundo senão que continuamente vejamos
faltas nos outros, assim como há continuamente faltas em nós
mesmos. Portanto, ocorre que o cristão é ensinado a ser
“Tardio para falar, tardio para se irar” (Tg 1.19). Também se
diz que “O que presto se ira faz loucuras”. Aquele que
diligentemente guarda seu próprio espírito não ficará irado
com frequência ou facilidade. Ele sabiamente mantém sua
mente em uma disposição calma e límpida, e não permite que
seja arrebatada com a ira, exceto em ocasiões extraordinárias,
e aquelas que especialmente exigem isso.
Terceiro, a ira pode ser imprópria e não cristã em sua
ocasião, quando nossos espíritos são agitados com as faltas
dos outros, especialmente enquanto elas nos afetam, e não
por que elas sejam contrárias a Deus.
Nunca deveríamos nos irar senão pelo pecado, e este
deveria ser sempre aquilo a que nos opomos em nossa ira.
Quando nossos ânimos são atiçados para nos opormos ao
mal, deve ser na sua condição de pecado, ou principalmente
por ser contra Deus. Se não houver nenhum pecado e
nenhuma culpa, então não temos nenhum motivo para nos
irarmos. Se houver alguma falta ou pecado, então é
infinitamente pior quando é contra Deus do que quando é
contra nós, e, portanto, requer a maior oposição por esse
motivo. As pessoas pecam em sua ira quando nela são
egoístas, pois não devemos nos comportar como se
pertencêssemos a nós mesmos, uma vez que pertencemos a
Deus e não a nós mesmos.
Quando se comete uma falta em que há pecado contra
Deus e que prejudica as pessoas, elas devem ter especialmente
em conta, e seus espíritos principalmente devem ser movidos
contra o pecado, por que contra Deus. Pois devem ser mais
solícitas pela honra de Deus do que por seus interesses
temporais. Toda ira, quanto à ocasião, é ou uma virtude ou um
vício, pois não há meio-termo que seja nem bom nem ruim.
Mas não há nenhuma virtude ou bondade em se opor ao
pecado, a menos que seja na sua condição de pecado. A ira
que é virtuosa é a mesma coisa que, em uma de suas formas, é
chamada de zelo. Nossa ira deveria ser como a ira de Cristo.
Ele era semelhante a um cordeiro sob os maiores danos
pessoais, mas jamais o vemos manifestando ira senão na
causa de Deus contra o pecado enquanto pecado. E assim
deve ser conosco.
Mas assim como a ira pode, nessas três circunstâncias,
ser indevida e não cristã com respeito à sua ocasião ou causa,
também, 3. Pode ser ruinosa e pecaminosa com respeito a
seu propósito. E isso em dois aspectos.
Primeiro, quando nos iramos sem atenciosamente nos
propor algum propósito a ser alcançado por ela.
Nesse sentido a ira é precipitada e imprudente, quando é
permitido que irrompa e persista sem qualquer consideração
ou motivo. A razão não ganha espaço na questão; mas as
paixões adiantam-se à frente da razão e permite-se que a ira
surja antes mesmo que seja oferecida esta reflexão sobre a
questão: “de que benefício será, a mim e aos outros?” Essa ira
não é a ira de homens, mas a paixão cega dos animais. É um
tipo de fúria animal, ao invés da afeição de uma criatura
racional. Todas as coisas na alma humana devem estar
debaixo do governo da razão, a qual é a mais alta faculdade de
nosso ser. Todas as outras faculdades e princípios na alma
devem ser governados e dirigidos por ela ao seu fim próprio.
Portanto, quando nossa ira é desse tipo, é não cristã e
pecaminosa. E assim também, Segundo, quando nos
permitimos irar-nos por qualquer motivo errado.
Ainda que a razão nos diga, com respeito à nossa ira,
que ela não pode ser para a glória de Deus e de qualquer
benefício verdadeiro para nós, mas que deve, por outro lado,
servir bastante para o prejuízo nosso e de outros, contudo,
porque temos em vista a gratificação de nosso orgulho ou o
aumento de nossa influência, ou alguma forma de obtenção
de superioridade sobre os outros, permitimos a ira como
pedestal para alcançarmos esses outros fins, e assim
satisfazemos um espírito pecaminoso.
E finalmente,
4. A ira pode ser imprópria e ímpia com respeito à sua
medida. E isso, novamente, em dois aspectos, quanto à
medida de seu grau, e à medida de sua continuidade.
Primeiro, quando é imoderada em grau.
A ira pode ir muito além do que requer a situação. E,
frequentemente, é tão grande a ponto de deixar as pessoas
fora de si; suas paixões sendo tão violentas que, na ocasião,
não sabem o que estão fazendo e parecem incapazes de dirigir
e regular seja seus sentimentos seja a sua conduta. Às vezes,
as paixões das pessoas avultam-se tanto que elas, por assim
dizer, embriagam-se com elas, de modo que suas razões as
abandonam e agem como se estivessem fora de si. Mas o grau
da ira deveria sempre ser regulado pelo seu propósito, e
jamais deveria se permitir que fosse elevada a um grau acima
do que tende à obtenção dos bons fins que a razão propôs. E
a ira também é além da medida, sendo pecaminosa, Segundo,
quando é imoderada em sua continuidade.
É muito pecaminoso quando as pessoas ficam iradas
por muito tempo. O sábio não apenas nos dá a seguinte
prescrição: “Não te apresses em irar-te”, mas acrescenta que
“a ira se abriga no íntimo dos insensatos” (Ec 7.9). O apóstolo
diz: “Irai-vos e não pequeis; não se ponha o sol sobre a vossa
ira” (Ef 4.26). Se a ira persistir por muito tempo, logo
degenerará na malícia, pois o fermento do mal se espalha mais
rápido do que o do bem. Se uma pessoa se permite guardar a
ira contra outra por muito tempo, logo virá a odiá-la. Assim
descobrimos ser o caso realmente entre aqueles que retêm
rancor no coração contra outro semana após semana, mês
após mês e ano após ano. Eles, no fim, verdadeiramente
odeiam as pessoas contra quem assim entesouraram ira, quer
o reconheçam ou não. Esse é um pecado muito terrível às
vistas de Deus. Todos devem, portanto, ser extremamente
cuidadosos quanto a permitirem que a ira perdure por muito
tempo em seus corações.
Tendo assim mostrado o que é essa ira ou espírito
iracundo, ao qual a caridade ou espírito cristão se opõe, passo,
como proposto, a mostrar, II. Como a caridade, ou um
espírito cristão, é contrária a essa ira.
Isso farei mostrando, primeiro, que a caridade ou amor,
o qual é a suma do espírito cristão, é diretamente contrária,
em si, à ira que é pecaminosa. Depois, mostrarei que os frutos
da caridade que são mencionados no contexto são todos
contrários a ela.
1. A caridade ou amor cristão é diretamente contrária,
em si, a toda ira indevida.
O amor cristão é contrário à ira que é imprópria em sua
natureza e que tende à vingança, implicando assim má
vontade, pois a natureza do amor é a boa vontade. Ele tende a
prevenir as pessoas de se irarem sem causa justa, e longe
estará de dispor alguém à ira por ninharias. O amor é o inverso
da ira e não lhe cederá em ocasiões triviais, muito menos
ainda onde não há razão para se irar. É um espírito maligno e
pernicioso, e não um espirito amoroso, que dispõe as pessoas
a irar-se sem motivo. O amor a Deus é oposto a uma
disposição nos homens de se irarem com as faltas dos outros,
principalmente quando eles próprios se ofendem e são
injuriados por elas. Ao contrário, os dispõe a olhá-las
principalmente enquanto cometidas contra Deus. Se o amor
for exercitado, tenderá a reprimir as paixões irascíveis e
mantê-las em sujeição, de modo que a razão e o espírito do
amor possa regulá-las e impedi-las de se tornarem imoderadas
em grau ou na continuidade.
E não apenas a caridade, ou espírito cristão, diretamente
e em si mesma é contrária a toda ira indevida, mas, 2. Todos
os frutos dessa caridade que são mencionados no contexto
também o são contrários à ira indevida.
E devo mencionar apenas dois desses frutos, pois
servirão por todos, isto é, aquelas virtudes que são contrárias
ao orgulho e ao egoísmo.
Primeiro, o amor ou a caridade é contrário a toda ira
indevida e pecaminosa, assim como nos seus frutos é
contrário ao orgulho.
O orgulho é uma das causas principais da ira indevida. É
porque as pessoas são orgulhosas e se exaltam em seus
corações que são vingativas e facilmente provocadas; elas
tomam por grandes as coisas pequenas que possam ser feitas
contra elas. Sim, chegam até mesmo a encarar como vícios
coisas que há nelas que são virtudes, quando pensam que sua
honra foi tocada ou sua vontade contradita. É o orgulho que
torna as pessoas tão insensatas e apressadas em sua ira, e a
eleva a um grau tão alto, e a faz persistir por muito tempo, e
frequentemente a mantém na forma da malícia habitual. Mas,
como já vimos, o amor, ou a caridade cristã, é totalmente
oposto ao orgulho. E assim, Segundo, o amor ou caridade é
contrário a toda ira pecaminosa, assim como, em seus frutos,
é contrário ao egoísmo.
É porque as pessoas são egoístas e buscam o que é seu,
que são maliciosas e vingativas contra todos que se lhe opõem
ou interferem em seus próprios interesses. Se as pessoas não
buscassem seus próprios interesses privados e egoístas, mas a
glória de Deus e o bem comum, então seu espírito seria bem
mais animado na causa de Deus do que na sua própria. E não
seriam tão inclinadas à precipitação, pressa, desconsideração,
imoderação e à ira duradoura, para com alguém que possa tê-
las injuriado ou provocado. Mas elas, em grande medida, os
perdoariam por causa de Deus e pelo zelo que teriam pela
honra de Cristo. O fim ao qual almejariam seria não se tornar
grandes ou estabelecer sua própria vontade, mas a glória de
Deus e o bem de seus semelhantes. Mas o amor, como vimos,
opõe-se ao egoísmo.
APLICAÇÃO
Na aplicação deste assunto, vamos usá-lo, 1. Como
forma de autoexame.
Nossas próprias consciências, se fielmente investigadas
e imperativamente inquiridas, podem no máximo nos dizer se
somos, ou temos sido, pessoas desse espírito raivoso e dessa
disposição iracunda que foram descritos; se estamos
frequentemente irados ou nos permitimos a má vontade ou a
continuidade da ira. Não estamos frequentemente irados? E se
sim, não há razão para pensar que essa ira tem sido imprópria
e sem causa justa, sendo assim pecaminosa? Deus não chama
os cristãos ao seu reino para que possam permitir-se grandes
doses de irritabilidade e terem suas mentes normalmente
atiçadas e perturbadas pela ira. A maior parte da ira que você
tem acalentado não é devida principalmente, se não
inteiramente, ao seu próprio eu?
Os homens costumam invocar o zelo pela religião, e
pelo dever, e pela honra de Deus como a causa de sua
indignação, quando apenas seus interesses particulares estão
em vista e são afetados. É notável como se adiantam para
simular que são zelosos por Deus e pela justiça, em casos em
que sua honra, ou vontade, ou interesses foram tocados, e
fazem disso motivo para ofender os outros ou queixar-se
deles. Que grande diferença há em suas condutas nas outras
situações, onde a honra de Deus é do mesmo tanto ou muito
mais ferida, e seus interesses não estão especialmente em
jogo! Nesse último caso, não há a mínima aparência de zelo e
prontidão de espírito e nenhum adiantamento para reprovar, e
se queixar-, e se irar. Há, ao contrário, frequentemente, uma
prontidão para se desculpar, e se abster de reprovar os outros,
e para ser frio e negligente em qualquer oposição ao pecado.
Ademais, questione quanto a que bem foi obtido pela
sua ira, e a que você visou nela. Você alguma vez pensou
sobre essas coisas? Houve grande porção de ira e amargura na
coisas que se passaram nesta cidade em ocasiões públicas, e
muitos de vocês estiveram presentes nessas ocasiões. Essa
mesma ira foi manifesta na sua conduta, e, temo eu,
acalentada em seus corações. Examinem a si mesmos quanto
a essa questão, e investiguem qual tem sido a natureza de sua
ira. Não tem sido em grande parte, ou toda ela, daquela
natureza imprópria e ímpia da qual falamos? Não tem sido da
natureza da má vontade, malícia e amargura de espírito – uma
ira que surge de princípios orgulhosos e egoístas, porque seus
interesses, opiniões e partidos foram afetados? Sua ira não
tem estado distante do zelo cristão que não perturba a
caridade, nem amarga os sentimentos, nem leva à crueldade
ou ira na conduta?
E quanto ao período de duração de sua ira? O sol não
tem se posto mais de uma vez sobre a sua ira, às vistas de
Deus e de seu próximo? Ou melhor, ainda mais, não tem se
posto muitas vezes, mês após mês, ano após ano, enquanto o
frio do inverno não esfriou o calor de sua ira, nem o sol do
verão o derreteu para a bondade? E não há alguns aqui
presentes que estão sentados diante de Deus com ira
armazenada em seus corações, queimando lá dentro? Ou, se
sua ira for, por um tempo, oculta dos olhos humanos, não é
semelhante a uma antiga ferida não totalmente curada, que ao
mínimo toque renova a dor? Ou como fogo sufocado nos
montões de folha do outono, o qual a mínima brisa inflamará
as chamas?
E como é nas suas famílias? Essas são sociedades, as
mais intimamente unidas de todas. Seus membros estão na
relação mais próxima, sob as maiores obrigações pela paz,
harmonia e amor. Contudo, qual tem sido seu
ânimo na família? Acaso você não tem sido muitas vezes
irritadiço, irado, impaciente, rabugento e maldoso para com
aqueles que Deus, em grande medida, colocou na sua
dependência, e que ficam muito facilmente felizes ou infelizes
pelo que você diz ou faz – pela sua bondade ou maldade? Que
tipo de ira você tem permitido na família? Não tem sido com
frequência aquela insensata e pecaminosa, não apenas em sua
natureza, mas em sua ocasião, quando aqueles com os quais
vocês estava irado não tinham culpa, ou quando a falta era
insignificante ou não intencional, ou quando, talvez, você
mesmo tivesse parte da culpa sobre si? E mesmo onde possa
haver justa causa, sua ira não perdurou e o levou a ser
intratável ou severo, a tal ponto que sua consciência o
reprovou? E você não tem se irado contra seus vizinhos, que
vivem próximos a você, e com quem você trata diariamente?
E, em ocasiões triviais e por coisas pequenas, você não se
permitiu a ira contra eles? Em todos esses pontos, incumbe a
nós nos examinar e conhecer de que espécie de espírito
somos, e onde falhamos em ter o espírito de Cristo.
2. O assunto dissuade e alerta contra toda ira
imprópria e pecaminosa.
O coração humano é extremamente inclinado à ira
imprópria e pecaminosa, sendo naturalmente cheio de orgulho
e egoísmo. Vivemos em um mundo que está cheio de
ocasiões que tendem a atiçar esta corrupção que está dentro
de nós, de modo que não podemos esperar viver em qualquer
medida tolerável como os cristãos deveriam viver, neste
aspecto, sem vigilância e oração constantes. E não deveríamos
apenas vigiar contra os exercícios, mas lutar contra a fonte da
ira, e buscar intensamente tê-la mortificada em nossos
corações, pelo estabelecimento e aumento do espírito do amor
divino e da humildade em nossas almas. E, para esse fim,
diversas coisas podem ser consideradas.
Primeiro, considere com frequência suas próprias
falhas, pelas quais você deu a Deus e aos homens razão
para que se desagradassem de você. Durante toda a sua vida,
você ficou aquém das exigências de Deus, incorrendo, assim,
justamente, na sua terrível ira. Constantemente você tem
ocasião de orar a Deus para que ele não se ire com você, mas
lhe mostre misericórdia. E suas falhas também têm sido
numerosas para com seus semelhantes, e lhes deram sempre
azo para que se irassem contra você. Suas faltas são tão
grandes, talvez, quanto a deles; e esse pensamento deveria
levá-lo a não gastar grande parte de seu tempo se indispondo
com o argueiro nos olhos dos outros, mas, ao contrário, em
arrancar as traves dos seus. Com muita frequência, aqueles
que são rápidos em irar-se com os outros e a elevar seu
ressentimento pelas faltas deles são igualmente ou ainda mais
culpados pelas mesmas faltas. De modo semelhante, os que
muito se dispõem a irar-se com os outros que falaram mal
deles são, com frequência, muito constantes em falar mal dos
outros, e até mesmo, na sua ira, a difamá-los e injuriá-los.
Se os outros, então, nos provocarem, ao invés de nos
irarmos contra eles, que nossos primeiros pensamentos se
voltem para nós mesmos, e que isso nos incite à autorreflexão
e nos leve a investigar se não temos sido culpados das exatas
mesmas coisas que excitam nossa ira, ou até mesmo de coisas
piores. Assim, pensar em nossas próprias falhas e erros
tenderá a nos afastar da ira indevida contra os outros.
Considere, também,
Segundo, como essa ira imprópria destrói o conforto
daquele que a permite.
Ela atormenta a alma na qual habita, como uma
tempestade atormenta o oceano. Essa ira é inconsistente com
a apreciação do homem de si mesmo, ou a ter qualquer paz ou
respeito próprio verdadeiros em seu espírito. Pessoas de
temperamento iracundo e raivoso, cujas mentes sempre estão
inquietas, são dos tipos mais infelizes e vivem vidas infelizes.
Por conseguinte, o apreço por nossa felicidade deve nos levar
a esquivar-nos de toda ira indevida e pecaminosa. Considere,
também, Terceiro, o quanto esse ânimo incapacita as
pessoas para os deveres da religião.
Toda ira indevida nos indispõe para os exercícios
piedosos e para os deveres ativos da religião. Coloca a alma
longe daquela doce e excelente disposição de espírito, na qual
mais desfrutamos comunhão com Deus, e que fazem a
verdade e as ordenanças mais proveitosas para nós. É por isso
que Deus nos ordena que não nos acheguemos ao seu altar
enquanto estivermos em inimizade com outros, mas “Deixa
perante o altar a tua oferta, vai primeiro reconciliar-te com teu
irmão; e, então, voltando, faze a tua oferta” (Mt 5.24); e é dito
pelo apóstolo: “Quero, portanto, que os varões orem em todo
lugar, levantando mãos santas, sem ira e sem animosidade” (1
Tm 2.8). E, uma vez mais, considere, Quarto, que a Bíblia se
refere às pessoas iracundas como inabilitadas para a
sociedade humana.
O preceito expresso de Deus é: “Não te associes com o
iracundo, nem andes com o homem colérico, para que não
aprendas as suas veredas e, assim, enlaces a tua alma”. (Pv
22.24,25). Esse homem é amaldiçoado, como uma peste da
sociedade que perturba e inquieta e põe tudo em confusão: “O
iracundo levanta contendas, e o furioso multiplica as
transgressões” (Pv 29.22). Todos se sentem desconfortáveis
perto dele; seu exemplo é mal e sua conduta é desaprovada
tanto por Deus quanto pelos homens.
Que todas essas considerações, portanto, vençam a
todos e os levem a evitar um espírito e temperamento irado, e
a cultivarem o espírito da gentileza e bondade e amor, que é o
espírito do céu.
CAPÍTULO 10
A CARIDADE OPÕE-SE À CENSURA
“A caridade...não suspeita mal.”
1 Coríntios 13.5

T endo
observado
como
caridade, ou amor cristão, se opõe não apenas ao orgulho e
a

egoísmo, mas aos frutos comuns dessas disposições más, isto


é, um espírito irado e censurador, e já tendo falado do
primeiro, agora abordo o segundo. E, quanto a isto, o apóstolo
declara que a caridade “não suspeita mal”[18]. A doutrina
apresentada nessas palavras claramente é esta: A CARIDADE,
OU AMOR CRISTÃO, OPÕE-SE À CENSURA Ou, em
outras palavras, é contrária à disposição de pensar ou julgar
não caridosamente os outros.
A caridade, em um dos usos comuns da expressão,
significa uma disposição para pensar dos outros o melhor que
a situação permitir. Esse, contudo, como mostrei
anteriormente, não é o sentido bíblico da palavra caridade,
mas apenas uma das formas do seu exercício, ou um de seus
muitos e ricos frutos. A caridade é de extensão muito mais
vasta que isso. Significa, como já vimos, o mesmo que amor
cristão ou divino, e assim é o mesmo que espírito cristão. E,
de acordo com essa concepção, aqui achamos a disposição do
julgamento caridoso mencionada entre muitos outros bons
frutos da caridade, e aqui expresso, como os outros frutos da
caridade estão no contexto, negativamente, ou pela negação
do fruto contrário, isto é, a tendência para criticar ou uma
disposição não caridosa para julgar ou censurar os outros.
Falando desse ponto, primeiro mostrarei a natureza da
censura, ou em que ela consiste. Depois mencionarei algumas
coisas onde parece se opor a um espírito cristão.
I. A natureza da censura, ou em que um espírito
crítico, a disposição para julgar de forma não caridosa os
outros, consiste.
Consiste em uma disposição para pensar mal dos outros
ou julgá-los mal com respeito a três coisas: seu estado, suas
qualidades e suas ações.
1. Um espírito crítico transparece na prontidão em se
julgar mal o estado[19] dos outros[20].
Frequentemente se mostra em uma disposição para
pensar o pior daqueles a nossa volta, quer sejam homens do
mundo quer sejam cristãos professos. Com respeito a essa
última classe, frequentemente leva as pessoas a criticar
aqueles que são professantes da religião e a condená-los como
hipócritas. Aqui, contudo, extremos devem ser evitados.
Algumas pessoas estão muito propensas a serem categóricas,
a partir de coisas pequenas que veem nos outros, em
determinar que sejam pessoas piedosas. Outras são
apressadas, também por coisas pequenas, a ser também
categóricas em condenar os outros como não tendo o mínimo
grau de graça em seus corações e como sendo estranhos à
religião vital e experimental. Mas toda positividade em
assuntos dessa natureza parece não ter garantia da Palavra de
Deus. Lá, Deus parece ter reservado a determinação positiva
do estado[21] a Si mesmo, como algo a ser mantido em suas
próprias mãos, como o grande e único perscrutador dos
corações dos filhos dos homens.
As pessoas são culpadas de censura ao condenarem o
estado dos outros quando o fazem a partir de coisas que não
são evidência de que estejam em um mal estado, ou quando
condenam os outros como hipócritas por causa da maneira
como Deus lida com eles na sua providência. Esse foi o caso
dos três amigos de Jó, que o condenaram como hipócrita
devido às suas aflições incomuns e severas. E o mesmo é
verdadeiro quando os condenam pelas falhas que possam ver
neles, que não são maiores do que as que, com frequência,
incidem sobre os filhos de Deus, e pode ser que não sejam
maiores, ou não tão grande quanto a delas próprias; embora,
apesar de todas essas coisas, essas pessoas pensem bem de si
mesmas como cristãs.
Desse modo, as pessoas são censuradoras quando
condenam as outras como sendo não convertidas e carnais
porque têm opinião diversa delas em alguns pontos que não
são fundamentais; ou quando mal o seu estado a partir do que
observam nelas, por falta da capacidade de fazer devidas
concessões ao seu temperamento natural, suas maneiras ou
falta de educação, ou outras desvantagens peculiares sob as
quais laboram. Também quando estão prontas a rejeitar a
todos como irreligiosos e não convertidos, porque suas
experiências não se enquadram todas com as suas próprias.
Estabelecem a si mesmas e suas próprias experiências como
um padrão e regra para todos os outros. Não são sensíveis
daquela vasta variedade e liberdade que o Espírito de Deus
permite e usa em sua obra salvadora nos corações dos
homens, e quão misteriosos e inescrutáveis seus caminhos
frequentemente são, especialmente nesta grande obra de fazer
dos homens novas criatura em Jesus Cristo.
Em todas essas instâncias, as pessoas frequentemente
agem não apenas de forma crítica, mas de modo tão insensato
que, ao não permitirem que ninguém seja cristão, a não ser
que tenham tido as suas mesmas experiências, parecem não
permitir que pessoa alguma que não se ajusta à sua própria
estatura, à mesma força ou temperamento do corpo e às
mesmas características de postura que a deles seja cristã.
2. Um espírito crítico aparece em uma prontidão para
julgar mal as qualidades dos outros.
Aparece em uma disposição para negligenciar suas boas
qualidades, ou tê-los como destituídos dessas qualidades
quando não o são, ou fazer pouco caso delas; magnificar suas
más qualidades e destacá-las mais do que merecem, ou acusá-
los daquelas más qualidades que não possuem. Alguns são
bastante rápidos em acusar os outros de ignorância e tolice e
outras qualidades desprezíveis, quando não o merecem de
forma alguma ser assim tratados. Alguns parecem muito aptos
a entreter uma opinião bastante baixa e desprezível dos outros
e a assim representá-los para seus companheiros e amigos,
quando uma disposição caridosa discerniria muitas boas
coisas neles, para balancear ou mais do que balancear as más,
e francamente os reconheceria como pessoas que não devem
ser desprezadas. Alguns estão prontos a acusar os outros
daquelas qualidades moralmente más das quais estão livres,
ou acusá-los com essas qualidades em grau muito acima do
que merecem.
Assim, alguns têm tal preconceito contra alguns de seus
semelhantes que os consideram pessoas muito mais
orgulhosas, egoístas, rancorosas ou maliciosas do que
realmente são. Devido a algum profundo preconceito que
tenham absorvido contra elas, estão prontos a conceber que
tenham toda espécie de más qualidades e nenhuma que seja
boa. Parecem-lhes que são espécie de gente extremamente
orgulhosa, avarenta, egoísta, ou de alguma forma, ruim,
quando pode ser que assim eles também pareçam aos olhos
dos outros. Outros veem suas muitas boas qualidades e veem,
talvez, muitos atenuantes das qualidades que não são boas;
mas o crítico vê apenas aquilo que é mal, e fala apenas o que é
injusto e depreciativo quanto às qualidades dos outros.
3. Um espírito crítico aparece em uma prontidão para
julgar mal as ações dos outros.
Por ações, aqui, deve-se entender todos os atos
voluntários externos das pessoas, quer consistindo de palavras
ou obras. Um espírito crítico para julgar mal as ações dos
outros revela-se em duas coisas: Primeiro, em julgá-los como
culpados de más ações sem qualquer evidência que os
constranja a esse julgamento.
A desconfiança, que leva as pessoas a ter ciúmes de
outras, e as prepara para suspeitar que sejam culpadas de
coisas más, quando não têm a mínima evidência disso, é um
espírito não caridoso e contrário ao cristianismo. Algumas
pessoas são muito livres em censurar os outros com respeito
àquelas coisas as quais supõem eles façam fora de suas vistas.
Estão prontas a crer que façam essa ou aquela obra má, em
segredo, e longe dos olhos alheios, ou que fizeram ou
disseram desse ou daquele jeito entre seus companheiros, e
no seu círculo de amizades, e que, por algum desígnio ou
motivo, mantêm essas coisas escondidas de outros que não
tenham os mesmos interesses deles. Essas são as pessoas
acusadas de “suspeitas malignas”, das quais fala e as quais
condena o apóstolo (1 Tm 6.4), e que estão conectadas com a
“inveja, provocação, difamações”.
Muito frequentemente, novamente, as pessoas mostram
um espírito não caridoso e crítico com respeito às ações dos
outros, adiantando-se para coletar e fazer circular maus relatos
sobre eles. Meramente ouvir rumores breves e maus sobre um
indivíduo, em um mundo tão irrefletido e mentiroso quanto
este, está longe de ser evidência suficiente contra alguém, para
nos fazer crer que seja culpado daquilo que é relatado. O
diabo, que é chamado “o deus deste mundo”, é chamado de
“mentiroso, e pai da mentira”, e, infelizmente, muitos de seus
filhos assemelham-se a ele ao contarem suas falsidades.
Contudo, é muito comum que as pessoas passem
julgamento sobre os outros sem nenhuma base ou
fundamento melhor senão que tenham ouvido que alguém
disse isto ou aquilo, ou outra coisa, embora não tenham
evidência de que o que foi dito é verdadeiro. Quando ouvem
que outro fez ou disse assim e assim, parecem imediatamente
concluir que assim ocorreu mesmo, sem fazer qualquer
investigação posterior, ainda que nada seja mais incerto ou
mais provável de ser falso do que as balbúcias ou suspiros da
fama comum. E alguns estão sempre prontos a se agarrar a
um mau relato, de modo que lhes parece agradável ouvir
acerca dos males alheios. Seus espíritos parecem famintos
disso, e lhes é, por assim dizer, como comida para a fome de
seus corações depravados, e disso se alimentam como aves
carniceiras fazem com as carnes mais repugnantes. Tomam
fácil e vorazmente como verdade, sem exame, mostrando
assim como são contrários em caráter e conduta àquela
pessoa de que fala o salmista (Sl 15.1-3), que habita no
santuário de Deus e mora no seu santo monte e de quem
declara que “não lança injúria contra o seu vizinho”. Mostram
também que são, ao contrário, como o “malfazejo”, que
“atenta para o lábio iníquio”, e como o “mentiroso”, que
“inclina os ouvidos para língua maligna” (Pv 17.4).
Um espírito crítico em julgar mal as ações dos outros
também se revela, Segundo, em uma disposição para
interpretar da pior maneira suas ações.
Os críticos não são apenas rápidos em julgar que outros
sejam culpados de más ações sem prova suficiente, mas
também são inclinados a interpretar mal suas ações, quando
essas poderiam muito bem, e até melhor, admitirem uma boa
interpretação. Com muita frequência, o desígnio e fim que os
movem na ação é secreto, confinado aos recessos do próprio
peito do agente. Contudo, as pessoas são comumente muito
predispostas a fazerem críticas sobre o ato, sem referência a
esses; e esse é um tipo de crítica e julgamento não caridoso
tão comum, ou mais comum, que qualquer outro.
Assim, é muito comum que as pessoas, quando têm
preconceitos contra as outros, interpretem mal suas ações ou
palavras que são aparentemente boas, dando a entender que
foram realizadas de forma hipócrita. Isso é especialmente
verdadeiro em referência aos assuntos e cargos públicos. Se
qualquer coisa for dita ou feita por pessoas em que se mostre
que haja preocupação pelo bem público, ou pelo bem de um
próximo, ou pela honra de Deus, ou pelo interesse da religião,
alguns sempre dirão prontamente que isso tudo não passa de
hipocrisia e que o propósito realmente é apenas promover
seus próprios interesses e a eles próprios. Dizem que aqueles
apenas se exibem e enganam os outros, tendo em todo tempo
maus desígnios em seus corações.
Mas aqui pode-se questionar: “Onde reside o mal em
julgar mal os outros, visto que não é verdadeiro que todo mal
julgamento dos outros é ilícito? Onde se devem traçar os
limites?” A isso, respondo, Primeiro, há algumas pessoas que
foram apontadas para serem juízes, na sociedade civil e nas
igrejas, e que devem julgar imparcialmente aqueles que
propriamente vierem a seu conhecimento, quer bons ou maus,
e os sentenciarem de acordo com o que são; para aprovarem
os bons e condenarem os maus, de acordo com a evidência e
a natureza do ato feito, e sua harmonia ou desarmonia com a
lei, que é a norma dos juízes.
Segundo, pessoas específicas, nos seus julgamentos
privados a respeito dos outros, não são obrigadas a se
despojaram da razão, a fim de que possam julgar bem a
tudo. Isso seria evidentemente contrário à razão, pois a
caridade cristã não é algo fundado sobre as ruínas da razão,
mas há a mais doce harmonia entre a razão e a caridade.
Portanto, não somos proibidos de julgar todas as pessoas,
quando há evidente e clara evidência de que sejam justamente
acusadas de algum mal. Não devemos nos recriminar quando
julgarmos aqueles que são ímpios e pobres miseráveis sem
Cristo, que dão prova flagrantes que assim o são por uma
conduta de ação ímpia. “Os pecados de alguns homens são
notórios e levam a juízo, ao passo que os de outros só mais
tarde se manifestam”, diz o apóstolo[22]. Ou seja, os pecados
de alguns homens dão tão notório testemunho contra eles que
são suficientes para condená-los como ímpios à plena vista do
mundo, mesmo antes da vinda daquele dia final de
julgamento que revelará os segredos dos corações de todos.
Logo, as ações de alguns dão tão clara evidência da
malignidade de suas intenções que julgar que seus propósitos
e fins sejam ímpios não equivale a julgar os segredos do
coração.
Portanto, é evidente que nem todo julgamento quanto
ao estado, qualificações ou ações dos outros é uma crítica não
caridosa. Porém, o mal desse julgamento, em que consiste a
censura, reside em duas coisas: Primeiro, em julgar mal os
outros quando a evidência não obriga a isso, ou em pensar
mal deles quando a situação permite muito bem que se pense
o contrário; quando aquelas coisas que parecem lhes ser
favoráveis são negligenciadas e apenas as que lhes são
contrárias são consideradas e quando estas últimas são
exageradas e grande ênfase é colocada sobre elas. O mesmo
ocorre quando as pessoas se apressam e se precipitam em
julgar e condenar os outros, embora tanto a prudência como a
caridade as obriguem a suspender seus julgamentos até que
conheçam mais do assunto e todas as circunstâncias estejam
claras aos seus olhos. As pessoas podem frequentemente
mostrar uma grande porção de falta de caridade e de
imprudência, ao censurarem livremente os outros antes que
tenham ouvido o que têm a dizer em sua defesa. Por isso é
dito: “Responder antes de ouvir é estultícia e vergonha” (Pv
18.13).
E o mal desse julgamento, que é devido à crítica, reside,
em segundo lugar, na satisfação em julgar mal os outros. As
pessoas podem julgar mal as outras devido à clara e plena
evidência que as compele a isso e, ainda assim, pode ser para
a sua tristeza que sejam obrigadas a assim julgar. É como um
pai carinhoso que ouve acerca de um grande crime cometido
pelo filho, com tamanha evidência, que não pode achar que
seja mentira. Mas, com muita frequência, o julgamento é feito
contra os outros de tal modo que evidencie que o indivíduo se
agrada em fazê-lo. Ele se inclina tanto em julgar mal, julga
com evidência tão desprezível e carrega seu julgamento a tais
extremos a ponto de mostrar que sua inclinação está nele e
que ama pensar mal dos outros.
Essa satisfação em julgar mal os outros também é
manifesta no fato de sermos inclinados a declarar nosso
julgamento e falar tanto quanto pensar mal dos outros. Pode
ser ao falar deles com zombaria ou com um ar de desprezo,
ou com manifesto prazer em suas deficiências ou erros.
Quando julgar mal os outros é contrário às inclinações das
pessoas, elas serão bastante cautelosas em fazê-lo, e não irão
adiante na questão além do que lhes obrigue a evidência;
pensarão o melhor que a natureza do caso admite e
interpretarão da melhor maneira possível as palavras e ações
dos outros. E, quando forem obrigados, contra suas
inclinações, a pensar mal dos outros, não lhes será prazeroso
declará-lo, mas serão retraídas de falar a esse respeito para
qualquer um e o farão apenas quando o senso do dever as
levar a isso.
Tendo assim mostrado a natureza da crítica, passo,
como proposto, II. A mostrar como um espírito crítico é
contrário ao espírito de caridade ou do amor cristão.
1. É contrário ao [mandamento] de amar nosso
próximo. Isso aparece em três coisas.
Primeiro, vemos que as pessoas são muito tardias para
julgar mal a si mesmas.
Elas são muito prontas a pensar bem acerca de suas
próprias qualificações e assim são inclinadas a pensar o
melhor a respeito de sua própria condição. Se há nelas
qualquer coisa que assemelhe-se à graça, são enormemente
dispostas a pensar que seu estado é bom. Também estão
prontas a pensar bem de suas próprias palavras e obras e
muito tardias em pensar mal de si mesmas em qualquer um
desses aspectos. A razão é que têm grande amor por si
mesmas. Portanto, se amassem a seu próximo como a si
mesmas, o amor teria a mesma tendência com respeito a ele.
Segundo, vemos que as pessoas são muito indispostas
a julgar mal aqueles que amam. Esse é o caso entre as
pessoas com respeito àqueles que são seus amigos pessoais, e
também dos pais em relação aos filhos. São muito prontos a
pensarem bem deles e a pensarem o melhor de suas
qualificações, tanto as naturais quanto as morais. São muito
mais indispostos que os outros em acolher maus relatos a
respeito deles, e lentas em crer no que se diz contra eles. São
dispostos a usar as mais favoráveis interpretações em suas
condutas. E a razão é porque os amam.
Terceiro, vemos também que é universalmente
verdadeiro que onde o ódio e a má vontade contra os outros
prevalecem, lá também prevalece excessivamente um espírito
crítico.
Quando as pessoas brigam e há uma dificuldade entre
elas, e a ira e o preconceito irrompem, e o rancor é contraído,
sempre há uma prontidão em se julgar mal os outros; uma
aptidão para pensar pejorativamente das qualificações dos
outros e a pensar que descobriram um no outro grande porção
de más qualidades e algumas que de fato são muito más. Cada
um está apto a acalentar inveja do que o outro pode fazer
quando ausente e fora de vista, e se inclina a dar ouvidos a
maus relatos a respeito deles, e a crer em cada palavra dita
sobre eles, e aprontam-se para interpretar da pior maneira
tudo o que dizem ou fazem. Muito comumente, há uma
prontidão em pensar desfavoravelmente da condição em que
se encontram e a censurá-los como pessoas sem a graça.
Assim como ocorre em casos como esses, de dificuldade
entre pessoas particulares, também costuma acontecer em
casos de diferença entre dois partidos. Essas coisas mostram
claramente que é da falta de amor cristão ao nosso próximo e
da indulgência de um espírito contrário que nasce a crítica.
Acrescentarei apenas, 2. Que um espírito crítico manifesta
um coração orgulhoso.
E isso, o contexto declara, é contrário ao espírito da
caridade ou do amor cristão. Uma prontidão para julgar e
criticar os outros mostra uma disposição orgulhosa, ainda que
a própria pessoa que critica pense de si mesma como livre
dessas faltas e culpas e sinta-se, portanto, justificada em estar
ocupada e amargurada na acusação de outras por essas coisas
e em condená-las por elas. Isso é denotado na linguagem do
Salvador, no capítulo sete de Mateus: “Não julgueis para que
não sejais julgados” e “Por que notas o argueiro no olho de
teu irmão, mas não considera a trave que está no teu próprio?
Ou como dirás a teu irmão: Deixa-me tirar o argueiro do teu
olho, quando tens a trave no teu? Hipócrita!” O mesmo se
conclui da declaração do apostolo: “Portanto, és
indesculpável, ó homem, quando julgas, quem quer que sejas;
porque, no que julgas a outro, a ti mesmo te condenas; pois
praticas as próprias coisas que condenas” (Rm 2.1). Se as
pessoas fossem humildemente sensíveis de suas próprias
faltas, não seriam muito prontas ou satisfeitas em julgar as
outras, pois a crítica feita aos outros também repousaria sobre
elas mesmas.
Há os mesmos tipos de corrupção em todos os homens
indistintamente, e se aquelas pessoas que estão mais ocupadas
em criticar as outras apenas olhassem para dentro de si
mesmas e seriamente examinassem seus próprios corações e
vidas, poderiam, em geral, ver as mesmas disposições e
condutas em si mesmas, vez por outra, que veem e julgam em
outros, ou ao menos algo tão igualmente merecedor de
censura. Uma disposição para julgar condenar mostra uma
disposição pretenciosa e arrogante. Tem a aparência de
alguém se colocando acima dos outros, como se estivesse
apto a ser o senhor e julgar seus semelhantes, e supusesse que
deveria ficar de pé ou cair de acordo com seu comando. Isso
parece estar implícito na linguagem do Apóstolo: “Aquele que
fala mal do irmão ou julga a seu irmão fala mal da lei e julga a
lei; ora, se julgas a lei não és observador da lei, mas juiz” (Tg
4.11). Ou seja, você não age como um conservo daquele a
quem julga, ou como alguém que está sujeito à mesma lei que
ele, mas como o legislador e juiz, cuja ocupação é sentenciar
sob ela. Portanto, acrescenta-se no próximo verso: “Um só é
Legislador e Juiz, aquele que pode salvar e fazer perecer; tu,
porém, quem és, que julgas o próximo?”. E igualmente, em
Romanos 14.4: “Quem és tu que julgas o servo alheio? Para o
seu próprio senhor está em pé ou cai”. Deus é o único juiz por
direito e o pensar a respeito de sua soberania e domínio
deveria nos prevenir de ousar julgar ou censurar nossos
semelhantes.
APLICAÇÃO
Na aplicação desse assunto, observo: 1. Que ele reprova
severamente aqueles que comumente tomam para si a
liberdade de falar mal dos outros.
Se pensar mal for suficiente para ser condenado,
certamente são ainda mais condenados aqueles que não
apenas se indulgem no pensar, mas também no falar mal dos
outros e em caluniá-los com suas línguas. A maledicência que
é feita pelas costas do próximo consiste bastante em censurá-
los ou na expressão de pensamentos e julgamentos não
caridosos acerca de suas pessoas e conduta. Portanto, falar
mal e julgar os outros são, às vezes, tomados como a mesma
coisa na Bíblia, como na passagem já citada do apóstolo
Tiago. Com que frequência a Escritura condena a calúnia e a
maledicência! O salmista declara que os ímpios “soltam a
boca para o mal, e a sua língua trama enganos. Senta-se para
falar contra seu irmão e difama o filho de sua mãe” (Sl
50.19,20). E diz o apóstolo a Tito: “Lembra-lhes que ... não
difamem a ninguém, nem sejam altercadores, mas cordatos,
dando provas de toda cortesia, para com todos os homens”
(Tt 3.2). E novamente é escrito: “Despojando-vos, portanto,
de toda maldade e dolo, de hipocrisia e invejas e de toda sorte
de maledicências” (1 Pe 2.1). E é mencionado como parte do
caráter de todos que são cidadãos de Sião e que permanecerão
na santa colina de Deus “que não difama com a sua língua”
(Sl 15.3).
Investiguem, portanto, se não têm sido culpados disso;
se não têm frequentemente censurado os outros e expressado
duros pensamentos a respeito deles, especialmente daqueles
com quem tiveram alguma dificuldade ou que estejam em um
partido diferente do seu. Não é essa uma prática a que vocês
mais ou menos se entregam, dia após dia? Se sim, considerem
o quão contrário é ao espírito do cristianismo e à solene
profissão que eventualmente vocês fizeram como cristãos. E
seja admoestado a total e imediatamente renunciar a ela. O
assunto, 2. Alerta a todos contra a censura, seja pelo
pensamento ou maledicência, se quiserem ser dignos do
nome de cristãos.
E aqui, em adição aos pensamentos já sugeridos, que
duas ou três coisas sejam consideradas.
Primeiro, com que frequência, quando a verdade vem a
se mostrar plenamente, as coisas parecem bem melhores
quanto aos outros, do que quando, a princípio, estávamos
prontos a julgar.
Há muitos exemplos na Escritura quanto a esse ponto.
Quando os filhos de Rúben e de Gade e a meia tribo de
Manassés tinham construído um altar às margens do Jordão, o
resto de Israel o ouviu e logo concluiu que eles haviam se
desviado do Senhor, e precipitadamente resolveram sair à
guerra contra eles. Mas, quando a verdade veio à luz, pareceu,
ao contrário, que tinham erigido um altar com bons
propósitos, ou seja, o culto de Deus, como se pode ver no
vigésimo segundo capítulo de Josué.
Eli pensou que Ana estivesse bêbada, quando veio ao
templo. Mas quando a verdade veio à luz, ele se satisfez que
ela estivesse cheia de aflição e que estivesse orando e
derramando sua alma diante de Deus (1 Sm 1.12-16).
Davi concluiu, pelo que Ziba lhe falou, que Mefibosete
tinha manifestado uma intenção rebelde e traiçoeira contra sua
coroa, e agiu de tal maneira com base em seu espírito crítico, a
ponto de prejudicar gravemente este último. Mas quando a
verdade veio a aparecer, viu que as coisas eram bem
diferentes.
Elias julgou mal a situação de Israel, pensando que não
havia nenhum verdadeiro adorador de Deus além dele
mesmo. Mas quando Deus lhe falou a verdade, mostrou-se
que havia sete mil que não tinham curvado os joelhos a Baal.
E como comumente as coisas se assemelham a isso nos
nossos dias! Com que frequência, após análise minuciosa,
descobrimos coisas melhores acerca dos outros do que
ouvimos e estivemos, a princípio, prontos a julgar! Sempre há
dois lado para cada história e é geralmente sábio, seguro e
caridoso tomar o melhor deles. Contudo, é provável que não
haja algo em que as pessoas estejam tão suscetíveis ao erro,
como em presumir que o pior lado é o verdadeiro, e em
formar e expressar seu julgamento sobre os outros e suas
ações, sem esperarem até que toda a verdade seja conhecida.
Segundo, como são poucas as ocasiões que há para
sentenciarmos os outros com respeito a seu estado,
qualificações ou ações naquilo que não nos diz respeito.
Nossa maior preocupação é com nós mesmos. Para nós, é de
infinita consequência que tenhamos um bom estado diante de
Deus; que estejamos em posse de boas qualidades e
princípios; e que nos portemos bem e ajamos com propósitos
e finalidades retas. Mas é para nós uma questão menor qual é
a situação dos outros. Há pouca necessidade de fazermos
nossas críticas, mesmo que fossem merecidas, o que não
podemos estar certos. Pois a questão está nas mãos de Deus,
que é infinitamente mais apto para vê-la do que nós podemos
ser. E há um dia apontado para a sua decisão. De modo que,
se assumimos o julgamento dos outros, iremos não apenas
tomar para nós mesmos uma obra que não nos pertence, mas
a estaremos fazendo antes do tempo. “Portanto”, diz o
apóstolo, “nada julgueis antes do tempo, até que venha o
Senhor, o qual não somente trará à plena luz as coisas ocultas
das trevas, mas também manifestará os desígnios dos
corações; e, então, cada um receberá o seu louvor da parte de
Deus” (1 Co 4.5).
Terceiro, Deus ameaçou que se formos achados
julgando e condenando de maneira crítica os outros,
seremos nós mesmos condenados.
“Não julgueis”, ele diz “para que não sejais julgados.
Pois, com o critério com que julgardes, sereis julgados; e, com
a medida com que tiverdes medido, vos medirão também”. E,
novamente, o apóstolo questiona: “Tu, ó homem, que
condenas os que praticam tais coisas e fazes as mesmas,
pensas que te livrarás do juízo de Deus?” (Rm 2.3). Essas são
ameaças terríveis, dos lábios daquele grande ser que deve ser
nosso juiz no dia final, por quem infinitamente nos convêm
sermos absolvidos, e de quem uma sentença de condenação
nos seria indizivelmente terrível, se, no fim, afundarmos para
sempre sob ela. Portanto, como não gostaríamos nós mesmo
de recebermos a condenação dele, não estendamos essa
medida aos outros.
CAPÍTULO 11
TODA GRAÇA VERDADEIRA NO CORAÇÃO
TENDE À PRÁTICA SANTA NA VIDA
“Não se regozija na iniquidade, mas regozija-se na
verdade”
1 Coríntios 13.6

