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João Calvino
Tradução
Valter Graciano Martins
Copyright © 2015 de Robert White
Edição baseada na tradução inglesa publicada
pela The Banner of Truth Trust,
3 Murrayfield Road, Edinburgh EH12 6EL, UK.
E M
SCRN 712/713, Bloco B, Loja 28 — Ed. Francisco Morato
Brasília, DF, Brasil — CEP 70.760-620
www.editoramonergismo.com.br
1ª edição, 2019
Sermões sobre Tito / João Calvino, tradução Valter Graciano Martins — Brasília, DF:
Editora Monergismo, 2019.
CDD 230
Sumário
INTRODUÇÃO
ESBOÇO DA CARTA DE PAULO A TITO
1. PRIMEIRO SERMÃO: SERVO DA PALAVRA DE DEUS [Tito 1.1-4]
2. SEGUNDO SERMÃO: PROMESSA ATUAL E ESPERANÇA FUTURA [Tito 1.1-4]
3. TERCEIRO SERMÃO: A FÉ COMUM [Tito 1.4, 5]
4. QUARTO SERMÃO: LIDERANÇA NA IGREJA (1) [Tito 1.5, 6]
5. QUINTO SERMÃO: A LIDERANÇA NA IGREJA (2) [Tito 1.7-9]
6. SEXTO SERMÃO: MANTENDO A VERDADE [Tito 1.9-10]
7. SÉTIMO SERMÃO: O ADVERSÁRIO DE DENTRO [Tito 1.10-12]
8. OITAVO SERMÃO: SADIOS NA FÉ [Tito 1.12-15]
9. A TIRANIA DA TRADIÇÃO [Tito 1.15, 16]
10. O CARÁTER CRISTÃO (1) [Tito 2.1-3]
11. O CARÁTER CRISTÃO (2) [Tito 2.3-5]
12. CARÁTER CRISTÃO (3) [Tito 2.6-13]
13. GRAÇA E GLÓRIA [Tito 2.11-14]
14. O MANDATO DO PREGADOR [Tito 2.15-3.2]
15. DEUS É QUEM SALVA [Tito 3.3-5]
16. NOVA VIDA EM CRISTO [Tito 3.4-7]
17. PROVEITOSAMENTE OCUPADOS [Tt 3.8-15]
ORAÇÕES ANTES E DEPOIS DO SERMÃO
INTRODUÇÃO
As três cartas que, juntas, constituem as Epístolas Pastorais
de Paulo — 1 e 2 Timóteo e Tito — pertencem ao final da vida do
apóstolo. Diferentemente das outras cartas de Paulo, que são
endereçadas coletivamente a uma igreja cristã, estas são
endereçadas pessoalmente a homens a quem ele considera colegas
íntimos e de plena confiança: Timóteo em Éfeso e Tito em Creta. A
despeito das aparências, as cartas não são um projeto de reforma
nem um manual de governo eclesiástico. As incumbências de Paulo
a Timóteo são específicas: refutar os falsos mestres que se
encontram ativos em Éfeso (1Tm 1.3); manter a sã doutrina e, se
possível, juntar-se ao apóstolo em Roma (2Tm 1.13; 4.9).
Igualmente específica é sua ordem a Tito: completar a obra
começada em Creta, estabelecendo em cada cidade presbíteros
que sejam, a um só tempo, homens íntegros e mestres eficientes,
capazes de coibir a influência de certos oponentes judeus cristãos,
“porque existem muitos insubordinados, palradores frívolos e
enganadores, especialmente os da circuncisão” (Tt 1.5-10).
No que concerne à liderança irrepreensível, ao ensino fiel e ao
bem-estar espiritual dos membros da igreja, a carta a Tito soa uma
nota fortemente ética e evangelística em sua ênfase sobre o viver
íntegro, pelo qual Deus é honrado e os estranhos são atraídos à fé.
A fé que se expressa publicamente em culto a Deus também se
expressa publicamente em obras excelentes, pelas quais se
entendem não simplesmente os bons feitos, mas visível e
atrativamente as boas ações (Tt 2.7, 14; 3.8, 14). A partir dessas
ações os incrédulos podem receber um vislumbre do poder do
evangelho e de sua graça, libertando-os dos maus atos e
capacitando os crentes a viver, “no presente século, sensata, justa e
piedosamente” (Tt 2.12).[1]
Portanto, em seus sermões sobre Tito, Calvino ressalta
consistentemente a centralidade da Palavra revelada de Deus na
vida coletiva da igreja e a necessidade de que cada crente se
conforme ao padrão divino de santidade, integridade e pureza. Uma
vida saudável é, pela obra graciosa do Espírito, tanto a
consequência quanto o acompanhamento do ensino saudável.
Entretanto, a inconsistência de conduta não é fácil de evitar, e o
mundo com razão condenará os cristãos que dizem uma coisa e
fazem outra. Transformação à semelhança de Cristo é uma obra da
vida inteira. Arrolados na escola de Deus, os crentes são instados a
tirar proveito de cada dia, crescendo não só em conhecimento, mas
também em amor, e não somente para proveito próprio, mas para o
benefício de seus semelhantes, aos quais estamos jungidos pelos
laços de humanidade e fraternidade. Desta forma, a igreja é
fortalecida, seu testemunho é confirmado e se dá prova tangível de
que ela é o que alega ser — a comunidade dos redimidos de Deus
sobre a terra.
Dada a importância que Calvino vinculou aos pastores e
presbíteros em seu conceito de ministério, é inevitável que o
pregador insista longamente nas funções e qualidades do prestre-
evesque, o presbítero-supervisor, como delineado por Paulo, e que
ele comentaria de um modo ácido sobre a indiferença de Roma para
com o ensino dos apóstolos. Ecos da cena genebrina
contemporânea podem ser encontrados na sensível defesa que o
Reformador faz da disciplina eclesiástica, em suas advertências
contra os falsos mestres (onde ele tem em mente particularmente
Serveto), e sua defesa em prol da generosa hospitalidade que deve
ser estendida aos refugiados religiosos para os quais Genebra
representava um precioso lugar de asilo.
Um lampejo da compreensão que o próprio Calvino tinha de
seu papel como arauto do evangelho é fornecido por uma série de
passagens sobre “nós”, onde a atenção é dirigida não ao universal
— “nós, humanos”; “nós, cristãos”; “nós, pecadores” — mas ao
particular: “nós, pregadores”; “nós, ministros da Palavra de Deus”.
Acima de tudo, os sermões sobre Tito revelam o coração do pastor
Calvino, o pastor do rebanho de Deus, cujos membros são nutridos
pela Palavra da verdade, feitos um com Cristo pelo poder
regenerador do Espírito, adotados na família de Deus, cuja
promessa da herança celestial não pode falhar. Embora o pregador
recuse-se a aprovar a divisão tradicional entre clérigos e leigos, ele
não é um nivelador. É verdade que, pela graça, todos somos filhos
de Deus e do mesmo rol de membros de Cristo. Cada um de nós é
guarda de nossos irmãos. Todavia, nem Paulo, em sua carta a Tito,
nem Calvino, em seus sermões, falam de um presbiterado ao qual
todos os crentes podem aspirar indiscriminadamente. O padrão de
Deus para a igreja é bem ordenado, onde há os que ensinam e os
que são ensinados, cada um segundo sua vocação. Portanto, os
que ensinam fielmente lideram; e os demais recebem a Palavra, não
passivamente, mas com reverência e ação de graças.
Não obstante, o pastorado não é uma casta privilegiada. O
presbítero não é mais que um administrador na casa de Deus,
conduzindo-a sob o olhar vigilante de seu Senhor no céu, a quem
ele tem de sempre prestar contas. Seu modelo não é o sacerdote
sacrificador ou o prelado monárquico da Igreja Católica Romana, e
sim Cristo, o Servo obediente. Sua liderança é como a de alguém
cuja vida e doutrina são julgadas, respectivamente, pelos homens e
por Deus, e cuja conduta no púlpito e fora dele tem de ser exemplar.
Como mestre, ele mesmo tem de ser ensinado constantemente;
deve confiar em seu próprio juízo sem o auxílio de ninguém, buscar
conselhos mais sábios e atentar para as advertências bem
intencionadas. A presunção, não menos que a cupidez, a ambição e
a imoralidade, lhe constituem em morte.