H avendo
mencionado
nos
versos precedentes muitos dos bons frutos da caridade e
dois

mostrado como ela tende a uma excelente conduta em muitas


instâncias, o apóstolo agora as sumariza e a todas as suas boas
tendências com respeito à conduta ativa, dizendo: “Não se
alegra com a iniquidade, mas regozija-se com a verdade”. É
como se dissesse: “Mencionei muitas coisas excelentes a que
a caridade tende e mostrei como é contrária a muitas coisas
más. Mas não preciso continuar multiplicando os exemplos,
pois, em uma palavra, a caridade é contrária a tudo na vida e
prática que seja mal, e tende a tudo o que é bom. Não se
alegra com a iniquidade, mas regozija-se na verdade”.
Por “iniquidade” parece se ter em mente aqui tudo o
que seja pecaminoso na vida e na prática, e por “a verdade”
tudo o que seja bom na vida, ou tudo o que esteja incluído na
prática cristã e santa. A palavra verdade é, de fato,
variadamente usada na Bíblia. Às vezes, designa as doutrinas
verdadeiras da religião; outras vezes, o conhecimento dessas
doutrinas; às vezes, a veracidade ou fidelidade; e, outras
vezes, significa toda a virtude e santidade, incluindo tanto o
conhecimento e recepção de todas as grandes verdades das
Escrituras, como a conformidade com elas na vida e conduta.
Nesse último sentido, a palavra é usada pelo apóstolo João,
quando ele diz: “Pois fiquei sobremodo alegre pela vinda de
irmãos e pelo seu testemunho da tua verdade, como tu andas
na verdade” (3 Jo 3). Tomando a palavra nesse sentido e
generalizando a proposição temos, como sugerido pelo texto,
a seguinte doutrina:
QUE TODA GRAÇA CRISTÃ VERDADEIRA NO
CORAÇÃO TENDE À PRÁTICA SANTA NA VIDA
Negativamente, o apóstolo declara que a caridade se
opõe a toda impiedade ou prática má; e, positivamente, que
tende a toda justiça ou prática santa. Como o princípio pode
ser generalizado e, também, como a caridade já foi
demonstrada ser a suma de toda graça verdadeira e salvífica, a
doutrina que foi declarada parece estar claramente contida nas
palavras do texto, isto é, a doutrina de que toda graça cristã
verdadeira tende à prática santa.
Se alguém tiver a noção da graça de que seja algo
colocado no coração, para lá ficar confinado e dormente, e
que sua influência não governa o homem por inteiro, como
um ser ativo; ou se supuserem que a mudança feita pela
graça, ainda que realmente melhore o coração em si, contudo
não tem tendência alguma a um correspondente
melhoramento da vida exterior, tal pessoa sustenta opinião
muito errada. E que esse é o caso, me esforçarei para deixar
claro, primeiro com argumentos a favor da doutrina que foi
apresentada, e, depois, ao mostrar sua verdade com respeito a
graças particulares.
I. Apresentarei alguns argumentos em apoio da
doutrina de que toda graça verdadeira no coração tende à
prática santa na vida.
1. A prática santa é o objetivo daquela eleição eterna,
que é o primeiro fundamento de toda graça verdadeira.
A prática santa não é o fundamento e razão da eleição,
como supõem os arminianos - que imaginam que Deus elege
os homens para a vida eterna pela presciência de suas boas
obras - mas é o fim e propósito da eleição. Deus não elege os
homens porque prevê que serão santos, mas para que possa
fazê-los e para que eles sejam santos. Assim, na eleição, Deus
ordenou que os homens andassem nas boas obras, como diz
o apóstolo: “Pois somos feituras dele, criados em Cristo Jesus
para as boas obras, as quais Deus de antemão ordenou para
que andássemos nelas” (Ef 2.10). E novamente é dito que os
eleitos são escolhidos para esse exato fim: “Ele nos escolheu
nele, antes da fundação do mundo, para que fôssemos santos
e irrepreensíveis diante dele” (Ef 1.4). Assim, Cristo diz aos
seus discípulos: “Não fostes vós que me escolhestes a mim;
pelo contrário, eu vos escolhi a vós outros e vos designei para
que vades e deis fruto, e o vosso fruto permaneça” (Jo 15.16).
Ora, a eleição eterna de Deus é o primeiro fundamento
da concessão da graça salvadora. E alguns têm essa graça
salvadora e outros não a têm, porque alguns são desde a
eternidade eleitos de Deus ao passo que outros não o são.
Visto que a prática santa é o escopo e propósito daquilo que é
o primeiro fundamento da concessão da graça, essa mesma
prática santa é, sem dúvida, a tendência da graça em si. De
outro modo, se seguiria que Deus faz uso de um certo meio
que não é apto para alcançar o fim que se pretende e não
tende a ele. É, ademais, verdadeiro,
2. Que a redenção, pela qual a graça é obtida, é para o
mesmo fim.
A redenção feita por Cristo é o próximo fundamento da
concessão da graça sobre todos que a possuem. Cristo, por
seus méritos, nas grandes coisas que fez e sofreu no mundo,
adquiriu graça e santidade para seu próprio povo. “E a favor
deles eu me santifico a mim mesmo, para que eles também
sejam santificados na verdade”, ele diz (Jo 17.19). E Cristo
assim redimiu os eleitos e adquiriu graça para eles, para que
pudessem andar em prática santa. Ele os reconciliou com
Deus por meio de sua morte, para salvá-los das obras más,
para que fossem santos e inculpáveis em suas vidas, diz o
apóstolo: “E a vós outros também que, outrora, éreis
estranhos e inimigos no entendimento pelas vossas obras
malignas, agora, porém, vos reconciliou no corpo da sua
carne, mediante a sua morte, para apresentar-vos perante ele
santos, inculpáveis e irrepreensíveis” (Cl 1.21, 22).
Quando o anjo apareceu a José, ele lhe falou que a
criança que haveria de nascer de Maria deveria ser chamada
de Jesus, isto é, Salvador, porque deveria salvar seu povo de
seus pecados. E a santidade de vida é declarada como sendo o
propósito da redenção, quando é dito de Cristo que “a si
mesmo se deu por nós, a fim de remir-nos de toda iniquidade
e purificar, para si mesmo, um povo exclusivamente seu,
zeloso de boas obras” (Tt 2.14). De modo semelhante, nos é
dito que Cristo “morreu por todos, para que os que vivem não
vivam mais para si mesmos, mas para aquele que por eles
morreu e ressuscitou” (2 Co 5.15). E, para esse fim, nos é dito
que ele ofereceu a si mesmo, através do Espírito eterno, sem
máculas a Deus, para que seu sangue pudesse purificar nossa
consciência das obras mortas para servirmos ao Deus vivo
(Hb 9.15).
O mais notável tipo da obra da redenção pelo amor
divino em toda a história do Antigo Testamento foi a redenção
dos filhos de Israel do Egito. Mas o santo viver de seu povo
foi o propósito que Deus teve em vista nessa redenção, como
frequentemente queria dizer a Faraó quando, de tempos em
tempos, lhe dizia por meio de Moisés e Arão: “Deixa meu
povo ir, para que possa me servir”. E temos expressão
semelhante relativa à redenção de Cristo no Novo Testamento,
onde é dito: “Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, porque
visitou e redimiu o seu povo, e nos suscitou plena e poderosa
salvação na casa de Davi, seu servo, como prometera, desde a
antiguidade, por boca dos seus santos profetas, para nos
libertar dos nossos inimigos e das mãos de todos os que nos
odeiam; para usar de misericórdia com os nossos pais e
lembrar-se da sua santa aliança e do juramento que fez a
Abraão, o nosso pai, de conceder-nos que, livres das mãos de
inimigos, o adorássemos sem temor, em santidade e justiça
perante ele, todos os nossos dias.” (Lc 1.68-75). Todas essas
coisas deixam muito claro que o fim da redenção é que
possamos ser santos. Ainda mais é verdadeiro,
3. Que o chamado eficaz, ou aquela conversão
salvadora na qual a graça é iniciada na alma, tem o mesmo
propósito.
Deus, pelo seu Espírito, e através da sua verdade,
chama, desperta, convence, converte e leva ao exercício da
graça todos os que são feitos dispostos no dia do seu poder,
com o propósito de que eles possam exercitar-se na prática
santa. “Somos feitura dele”, diz o apóstolo, “criados em
Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus de antemão
preparou para que andássemos nelas” (Ef 2.10). E o apóstolo
fala aos cristãos tessalonicenses que Deus não os chamou à
impureza, mas à santidade (1Te 4.7); e, novamente, está
escrito: “Segundo é santo aquele que vos chamou, tornai-vos
santos também vós mesmos em todo o vosso procedimento”
(1Pe 1.15). Também é verdadeiro,
4. Que o conhecimento e o entendimento espirituais,
que são os acompanhantes interiores de toda graça
verdadeira no coração, tendem à prática santa.
Um conhecimento verdadeiro de Deus e das coisas
divinas é um conhecimento prático. Quanto a um mero
conhecimento especulativo das coisas da religião, muitos
ímpios alcançaram grande medida dele. Os homens podem
possuir vasta erudição e seu erudição pode consistir em
grande parte de seu conhecimento da teologia, da Bíblia e das
coisas concernentes à religião, e podem ser capazes de
arrazoar muito fortemente sobre os atributos de Deus e sobre
as doutrinas do cristianismo, mas, ainda assim, nesse ponto
seu conhecimento falha em ser um conhecimento salvífico,
uma vez que é apenas especulativo e não prático. Aquele que
tem uma familiaridade reta e salvífica com as coisas divinas vê
a excelência da santidade e de todos os caminhos da
santidade, pois vê a beleza e excelência de Deus, que
consistem na sua santidade. E, pela mesma razão, vê a
odiosidade do pecado e de todos os caminhos do pecado. Se
alguém conhecer a odiosidade dos caminhos do pecado,
certamente isso tenderá a que evite esses caminhos. E se vir a
amabilidade dos caminhos da santidade, isso tende a incliná-
lo a andar neles.
Aquele que conhece a Deus vê que ele é digno de ser
obedecido. Faraó não viu por que devia obedecer a Deus, pois
não sabia quem ela era, portanto ele diz: “Quem é o SENHOR
para que lhe ouça eu a voz e deixe ir a Israel? Não conheço o
SENHOR, nem tampouco deixarei ir a Israel” (Ex 5.2). Isso
tem como propósito servir de razão pela qual os ímpios
operam ou praticam a iniquidade e conduzem-se tão
impiamente, isto é, o fato de tão terem conhecimento
espiritual, como diz o salmista: “Acaso não entendem todos
os obreiros da iniquidade, que devoram o meu povo, como
quem come pão, que não invocam o nome do SENHOR?” (Sl
14.4). Quando Deus quer descrever o verdadeiro
conhecimento de si mesmo a Israel, ele o faz pelo seu fruto,
visto que este leva à prática santa: “Julgou a causa do aflito e
do necessitado; por isso, tudo lhe ia bem. Porventura, não é
isso conhecer-me? – diz o SENHOR (Jr 22.16). E assim o
apóstolo João nos informa que a guarda dos mandamentos de
Cristo é um fruto infalível do nosso conhecimento dele; e
estigmatiza como um hipócrita e mentiroso grosseiro aquele
que finge conhecer a Cristo e não guarda seus mandamentos
(1Jo 2.3,4). Se uma pessoa tem conhecimento e entendimento
espiritual, isso tende a fazer dela alguém de um espírito
excelente: “O homem de entendimento é de precioso espírito”
(Pv 17.27 – ARC). E esse espírito excelente o conduzirá a
uma conduta correspondente. E o mesmo aparece também,
5. Da consideração mais imediata do princípio da
graça em si, no qual será visto que a tendência de toda
graça cristã é à prática. E aqui,
Primeiro, mostra-se que toda verdadeira graça cristã
tende à prática, porque a faculdade que é a sua sede imediata
é a vontade, que é a faculdade que comanda toda as ações e
práticas do homem.
A sede imediata da graça está na vontade ou disposição.
E isso mostra que toda graça tende à prática, pois não há
sequer um dos atos do homem que se diga pertencer
propriamente ou ser qualquer parte de sua prática, em
qualquer aspecto, que não esteja sob o comando da vontade.
Quando falamos da prática de um homem, temos em mente
aquelas coisas que ele faz na condição de um agente livre e
voluntário ou, o que é a mesma coisa, aquelas coisas que ele
faz por um ato de sua vontade. De modo que o todo da
prática de uma pessoa é regido pela faculdade da vontade.
Todos os poderes executórios do homem, seja do corpo, seja
da mente, são sujeitos à faculdade da vontade, pela
constituição daquele que fez o homem e que é o grande autor
de seu ser. A vontade é a fonte da prática, tão verdadeiramente
quanto a cabeceira de um manancial é a fonte da torrente que
dele flui.
Portanto, se um princípio da verdadeira graça for
assentado nessa faculdade, ele deve necessariamente tender à
prática, tanto quanto o fluxo de água na fonte tende a seu
fluxo na torrente.
Segundo, a definição da graça é que ela é um
princípio da ação santa.
O que é a graça senão um princípio da santidade, ou um
santo princípio no coração? Mas a palavra princípio é relativa
a algo, do qual ela é um princípio. E se a graça é um princípio,
de que ela o é senão da ação? Princípios e ações são
correlativos que necessariamente dizem respeito um ao outro.
Portanto, a própria ideia de um princípio de vida é um
princípio que age na vida. Assim, quando falamos de um
princípio do entendimento, queremos dizer um princípio que
flui do entendimento. Semelhantemente, um princípio do
pecado é entendido como um princípio de onde flui atos de
pecado. E, do mesmo modo, quando falamos de um princípio
da graça, queremos dizer um princípio de onde fluem atos de
graça ou ações graciosas. Um princípio da graça tem tanta
relação com a prática quanto uma raiz tem para com a planta
da qual é raiz. Se houver uma raiz, é uma raiz de algo; seja a
raiz de algo que efetivamente cresce dela ou que tenda a gerar
alguma planta. É absurdo falar de uma raiz que não seja raiz
de nada. Da mesma forma é absurdo falar de um princípio da
graça que não tenda à graça na prática.
Terceiro, uma coisa a mais pela qual aquilo que é real e
substancial é distinguido daquilo que é apenas uma sombra
ou aparência é que aquele é eficaz.
Uma sombra ou imagem de uma pessoa, embora seja
perfeitamente distinta ou bem desenhada ou ainda que dê
uma vívida representação, e ainda que seja a imagem de um
homem muito forte ou mesmo de um poderoso gigante, nada
pode fazer. Nada há que seja realizado ou que venha à
existência por meio dela, pois não é real, mas apenas uma
sombra ou imagem. A substância ou realidade, contudo, é
algo que é eficaz. E assim acontece com o que está no coração
humano. Aquilo que é apenas uma aparência ou imagem da
graça, embora se pareça com ela, não é eficaz, pois lhe falta
realidade e substância. Mas aquilo que é real e substancial é
eficaz, e, com efeito, faz com que algo venha a se passar na
vida. Em outras palavras, ele próprio vem a atuar na prática. E
assim, novamente,
Quarto, a natureza de um princípio da graça é ser um
princípio de vida, ou um princípio vital.
Isso nos é ensinado em toda parte nas Escrituras. Nela,
os homens naturais[23], que não têm nenhum princípio da
graça no coração, são representados como mortos, enquanto
que os que têm a graça são representados como seres
viventes, ou tendo o princípio da vida em si. Mas é da
natureza de um princípio de vida ser um princípio de ação e
operação. Um morto não age, não se move, nem faz com que
algo venha a acontecer; mas, nos vivos, a vida se mostra em
um curso continuado de ação diária. Eles se movem, andam,
trabalham e preenchem seu tempo com ações que são os
frutos da vida.
Quinto, a verdadeira graça cristã é não apenas um
princípio de vida, mas um princípio extremamente poderoso.
Daí lemos do “poder da piedade”, como em 2 Timóteo
3.5; e somos ensinados que há nela um poder divino, tal como
operado em Cristo quando ele foi ressuscitado dos mortos.
Mas, quanto mais poderoso for qualquer princípio, mas eficaz
é para produzir aquelas operações e aquela prática a qual ele
tende.
Havendo assim mostrado, em geral, que toda graça
verdadeira no coração tende à prática santa na vida, prossigo,
como proposto,
II. Para mostrar o mesmo com respeito às graças
cristãs particulares. E, aqui, noto que esse é o caso,
1. Com respeito a uma fé verdadeira e salvadora no
Senhor Jesus Cristo.
Isso é algo que distingue bastante a fé que é salvadora
daquela que é apenas comum. Uma fé verdadeira é aquela que
trabalha, enquanto que uma fé falsa é estéril e inoperante.
Portanto, o apóstolo descreve uma fé salvadora como uma “fé
que opera pelo amor” (Gl 5.6). E o apóstolo Tiago no diz que:
“Mas alguém dirá: Tu tens fé, e eu tenho obras; mostra-me
essa tua fé sem as obras, e eu, com as obras, te mostrarei a
minha fé” (Tg 2.18). Mas, mais particularmente,
Primeiro, a convicção do entendimento e julgamento,
que está implícita na fé salvadora, tende à prática santa.
Aquele que tem fé verdadeira está convencido da
realidade e certeza das grandes coisas da religião; e aquele que
está convencido da realidade dessas coisas será influenciado
por elas e elas governarão suas ações e conduta. Se se diz aos
homens a respeito de grandes coisas que, se verdadeiras, lhes
dizem respeito muito intimamente, e não acreditarem no que
lhes é dito, não serão muito movidos por elas, nem alterarão
sua conduta por causa do que ouviram. Mas se realmente
crerem no que lhes é dito, e o considerarem como coisa certa,
serão influenciados por isso nas suas ações e, em vista disso,
alterarão sua conduta e farão muito diferente do que teriam
feito se não tivessem ouvido nada.
Vemos que esse é o caso em todas as coisas de grande
interesse que parecem reais aos homens. Se alguém ouve
notícias importantes que lhe dizem respeito, e não vemos que
seja de modo algum alterado por isso em sua prática,
imediatamente concluímos que não dá atenção a isso como
verdade; pois sabemos que a natureza do homem é tal que
governará suas ações pelo que crê e está convencido. Logo, se
as pessoas estiverem realmente convencidas da verdade das
coisas que lhes são faladas no evangelho acerca de um mundo
eterno e da salvação eterna que Cristo adquiriu para todos que
a aceitarão, isso influenciará sua prática. Regularão sua
conduta de acordo com essa crença e agirão de tal modo que
tenderá a obterem essa salvação eterna.
Se as pessoas estiverem convencidas da verdade certa
das promessas do evangelho, que promete riquezas, honras e
prazeres eternos; e se realmente acreditarem que esses são
imensamente mais valiosos que todas as riquezas, honras e
prazeres do mundo, irão esquecer, por elas, as coisas do
mundo, e, se necessário for, venderão tudo e seguirão a
Cristo. Se estiverem plenamente convencidas da verdade da
promessa, que Cristo efetivamente irá conceder todas essas
coisas ao seu povo; e se isso tudo lhes parecer real, terá
influência na sua prática e os induzirá a viverem de acordo.
Sua prática será conforme suas convicções. A própria natureza
do homem impede que seja de modo diferente. Se alguém
prometer a um outro que, se ele abrir mão de uma libra, lhe
dará mil, e se estiver plenamente convencido da verdade dessa
promessa, rapidamente abandonará a primeira para garantir a
obtenção da última. O mesmo ocorre com o que está
convencido da suficiência de Cristo para libertá-lo de todo mal
e para trazê-lo à posse de todo bem que precisa; este será
influenciado em sua prática pela promessa que lhe oferece
isso tudo. Essa pessoa, enquanto efetivamente tiver essa
convicção, não terá medo de crer em Cristo em relação a
coisas que, de outra forma, pareceriam grandemente o expor à
calamidade, pois está convencido que Cristo é capaz de
libertá-lo.
Portanto, não temerá renunciar a todos os meios de
assegurar a felicidade terrena, pois está convencido que
somente Cristo é suficiente para conceder toda a felicidade
que lhe é necessária. E assim,
Segundo, esse ato da vontade, que há na fé salvadora,
tende à prática santa.
Aquele que, pelo ato de sua vontade, verdadeiramente
aceita Cristo como um Salvador, aceita-o não meramente
como um Salvador da punição do pecado. Mas é impossível
que alguém receba de coração Cristo como um Salvador do
pecado e dos caminhos do pecado se não tiver desejado e não
visar, sinceramente, no coração e vida, afastar-se de todos os
caminhos do pecado. Pois o que não deseja que ele e o
pecado se apartem não pode desejar receber Cristo como seu
Salvador para então apartar-se deles.
Logo, novamente, aquele que recebe Cristo por uma fé
viva, compromete-se com ele como Senhor e Rei para
governar e reger sobre si, e não meramente como um
sacerdote para fazer expiação por si. Mas escolher Cristo e
comprometer-se com ele como Rei é o mesmo que render-se
em submissão à sua lei e em obediência à sua autoridade e
mandamentos. O que faz isso vive uma vida de prática santa.
Terceiro, toda a verdadeira confiança em Deus, que
está implícita na fé salvadora, tende à prática santa.
E nisso uma confiança verdadeira difere de toda
confiança falsa. Uma confiança em Deus enquanto se
permanece no caminho da negligência é o que na Escritura é
chamado de tentar Deus; e uma confiança nele, enquanto se
está no caminho do pecado, é o que é chamado de presunção,
o que é algo terrivelmente ameaçado na sua Palavra. Mas
aquele que verdadeira e retamente confia em Deus, confia nele
de forma diligente e santa, ou, o que é a mesma coisa,
enquanto está no caminho da prática santa. A própria ideia de
nossa confiança em outro ser repousa ou vive na aquiescência
de mente e coração na plena persuasão de sua suficiência e
fidelidade, a ponto de estarmos prontos a plenamente nos
aventurar nele em nossas ações. Mas aqueles que não
praticam e agem pela persuasão da suficiência e fidelidade do
outro não se aventuram assim. Não tomam parte em qualquer
ação ou curso de ação com essa confiança e, por isso, nada
aventuram. Portanto, não se pode dizer que verdadeiramente
confiam. Aquele que verdadeiramente confia em outro se
aventura em sua confiança.
Assim ocorre com aqueles que verdadeiramente
confiam em Deus. Eles descansam na plena persuasão de que
Deus é suficiente e fiel, a ponto de persistirem nessa confiança
em seguir a Deus e, se necessário for, sofrer dificuldades e
privações por ele, porque ele prometeu que não seriam
perdedores por essa atitude, e têm tamanha confiança nisso
que podem ser, e efetivamente são, ousados em se aventurar
nessas promessas, enquanto aqueles que não se dispõem a
assim se aventurar mostram que não confiam nele. Aqueles
que têm a plena confiança em Deus, o que está implícito em
uma fé viva, não temerão confiar a Deus suas propriedades.
Acontece o mesmo com respeito à confiança entre os
homens, que se aqueles em quem temos plena confiança
desejarem tomar algo emprestado de nós, e prometerem nos
retribuir e nos retribuir cem vezes mais, não tememos nos
arriscar, mas, com efeito, nos arriscamos. Assim aqueles que
sentem plena confiança em Deus não temem emprestar ao
Senhor. E, se assim confiarmos em Deus, não temeremos
aventurar o labor, a luta, a vigilância e os sofrimentos, e todas
as coisas por ele, uma vez que prometeu recompensar
abundantemente essas coisas com aquilo que irá valer
infinitamente mais que todas as perdas e dificuldades ou
tristeza que possamos experimentar no caminho do dever. Se
nossa fé for salvadora, nos levará a realmente nos
aventurarmos em Deus, na mais plena confiança no seu
caráter e promessas.
E uma vez que a fé em si, e tudo o que nela está
implícito, tende à prática santa, assim também é o caso,
2. Com respeito a todo verdadeiro amor a Deus.
O amor é um princípio ativo; um princípio que sempre
descobrimos ser ativo nas coisas deste mundo. O amor a
nossos semelhantes sempre nos influencia em nossas ações e
prática. Todos os seres humanos são principalmente mantidos
em ação dia após dia e ano após ano por um tipo ou outro de
amor. Aquele que ama o dinheiro é influenciado em sua
prática por esse amor e mantido nele pela busca contínua da
riqueza. Aquele que ama a honra é governado em sua prática
por esse amor e suas ações durante o curso de sua vida são
reguladas pelo desejo da honra. E com quanta diligência
aqueles que amam os prazeres carnais os perseguem em sua
prática! Desse modo, aquele que ama a Deus também é
influenciado por esse amor na sua prática. Ele constantemente
busca a Deus, no curso de sua vida: busca sua graça, aceitação
e glória.
A razão ensina que as ações de alguém são o teste e
evidência mais apropriados de seu amor. Assim, se alguém
professa um enorme grau de amor e amizade por outro, a
razão ensina a toda a humanidade que a evidência mais
apropriada de que ele é um amigo verdadeiro e sincero, como
professa ser, é sua exibição como um amigo em suas obras, e
não apenas em suas palavras. É necessário que esteja
disposto, se necessário for, a negar a si mesmo em favor de
seu amigo e sofrer em seu próprio interesse privado para que
possa trazer ao amigo algum benefício.
Se alguém afirma uma inestimável bondade ou amizade,
uma pessoa sábia não confiará nessa afirmação, a menos que
veja o teste e comprovação dela na sua conduta; a menos que,
nas suas ações, o descubra como um fiel e constante amigo,
pronto a fazer e sofrer por ela. Ela confiará nessa evidência de
seu amor mais do que confiará nas maiores afirmações, ou
mesmos nos mais solenes juramentos. Portanto, se vemos
uma pessoa que, pela sua conduta constante, mostra-se pronta
a sofrer e gastar-se por Deus, a razão ensina que nisso ela dá
uma evidência de amor a Deus mais confiável do que se
apenas professasse que sente grande amor por Ele em seu
coração. E assim, se virmos um homem que, pelo que
contemplamos no curso de sua vida, parece seguir e imitar a
Cristo e grandemente se gasta pela honra de Cristo e pelo
avanço de seu reino no mundo, a razão ensina que ele dá
maior evidência da sinceridade e força de seu amor pelo
Salvador do que se apenas declarasse que o ama, e contasse
como seu coração, de tempos em tempos, está atraído em
amor por ele, enquanto, ao mesmo tempo, é relapso em fazer
qualquer grande coisa por Cristo ou em se gastar para
promover seu reino, estando pronto para se desculpar quando
chamado a um esforço ativo ou à autonegação por causa do
Salvador.
Há várias maneiras de exercitar o amor sincero por Deus
e todas elas tendem à prática santa. Uma é em ter uma alta
estima por Deus, pois por aquilo que amamos temos a mais
alta estima, e naturalmente mostramos essa estima em nossa
conduta.
Outra maneira de mostrarmos nosso amor por Deus é
escolhê-lo acima de todas as outras coisas. Se sinceramente o
escolhermos acima de todas as outras coisas, então devemos
realmente abandonar as outras coisas por ele, quando vierem
os testes em nossa prática. E quando vier a ocorrer, no curso
de nossa vida, que Deus e nossa honra, ou Deus e nosso
dinheiro, ou Deus e nossa tranquilidade estiverem ao mesmo
tempo colocados diante de nós, de modo que nos apeguemos
a um e renunciemos ao outro, então, se realmente
escolhermos Deus acima de todas as outras coisas, devemos
na nossa prática nos apegar a Deus e abandonar essas outras
coisas.
Outra maneira de exercitar o amor por Deus é em
nossos desejos por ele, e isso também tende à prática. Aquele
que verdadeiramente tem sinceros desejos por Deus, com isso
será incitado a ativamente buscá-lo. Ele se devotará a isso
como sua ocupação, assim como os homens fazem com este
mundo, quando têm ávidos desejos por um bem que creem
ser alcançável.
Ainda outra maneira de exercitar o amor por Deus é em
se deleitar nele e achar nele satisfação e felicidade, e isso
também tende à prática. Aquele que real e sinceramente se
deleita mais em Deus do que em qualquer outra coisa e acha
sua satisfação nele não o abandonará por outras coisas.
Assim, pela sua conduta, mostra que de fato está satisfeito
nele como sua porção. E o mesmo ocorre em todos os casos.
Se tivermos tido prazer em qualquer espécie de posse, e
depois a tivermos abandonado por alguma outra coisa, isso é
evidência de que não estávamos plenamente satisfeitos com
aquela primeira, e que não nos deleitávamos nela acima de
todas as coisas. Em todos esses casos, os sentimentos e
escolhas serão vistos na prática.
3. Todo arrependimento verdadeiro e salvífico tende à
prática santa.
Na língua original do Novo Testamento, a palavra
comumente traduzida por “arrependimento” significa uma
mudança de mente. Diz-se que os homens se arrependeram
de seus pecados quando mudaram suas mentes com respeito
a ele, de modo que, ainda que anteriormente o estimassem e
aprovassem, agora totalmente o desaprovam e desgostam.
Mas essa mudança de mente deve e efetivamente tende a uma
correspondente mudança de prática. Vemos que esse é
universalmente o caso em outras coisas. Se alguém até agora
estiver comprometido em qualquer tipo de busca ou negócio,
e então mudar sua mente a esse respeito, também mudará sua
prática e cessará esse negócio, ou busca, ou modo de vida, e
virará seu rosto em direção a outra coisa.
A tristeza pelo pecado é algo que pertence ao
arrependimento salvífico. Mas a tristeza pelo pecado, se for
completa e sincera, tenderá, na prática, ao abandono do
pecado. E o mesmo ocorre com tudo o mais. Se alguém por
muito tempo persistiu em qualquer caminho ou modo de
conduta e depois foi convencido da tolice e pecaminosidade
dele, e ficar triste aflito de coração por ele, o efeito natural e
necessário disso será que o evitará no futuro. E se nele
persistir como antes, ninguém acreditará que está
sinceramente triste por ter vivido nele no passado.
Novamente,
4. Toda verdadeira humildade tende à prática santa.
Essa é uma graça abundantemente recomendada e
insistida na Bíblia, e que é frequentemente referida como uma
marca distinta de uma verdadeira experiência cristã daquela
que é apenas imitação. Mas essa graça no coração tem uma
tendência direta à prática santa na vida. Um coração humilde
tende a conduta humilde. Aquele que está sensível de sua
pequenez e nulidade e da sua enorme indignidade estará
disposto, pelo senso dela, a se conduzir conformemente, tanto
diante de Deus quanto do homem. Aquele que uma vez teve o
coração orgulhoso e esteve sob o domínio do orgulho em sua
conduta, se depois tiver seu coração mudado para um coração
humilde, necessariamente terá uma mudança correspondente
em sua conduta. Não mais se mostrará, em seu
comportamento, tão orgulhoso, desdenhoso e ambicioso
como uma vez foi, afetando, mais que nunca, estar acima dos
outros, e lutando mais ainda depois disso, e estando tão
pronto a condenar os outros e a ficar insatisfeito ou mesmo
irado com aqueles que parecem estar no caminho da glória
terrena. Pois a fonte de onde essa postura surgia nele, antes
que fosse mudado, era o orgulho no coração. Portanto, se
agora houve uma grande alteração com respeito a esse
orgulho do coração, e este for mortificado e banido da alma, e
a humildade implantada em seu lugar, certamente também
haverá uma alteração na sua conduta e prática. Isso porque a
humildade de coração é um princípio que tem uma tendência
tão forte à prática quanto tem o orgulho no coração. Portanto,
se este último for mortificado e a primeira tomar o lugar, então
a prática orgulhosa que procedia do coração
proporcionalmente cessará, e a prática humilde que é o fruto
natural da humildade será manifestada.
A verdadeira humildade cristã no coração também
tenderá a tornar as pessoas resignadas à vontade de Deus, e
também a serem pacientes e submissas à sua santa mão sob as
aflições que possa enviar, e a estarem cheias da mais profunda
reverência à Deidade e a tratar as coisas divinas com o mais
alto respeito.
Ela leva também a uma conduta mansa para com os
homens, tornando-nos condescendes com os inferiores,
respeitosos com os superiores, e gentis, pacíficos e de trato
agradável com todos; não voluntariosos, nem invejosos deles,
mas contentes com nossa própria condição; de um espírito
calmo e quieto, não dispostos a nos ressentir com as injúrias,
mas aptos a perdoar. Certamente, esses são traços que
pertencem a uma prática santa. E assim também,
5. Todo temor verdadeiro de Deus tende a uma prática
santa.
A coisa principal designada nas Escrituras pelo temor de
Deus é uma santa solicitude ou pavor de que não ofendamos
a Deus ao pecar contra ele. Agora, se uma pessoa
verdadeiramente teme ofender a Deus, e se habitualmente tem
pavor em pensar em pecar contra ele, isso certamente tenderá
a que evite o pecado contra ele. Os homens se esquivam
daquilo que temem. Se alguém professa que tem medo e
pavor de uma serpente venenosa, por exemplo, mas ao
mesmo tempo é visto que não se preocupa em se esquivar,
mas é muito ousado em se manter próximo dela, quem crerá
na sua afirmação?
O temor de Deus e a observância de todos os seus
mandamentos estão ligados como necessariamente surgindo
um do outro, como em Deuteronômio 28.58: “Se não tiveres
cuidado de guardar todas as palavras desta lei, escritas neste
livro, para temeres este nome glorioso e terrível, o SENHOR,
teu Deus”. E José dá o fato de que temia a Deus como uma
razão de sua justiça e conduta misericordiosa com relação a
seus irmãos, como pode ser visto em Gênesis 42.18. Em
Provérbios 8.13, é dito que “o temor do Senhor é odiar o
mal”. Jó dá como razão do motivo pelo qual evitava o pecado
que “a destruição de Deus era um terror para ele” (Jó 31.23).
E o próprio Deus, quando fala de Jó como alguém “que se
desviava do mal”, menciona seu temor de Deus como a base e
razão disso (Jó 1.8). Em qualquer pessoa, até o ponto onde o
temor de Deus reina, seguir-se-á que levará o seu possuidor a
evitar o pecado e a desejar ser santo. Novamente,
6. O espírito de ação de graças e louvor tende a uma
prática santa.
A ação de graças sincera a Deus leva-nos a retribuir de
acordo com os benefícios recebidos. Nós encaramos isso
como uma evidência segura da verdadeira gratidão ou ação de
graças para com nossos semelhantes. Se alguém faz a seu
próximo um notável ato de bondade, e ele estiver realmente
grato por isso, estará pronto a, quando se oferecer a ocasião,
fazer-lhe o bem em retorno. E, embora não possamos
recompensar a bondade de Deus em nosso favor ao fazermos
qualquer coisa que lhe seja proveitosa, contudo, um espírito
de ação de graças nos disporá a fazer o que pudermos que lhe
seja agradável ou aceitável, ou que possa tender à declaração
de sua glória.
Se alguém se apiedar de outro que esteja em grande
aflição ou em perigo de alguma morte terrível, e, movido por
essa compaixão, grandemente se dispuser pela sua defesa e
libertação, e suportar grande dificuldade e sofrimentos para
esse propósito, e por esses meios efetivamente libertá-lo; se o
beneficiado expressar grande agradecimento com relação a
seu libertador, porém, em suas ações e curso de conduta, se
opuser e desonrar e lançar desprezo sobre ele, e lhe causar
grande dano, ninguém daria muita atenção a toda as suas
palavras de agradecimento. Se ele for verdadeiramente grato,
jamais agirá com tal impiedade com relação a seu benfeitor.
Assim homem algum pode ser verdadeiramente grato a Deus
pelo amor sacrificial de Cristo e pela infinita misericórdia e
amor de Deus por si próprio, e ainda levar uma vida ímpia.
Sua gratidão, se sincera, lhe levará a ser santo. O mesmo é
verdadeiro, novamente,
7. Que o rompimento cristão com o mundo e uma
mentalidade celestial tendem a uma prática santa.
E falo das duas coisas juntamente, pois elas são em
grande medida a mesma coisa expressa de forma negativa e
positiva. Não ser separado do mundo é o mesmo que ter a
mente mundana. Por outro lado, ter uma verdadeira separação
cristã do mundo é não ser mundano, mas ter a mente celestial.
Essa graça, como todas as outras mencionadas, tende à prática
santa.
Se o coração for afastado do mundo, tenderá a se
afastar das preocupações do mundo; e, se o coração for
colocado nas coisas celestiais, que não são coisas do mundo,
tenderá a nos conduzir à procura das coisas que são celestiais.
Aquele que tem seu coração livre do mundo não o manterá,
na prática, ao alcance de suas mãos, como se estivesse
enormemente relutante em romper com qualquer parte dele.
Se alguém, ao falar de sua experiência, conta como em dado
tempo sentiu seu coração separar-se do mundo, de modo que
o mundo lhe parecia como nada e vaidade, e, ainda assim, se,
na prática, ele parece tão violento pelo mundo quanto antes, e,
em grande medida, mais ávido por ele do que pelas coisas
celestiais (tais como o crescimento em graça, o conhecimento
de Deus e a prática do dever), então a sua confissão terá
pouco peso em comparação com a sua prática.
O mesmo se dá se sua conduta mostra que ele pensa
mais nos tesouros na terra do que nos tesouros no céu, e se,
quando obtém o mundo, ou alguma parte dele, abraça-o
calorosamente e parece extremamente relutante em abandonar
mesmo um pouquinho dele para usos pios e caridosos;
embora Deus lhe prometa mil vezes mais no céu por ele, não
dá a mínima evidência de ter se apartado do mundo ou de que
prefira as coisas celestiais às mundanas. Julgando por sua
prática, há uma triste razão para crer que sua profissão é vã. O
mesmo é verdade também,
8. Que o espírito do amor cristão aos homens também
tende à prática santa.
Se o espírito de amor ao homem for sincero, tenderá à
pratica e aos atos de amor. O amor que aparece apenas em
palavra e língua, e não em ato, é um amor hipócrita e
insincero. Mas o amor que é sincero e realmente verdadeiro
será manifesto nas obras, como diz o apóstolo: “Filhinhos,
não amemos de palavra, nem de língua, mas de fato e de
verdade. E nisto conheceremos que somos da verdade, bem
como, perante ele, tranquilizaremos o nosso coração” (1Jo
3.18,19). Nenhum amor pelos irmãos, exceto aquele que se
mostra em obras de amor, será de alguma valia ao homem:
“Se um irmão ou uma irmã estiverem carecidos de roupa e
necessitados do alimento cotidiano, e qualquer dentre vós lhes
disser: Ide em paz, aquecei-vos e fartai-vos, sem, contudo,
lhes dar o necessário para o corpo, qual é o proveito disso?”
(Tg 2.15,16).
A experiência mostra que aqueles que acalentam um
amor sincero pelos homens estão prontos tanto a sofrer
quanto a agir em favor deles. Estamos prontos a crer que os
pais amam seus próprios filhos, pois isso é natural, e esse
amor em geral prevalece por todo o mundo. Mas, incrível
como seja que alguém não ame seus próprios filhos, contudo,
se houvesse um pai que contemplasse seu filho em
circunstâncias de sofrimento e não se dispusesse a socorrê-lo,
ou que não tratasse comumente seus filhos com consideração
e bondade, mas agisse dia após dia como se fosse totalmente
despreocupado com seu conforto ou com a maneira como
vivem, dificilmente acreditaríamos que houvesse algo como
um amor paternal em seu coração. O amor pelos nossos filhos
nos disporá a atos amorosos para com eles. Da mesma forma,
o amor ao nosso próximo nos disporá a todo tipo de boa
prática para com ele. Por isso o apóstolo declara, quando,
após sumarizar os diversos mandamentos da segunda tábua
da lei, diz: “Se há qualquer outro mandamento, tudo nesta
palavra se resume: Amarás o teu próximo como a ti mesmo”,
e então acrescenta: “O amor não pratica o mal contra o
próximo; de sorte que o cumprimento da lei é o amor” (Rm
13.9,10). Uma vez mais, e finalmente, a mesma observação se
aplica,
9. A uma verdadeira e graciosa esperança, que essa
também tende à prática santa.
Uma falsa esperança tende ao reverso disso. Tende à
licenciosidade, a encorajar as pessoas em seus desejos e
luxúrias pecaminosos e a lisonjeá-las e torná-las ousadas
mesmo quando estão na prática do mal. Mas uma verdadeira
esperança, longe de endurecer as pessoas no pecado e torná-
las descuidadas de seu dever, tende a animá-las à santidade de
vida, a despertá-las para o dever, e a torná-las mais cuidadosas
para evitar o pecado e mais diligentes em servir a Deus: “E a si
mesmo se purifica todo o que nele tem esta esperança, assim
como ele é puro” (1Jo 3.3).
Uma esperança graciosa tem essa tendência [à prática]
devido à natureza da felicidade esperada, que é uma santa
felicidade; uma felicidade que, quanto mais alguém procura e
espera, mas é estimulado e avivado na disposição de ser santo.
E também tem essa tendência devido ao respeito que tem pelo
autor da felicidade esperada; pois a espera de Deus, como o
fruto de sua misericórdia imerecida e infinita, portanto, por
cada motivo de gratidão, o coração é empenhado e incitado a
buscar aquilo que lhe é agradável. E tem a mesma tendência
devido a um respeito aos meios pelos quais espera obter essa
felicidade; pois uma esperança verdadeira não anseia obter a
felicidade de nenhuma outra forma senão pelo evangelho, o
qual se dá por meio de um santo Salvador, e por meio de uma
conduta de apegar-se a ele e segui-lo. E tem, por fim, a mesma
tendência devido à influência daquilo que é a fonte imediata
de toda a esperança graciosa, que é a fé em Cristo, e essa fé
sempre trabalha, e trabalha pelo amor, e purifica o coração e
produz frutos santos na vida.
Isso foi mostrado, primeiro, por argumentos gerais, e,
então, por uma indução de particulares onde todas as
principais graças cristãs foram mencionadas, para que toda a
graça verdadeira no coração tenda à prática santa na vida, tão
verdadeiramente quanto a raiz da planta tende ao crescimento
da planta em si, ou como a luz tem uma tendência para
brilhar, ou o princípio da vida para manifestar-se nas ações da
pessoa viva.
APLICAÇÃO
Na aplicação do assunto,
1. Podemos ver uma razão principal porque a prática
cristã e as boas obras são tão abundantemente insistidas
nas Escrituras como uma evidência da sinceridade da
graça.
Cristo nos deu como uma regra que devemos julgar os
homens pelos seus frutos (Mt 7.16-20); e nisto insiste, de
modo bastante enfático, que aquele que guarda seus
mandamentos é o que verdadeiramente o ama (Jo 14.21).
Declara que aquele que o ama os guardará, e o que não o ama
não os guardará (Jo 14.23,24). Daí podemos ver a razão pela
qual o apóstolo Paulo insistiu tanto nesse ponto, declarando
àqueles a quem escreveu que se alguém pretendia pertencer
ao reino de Deus, e ainda assim não guardasse os
mandamentos de Deus, eram ou hipócritas ou
autoenganadores. Suas palavras são: “Sabei, pois, isto:
nenhum incontinente, ou impuro, ou avarento, que é idólatra,
tem herança no reino de Cristo e de Deus. Ninguém vos
engane com palavras vãs; porque, por essas coisas, vem a ira
de Deus sobre os filhos da desobediência” (Ef 5.5,6); “Ou não
sabeis que os injustos não herdarão o reino de Deus? Não vos
enganeis: nem impuros, nem idólatras, nem adúlteros, nem
efeminados, nem sodomitas, nem ladrões, nem avarentos,
nem bêbados, nem maldizentes, nem roubadores herdarão o
reino de Deus” (1 Co 6.9,10); “E os que são de Cristo Jesus
crucificaram a carne, com as suas paixões e concupiscências”
(Gl 5.24); “Se viverdes segundo a carne, caminhais para a
morte” (Rm 8.13).
Isso tudo nos ensina a razão pela qual a mesma coisa é
tão insistida pelo apóstolo Tiago, em vários lugares com os
quais vocês estão familiarizados, e pelo apostolo João, mais
do que qualquer outro assunto. É porque Deus quer que
esteja profundamente impresso em todos que as boas obras
são a única evidência satisfatória de que temos
verdadeiramente posse da graça na alma. É pela nossa prática
que Deus nos julga aqui na terra e é pela nossa prática que nos
julgará no grande dia final.
2. Em vista desse assunto, que todos examinem a si
mesmos, se essa graça é real e sincera.
Que todos diligente e devotamente questionem se essas
graças todas tendem à prática e são vistas diariamente na vida
e conduta. Mas aqui até mesmo algumas pessoas
verdadeiramente piedosas podem estar prontas a dizer que, se
julgarem a si mesmas pela sua prática, devem condenar-se,
pois falham tanto e com tanta frequência, e estão com tanta
frequência vagando fora do caminho que, por vezes,
raramente parece que possam ser filhas de Deus. Mas a isso
respondo que as pessoas que testam a si mesmas por sua
prática podem descobrir que falham grandemente todo dia e,
frequentemente, encontram-se vagando fora do caminho,
porém, podem realmente não ver justa causa em sua prática
para condenar a si mesmas. Porque quando falamos de uma
vida de prática cristã, e quando as Escrituras falam de um
curso de vida como cristão, o significado não é que a vida seja
perfeita e sem pecado. Ao contrário, uma vida cristã pode ser
acompanhada de muitas e excessivamente grandes
imperfeições, e, contudo, ser uma vida santa, ou uma vida
verdadeiramente cristã. Pode ser que essa vida claramente, e
até mesmo necessariamente, mostre que a graça que o
indivíduo tem é do tipo que tem tendência para a prática
santa. Seus frutos podem ser tais que possam servir de boa
evidência da boa natureza da árvore, e suas obras ser tais que
mostrem sua fé.
Se você pedir por ainda mais luz, então eu diria,
quaisquer que sejam suas imperfeiçoes e falhas, examine-se
para ver se acha as seguintes evidências de sua graça ser do
tipo que tende à prática santa.
Primeiro, a sua suposta graça tem tal influência a ponto
de tornar aquelas coisas nas quais você falha na prática
santa pesarosas, aflitivas e humilhantes a você?
Ela tem influência tamanha em sua mente a ponto de
tornar suas práticas pecaminosas passadas odiosas aos seus
olhos, e o levar a prantear diante de Deus por elas? Ela torna
aquelas coisas na sua conduta que, desde sua suposta
conversão, têm sido contrárias à prática cristã, odiosas aos
seus olhos? E é o maior fardo de sua vida que sua prática não
seja melhor? É realmente pesaroso a você que tenha caído, ou
caia em pecado; e você está pronto, conforme o exemplo do
santo Jó, a aborrecer-se de si mesmo e arrepender-se no pó e
na cinza, e como Paulo lamentar sua miséria e orar para ser
liberto do pecado, como se de um corpo de morte?
Segundo, você carrega habitualmente consigo um
temor do pecado?
Você não apenas lamenta e se humilha pelos pecados
que são passados, mas tem um temor do pecado para o
futuro? E você o teme porque é em si maligno e
excessivamente prejudicial a sua própria alma e ofensivo a
Deus? Você o teme como um inimigo terrível que você tem
suportado com frequência, e sente que ele lhe será pesado
daqui por diante? E você o teme como algo que lhe
machucou, feriu e penetrou de modo que não deseja mais vê-
lo? Você permanece em vigilância contra ele, como um
homem vigiaria contra algo que teme, com tal temor como o
que levou José a dizer: “Como, pois, cometeria eu tamanha
maldade e pecaria contra Deus?” (Gn 39.9)?
Terceiro, você está sensível da beleza e agradabilidade
dos caminhos da prática santa?
Você vê a beleza da santidade e a amabilidade dos
caminhos de Deus e de Cristo? É dito no texto que “a
caridade se regozija na verdade” e é dado como o caráter dos
verdadeiramente piedosos, que “com alegria pratica justiça”
(Is 64.5), o que é o mesmo que dizer que ele “se regozija em
praticar a justiça”. E com que frequência o salmista fala da lei
de Deus como sendo seu deleite e de seu amor aos
mandamentos divinos!
Quarto, você acha que particularmente estima e se
deleita naquelas práticas que podem, por sua eminência, ser
chamadas de práticas cristãs, em distinção da mera
moralidade mundana?
Por práticas cristãs se faz referência àquelas que estão
implícitas em uma caminhada e conduta mansa, humilde,
devota, desprendida, abnegada e celestial. Alguns dos pagãos
foram eminentes por muitas das virtudes morais e escreveram
com excelência a respeito delas, como, por exemplo, da
justiça, generosidade, força moral, etc., mas estavam distantes
de uma pobreza cristã de espírito e humildade de mente.
Buscavam sua própria glória e se gloriavam excessivamente
em suas próprias virtudes exteriores, e pareciam nada saber de
andar semelhante ao que o evangelho ordena, um andar de
autoesvaziamento, pobreza de espírito, autodesconfiança,
resignação e confiança devota em Deus. Eram estranhos à
mansidão e não permitiam, nem mesmo sonhavam que o
perdão e amor aos inimigos fosse uma virtude. Virtudes como
essas são peculiarmente cristãs, e cristãs devido à distinção e
eminência, e é a respeito dessas que lhe pergunto se você as
tem em alta estima, por causa de seu Salvador e porque estão
cheias de seu espírito? Se você for essencialmente distinto e
diferente em seu espírito de um mero moralista, ou dos sábios
e filósofos pagãos, você terá um espírito de estima especial e
deleite nessas virtudes que pertencem de forma especial ao
evangelho.
Quinto, você tem fome e sede por uma prática santa?
Você anseia por viver uma vida santa, ser conformado a
Deus, ter sua conduta, dia após dia, melhor regulada, mais
espiritual, mais para a glória de Deus e mais do tipo que é
conveniente a um cristão? É isso que você ama, pelo que ora e
para o que vive? É mencionado por Cristo como pertencente
ao caráter dos verdadeiros cristãos que “têm fome e sede de
justiça”. Esse traço pertence a você?
Sexto, você tenta criar um hábito de se esforçar para
viver santamente e como Deus deseja, em todos os aspectos?
Não apenas pode ser dito que você se esforça pela
santidade, mas você torna esse esforço por ela uma
obrigação? É uma questão que repousa com peso em sua
mente? Um cristão verdadeiro e fiel não faz do viver santo
uma coisa meramente acidental, mas é sua maior
preocupação. Assim como o negócio do soldado é lutar, o
negócio do cristão é ser semelhante a Cristo, ser santo como
ele é santo. A prática cristã é a maior obra na qual está
engajado, assim como a corrida era a maior obra dos
corredores. É assim com você? É seu maior alvo e amor
guardar todos os mandamentos de Deus, e até onde sejam
conhecidos, não negligenciar nenhum deles? “Então”, diz o
salmista, “não terei de que me envergonhar, quando
considerar em todos os teus mandamentos”. Esse é seu alvo
sério, constante e piedoso, ser fiel em todo dever conhecido?
E uma vez mais,
Sétimo, você deseja grandemente conhecer todos os
seus deveres?
Você deseja conhecê-los para que possa praticá-los?
Com o patriarca Jó, você pode ou efetivamente ora ao Todo-
poderoso “que o que não vejo, tu me ensines”, acrescentando,
como ele, ao grande perscrutador dos corações: “Se cometi
iniquidade, não mais as cometerei?”
Se puder satisfazer esses testes, então você tem a
evidência de que sua graça é do tipo que tende à prática santa
e ao crescimento nela. E ainda que possa cair, pela
misericórdia de Deus, se levantará outra vez. Aquele que
começou a obra em você há de completa-la até ao dia de Jesus
Cristo. Ainda que, por vezes, você esteja fraco, contudo, se
buscar, você renascerá de força em força, guardado pelo poder
de Deus, através da fé, até a salvação.
CAPÍTULO 12
A CARIDADE, OU UM ESPÍRITO CRISTÃO,
DISPÕE-SE A SUPORTAR TODOS OS
SOFRIMENTOS NO CAMINHO DO DEVER
“Tudo suporta”
1 Coríntios 13.7

T endo
declarado,
nos versículos
anteriores, aqueles frutos da caridade que consistem em ação,
o apóstolo agora procede para falar daqueles que fazem
referência ao sofrimento. Aqui declara que a caridade, ou o
espírito do amor cristão, tende a dispor os homens e a torná-
los suscetíveis a suportar todos os sofrimentos por causa de
Cristo e no caminho do dever. Suponho que esse seja o
sentido da expressão: “Tudo suporta”. Sei que alguns
entendem essas palavras como se fizessem referência apenas à
mansa recepção das injúrias feitas por nossos semelhantes.
Mas me parece que devem antes ser entendidas no sentido
aqui dado, do sofrimento na causa de Cristo e da religião; e
isso pelas seguintes razões:
Primeira, quanto a suportar injúrias de homens, isso o
apóstolo havia mencionado antes, ao dizer que “a caridade é
longânima”, e novamente ao declarar que “não se exaspera
facilmente”, ou que tende a resistir às paixões da ira. Portanto,
não há necessidade de supor que ele faria uso dessa
tautologia[24] para mencionar novamente a mesma coisa, pela
terceira vez.
Segunda, o apóstolo parece evidentemente ter
terminado com os frutos da caridade de natureza mais ativa, e
tê-los sumarizados todos na expressão do verso anterior:
“Não se regozija na iniquidade, mas se regozija na verdade”.
Ele esteve repassando os vários pontos da boa conduta em
relação ao nosso próximo a qual tende a caridade e, tendo-os
sumarizado na expressão acima, agora parece proceder para
os traços de outra natureza, não repetindo as mesmas coisas
em outras palavras.
Terceira, é com frequência que o apóstolo Paulo
menciona o sofrimento na causa de Cristo como um fruto do
amor cristão; portanto, não é provável que omitiria fruto tão
grande do amor neste lugar, onde está confessadamente
considerando todos os frutos importantes do amor ou
caridade. É comum para o apóstolo, em outros lugares,
mencionar o sofrimento na causa da religião como o fruto do
amor ou caridade. Assim ele o faz em 2 Coríntios 5.14, onde,
após falar do que já sofreu na causa de Cristo, por causa do
que outros estavam prontos a dizer que ele estava fora de si,
dá como razão para isso que o amor de Cristo o constrangia.
E assim, novamente, em Romanos 5.3,5, ele apresenta como
uma razão por que estava disposto a gloriar-se nas tribulações,
o fato de que “o amor de Deus foi derramado em nossos
corações pelo Espírito Santo, que nos foi outorgado”. E ainda
novamente declara que nem tribulação, nem angústia, nem
perseguição, nem fome, nem nudez, nem perigo, nem espada
poderia separá-lo do amor de Cristo (Rm 8.35). Agora, visto
que o sofrimento na causa de Cristo é fruto tão grande da
caridade, e é assim referido com frequência, em outros
lugares, pelo apóstolo, não é provável que se omitiria aqui,
onde claramente está falando dos vários frutos da caridade.
Quarta, as palavras seguintes, “tudo crê, tudo espera,
tudo suporta”, mostram todas que o Apóstolo já terminou
com aqueles frutos da caridade que fazem referência
principalmente aos nossos semelhantes, como pode ser
manifesto daqui por diante, quando essas expressões forem
mais plenamente consideradas. A doutrina, então, que
derivarei do texto é:
QUE A CARIDADE, OU UM ESPÍRITO
VERDADEIRAMENTE CRISTÃO, NOS TORNARÁ
DISPOSTOS, PELA CAUSA DE CRISTO, A SUPORTAR
TODOS OS SOFRIMENTOS AOS QUAIS POSSAMOS
NOS EXPOR NO CAMINHO DO DEVER.
Ao clarear essa doutrina, primeiramente irei brevemente
explicá-la, e depois dar alguma razão ou prova da sua verdade.
I. Explicarei a doutrina. E, ao assim fazer, noto:
1. Que ela implica que aqueles que têm o verdadeiro
espírito da caridade ou do amor cristão estão dispostos a
não apenas fazer, mas também sofrer por Cristo.
Os hipócritas podem e com frequência fazem uma
grande exibição de religião na profissão de fé, em palavras que
nada custam e em ações que não envolvem grande dificuldade
ou sofrimento. Mas não têm um espírito sofredor, ou um
espírito que os incline a voluntariamente sofrer pela causa de
Cristo. Quando se ocuparam na religião, não foi com vistas a
qualquer sofrimento, ou qualquer desígnio ou expectativa de
ser prejudicado por ela em seus interesses temporais. Eles se
comprometeram com Cristo, até onde o fizeram, apenas para
servirem, por sua vez, a si mesmos. Tudo o que fazem nas
coisas religiosas procede de um espírito egoísta e é
comumente serve aos seus interesses, como acontecia com os
fariseus de outrora. Portanto, estão distantes do espírito que
se voluntaria a encontrar o sofrimento, seja nas pessoas ou em
seus interesses.
Mas aqueles que são verdadeiramente cristãos têm
disposição para sofrer por Cristo, e estão dispostos a segui-lo
na condição dada por ele mesmo: “E qualquer que não tomar
a sua cruz e vier após mim não pode ser meu discípulo” (Lc
19.27). E não apenas estão dispostos a sofrer por Cristo, mas:
2. Também se depreende de nossa doutrina que eles
têm a disposição para suportar todos os sofrimentos aos
quais seu dever para Cristo possa expô-los. E aqui,
Primeiro, estão dispostos a suportar todos os
sofrimentos, de todos os tipos, que se encontram no caminho
do dever. Têm ânimo de disposição para sofrer em seu bom
nome: a sofrer reprovação e desprezo por causa de Cristo, e a
preferir a honra de Cristo à sua própria. Podem dizer com o
Apóstolo: “Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias,
nas necessidades, nas perseguições, nas angústias, por amor
de Cristo” (2 Co 12.10). Têm disposição para sofrer o ódio e a
má vontade dos homens, como foi predito por Cristo, quando
disse: “Sereis odiados de todos por causa do meu nome” (Mt
10.22). Têm disposição para sofrer em suas posses exteriores;
como diz o Apóstolo: “Sim, deveras considero tudo como
perda, por causa da sublimidade do conhecimento de Cristo
Jesus, meu Senhor; por amor do qual perdi todas as coisas”
(Fl 3.8). Têm disposição para sofrer em sua tranquilidade e
conforto e para suportar durezas e fadigas, como Paulo, para
serem aprovados como fiéis: “Na muita paciência, nas
aflições, nas privações, nas angústias, nos açoites, nas prisões,
nos tumultos, nos trabalhos, nas vigílias, nos jejuns” (2 Co
6.4,5). Têm disposição para sofrer dores corporais, como
aqueles que “foram torturados, não aceitando seu resgate,
para obterem superior ressurreição; outros, por sua vez,
passaram pela prova de escárnios e açoites, sim, até de
algemas e prisões” (Hb 11.35,36). Têm disposição para sofrer
até mesmo a morte: “Quem acha a sua vida perdê-la-á; quem,
todavia, perde a vida por minha causa achá-la-á” (Mt 10.39).
Esses e outros sofrimentos concebíveis em tipo estão
dispostos a suportar por causa de Cristo e no caminho do
dever. E assim,
Segundo, estão dispostos a suportar todos os
sofrimentos, de todos os graus, que se encontram no
caminho do dever. São como o ouro puro, que suportará o
teste da mais quente fornalha. Têm coragem para esquecer
tudo e seguir Cristo, e comparativamente “odiar” até mesmo
“pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs e ainda a sua
própria vida” por causa de Cristo (Lc 14.26). Têm ânimo para
sofrer os maiores graus de reprovação e desprezo, e a passar
pelo teste não apenas de zombarias, mas de zombarias cruéis;
e a suportar não apenas a perda, mas a perda de todas as
coisas. Tem ânimo para sofrer a morte, e não apenas isso, mas
as formas mais cruéis e excruciantes de morte, tais como “ser
apedrejados, provados, serrados pelo meio, mortos a fio de
espada; andaram peregrinos, vestidos de peles de ovelhas e de
cabras, necessitados, afligidos, maltratados” (Hb 11.37). Estão
dispostos a suportar os sofrimentos mais agudos e cruéis, em
grau, por Cristo. Prossigo,
II. Para dar alguma razão ou prova da doutrina.
E que assim é que aqueles que têm um espírito
verdadeiramente gracioso estão dispostos a suportar todos os
sofrimentos a que possam estar expostos no caminho do
dever, aparecerá a partir das seguintes considerações:
1. Se não tivermos esse ânimo, é uma evidência de que
nunca nos entregamos sem reservas a Cristo.
É necessário para que sejamos cristãos ou seguidores de
Cristo que nos entreguemos a ele sem reservas, para sermos
totalmente dele, e dele somente, para todo o sempre. Portanto,
o compromisso do crente com Cristo é com frequência, nas
Escrituras, comparado ao ato de uma noiva ao se entregar em
casamento a seu marido; como quando Deus diz a seu povo:
“Desposar-te-ei comigo para sempre; desposar-te-ei comigo
em justiça, e em juízo, e em benignidade, e em misericórdias;”
(Os 2.19). Mas uma mulher, no casamento, entrega-se ao seu
marido para ser dele, e dele somente.
Os verdadeiros crentes não pertencem a si mesmos, pois
foram comprados por um preço; e reconhecem o pleno direito
que Cristo tem por eles, e reconhecem-no por seu próprio ato,
dando a si mesmos a ele como um sacrifício voluntário e vivo,
totalmente devotado a ele. Mas os que não têm ânimo para
sofrer todas as coisas por Cristo mostram que não se
entregam totalmente a ele, pois fazem reserva daqueles casos
de sofrimento que não estejam dispostos a suportar por sua
causa. Nesses casos, desejam ser dispensados de ser por
Cristo e sua glória, e escolhem antes que a causa dele seja
posta de lado em benefício de sua tranquilidade ou interesse,
e, na realidade, que dê totalmente lugar a essas coisas. Mas
fazer essas reservas de casos de sofrimento é certamente
inconsistente com verdadeiramente se devotar a Deus. É,
antes, ser como Ananias e Safira, que deram apenas parte e
retiveram outro tanto do que afirmaram ter dado ao Senhor.
Entregar-nos totalmente a Cristo implica em sacrificar
nossos interesses temporais totalmente por ele. Mas aquele
que sacrifica totalmente seu interesse temporal por Cristo está
pronto a sofrer todas as coisas em seus interesses mundanos
por ele. Se Deus for verdadeiramente amado, é amado como
Deus; e amá-lo como Deus é amá-lo como o bem supremo.
Mas aquele que ama a Deus como o bem supremo está pronto
a fazer todas os outros bens lhe cederem lugar; ou, o que é o
mesmo, está disposto a sofrer tudo por causa desse bem.
2. Aqueles que são verdadeiramente cristãos temem a
Deus de tal maneira que seu desfavor é muito mais terrível
do que todas as aflições e sofrimentos terrenos.
Quando Cristo fala a seus discípulos sobre que
sofrimentos estariam expostos por sua causa, diz-lhes: “Não
temais os que matam o corpo e, depois disso, nada mais
podem fazer. Eu, porém, vos mostrarei a quem deveis temer:
temei aquele que, depois de matar, tem poder para lançar no
inferno. Sim, digo-vos, a esse deveis temer” (Lc 12.4,5). Da
mesma forma também é dito pelo profeta: “Ao SENHOR dos
Exércitos, a ele santificai; seja ele o vosso temor, seja ele o
vosso espanto” (Is 8.13).
Agora, os que são verdadeiramente cristãos veem e
conhecem aquele que é um Deus tão grande e terrível e sabem
que seu desprazer e ira são muito mais terríveis que todos os
sofrimentos temporais que possam estar no caminho de seu
dever, e que é mais terrível que a ira e crueldade de homens
ou os piores tormentos que possam infligir. Portanto, têm
animo para sofrer tudo que possa ser infligido, ao invés de
esquecer de Deus e do pecado contra aquele que pode infligir
sobre eles a ira eterna.
3. Aqueles que são verdadeiramente cristãos têm
aquela fé pela qual veem o que é mais que suficiente para
substituir os maiores sofrimentos que possam suportar na
causa de Cristo.
Eles veem essa excelência em Deus e Cristo, a quem
escolheram por sua porção, que de longe sobrepuja todos os
possíveis sofrimentos. E veem também aquela glória que
Deus prometeu aos que sofrem por sua causa – esse peso de
glória muito excedente e eterno, que seus sofrimentos pela
causa de Cristo opera por eles, e em comparação ao qual as
mais pesadas aflições e as provações mais duradouras são
apenas “leve e momentânea tribulação” (2 Co 4.17). A fé de
Moisés é dada como uma razão pela qual estava disposto a
sofrer aflição com o povo de Deus e a suportar reprovação por
causa de Cristo, porque, no exercício dessa fé, viu algo
melhor do que o trono e as riquezas do Egito armazenado
para ele no céu (Hb 11.24-26).
4. Se não estivermos dispostos a nos comprometermos
com a religião, apesar de todas as dificuldades que a
acompanham, seremos esmagados pela vergonha no final.
Assim Cristo expressamente nos ensina. Sua linguagem
é: “Pois qual de vós, pretendendo construir uma torre, não se
assenta primeiro para calcular a despesa e verificar se tem os
meios para a concluir? Para não suceder que, tendo lançado
os alicerces e não a podendo acabar, todos os que a virem
zombarem dele, dizendo: Este homem começou a construir e
não pôde acabar. Ou qual é o rei que, indo para combater
outro rei, não se assenta primeiro para calcular se com dez mil
homens poderá enfrentar o que vem contra ele com vinte mil?
Caso contrário, estando o outro ainda longe, envia-lhe uma
embaixada, pedindo condições de paz. Assim, pois, todo
aquele que dentre vós não renuncia a tudo quanto tem não
pode ser meu discípulo” (Lc 14.28-33).
Os sofrimentos que estão no caminho de nosso dever
estão entre as dificuldades que acompanham a religião[25].
São parte do custo de ser religioso. Aquele, portanto, que não
está disposto a encontrar esse custo, nunca concorda com os
termos da religião. É como o homem que deseja que sua casa
estivesse construída, mas não está disposto a pagar o preço de
construí-la; e assim, para todos os efeitos, recusa-se a
construí-la. Aquele que não recebe o evangelho com todas as
suas dificuldades, não o recebe conforme lhe é proposto.
Aquele que não recebe Cristo com sua cruz juntamente com
sua coroa, na realidade, não o recebe verdadeiramente. É
verdade que Cristo nos convida a virmos a ele para achar
descanso e a comprar vinho e leite, mas também nos convida
a vir e tomar a cruz, e isso diariamente, para que possamos
segui-lo; e se viermos apenas para aceitar o descanso, nós, na
verdade, não aceitamos a oferta o evangelho, pois ambos vêm
juntos, o descanso e o jugo, a cruz e a coroa. Nada mais
significará senão que, aceitando apenas um, aceitamos aquilo
que Deus nunca nos ofereceu. Aqueles que recebem apenas a
parte fácil do cristianismo e não a difícil, no máximo, são
quase cristãos, enquanto que aqueles que são totalmente
cristãos recebem todo o cristianismo, e assim serão aceitos e
honrados, e não lançados fora, envergonhados, no último dia.
5. Sem esse espírito que o texto implica não se pode
dizer que abandonamos tudo por causa de Cristo.
Se houver qualquer tipo ou grau de sofrimento temporal
que não tenhamos ânimo de sofrer por Cristo, então há algo
que não abandonamos por sua causa. Por exemplo, se não
estivermos dispostos a sofrer reprovação por Cristo, então não
estamos dispostos a abandonar a honra por ele. De modo
semelhante, se não estivermos dispostos a sofrer a pobreza, a
dor e a morte por sua causa, então não estamos dispostos a
abandonar a riqueza, a tranquilidade e a vida por ele. Mas
Cristo é abundante em nos ensinar que devemos estar
dispostos a abandonar tudo que temos por ele, se o dever o
exigir, ou não podemos ser seus discípulos (Lc 14.26).
6. Sem esse espírito, não se pode dizer que negamos a
nós mesmos no sentido que as Escrituras requerem que o
façamos.
As Escrituras nos ensinam que é absolutamente
necessário negarmos a nós mesmos a fim de sermos
discípulos de Cristo: “Então, disse Jesus a seus discípulos: Se
alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua
cruz e siga-me. Porquanto, quem quiser salvar a sua vida
perdê-la-á; e quem perder a vida por minha causa achá-la-á”
(Mt 16.24,25).
Essas expressões, como usadas aqui, significam o
mesmo que a pessoa renunciar a si mesma. Aquele que age de
acordo com elas em sua prática vive como se renegasse a si
mesmo por Cristo. Coloca-se em dificuldade ou sofrimento,
como se não fosse o senhor de si mesmo. Como se disse
acerca dos filhos de Levi, que não conheciam seus próprios
parentes e amigos, quando os passaram a fio de espada por
seu pecado em fazer o bezerro de ouro, assim se diz que os
cristãos não reconhecem, mas negam a si mesmos, quando
crucificam a carne e sofrem os maiores sofrimentos por
Cristo, como se não tivessem compaixão de si mesmos.
Aqueles que farão contrário à vontade de Cristo e sua glória,
com o fim de evitarem o sofrimento, negam a Cristo ao invés
de a si mesmos. Aqueles que não ousam confessar a Cristo
diante dos perseguidores, o que fazem, na realidade, é negá-lo
diante dos homens, e são do número dos que Cristo diz: “Mas
aquele que me negar diante dos homens, também eu o negarei
diante de meu Pai, que está nos céus” (Mt 10.33); e que o
apóstolo diz: “Se o negamos, ele, por sua vez, nos negará” (2
Tm 2.12).
7. É o caráter de todos os verdadeiros seguidores de
Cristo segui-lo em todas as coisas.
“Estes são”, diz o discípulo amado, aludindo àqueles
em volta do trono de Deus, “os seguidores do Cordeiro por
onde quer que vá” (Ap 14.4). Não se pode dizer que aqueles
que estão dispostos a seguir a Cristo apenas na prosperidade e
não na adversidade, ou apenas em alguns sofrimentos e em
outros não, o seguem aonde quer que vá. Lemos a respeito de
um que disse a Cristo, enquanto esteve sobre a terra: “Mestre,
seguir-te-ei para onde quer que fores”, e que Cristo lhe
respondeu: “As raposas têm seus covis, e as aves do céu,
ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a
cabeça” (Mt 8.19,20). E com isso queria lhe dizer que se ele
lhe seguisse aonde fosse, deveria segui-lo por grandes
dificuldades e sofrimentos.
Aqueles que são verdadeiros seguidores de Cristo são
do mesmo espírito em relação a ele que Itai, o geteu,
manifestou com relação a Davi, ao não apenas se apegar a ele
na prosperidade, mas também na sua adversidade, mesmo
quando Davi o teria desculpado se não fosse com ele. Disse:
“Tão certo como vive o SENHOR, e como vive o rei, meu
senhor, no lugar em que estiver o rei, meu senhor, seja para
morte seja para vida, lá estará também o teu servo” (2 Sm
15.21). Os verdadeiros cristãos têm essa mesma disposição
para com Cristo, o Davi espiritual.
8. É do caráter dos verdadeiros cristãos o fato de que
vencem o mundo.
“Todo o que é nascido de Deus vence o mundo” (1Jo
5.4). Mas vencer o mundo implica que vençamos
semelhantemente suas lisonjas e desaprovação, seus
sofrimentos e dificuldades. Essas são as armas do mundo,
pelas quais busca nos conquistar; e se houver qualquer uma
dessas que não tenhamos disposição de enfrentar por causa
de Cristo, então por essas armas o mundo nos terá em
sujeição e obterá vitória sobre nós. Mas Cristo dá a seus
servos a vitória sobre o mundo em todas as suas formas. São
conquistadores e mais do que conquistadores, por meio
daquele que os amou. Uma vez mais,
9. Os sofrimentos no caminho do dever são com
frequência, na Bíblia, chamados de tentações ou testes,
porque por eles Deus testa a sinceridade de nosso caráter
de cristãos.
Ao colocar esses sofrimentos em nosso caminho, Deus
testa se temos ânimo para suportar o sofrimento e assim testa
nossa sinceridade pelo sofrimento, como o ouro é testado
pelo fogo, para saber se é puro ou não. E assim como pelo
fogo o ouro puro pode ser distinguido de todos os metais
inferiores e de todas as suas imitações, também pela
observação de se estamos dispostos a suportar testes e
sofrimentos por causa de Cristo, Deus vê se realmente somos
seu povo, ou se estamos prontos para abandoná-lo e ao seu
serviço quando qualquer dificuldade ou perigo estiver no
caminho.
Parece ter sido com isso em mente que o apóstolo
Pedro diz aos seus destinatários: “Embora, no presente, por
breve tempo, se necessário, sejais contristados por várias
provações, para que, uma vez confirmado o valor da vossa fé,
muito mais preciosa do que o ouro perecível, mesmo apurado
por fogo, redunde em louvor, glória e honra na revelação de
Jesus Cristo” (1Pe 1.6,7). E novamente: “Amados, não
estranheis o fogo ardente que surge no meio de vós, destinado
a provar-vos, como se alguma coisa extraordinária vos
estivesse acontecendo; pelo contrário, alegrai-vos na medida
em que sois coparticipantes dos sofrimentos de Cristo, para
que também, na revelação de sua glória, vos alegreis
exultando” (1Pe 4.12,13). E assim Deus declara pelo seu
profeta: “Farei passar a terceira parte pelo fogo, e a purificarei
como se purifica a prata, e a provarei como se prova o ouro;
ela invocará o meu nome, e eu a ouvirei; direi: é meu povo, e
ela dirá: O SENHOR é meu Deus” (Zc 13.9).
APLICAÇÃO
Na aplicação desse assunto, que ele:
1. Leve aqueles que se acham cristãos a examinarem a
si mesmos, quanto a se têm ou não a disposição de suportar
todos os sofrimentos por Cristo.
Compete a todos examinarem-se rigorosamente para
saberem se têm uma disposição sofredora ou não, visto que
tamanha importância está ligada a essa disposição nas
Escrituras. Embora você jamais tenha passado pelo teste de
ter tão grande e extremo sofrimento posto no caminho do seu
dever, como muitos outros tiveram, contudo, você já teve o
suficiente, no curso da providência de Deus, para mostrar qual
é sua disposição, e se você tem uma disposição para sofrer e
renunciar a seu próprio conforto, tranquilidade e interesse, ao
invés de abandonar Cristo.
Deus costuma, em sua providência, comumente
exercitar todos os professantes da religião, e especialmente
aqueles que podem estar vivendo em tempos de provação,
com testes desse tipo, pondo dificuldades em seu caminho, do
tipo que manifestarão qual é a disposição deles e se é um
espírito de autorrenúncia ou não. Frequentemente ocorre com
os cristãos que estão expostos a perseguições que, se se
apegarem a Cristo e forem fiéis a ele, devem sofrem em seu
bom nome e em perder a boa vontade dos outros, ou na sua
tranquilidade e conveniência exteriores, sendo expostos a
muitos problemas; ou em suas propriedades, sendo trazidos à
dificuldade quanto a seus negócios; ou devem fazer muitas
coisas que são extremamente adversas e até mesmo terríveis
para eles.
E quanto a você, quando passou por esses testes, já
achou em si mesmo uma disposição para suportar todas as
coisas que lhe sobrevêm, ao invés de ser infiel em qualquer
coisa ao seu grande Senhor e Redentor? Vocês tem ainda mais
necessidade de se examinar com respeito a esse ponto, pois
não sabem se, antes de morrerem, não irão porventura passar
por teste de perseguições como outros cristãos passaram.
Todo cristão verdadeiro tem o espírito de um mártir. Se você
não tem o espírito sofredor nos testes ou sofrimentos menores
que Deus pode enviar sobre você, como será se ele o expuser
a amargas perseguições, tais como as que os santos do
passado foram, por vezes, chamados a suportar? Se vocês não
podem suportar testes em coisas pequenas, como podem
possuir essa caridade que suporta todas as coisas? Como diz
o profeta em outra situação: “Se te fatigas correndo com
homens que vão a pé, como poderás competir com os que
vão a cavalo? Se em terra de paz não te sentes seguro, que
farás na floresta do Jordão?” (Jr 12.5). Nosso assunto,
2. Exorta a todos os professantes da religião a
acalentarem uma pronta disposição, por causa de Cristo, de
suportar todos os sofrimentos que possam ser encontrados
no caminho do dever.
Considerem aqui,
Primeiro, como são felizes aqueles que são
representados nas Escrituras como tendo uma disposição
para sofrer, e que realmente sofrem por Cristo.
“Bem-aventurados”, diz Cristo, “os perseguidos por
causa da justiça, porque deles é o reino dos céus. Bem-
aventurados sois quando, por minha causa, vos injuriarem, e
vos perseguirem, e, mentindo, disserem todo mal contra vós.
Regozijai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos
céus; pois assim perseguiram aos profetas que viveram antes
de vós” (Mt 5.10-12). Novamente: “Bem-aventurados vós, os
que agora tendes fome, porque sereis fartos. Bem-aventurados
vós, os que agora chorais, porque haveis de rir. Bem-
aventurados sois quando os homens vos odiarem e quando
vos expulsarem da sua companhia, vos injuriarem e rejeitarem
o vosso nome como indigno, por causa do Filho do Homem.
Regozijai-vos naquele dia e exultai, porque grande é o vosso
galardão no céu; pois dessa forma procederam seus pais com
os profetas” (Lc 6.21-23). E novamente: “Porque vos foi
concedida a graça de padecerdes por Cristo e não somente de
crerdes nele” (Fl 1.29). E novamente: “Bem-aventurado o
homem que suporta, com perseverança, a provação; porque,
depois de ter sido aprovado, receberá a coroa da vida, a qual o
Senhor prometeu aos que o amam” (Tg 1.12). E novamente:
“Mas, ainda que venhais a sofrer por causa da justiça, bem-
aventurados sois. Não vos amedronteis, portanto, com as suas
ameaças, nem fiqueis alarmados” (1Pe 3.14). O Novo
Testamento está cheio de expressões similares; todas elas
podem nos encorajar no caminho do sofrimento por Cristo.
Considere também,
Segundo, Que recompensas gloriosas Deus prometeu
daqui para frente para aqueles que realmente estiverem
dispostos a sofrer por Cristo.
É dito que receberão uma “coroa de vida”, e Cristo
promete que aqueles que abandonarem casas, ou irmãos, ou
irmãs, ou pai, ou mãe, ou esposa, ou filhos, ou terras por
causa do seu nome, receberão cem vezes mais e herdarão a
vida eterna (Mt 19.29). É-nos dito, novamente, que aqueles
que sofrem por causa de Cristo serão considerados dignos do
reino de Deus (2Te 1.5); e, novamente, que fiel é a palavra que
se sofremos com Cristo, também reinaremos com ele (2Tm
2.11,12). Também é dito que, se sofremos com ele, também
seremos glorificados com ele (Rm 8.17). Temos também as
mais gloriosas promessas feitas àqueles que vencem e obtêm
a vitória sobre o mundo: “Ao vencedor”, diz Cristo, “dar-lhe-
ei que se alimente da árvore da vida que se encontra no
paraíso de Deus”; e “de nenhum modo sofrerá dano da
segunda morte”; e “dar-lhe-ei do maná escondido”; e “lhe
darei autoridade sobre as nações”; e “dar-lhe-ei ainda a estrela
da manhã”; e “será assim vestido de vestiduras brancas, e de
modo nenhum apagarei o seu nome do Livro da Vida; pelo
contrário, confessarei o seu nome diante de meu Pai e diante
dos seus anjos”; e “fá-lo-ei coluna no santuário do meu Deus,
e daí jamais sairá; gravarei também sobre ele o nome do meu
Deus”; e “dar-lhe-ei sentar-se comigo no meu trono, assim
como também eu venci e me sentei com meu Pai no seu
trono” (Ap 2.7,11,17,26,27,28; 3.5,12,21). Certamente,
promessas tão ricas e abundantes como essas deveriam nos
tornar dispostos a suportar todos os sofrimentos por causa de
Cristo, que tão gloriosamente nos recompensará por todos
eles. Uma vez mais, considerem,
Terceiro, como as Escrituras abundam com exemplos
benditos daqueles que sofreram por causa de Cristo.
O salmista, falando da reprovação e blasfêmia que tinha
suportado do inimigo e vingador, diz: “Tudo isso nos
sobreveio; entretanto, não nos esquecemos de ti, nem fomos
infiéis à tua aliança. Não tornou atrás o nosso coração, nem se
desviaram os nossos passos dos teus caminhos” (Sl 44.17,18);
e novamente: “Os soberbos zombam continuamente de mim;
todavia, não me afasto da tua lei”; “São muitos os meus
perseguidores e os meus adversários; não me desvio, porém,
dos teus testemunhos”; “Príncipes me perseguem sem causa,
porém o que o meu coração teme é a tua palavra.” (Sl
119.51,157,161). E o profeta Jeremias falou ousadamente a
Deus, embora fosse ameaçado de morte por assim fazer (Jr
26.11,15). Sadraque, Mesaque e Abde-Nego recusaram-se a se
curvar e adorar a imagem de ouro que o rei da Babilônia havia
levantado, embora soubessem que seriam lançados na
fornalha ardente (Dn 3); e o próprio Daniel ainda orou
fielmente ao seu Deus, embora esperasse que fosse lançado
na cova dos leões (Dn 6).
Mas o tempo me faltaria para relatar sobre os apóstolos,
profetas, mártires e santos, e o próprio Cristo, que foram fiéis
tanto nos bons como nos maus momentos, e também nos
sofrimentos e testes; e não consideraram suas vidas preciosas,
para que assim pudessem ser fiéis até o fim. “Portanto,
também nós, visto que temos a rodear-nos tão grande nuvem
de testemunhas, desembaraçando-nos de todo peso e do
pecado que tenazmente nos assedia, corramos, com
perseverança, a carreira que nos está proposta, olhando
firmemente para o Autor e Consumador da fé, Jesus, o qual,
em troca da alegria que lhe estava proposta, suportou a cruz,
não fazendo caso da ignomínia, e está assentado à destra do
trono de Deus” (Hb 12.1,2); “Não temas as coisas que tens de
sofrer. Sê fiel até à morte, e dar-te-ei a coroa da vida” (Ap
2.10).
CAPÍTULO 13
TODAS AS GRAÇAS DO CRISTIANISMO
ESTAO CONECTADAS
“A caridade tudo crê, tudo espera”
1Coríntios 13.7