***
— Robert White
Sydney, julho de 2015
ESBOÇO DA CARTA DE PAULO A TITO
Paulo, tendo apenas lançado os fundamentos de uma igreja em
Creta e se vendo obrigado a mudar-se para outros lugares — não
sendo pastor de uma ilha, mas apóstolo aos gentios —, confiara a
Tito, na qualidade de evangelista, a tarefa de continuar a obra
começada. Pode-se ver facilmente, à luz da carta, que, logo após a
partida de Paulo, Satanás se empenhou não só em subverter o
governo e a ordem da igreja, mas também em corromper seu
ensino. Havia pessoas ambiciosas que buscavam promover-se
como mestres na igreja e ser tidos entre seus pastores. Uma vez
que Tito recusou-se a partilhar de seus propósitos perversos,
promoveram-se contra ele falatórios de um tipo calunioso e
derrogatório entre alguns grupos. Havia também judeus que, com o
pretexto de sustentar a lei de Moisés, praticavam toda sorte de
inconveniência. Essas pessoas encontraram um auditório disposto e
não se fez nenhuma tentativa para dissimular o apoio deles.
Portanto, o alvo de Paulo, ao escrever como o fez, era conferir
a Tito reconhecimento e autoridade para que ele suportasse melhor
um fardo tão pesado do ofício. Pois não há dúvida de que havia
alguns que achassem fácil menosprezá-lo, como se ele não tivesse
mais condição do que qualquer outro ministro ou pastor. É também
possível que aqui e ali se ouvissem queixas de que ele estava
empreendendo demais e assim assumia mais autoridade do que lhe
era próprio; porque ele não devia admitir ninguém como pastor até
que pessoalmente examinasse e testasse o candidato.
E assim podemos inferir que Paulo não escreveu tanto em
razão do próprio Tito, mas por causa das congregações cretenses
em geral. É improvável que em sua carta ele pretendesse reprovar
Tito pela prontidão em promover pessoas que eram indignas de ser
supervisores e pastores; nem desejasse instruí-lo como um
principiante ou alguém totalmente novato para o ofício, com o fim de
mostrar-lhe como deveria instruir seu povo. Visto, porém, que Tito
não era tido na devida estima e respeito, aqui Paulo lhe outorga
autoridade para designar ministros e fazer o que é necessário para
o bom governo da igreja, como ele próprio teria feito se estivesse
presente. Pois, de igual modo, visto que muitos teriam preferido
outro tipo de ensino e estilo de instrução do que aqueles
empregados por Tito, Paulo deixa claro que ele a nenhum aprova
senão estes e rejeita todos os demais e exorta Tito a continuar como
vem fazendo desde o início.
Daí ele discutir antes de tudo que tipo de homens devem ser
escolhidos como ministros. Entre os demais dons que ele requer de
um ministro, Paulo deseja que seja alguém bem versado na sã
doutrina e de tal modo equipado com ela, que repila os adversários.
Nesta conexão, ele menciona um número de falhas entre os
cristãos, mas repreende principalmente os judeus que buscavam
santidade em distinções sobre alimento e em outras questões
externas. Com o intuito de rebater suas tolices, ele descreve as
práticas que realmente constituem a piedade e o viver cristão. Para
corroborar seu ensino, ele dá uma lista detalhada de qual é o dever
de alguém em conformidade com sua vocação. Para que as
pessoas não sejam importunadas por ouvir a mesma coisa repetidas
vezes, ele ordena a Tito de maneira explícita que enfatize este
ponto cuidadosa e constantemente, e explica que este é o alvo da
redenção e da salvação que Cristo já conquistou para nós. Se
algum indivíduo confuso ou obstinado resistir e recusar-se a se
submeter, ele lhe diz que nada tem a ver com o tal.
Vemos, portanto, que o único propósito da carta de Paulo era
defender a causa de Tito e dar-lhe toda assistência enquanto este
estava comprometido com a obra do Senhor.
1. PRIMEIRO SERMÃO: SERVO DA PALAVRA DE DEUS [Tito
1.1-4]
Paulo, servo de Deus e apóstolo de Jesus Cristo, para promover a
fé que é dos eleitos de Deus e o pleno conhecimento da verdade
segundo a piedade, na esperança da vida eterna que o Deus que
não pode mentir prometeu antes dos tempos eternos e, em tempos
devidos, manifestou a sua palavra mediante a pregação que me foi
confiada por mandato de Deus, nosso Salvador, a Tito, verdadeiro
filho, segundo a fé comum, graça e paz, da parte de Deus Pai e de
Cristo Jesus, nosso Salvador.
Oração
Agora lancemo-nos diante da majestade de nosso bom Deus,
reconhecendo nossos pecados e rogando-lhe que nos faça de tal
modo cônscios deles, que mais e mais nos enfademos deles e nos
entristeçamos por eles, até que realmente nos arrependamos e
sejamos purificados de toda imperfeição. Visto que somos
totalmente corruptos e que em nossa natureza persistem tantas
falhas que o ofendem, que lhe apraza sustentar-nos e tratar-nos
com misericórdia; de modo que, sendo governados por seu Santo
Espírito, não lhe provoquemos a ira como temos feito até então. E
que ele nos perdoe em sua paternal bondade e nos faça aceitáveis
a si; no nome e por amor de nosso Senhor Jesus Cristo.
3. TERCEIRO SERMÃO: A FÉ COMUM [Tito 1.4, 5]
Oração
Agora prostremo-nos diante da face de nosso bom Deus,
reconhecendo nossas falhas e orando para que ele nos faça senti-
las, e tudo mais, de modo que sejamos sempre levados a odiar
nossos pecados, amar sua justiça e anelar por ela, até que ela
realmente reine dentro de nós. E que sejamos recriados segundo
sua justiça, a qual se concretizará quando formos esvaziados de
nossas imperfeições e vestidos de sua glória.
4. QUARTO SERMÃO: LIDERANÇA NA IGREJA (1) [Tito 1.5, 6]
Por essa causa, te deixei em Creta, para que pusesses em ordem
as coisas restantes, bem como, em cada cidade, constituísses
presbíteros, conforme te prescrevi: alguém que seja irrepreensível,
marido de uma só mulher, que tenha filhos crentes que não são
acusados de dissolução, nem são insubordinados.
Começamos esta manhã pontuando quão difícil é a obra de
edificação da igreja de Deus e quão impossível é ser bem-sucedido
em um dia ou em curto período. A obra é contínua, e a vida inteira
de um homem não basta. Naturalmente, Deus poderia conduzir seu
povo à perfeição se porventura quisesse fazê-lo, mas ele quer levar-
nos por passos medidos — tudo com o fim de humilhar-nos e
ajudar-nos a reconhecer nossas misérias e deplorá-las, de modo a
caminharmos por este mundo sempre nos volvendo para ele. Pois
sabemos que o que ele começou em nós nada é até que, como
costumamos dizer, ele ponha um ponto final. E, visto que cada um
de nós deve acima de tudo ser um templo do Santo Espírito,
apliquemo-nos a esta obra de construção.
Aqueles a quem Deus chamou a pregar sua Palavra designou
pedreiros na construção de seu templo. Da mesma forma, ele
deseja que nos ocupemos nisso, cada um em sua própria esfera.
Entretanto, notemos que é a toda a igreja que edificamos em
comum, e cada um de nós deve trabalhar nela, pois nos cabe fazer
as coisas progredirem o máximo que pudermos. No entanto, os que
vivem satisfeitos com o atual estado de atividades estão muito
enganados. É um sinal de que ainda não entenderam o alvo ao qual
Deus os chama nem se examinam, pois estão muito longe da meta
a que deveriam almejar. Assim, esforcemo-nos o máximo que
pudermos para alcançá-lo e reflitamos cuidadosamente sobre qual é
nossa deficiência. Ainda que Deus permita graciosamente que sua
Palavra nos seja ensinada com pureza e mesmo quando entre nós
prevaleça alguma ordem tolerável, lembremo-nos de que tudo ainda
não é perfeito e que a obra nunca é feita com inteireza. Isto não
deve deprimir nossos espíritos, mas, ao contrário, deve estimular e
inspirar-nos a observar a injunção de Paulo e a seguir seu conselho.