N essas
palavras
comumente
se entende que o apóstolo quer dizer que a caridade nos
dispõe a crer o melhor e esperar o melhor com relação ao
nosso próximo, em todas as situações. Mas me parece que
essa não é a sua intenção nesse lugar, mas, ao contrário, o que
pretende dizer é que a caridade é uma graça que acalenta e
promove o exercício de todas as outras graças, bem como,
particularmente, das graças da fé e da esperança.
Mencionando as graças de crer e esperar, ou da fé e esperança,
o apóstolo aqui mostra como o exercício delas é promovido
pela caridade. Minhas razões para entender o apóstolo nesse
sentido são as seguintes:
Primeira, ele logo antes mencionara esse fruto da
caridade pelo qual ela nos leva a pensar o melhor de nosso
próximo, ao dizer que ela “não pensa o mal”. Não temos
razão para achar que ele repetiria a mesma coisa novamente
nessas palavras.
Segunda, parece claro que o apóstolo havia acabado de
falar dos frutos da caridade em relação ao próximo, quando os
sumarizou, como vimos, ao dizer que ela “não se regozija na
iniquidade, mas regozija-se na verdade”, isto é, que tende a
prevenir todo mal procedimento e promover todo bom
comportamento. De modo que, nesse verso, podemos esperá-
lo proceder para mencionar alguns frutos da caridade de outro
tipo, tais como, por exemplo, sua tendência para promover as
graças da fé e esperança, que são grandiosas graças do
evangelho.
Terceira, descobrimos que o apóstolo, neste capítulo,
mais do que uma vez menciona as graças tríplices da fé,
esperança e caridade juntas. É razoável supor que, a cada vez
que o faz, ele tem em mente as mesmas três graças. No último
verso do capítulo, descobrimos essas três [graças]
mencionadas e comparadas; e lá, por “fé” e “esperança”, o
apóstolo claramente não quer dizer crer ou esperar o melhor
com respeito ao próximo, mas ele realmente tem em mente
aquelas grandes graças do evangelho que têm Deus e Cristo
por seu objeto principal e imediato. E assim, quando aqui ele
menciona as mesmas três graças, como no último verso do
capítulo, por que não devemos acreditar que tenha em mente
as mesmas três coisas naquele primeiro lugar que tem no
último, uma vez que estão no mesmo capítulo e no mesmo
discurso e no curso do mesmo argumento? E novamente,
Quarta, essa opinião é conforme ao objetivo e
propósito do apóstolo por todo o capítulo, o qual é mostrar a
relação da caridade com as outras graças, e, particularmente,
com a fé e a esperança. É a isso que o apóstolo visa em tudo o
que diz. Portanto, quando vem à conclusão do assunto, no
último versículo do texto, e diz que da fé, esperança e
caridade esta última é a maior, parece fazer referência ao que
dissera nas palavras do texto, isto é, que “a caridade tudo crê e
tudo espera”, significando que a caridade é maior que as
outras duas e tem a mais efetiva influência em produzi-las, e é
aquilo pelo que são acalentadas e promovidas na alma.
Por essas razões, a doutrina que derivo do texto é que:
AS GRAÇAS DO CRISTIANISMO ESTÃO TODAS
CONECTADAS E SÃO MUTUAMENTE DEPENDENTES
UMAS DAS OUTRAS.
Ou seja, elas estão todas ligadas e unidas umas às outras
e no interior das outras, como estão os elos de uma cadeia.
Uma, por assim dizer, pendura-se em outra, de uma
extremidade da cadeia à outra, de tal maneira que se um elo
for quebrado, todos desabam e o todo cessa de ter qualquer
efeito.
Ao desenvolver esse pensamento, primeiro explicarei
brevemente como as graças do cristianismo estão todas
conectadas; depois darei algumas das razões de porque isso
acontece.
I. Explicarei brevemente a maneira na qual as graças
do cristianismo estão conectadas.
Isso pode ser mostrado de três maneiras:
1. Todas as graças do cristianismo sempre andam
juntas.
Elas andam juntas de tal maneira que, onde uma se
encontra, lá se encontram todas as outras e, onde uma falta, lá
faltam todas. Onde há fé há amor, e esperança, e humildade; e
onde há amor, também há confiança; e onde há uma santa
confiança em Deus, há amor por Deus; e onde há uma
esperança graciosa, também há santo temor de Deus.
“Agrada-se o SENHOR dos que o temem e dos que esperam
na sua misericórdia” (Sl 147.11). Onde há amor por Deus, há
um gracioso amor pelos homens; e, onde há um amor cristão
pelo homem, há amor por Deus. Daí descobrimos que o
apóstolo João ora apresenta o amor aos irmãos como um sinal
de amor a Deus, dizendo: “Se alguém disser: Amo a Deus, e
odiar a seu irmão, é mentiroso” (1Jo 4.20); ora, novamente,
fala do amor a Deus como um sinal de amor aos irmãos,
dizendo: “Nisto conhecemos que amamos os filhos de Deus:
quando amamos a Deus e praticamos os seus mandamentos”
(1Jo 5.2).
Também é verdadeiro,
2. Que as graças do cristianismo dependem umas das
outras.
Não há apenas uma conexão, pela qual sempre estão
ligadas, mas há também uma dependência mútua entre elas,
de tal modo que uma não pode existir sem as outras. Negar
uma, com efeito, seria negar as demais, e assim a todas; assim
como negar a causa seria negar o efeito, ou negar o efeito seria
negar a causa. A fé promove o amor e o amor é o ingrediente
mais eficaz de uma fé viva. O amor é dependente da fé, pois
um ser não pode ser verdadeiramente amado, e especialmente
amado acima de todos os outros seres, a menos que seja visto
como um ser real. E então o amor, por seu turno, alarga e
promove a fé, pois somos mais aptos a crer e dar crédito e
mais dispostos a confiar naqueles a quem amamos do que
naqueles a quem não amamos. Portanto, a fé gera o amor,
pois a fé vê e confia na fidelidade de suas promessas, que fará
o que disse.
Toda esperança graciosa é esperança que descansa na
fé; e a esperança encoraja e produz ato de fé. Também o amor
tende à esperança, pois o espírito do amor é filial. Quanto
mais alguém sente em si esse espirito em relação a Deus, mais
natural será para ele olhar para Deus e ir até Deus como a um
pai. Esse espírito pueril lança fora o espírito de escravidão e
temor e dá o espirito de adoção, que é o espírito de confiança
e esperança. “Porque não recebestes o espírito de escravidão,
para viverdes, outra vez, atemorizados, mas recebestes o
espírito de adoção, baseados no qual clamamos: Aba, Pai”
(Rm 8.15). O apóstolo João nos diz: “No amor não existe
medo; antes, o perfeito amor lança fora o medo” (1Jo 4.18).
E assim, novamente, uma esperança verdadeira e
genuína tende grandemente a promover o amor. Quando um
cristão tem o máximo de uma reta esperança de sua
participação na graça de Deus e naquelas bênçãos eternas que
são seus frutos, isso tende a produzir o exercício do amor, e
frequentemente o produz; como diz o apóstolo Paulo: “A
tribulação produz perseverança; e a perseverança, experiência;
e a experiência, esperança. Ora, a esperança não confunde,
porque o amor de Deus é derramado em nosso coração pelo
Espírito Santo, que nos foi outorgado” (Rm 5.3-5).
A fé também promove a humildade, pois, quanto mais
inteiramente alguém depende da suficiência de Deus, mais
tenderá a um senso humilde de sua própria suficiência. E
assim a humildade tende a promover a fé; pois, quanto mais
alguém tem um senso humilde de sua própria insuficiência,
mais seu coração estará disposto a confiar apenas em Deus e a
depender inteiramente de Cristo.
Da mesma forma, o amor promove a humildade, pois
quanto mais o amor é arrebatado pela amabilidade de Deus,
mais abominará a si mesmo e degradará e humilhará a si
mesmo por sua própria odiosidade e vileza. A humildade
promove o amor pois, quanto mais alguém tem um senso
humilde de sua própria indignidade, mas admirará a bondade
de Deus para consigo, e mais seu coração será induzido em
amor por ele, por sua graça gloriosa.
O amor tende ao arrependimento, pois aquele que
verdadeiramente se arrepende dos pecados, arrepende-se
deles porque cometidos contra um ser a quem ele ama. E o
arrependimento tende à humildade, pois ninguém pode
verdadeiramente entristecer-se pelo pecado e se autocondenar
à vista dele sem que seja humilhado no coração por ele.
Semelhantemente, o arrependimento, a fé e o amor,
todos tendes à ação de graças. Aquele que, pela fé, confia em
Cristo para a salvação, será grato a ele pela salvação. Aquele
que ama a Deus será disposto a gratamente reconhecer sua
bondade. E aquele que se arrepende de seus pecados será
sinceramente disposto a agradecer a Deus pela graça que é
suficiente para libertá-lo da culpa e poder do pecado. Um
verdadeiro amor por Deus tende ao amor pelos homens, que
portam a imagem de Deus; e um espírito de amor e paz
direcionado aos homens acalenta um espírito de amor a Deus,
assim como a imagem insufla o amor pelo original.
Assim poderia ser demonstrado como todas as graças
dependem umas das outras, mencionando-se muitos outros
exemplos. A humildade alimenta todas as outras graças, e
todas as outras graças promovem a humildade; e assim
também a fé promove todas as outras graças, e todas elas
nutrem e promovem a fé. E o mesmo é verdadeiro de cada
uma das graças do evangelho.
3. As diferentes graças do cristianismo estão, em
alguns aspectos, implícitas umas nas outras.
Elas não são apenas mutuamente conectadas e
dependentes, e não apenas promotoras umas das outras, mas
estão em alguns aspectos implícitas na natureza umas das
outras. Em relação a diversas delas é verdadeiro que uma é
essencial à outra, ou pertence a sua própria essência. Assim,
por exemplo, a humildade está implícita na natureza de uma
fé verdadeira, a ponto de ser a sua essência. É essencial à fé
verdadeira que seja uma fé humilde, assim como é essencial a
uma verdadeira confiança que seja uma confiança humilde.
Também a humildade pertence à natureza e essência de muitas
outras graças verdadeiras. É essencial ao amor cristão que seja
um amor humilde; à submissão, que seja uma submissão
humilde; ao arrependimento, que seja um arrependimento
humilde; à ação de graças, que seja uma ação de graças
humilde; e à reverência, que seja uma reverência humilde.
Semelhantemente o amor está implícito em uma fé
graciosa. É um ingrediente nela e pertence à sua essência, e é,
por assim dizer, a sua própria alma, ou sua natureza eficiente
ou operativa. Assim como a natureza eficiente e operativa do
homem é sua alma, também a natureza eficiente e operativa
da fé é o amor. O apóstolo Paulo nos diz que a “fé opera pelo
amor” (Gl 5.6); e o apóstolo Tiago nos diz que a fé sem sua
natureza eficiente está morta, assim como o corpo sem o
espírito (Tg 2.26).
Também a fé, em alguns aspectos, está implícita no
amor, pois é essencial a um amor cristão verdadeiro que seja
um amor que crê. Também o arrependimento salvífico e a fé
estão implícitos um no outro. São ambos uma e a mesma
conversão da alma do pecado para Deus, através de Cristo. O
ato da alma de volver-se do pecado para Deus através de
Cristo, no que diz respeito à coisa de que se volta, isto é, o
pecado, é chamado arrependimento; e, no que diz respeito à
coisa a que, e pela mediação da qual, se volta é chamado fé. É
como quando alguém se volta ou foge das trevas para a luz; é
o mesmo ato e movimento, embora seja chamado por nomes
diferentes, de acordo com a consideração das trevas de que se
foge ou da luz a que se foge. No primeiro caso é chamado
evitar ou converter-se, e no segundo de receber ou abraçar.
E assim há amor implícito na ação de graças. A
verdadeira ação de graças é nada mais do que o exercício do
amor a Deus, em razão da sua bondade para conosco.
Também há amor e um temor verdadeiro e filial por Deus,
pois um temor filial difere de um servil, pois não há amor
algum em um termo servil. Todas estas três graças do amor,
humildade e arrependimento estão implícitas na submissão
filial à vontade de Deus.
Também o desapego do mundo e a inclinação celestial
consistem principalmente nas três graças da fé, esperança e
amor. Portanto, um amor cristão pelo ser humano é um tipo
de amor mediato ou indireto a Cristo. A justiça e a verdade
para com os homens, se são verdadeiramente graças cristãs,
têm o amor em si e este é parte de sua essência. O amor e a
humildade, novamente, são as graças em que consiste a
mansidão para com os homens. E assim é o amor por Deus, e
a fé, e a humildade, que são os ingredientes da paciência e do
contentamento cristãos com nossa condição e com as
distribuições da providência para nós.
Assim se prova que todas as graças do cristianismo
estão concatenadas e ligadas, a ponto de serem mutuamente
conectadas e dependentes.
Prossigo, então, como proposto,
II. Para dar algumas razões de estarem assim
conectadas e dependentes.
1. Elas todas procedem da mesma fonte.
Todas as graças do cristianismo procedem do mesmo
Espírito; como diz o apóstolo: “Ora, os dons são diversos,
mas o Espírito é o mesmo. E há diversidade nas realizações,
mas o mesmo Deus é quem opera tudo em todos” (1Co 12.4,
6). As graças do cristianismo procedem todas do mesmo
Espírito de Cristo, enviadas ao coração e que lá habitam como
uma natureza santa, poderosa e divina.
Portanto, todas as graças são apenas os diferentes
modos de agir da parte da mesma natureza divina; como pode
haver diferentes reflexos da luz do sol, e, contudo, na fonte, a
origem é a mesma, pois procede da mesma fonte ou corpo de
luz. A graça na alma é o Espírito Santo agindo na alma e assim
comunicando sua própria natureza santa. É como ocorre com
a água na fonte, assim também aqui é tudo uma e a mesma
natureza, apenas diversificada pela variedade de regatos que
emanam dela. Esses regatos devem todos ser de mesma
natureza, visto que procedem todos da mesma fonte; e a
diferença entre muitos deles, pelo que recebem nomes
diferentes, é principalmente relativa, mais para referenciá-los
aos vários objetos e modos de exercício do que uma diferença
real na sua natureza abstrata.
Assim também,
2. Elas são todas comunicadas na mesma obra do
Espírito, isto é, na conversão.
Não há uma conversão da alma a fé, e outra conversão
ao amor por Deus, e outra para a humildade, e outra para o
arrependimento, e ainda outra para o amor pelos homens; mas
todas são produzidas por uma única e mesma obra do Espírito
e são o resultado de uma única e mesma conversão ou
mudança de coração. Isso prova que todas as graças estão
unidas e ligadas por estarem contidas naquela única e mesma
natureza que nos é dada na regeneração. Acontece aqui como
é na primeira geração, aquela do corpo, na qual as diversas
faculdades são comunicadas em uma única e mesma geração;
os sentidos da vista, audição, tato, paladar e olfato, e também
os poderes do movimento, respiração, etc., todos são dados
aos mesmo tempo, e todos são apenas uma natureza e vida
humana, embora diversificadas em seus modos e formas.
Ademais, é verdadeiro das graças cristãs,
3. Que elas todas têm a mesma raiz e fundamento, isto
é, o conhecimento da excelência de Deus.
A mesma visão ou senso da excelência de Deus gera fé,
amor, arrependimento e todas as outras graças. Uma visão
dessa excelência gerará todas essas graças, porque mostra a
base e razão de todas as disposições santas e de toda conduta
santa para com Deus. Aqueles que verdadeiramente
conhecem a natureza de Deus o amarão, e confiarão nele, e
terão um espírito de submissão a ele, e o servirão e lhe
obedecerão. “Em ti, pois, confiam os que conhecem o teu
nome, porque tu, SENHOR, não desamparas os que te
buscam” (Sl 9.10); “Todo aquele que vive pecando não o viu,
nem o conheceu” (1Jo 3.6); “Todo aquele que ama é nascido
de Deus e conhece a Deus” (1Jo 4.7).
Também é verdadeiro das graças cristãs,
4. Que todas elas têm a mesma regra, isto é, a lei de
Deus.
Portanto, elas devem estar firmemente ligadas, visto que
todas obedecem a essa mesma regra, tendem todas a
confirmar a regra por inteiro, e conformam o coração e a vida
a ela. Aquele que tem um verdadeiro respeito a um dos
mandamentos de Deus terá um respeito verdadeiro por todos;
pois eles todos são estabelecidos pela mesma autoridade e são
todos juntamente uma expressão da mesma natureza santa de
Deus. “Pois qualquer que guarda toda a lei, mas tropeça em
um só ponto, se torna culpado de todos. Porquanto, aquele
que disse: Não adulterarás também ordenou: Não matarás.
Ora, se não adulteras, porém matas, vens a ser transgressor da
lei” (Tg 2.10-11).
5. Todas as graças cristãs têm o mesmo propósito, isto
é, Deus.
Ele é o fim delas, pois todas tendem a ele. Assim como
são todas da mesma origem, surgindo da mesma fonte; e
todas permanecem no mesmo fundamento, crescendo da
mesma raiz; e são todas governadas pela mesma regra, a lei de
Deus; também são todas dirigidas ao mesmo fim, isto é, Deus,
sua glória e nossa felicidade nele. E isso mostra que elas
devem ser proximamente relacionadas e bastante ligadas entre
si.
E ainda mais uma vez é verdadeiro,
6. Que todas as graças cristãs são semelhantemente
relacionadas a uma e mesma graça, isto é, a caridade ou
amor divino, como a suma de todas elas.
Como vimos antes, a caridade ou amor é a suma de
todas as verdadeiras graças cristãs, apesar dos muitos nomes
que lhe possam ser dados. E apesar dos diferentes modos de
sua manifestação, se apenas as examinarmos cuidadosamente
descobriremos que estão reduzidas a uma. O amor, ou
caridade, é o cumprimento delas todas, e elas são apenas
muitas diversificações e ramos diferentes, relações e modos de
exercício da mesma coisa. Uma graça, com efeito, as contém
todas, assim como um princípio de vida compreende todas as
suas manifestações. Daí não é de se admirar que estejam
sempre juntas e sejam dependentes e implícitas umas nas
outras.
APLICAÇÃO
Na aplicação desse assunto,
1. Pode nos auxiliar a entender em que sentido se diz
que as coisas antigas foram abolidas e tudo se fez novo na
conversão.
Isto é o que nos ensina o apóstolo como fato: “E, assim,
se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas antigas já
passaram; eis que se fizeram novas” (2Co 5.17). Mas a
doutrina do texto e o que foi dito a partir dele podem, em
alguma medida, nos mostrar como isso ocorre; pois assim
aprendemos que todas as graças do cristianismo são
imediatamente comunicadas na conversão, considerando que
estão todas intimamente ligadas, de forma que quando uma é
concedida todas o são, e não meramente uma.
Um verdadeiro convertido, no momento que é
convertido, passa a possuir não um ou dois, mas todos os
santos princípios e todas as graciosas disposições. Elas podem
ser débeis, realmente, como as faculdades e poderes de uma
criança, mas estão todas verdadeiramente lá, e serão vistas
fluindo progressivamente em todo tipo de sentimento e
conduta santos para com Deus e homem. Em cada verdadeiro
convertido há tantas graças quanto havia no próprio Jesus
Cristo, que é o que o evangelista João tinha em mente quando
diz: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de
graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do
unigênito do Pai. Porque todos nós temos recebido da sua
plenitude e graça sobre graça” (Jo 1.14,16).
E realmente não poderia ser diferente, visto que todos
os verdadeiros convertidos são renovados à imagem de Cristo,
como diz o apóstolo: “E vos revestistes do novo homem que
se refaz para o pleno conhecimento, segundo a imagem
daquele que o criou” (Cl 3.10). Mas aquilo a que faltam
algumas partes ou traços não é uma imagem ou figura exata
de outro. Uma imagem exata tem uma parte correspondente a
cada parte daquilo de que é imagem. A cópia corresponde ao
original, totalmente, em todas as suas partes e traços, embora
possa ser obscura em alguns aspectos e não representar
qualquer parte perfeitamente, como a graça corresponde a
graça. A graça na alma é um reflexo da glória de Cristo, como
aparece em 2 Coríntios 3.18[26]. É um reflexo de sua glória,
como a imagem de uma pessoa é refletida de um espelho que
exibe parte por parte.
Acontece no novo nascimento como ocorre no
nascimento de uma criança. Ela tem todas as partes de um
adulto, embora estejam ainda em um estado bastante
imperfeito. Nenhuma parte está faltando, mas há tantos
membros quanto há em um homem de plena estatura e força.
Portanto, o que é realizado na regeneração é chamado de
“novo homem”; não apenas novos olhos, ou novos ouvidos,
ou novas mãos, mas um novo homem, possuindo todas as
faculdades e membros humanos. Mas todas as graças do
cristão são novas. Todas elas são membros do indivíduo após
a conversão, e nenhuma delas eram membros antes da
conversão. E porque há, por assim dizer, um novo homem,
com todos esses membros, gerados na conversão, por esse
motivo se diz que os cristãos são santificados totalmente, na
alma, corpo e espírito, como em 1Tessalonissences 5.23[27].
Assim, as coisas antigas passaram e todas as coisas se fizeram
novas, porque assim como o novo homem é posto para
dentro, o velho homem é lançado fora, de modo que o
homem de certa forma se torna totalmente novo.
E se há todas as graças vivas neste homem, se seguirá
que todas as corrupção serão mortificadas; pois não há
corrupção alguma que não tenha uma graça que lhe seja
oposta e correspondente. A concessão da graça mortifica a
corrupção oposta. Assim a fé tende a mortificar a
incredulidade; o amor a mortificar a inimizade; a humildade o
orgulho; a mansidão a vingança; a ação de graças a ingratidão,
etc. À medida que uma delas toma seu lugar no coração, a
oposta lhe dá lugar, assim como a escuridão em um ambiente
se esvai quando a luz é trazida. Assim as coisas antigas se
foram. Todas elas, em certa medida, passam, ainda que não
perfeitamente sobre a terra; logo todas as coisas se tornam
novas, ainda que imperfeitamente.
Isso mostra que a conversão, quando e onde é operada,
é uma grande obra e mudança. Ainda que a graça seja muito
imperfeita, aquele que antes não teve nenhuma corrupção
mortificada e agora as tem todas mortificadas, deve ter uma
grande mudança operada em si. Aquele que antes não teve
graça nenhuma, agora tem todas as graças. Ele pode com
razão ser chamado de nova criatura, ou, como está no original,
uma nova criação em Jesus Cristo.
2. Daí, também, que aqueles que esperam que tenham
a graça em seus corações podem testar uma graça pela
outra, pois todas as graças trabalham juntas.
Se as pessoas pensam que têm a fé, e, portanto, pensam
que vieram a Cristo, deveriam investigar se sua fé foi
acompanhada de arrependimento; se vieram a Cristo com um
coração quebrantado, sensível de sua própria indignidade e
vileza total pelo pecado; ou se não vieram em um espírito
presunçoso, farisaico, encorajando-se com sua própria
suposta bondade. Deveriam testar sua fé, investigando se foi
acompanhada com a humildade; se confiaram ou não em
Cristo de uma forma submissa e humilde, deleitando-se em
renunciar a si mesmo e dar toda a glória de sua salvação a Ele.
Também deveriam testar sua fé pelo seu amor. Se sua fé tem
em si apenas luz, mas nenhum calor, então não tem a
verdadeira luz; nem é uma fé genuína, se não opera pelo amor.
Assim, pela sua fé, as pessoas deveriam examinar seu
amor. Se parecem ter um amor afetuoso por Deus e Cristo,
deveriam investigar se ele é ou não acompanhado com uma
real convicção na alma da realidade de Cristo e da verdade do
evangelho que o revela, e com a plena convicção que ele é o
Filho de Deus, o único, glorioso e autossuficiente Salvador.
Aqui subjaz uma grande diferença entre as falsas e as
verdadeiras afeições, visto que as primeiras não são
acompanhadas com essa convicção, e elas também não veem
a verdade e realidade das coisas divinas. Portanto, deve-se
depender muito pouco dessas afeições. Elas são bastante
semelhantes à afeição que podemos ter para com uma pessoa
que lemos em um romance, e que ao mesmo tempo não
supomos que seja outra coisa a não ser uma pessoa
imaginária. Afeições tais que não são acompanhadas com
convicção jamais levarão as pessoas muito longe em seu
dever, nem as influenciarão, em qualquer grande extensão,
seja no fazer ou no sofrer.
Portanto, novamente, as pessoas deveriam examinar a si
mesmas quanto ao que nelas parece ser a graça da esperança.
Devem investigar se sua esperança é acompanhada com fé e
surge da fé em Jesus Cristo e de uma confiança em sua
dignidade e nela somente. A sua esperança está construída
nessa rocha, ou antes está fundada em uma alta opinião de
algo que pensam como bom em si mesmas? E assim deveriam
examinar em que base operam suas esperanças, e que
influência têm sobre elas, e se é ou não acompanhada com a
humildade.
Uma verdadeira esperança leva seus possuidores a ver
sua própria indignidade e, em vista de seus pecados, a
refletirem sobre si mesmos com vergonha e quebrantamento
de coração. Ela coloca-se no pó diante de Deus, e o conforto
que surge dela é uma alegria e paz submissas e humildes. Ao
contrário, uma falsa esperança está pronta a tornar seu
possuidor altivo, com um alto conceito de si mesmo e de sua
própria experiência e realizações.
Também devemos inquirir se nossa esperança está
acompanhada com um espírito de obediência, autonegação e
desapego do mundo. Uma verdadeira esperança é
acompanhada com essas outras graças, ligadas e dependentes
delas, enquanto que uma falsa esperança não ao contém. Ela
não engaja o coração na obediência, mas o lisonjeia e
endurece na desobediência. Não mortifica os apetites carnais,
nem se priva do mundo, mas tolera os apetites e paixões que
são pecaminosas e as escolhe, tornando os homens dóceis
enquanto vivem nelas.
Portanto, novamente, as pessoas deveriam examinar seu
desapego do mundo, investigando se é acompanhado com
esse princípio de amor que arrasta seus corações para longe
do mundo em direção aqueles objetos espirituais e celestiais
aos quais um amor verdadeiramente divino conduz a alma,
mais do que às coisas do mundo. Deveriam não apenas
questionar se têm algo que se assemelha com um amor
verdadeiro, mas deveriam ouvir Cristo perguntando-lhes,
como a Pedro: “Simão, filho de Jonas, amas-me mais do que
estes?” Aqui um verdadeiro desapego do mundo difere de um
falso. Este último não procede de Deus e das coisas celestiais,
mas comumente vem ou do temor ou da aflição de
consciência, ou talvez de alguma aflição exterior, pelas quais
as pessoas têm suas mentes desafogadas por um tempo do
mundo para algo que são constrangidas a sentir que é melhor,
embora não lhes seja realmente mais doce. Elas são apenas
chamadas, vencidas ou apartadas do mundo, ao passo que
seus corações ainda se apegariam a ele tanto quanto antes, se
pudessem apenas desfrutá-lo, livres desses terrores e aflições.
Mas aqueles que, por outro lado, tem uma verdadeira
separação do mundo não são devotados às coisas mundanas,
mesmo em suas melhores e mais convidativas formas, pois
seus corações são tomados pelo amor de algo melhor. Têm
tamanha paixão por Deus e pelas coisas espirituais que suas
afeições não podem se apegar às coisas do mundo.
Da mesma forma, as pessoas deveriam testar seu amor
por Deus pelo seu amor ao povo de Deus; e também seu amor
a seus irmãos cristãos pelo seu amor por Deus. A graça falsa é
como uma figura ou imagem defeituosa ou monstruosa, a
qual alguma parte essencial esteja faltando. Pode ser que haja
uma aparência de alguma boa disposição para com Deus,
enquanto, ao mesmo tempo, há uma destituição das
disposições cristãs para com os homens. Ou, se parece haver
um disposição bondosa, justa, generosa e sincera para com o
homem, há uma falta de sentimento apropriado para com
Deus. Por esse motivo, vemos Deus reclamar de Efraim que
“é um pão que não foi virado” (Os 7.8), que geralmente está
queimado de um lado e cru do outro, e não serve para nada
em ambos.
Esse caráter devemos conscientemente evitar e nos
esforçar que cada graça que tenhamos possa testificar da
genuinidade de todas as nossas outras graças, de modo que
sejamos cristãos equilibrados, crescendo na unidade da fé e
do conhecimento do Filho de Deus, até ao homem perfeito, à
medida da estatura da plenitude de Cristo.
CAPÍTULO 14
A CARIDADE, OU GRAÇA VERDADEIRA, NÃO
PODE SER DESTRUÍDA PELA OPOSIÇÃO
“Tudo suporta”
1 Coríntios 13.7

N essas
palavras, e
também ao
dizer previamente que “a caridade é longânima” e,
novamente, que ela “tudo sofre”, entende-se comumente que
o apóstolo está fazendo declarações que têm substancialmente
o mesmo significado, como se as três expressões fossem
sinônimas e todas apenas dissessem as mesmas coisas com
palavras diferentes.
Mas essa ideia, sem dúvida, procede de um mal-
entendido de sua intenção. Pois, se considerarmos
cuidadosamente essas várias expressões e a maneira em que
são usadas, descobriremos que cada uma delas significa ou
aponta para um fruto diferente da caridade. Duas dessas
expressões já foram consideradas, isto é, que a “caridade é
longânima” e que “tudo sofre”. Mostrou-se que a primeira faz
referência aos danos causados pelas pessoas, e a última à
disposição que pode nos levar a suportar todos os sofrimentos
aos quais formos chamados pela causa de Cristo, ao invés de
abandoná-lo e ao nosso dever.
Essa expressão do texto, de que a caridade “tudo
suporta”, significa algo diferente de quaisquer das outras
declarações. Expressa a natureza duradoura e permanente
do princípio da caridade, ou da graça verdadeira na alma, e
declara que não falhará, mas continuará e perdurará, não
obstante toda a oposição que possa encontrar ou que possa
ser levantada contra ela. As duas expressões: “tudo sofre” e
“tudo suporta”, como estão na nossa tradução inglesa, e como
comumente usadas, são realmente bastante semelhantes no
significado. Mas a expressão do original, se literalmente
traduzida, seria que “a caridade permanece sob todas as
coisas”, isto é, ela ainda permanece, ou ainda permanece
constante e perseverante em toda oposição que possa surgir
contra ela. Quaisquer que sejam os assaltos feitos contra ela,
ainda permanece, e suporta, e não cessa, mas resiste e persiste
com constância, perseverança e paciência, apesar de tudo.
De acordo com a explicação que foi dada das quatro
expressões neste verso, “sofrer”, “crer”, “esperar” e “suportar
todas as coisas”, o sentido do apóstolo parece fácil, natural e
harmônico com o contexto. Ele está se esforçando para
apresentar o benefício universal da caridade, ou um espírito
de amor cristão. E para mostrar como é a suma de todo bem
no coração, primeiro mostra como ela dispõe a toda conduta
bondosa para com os homens, e sumariza essa questão ao
dizer que a caridade “não se regozija na iniquidade, mas se
regozija na verdade”. Então prossegue e declara que a
caridade não apenas dispõe a fazer e sofrer na causa de Cristo,
mas que ela inclui um espírito sofredor, de modo que
“suporta todas as coisas”, e que assim o faz ao promover as
duplas graças da fé e da esperança, que são principalmente
ocupadas nos sofrimentos na causa de Cristo; pois esses
sofrimentos são os testes de nossa fé e o que sustenta o
cristão quando passam por eles é a esperança de um peso de
glória muito maior e eterno a ser dado aos fiéis no fim. E a
caridade nutre essa fé e esperança; e, como fruto dessa fé e
esperança, suporta todas as coisas, e persevera, e persiste, e
não pode ser conquistada por toda oposição feita contra ela,
pois a fé vence o mundo, e a esperança em Deus habilita o
cristão a sempre triunfar em Jesus Cristo.
A doutrina, então, que derivarei do texto é que,
A CARIDADE, OU A VERDADEIRA GRAÇA
CRISTÃ, NÃO PODE SER DESTRUÍDA POR NADA QUE
SE LHE OPONHA.
Ao falar dessa doutrina, primeiramente notarei o fato
de que muitas coisas realmente se opõem à graça no coração
do cristão; em segundo lugar, aludirei à grande verdade que
ela não pode ser destruída; e, em terceiro lugar, declararei
algumas razões pelas quais não pode ser abalada, mas
permanece firme contra toda oposição.
I. Há muitas coisas que grandemente se opõem à
graça que está no coração do cristão.
Esse santo princípio tem inumeráveis inimigos
constantemente vigiando e guerreando contra ele. O filho de
Deus está cercado de inimigos por todos os lados. É um
peregrino e estranho de passagem por um país inimigo,
exposto a ataques a todo instante.
Há milhares de demônios, astutos, inteligentes, ativos,
poderosos e implacáveis, que são amargos inimigos da graça
que está no coração do cristão, e fazem tudo que está em seu
poder contra ela.
E o mundo é um inimigo dessa graça, porque abunda
com pessoas e coisas que lhe fazem oposição e com várias
formas de sedução e tentação para nos ganhar ou conduzir
para fora do caminho do dever.
O cristão tem não apenas muitos inimigos fora, mas
multidões dentro de seu próprio peito, que carrega consigo, e
dos quais não consegue se ver livre. Os maus pensamentos e
as inclinações pecaminosas atracam-se a ele e muitas
corrupções que ainda sustentam sua posição em seus
corações são os piores inimigos que a graça tem, e, entre
todos, são os que têm a maior vantagem em sua luta contra
ela. Esses inimigos são não apenas numerosos, mas
extremamente fortes e poderosos e muito amargos em sua
animosidade; implacáveis, irreconciliáveis, inimigos mortais,
buscando nada menos do que a total ruína e destruição da
graça. São incansáveis em sua oposição, de modo que o
cristão, enquanto permanece neste mundo, é representado
como estando em um estado permanente de guerra, e sua
ocupação é a de um soldado, de tal maneira que se fala dele
com frequência como de um soldado da cruz, e como alguém
cujo maior dever é lutar varonilmente o bom combate da fé.
Muitos são os poderosos e violentos assaltos que os
inimigos da graça fazem contra ela. Estão não apenas
constantemente a sitiando, mas com frequência a assaltam,
como uma cidade que é tomada pela tempestade. Estão
sempre espreitando e vigiando por uma oportunidade contra
ela, e por vezes surgem, em terrível ira, e se esforçam para
arrastá-la por urgente assalto.
Às vezes, um inimigo, outras vezes, outro, e outras
vezes ainda outro, e às vezes todos juntos, em um consenso,
esmurrando-a de todos os lados e insurgindo como um
dilúvio, estão prontos para esmagá-la e a engoli-la de uma só
vez. Às vezes a graça, em meio à mais violenta oposição de
seus inimigos guerreando contra si com sua argúcia e força
unidas é como uma faísca de fogo cercada por ondas
turbulentas e vagas enfurecidas, que parece que a engolirão e
a extinguirão em um momento. Ou é como um floco de neve
caindo no vulcão ardente; ou talvez como uma rica joia de
ouro em meio à fornalha inflamada, cujo calor furioso é
suficiente para consumir tudo, exceto o ouro puro, que é de
tal natureza que não pode ser consumido pelo fogo.
Acontece com a graça no coração de um cristão
semelhante ao que ocorre com a igreja no mundo. É a coluna
de Deus; mas é tão pequena e grande oposição lhe é feita por
incontáveis inimigos. Os poderes da terra e do inferno se
enraivecem contra ela, se possível para destruí-la; e, às vezes,
com tamanha violência e grande força contra ela que se
fôssemos julgar apenas pelas aparências pensaríamos que
seria vencida e destruída imediatamente.
Acontece com ela como foi com os filhos de Israel no
Egito, contra quem Faraó e os egípcios uniram todo seu
engenho e poder e envidaram esforços para extirpá-los como
um povo. É com ela como foi com Davi no deserto, quando
era caçado como uma perdiz nas montanhas e levado por
aqueles que procuravam sua vida a vagar de um deserto ou
caverna para outro, e muitas vezes foi perseguido em terra
estranha. E lhe acontece como foi com a igreja cristã nas
perseguições pagãs e anticristãs, quando todo o mundo, por
assim dizer, uniu sua força e engenho para exterminá-la da
face da terra, destruindo milhares e milhões com a mais
extrema crueldade e com as mais sangrentas perseguiçoes,
sem respeito ao sexo ou à idade. Mas,
II. Todas as oposições que são ou possam ser feitas
contra a graça verdadeira no coração não podem destrui-la.
Os inimigos da graça podem, em muitos aspectos, obter
grandes vantagens contra ela. Podem oprimi-la e reduzi-la
bastante e trazê-la a tais circunstâncias que pode parecer que
foi trazida às margens da completa ruína. Porém, ainda assim,
ela viverá. A ruína que parecia ser dificultosa será afastada.
Embora o leão rugidor, às vezes, venha com a boca aberta e
não apareça nenhum refúgio visível, contudo, o cordeiro
escapará e estará seguro. Sim, embora esteja nas próprias
garras do leão ou do urso, contudo será resgatada e não
devorada. E embora até mesmo pareça ter sido realmente
devorada, como Jonas pelo peixe, contudo, tomará
novamente alento e viverá. Acontece com a graça no coração,
nesse aspecto, como foi com a arca sobre as águas.
Conquanto a tempestade pareça terrível; embora haja dilúvio
tamanho que afunde todas as demais coisas, contudo, a graça
não afundará. Ainda que as enchentes subam o mais alto,
contudo, ela será mantida acima das águas; e ainda que as
poderosas ondas possam subir acima do topo das mais altas
montanhas, contudo, não serão capazes de ficar acima dessa
arca, mas ela flutuará em segurança.
Ou é com essa graça como foi com o barco em que
estava Cristo quando irrompeu uma grande tempestade e as
águas subiram, de tal maneira que parecia como se o barco
fosse repentinamente afundar; contudo, não afundou, embora
estive realmente coberto pelas águas, pois Cristo estava nele.
E assim, novamente, a graça no coração é como os
filhos de Israel no Egito, no Mar Vermelho e no deserto.
Embora Faraó jamais tenha se empenhado tanto em destruí-
los, eles, não obstante, cresceram e prosperaram. E quando,
por fim, os perseguiu com todo seu exército, e com carros e
cavaleiros, e eles foram encurralados próximo ao Mar
Vermelho, não vendo forma de escape, mas lhes parecia que
estavam próximos da ruína, contudo, realmente vieram a
escapar e não foram entregues como presas a seus inimigos.
De fato, foram preservados ao passar através do próprio mar,
pois as águas se abriram diante deles, e quando haviam
passado totalmente a salvos, elas revolveram-se e
submergiram seus inimigos. E foram preservados por um
longo tempo no deserto desolado, em meio de abismos,
secura e serpentes voadoras abrasadoras.
Assim como as portas do inferno não podem jamais
prevalecer contra a igreja de Cristo, também não podem
prevalecer contra a graça no coração do cristão. A semente
permanece e ninguém a pode desarraigar. O fogo é mantido
aceso mesmo em meio aos dilúvios de água; e embora, com
frequência, pareça pálido, ou como se estivesse prestes a se
apagar, de modo que não haja nenhuma chama, mas apenas
uma pequena fumaça, contudo o pavio fumegante não será
apagado.
E a graça não apenas subsistirá, mas também, ao final,
terá a vitória. Embora possa passar por um longo tempo de
severos conflitos, e possa sofrer muitas desvantagens e
abatimentos, porém, ela viverá. E não apenas viverá, mas,
finalmente, prosperará, e prevalecerá, e triunfará, e todos os
seus inimigos serão subjugados debaixo de seus pés. Davi, no
deserto, embora tenha sido mantido por muito tempo em
circunstâncias sobremodo degradantes e aflitivas, perseguido
por seus poderosos inimigos, muitas vezes à beira da ruína,
onde parecia haver um passo entre si e a morte, foi, contudo,
em todas essas coisas preservado, e, por fim, exaltado ao
trono de Israel, para usar a coroa real em grande prosperidade
e com glória. O mesmo vemos com a graça, que nunca pode
ser destruída, e seus abatimentos apenas preparam o caminho
para sua exaltação. Onde ela verdadeiramente existe no
coração, todos os seus inimigos não podem destruí-la, e toda
oposição que lhe é feita não pode esmagá-la. Ela suporta
todas as coisas e fica de pé em todos os choques e subsiste
malgrado todos os seus opositores. E a razão disso pode ser
vista em duas coisas:
1. Que há muito mais na natureza da graça verdadeira
que tende à perseverança do que na graça falsa.
A graça falsa é algo superficial, consistindo em mera
exibição exterior ou em afeições superficiais, e não em
qualquer mudança de natureza. Mas a graça verdadeira
alcança o mais profundo do coração. Ela consiste em uma
nova natureza, portanto, é permanente e duradoura. Onde não
há nada senão uma imitação da graça a corrupção não é
mortificada, e quaisquer golpes que lhe pareçam ter sido
dados são apenas golpes leves, que não atingem de forma
alguma sua vida ou diminuem a força de seus princípios, mas
deixam o pecado em sua plena força na alma, de modo que
não é de se espantar que ele venha, por fim, a prevalecer e
esmagar tudo ao seu redor.
Mas a graça verdadeira realmente mortifica o pecado no
coração. Ela golpeia suas partes vitais e lhe provoca uma
ferida que é mortal, dirigindo seus golpes ao próprio coração.
Quando adentra pela primeira vez na alma inicia um conflito
infindável com o pecado; portanto, não é de se admirar que
mantenha a posse e finalmente prevaleça contra seus
inimigos.
A graça falsa nunca desapossa o pecado do domínio da
alma nem destrói seu poder reinante lá, portanto, não é de se
admirar que ela própria não subsista. Mas a graça verdadeira é
de tal natureza que é inconsistente com o poder reinante do
pecado, e desapossa o coração dele tão logo lá entra e lhe
toma o trono. Portanto, é mais provável que lá mantenha seu
assento e, finalmente, prevaleça inteiramente contra o pecado.
A graça falsa, embora possa afetar o coração, contudo, não
está fundada em qualquer convicção verdadeira da alma. Mas
a graça verdadeira começa em verdadeira e plena convicção, e,
tendo esse fundamento, tem, por seu turno, a maior tendência
de perseverar.
A graça falsa não é diligente na oração; mas a verdadeira
é devota, e assim agarra-se à força divina para apoiá-la, e
torna-se realmente divina ela própria, de modo que a vida de
Deus, por assim dizer, lhe é comunicada.
A graça falsa é descuidada quanto a perseverar ou não;
mas a graça verdadeira causa naturalmente desejos fervorosos
pela perseverança e leva à fome e sede por ela. Também torna
as pessoas sensíveis dos perigos que as rodeiam, e tem a
tendência de incitá-las à vigilância e ao cuidado e diligência
para que perseverem, e a olharem para Deus por socorro, e a
confiarem nele para a preservação dos muitos inimigos que se
lhe opõem.
2. Deus sustentará a graça verdadeira, uma vez que a
tiver implantado no coração, contra toda oposição.
Jamais permitirá que seja destruída por qualquer força
que se levante contra ela. Embora haja muito maior tendência
na graça verdadeira à perseverança do que na falsa, contudo,
nada que há na natureza da graça, considerada por si e à parte
do propósito de Deus de sustenta-la, seria suficiente para
assegurar sua continuidade, ou efetivamente guardá-la da
destruição final.
Somos impedidos de cair não pelo poder inerente da
graça em si, mas, como nos diz o apóstolo Pedro: “pelo poder
de Deus, mediante a fé”. O princípio da santidade nos
corações de nossos primeiros pais, onde não havia corrupção
para se opor, foi destruído; e muito mais podemos esperar que
a semente da graça nos corações dos homens caídos, em meio
a tanta corrupção e expostos a tamanha oposição ativa e
constante, seria destruída não fosse a sustentação de Deus.
Ele assumiu a responsabilidade de defendê-la de seus
inimigos e lhe dar a vitória no final, portanto, jamais será
destruída. E aqui demonstrarei brevemente como é evidente
que Deus sustentará a graça verdadeira e não permitirá que
seja destruída, e então mostrarei algumas razões pelas quais
não permitirá.
Primeiro, mostrarei como é evidente que Deus
sustentará a graça verdadeira no coração.
E, em uma palavra, é evidente a partir de sua promessa.
Deus explícita e frequentemente prometeu que a graça
verdadeira jamais será destruída. É prometido naquela
declaração relativa ao homem bom que: “Se cair, não ficará
prostrado, porque o SENHOR o segura pela mão” (Sl 37.24);
e novamente nas palavras: “Farei com eles aliança eterna,
segundo a qual não deixarei de lhes fazer o bem; e porei o
meu temor no seu coração, para que nunca se apartem de
mim” (Jr 32.40); e novamente nestas palavras de Cristo:
“Assim, pois, não é da vontade de vosso Pai celeste que
pereça um só destes pequeninos” (Mt 18.14).
De acordo com essas variadas declarações, Cristo
prometeu com respeito à graça que ela será na alma “uma
fonte a jorrar para a vida eterna” (Jo 4.14). E novamente diz:
“E a vontade de quem me enviou é esta: que nenhum eu perca
de todos os que me deu; pelo contrário, eu o ressuscitarei no
último dia” (Jo 6.39). E, em outros lugares, é dito que as
ovelhas de Cristo: “ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas
me seguem” (Jo 10.27); aqueles a quem Deus: “de antemão
conheceu, também os predestinou para serem conformes à
imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito
entre muitos irmãos. E aos que predestinou, a esses também
chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e aos
que justificou, a esses também glorificou” (Rm 8.29-30); e
que: “nada separará os cristãos do amor de Cristo”; e
novamente: “que aquele que começou boa obra em vós há de
completa-la até ao dia de Jesus Cristo” (Fl 1.6); e novamente
que Cristo “confirmará” o seu povo “até ao fim” para que
“sejam irrepreensíveis no dia de nosso Senhor Jesus Cristo”
(1 Co 1.8); e mais ainda que é “poderoso para os guardar” de
“tropeços e para apresentá-los com exultação, imaculados
diante da sua glória” (Jd 24).
E muitas outras promessas similares podem ser
mencionadas, toda elas declarando que Deus sustentará a
graça no coração em que foi uma vez implantada, e que
guardará até ao fim aqueles que põem sua confiança nele.
Mas,
Segundo, demonstrarei brevemente algumas razões
pelas quais Deus sustentará os princípios da graça e os
impedirá de ser destruídos.
Em primeiro lugar, a menos que a redenção fornecida
por Cristo assegurasse nossa perseverança em toda oposição,
não seria uma redenção completa. Cristo morreu para nos
redimir do mal ao qual estávamos sujeitos sob a lei e para nos
trazer à glória. Mas se não nos trouxe para além do estado em
que nos encontrávamos a princípio, e se nos deixou tão
sujeitos à queda quanto antes, então toda a sua redenção
poderia ser vazia e redundar em nada. O homem, antes da
queda, sendo deixado à liberdade de sua própria vontade, caiu
de sua constância e perdeu sua graça, quando era
comparativamente forte e não estava exposto aos inimigos
que agora o assediam. O que, então, poderia fazer em seu
presente estado caído e com essa graça imperfeita, em meio a
seus poderosos e múltiplos inimigos, se sua perseverança
dependesse de si mesmo apenas? Ele iria cair e perecer
totalmente, e a redenção oferecida por Cristo, se não o
impedisse de assim cair, seria uma redenção muito imperfeita.
Em segundo lugar, a aliança da graça foi introduzida
para suprir o que estava faltando na primeira aliança, e uma
base segura de perseverança era a coisa principal que faltava
nela. A primeira aliança não tinha nenhum defeito da parte do
Deus que a idealizou. Nesse aspecto, era muito santa e justa,
sábia e perfeita. Mas o resultado provou que, de nossa parte,
era incompleta e precisava de algo mais a fim de que fosse
eficaz para nossa felicidade. E o que faltava era algo que fosse
uma base segura para nossa perseverança.
Toda base que tínhamos sob a primeira aliança era a
liberdade de nossa vontade; e veio a ser descoberto que isso
não era algo em que se pudesse confiar. Portanto, Deus fez
outra aliança. A primeira estava sujeita à falha, logo, outra foi
ordenada, mais duradoura que a primeira, e que não podia
falhar, sendo por isso chamada de “uma aliança perpétua”. As
coisas que podiam ser abaladas são removidas para dar lugar
àquelas que não podem ser abaladas. A primeira aliança tinha
um cabeça e um representante que estava sujeito à falha, ou
seja, o pai de nossa raça. Portanto, Deus forneceu como
cabeça e representante da nova aliança um que não pode
falhar, isto é, Cristo, com quem, como o cabeça e
representante de todo o seu povo, a aliança é feita e ordenada
em todas as coisas e é certa.
Em terceiro lugar, não é adequado que, em uma aliança
de misericórdia e graça salvadora, a recompensa de vida esteja
na dependência da perseverança do homem, como se
dependesse da força e constância de sua própria vontade ou
arbítrio. É a aliança das obras, não a aliança da graça, que faz
depender a vida eterna daquilo que é fruto da própria força de
alguém para impedi-lo de cair. Se tudo é por livre e soberana
graça, então a livre graça é responsável por completar e findar
a tarefa, e não a deixou aos próprios homens e ao poder de
suas próprias vontades, como era sob a primeira aliança.
Assim como a graça divina começou a obra, há de terminá-la.
Portanto, seremos guardados até ao fim.
Em quarto lugar, nosso segundo representante já
perseverou e fez o que nosso primeiro representante falhou
em fazer; portanto, nós certamente perseveraremos. Adão,
nosso primeiro representante, não perseverou; e assim todos
caímos com ele. Mas, se tivesse perseverado, todos teríamos
permanecido com ele e nunca teríamos caído. Mas nosso
segundo representante já perseverou, portanto, todos que o
têm por seu representante perseverarão com ele. Quando
Adão caiu, foi condenado, e toda sua posteridade foi
condenada e caiu com ele. Mas, se tivesse permanecido, teria
sido justificado, e assim teria participado da árvore da vida e
teria sido confirmado no estado de vida, e toda a sua
posteridade teria sido confirmada.
Por semelhante motivo, agora que Cristo, o segundo
Adão, permaneceu fiel e perseverou, e foi justificado e
confirmado em vida, todos que estão em Cristo e
representados por ele são também aceitos, justificados e
confirmados nele. O fato que ele, como o cabeça da aliança de
seu povo, cumpriu os termos dessa aliança, assegura que eles
perseverarão.
Em quinto lugar, o crente já está justificado e assim
habilitado, através da promessa de misericórdia, à vida eterna.
Portanto, Deus não permitirá que falhe e seja ineficiente
quanto a ela. A justificação é a absolvição real do pecador. É
uma plena absolvição da culpa, e liberdade da condenação, e
libertação do inferno, e aceitação a um pleno direito à vida
eterna. E isso tudo é claramente inconsistente com a ideia de
que a libertação do inferno e o alcance da vida eterna ainda
estão na dependência de uma perseverança incerta.
Em sexto lugar, as Escrituras nos ensinam que a graça e
a vida espiritual do crente são uma participação na vida de
Cristo em sua ressurreição, que é uma vida imortal e
imarcescível. Isso é claramente ensinado pelo Apóstolo,
quando diz: “Vos deu vida juntamente com ele” (Cl 2.13), isto
é, com Cristo; e novamente: “Mas Deus, sendo rico em
misericórdia, por causa do grande amor com que nos amou, e
estando nós mortos em nossos delitos, nos deu vida
juntamente com Cristo, - pela graça sois salvos, e, juntamente
com ele, nos ressuscitou, e nos fez assentar nos lugares
celestiais em Cristo Jesus” (Ef 2.4-6); e ainda novamente:
“Não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim” (Gl 2.20).
Essas expressões mostram que vida espiritual do crente não
pode falhar; pois Cristo diz: “Eu sou aquele que vive; estive
morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos e
tenho as chaves da morte e do inferno” (Ap 1.18); e o
apóstolo diz: “Sabedores de que, havendo Cristo ressuscitado
dentre os mortos, já não morre; a morte já não tem domínio
sobre ele” (Rm 6.9). Nossa vida espiritual, sendo a sua vida,
tão verdadeiramente quanto a vida do ramo é vida da árvore,
não pode deixar de perseverar.
Em sétimo lugar, a graça é aquilo que Deus implantou
no coração contra a grande oposição dos inimigos. Portanto,
sem dúvida, a manterá lá contra o contínuo e combinado
esforço deles para desarraigá-la. Os inimigos de Deus e da
alma usaram seus máximos esforços para prevenir a graça de
ser implantada no coração que a possui. Mas Deus manifestou
seu poder que é glorioso e a tudo conquista ao introduzi-la lá,
a despeito de todos eles. Portanto, não permitirá que, no fim,
seja conquistada, sendo expulsa por eles, aquela que, pelo seu
grande poder tão triunfantemente implantou.
Disso tudo, resta claro que Deus sustentará o princípio
da graça no coração do cristão, de modo que jamais será
destruída ou falhará.
APLICAÇÃO
Na aplicação desse assunto,
1. Podemos aprender uma razão pela qual o diabo tão
enormemente se opõe à conversão dos pecadores.
É porque, se forem uma vez convertidos, para sempre
estarão convertidos. Assim estarão para sempre postos além
do seu alcance, de modo que nunca possa destruí-los e
arruiná-los. Se houvesse algo como a queda da graça, sem
dúvida o diabo ainda assim se oporia que tivéssemos a graça.
Mas mais especialmente ele se opõe a ela por saber que, uma
vez que a tenhamos, jamais pode esperar destruí-la, pois nós,
pela sua posse, estamos finalmente perdidos para ele e para
sempre fora do alcance de seu poder destruidor.
Isso pode nos mostrar algo da razão dessa violenta
oposição que as pessoas que estão sob despertamentos e
convicções e que estão buscando a conversão encontram
através de muitas e grandes tentações, com as quais são
atacadas pelo adversário. Ele sempre está ativo e grandemente
se agita para a destruição desses, e empilha montanhas em seu
caminho, se possível, para atrapalhar a obra salvadora do
Espírito Santo e impedir a conversão. Ele trabalha ao máximo
para apagar as convicções de pecado e, se possível, levar as
pessoas que se encontram sob elas a retornar para os
caminhos da negligência e indolência na transgressão.
Às vezes, se esforça para bajular, outras vezes para
desencorajá-las, trabalhando para enredar e confundir suas
mentes, e dá seu máximo para incitar exercícios de corrupção,
sugerindo pensamentos blasfemos e levando-as a contender
com Deus. Por muitas tentações sutis, esforça-se para fazê-las
pensar que é vão buscar a salvação. Tenta-as com relação à
doutrina dos decretos de Deus; ou por sua própria impotência
e desamparo; ou lhes falando que tudo o que fazem é pecado;
ou tentando persuadi-las de que o dia da graça passou; ou
aterrorizando-as com a ideia de que cometeram o pecado
imperdoável. Ou pode ser que lhes diga que suas dores e
aflições são inúteis e que há bastante tempo adiante; ou, se
possível, as enganará com falsas esperanças e as bajulará
dizendo que estão em segurança enquanto estiverem fora de
Cristo.
Nesses e em inumeráveis outros modos, Satanás
esforça-se para embaraçar a conversão dos homens, pois sabe
a verdade da doutrina na qual temos insistido, isto é, que se
alguma vez a graça for implantada na alma, jamais a pode
destruir, e que os portões do inferno não podem prevalecer
contra ela.
Novamente,
2. Podemos ver, a partir desse assunto, que aqueles
cuja aparente graça falha e é destruída podem concluir que
jamais tiveram a graça verdadeira.
A graça verdadeira não é semelhante à nuvem da manhã
e ao orvalho da madrugada, que logo passam. Quando as
pessoas parecem por um tempo ser despertadas e
aterrorizadas, e têm mais ou menos um senso de sua
pecaminosidade e vileza, e, mais tarde, parecem bastante
afetadas com a misericórdia de Deus, e parecem achar
conforto nele, e, apesar disso tudo, quando a novidade acaba,
suas impressões declinam e passam, de forma que não há
mudança permanente em seu coração e vida, então, isso é um
sinal de que elas não têm a verdadeira graça. Não há nada na
situação delas que responda à declaração do apóstolo de que
“se alguém está em Cristo é nova criatura” (2 Co 5.17).
Se o indivíduo, após a aparente conversão, volta as
costas a Deus e a Cristo e às coisas espirituais, e o coração
novamente segue no encalço da vaidade e do mundo, e os
conhecidos deveres da religião são negligenciados, e a pessoa
novamente retorna aos caminhos do pecado e continua
gratificando os apetites egoístas ou sensuais e levando uma
vida carnal e descuidada, então toda a promessa de sua
aparente conversão é enganosa. É como a promessa das flores
das árvores no tempo da primavera ou no início do verão,
muitas das quais caem e nunca dão frutos. O resultado prova
que todas essas aparentes exibições da graça são apenas
exibições, e que aqueles que nelas confiam estão terrivelmente
iludidos. A graça que não se sustenta e persevera não é a graça
verdadeira.
Uma vez mais,
3. O assunto fornece matéria de grande alegria e
conforto a todos que têm boa evidência de que, de fato, têm
a graça verdadeira em seus corações.
Aqueles com quem isso acontece têm em posse uma
joia inestimável, que vale mais que todas as joias e pedras
preciosas e todas as coroas e tesouros suntuosos no universo.
E o fato de que jamais perderão essa joia pode ser matéria de
grande conforto para eles, pois aquele que lhes deu a guardará
para eles. Assim como lhes trouxe a um estado sobremodo
feliz, também os manterá nele. Seu grande poder, pelo qual é
capaz de subjugar todas as coisas a si mesmo, está do lado
deles e empenha-se por sua proteção, de modo que nenhum
de seus inimigos será capaz de destruí-los. Eles podem
regozijar-se que têm uma cidade forte a qual Deus apontou a
salvação por muros e baluartes. E qualquer amargura que seus
inimigos manifestem contra eles, e conquanto sejam astutos e
violentos em seus ataques contra eles, podem ainda confiar
altamente em suas proteções de pedras sobre as quais Deus os
colocou, e rir-se de desprezo dos inimigos, e se gloriar no
Altíssimo como seu refúgio e defesa seguros. As armas
eternas estão abaixo deles. Jeová, que cavalga sobre os céus, é
seu auxílio. E ele subjugará todos os seus inimigos sob seus
pés. De modo que podem bem se regozijar no Senhor e
alegrar-se na rocha de sua salvação. Finalmente,
4. O assunto também fornece matéria de grande
encorajamento para os santos na condução da guerra
contra os inimigos de suas almas.
É a maior de todas as desvantagens para um soldado ir à
batalha sem a esperança de ser capaz de conquistar, mas com
expectativa prevalecente de ser conquistado. Assim como a
esperança em um caso pode ser metade da vitória, assim o
desânimo em outro seria a provável garantia da derrota. Esse
último debilitaria e enfraqueceria, ao passo que a primeira
cooperaria com a força e a aumentaria.
Vocês que têm boa evidência que possuem a graça nos
corações têm, então, tudo o que precisam para encorajá-los. O
capitão de sua salvação certamente os conduzirá à vitória no
final. Aquele que é capaz de sustentá-los prometeu que vocês
vencerão, e sua promessa jamais falhará. Descansem nessa
promessa, sejam fiéis à sua parte, e dentro em breve o cântico
da vitória será de vocês, e a coroa da vitória ele a colocará,
com suas próprias mãos, sobre as suas cabeças.
CAPÍTULO 15