Mas, notemos bem, assim que Deus começa a edificar sua
igreja entre nós, os homens se dispõem a desfazer tudo. Em
qualquer caso, quem realmente se põe a refletir sobre o que é
errado? Ao contrário, não podemos suportar o presente estado de
coisas — frágil como ele é — sem nos queixarmos de que o jugo de
Cristo é demasiadamente pesado; e se há entre nós alguma sorte
de ordem, por mais insignificante que seja, não o podemos tolerar:
“Oh! Se esta disciplina continuar, onde irá terminar?”. Caso se faça
alguma tentativa de sofrear a blasfêmia: “Oh! Por que tanta
severidade? Todos nós fazemos isso ocasionalmente!”. Caso se
faça menção de outras irregularidades: “O que é isso? Não
podemos regozijar-nos legalmente?”. Quando se pune a dança e
outras infâmias, alguém protesta. Se há leis que procuram refrear
um comportamento desenfreado, dizemos que são severas demais.
Por quê? Porque somos surdos para com a instrução de Paulo aqui.
Embora trabalhasse em Creta com dificuldade e houvesse
estabelecido uma forma de igreja segundo o mandato de nosso
Senhor Jesus Cristo, contudo não havia conduzido o reino de Cristo
à completude. Isso só poderia se dar na plenitude do tempo. Como
podemos hoje fazer melhor que Paulo? É um equívoco pensar que
somos mais prontos a aceitar uma forma mais completa e mais
sólida de governo do que o povo daquele tempo. Aprendamos, pois,
a sentir desprazer em nós mesmos. Sejamos sempre levados a
buscar o avanço do reino de Cristo e, à medida que virmos o edifício
ainda incompleto, tentemos terminá-lo quanto for possível.
Se temos uma casa que tem infiltração de água da chuva e
receamos que ela apodreça, reparamos o teto. Se há uma parede
que ameaça cair, a reconstruímos. Acaso há uma casa neste mundo
mais preciosa que o santo templo de Deus, que nos honra com a
habitação de seu Santo Espírito em nós e que espera que nos
unamos como pedras vivas que formam uma casa espiritual, onde
lhe oferecemos sacrifícios, adorando-o e invocando seu nome?
Vemos a chuva chegando, ouvimos estalidos, vemos sinais óbvios
de decadência e, no entanto, não nos apressamos a preservar algo
de tão grande preço e valor! Quando vemos porcos invadindo a sala
de um homem nobre, acaso não tomamos providência imediata a
fim de que uma coisa tão vil não aconteça outra vez? No entanto,
vemos cães e porcos enlameando a igreja de Deus e trazendo-lhe
infecção, vemos desabrida licenciosidade que traz opróbrio ao nome
de Deus, vemos sua igreja vilipendiada, sem que alguém pareça
notar! Pior, há homens que querem esta confusão e que o mal seja
encoberto! Em suma, a maioria das pessoas dá seu máximo para
arruinar e solapar todo o progresso já feito.
Enquanto um dos servos de Deus prega fielmente a Palavra e
é zeloso em guiar seu povo a uma vereda certa, há bem poucos que
tentam ajudá-lo. A maioria fará tudo quanto pode para lançar tudo
de ponta cabeça. Enquanto alguém com muito esforço e dificuldade
carrega uma pedra, outros arrancarão três com o fim de impedir o
prosseguimento da obra. Tais coisas são corriqueiras hoje. Por isso
devemos labutar com ousadia para construir este templo espiritual
de Deus e que nenhuma dificuldade nos impeça de prosseguir, pois
Deus nos dá graça para terminar enquanto não formos ociosos e
negligentes.
É oportuno, pois, que trabalhemos muito seguindo o exemplo
de Paulo. Observemos especialmente as palavras o que ainda
resta. Que cada um de nós olhe para si mesmo e considere
cuidadosamente o que ainda lhe falta. Descobriremos que ainda
estamos sujeitos a muitas falhas, de modo que fracassamos
completamente no cumprimento de nosso dever. Somos também
tão indolentes que não fazemos a centésima parte do que
deveríamos. Deveríamos voltar nossos pensamentos para a vida
celestial e, enquanto passamos por este mundo, subjugar todos os
nossos maus desejos para que eles não mais nos façam recuar. Em
vez disso, dificilmente conseguimos manter-nos pensando, ainda
que de maneira efêmera, no céu. Em suma, quando nos pomos a
olhar para Deus e a buscar a vida a que ele nos chama, somos mais
frios que o gelo. Entretanto, nos deixamos arrebatar por um
vagalhão de sentimento e desejo. Assim, quando vemos que somos
carentes de muitas coisas neste mundo, que todos sejamos mais
prontos a corrigir-nos e, tendo feito isso, a considerar o mundo ao
nosso redor, onde vemos, de um lado, blasfêmias, e, do outro,
imoralidade, indisciplina, indulgência e outros escândalos e
infecções. Estas coisas, repito, deveriam despertar-nos para não
sermos tão arrogantes a ponto de pensar que somos tão perfeitos
que não se requer de nós mais nenhuma obra. Em vez de disso,
deveríamos assegurar-nos de que o que é bom continue
avançando, que prevaleça melhor ordem do que se dá hoje e que
nos aproximemos ainda mais de Deus e do padrão de pureza que
ele nos ordena em sua Palavra. Isso é o que devemos ter em
mente.
Vemos que o evangelho só pode ser mantido se atentarmos
para o que Paulo acrescenta em seguida: bem como, em cada
cidade, constituísses presbíteros. Pois a pregação é o meio pelo
qual a igreja é mantida. Como dissemos nesta manhã, ela é a
semente imperecível pela qual somos gerados por Deus ⸻ é o
leite para cada jovem e alimento para os adultos. A igreja
fracassaria e pereceria se não fosse sustentada pela pregação da
Palavra de Deus. Eis por que Paulo requer que fossem designados
anciãos ou presbíteros, homens que têm a tarefa de guiar sempre o
povo de Deus e de conservá-lo obediente a ele. Estes não são o
tipo de pastores sonhado pelos papistas: entre eles, sacerdócio é
uma infecção saturada de sacrilégio que almeja destruir toda ordem.
Estes são presbíteros cristãos cuja tarefa é declarar o evangelho;
não sacrificar Jesus Cristo como fazem aqueles demônios que
falsamente reivindicam o direito de oferecer Cristo a Deus Pai. Nada
disso tem algo a ver com o ofício de presbítero como o achamos
aqui, pois Paulo mostra sucintamente que os presbíteros de quem
ele fala são ministros e pastores da igreja. Entretanto, este é um
tema que consideraremos mais plenamente em seu lugar. Agora
basta saber que, se queremos que a igreja de Deus seja sadia e
íntegra, deve haver pessoas que nos proclamem a Palavra de Deus,
porém não aqueles que, movidos pela ambição, logo subverteriam
toda a ordem como se corta a garganta de um homem! Pois não há
outra vida à vista de Deus além daquela que temos pela fé, como
dissemos nesta manhã.
É importante enfatizar este ponto e rogar a Deus, quando ele
enviar-nos sua Palavra, que ao mesmo tempo levante homens que
verdadeiramente no-la ministrem. A seguir Paulo se refere aos
presbíteros que sejam escolhidos [ou constituídos]. Ele prefacia
suas palavras a Timóteo com a mesma observação: “se alguém
aspira ao episcopado, excelente obra almeja” [ou, o homem que
deseja ser bispo assume uma tarefa nobre] [1Tm 3.1]. Esta não é
uma ocupação ordinária, e não é uma diversão. Como continua a
dizer: “Porque é indispensável que o bispo seja irrepreensível como
despenseiro de Deus” [ou, aquele que é pastor na igreja é como um
administrador na casa de Deus, tendo o cuidado das almas] [Tt 1.7].
Portanto, que ninguém lance mão da obra irrefletidamente, nem
promova o primeiro homem que apareça. Que se faça uma escolha
discriminatória, para que o lugar somente seja assumido por alguém
apto para edificar a igreja de Deus e competente para exercer seu
ofício.
Em primeiro lugar, se requeria que os escolhidos fossem
irrepreensíveis. Aqui, a intenção de Paulo é a mesma que em sua
primeira carta a Timóteo. Ele não esperava que os pastores fossem
isentos de todas as falhas, pois seria impossível encontrar tal
pessoa. Quando, no tempo da lei, os sacerdotes que prefiguravam
nosso Senhor Jesus Cristo entravam no santuário para mediar entre
Deus e os homens, eles faziam reconciliação e paz entre os dois.