O ESPÍRITO SANTO DEVE SER COMUNICADO PARA SEMPRE AOS SANTOS NA


GRAÇA DA CARIDADE, OU AMOR DIVINO

“A caridade nunca falha; mas, havendo profecias, serão


aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência,
desaparecerá”

1 Coríntios 13.8

E m todo o
contexto,
intenção do
apóstolo é mostrar a superioridade da caridade sobre todas as
a

outras graças do Espírito. E, neste capítulo, ele estabelece sua


excelência por três coisas: primeiro, mostrando que ela é a
coisa mais essencial, e que todos os outros dons nada são sem
ela; segundo, mostrando que, a partir dela, todas as boas
disposições e conduta surgem; e, terceiro, mostrando que é o
mais durável de todos os dons, e deve permanecer quando a
igreja de Deus estiver em seu estado mais perfeito e quando
os outros dons do Espírito tiverem desaparecido. E, no texto,
pode-se observar duas coisas:
Primeiro, que uma propriedade da caridade pela qual
sua excelência é estabelecida é que é infalível e perpétua. “A
caridade nunca falha”. Isso naturalmente segue as últimas
palavras do versículo anterior, que diz que “a caridade tudo
suporta”. Lá o apóstolo declara a durabilidade da caridade,
como se mostra no fato de suportar o choque de toda a
oposição que possa ser feita contra ela no mundo. E agora ele
procede mais adiante e declara que a caridade não apenas
suporta até ao fim do tempo, mas também por toda a
eternidade. “A caridade nunca falha”. Quando todas as coisas
temporais tiverem falhado, essa ainda permanecerá e
permanecerá para sempre.
Também podemos observar no texto,
Segundo, que nisso a caridade é diferenciada de todos
os outros dons do Espírito, tais como profecias, o dom de
línguas, o dom de conhecimento, etc.: “Havendo profecias,
desaparecerão; havendo línguas, cessarão; havendo ciência,
passará” (1Co 13.8), mas “a caridade nunca falha”. Pelo
conhecimento aqui referido não se quer dizer o conhecimento
espiritual e divino em geral, pois certamente haverá esse
conhecimento futuramente no céu, bem como o há agora na
terra, e vastamente mais do que há na terra, como o apóstolo
declara expressamente nos versos seguintes. O conhecimento
que os cristãos têm de Deus, de Cristo e das coisas espirituais,
e, de fato, todo o seu conhecimento, como essa palavra é
comumente entendida, não desaparecerá, mas será
gloriosamente aumentado e aperfeiçoado no céu, que é um
mundo de luz bem como de amor.
Mas, pelo conhecimento[28] que o apóstolo afirma que
desaparecerá, ele tem em mente um dom miraculoso
particular que existia na igreja de Deus naqueles dias. Pois o
apóstolo, como vimos, está aqui comparando a caridade com
os dons miraculosos do Espírito, dons extraordinários que
eram comuns na igreja naqueles dias, um dos quais era o dom
de profecia, e outro o dom de línguas, ou o poder de falar em
línguas que nunca haviam sido aprendidas. Ambos os dons
são mencionados no texto, e o apóstolo diz que eles falharão e
cessarão.
Outro dom era o dom do conhecimento, ou da palavra
do conhecimento[29], como é chamada no oitavo versículo
do capítulo anterior, onde é assim denominado para mostrar
que era algo diferente tanto do conhecimento especulativo
que é obtido pela razão e estudo, e também daquele
conhecimento espiritual ou divino que procede da influência
salvadora do Espírito Santo na alma[30]. Era um dom
particular do Espírito com o qual algumas pessoas foram
agraciadas, pelo qual eram capacitadas por inspiração imediata
a entender mistérios ou as profecias misteriosas e tipos das
Escrituras, a que se refere o apóstolo no segundo verso deste
capítulo, dizendo: “Ainda que eu tenha o dom de profetizar e
conheça todos os mistérios e toda a ciência, etc.” (1Co 13.2).
É esse dom miraculoso que o apóstolo aqui diz que
desaparecerá, junto com os outros dons miraculosos dos
quais fala, tais como profecia e línguas. Todos esses eram
dons extraordinários, concedidos por um tempo para a
introdução e estabelecimento do cristianismo no mundo, e,
quando esse fim fosse atingido, eles todos deveriam falhar e
cessar. Mas a caridade nunca cessa.
Assim o apóstolo claramente ensina, como a doutrina
do texto,
QUE ESSE GRANDE FRUTO DO ESPÍRITO, NO
QUAL O ESPÍRITO SANTO SERÁ COMUNICADO À
IGREJA DE CRISTO, NÃO APENAS POR UM TEMPO,
MAS PARA SEMPRE, É A CARIDADE OU AMOR
DIVINO.
Para que o sentido e verdade dessa doutrina possam ser
melhor entendidos, falarei a esse respeito nas quatro
proposiçõe seguintes:
Primeiro, o Espírito de Cristo será eternamente dado a
sua igreja e povo, para influenciá-los e habitar neles; segundo,
há outros frutos do Espírito além do amor divino, nos quais o
Espírito de Deus é comunicado a sua igreja; terceiro, esses
outros frutos subsistem apenas por um tempo e, ou já
cessaram, ou irão cessar em algum tempo; quarto, que a
caridade, ou amor divino, é aquele grande e infalível fruto do
Espírito, no qual sua influência e habitação eternas nos santos,
ou em sua igreja, aparecerá.
I. O Espírito de Cristo é dado à sua igreja e povo para
influenciá-los e habitar neles para sempre.
O Espírito Santo é a grande aquisição, ou dom
adquirido de Cristo. A principal e a soma de todas as boas
coisas, nesta vida e na vida porvir, que são adquiridas para a
igreja é o Espírito Santo. E, assim como é a grande aquisição,
também é a grande promessa, ou a grande coisa prometida
por Deus e Cristo à igreja, como disse o apóstolo Pedro no dia
de Pentecostes: “A este Jesus Deus ressuscitou, do que todos
nós somos testemunhas. Exaltado, pois, à destra de Deus,
tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo,
derramou isto que vedes e ouvis” (At 2.32-33).
Essa grande aquisição e promessa de Cristo deve ser
comunicada para sempre à sua igreja. Ele prometeu que sua
igreja persistirá, e declarou expressamente que as portas do
inferno não prevaleceriam contra ela. E, para que fosse
preservada, deu seu Espírito Santo a cada membro verdadeiro
dela, e prometeu a continuação desse Espírito para sempre.
Suas próprias palavras são: “E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará
outro Consolador, a fim de que esteja para sempre convosco,
o Espírito da verdade, que o mundo não pode receber, porque
não o vê, nem o conhece; vós o conheceis, porque ele habita
convosco e estará em vós” (Jo 14.16-17).
O homem, em seu primeiro estado no Éden, tinha o
Espírito Santo; mas o perdeu por sua desobediência. Mas um
modo foi ofertado pelo qual ele podia ser restaurado, e agora
o Espírito é dado uma segunda vez, para nunca mais se
apartar dos santos. O Espírito de Deus é dado de tal maneira
ao seu próprio povo a ponto de tornar-se verdadeiramente
deles. Ele foi dado, realmente, a nossos primeiros pais no seu
estado de inocência, e habitou com eles, mas não no mesmo
sentido no qual é dado e habita nos crentes em Cristo. Eles
não tinham direito próprio ou título certo ao Espírito, e não
lhes foi dado definitivamente e para sempre, como é dado aos
crentes em Cristo; pois, se o fosse, jamais o teriam perdido.
Mas o Espírito de Cristo é não apenas comunicado àqueles
que são convertidos, mas é transferido para eles por uma
aliança segura, de modo que se torna propriedade deles.
Cristo se torna deles, portanto, sua plenitude lhes pertence.
Logo, seu Espírito é deles – sua posse adquirida, prometida e
firme.
Mas,
II. Há outros frutos do Espírito além desse que
consiste sumariamente na caridade, ou amor divino, pelos
quais o Espírito de Deus é comunicado à sua igreja. Por
exemplo,
1. O Espírito de Deus foi comunicado à sua igreja nos
dons extraordinários, tais como o dom de milagres, o dom
de inspiração, etc.
O Espírito de Deus parece ter sido comunicado à igreja
nesses dons, primeiramente aos profetas no Antigo
Testamento, e aos apóstolos, evangelistas, profetas e à
generalidade dos primeiros ministros do evangelho, e também
a multidões de cristãos comuns no Novo Testamento. A eles
foram dados dons como os de profecia, línguas e o chamado
dom do conhecimento, e outros mencionados no contexto e
no capítulo anterior. E além desses,
2. Há os dons comuns e ordinários do Espírito de
Deus.
Esses, em todas as eras, têm sido mais ou menos
concedidos a muitos homens naturais, não convertidos,
por meio de convicções comuns de pecado, iluminações
comuns e afeições religiosas comuns que, embora não
tivessem em si nada da natureza do amor divino ou da
graça verdadeira e salvadora, são, não obstante, os frutos
do Espírito no sentido de que são o efeito de suas
influências nos corações dos homens. E quanto à fé e à
esperança, se nada do amor divino puder ser encontrado
neles, não pode haver mais do Espirito de Deus nelas do
que é comum a homens naturais, não regenerados. Isso é
claramente indicado pelo apóstolo, quando diz neste
capítulo: “Ainda que eu tenha tamanha fé, a ponto de
transportar montes, se não tiver amor, nada serei” (1 Co
13.2). Toda fé e esperança salvadoras têm o amor em si
como ingrediente e como sua essência; e se esse
ingrediente for retirado, nada é deixado senão o corpo
sem o espírito. Não é nada que salva, mas, no máximo,
apenas um fruto comum do Espírito. Mas,
III. Todos esses outros frutos do Espírito duram
apenas uma temporada e, ou já cessaram, ou em algum
tempo cessarão.
Quanto aos dons miraculosos de profecia e línguas, etc.,
eles são apenas de uso temporário e não podem persistir no
céu. Foram dados apenas como um meio extraordinário de
graça que Deus uma vez se agradou em conceder à sua igreja
no mundo. Mas, quando os santos que uma vez desfrutaram o
uso desses meios foram para o céu, esses meios de graça
cessaram, pois não mais eram necessários. Não há ocasião
para qualquer meio de graça no céu, sejam os ordinários, tais
como os meios estabelecidos e comuns da casa de Deus,
sejam os extraordinários, tais como os dons de línguas, de
conhecimento e de profecia. Digo que não há ocasião para
quaisquer desses meios de graça continuarem no céu pois lá o
fim de todos os meios de graça já está plenamente obtido na
perfeita santificação e felicidade do povo de Deus.
O apóstolo, falando em Efésios 4 acerca dos vários
meios de graça, diz que foram dados “com vista ao
aperfeiçoamento dos santos para o desempenho do seu
serviço, para a edificação do corpo de Cristo, até que todos
cheguemos à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho
de Deus, à perfeita varonilidade”. Mas quando isso vem a
acontecer e os santos são aperfeiçoados e chegam à medida
da estatura da plenitude Cristo, então não haverá ocasião
posterior para qualquer desses meios, sejam ordinários ou
extraordinários. Nesse aspecto, ocorre muito semelhante aos
frutos do campo, que permacem necessitados do cultivo, da
chuva e da luz do sol, até que estejam maduros e reunidos, e
então não mais precisam deles.
Assim como esses dons miraculosos do Espírito eram
apenas temporários com respeito àquelas pessoas particulares
que os desfrutaram, também são apenas temporários com
respeito à igreja de Deus tomada como um corpo coletivo.
Esses dons não são frutos do Espírito que foram dados para
continuarem na igreja por todas as épocas. Eles existiram na
igreja, ou pelo menos foram dados de tempos em tempos,
embora não sem alguns intervalos consideráveis, do início do
mundo até que o cânon da Escritura estivesse completo.
Foram concedidos à igreja antes do início do cânon sagrado,
isto é, antes que o livro de Jó e os cinco livros de Moisés
fossem escritos. As pessoas tinham a palavra de Deus, então,
de uma outra forma, isto é, por revelação imediata, de tempos
em tempos, dadas a pessoas eminentes que eram, por assim
dizer, pais na igreja de Deus. Essa revelação passou deles para
outros pela tradição oral. Era muito comum, então, que o
Espírito de Deus se comunicasse em sonhos e visões, como
aparece em várias passagens no livro de Jó. As pessoas
possuíam dons extraordinários do Espírito antes do dilúvio.
Deus, imediata e miraculosamente, revelou-se a Adão e a Eva,
e assim também a Abel e a Enoque, de quem somos
informados (Judas 14) ter o dom de profecia.
Semelhantemente, Noé recebeu revelações imediatas e avisou
o mundo antigo da parte de Deus. Cristo, por seu Espírito
falando através dele, foi e pregou aos espíritos que agora estão
em prisão, que foram em outro tempo desobientes, quando a
longanimidade de Deus aguardava enquanto a arca estava
sendo preparada (1 Pe 3.19,20). E assim Abraão, Isaque e Jacó
foram favorecidos com revelações imediatas. José teve dons
extraordinários do Espírito, bem como Jó e seus amigos.
Desde esse tempo, parece ter havido uma interrupção
dos dons extraordinários do Espírito até o tempo de Moisés;
e, desde esse tempo, eles continuaram em uma sucessão de
profetas que foi mantida, embora não sem que houvesse
novamente interrupção, até ao tempo de Malaquias. Após
isso, parece ter havido um longo intervalo de diversas
centenas de anos, até à aurora do dia do evangelho, quando o
Espírito começou novamente a ser dado em seus dons
extraordinários, como o foi a Ana, Simeão, Zacarias e Isabel,
Maria, José e a João Batista.
Essas comunicações do Espírito foram dadas para
preparar o caminho para aquele que tem o Espírito sem
medida, o grande profeta de Deus, por quem o Espírito é
comunicado a todos os outros profetas. E nos dias da sua
encarnação, seus discípulos tiveram uma medida dos dons
miraculosos do Espírito, sendo assim capacitados a ensinar e
a operar milagres. Mas, após a ressurreição e ascensão, houve
a mais plena e notável efusão do Espírito em seus dons
miraculosos que jamais ocorreu, começando no dia de
Pentecostes, após Cristo haver ressuscitado e ascendido ao
céu.
Em consequência disso, não apenas ocasionalmente
uma pessoa extraordinária era agraciada com esses dons
extraordinários, mas eram comuns na igreja, e assim
continuaram durante o tempo de vida dos apóstolos, ou até a
morte do último deles, ou seja, o apóstolo João. Isso ocorreu
cerca de cem anos depois do nascimento de Cristo; de modo
que os primeiros cem anos da era cristã, ou primeiro século,
foi a era dos milagres. Mas, logo após isso, o cânon da
Escritura estando completo quando o apóstolo João tinha
escrito o livro de Apocalipse, o qual escreveu não muito antes
de sua morte, esses dons miraculosos não mais prosseguiram
na igreja. Pois agora havia pronta uma revelação escrita e
estabelecida da mente e vontade Deus, pela qual Deus havia
plenamente registrado uma regra duradoura e todo-suficiente
para sua igreja em todas as eras. E a nação e igreja judaicas
sendo destruídas, e a igreja cristã e a última dispensação da
igreja de Deus sendo estabelecidas, os dons miraculosos do
Espírito não mais eram necessários. Portanto, eles cessaram;
pois, embora tivessem existido na igreja por tantas eras,
contudo, então, falharam, e Deus os fez falhar pois não havia
mais ocasião adicional para eles. E assim foi cumprido o que
foi dito no texto: “Havendo profecias, desaparecerão;
havendo línguas, cessarão; havendo ciência, passará” (1Co
13.8).
Agora, parecem ter cessado todos os frutos do Espírito
semelhantes a esses, e não temos mais razões para esperá-los.
E quanto àqueles frutos do Espírito que são comuns, tais
como a convicção, iluminação, fé, etc., que são comuns tanto
aos crentes como aos descrentes, esses são dados em todas as
eras da igreja no mundo. Porém, com respeito às pessoas que
têm esses dons comuns, eles cessarão quando elas vierem a
morrer; e com respeito à igreja de Deus considerada
coletivamente, eles cessarão e não mais haverá deles após o
dia do julgamento.
Passo, então, como proposto, a mostrar,
IV. Que a caridade, ou amor divino, é aquele grande
fruto do Espírito que nunca falha, e no qual sua contínua e
perpétua influência e habitação na sua igreja aparecerá e
será manifesta.
Vimos que o Espírito de Cristo é dado perpetuamente à
igreja de Cristo, e dado para que possa habitar nos santos para
sempre, em influências que nunca falharão. Portanto,
conquanto muitos dos frutos do Espírito sejam temporários e
tenham seus limites onde falham, contudo, deve ser o caso
que haja alguma forma em que a influência do Espírito e
algum fruto dessa influência seja infalível e eterno. E a
caridade, ou amor divino, é esse fruto na comunicação,
nutrição e exercício do qual suas influências infalíveis e
eternas aparecem. Esse é um fruto do Espírito que nunca falha
ou cessa na igreja de Cristo, quer a consideremos com
respeito a seus membros particulares, ou com respeito a ela
como um corpo coletivo. E,
1. Podemos considerar a igreja de Cristo com respeito
a seus membros particulares nos quais consiste.
Aqui aparecerá que a caridade, ou amor cristão, é um
fruto infalível do Espírito. Cada um dos membros verdadeiros
da igreja invisível de Cristo tem a posse desse fruto do
Espírito no coração. O amor divino ou cristão é implantado,
habita e reina lá, como um fruto perpétuo do Espírito, e um
que nunca falha. Nunca falha neste mundo, mas permanece
em todos os todos os testes e oposições, pois o apóstolo nos
diz (Rm 8.38,39) que nada “poderá nos separar do amor de
Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor”. E não cessa
quando os santos vierem a morrer. Quando os apóstolos e
outros de sua época morreram e foram para o céu, deixaram
para trás todos os seus dons miraculosos, juntamente com
seus corpos. Mas não deixaram para trás o amor que estava
em seus corações, mas o levaram consigo para o céu, onde foi
gloriosamente aperfeiçoado. Embora os ímpios que tenham
tido as influências comuns do Espírito, quando morrem,
tenham seus dons cessados eternamente, contudo, a morte
nunca destrói o amor cristão, esse grande fruto do Espírito,
em qualquer um que o tiver. Aqueles que o têm podem e
devem deixar para trás de si muitos outros frutos do Espírito
que tiveram em comum com os ímpios. E embora deixem
tudo o que era comum na sua fé e esperança, e tudo que não
pertencia a esse amor divino e santo, contudo, esse amor não
deixarão para trás, mas irá com eles para a eternidade e lá será
aperfeiçoado, e viverá e reinará com domínio perfeito e
glorioso em suas almas para todo o sempre.
E assim, novamente,
2. Podemos considerar a igreja de Cristo
coletivamente, como um corpo.
E aqui, novamente, aparecerá que a caridade, ou amor
cristão, nunca falhará. Embora outros frutos do Espírito
falhem nisso, esse nunca falhará. No passado, quando houve
interrupções dos dons miraculosos do Espírito na igreja, e
quando houve períodos nos quais não apareceram profetas ou
pessoas inspiradas que possuíssem esses dons, ainda assim,
não houve qualquer interrupção completa desse excelente
fruto ou influência do Espírito.
Os dons miraculosos foram interrompidos por todo o
longo período que se estende de Malaquias até quase o
nascimento de Cristo. Mas, em todo esse tempo, a influência
do Espírito em manter o amor divino na igreja jamais foi
suspensa. Assim como Deus sempre teve uma igreja de
santos no mundo, desde a primeira criação da igreja após a
queda, assim essa influência e fruto de seu Espírito nunca
falhou nela. E quando, após a completude do cânon das
Escrituras, os dons miraculosos do Espírito pareciam
finalmente ter cessado e falhado na igreja, essa influência do
Espírito em causar o amor divino nos corações de seus santos
não cessou, mas foi mantida por todas as eras, desde então até
agora, e assim será até ao fim do mundo. E no fim do mundo,
quando a igreja de Cristo será estabelecida em seu último,
mais completo e eterno estado, e todos os dons comuns, tais
como as convicções e iluminações, e todos os dons
miraculosos forem cessados eternamente, contudo, então, o
amor divino não falhará, mas será trazido à sua mais gloriosa
perfeição em cada membro individual da igreja resgatada no
alto. Então, em cada coração, esse amor que agora parece
apenas uma faísca será inflamado a uma brilhante e
incandescente chama, e cada alma redimida estará, por assim
dizer, em uma labareda de amor divino e santo, e permanecerá
e crescerá nessa gloriosa perfeição e bem-aventurança por
toda a eternidade!
Darei apenas uma única razão para a verdade da
doutrina que foi assim apresentada. E a grande razão do que
porquê é assim que os outros frutos do Espírito falham e o
grande fruto do amor permanece é que o amor é o maior fim
de todos os outros frutos e dons do Espírito. O princípio e os
exercícios do amor divino no coração, os seus frutos na
conduta e a felicidade que consiste e flui dele, essas coisas são
o grande fim de todos os frutos do Espírito que falham. A
caridade ou amor divino é o fim da qual toda a inspiração e
todos os dons miraculosos que já existiram no mundo são
apenas os meios.
Eles eram apenas meios de graça, mas a caridade ou
amor divino é a própria graça; e não apenas isso, mas a suma
de toda graça. As revelação e milagres jamais foram dados
para qualquer outro fim, senão para promover a santidade e
edificar o reino de Cristo no coração dos homens. Mas o amor
cristão é a suma de toda santidade e seu crescimento é apenas
o crescimento do reino de Cristo na alma. Os frutos
extraordinários do Espírito foram dados para revelar e
confirmar a palavra e vontade de Deus, para que os homens,
pela fé, pudessem ser conformados àquela vontade. Foram
valiosos e bons, apenas enquanto tendiam àquele fim. Logo,
quando esse fim foi obtido, e quando o cânon das Escrituras,
o grande e poderoso meio de graça estava completo, e as
ordenanças do Novo Testamento e da última dispensação
estavam plenamente estabelecidas, os dons extraordinários
cessaram e vieram ao fim, por não mais serem necessários. Os
dons miraculosos, sendo um meio para um fim posterior, são
bons na medida em que tendem àquele fim. Mas o amor
divino é o fim em si mesmo; portanto, permanece quando os
meios cessam. O fim é não apenas bom, mas o mais alto tipo
de bem em si; portanto, permanece para sempre.
Assim ocorre com respeito aos dons comuns do
Espírito que são dados em todas as eras, tais como
iluminação, convicção, etc. eles não têm bem algum em si
mesmos, e não possuem bem adicional além do que tendem a
promover essa graça e santidade que radical e sumariamente
consiste no amor divino. Portanto, quando esse fim é uma vez
plenamente respondido, haverá um fim para sempre desses
dons comuns, enquanto que o amor divino, que é o fim deles
todos, permanecerá para sempre.
APLICAÇÃO
Na aplicação desse assunto, notarei,
1. Que parece não haver razão para pensar, como
alguns têm pensado, que os dons extraordinários do
Espírito devem ser restaurados à igreja nos futuros e
gloriosos tempos de seus últimos dias de prosperidade e
bem-aventurança.
Muitos teólogos têm sido da opinião de que, quando a
glória do último dia da igreja, que é falada na Palavra de Deus,
vier, haverá novamente profetas e homens agraciados com o
dom de línguas e de realização de milagres, como aconteceu
na época dos apóstolos. E alguns que vivem hoje parecem ter
a mesma opinião.
Mas a partir do que o apóstolo diz no texto e contexto,
parece que não temos nenhum motivo para imaginar tal coisa
daquilo que as Escrituras dizem da glória daqueles tempos, ou
porque fala do estado da igreja então como sendo muito mais
glorioso do que jamais antes, e como se o Espírito de Deus
fosse então derramado em mais abundante medida do que
jamais o foi nos tempos passados. Todas essas coisas podem
acontecer, e ainda assim não acontecer de esses dons
extraordinários serem derramados sobre a igreja.
Quando o Espírito de Deus é derramado com o
propósito de produzir e promover o amor divino, é derramado
de um modo mais excelente do que quando é manifestado em
dons miraculosos. Isso o apóstolo expressamente ensina na
última parte do capítulo anterior, onde, após enumerar muito
dons miraculosos, adverte os cristãos a cobiçar ou desejar os
melhores dentre eles. Mas, então, acrescenta: “E eu passo a
mostrar-vos ainda um caminho sobremodo excelente” (1Co
12.31), isto é, o buscar a influência do Espírito de Deus,
operando a caridade ou amor divino no coração.
Certamente as Escrituras, quando falam do estado
glorioso futuro da igreja como sendo um estado tão excelente,
não nos dá nenhuma razão para concluir que o Espírito de
Deus será derramado então de uma forma que não seja a mais
excelente. Sem dúvida, o modo mais excelente do Espirito é
para o mais excelente estado da igreja.
O futuro estado da igreja sendo tão mais perfeito que os
tempos anteriores não tende a provar que então haverá dons
miraculosos, mas bem o contrário. Pois o próprio apóstolo, no
texto e no contexto, fala desses dons extraordinários como
cessando e desaparecendo para dar lugar a alguns tipos de
frutos ou influências do Espírito que são mais perfeitos. Se
você apenas ler o texto em conexão com os versos
posteriores, verá que a razão implícita pela qual profecias e
línguas falharão e a caridade permanecerá é esta, que o
imperfeito dá lugar ao perfeito, e o menos excelente ao mais
excelente; e o mais excelente, ele declara, é a caridade ou
amor. As profecias e milagres evidenciam a imperfeição do
estado da igreja, ao invés de sua perfeição. Pois são meios
designados por Deus como uma estadia ou apoio, ou como
um fio-condutor[31], se assim posso dizer, para a igreja em
sua infância, ao invés de meios adaptados para ela em seu
pleno vigor. E assim o apóstolo parece se referir a eles.
Quando a igreja cristã primeiro começou, após a
ascensão de Cristo, estava na sua infância, e então precisava
de milagres e outras coisas para estabelecê-la. Mas, uma vez
estando estabelecida, e o cânon das Escrituras completo,
cessaram, o que, de acordo com a argumentação do apóstolo,
mostra que são imperfeitos e bem mais inferiores que o fruto
ou influência do Espírito Santo que é visto no amor divino.
Por que, então, deveríamos esperar que fossem novamente
restaurados, quando a igreja estiver em seu estado mais
perfeito? A todos esses dons miraculosos o apóstolo parece
chamar de “coisas infantis”, em comparação com os frutos
mais nobres do amor cristão. São adaptados para o estado
infantil da igreja, enquanto o amor santo deve ser mais
esperado em sua plena maturidade e estado varonil. E são em
si mesmos mais infantis, em comparação com esse santo
amor que abundará na igreja quando chegar à sua perfeita
estatura em Jesus Cristo.
Nem a glória dos tempos futuros da igreja oferecem
qualquer argumento para a continuação, naqueles tempos, dos
dons miraculosos do Espírito. Pois certamente o estado da
igreja, então, não será mais glorioso do que o estado celestial.
E, ainda assim, o apóstolo ensina que no estado celestial todos
esses dons terão fim, e somente a influência do Espirito em
produzir o amor divino permanecerá.
Nem parece que haverá qualquer necessidade de dons
miraculosos a fim de trazer os tempos futuros gloriosos da
igreja; pois Deus é capaz de trazê-los à luz sem a
instrumentalidade desses dons. Se o Espírito de Deus for
derramado apenas em suas influências graciosas em converter
almas e em inflamar o amor divino nelas em tal medida que
possa ou queira, isso será o suficiente, sem novas revelações
ou milagres, para produzir todos os efeitos que precisam ser
produzidos a fim de gerar os gloriosos tempos do quais
estamos falando. Quanto a isso podemos todos estar
convencidos pelo pouco que vimos no último derramamento
do Espírito nesta cidade e nas vizinhas. Se precisássemos de
qualquer nova regra para nos apoiar, e as influências comuns
do Espírito juntamente com a palavra de Deus fossem
insuficientes, então poderia haver alguma necessidade da
restauração dos milagres. Mas não há nenhuma necessidade
em absoluto de que novas Escrituras sejam dadas, ou de
qualquer adição sendo feita àquilo que já temos, pois são, em
si mesmas, uma regra perfeita para nossa fé e prática. E não há
necessidade de um novo cânon da Escritura, pois não há
necessidade desses dons miraculosos, cujo grande objetivo
era ou confirmar as Escrituras ou suprir a falta delas quando
ainda não haviam sido dadas pelo Espírito inspirador.
2. O assunto que temos considerado deveria tornar as
pessoas extremamente cautelosas sobre como dão atenção a
qualquer coisa que possa parecer uma nova revelação, ou
que possa reivindicar ser um dom extraordinário do
Espírito.
Às vezes, uma pessoa pode ter uma impressão em sua
mente quanto a algo que pense lhe revelou imediatamente o
que haverá de acontecer com relação a si mesmo ou algum de
seus parentes ou amigos; ou quanto a algo que irá acontecer
que antes lhe estava oculto e que, se não fosse revelado,
permaneceria ainda em secreto. Ou talvez pense que lhe foi
revelado qual é o estado espiritual de alguma outra pessoa ou
de sua própria alma, de alguma outra forma que não seja pelas
marcas e evidências bíblicas da graça no coração. Às vezes, as
pessoas imaginam que tenham uma orientação imediata do
céu para ir e fazer isso ou aquilo ou aquiloutro, por
impressões feitas imediatamente em suas mentes, ou de
alguma outra forma que não seja pelo aprendizado da
Escritura ou razão quanto a seu dever. E, às vezes, fantasiam
que Deus lhes revela imediatamente por sonho o que ocorrerá
no futuro. Mas todas essas coisas, se fossem pelo Espírito de
Deus, seriam da natureza daqueles dons extraordinários do
Espírito que o apóstolo diz que cessam e acabam, e que,
tendo há longo tempo falhado, não há razão para supor que
Deus os restaurará novamente. E se não procedem do Espírito
de Deus, não são senão grosseiras ilusões. E uma vez mais,
3. O assunto ensina quão grandemente devemos
valorizar aquelas influências e frutos do Espírito que são
evidência da verdadeira graça na alma, e que estão todas
sumariamente incluídas na caridade, ou amor divino.
Este é o propósito e desígnio do apóstolo no texto e no
contexto, nos ensinar a valorizar essa caridade ou amor,
mostrando que nunca falha, embora todos os dons
miraculosos do Espírito falhem e tenham um fim. Essa graça é
o fruto mais excelente do Espírito, sem a qual os mais
extraordinários e miraculosos dons nada são. Esse é o grande
fim para o qual eles são meios; e que é, é claro, mais excelente
que todos esses meios. Portanto, busquemos ardentemente
esse fruto bendito do Espírito, e busquemos que possa
abundar em nossas almas; que o amor de Deus possa mais e
mais ser derramado em nossos corações, e que possamos
amar o Senhor Jesus Cristo em sinceridade e amar uns aos
outros como Cristo nos amou.
Assim, possuiremos o mais rico de todos os tesouros, e
a mais alta e mais excelente de todas as graças. Tendo dentro
de nós esse amor que é imortal em sua natureza, devemos ter
a mais certa evidência que nossa imortalidade será bem-
aventurada, e que nossa esperança da vida eterna é essa
esperança que nunca nos desapontará. O amor acalentado na
alma na terra será para nós o gosto antecipado e a preparação
para esse mundo que é um mundo de amor, e onde o Espírito
de amor reina e abençoa para sempre.
CAPÍTULO 16
CÉU, UM MUNDO DE CARIDADE OU AMOR
“O amor jamais acaba; mas, havendo profecias,
desaparecerão; havendo línguas, cessarão; havendo ciência,
passará; porque, em parte, conhecemos e, em parte,
profetizamos. Quando, porém, vier o que é perfeito, então, o
que é em parte será aniquilado”
1 Coríntios 13:8-10

D o primeiro
desses
versos, já
derivei a doutrina de que esse grande fruto do Espírito pelo
qual o Espírito Santo deverá ser comunicado, não apenas por
uma temporada, mas para sempre à igreja de Cristo é a
caridade ou amor divino. E agora considerarei o mesmo verso
em conexão com os dois que o seguem, e sobre os três versos
farei duas observações.
Primeiro, que se menciona como uma grande
excelência da caridade o fato de que permanecerá quando
todos os outros frutos do Espírito tiverem falhado. E,
Segundo, que isso virá a acontecer no estado perfeito da
igreja, quando aquilo que é em parte terá passado e o que é
perfeito tiver vindo.
Há um estado duplo imperfeito e também um estado
duplo perfeito da igreja cristã. A igreja, no seu início, ou em
sua primeira era, antes que fosse fortemente estabelecida no
mundo e estabilizada em seu estado do Novo Testamento e
antes que o cânon da Escritura estivesse completo, estava em
um estado imperfeito – um estado, por assim dizer, de
infância, em comparação com o que haveria de ser em suas
eras mais adultas e posteriores, quando haveria de atingir seu
estado de virilidade ou de relativa perfeição terrena. E assim,
novamente, essa igreja relativamente perfeita de Cristo,
contanto que permaneça em seu estado militante, isto é, até ao
fim dos tempos, ainda estará em um estado infantil em
comparação com o que será em seu estado celestial, que, em
comparação a esse último, será seu estado de virilidade ou
perfeição.
E assim há uma falha dupla desses dons miraculosos do
Espírito aqui mencionada. Uma foi o fim da primeira ou
infantil era da igreja, quando o cânon da Escritura se
completou. Assim não havia necessidade alguma desses dons
para a igreja em eras posteriores, quando deveria lançar fora
as coisas pueris e vir a um estado de varonilidade antes do fim
do mundo, quando o Espírito de Deus deveria ser muito
gloriosamente derramado e manifestado nesse amor ou
caridade, que é o maior e mais duradouro fruto. A outra falha
será quando todos os frutos comuns do Espírito cessarem
com respeito às pessoas particulares na ocasião da morte, e,
com respeito a toda igreja, no fim do mundo, enquanto a
caridade ainda permanecerá no céu. Lá, o Espirito será
derramado e manifestado em perfeito amor em cada coração
por toda a eternidade.
O apóstolo, no contexto, parece ter em mente ambos os
estados da igreja, mas especialmente esse último. Pois,
embora o glorioso estado da igreja, em sua última era na terra,
será perfeito em comparação com seu estado anterior;
contudo, seu estado no céu é aquele estado da igreja ao qual
as expressões do apóstolo parecem muito conformes, quando
diz: “quando vier o que é perfeito, etc”, e: “agora vemos como
em espelho, obscuramente; então, veremos face a face. Agora,
conheço em parte; então, conhecerei como também sou
conhecido”.
Então, a doutrina que derivo do texto é que:
O CÉU É UM MUNDO DE CARIDADE OU AMOR
O apóstolo fala, no texto, de um estado da igreja
quando ela é perfeita no céu. Um estado, portanto, no qual o
Espírito Santo será mais perfeita e abundantemente dado à
igreja do que agora é na terra. Mas o modo em que será dado,
quando for tão abundantemente derramado, será por meio
desse grande fruto do Espírito, o amor santo e divino nos
corações de todos os benditos habitantes daquele mundo.
De modo que o estado celestial da igreja é distinto de
seu estado terreno, visto que é aquele estado que Deus
designou especialmente para essa comunicação de seu
Espírito Santo, e no qual este será dado perfeitamente,
enquanto que, no presente estado da igreja, é dado com
grande imperfeição. E é também um estado no qual esse amor
santo ou caridade será, por assim dizer, o único dom ou fruto
do Espírito, sendo o mais perfeito e glorioso de todos, e que,
sendo trazido à perfeição, torna todos os outros dons que
Deus costumava conceder à sua igreja na terra desnecessários.
Para que melhor vejamos como o céu é, dessa forma,
um mundo de amor santo, considerarei, primeiro, a grande
causa e fonte do amor que está no céu; segundo, os objetos
do amor que ele contém; terceiro, os sujeitos desse amor;
quarto, seu princípio, ou o próprio amor; quinto, as
excelentes circunstâncias nas quais é exercido, expresso e
desfrutado; e, sexto, os felizes efeitos e frutos disso tudo.
I. A CAUSA e FONTE do amor no céu.