Antes de tudo, eles tinham que confessar que, na verdade, eram
pecadores miseráveis. Assim, a igreja seria destituída de mestres
caso se requeresse que estes fossem impolutos e sem mácula.
Entretanto, há falhas ocasionadas por fraqueza e pecados dos quais
todos os homens são culpados. É possível achar homens que
sirvam a Deus e cuja vida seja sem aquela sorte de mancha que é
merecedora desta censura: “Tu és um ladrão, um mulherengo, um
ébrio, um blasfemo”, ou algo similar. Pode ser que possuam
fraqueza como todos os homens, porém que não sejam tão
corruptos que não possam servir a Deus fielmente se chamados
para essa tarefa, ou não possam reprovar e censurar homens por
seus pecados. É isso que Paulo quer que entendamos nesta
passagem.
Ele tinha toda razão em demandar que os que pregam Palavra
de Deus sejam irrepreensíveis, pois o que aconteceria se um
homem fosse culpado de uma falha tão notória que o
desacreditasse inteiramente? Poderia abrir a boca para recriminar
os ofensores? Ele não seria livre para isso. Pois, como diz Paulo em
outro lugar, faz-se necessária uma consciência limpa e pura se
temos de proclamar a verdade e ensinar livremente e sem oposição
[1Tm 1.19; 3.9]. A conclusão a que chegamos do que lemos aqui,
portanto, é que a Palavra de Deus não deve ser diminuída pela
culpa de alguém que a porta, de modo que alguém diga: “Quem ele
pensa ser? Ele fala muito bem quando se encontra no púlpito, mas
um violonista poderia fazer outro tanto, e um comediante realizaria
muito mais. Isso outra coisa não é senão tagarelar”. A Palavra de
Deus se transformará em objeto de escárnio se um homem falha em
mostrar com sua vida que fala seriamente. Para evitar o sacrilégio
de ver a Palavra de Deus entre nós calcada sob os pés, Paulo
afirma que o ministro que a prega seja isento de toda mácula [2Co
6.3].
É verdade que os servos de Deus nunca estarão acima de
qualquer censura. O próprio apóstolo confessa que teve de sofrer
opróbrio e desgraça [1Co 4.13]. No entanto, em toda a sua vida ele
se comportou tão inocentemente que nele não se achava falha
nenhuma; mesmo antes que abraçasse a fé em Jesus Cristo, ele
era irrepreensível, um espelho e pérola de toda santidade.
(Seguramente, ele não sabia o que estava fazendo, pois ainda não
era governado pelo Espírito de Deus. Mesmo assim, viveu uma vida
de tanta retidão, que ninguém poderia achar nele qualquer falha.)
Não obstante, ele nos informa de que foi excluído por zombaria e
opróbrio, era acusado até pelos crentes que mostravam tão pouca
gratidão que em sua ausência foi injuriado e amplamente caluniado
[1Co 4.9-13; 2Co 10.8-11; 12.16-18]. Então, quando Paulo demanda
que os pastores sejam irrepreensíveis, ele quer dizer-nos que
investiguemos e examinemos se a vida do homem é pura e impoluta
e se ele continua a se comportar dessa maneira.
Portanto, embora não possamos silenciar o fofoqueiro e,
assim, evitar toda e qualquer difamação, nós mesmos temos de ser
irrepreensíveis, visto que nos é dito que, a despeito de nossa pureza
e inocência, seremos ultrajados como malfeitores. Como isso é
possível? Temos da parte de Deus este testemunho de que ele nos
aprova e, por mais que façam mexericos contra nós, isso não passa
de mentira. Uma vez que Deus nos tenha aceitado e recebido,
seremos aptos a manter nossa integridade. Existem homens
perversos que falarão mal de nós sem razão. Todavia, se um
homem se esforça em defender sua causa justa e está pronto a
responder por si mesmo sempre que for intimado, ele se mostra
irrepreensível comparecendo ousadamente, tendo, no dizer de
Isaías, sua testemunha no céu [Is 50.8]. Então, ao exigir que os
pastores escolhidos sejam irrepreensíveis, Paulo deixa bem clara a
sua intenção. Seu desejo é que a Palavra de Deus seja honrada
como bem merece e que não sofra nem opróbrio nem ódio por conta
dos pecados dos homens. Os acusados que reprovam os ofensores
devem cumprir livremente com seu dever; não devem ser detidos
por qualquer objeção que porventura os homens façam: “O que
você pensa ser? Conhecemos a sorte de vida que você vive e como
se comporta!”. Eis por que Paulo insiste que os ministros da
Palavra, cumprindo com a tarefa de liderar outros, devem ser
irrepreensíveis. Somente assim cumprem as demandas de seu
ofício.
Daí Paulo continuar dizendo: marido de uma só mulher. Este
texto tem sido mal entendido, porque ninguém considera o que
levou Paulo a fazer esta afirmação. Entre os judeus havia uma
corrupção tal que se pensava ser lícito ter muitas esposas,
justamente como os patriarcas tiveram, cujo exemplo estupidamente
seguiam. Pois os homens, assenhorando-se da mais leve
oportunidade para a libertinagem, sempre converterão uma má
tradição em lei. Se este erro existiu entre os patriarcas — e só entre
alguns deles —, a intenção de Deus não era que isso se tornasse
um precedente e uma norma. Nosso Senhor Jesus Cristo nos
aponta a instituição original do matrimônio, dizendo: “Não tendes
lido que o Criador, desde o princípio, os fez homem e mulher e que
disse: Por esta causa deixará o homem pai e mãe e se unirá a sua
mulher, tornando-se os dois uma só carne” [Mt 19.4, 5]. Então, os
judeus tinham falsamente tentado seguir o exemplo dos santos
patriarcas. Seja como for, este abuso era praticado entre eles em
grande escala.
Quando o cristianismo começou, teria sido algo demasiado
doloroso e amargo compelir os homens a deixarem as esposas a
quem haviam tomado. Lançá-las fora teria sido duro demais. Não
obstante, não pode ser que uma prática tolerável entre os povos
fosse permitida a alguém que se destinava a ser um espelho a
outros e a mostrar-lhes o caminho. Caso eu seja criticado por uma
falha, posso replicar: “Meu vizinho faz exatamente a mesma coisa!”.
Isso procede, mas meu vizinho não tem a tarefa de ensinar e corrigir
outros. Os ministros da Palavra de Deus nem por isso devem ser
livres para fazer o que é tolerado em outros; devem conhecer o que
lhes é permissível. É próprio que sejam mantidos com rédea mais
apertada; se outros são mantidos por uma só rédea, então os
ministros devem ser mantidos por duas!
Por conseguinte, Paulo viu que entre os judeus existia um mal
que não podia ser corrigido com facilidade. A despeito do
mandamento de Deus, um homem poderia tomar para si duas ou
mais esposas, de modo que um direito habitual há muito
reivindicado se tornara lei e não podia ser removido imediatamente,
como sucede quando um vício se torna profundamente radicado. O
apóstolo proíbe expressamente que os pastores e aqueles a quem
foi confiado o ensino se comprometessem com uma prática como
essa, a qual nada mais é senão incontinência. Quando alguém
tenha maculado o que deveria ser o mais santo dos contrastes e
inclusive tenha subvertido a ordem natural, como não poderia ser
culpado disso? Bem sabemos que o matrimônio é um vínculo
sagrado, e a natureza nos ensina que a poligamia é vil e detestável.
Imaginemos um homem que chega a destruir os próprios
fundamentos da natureza, mas que sobe ao púlpito e declara: “Meus
amigos, devemos mostrar em cada parte da vida que nos cabe
servir a Deus com temor, obediência e integridade. Não devemos
ser como os pagãos que não se deixam governar pela Palavra de
Deus”. Como pode ele chegar a falar nesses termos, quando
alguém pode dizer-lhe: “Miserável! Você ousa dizer-nos ser um
abuso do vínculo conjugal ter duas esposas, logo você que tem
duas?!” Essa é a razão por que Paulo buscava estigmatizar a
prática entre os pastores, a fim de que todos soubessem que esta
era repugnante a Deus e uma desordem que não deve ser tolerada.
Embora entre o povo ordinário ela não pudesse ser corrigida quanto
era necessário, pessoalmente temos de aprender a aderir à regra
apostólica.
Esse, pois, é o primeiro ponto que Paulo estabelece, e
devemos compreender bem seu significado. Não obstante, vemos
que, diferente do papa, ele não recomenda que os ministros da
Palavra se abstenham do matrimônio como forma de buscar a
santidade. Quando ele declara que um ministro deve ter uma casa
bem ordenada, viver pacificamente com sua esposa e governar
seus filhos com aquela disciplina que sirva de exemplo para os
demais, ele não estaria falando com a autoridade de nosso Senhor
Jesus Cristo? Portanto, esta é a santidade que Deus requer de seus
servos e dos que são designados a pregar sua Palavra; devem viver
castamente com suas esposas e como um casal casado. Aqui, no
entanto, temos o papa asseverando que, se um sacerdote é casado,
então ele se conspurcou, é um filho deste mundo, indigno daquele
estado angélico e obrigado a renunciar o matrimônio se quiser ter
um lugar na igreja. Se o papa alega falar com a autoridade de Deus,
então que a produza!
Há uma clara contradição aqui, pois o Espírito Santo mantém
que o matrimônio é legítimo entre os pastores da igreja, de modo
que ninguém nutra quaisquer dúvidas. Além do mais, em outro lugar
ele diz: “Digno de honra entre todos seja o matrimônio” [Hb 13.4].
No mesmo versículo, lemos ainda que Deus julgará os imorais e
adúlteros, mas que o matrimônio é digno a seus olhos; e não só
entre o laicato — para usar o termo inventado por esta escória e
gentalha papais —, mas entre todos. Visto isto ser assim, acaso não
teria o diabo falado pela boca do papa e de todos os seus lacaios,
quando negaram o matrimônio aos que são chamados a pregar a
Palavra de Deus? E não contente em exercer sua tirania e privar os
homens da liberdade outorgada por Deus, têm blasfemado
terrivelmente, declarando que os que vivem na carne não podem
agradar a Deus. Ora, o que é isso, senão torcer e falsificar a Santa
Escritura [Rm 8.8]? Ali Paulo está falando de adúlteros e devassos,
de roubadores, blasfemos e enganadores, os maldizentes que
mentem acerca de seus vizinhos e malfeitores de toda espécie.
Esses tais, reiterando, não podem agradar a Deus. Além disso, o
diabo, em Roma, vomitou sua blasfêmia infernal, declarando que os
que se casam não podem agradar a Deus! Acaso o santo
matrimônio poderia ser mais vilmente conspurcado ou mais
gravemente blasfemado do que isso?
Além do mais, quem é o autor do matrimônio? Evidentemente,
Deus tem permitido que Satanás reine nesse trono de apostasia, de
modo que os que veem que ele é um fosso do inferno se deixam
cegar voluntariamente e merecem a perdição. Ninguém pode alegar
tal ignorância a ponto de dizer: “Esta pobre plebe simplesmente
segue aonde seus prelados os guiam”. O fato é que são mais que
ditosos deixando-se tapear e enganar e seguir em frente rumo à
destruição. Deus não poderia fazer outra coisa senão tomar
vingança de uma confusão tão diabólica. Pois como seria se o
mundo fosse destituído de bons pastores? Todos os que buscaram
viver vidas santas e impolutas foram silenciados, como se deu com
aqueles que desejavam servir a Deus e abster-se da imoralidade e
outras perversidades. Nenhum desses teve a ventura de ser bispo,
sacerdote ou algo mais. Por quê? “Oh! Eram casados!” Enquanto os
que livremente se entregaram à orgia foram tidos como aptos a ser
cúmplices do papa. Portanto, não fazia diferença se eram bispos
mitrados ou sacerdotes besuntados![9] Esses eram aptos ao ofício, e
no fim do mundo foram saturados com sua infecção.
Foi assim que a imoralidade se espalhou e o matrimônio foi
despojado e os lares só foram mantidos puros com a maior
dificuldade; pois o fedor desses homens prevaleceu onde quer que
eles expelissem seu veneno, e tão contagiosa era a doença que
quase ninguém ficou imune dela. Além do mais, Deus os cegou e
injetou neles tal depravação, que não podiam falar bem dos maus,
não da maneira dos animais brutos — pois a brutalidade daqueles
que sustentavam a tirania do papa é de uma ordem bem diferente
—, mas, de uma maneira muito pior e mais aversiva. Estes, pois,
são os salários que Deus lhes enviou em sua ira e justo juízo,
porque rejeitaram o santo matrimônio, o qual é um estado nobre e
eminente. Portanto, se possuímos verdadeira firmeza, não nos
deixemos guiar por nossas próprias ideias; consideremos o que
Deus aprova e nos contentemos com isso.
Ora, quando lemos que o servo de Deus deve ser esposo de
uma só mulher, não devemos exigir dele mais do que isso. A
intenção de Paulo não era tornar o matrimônio obrigatório ao
homem nem proibi-lo aos que são designados ministros da Palavra.
Não há sugestão de compulsão. Paulo meramente estabelece o
princípio geral: que cada um olhe para si mesmo e que o homem
solteiro use de sua abstinência para a honra de Deus e assegure-se
de que dê ao serviço de Deus o máximo que puder. O próprio Paulo
se absteve de uma esposa, como nos informa no sétimo capítulo da
primeira carta aos Coríntios [1Co 7.8]. Ele preferia que todos
fizessem o que ele mesmo fez, porém insiste que seu desejo não
era pôr um jugo nas almas, mas que todos fossem inteiramente
livres. O homem que é casado deve passar por este mundo como
se fosse solteiro, e o solteiro não olhe de viés para os outros. Seria
preferível que um homem fosse imoral do que vituperar o
matrimônio porque ele mesmo não tinha esposa. Ser-lhe-ia
preferível sepultar a si mesmo em um bordel do que desprezar o
matrimônio, abstendo-se dele e rejeitando um estado que Deus
santificara.
Mais que a imposição de uma lei que requer o casamento,
Paulo deseja apenas se assegurar de que os que são designados a
pregar a Palavra de Deus não sejam intemperantes ou dissolutos e
que, se houver alguma falha que ao povo comum seja permitida,
que a mesma seja proibida aos pastores da igreja que se destinam
a ser espelhos. Devemos ser cuidadosos para não justificar as
falhas dos pastores sob a alegação de que são toleradas nos
homens ordinários de menos reputação. Os ministros estão sujeitos
a uma disciplina mais estrita do que os indivíduos privados e devem
ser vigiados mais de perto. Sob nenhuma circunstância lhes é
permitida rédea solta.
A seguir somos informados que seus filhos sejam crentes e
não acusados de dissolução, nem sejam insubordinados. Este é um
ponto importante para observar, pois também nas cartas a Timóteo
vemos que Paulo não se confina unicamente aos ministros, mas
requer que suas esposas sejam bem ordenadas, de modo que, se
um homem viveu uma vida honesta e irrepreensível, mas tinha uma
esposa indisciplinada, o erro dela repercutiria sobre ele. Qualquer
que fosse a acusação, as pessoas diriam: “Vejam, aquela mulher
desavergonhada é a esposa do pregador! Seu marido deveria pôr
um freio em toda essa frivolidade e desordem. Ele é o culpado de
todo o problema!”. Pois, no dizer de Paulo, se ele não consegue
governar a própria casa, como poderá governar a casa de Deus
[1Tm 3.5]? Como poderá controlar toda a congregação, homens e
mulheres, jovens e idosos, quando não puder controlar a própria
esposa? Por isso, quando se faz menção de filhos neste texto, o
que se pretende é mostrar que, para um homem ser apto a guiar o
povo de Deus e ser um bom líder da casa de Deus e da igreja, deve
provar a propósito que administra sua própria casa.
Portanto, se um homem revela que não só anda no temor de
Deus e não comete injustiça, mas que Deus é honrado e servido
pelos que estão sob seu cuidado; que ele não permite que sua casa
se transforme em um bordel, um covil de jogadores, uma taverna de
bêbados ou outras coisas assim; que ele não permite que seus
servos, sua esposa ou seus filhos sejam, de alguma forma, levianos,
desordeiros, extravagantes ou fúteis — quando um homem governa
assim sua casa, fica em evidência que é vigilante, zeloso para com
Deus e em si mesmo sábio e sóbrio. Esse é um teste seguro que
demonstra que ele é apto para liderar a igreja de Deus.