Aqui observo que o próprio Deus de amor mora no céu.


O céu é o palácio ou sala das audiências do Alto e Santo, cujo
nome é amor, e que é tanto a causa quanto a fonte de todo
amor santo. Deus, considerado com respeito à sua essência,
está em toda parte: ele enche tanto a terra como o céu. Porém,
diz-se que ele, em alguns aspectos, está mais especialmente
em alguns lugares que em outros. Diz-se que habita desde
antigamente na nação de Israel, antes de todas as outras
nações; e em Jerusalém, antes de todas as outras cidades
daquela nação; e no templo, antes de todas as outras
edificações naquela cidade; e no Santo dos santos, antes de
todos os outros cômodos do templo; e no propiciatório, acima
da arca da aliança, antes de todos os outros lugares do Santo
dos santos. Mas o céu é seu lugar de habitação antes de todos
os outros lugares no universo; e todo esses lugares nos quais
se diz que habitava desde antigamente eram apenas tipos
desse lugar. O céu é uma parte da criação que Deus construiu
para este fim, ser o lugar de sua gloriosa presença e sua
habitação para sempre. Aqui habita e gloriosamente se
manifesta por toda a eternidade.
E isso torna o céu um mundo de amor; pois Deus é a
fonte de amor, como o sol é a fonte de luz. Portanto, a
gloriosa presença de Deus no céu o enche de amor, como o
sol posto no meio do céu visível, num dia claro, enche o
mundo com sua luz. O apóstolo nos fala que “Deus é amor”;
portanto, visto que é um ser infinito, segue-se que é uma fonte
infinita de amor. Visto que é um ser todo-suficiente, segue-se
que é uma fonte plena, transbordante e inexaurível de amor. E
visto que é um ser imutável e eterno, é uma imutável e eterna
fonte de amor.
Lá, isto é, no céu, mora o Deus de onde todo regato de
amor santo, ou melhor, cada gota que existe ou já existiu,
procede. Lá habita Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito,
unidos como um, em amor infinitamente terno,
incompreensível, mútuo e eterno.
Lá mora Deus Pai, que é o Pai das misericórdias, e
também o Pai do amor, que amou o mundo de tal maneira
que deu seu Filho unigênito para morrer por ele.
Lá mora Cristo, o Cordeiro de Deus, o príncipe da paz e
do amor, que amou o mundo de tal maneira que verteu seu
sangue e derramou sua alma na morte pelos homens. Lá mora
o grande Mediador, através de quem todo amor divino é
expresso aos homens, por quem os frutos desse amor foram
adquiridos, por quem são comunicados e por quem o amor é
transmitido aos corações de todo o povo de Deus. Lá mora
Cristo em ambas as naturezas, a humana e a divina, sentado
no mesmo trono com o Pai.
E lá mora o Espirito Santo, o espírito do amor divino,
em quem a própria essência de Deus, por assim dizer, flui e é
exalada em amor, e por cuja presença imediata todo santo
amor é derramado nos corações de todos os santos na terra e
no céu.
Lá, no céu, essa fonte infinita de amor – esse eterno três
em um – é mantida aberta sem qualquer obstáculo que
previna seu acesso, visto que flui para sempre. Lá, esse Deus
glorioso é manifestado e brilha profundamente, em plena
glória, em raios de luz de amor. E lá essa fonte gloriosa flui
para sempre em torrentes, ou melhor, em rios de amor e
deleite. E esses rios dilatam-se, por assim dizer, a um oceano
de amor, no qual as almas dos redimidos podem se banhar
com a mais doce felicidade, e seus corações, por assim dizer,
ser inundados com amor!
Novamente, considerarei o céu, com respeito a,
II. Aos OBJETOS do amor que ele contém.

E aqui observaria três coisas.


1. Não há nada a não ser objetos amáveis no céu.
Nenhuma pessoa ou objetos odiosos, desagradáveis ou
contaminados devem ser visto lá. Nada que que seja ímpio ou
profano: “Nela, nunca jamais penetrará coisa alguma
contaminada, nem o que pratica abominação e mentira, mas
somente os inscritos no Livro da Vida do Cordeiro” (Ap
21.27). E não há nada que seja deformado com qualquer
deformidade natural ou moral; mas tudo é belo de se
comtemplar, e amável, e excelente em si mesmo. O Deus que
mora e gloriosamente se manifesta lá é infinitamente amável;
gloriosamente amável como um Pai celestial, como um
Redentor divino e como um santificador santo.
Todas as pessoas que pertencem à bendita sociedade do
céu são amáveis. O Pai da família é amável, e assim são todos
os seus filhos; a cabeça do corpo é amável, e assim são todos
os membros. Entre os anjos não há nenhum que seja
desagradável, pois são todos santos. E não se permite que
nenhum anjo mal infeste o céu como fazem neste mundo,
mas são mantidos à distância infinita pelo grande golfo ou
abismo que existe entre eles e o glorioso mundo do amor.
E entre todas as companhias dos santos não há pessoas
desamáveis. Não há crentes falsos ou hipócritas lá; nenhum
que finja ser santo, ou que seja de um espírito ou conduta
não-cristã ou odiosa, como acontece com frequência neste
mundo; nenhum cujo ouro não tenha sido purificado de sua
escória; nenhum que não seja amável em si e aos outros. Não
há nenhum objeto lá que cause ofensa, ou que alguma vez dê
ocasião para qualquer paixão ou emoção de ódio ou desgosto,
mas cada objeto lá deverá para sempre promover o amor.
E não apenas todos os objetos no céu serão amáveis,
mas,
2. Devem ser perfeitamente amáveis.
Há muitas coisas neste mundo que, em geral, são
amáveis, mas que não estão perfeitamente livres daquilo que
lhes é contrário. Há manchas no sol; e assim há muitas
pessoas que são muito agradáveis e dignas de ser amadas,
mas que, não obstante, não passam sem algumas coisas que
são desagradáveis e desamáveis. Com frequência, há, nas
boas pessoas, algum defeito de temperamento, caráter ou
conduta, que desfigura a excelência do que, de outro modo,
seria muito amável. Mesmo as melhores das pessoas são, na
terra, imperfeitas.
Mas isso não ocorre no céu. Lá não haverá poluição, ou
deformidade, ou defeito repugnante de qualquer tipo, visto em
qualquer pessoa ou coisa; mas todos serão perfeitamente
puros e amáveis no céu. Esse mundo bendito será
perfeitamente brilhante, sem qualquer escuridão;
perfeitamente belo, sem qualquer mancha; perfeitamente
claro, sem qualquer nuvem. Nenhum defeito moral ou natural
jamais entrará lá, e nada será visto que seja pecaminoso,
doentio ou tolo; nada cuja natureza ou aspecto seja grosseiro
ou desagradável, ou que possa ofender o gosto mais refinado
ou o olho mais delicado. Lá nenhuma corda vibrará fora do
tom, causando qualquer rangido na harmonia da música do
céu; e nenhuma nota haverá que cause discórdia nos hinos
dos santos e anjos.
O grande Deus, que tão plenamente se manifesta lá, é
perfeito com uma perfeição infinita e absoluta. O Filho de
Deus, que é a resplendor da glória do Pai, lá se mostra na
plenitude de sua glória, sem a aparência da pobreza exterior
na qual apareceu neste mundo. O Espírito Santo lá será
derramado com perfeita riqueza e doçura, como um rio puro
da água da vida, claro como cristal, procedendo do trono de
Deus e do Cordeiro.
Cada membro dessa santa e bendita sociedade estará
sem qualquer mácula de pecado, imperfeição, fraqueza,
imprudência ou culpa de qualquer tipo. Toda a igreja,
resgatada e purificada, lá será apresentada a Cristo, como uma
noiva, adornada em linho fino, limpa e branca, sem mancha
ou rusga, ou qualquer coisa semelhante. Para onde quer que
os habitantes desse mundo bendito virarem os olhos nada
verão, senão dignidade, beleza e glória. As mais majestosas
cidades na terra, conquanto magnificentes sejam suas
construções, têm, conduto, seus fundamentos no pó e suas
ruas sujas e profanadas, feitas para ser pisadas pelos pés. Mas
as próprias ruas dessa cidade celestial são de ouro puro,
semelhantes ao vidro transparente, e seus fundamentos são de
pedras preciosas, e seus portões são pérolas. E isso tudo são
apenas débeis emblemas da pureza e perfeição daqueles que
lá habitam.
E no céu,
3. Estarão todos aqueles objetos aos quais os santos
confiaram seus corações, e que amaram acima de todas as
coisas neste mundo.
Lá acharão aquelas coisas que lhes pareceram as mais
amáveis enquanto habitaram na terra; as coisas que
encontraram a aprovação de seus julgamentos, e cativaram
suas afeições, e afastaram suas almas das coisas mais caras e
preciosas dentre os objetos terrenos.
Lá encontrarão aquelas coisas que foram seu prazer cá
em baixo, e nas quais regozijaram-se em meditar, e com as
quais a doce contemplação de suas mentes foi frequentemente
entretida. Lá, também, acharão as coisas que escolheram para
sua porção, que lhes foram tão queridas que, por causa delas,
estiveram prontos a sofrer os sofrimentos mais severos e
esquecer até o pai, mãe, parentes, amigos, mulher, filhos e a
própria vida.
Tudo que é verdadeiramente grandioso e bom, tudo que
é puro e santo e excelente deste mundo, e que possa ser de
qualquer parte do universo, está constantemente tendendo
rumo ao céu. Todos as torrentes tendem ao oceano, assim
todos esses estão tendendo ao grande oceano da pureza e
bem-aventurança divinas. O progresso do tempo apenas os
conduz rumo à sua bem-aventurança; e nós, se somos santos,
a sermos unidos com eles lá.
Toda coisa preciosa que a morte rudemente arranca de
nós aqui é uma joia gloriosa que brilha para sempre lá. Todo
amigo cristão que parte antes de nós deste mundo é uma alma
resgatada esperando para nos dar as boas-vindas no céu. Lá
estará o infante de dias que perdemos aqui, a ser achado pela
graça lá em cima; lá o pai cristão, a mãe, a esposa, o filho, o
amigo, com os quais renovaremos a santa comunhão dos
santos, que foi interrompida pela morte aqui, mas será
começada novamente no santuário superior e jamais cessará.
Lá teremos a companhia dos patriarcas e pais, dos santos do
Antigo e Novo Testamentos, e daqueles de quem o mundo
não era digno, com os quais na terra tínhamos relações apenas
pela fé. E lá, acima de tudo, desfrutaremos e habitaremos com
Deus Pai, a quem amamos com todo o nosso coração na terra;
e com Jesus Cristo, nosso amado Salvador, que sempre nos
tem sido o principal entre dez milhares e completamente
amável; e com o Espírito Santo, nosso Santificador, guia e
confortador; e seremos preenchidos com toda a plenitude da
Deidade para sempre!
E assim sendo os objetos de amor no céu, passo,
III. A seus sujeitos.
E esses são os corações nos quais o céu habita. O amor
habita e reina em cada coração no céu. O coração de Deus é a
sede ou sujeito original do amor. O amor divino está nele, não
como em um sujeito que o recebe de outro, mas como em sua
sede original, onde é de si mesmo. O amor está em Deus
como a luz está no sol, que não brilha por uma luz refletida
como a lua e os planetas fazem, mas por sua própria luz,
como a grande fonte de luz. E o amor flui de Deus para fora,
rumo a todos os habitantes do céu.
Flui, em primeiro lugar, necessária e infinitamente,
rumo a seu Filho unigênito, sendo derramado, sem mistura,
como a um objeto que é infinito e tão plenamente adequado a
toda a plenitude de um amor que é infinito. E esse amor
infinito é infinitamente exercido em relação a ele. A fonte não
apenas emana correntes para esse objeto, mas a própria fonte
em si completa e totalmente sai para fora rumo a ele. O Filho
de Deus é não apenas o objeto infinito de amor, mas é
também um sujeito infinito de amor. Ele é não apenas o
amado do Pai, mas o ama infinitamente. O amor essencial de
Deus é, por assim dizer, uma mútua e eterna santa energia
entre o Pai e o Filho: um ato puro e santo, pelo qual a Deidade
se torna, por assim dizer, uma emoção de amor infinita e
imutável procedendo tanto do Pai como do Filho. Esse amor
divino tem sua sede na Deidade, assim como é exercido no
interior dela, ou em Deus para consigo próprio.
Mas esse amor não está confinado somente a esses
exercícios. Ele flui em inumeráveis torrentes rumo a todos as
criaturas habitantes do céu, a todos os santos e anjos lá. O
amor de Deus Pai flui rumo a Cristo, o cabeça, e a todos os
membros, através daquele em quem foram amados antes da
fundação do mundo, e em quem o amor do Pai é expresso a
eles, no tempo, pela sua morte e sofrimentos, como agora é
plenamente manifesto no céu.
E os santos e anjos são secundariamente os sujeitos do
santo amor, não como aqueles em quem ele se encontra como
em uma sede original, como a luz está no sol, mas como está
nos planetas, que brilham apenas pela luz refletida. E a luz de
seu amor é refletida em primeiro lugar e principalmente de
volta para a sua grande fonte. Assim como Deus deu o amor
aos santos e anjos, também o amor deles é principalmente
exercido em direção a Deus, como a fonte, como é mais
adequado que seja. Eles todos amam Deus com um amor
supremo. Não há inimigo de Deus no céu, mas todos, como
seus filhos, o amam como a um pai. Estão todos unidos, com
uma mente, para suspirar toda a sua alma em amor por Deus,
seu Pai eterno, e por Jesus Cristo, seu Redentor comum,
cabeça e amigo.
Cristo ama todos os santos no céu. Seu amor flui para
toda a sua igreja lá, e para cada membro individual dela. Eles
todos, com um coração e uma alma, unem-se em amor por
seu Redentor comum. Todo coração está casado com esse
marido santo e espiritual, e todos se regozijam nele, enquanto
os anjos se juntam a eles em seu amor. E todos os anjos e
santos amam-se mutuamente. Todos os membros da gloriosa
sociedade do céu estão sinceramente unidos. Não há um
único segredo ou inimigo declarado entre eles todos. Nenhum
coração há que não esteja cheio de amor, e nenhum habitante
solitário que não seja amado por todos os outros. E como
todos são amáveis, também todos veem a amabilidade uns
dos outros com plena complacência e deleite. Toda alma
emana em amor pelas outras, e, entre todos os benditos
habitantes, o amor é mútuo, pleno e eterno.
Passo, em seguido, como proposto, a falar,
IV. Do princípio do amor no céu.
E, com isso, designo o amor em si, que enche e abençoa
o mundo celestial, e que pode ser notado tanto com relação a
sua natureza como a seu grau.
1. Quanto à sua natureza.
Em sua natureza, esse amor é totalmente santo e divino.
A maior parte do amor que há neste mundo é de natureza
profana. Mas o amor que ocorre no céu não é carnal, mas
espiritual. Não procede de princípios corrompidos ou
motivações egoístas; nem é orientado por propósitos e fins vis
e mesquinhos. Como oposto a isso tudo, é uma chama pura,
orientada por motivações santas, e não visando a fim algum
inconsistente com a glória de Deus e a felicidade do universo.
Os santos no céu amam a Deus por sua própria causa, e uns
aos outros por causa de Deus, por causa da relação que têm
com ele e pela sua imagem que neles está. Todo amor deles é
puro e santo.
Podemos observar esse amor também,
2. Quanto a seu grau.
E em grau ele é perfeito. O amor que habita no coração
de Deus é perfeito, com uma perfeição absolutamente infinita
e divina. O amor dos anjos e dos santos por Deus e Cristo é
perfeito em seu tipo, ou com tamanha perfeição como é
próprio à sua natureza. É perfeito com uma perfeição
impecável, e perfeito no que é comensurável às capacidades
de sua natureza. Assim, é dito no texto que, quando aquilo
que é perfeito vier, o que é em parte será aniquilado. Seu amor
será sem resíduos de qualquer princípio contrário, não tendo
nenhum orgulho ou egoísmo para interromper ou atrapalhar
sua atuação. Seus corações deverão ser cheios de amor.
Aquilo que estava no coração na terra como apenas um grão
de mostarda será tão grande quanto uma árvore no céu. A
alma que, neste mundo, tinha apenas uma pequena fagulha do
amor divino em si, no céu será, por assim dizer, convertida em
uma chama brilhante e ardente, como o sol em seu mais pleno
brilho quando não tem nenhuma mancha em si.
No céu não haverá inimizade remanescente, nem
desgosto, ou frieza, ou definhamento de coração para com
Deus e Cristo. Nem o mínimo resíduo de qualquer inveja
existirá para ser exercido com relação aos anjos ou outros
seres que são superiores em glória; nem haverá algo como
desprezo ou menosprezo daqueles que são inferiores. Os que
têm um menor estado de glória que outros não sofrerão
diminuição de sua própria felicidade por verem outros acima
de si em glória. Ao contrário, todos os membros dessa bendita
sociedade se regozijarão cada um na felicidade do outro, pois
o amor de benevolência é perfeito em todos. Todos têm não
apenas uma boa-vontade sincera, mas perfeita para com o
outro. O amor sincero e forte é grandemente gratificado e
deleitado na prosperidade do sujeito amado; e, se o amor for
perfeito, quanto maior for a prosperidade do amado, mais será
o amante agradado e deleitado. Pois a prosperidade do amado
é, por assim dizer, o alimento do amor. Portanto, quanto maior
for essa prosperidade, mais ricamente é o amor festejado.
O amor de benevolência se deleita em contemplar a
prosperidade dos outros, como o amor de complacência o
faz[32], ao contemplar a beleza ou perfeição do outro. De
modo que a prosperidade superior daqueles que são mais
elevados em glória está tão distante de ser um empecilho para
o grau de amor sentido em relação a eles que é, na verdade,
um estímulo ao amor, ou uma parte dele.
Há indubitável e inconcebivelmente um amor puro,
doce e fervente entre os santos na glória; e esse amor é em
proporção à perfeição e amabilidade dos objetos amados.
Portanto, deve necessariamente lhes causar deleite quando
veem que a felicidade e glória de outros estão em proporção à
sua amabilidade, e assim em proporção ao seu amor por eles.
Aqueles que são mais elevados em glória são os que são mais
elevados em santidade. Portanto, são aqueles que são mais
amados por todos os santos; pois eles muito amam aqueles
que são muito santos, e assim eles todos rejubilarão no fato de
serem os mais felizes. E não será um pesar para qualquer dos
santos ver os que são mais altos que eles próprios em
santidade e semelhança com Deus serem mais amados que
eles, pois todos terão tanto amor quanto desejarem e tanta
manifestação de amor quanto puderem suportar. E assim
todos serão plenamente satisfeitos; e, quando há perfeita
satisfação, não pode haver motivo para a inveja. E não haverá
nenhuma tentação para que qualquer um inveje os que estão
acima de si em glória em razão de que esses se exaltem com
soberba, pois não haverá nenhuma soberba no céu. Não
podemos conceber que aqueles que são mais santos e felizes
que outros no céu serão exaltados e elevados em seu conceito
acima dos outros, pois os que estão acima dos outros em
santidade lhes serão superiores em humildade. Os santos que
são mais elevados em glória serão os mais rebaixados em
humildade de mente, pois sua humildade superior é parte de
sua santidade superior. Embora todos estejam perfeitamente
livres do orgulho, contudo, visto que alguns terão maior grau
de conhecimento divino que outros e maiores capacidades de
ver mais das perfeições divinas, também verão mais de sua
pequenez e nulidade comparativa. Portanto, serão os mais
inferiores e rebaixados na humildade.
Além disso, os inferiores em glória não terão nenhuma
tentação de invejar os que são mais elevados que eles
mesmos, pois os que são mais elevados não somente serão
mais amados pelos inferiores por sua santidade superior, mas
eles próprios terão mais do espírito de amor para com os
outros, e assim amarão os que estão abaixo de si mais do que
o fariam se sua capacidade e distinção fosse menor. Aqueles
que são mais elevados em grau na glória serão os de mais alta
capacidade; e assim tendo o maior conhecimento verão mais
da amabilidade de Deus. Por conseguinte, terão amor por
Deus e pelos santos mais abundante em seus corações.
Por esse motivo, aqueles que são inferiores em glória
não invejarão os que estão acima deles, pois serão muito
amados por aqueles que são mais elevados em glória. E os
superiores em glória estarão tão longe de desprezar os que são
inferiores que lhes terão amor muito por abundante – maiores
graus de amor em proporção a seu conhecimento e santidade
superiores. Quanto mais alto em glória alguém se encontra,
mais é parecido com Cristo nesse aspecto, de modo que o
amor do mais elevado para o menos elevado será maior que o
amor desses últimos pelos primeiros. E o que afasta toda
dúvida de que ver a felicidade superior dos outros não será
desânimo para a felicidade do inferior é isto, que sua
felicidade superior consiste em sua humildade superior e em
seu maior amor por eles, por Deus e por Cristo do que aquele
os inferiores possuem em si mesmos.
Assim será a doce e perfeita harmonia entre os santos
celestiais, e o amor perfeito reinando em cada coração para
com os outros, sem limite, ou mistura, ou interrupção. E
nenhuma inveja, malícia, vingança, desprezo ou egoísmo
jamais entrarão lá, mas todos os sentimentos desse tipo serão
mantidos tão distantes quanto o pecado está da santidade e o
inferno está do céu!
Consideremos agora,
V. As circunstâncias excelentes em que o amor será
exercido, expresso e desfrutado no céu.
1. O amor no céu é sempre mútuo.
Ele sempre se retornos correspondentes de amor; com
retornos que são proporcionais ao seu exercício. O amor
sempre busca esses retornos e, na exata proporção em que
qualquer pessoa é amada, nessa mesma proporção seu amor é
desejado é premiado. E, no céu, esse desejo de amor, ou esse
gosto por ser amado, jamais deixará de ser satisfeito. Nenhum
habitante desse mundo bendito jamais será molestado com o
pensamento de que é desprezado por aqueles a quem amam,
ou que seu amor não é plena e afetuosamente respondido.
Todos os santos amarão Deus com um ardor de coração
inconcebível, ao máximo de sua capacidade. Assim saberão
que ele os amou desde toda a eternidade, e ainda os ama, e os
amará para sempre. Deus, então, se lhes manifestará
gloriosamente, e saberão que toda felicidade e glória que
possuem são frutos de seu amor. E com o mesmo ardor e
fervor os santos amarão o Senhor Jesus Cristo; e seu amor
será aceito; e saberão que ele os amou com amor fiel, sim,
mesmo com um amor sacrificial. Estarão, então, mais
sensíveis do que agora estão quanto a que grande amor é
manifestado em Cristo, em que tenha dado sua vida por eles.
Cristo, então, lhes revelará para a sua vista a grande fonte de
amor em seu coração por eles, além de tudo que jamais viram.
Desse modo, o amor dos santos a Deus e a Cristo é
visto como sendo recíproco, e esta declaração é cumprida:
“Eu amo os que me amam” (Pv 8.17); e, embora o amor de
Deus não possa propriamente ser chamado de amor de
resposta, porque ele os amou primeiro, contudo, a visão de
seu amor irá, por esse mesmo motivo, enchê-los ainda mais
com alegria, admiração e amor por ele.
O amor mútuo dos santos será sempre mútuo e
recíproco, embora não possamos supor que cada um irá, em
todos os aspectos, ser igualmente amado. Alguns dos santos
são mais amados de Deus do que outros, mesmo na terra. O
anjo disse a Daniel que ele era “mui amado” (Dn 9.23); Lucas
é chamado de “o médico amado” (Cl 4.14); e João de “o
discípulo a quem Jesus amava (Jo 19.26). E assim, sem
dúvida, aqueles que foram mais eminentes em fidelidade e
santidade, e que são mais elevados em glória, são os mais
amados por Cristo no céu. E, sem dúvida, esses santos que
são os mais amados por Cristo, sendo os mais próximos dele
em glória, são os mais amados pelos outros santos.
Logo, podemos concluir que santos tais como o
apóstolo Paulo e o apóstolo João são mais amados pelos
santos no céu que outros santos de menor eminência. São
mais amados pelos santos inferiores que aqueles que lhes são
do mesmo nível. Mas, então, há retornos de amor
correspondentes nesses casos, pois, como esses são mais
amados por todos os outros santos, também são mais cheios
de amor pelos outros santos. O coração de Cristo, o grande
cabeça de todos os santos, está mais cheio de amor que o
coração do que qualquer santo pode estar. Ele ama todos os
santos, muito mais do que qualquer deles ama um ao outro.
Mas, quanto mais algum santo é amado por ele, mais esse
santo é como ele nesse aspecto, ou seja, mais cheio seu
coração está de amor.
2. A alegria do amor celestial jamais será
interrompida ou desanimada pelo ciúme.
Os amantes celestiais não terão dúvida do amor de uns
pelos outros. Não terão nenhum temor que as declarações e
juras de amor sejam hipócritas; mas estarão perfeitamente
satisfeitos da sinceridade e força da afeição de cada um, tanto
quanto se houvesse uma janela em cada peito, de modo que
se pudesse ver tudo que há no coração.
Não haverá coisa alguma como adulação ou
dissimulação no céu, mas lá a sinceridade perfeita reinará por
meio de todos e em todos. Todos serão exatamente como
aparentam ser, e terão realmente todo amor que aparentam ter.
Não será como neste mundo, onde poucas coisas são o que
aparentam ser, e ondes juras são feitas, com frequência,
levianamente e sem propósito. Mas lá cada expressão de amor
virá do mais profundo do coração, e tudo professado será real
e verdadeiramente sentido.
Os santos saberão que Deus os ama e jamais duvidarão
da grandeza de seu amor, e não terão nenhuma dúvida do
amor de seus companheiros no céu. Não terão ciúmes da
constância do amor dos outros. Não terão suspeita de que o
amor que os outros lhes devotam tenha mitigado, ou em
qualquer medida se retirado deles por causa de algum rival, ou
por algo neles que suspeitem seja desagradável aos outros, ou
por qualquer inconstância em seus próprios corações ou de
outros. Nem terão o mínimo temor de que o amor de alguém
por eles jamais será abalado. Não haverá nada parecido com a
inconstância e infidelidade no céu, para molestar e perturbar a
amizade dessa bendita sociedade. Os santos não terão temor
algum de que o amor de Deus alguma vez se abaterá, ou que
Cristo não continuará a amá-los com inabalável carinho e
afeição. Não terão ciúme dos outros, mas saberão que, pela
graça divina, o amor mútuo que existe entre eles jamais
enfraquecerá ou mudará.
3. Não haverá nada dentro deles para obstruir ou
impedir os santos no céu nos exercícios e expressões do
amor.
Neste mundo, os santos encontram muita coisa que os
impede nesses exercícios. Eles têm grande porção de aridez e
abatimento. Carregam consigo um corpo pesado – um torrão
de terra – uma massa de carne e sangue que não está apta a
ser o órgão para a alma inflamada com altos exercícios do
amor divino; mas que logo se vê que é um grande obstáculo e
empecilho para o espírito, de modo que não conseguem
expressar seu amor por Deus como gostariam, e não podem
ser tão ativos e vívidos no amor como desejariam. Com
frequência, desejam voar, mas são segurados como que por
um peso morto sobre suas asas. Alegremente seriam ativos e
subiriam como uma chama de fogo, mas encontram-se, por
assim dizer, impedidos e aprisionados no chão, de modo que
não podem fazer o que seu amor os inclina a fazer. O amor os
dispõe a irromper em louvor, mas suas línguas não são
obedientes. Querem palavras para expressar a ardência de
suas almas, mas não podem ordenar seu discurso em razão da
escuridão (Jó 37.19). Com frequência, por falta de expressões,
são forçados a se contentar com gemidos inexprimíveis (Rm
8.26).
Mas, no céu, não terão esse impedimento. Lá não
haverá nenhuma aridez ou dificuldade, e nenhum corrupção
do coração para guerrear contra o amor divino e impedir sua
expressão. Lá, nenhum corpo terreno obstruirá com seu peso
a chama celestial. Os santos no céu não terão dificuldade
alguma em expressar todo o seu amor. Suas almas estando
ardendo com amor santo não serão como um fogo reprimido,
mas como chama descoberta e livre. Seus espíritos sendo
alados com o amor não terão peso sobre si que os impeça de
voar. Não haverá falta de força ou atividade, nem qualquer
ausência de palavras para expressar o louvor ao objeto de sua
afeição. Nada os afastará da comunhão com Deus e de louvá-
lo e servi-lo da forma como o amor os inclinar a fazer.
O amor naturalmente deseja se expressar, e, no céu, o
amor dos santos estará em plena liberdade para se expressar
conforme desejar, seja em direção a Deus, seja aos seres
criados.
4. No céu, o amor será expresso com perfeita decência
e sabedoria.
Muitos neste mundo que são sinceros em seus corações
e têm realmente um princípio de amor verdadeiro por Deus e
pelo próximo, contudo, não têm discrição para guiá-los na
maneira e circunstâncias de expressá-lo. Suas intenções, bem
como sua fala, são boas, mas geralmente não são na hora
adequada nem se ordenam discretamente quanto às
circunstâncias, mas são acompanhadas de uma certa
indiscrição que grandemente obscurece a amabilidade da
graça aos olhos dos outros.
Mas, no céu, a amabilidade e excelência de seu amor
não será obscurecida por nenhum desses meios. Não haverá
indecência, ou falta de sabedoria, ou falas ou ações
dissonantes; nenhuma tolice e afeto sentimental; nenhuma
intromissão desnecessária; nenhuma propensão apaixonada
vil ou pecaminosa; e nada como as afeições que anuviam ou
iludem a razão, antecipando-a ou contrariando-a. Mas a
sabedoria e a discrição serão tão perfeitas nos santos como o
amor é, e cada expressão de seu amor será acompanhada com
a mais amável e perfeita decência, discrição e sabedoria.
5. Não haverá nada externo no céu que mantenha seus
habitantes distantes uns dos outros ou que impeça seu mais
perfeito usufruto do amor do outro.
Não haverá muro de separação no céu que mantenha os
santos separados, nem serão impedidos do pleno e completo
usufruto do amor mútuo pela distância de habitação; pois eles
todos estarão juntos, como uma família, na casa celestial do
Pai. Não haverá qualquer falta de plena familiaridade que
atrapalhe a maior intimidade possível; e muito menos haverá
qualquer mal-entendido entre eles, ou coisas mal interpretadas
que sejam ditas ou feitas por eles. Não haverá desunião
devido às diferenças de temperamento, modos ou
circunstâncias; ou devido às várias opiniões, interesses,
sentimentos ou alianças, mas todos serão unidos nos mesmos
interesses, e todos semelhantemente aliados ao mesmo
Salvador, e todos empregados no mesmo negócio, que é servir
e glorificar ao mesmo Deus.
6. No céu todos serão unidos juntamente em
relacionamentos muito próximos e queridos.
O amor sempre busca uma relação próximo como
aquele que é amado. E no céu eles todos estarão
proximamente aliados e relacionados uns aos outros. Todos
serão intimamente relacionados com Deus, o objeto supremo
de seu amor, pois todos serão seus filhos. E todos serão
intimamente relacionados com Cristo, pois ele será o cabeça
de toda a sociedade, e o marido de toda a igreja dos santos,
eles todos, em conjunto, constituirão sua esposa. E todos
serão relacionados uns aos outros como irmãos, pois todos
serão de apenas uma sociedade, ou, antes, de uma mesma
família, e todos membros da casa de Deus.
E, mais do que isso,
7. No céu, todos terão propriedade e posse em cada
um.
O amor busca ter o amado como possessão; e o amor
divino se rejubila em dizer: “Meu amado é meu e eu sou
dele”. No céu, todos não apenas serão relacionados uns aos
outros, mas serão uns dos outros e pertencerão uns aos
outros. Os santos serão de Deus. Ele os traz para sua casa,
para si mesmo, em glória, como parte da criação que elegeu
para ser seu tesouro peculiar. Mas, por outro lado, Deus será
deles, transferido para eles em um pacto eterno neste mundo,
e agora estarão em plena posse dele como sua porção.
E os santos serão de Cristo, pois ele os comprou por
preço, e será deles, pois o que se entregou a si mesmo por eles
se dará para eles. Nos laços do amor mútuo e eterno, Cristo e
os santos se darão um ao outro. E como Deus e Cristo serão
dos santos, também os anjos serão seus anjos, como é
insinuado em Mateus 18.10; e os santos serão uns dos outros,
pois o apóstolo diz dos santos da sua época que primeiro
deram-se ao Senhor, e depois uns aos outros, pela vontade de
Deus. E, se isso é feito na terra, será feito mais perfeitamente
no céu.
8. No céu desfrutarão o amor uns dos outros em
perfeita e ininterrupta prosperidade.
O que frequentemente na terra se mistura ao prazer e à
doçura da amizade mundana é que, embora as pessoas vivam
em amor, contudo, vivem em pobreza ou se encontram com
grandes dificuldades e dolorosas aflições, pelo que são
afligidas por si mesmas e para as outras. Pois embora nesses
casos o amor e amizade, em alguns aspectos, suavize o fardo
a ser carregado, contudo, em outros aspectos, antes somam ao
seu peso, porque aqueles que se amam tornam-se, por seu
próprio amor, participantes nas aflições dos outros. De modo
que alguém não tem apenas suas provações para suportar,
mas também as de seus amigos aflitos.
Mas não haverá adversidade no céu, para dar ocasião a
uma penosa aflição de espírito, ou ao incômodo e perturbação
daqueles que são amigos celestiais, ao aproveitarem a amizade
uns dos outros. Mas desfrutarão do amor mútuo em grande
prosperidade, e em gloriosas riquezas e conforto, e na mais
alta honra e dignidade, reinando juntos no reino celestial –
herdando todas as coisas, sentando-se em tronos, todos
vestindo coroas de vida e sendo feito reis e sacerdotes para
Deus para sempre.
Cristo e seus discípulos, enquanto na terra,
frequentemente estavam juntos em aflição e testes, e
mantinham e manifestavam o mais forte amor e amizade uns
pelos outros nos maiores e mais graves sofrimentos. Mas
agora, no céu, desfrutam o amor uns dos outros em glória
imortal, todo luto e suspiro tendo para sempre se ausentado.
Tanto Cristo quanto os santos estavam familiarizados
com muito luto e dor neste mundo, embora Cristo tivesse o
maior quinhão, sendo peculiarmente um “homem de dores”.
Mas, no céu, eles se sentarão juntos nos lugares celestiais,
onde nem dor nem luto jamais serão conhecidos.
E de modo semelhante todos os santos desfrutarão do
amor uns dos outros no céu, em glória e prosperidade com
cuja comparação as riqueza e tronos dos maiores príncipes
terrenos são apenas pobreza e penúria sórdidas. De modo
que, assim como amam uns aos outros, têm não apenas a sua
própria, mas a prosperidade dos outros para se regozijarem, e
são, pelo amor, feitos participantes da benção e glória dos
outros. Tamanho é o amor de cada santo para com outro santo
que faz a glória que ele vê outros santos desfrutarem, por
assim, ser a sua própria. Ele se regozija de tal maneira que
desfrutem dessa glória que, em alguns aspectos, para ele lhe
parece como se ele próprio a desfrutasse em sua experiência
pessoal.
9. No céu, todas as coisas conspirarão para promover
o amor e dar vantagem para o seu mútuo usufruto.
Não haverá lá ninguém para tentar os outros ao
desgosto ou ódio. Não haverá pessoas intrometidas ou
adversários maliciosos para deturpar ou criar mal-entendidos e
para espalhar notícias ruins; mas todo ser e cada coisa
conspirarão para promover o amor e o pleno usufruto do
amor.
O céu em si, o lugar de habitação, é um jardim de
delícias, um paraíso celestial, adaptado em todos os aspectos
para a habitação do amor celestial; um lugar onde podem ter
doce sociedade e perfeito aproveitamento do amor um do
outro. Ninguém é antisocial ou distante do outro. As
distinções triviais deste mundo não traçam linhas na
sociedade do céu, mas todos se encontram na igualdade da
santidade e do amor santo.
Todas as coisas no céu também notavelmente
apresentam a beleza e amabilidade de Deus e de Cristo, e têm
o brilho e a doçura do amor divino sobre elas. A própria luz
que brilha e enche esse mundo é a luz do amor, pois é o brilho
da glória do Cordeiro de Deus, essa influência muito
maravilhosa da mansidão como de cordeiro e esse amor que
enche a Jerusalém celestial com luz. “A cidade não precisa
nem do sol, nem da lua, para lhe darem claridade, pois a glória
de Deus a iluminou, e o Cordeiro é a sua lâmpada” (Ap
21.23). A glória que está em volta daquele que reina no céu é
tão radiante e doce que é comparada a um “arco-íris
semelhante, no aspecto, a esmeralda” (Ap 4.3). É o arco-íris
que é, com frequência, usado no Antigo Testamento como o
sinal adequado do amor e graça de Deus manifestados no seu
pacto. A luz da Nova Jerusalém, que é a luz da glória de Deus,
é retratada como uma pedra de jaspe cristalina (Ap 21.11),
com isso significando a sua grande preciosidade e beleza.
Quanto a sua continuidade, é dito que não há noite lá, mas
apenas um dia infindável e glorioso.
Isso sugere, uma vez mais que,
10. Os habitantes do céu saberão que permanecerão
para sempre na perfeita fruição de seu amor mútuo.
Saberão que Deus e Cristo estarão com eles para
sempre como seu Deus e porção, e que seu amor continuará e
se manifestará plenamente para sempre, e que todos os seus
amados companheiros santos viverão para sempre com eles
na glória, mantendo para sempre o mesmo amor em seus
corações que agora têm.
E saberão que eles próprios viverão para sempre para
amar a Deus e os santos, e para desfrutar desse amor em toda
a sua plenitude e doçura para sempre. Não terão medo algum
de que essa felicidade acabe, ou de que haja qualquer
abatimento de sua plenitude e bem-aventurança, ou de que
alguma vez venham a se cansar de seus exercícios e
expressões ou se saciar de sua fruição, ou de que os objetos
amados em algum tempo fiquem envelhecidos, desagradáveis,
de modo que seu amor venha por fim a morrer.
Tudo que há no céu florescerá em juventude e frescor
imortais. Lá, a idade não diminuirá nem um pouco a beleza ou
vigor de alguém; e lá o amor habitará em cada coração, como
uma fonte viva perpetuamente jorrando na alma, ou como
uma chama que nunca se apaga. E o santo prazer desse amor
será como um rio que está fluindo para sempre, límpido e
transbordante, continuamente crescendo. O paraíso celestial
do amor será sempre mantido como uma fonte perpétua, sem
que haja outono ou inverno, onde nenhuma geada
prejudicará, nem folhas secarão e cairão, mas onde cada
planta permanecerá em frescor e floração perpétuas, sempre
fragrantes e belas, sempre germinando e florescendo, e
sempre produzindo fruto. A folhagem do justo não murchará
(Sl 1.3). E entre as ruas do céu, em cada margem do rio, cresce
a árvore da vida, que produz doze tipos de frutos, e os fornece
todo mês (Ap 22.2).
Tudo no mundo celestial contribuirá para a alegria dos
santos, e cada alegria do céu será eterna. Nenhuma noite se
estabelecerá com sua escuridão sobre o brilho do seu dia
perpétuo.
Tendo assim notado muitas das benditas circunstâncias
com as quais o amor no céu é exercido, expresso e
desfrutado, prossigo, como proposto, para falar, por fim,
VI. Dos benditos efeitos e frutos deste amor, como
exercido e desfrutado nessas circunstâncias.
E de seus muitos frutos, mencionarei, nessa ocasião,
apenas dois.
1. A mais excelente e perfeita conduta de todos os
habitantes do céu para com Deus e de uns para com os
outros.
A caridade ou amor divino é a suma de todos os bons
princípios; portanto, é a fonte de onde procedem todas as
ações amáveis e excelentes. Assim como no céu esse amor
será perfeito, ao ponto de excluir perfeitamente todo pecado
que consista em inimizade contra Deus e o próximo, também
o seu fruto será a mais perfeita conduta para com todos. Daí
que a vida no céu será sem a mínima falha ou erro. Ninguém
jamais ficará aquém ou se desviará do caminho da santidade,
por menor que seja o desvio, mas cada sentimento e ação será
perfeita em si e em todas as circunstâncias. Cada parte de sua
conduta será santa e divina em matéria, forma, espírito e fim.
Não sabemos especificamente como os santos no céu
serão empregados. Mas, em geral, sabemos que estão
empregados em louvar e servir a Deus. E isso farão
perfeitamente, sendo influenciados por amor semelhante ao
que temos considerado. E temos razão para pensar que estão
assim empregados para que, de alguma forma, sejam
subservientes a Deus e à felicidade dos outros, pois são
representados nas Escrituras como unidos juntamente em
uma sociedade que, ao que parece, não existe para outro
propósito senão para a mútua subserviência e felicidade. E são
assim mutuamente subservientes por uma conduta muito
excelente e perfeitamente amável de uns para com os outros,
como um fruto de seu amor perfeito mútuo.
Mesmo se não estiverem confinados a essa sociedade,
mas mesmo se algum ou todos eles fossem, em algum tempo,
enviados a serviço do dever ou da misericórdia a mundos
distantes, ou empregados, como alguns supõem que sejam,
como espíritos ministradores para os amigos neste mundo,
ainda são levados pela influência do amor a se conduzir, em
toda a sua postura, de tal maneira que seja agradável a Deus,
levando, assim, à sua própria felicidade e à dos outros.
O outro fruto do amor como é exercido nessas
circunstâncias é,
2. A perfeita tranquilidade e alegria no céu.
A caridade, ou ao amor cristão santo e humilde, é um
princípio de poder maravilho para dar inefável quietude e
tranquilidade à alma. Ela exclui toda perturbação e docemente
harmoniza e traz descanso para o espírito, torna tudo
divinamente calmo, doce e feliz. Na alma onde o amor divino
reina e se encontra em vívido exercício, nada pode causar
uma tempestade ou mesmo reunir nuvens ameaçadoras.
Há muitos princípios contrários ao amor que tornam
este mundo como um mar tempestuoso. O egoísmo, a inveja,
a vingança, o ciúme e paixões semelhantes mantêm a vida na
terra em constante tumulto e fazem dela um palco de
confusão e raiva, onde nenhum descanso quieto pode ser
desfrutado exceto em renunciar este mundo e buscar o outro.
Mas, oh! Que descanso há nesse mundo que o Deus da
paz e do amor enche com sua graciosa presença, e no qual o
Cordeiro de Deus vive e reina, enchendo-o com os raios mais
brilhantes e doces de seu amor! Onde não há nada para
perturbar ou ofender, e nenhum ser ou objeto para ser visto
que não esteja cercado com perfeita amabilidade doçura; onde
os santos acharão e desfrutarão de tudo o que amam e assim
estarão perfeitamente satisfeitos; onde não há inimigo ou
inimizade, mas amor perfeito em cada coração e em cada
coisa; onde há perfeita harmonia entre todos os habitantes,
nenhum invejando o outro, mas todos se regozijando na
felicidade do outro; onde todo o seu amor é humilde, e santo,
e perfeitamente cristão, sem a menor carnalidade ou
impureza; onde o amor é sempre mútuo e recíproco até a
plenitude; onde não há hipocrisia ou dissimulação, mas
perfeita simplicidade e sinceridade; onde não há traição, ou
infidelidade, ou inconstância, ou ciúme de qualquer tipo; onde
não há obstáculo ou empecilho para os exercícios ou
expressões do amor, nenhuma imprudência ou indecência em
expressá-lo, e nenhuma influência da tolice ou indiscrição em
qualquer palavra ou obra; onde não há muro de separação, e
nenhum mal-entendido ou estranheza, mas pleno
conhecimento e perfeita intimidade em todos; onde não há
divisão por diferentes opiniões ou interesses, mas todos nessa
gloriosa e amorosa sociedade será o mais próxima e
divinamente relacionados, e cada um pertencerá ao outro, e
todos devem desfrutar uns do outros em perfeita
prosperidade, riquezas e honra, sem qualquer doença, luto,
perseguição, dor ou qualquer inimigo para molestá-los, ou
qualquer pessoa intrometida para criar ciúmes ou mal-
entendidos, ou estragar a paz perfeita, santa e bendita que
reina no céu!
E isso tudo no jardim de Deus, no paraíso do amor,
onde tudo é cheio de amor e tudo conspira para promovê-lo e
inflamá-lo e para manter suas chamas, e nada o interrompe
jamais. Tudo foi ajustado pelo Deus sábio para sua plena
fruição nas maiores vantagens para sempre! E lá, também, é
onde a beleza dos objetos amados jamais desvanecerá, nem o
amor jamais murchará ou acabará, mas a alma mais e mais se
regozijará no amor para sempre!
Oh! Que tranquilidade haverá em um mundo como
esse! Quem pode expressar a plenitude e bem-aventurança
dessa paz! Que calmaria é essa! Como é doce, santa e feliz!
Que porto de segurança para se atracar, após ter passado por
tempestades e temporais neste mundo, no qual o orgulho, o
egoísmo, a inveja, a malícia, a zombaria, o desprezo, a
contenda, o vício são todos como ondas de um oceano
infatigável, sempre se revolvendo e sempre despedaçando
tudo a sua volta com violência e fúria! Que Canaã de
descanso para chegar, após ter penado nesta desolação e neste
deserto vociferante, cheio de armadilhas, ciladas e serpentes
venenosas, onde nenhum descanso pode ser encontrado!
Oh! Que alegria haverá lá, jorrando do coração dos
santos, após terem passado por sua cansativa peregrinação,
ser trazido a um paraíso como esse! Eis aqui alegria indizível e
cheia de glória, alegria que é humilde, santa, arrebatadora e
divina em suas perfeições! O amor sempre é um princípio
doce, especialmente o amor divino. Ele, mesmo na terra, é
uma fonte de doçura; mas, no céu, se tornará um regato, um
rio, um oceano!
Todos estarão em volta do Deus da glória, que é a
grande fonte de amor, abrindo, por assim dizer, suas próprias
almas para que sejam cheias com essas efusões de amor que
são derramadas de sua plenitude, assim como as flores da
terra, nos brilhantes e felizes dias da primavera, abrem suas
flores para o sol, para que sejam preenchidas com sua luz e
calor, e para que floresçam na beleza e fragrância em seus
raios consoladores.
Todo santo no céu é como uma flor nesse jardim de
Deus, e o amor santo é o perfume e doce odor que eles todos
exalam e com os quais as mansões desse paraíso acima. Cada
alma lá é como uma nota em algum concerto de deliciosa
música, que docemente se harmoniza com outras notas, e
todas juntas se curvam na mais arrebatadora força no louvor a
Deus e ao Cordeiro para sempre. Assim, todas se auxiliam
mutuamente, dando o máximo de si para expressarem o amor
da inteira sociedade ao seu glorioso Pai e cabeça, e para
derramar de volta o amor na grande fonte de amor de onde
são supridos e preenchidos com amor, bem-aventurança e
glória.
E assim amarão, e reinarão em amor e nessa alegria
divina que é seu bendito fruto, tal qual olho não viu, nem
ouvido ouviu, nem jamais penetrou no entendimento do
coração humano neste mundo. Desse modo, na plena luz do
sol desse trono, arrebatados com a alegria que para sempre
aumenta, e ao mesmo tempo sempre cheios delas, viverão e
reinarão com Deus e Cristo para todo o sempre!
APLICAÇÃO
Na aplicação desse assunto, noto,
1. Se o céu for esse mundo, tal como descrito, então
podemos ver uma razão pela qual a disputa e a briga
tendem a obscurecer nossa evidência de aptidão para a sua
posse.
A experiência ensina que esse é o efeito das disputas.
Quando a malignidade e a má vontade prevalecem entre o
povo de Deus, como, às vezes, acontece por meio da
corrupção remanescente de seus corações, e eles chegam a
uma disposição disputadora ou se engajam em qualquer
contenda, seja pública ou privada, e seus corações se enchem
de oposição a seus semelhantes em qualquer matéria, então,
suas evidências anteriores com respeito ao céu parecem
tornar-se foscas ou morrer, e eles encontram-se em trevas
quanto a seu estado espiritual e não acham aquela esperança
confortável e satisfatória que costumavam desfrutar.
E assim quando pessoas convertidas entram em más
disposições em suas famílias, a consequência comum, senão
universal, é que vivem sem grande parte do senso confortável
das coisas celestiais ou de qualquer vívida esperança do céu.
Não desfrutam muito daquela calma e doçura que daqueles
vivem em amor e paz. Não têm aquele auxílio de Deus e
aquela comunhão com ele, nem aquele relacionamento com o
céu em oração que os outros têm.
O apóstolo parece falar das brigas nas famílias como
tendo essa influência. Suas palavras são: “Maridos, vós,
igualmente, vivei a vida comum do lar, com discernimento; e,
tendo consideração para com a vossa mulher como parte mais
frágil, tratai-a com dignidade, porque sois, juntamente,
herdeiros da mesma graça de vida, para que não se
interrompam as vossas orações” (1Pe 3.7). Aqui, ele intima
que a discórdia nas famílias tende a atrapalhar os cristãos nas
suas orações. E que cristão que tenha tido essa triste
experiência não passou por ela com dores e não deu por si
mesmo testemunho à verdade da intimação do apóstolo?
Por que isso ocorre, isto é, que a contenda tenha esse
efeito de atrapalhar os exercícios, confortos e esperanças
espirituais, e de destruir a doce esperança daquilo que é
celestial, já aprendemos da doutrina que consideramos. Pois o
céu sendo um mundo de amor, segue-se que quando temos o
mínimo exercício de amor e o máximo de espírito contrário,
então temos o mínimo do céu e estamos os mais distantes
dele em nossa disposição de mente.
Então, temos o mínimo do exercício daquilo em que
consiste uma conformidade para o céu e uma preparação para
ele, e aquilo que tende para ele. E assim, necessariamente,
devemos ter a mínima evidência de nossa habilitação ao céu e
estaremos os mais distantes do conforto que essa evidência
concede.
Podemos ver, novamente, a partir desse assunto,
2. Como são felizes aqueles que são habilitados ao
céu.
Há algumas pessoas vivendo na terra para quem a
felicidade do mundo celestial pertence tanto quanto, na
verdade, muito mais do que as propriedades terrenas de
qualque pessoa lhe pertence. Elas têm parte e participação
nesse mundo de amor e têm um direito próprio e uma
habilitação a ele, pois são do número daqueles de que está
escrito: “Bem-aventurados aqueles que lavam as suas
vestiduras no sangue do Cordeiro, para que lhes assista o
direito à árvore da vida, e entrem na cidade pelas portas” (Ap
22.14). E, sem dúvida, essas pessoas existem aqui, entre nós.
Oh! Como elas são felizes, habilitadas como estão a uma
participação nesse mundo do céu! Certamente são as bem-
aventuradas da terra, e a plenitude de sua bem-aventurança
nenhuma língua pode descrever, nenhum palavra expressar.
Mas aqui alguns poderiam estar prontos a objetar: “Sem
dúvida são pessoas felizes as que têm habilitação a esse
mundo bendito e que logo entrarão na posse eterna de sua
alegria. Mas quem são essas pessoas? Como serão conhecidas
e por que marcas serão distinguidas?”
Em resposta a essa indagação, mencionarei três coisas
que pertencem ao seu caráter:
Primeiro, elas são aquelas que tiveram o princípio ou
semente do mesmo amor que reina no céu implantado em
seus corações, neste mundo, na obra da regeneração.
Não são aquelas que nao têm nenhum outro princípio
em seus corações a não ser os naturais, ou seja, os que são
seus por natureza, pois “o que é nascido da carne é carne”.
Mas são aquelas que foram objetos de um novo nascimento
ou que nasceram do Espírito. Uma obra gloriosa do Espírito
de Deus foi realizada em seus corações, renovando-as ao
trazer do céu, por assim dizer, algo da luz e da santidade da
chama pura que existe naquele mundo e dando-a a elas. Seus
corações são um solo no qual essa semente celestial foi
semeada e na qual habita e cresce. Assim são trasnformadas;
de terrenas tornaram-se celestiais em suas disposições. O
amor do mundo é mortificado e o amor de Deus é
implantado. Seus corações são arrastados para Deus e para
Cristo e, por causa deles, o seu amor flui em direção aos
santos em amor humilde e espiritual. “Pois fostes regenerados
não de semente corruptível, mas de incorruptível” (1Pe 1.23);
“Os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne,
nem da vontade do homem, mas de Deus” (Jo 1.13).
Segundo, são aquelas que escolheram livremente a
felicidade que flui do exercício e fruição desse amor, da
forma como existe no céu, acima de todas as outras
felicidades concebíveis.
Elas veem e entendem tanto disso a ponto de saber que
é seu maior bem. Não meramente veem que as coisas assim o
são por meio de argumentos racionais que podem ser
oferecidos e pelos quais estejam convencidos de que assim o
é. Mas o sabem pelo pouco que provaram. É a felicidade do
amor e o começo de uma vida de grande amor, santo,
humilde, divino e celestial.
O amor por Deus, por Cristo e pelos santos por causa
de Deus e Cristo, e a fruição dos frutos do amor de Deus em
santa comunhão com Deus, Cristo e com os santos, é dessas
coisas que elas têm prazer. E tal é sua natureza renovada que
essa felicidade se ajusta à disposição e apetite e desejos acima
de todas as outras coisas. E não apenas acima de todas as
coisas que tenham, mas acima de tudo que possam conceber
como possível de ser ter.
O mundo não permite nada semelhante a isso. Elas
escolheram isso antes de todas as outras coisas e o
escolheram livremente. Suas almas se dispõem a procurar por
isso mais do que qualquer outra coisa, e seus corações estão
ávidos nessa busca. Elas o escolheram não meramente porque
se encontraram com o luto e estão em circunstâncias tão
aflitas e humildes que não esperam muito do mundo, mas
porque seus corações foram tão cativados por esse bem que o
escolheram por sua própria causa antes de todos os bens
mundanos, mesmo que pudessem ter bastante do mundo e
pudessem desfrutá-lo por muito tempo.
Terceiro, são aquelas que, pelo amor que está nelas,
estão, no coração e vida, em princípio e prática, lutando
pela santidade.
O amor santo as faz ansiar pela santidade. É um
princípio que tem sede de crescimento. É imperfeito e
encontra-se em estado de infância neste mundo, mas deseja
crescer. Há muitas coisas com as quais luta. No coração, neste
mundo, há muitos princípios e influências opostos, e ele luta
por mais unidade, por mais liberdade e mais exercício livre e
melhores frutos.
A grande luta e batalha do novo homem é por santidade.
Seu coração luta por ela, pois tem interesse no céu; portanto,
luta com todo pecado que o afasta de lá. Está cheio de
ardentes desejos, suspiros, ânsias e esforços para ser santo. E
suas mãos lutam tanto quanto seu coração. Ele se esforça em
sua prática. Sua vida é uma vida de esforço sincero e ávido
para ser total e crescentemente santo. Sente que não é santo o
suficiente, mas está longe disso; e deseja chegar próximo da
perfeição, e ser mais parecido com aqueles que estão no céu.
E esse é uma das razões pelas quais ele anseia por estar no
céu, para que lá ele seja perfeitamente santo. E o grande
princípio que o leva a assim se esforçar é o amor. Não é
apenas o temor, mas é o amor a Deus, a Cristo e a santidade.
O amor é um fogo santo dentro dele, e como qualquer outra
chama que é reprimida até certo ponto, ele quer e realmente
luta para ser liberto. E essa sua luta é a luta pela santidade.
3. O que foi dito sobre esse assunto pode bem
despertar e alarmar os impenitentes.
Primeiro, ao conscientizá-los de sua miséria, visto que
não têm porção alguma ou direito a esse mundo de amor.
Você ouviu o que foi dito sobre o céu, que tipo de glória
e bem-aventurança há lá e como são felizes os santos e anjos
que estão nesse mundo de perfeito amor. Mas considere que
nada disso lhe pertencem.
Quando ouve sobre essas coisas, ouve de algo de que
você não tem participação. Nenhuma pessoa como você, um
ímpio que odeia Deus e Cristo, alguém que está debaixo de
um espírito de inimizade contra tudo que é bom, nenhum
entrará lá. Do jeito que você está jamais pertencerá ao Israel
fiel de Deus e jamais entrará no seu descanso celestial. Pode
ser dito a você como Pedro falou a Simão: “Não tens parte
nem sorte neste ministério, porque o teu coração não é reto
diante de Deus” (At 8.21); e como Neemias falou a Sambalate
e seus associados: “Vós, todavia, não tendes parte, nem
direito, nem memorial em Jerusalém”.
Se alguma alma como a sua fosse admitida no céu, esse
mundo de amor, como seria nauseante para aqueles espíritos
benditos cujas almas são como uma chama de amor! E como
isso transtornaria essa amável e bendita sociedade e poria tudo
em confusão! O céu não seria mais o céu, se tais almas
fossem admitidas lá. Seria mudado de um mundo de amor
para um mundo ódio, orgulho, inveja, malícia e vingança,
como este mundo aqui o é! Mas isso nunca acontecerá, e a
única alternativa é que pessoas como você sejam mantidas
fora, juntamente com os “cães, os feiticeiros, os impuros, os
assassinos, os idólatras e todo aquele que ama e pratica a
mentira” (Ap 22.15); ou seja, tudo que é vil, imundo e impuro.
E esse assunto muito bem despertar e alarmar os
impenitentes.
Segundo, mostrando-lhes que estão em perigo de cair
no inferno, que é um mundo de ódio.
Há três mundos. Um é este, que é um mundo
intermediário, onde o bem e o mal estão tão misturados a
ponto de isso significar certamente que ele não permanecerá
para sempre. Outro é o céu, um mundo de amor, sem
qualquer ódio. E o outro é o inferno, um mundo de ódio,
onde não há amor algum, que é o mundo ao qual todos vocês,
que estão fora de Cristo, propriamente pertencem. Esse último
é o mundo onde Deus manifesta seu desprazer e ira, como
manifesta seu amor no céu. Tudo que há no inferno é
detestável. Não há um único objeto lá que não seja odioso e
detestável, horrível e execrável. Não há uma única pessoa ou
coisa que seja vista lá que seja amável ou agradável; nada que
seja puro, santo, agradável; mas tudo é abominável e odioso.
Não há ninguém lá senão demônios e espíritos condenados,
que são como os demônios.
O inferno é, por assim, um vasto antro de serpentes
venenosa e sibilantes; da antiga serpente, que é o diabo e
Satanás, e com ele todos a sua detestável ninhada.
Nesse mundo tenebroso só habitam aqueles que Deus
odeia com um perfeito e permanente ódio. Não há nenhum
exercício de amor, e ele não estende misericórdia alguma a
qualquer ser que lá habita, mas derrama sobre eles horrores
sem mistura. Todas as coisas no vasto universo que são
odiosas serão reunidas no inferno, como em um vasto
receptáculo fornecido com o propósito de purificar o universo
que Deus fez de sua imundície, lançando tudo nessa grande
sarjeta de impiedade e infortúnio. É um mundo preparado
com o propósito de expressar a ira de Deus. Ele fez o inferno
com esse propósito; e não lhe tem nenhum uso senão lá
testificar para sempre seu ódio contra o pecado e pecadores,
onde não nenhum sinal de amor ou misericórdia.
Não há nada lá que não escancare a indignação e ira
divinas. Todo objeto apresenta sua ira. É um mundo
completamente alagado com um dilúvio de ira, por assim
dizer, com um dilúvio de fogo liquefeito, ao ponto de ser
chamado de lago de fogo e enxofre e de segunda morte.
Não há ninguém no inferno, senão os que odiaram
Deus, assim buscando sua ira e ódio sobre si mesmos. E lá
continuarão a odiá-lo para sempre. Nenhum amor por Deus
jamais será sentido no inferno; mas todo mundo lá o odeia
totalmente, e sem qualquer restrição expressarão seu ódio por
ele, blasfemando e enfurecendo-se contra ele, enquanto
corroem suas línguas de dor. E, embora eles todos se juntem
em sua inimizade e oposição a Deus, contudo, não há união
ou amizade entre eles mesmos. Em nada concordam, senão
no ódio e na expressão do ódio. Odeiam Deus, Cristo, os
anjos e os santos no céu, e não apenas isso, mas odeiam uns
aos outros, como um bando de serpentes ou víboras, não
apenas cuspindo veneno contra Deus, mas uns contra os
outros, mordendo e picando e atormentando uns aos outros.
Os demônios no inferno odiarão as almas condenadas.
Odeiam-nas enquanto estão neste mundo, tanto que, com
sutileza e infatigáveis tentações buscaram sua ruína. Estiveram
sedentos do sangue de almas, porque as odiavam. Ansiavam
por tê-las em seu poder, para atormentá-las. Vigiaram-nas
como um leão rugidor faz com sua presa, pois as odiavam.
Portanto, precipitaram-se sobre suas almas, como cães de
caça do inferno, tão logo elas se separaram de seus corpos,
dominados de ânsia para atormentá-las. E agora que as têm
em seu poder, passarão a eternidade as atormentando com o
máximo vigor e crueldade de que os demônios são capazes.
Estão, por assim dizer, contínua e eternamente rasgando essas
pobres almas condenadas que se encontram em suas mãos. E
elas não apenas serão odiadas e atormentadas pelos
demônios, mas não terão amor ou piedade umas pelas outras,
e irão, com o máximo tormento, ser como ferro quente, cada
uma ajudará a queimar as outras.
No inferno, todos esses contrários ao amor princípios
reinarão e rugirão sem qualquer graça restringente que os
mantenha sob controle. Aqui estarão o orgulho, a malícia, a
inveja, a vingança, a contenda, todos irrestritos, em toda a sua
fúria sem fim, nunca conhecendo a paz. Os habitantes
miseráveis se morderão e devorarão uns aos outros, bem
como serão inimigos de Deus e de Cristo e dos santos.
Aqueles que, na sua impiedade na terra, eram companheiros e
tinham uma espécie de amizade carnal mútua, aqui não terão
aparência de amizade. Mas haverá total, contínuo e
indisfarçável ódio entre eles.
Assim como, na terra, eles promoveram o pecado uns
dos outros, no inferno promoverão a punição uns dos outros.
Na terra, foram os instrumentos da ruína das almas dos
outros; lá se ocupavam em inflamar as chamas das luxúrias
uns dos outros; mas aqui inflamarão para sempre o fogo dos
tormentos uns dos outros. Arruinaram-se mutuamente no
pecado, dando mal exemplo para os outros, envenenando-se
com suas palavras ímpias, e agora estarão tão ocupados em
atormentar quanto uma vez estiveram em tentar e corromper
os outros.
Lá seu ódio, inveja e todas as paixões malignas serão
um tormento para eles próprios. Deus e Cristo, a quem eles
mais odeiam e em relação a quem suas almas estarão cheias
de ódio, como um forno está sempre cheio de fogo, estarão
infinitamente acima de seu alcance, habitando em infinita
bênção e glória que eles não podem diminuir. E eles irão
apenas se atormentar com sua inveja infrutífera dos santos e
anjos no céu, dos quais não poderão se aproximar ou
prejudicar. E estes não terão nenhuma pena deles, pois o
inferno é apenas encarado com ódio e sem piedade ou
compaixão. E assim serão deixados para gastarem a
eternidade para sempre.
Agora considerem, todos vocês que estão fora de
Cristo, e que nunca nasceram de novo, e que nunca
experimentaram uma bendita renovação de seus corações
pelo Espírito Santo, implantando o amor divino neles e
levando-os a escolher a felicidade que consiste no amor santo
como o seu melhor e mais doce bem, e a gastar sua vida na
luta pela santidade – considerem seu perigo e o que está
diante de vocês. Pois esse é o mundo ao qual vocês estão
condenados; e também o mundo ao qual pertencem pela
sentença da lei; e o mundo que todo dia e hora vocês estão em
perigo de terem sua habitação eternamente fixada. Esse é o
mundo ao qual, se não se arrependerem, logo irão, ao invés de
irem para aquele bendito mundo de amor a respeito do qual
lhes falei.
Oh! Considerem, considerem que essa é realmente a sua
situação. Essas coisas não são fábulas engenhosamente
inventadas, mas as grandes e terríveis realidades da palavra de
Deus, e coisas que, em pouco tempo, vocês saberão com
certeza eterna que são verdadeiras.
Como podem, então, descansar nesse estado em que se
encontram, e andarem tão descuidados dia após dia, tão
imprudentes e negligentes de suas almas preciosas e imortais?
Considerem seriamente essas coisas e sejam sábios, antes que
seja tarde demais. Antes que seus pés tropecem nas
montanhas tenebrosas, e vocês caiam no mundo de ira e ódio,
onde há choro, lamentação e ranger de dentes, com rancorosa
malícia e raiva contra Deus, e Cristo, e uns aos outros, e com
horror e angústia de espírito para sempre. Fujam para a
fortaleza enquanto são prisioneiros da esperança, antes que a
porta da esperança se feche e as agonias da segunda morte
comecem a trabalhar e sua ruína eterna esteja selada!
4. Que a consideração do que foi dito anime a todos a
resolutamente buscarem o céu.
Se o céu for esse mundo bendito, então que ele seja seu
país escolhido e a herança pela qual você procura e busca.
Que nós voltemos nossos olhos para esse caminho, e nos
esforcemos para a sua posse. Não é impossível que esse
mundo glorioso seja obtido por nós. Ele nos é oferecido.
Embora seja um país tão excelente e bendito, contudo, Deus
está disposto a nos dar uma herança lá, se tão somente for o
país que desejamos, escolhemos e diligentemente buscamos.
Deus nos dá nossa escolha. Podemos ter nossa herança onde
quer que a escolhamos, e podemos obter o céu se o
buscarmos com paciência contínua na prática do bem.
Estamos todos, por assim dizer, estabelecidos aqui como em
um vasto deserto, com diversos países ao nosso redor, e com
diversos caminhos ou rotas levando a esses diferentes países,
e é deixado à nossa escolha que curso tomaremos. Se
escolhermos de coração o céu e devotarmos nosso coração
inteiramente a essa bendita Canaã – essa terra de amor – e se
escolhermos e amarmos o caminho que leva até lá, podemos
andar nesse caminho e, se continuarmos a andar nele, ele nos
levará, por fim, ao céu.
Que aquilo que falamos da terra do amor nos anime a
virar nossas faces em sua direção e mudar nosso rumo para lá.
Aquilo que ouvimos acerca do estado feliz desse país, e das
muitas delícias que estão lá, não é suficiente para nos deixar
sedentos por ele e para nos levar a séria e persistentemente
resolver-nos a nos esforçar e gastar nossas vidas inteiras na
jornada que nos leva para lá?
Que alegres novas poderiam muito bem ser para nossos
ouvidos ouvir desse mundo de perfeita paz e santo amor, e
ouvir que é possível, sim, que há amplas oportunidades para
nós de irmos até ele, e passarmos uma eternidade em sua
alegria! Aquilo que ouvimos desse mundo bendito não é
suficiente para nos aborrecer deste mundo de orgulho,
malícia, contenda, perpétuas brigas e discórdias, um mundo
de confusão, um deserto de serpentes, um oceano
tempestuoso, onde não há descanso sossegado, onde todos
são por si mesmos e o egoísmo reina e governa e todos se
esforçam para exaltar-se às custas dos outros. Todos estão
ávidos pelos bens mundanos que são os grandes objetos de
desejo e contenda, pelos quais as pessoas continuamente se
aborrecem, caluniam, reprovam-se e até mesmo prejudicam e
abusam umas das outras. Um mundo cheio de injustiça,
opressão, crueldade, um mundo onde há muita traição,
falsidade, inconstância, hipocrisia, sofrimento e morte; onde
há tão pouca confiança na humanidade, onde toda boa pessoa
está cheia de falhas e tem muita coisa em si que a torna
desamável e inconfortável, onde há muita dor, culpa e pecado
de todo tipo?
Verdadeiramente, este é um mundo mau, e assim deve
ser. É vão que esperemos que será diferente de um mundo de
pecado, um mundo de orgulho, inimizade, briga, em suma,
um mundo incansável. Ainda que os tempos possam ser
daqui emendados, contudo, essas coisas serão mais ou menos
achadas no mundo enquanto ele existir.
Quem, então, se contentaria com uma porção nesse
mundo? Que pessoa, agindo sábia e consideramente se
preocuparia tanto em guardar em depósito em um mundo
como este, e, ao contrário, não abriria mão dele, deixando-o
para aqueles que o quiserem, e aplicando todo seu coração e
força em entesourar no céu, esforçando-se nesse mundo de
amor? O que significaria para nós ajuntar grandes possessões
neste mundo, e como o pensamento de ter nossa porção aqui
pode nos ser agradável, quando nos há uma participação
ofertada em um mundo tão glorioso como o céu, e
especialmente quando, se tivermos nossa porção aqui,
devemos, quando este mundo passar, ter nossa porção no
inferno, esse mundo de ódio e de ira infindável da parte de
Deus, onde apenas demônios e espíritos condenados habitam.
Por natureza, nós todos desejamos o descanso e a
quietude, e se os quisermos obter, busquemos esse mundo de
paz e amor do qual vocês ouviram, onde um doce e bendito
descanso permanece para o povo de Deus.