Ao requerer que os filhos sejam crentes, não dissolutos nem
rebeldes, Paulo fala de três qualidades essenciais. Primeiro, os
filhos devem ser crentes. Se um homem decidiu pregar a Palavra de
Deus e não tem instruído sua família, e se seus filhos, quando
indagados não podem dar sequer uma razão para sua fé, como
pode ele conduzir à fé os de fora, quando ele mesmo não conduziu
os seus? Esse é o ponto de partida. Se virmos que ele tem instruído
bem seus servos e tem se comportado com propriedade em sua
própria casa, então podemos concluir que fará ainda melhor quando
for posto em posição mais elevada, e que se devotará a edificar
todo o povo. Aqui, pois, a fé deve vir em primeiro lugar.
Ao mesmo tempo, contudo, sua família não deve ser
publicamente acusada de indisciplina. No dizer de Paulo, seus
membros não devem parecer dissolutos. Não é uma questão de
algum processo legal na presença de um juiz, com acusadores
enfileirados contra eles. A intenção de Paulo é que não haja uma
indisciplina óbvia ou erros claros nos filhos dos pregadores.
Suponhamos que ele dissesse: “Ora, pois, quem ousa censurar
meus filhos? Qualquer um que tente culpá-los de injustiça terá que
me responder!”. Se um homem alega ser zeloso para consigo e
honra seus filhos, porém os deixa livres a um mau comportamento,
de modo que se torna um motivo de riso, tal homem pode ser
escusado? No entanto, há muitos que pensam que já fizeram tudo
quando há em sua casa conversação que causa dano. “Se alguém
me atacar”, retrucam, “esse tal pagará por isso! Eu o enfrentarei e
lhe mostrarei de que barro sou feito!” Nesse ínterim, as pessoas
ridicularizam a ele, a toda sua casa e a sua esposa. Acaso esse tal
não merece ser um marido tapeado? Um homem pode não querer
que seus filhos sejam difamados, contudo permite que sejam
irresponsáveis. Eles zombam das reprovações que recebem;
desafiam a Deus; neles só se vê o mal. Todavia, não se deixarão
advertir do perigo que os ameaça; sabem que estão a um passo da
destruição, porém não podem suportar deixar seu caminho. Visto,
porém, que são doentes que não querem ser curados; visto que
recusam todo o remédio que lhe é oferecido, deixe-se que pereçam
como pobres criaturas que são.
E assim, quando Paulo demanda que os filhos dos ministros
sejam isentos da acusação de indisciplina, ele quer dizer que não se
encontre neles nenhuma perversidade; que se comportem
honestamente; não deem motivo de ofensa nem apresentem
escusas quando alguém os injuriar e os difamar. Esse é o segundo
ponto.
Em terceiro lugar, não devem ser rebeldes; isto é, o ministro
que proclama a Palavra e que governa a igreja de Deus deve prover
que seus filhos não sejam intemperantes, obstinados ou duros de
manejar como bestas selvagens. Se não tiver bom êxito com seus
filhos, como poderá ter bom êxito com os que não são relacionados
com ele? Se ele não pode controlar a insolência de uma criancinha,
o que fará com uma congregação inteira? Esse, pois, é o que Paulo
queria dizer.
Note-se, contudo, que, embora esteja falando dos que haverão
de ser escolhidos pastores, este ensino é relevante a todos nós.
Paulo não está propriamente falando a pastores sobre o que devem
ser, mas está descrevendo as qualidades da pessoa escolhida para
tal ofício. O homem, diz ele, que é tão perverso que não pode
governar sua própria casa, esse mesmo não pode suportar uma
carga muito mais pesada e mais difícil. Quando vem a questão da
escolha de ministros, devemos ir muito além disso. Qualquer
homem escolhido para ensinar a Palavra de Deus, mas que se
comporta mal, tanto ele quanto toda a sua casa, perde o direito à
sua herança. Ele deve ser afastado; sua ofensa não deve ser
tolerada. Assim como cada um deve olhar para si mesmo, também
aquele que mantiver o ofício público atente bem para o conselho de
Paulo, de modo que saibamos quais pessoas podem ser escolhidas
e que obedecem a regra aqui estabelecida. Roguemos de Deus a
graça de viver de tal modo que sua Palavra não seja exposta ao
ridículo por nossa causa e que nossas falhas não deem ao perverso
motivo de blasfemar o nome de Deus, dizendo: “Esse homem é um
blasfemo e malfeitor. Que belo bispo ele representa!”. Que tal
censura não saia dos lábios do perverso sem que seja
envergonhado e se revele sua perversidade quando disser tais
coisas. Portanto, Paulo nos ensina que tipo de cristãos devemos
ser.
É verdade que os ministros da Palavra de Deus devem
assumir a liderança, mas os demais devem seguir, cada um
segundo sua vocação. E quando, em sua bondade, Deus permitir
que um homem se case, que seu desejo seja de tal modo adstrito e
jungido à sua esposa, que não seja assaltado pela luxúria ou seu
coração seja tentado em qualquer lugar. Que ele siga em frente,
sabendo que se casou em nome de Deus e que deve ser fiel à sua
esposa, visto que ela lhe foi dividida com ele por Deus. Por isso
todos os cristãos, ainda que cidadãos privados, devem viver de tal
modo que se contente com sua esposa, vivendo com integridade
sem porfia. E aqueles a quem Deus honrou com filhos saibam que
têm um dever ainda maior de dar assistência à instrução de seus
filhos. Ora, se desejam que seus filhos recebam um ensino sólido,
então que comecem sempre com o exercício da fé.
É possível que os filhos aparentem possuir todas as virtudes
do mundo, mas nada serão a menos que sejam tementes e honrem
a Deus. Por exemplo, existem muitos pais que exercem grande
cuidado para que seus filhos sejam bem-educados nas atividades
mundanas. Eles os munem com numerosos tutores, mas apenas
com o fim de ensinar-lhes maneiras atraentes e duas ou três
palavras em latim de modo que possam exibir-se à mesa,
conversem polidamente e pareçam bons aos olhos do mundo. No
entanto, não se fala sequer uma palavra sobre o conhecimento de
Deus. Esse não é o caminho a seguir; agir assim equivale a pôr a
carroça adiante do cavalo. Portanto, devemos seguir o exemplo de
Paulo de primeiramente instruir nossos filhos na fé. Uma vez que
passem a conhecer a Deus, um firme fundamento terá sido lançado
sobre o qual construir; sem este, só haverá ruína e confusão.
Quando nos esforçarmos a ensinar nossos filhos a fé em Deus e o
puro conhecimento de sua verdade, que sua vida dê testemunho
disso. Que eles sejam íntegros, sem indisciplina ou falta de controle;
que sejam de tal modo disciplinados que se mantenham limpos de
glutonaria, embriaguez, jogatina maligna e coisas semelhantes; que
neles não haja velhacaria, fazendo uso de um termo comum. Esta,
pois, é a segunda lição que Paulo quer que aprendamos.
Todavia, visto que os jovens constituem um tipo de fera difícil
de domar, Paulo lhes ordena que sejam humildes e tratáveis; pois
se as criancinhas não podem aprender o autocontrole, por mais que
tentemos educá-los, darão coices como potros indomados que
mordem e correm desembestadamente de seus donos. Eis por que
Paulo, aqui, situa a humildade como a virtude muitíssimo necessária
para os jovens. Todavia, tão necessária como é, é muito raramente
encontrada. Se visualizarmos os jovens de hoje, como se
comportam? É verdade que os pais às vezes bem merecem ter seus
filhos arrancando seus olhos, porquanto não cuidam em vê-los
criados no temor de Deus. Porventura não é justo que sejam pagos
com moeda semelhante? É deplorável que os filhos sejam tão
desobedientes que não possam ser de modo algum domados
quando pequenos, ou ser de alguma forma levados a degustar a
bondade. O que acontecerá, pois, quando forem mais crescidos?
Não digo “quando chegarem a ser homens viris”, mas quando já não
forem crianças, quando forem o que denominamos de adolescentes.
Oh! Gostariam de ser chamados homens e pensam que é um erro
se são chamados de um nome diferente! Deveriam ser mantidos na
escola por mais dez anos e sentir a vara do professor; contudo,
querem ser tidos como adultos! Uma vez e outra lhes tenho dito:
“Acaso são palhaços se denominando de homens? Vocês precisam
é de vara para que se mantenham controlados!”. Se atentassem
para estas advertências, então não haveria necessidade de lágrimas
agora ou da presente exibição de severidade. Não haveria
necessidade de envergonhá-los com punições se fossem mais
sábios e com maior discernimento.
Por isso devemos ser duplamente cuidadosos em seguir o
conselho de Paulo. Que os pais mantenham rédea curta para com
seus filhos; e seus filhos tentem fazer a parte de homens quando
estiverem ainda sujeitos à vara e sejam assim poupados.
Naturalmente, os pais não devem provocar seus filhos ou levá-los a
um mau comportamento em razão de sua excessiva severidade.
Mesmo assim, devem temer que seus filhos, sendo de difícil
controle, não quebrem as peias e se entreguem a toda forma de
perversidade e vão de mal a pior com o fim de ver seu caminho
liberado. Ao mesmo tempo, os jovens saibam que, a menos que
exerçam controle e obedeçam serenamente à liderança de seus
anciãos, haveremos de chorar envergonhados de todas as suas
virtudes. Estas não serão mais que arrogante presunção e lixo sem
valor, e Deus lhes abaterá o orgulho. Que todos nós aprendamos
esta lição como que aprendida do apóstolo nesta passagem.
Oração
Agora curvemo-nos diante da face de nosso bom Deus,
reconhecendo nossas falhas e orando para que ele nos faça de tal
modo senti-las que, do maior ao menor, nos humilhemos e
busquemos refúgio somente em sua mercê. Assim também,
resolvamos retornar para ele e crescer ainda mais em seu temor e
em sua obediência. Invoquemos seu nome para que sua casa seja
purificada de toda corrupção e para que esta não prevaleça entre
nós e cada um seja ajudado a almejar sua salvação. Que todos nós,
em comum acordo, façamos com que esta seja nossa meta comum.
5. QUINTO SERMÃO: A LIDERANÇA NA IGREJA (2) [Tito 1.7-9]
Porque é indispensável que o bispo seja irrepreensível como
despenseiro de Deus, não arrogante, não irascível, não dado ao
vinho, nem violento, nem cobiçoso de torpe ganância; antes,
hospitaleiro, amigo do bem, sóbrio, justo, piedoso, que tenha
domínio de si, apegado à palavra fiel, que é segundo a doutrina, de
modo que tenha poder para exortar pelo reto ensino como para
vencer os que contradizem.
Oração
Agora nos prostremos diante da face de nosso bom Deus,
reconhecendo nossos erros e orando para que ele nos faça senti-las
mais agudamente do que antes; para que aprendamos a odiá-las e,
ao odiá-las, volvamo-nos para ele, oferecendo-nos a ele como
sacrifícios. E, fazendo morrer nossa velha natureza, que ele se
agrade de renovar-nos, de modo que glorifiquemos sempre seu
nome. Nesse ínterim, que ele mostre ser nosso Pai e nos sustente
em todas as nossas imperfeições; até que estas sejam totalmente
removidas de nós.
6. SEXTO SERMÃO: MANTENDO A VERDADE [Tito 1.9-10]
Oração
Agora prostremo-nos diante da face de nosso bom Deus,
reconhecendo nossos erros e orando para que ele nos faça senti-los
mais sensivelmente do que antes. Que todos nós, a um só tempo,
sejamos alimentados e nutridos pelo alimento de sua Palavra e,
visto que todos necessitamos tornar-nos fortes, cada um de nós se
esforce por receber a graça que ele oferece, a fim de que
escapemos dos ataques de todos os que contradizem e que
diariamente se opõem à sua doutrina. Que batalhemos contra nós
mesmos, pois nossa natureza é tal que nos faz insurgir contra Deus,
seu culto e sua justa lei. Sejamos soldados corajosos, para que,
uma vez sendo vitoriosos em todo combate desta vida mortal,
alcancemos a glória celestial que está preparada para nós, a qual
ele tão amorosamente conquistou para nós e onde possamos
desfrutar o fruto de todo o nosso labutar.
7. SÉTIMO SERMÃO: O ADVERSÁRIO DE DENTRO [Tito 1.10-
12]
Porque existem muitos insubordinados, palradores frívolos e
enganadores, especialmente os da circuncisão. É preciso fazê-los
calar, porque andam pervertendo casas inteiras, ensinando o que
não devem, por torpe ganância. Foi mesmo, dentre eles, um seu
profeta, que disse: Cretenses, sempre mentirosos, feras terríveis,
ventre preguiçosos.
Já explicamos previamente por que Paulo diz que nas cidades e no campo de
Creta havia muitas pessoas necessitadas de corretivo. Seu propósito era
advertir Tito, que então vivia na ilha, a que fosse mais vigilante em designar
pessoas que pudessem repreender os que se opunham à verdade de Deus,
que perturbavam a igreja e que para alguns eram motivo de escândalo. Pois
bem, sabemos que temos de ser cuidadosos em remediar as ocupações
segundo demandem o perigo e a necessidade. Daí, quando virmos
malfeitores cuja intenção é derrubar a igreja, devemos estar ainda mais
alertas e zelosos em detê-los. Essa era a intenção de Paulo quando salientou
que muitas dessas pessoas haviam se misturado com os crentes. Não
pertenciam à ralé ordinária, pois assumiam para si o ensino, eram
desobedientes, sendo dados, no dizer de Paulo, à conversação fútil e lucro
desonesto, ensinando coisas que não podem edificar.
Observemos, pois, que, quando vemos a igreja de Deus perturbada por
homens malignos, os pastores devem agir com ainda mais dureza para
manter a boa ordem, e devem estar armados, não com a espada física, mas
com a Palavra de Deus e com sabedoria e energia, a fim de espantar tais
homens. Ao notarmos os indivíduos que inventam apresentar alguma
novidade, façamos nosso melhor para ver que a igreja de Deus seja suprida
com líderes íntegros que podem prevenir que Satanás leve os homens a
tropeçar.
Isso, em suma, é o que esta passagem ensina. Quanto ao resto, Paulo
não se contenta apenas em dizer que isto era justamente o que algumas
pessoas eram: ele distingue principalmente os judeus. Ora, estes eram a nata
da igreja, o primogênito da casa de Deus [Rm 11.16]. Como bem sabemos, os
gentios eram como brotos silvestres que Deus graciosamente escolheu para
enxertar no tronco da raça de Abraão. Daí os judeus serem, desde tempos
imemoriais, os verdadeiros herdeiros da salvação; a herança da vida lhes
pertencia. Mesmo assim, Paulo não hesita em lançar-lhes opróbrios, dizendo
que eram os que mais perturbavam a igreja. Notemos, pois, que não pode
haver dúvida alguma de poupar os que são aptos a causar dano ou injúria.
Devem sofrer desgraça, de modo que todos se acautelem deles assim que
fique evidente que não há outro modo de detê-los.
É verdade que odeiam ver seus erros sendo trazidos à luz, mesmo
quando todos conheçam o tipo de pessoas que são. Contudo, consideremos
se preferimos essas ferramentas de Satanás a todo o corpo da igreja de Deus
e seu povo. Se há perversos que semeiam suas cizânias, quer doutrinas
falsas ou conversação torpe, com vistas a que os crentes se desviem do
caminho reto e se dissimularmos ou pretextarmos não ver, as pessoas
simples serão infectadas; não se tomará nenhuma precaução e muitos
ignorantes se desviarão. Então, a praga se espalhará por toda parte. Mas, se
notarmos tais homens e apontarmos para eles, todos os evitarão e estes
ficarão impossibilitados de causar dano. Era isso que o apóstolo tinha em
mente.
Seguindo seu exemplo, ao virmos pessoas propensas ao mal, as quais
só criam estrago na igreja, se pudermos trazê-las serenamente de volta às
veredas certas, então que tentemos. Se, no entanto, obstinadamente aderem
aos seus maus caminhos, não devemos ser mais sábios que o Espírito Santo.
Que sejam descobertos e expostos; que sua depravação seja exibida para
seu opróbrio, de modo que os homens venham a detestar seu estado e
esquivar-se deles, como já vimos no caso de outros textos. Outros objetam
quando tais passos são tomados para mostrar claramente que nada querem
senão a ruína da igreja. Naturalmente, alegam ser motivados pelo espírito
magnânimo: “Olhe aqui, acaso dessa maneira não estamos denegrindo as
pessoas e envergonhando-as como se realmente quiséssemos destruí-las?”