[1] Preservamos aqui, e sempre que possível, o termo “caridade”, originalmente


usado pelo autor, visto que ele próprio definirá a caridade como sendo o “amor
cristão”, exercido em relação a Deus e aos homens.
[2] Caridade, na versão do autor.
[3] “Se alguém julga saber alguma coisa, com efeito, não aprendeu ainda como
convém saber. 3 Mas, se alguém ama a Deus, esse é conhecido por ele.”
[4] Por “homem natural” Edwards denomina todos os que ainda não foram
iluminados e alcançados pelo Espírito Santo, isto é, os não-convertidos.
[5] O termo religião deve ser entendido no sentido restrito, como uma referência
ao cristianismo em geral e à fé cristã protestante, em particular. (N.T.)
[6] De acordo com o dicionário Merriam Webster, assentimento (assent) implica
um ato que envolve apenas a faculdade do entendimento ou julgamento e aplica-se
a proposições ou opiniões. Já consentimento (consent) envolve a vontade ou os
sentimentos e indica concordância ou submissão ao que é requerido ou desejado.

[7] “Contudo, não quereis vir a mim para terdes vida. 41 Eu não aceito glória que
vem dos homens; 42 sei, entretanto, que não tendes em vós o amor de Deus. 43 Eu
vim em nome de meu Pai, e não me recebeis; se outro vier em seu próprio nome,
certamente, o recebereis.”
[8] Romanos 15:18: “Porque não ousarei discorrer sobre coisa alguma, senão
sobre aquelas que Cristo fez por meu intermédio, para conduzir os gentios à
obediência, por palavra e por obras”.
[9] Isto é, no estado de salvação. (NT)
[10] Isto é, a religião cristã. Também na sequência do texto. (NT)
[11] A morte. (NT)
[12] O Dia do Senhor, isto é, o domingo.
[13] Humilha, na versão do autor. (N.T)
[14] Edwards se refere à natureza humana de Cristo. Para mais detalhes sobre a
humildade de Cristo, conferir o sermão “A Excelência de Cristo”, presente na obra
“Sermões Selecionados de Jonathan Edwards”, disponível em <
https://www.amazon.com.br/gp/product/B00IVWYQK4/ref=s9_simh_gw_p351_d1_i3?
pf_rd_m=A1ZZFT5FULY4LN&pf_rd_s=desktop-
1&pf_rd_r=QHCC2JGJM2XVMCTVJ94Z&pf_rd_t=36701&pf_rd_p=2437954722&pf_rd_i=d
>.
[15] No grego phílautoi, amantes de si mesmo (ARC) ou egoísta (ARA).
[16] A palavra neighbors, neste contexto, também pode ser traduzida como
próximo, semelhantes.
[17] Conferir o Capítulo 5.
[18] A King James, versão usada pelo autor, traz: “A caridade não pensa mal”; já a
ARA traduz: “Não se ressente do mal”. Optei por seguir a ARC, por ser mais de
acordo com a versão do autor.
[19] Isto é, o estado de graça.
[20] Esse foi um dos motivos que levaram Edwards a repreender o renomado
pregador George Whitefield. Cf. o relato de Sereno Dwight disponível em
http://www.ccel.org/ccel/edwards/works1.i.ix.html.
[21] Isto é, do estado espiritual das pessoas.
[22] 1Tm 5.24
[23] Isto é, os não convertidos.
[24] A tautologia (do grego ταὐτολογία "dizer o mesmo") é, na retórica, um
termo ou texto que expressa a mesma ideia de formas diferentes. Como um vício
de linguagem pode ser considerada um sinônimo de pleonasmo ou redundância. A
origem do termo vem de do grego tautó, que significa "o mesmo", mais logos, que
significa "assunto". Portanto, tautologia é dizer sempre a mesma coisa em termos
diferentes. (Wikipedia)
[25] Isto é, a religião cristã. Também abaixo. (N.T.)
[26] “E todos nós, com o rosto desvendado, contemplando, como por espelho, a
glória do Senhor, somos transformados, de glória em glória, na sua própria
imagem, como pelo Senhor, o Espírito.”
[27] “O mesmo Deus da paz vos santifique em tudo; e o vosso espírito, alma e
corpo sejam conservados íntegros e irrepreensíveis na vinda de nosso Senhor
Jesus Cristo.”
[28] O termo original é gnôsis, traduzido como “ciência”, tanto pela ARA quanto
pela ARC. (N.T.)
[29] No grego, lógos gnôsis. (N.T.)
[30] Sobre esse tipo conhecimento, conferir o sermão Uma Luz Divina e
Sobrenatural, in Edwards, Jonathan. A Busca do Crescimento. Editora Cultura
Cristã: São Paulo, 2010.
[31] No original, leading-string. Trata-se um elástico usado para dar apoio para
crianças que estão aprendendo a andar.
[32] Jonathan Edwards divide o amor em dois tipos: o amor de complacência e o
de benevolência. O amor de complacência é o que ama o objeto devido à sua
própria amabilidade, ou pelo fato de este apresentar características agradáveis ao
amante. Já o amor de benevolência não se baseia na amabilidade do objeto, mas
sim na boa vontade do amante para com a coisa amada. Esse amor não seria uma
resposta a alguma beleza ou excelência no objeto amado, mas sim um ato de boa
vontade para com ele. Cf. o artigo de John Piper em
http://www.desiringgod.org/interviews/what-is-love.

Você também pode gostar