Mas, nesse ínterim, não estamos levando a pobre igreja de Deus aos lobos,
por assim dizer, e aos ladrões? Todo o rebanho deveria ser disperso, o
sangue de nosso Senhor Jesus Cristo calcado sob a planta dos pés, aquelas
almas perdidas que ele redimiu por grande custo e toda ordem varridas,
enquanto ninguém diz sequer uma palavra e todo olho se fecha? Que
covardia é essa? Então, tanto quanto possível, devemos trazer de volta os
que não estão totalmente carentes de correção, sem envergonhá-los,
especialmente se seus erros são ocultos. No entanto, quando lançarem toda a
prudência aos ventos e ameaçarem a igreja com ruína, então deve ser
empregado um remédio mais eficaz. Devemos expô-los pelo que são e
certificar-nos de que as pessoas os conheçam e se acautelem deles. Não
devem ser poupados, porque aqui é a própria salvação de todo o povo de
Deus que está em jogo. Esse é um ponto.
Mais uma vez, a menção que Paulo faz dos judeus nos lembra que não
devemos permitir que nos influenciem parcialmente, a ponto de dizermos: “A
este homem devemos respeito; e, àquele, tolerância”. Como se tem dito, que
façamos tudo quanto pudermos para reconduzir os irredutíveis; mas, se
soubermos que o mal tende a se espalhar mais, Satanás deve ser detido e
posto em fuga. Por isso, hoje, não nos concentremos nos honrados e nos
privilegiados, a ponto de negligenciar nosso dever. Deveras há homens que
são tão santos, que meramente tocá-los ameaça sua existência; transpiram
complacência, ainda que neles só haja imundícia. Contudo, mesmo supondo
que sejam homens de eminente dignidade, que mais podem reivindicar além
do que foi reivindicado pelos judeus? Acaso podem gabar-se de ser melhores
que qualquer outro? Já dissemos que o evangelho veio dos judeus; que, em
certo sentido, eles eram a raiz santa, o povo santo e escolhido, a igreja de
Deus. Quando os judeus desfrutavam desses privilégios, não podiam dizer
que não deviam ser criticados, mas que, embora o mundo inteiro fosse
desditoso, pelo menos eles tinham o direito a alguma honra?
Não obstante, Paulo considera que eles tinham ainda maior liberdade
para praticar o mal. Como o evangelho veio da Judeia e da raça de Abraão,
pareciam ser anjos, mas tinham maior escopo para causar dano. Não lhes
bastava gabar-se: “Somos o primogênito na casa de Deus” — pois assim
Paulo os denominava. Somos o povo que Deus escolheu para si. “Somos da
linhagem de Abraão que Deus há muito adotou. Foi a nós que Deus se
revelou; e é tão somente por nosso intermédio que vocês possuem a
mensagem da salvação.” Se os judeus pudessem fazer tal reivindicação,
como os ignorantes não se sentiriam intimidados?
Então, quando alguns desfrutam certa medida de honra e havia muito
eram tidos em alta estima, se usam sua influência para fazer dano, ou semear
a discórdia, ou destruir a casa de Deus, temos de resistir-lhes com vigor e
dominá-los, como se deles nos viesse o maior perigo, pois abusam do nome
de Deus para melhor deflagrar guerra contra ele. Então, um homem comum
que é desconhecido e que não possui nenhum recurso para estragar tudo
deve, no entanto, ser detido se for mau, a fim de que sua peçonha não se
espalhe a longa distância. No entanto, um homem proeminente que está
exposto ao público e se gaba de sua reputação será como um homem
possesso e bem armado. Se ele for deixado intocado, o que não fará?
Lembremo-nos, pois, que, quando os homens são honrados por sua
posição social ou por sua reputação consolidada e quando, tendo dado
evidência da fé cristã, se tornam maus e se ajuntam contra Deus, tramando
perversamente suprimir toda a verdade evangélica, os pastores devem
desconsiderar seu povo e deflagrar guerra principalmente contra estes. Pois é
nesses termos que Paulo o expressa. Guiado pelo Espírito de Deus, ele
estabelece uma regra de perseverança para a seguirmos. Além do mais, quando
descreve tais pessoas, notemos que ele não as chama de hereges — um termo
usado em outros lugares acerca daqueles que pervertem totalmente a
mensagem evangélica e espalham o erro e a falsa doutrina. Ele os denomina
palradores [ou, tagarelas], desobedientes e obstinados, homens surdos para
com a razão e a verdade. Assim, ainda que a doutrina de Deus não seja atacada
abertamente, devemos precaver-nos do caso de alguns, de maneira sorrateira e
clandestina, porem tudo de ponta cabeça. Devemos impedi-los de ir longe
demais e não esperar que alguém se revele um inimigo mortal do evangelho. Se
o tal tentar secretamente promover problema, esse de fato é um inimigo; pois
não há inimigos mais mortais do que os traidores e os que, sob o disfarce do
nome de Deus, semeiam divisões na igreja, na tentativa de retardar o que Deus
pretende e, assim, conseguir enlamear a pureza da doutrina, mesmo quando
não introduzam heresias óbvias.
Por exemplo, sabemos que alguns há que não confessam que o que
ensinam é falso. Por mais descarados que sejam, sentem envergonha de
afirmar tais coisas, pois nada se pode lucrar que valha a pena. Assim, esses
demônios não mostram seus chifres imediatamente. Em vez disso, tentam
suscitar antagonismo entre as pessoas, como vezes sem conta tem sucedido.
Queira Deus que sejamos real e completamente purificados de tais
infecciosas imundícias! A seguir eles tentam forjar seu próprio esquema de
introduzir mudanças e novidades, a ponto de serem capazes de lançar tudo
em confusão. Naturalmente, as mudanças não são feitas de imediato, nem
tais pessoas dizem que o que ensinam é em si mesmo falso. Não obstante,
tornam sua inimizade perfeitamente clara. Ora, se nada fizermos e
pretextarmos que tudo está bem, onde tudo isso terminará? Acaso o diabo
não terá vencido? E porventura não seremos culpados de deixar o rebanho
desprotegido, de modo que o que edificamos em nome de Deus seja
destruído? Em consequência, não temos que lutar somente contra os papistas
ou os turcos, os quais rejeitam totalmente nossa doutrina, mas contra os
inimigos em nossa própria casa, os quais, em sua perversidade e insídia, se
empenham em demolir o que foi corretamente estabelecido e enfraquecer o
governo de Deus, de modo que pouco a pouco tudo seca e, finalmente, se
decompõe, infectando toda a pureza da religião. Devemos esquivar-nos de
tais homens com toda firmeza.
Ora, tão longe estamos de manter-nos em guarda, que cada um parece
conscientemente querer sorver o veneno! Se nutríssemos dúvida sobre o
alimento, certamente não o tocaríamos; tal é o amor e a preocupação que
temos por esta vida fugaz. Contudo, quando Deus nos adverte que constitui
veneno nos afastarmos de sua Palavra, em razão do respeito que lhe
devemos e do ardoroso desejo de fazer proficiência dela, não prestamos
atenção. Alguns se contentam em alimentar seus ouvidos com umas poucas e
estúpidas especulações; outros saltam de alegria quando veem interrompida
a obra do ensino; sentem-se felizes vendo os servos de Deus importunados e
exultam publicamente nisso. Eis por que dão aos hereges uma mão
ajudadora, como tão frequentemente tem sido o caso aqui, para não alongar
mais a vista. Em qualquer caso, os crentes devem pôr-se em alerta quanto ao
que Deus diz: se quiserem que suas almas estejam a salvo e em segurança,
precisam estar vigilantes e livres de todo e qualquer falso ensino. Aliás,
quando virem que Satanás se empenha secretamente em torná-los enfadados
da Palavra de Deus quando lhes é pregada, devem estar cientes disto e agir
com propriedade, cada um de sua própria maneira. Porque, como eu disse
previamente, Paulo está se dirigindo não só a Tito, mas a todo o povo.
O apóstolo adiciona ainda que estes homens pervertem casas inteiras.
Já é demais que uma pessoa seja desviada, pois as almas devem ser-nos
preciosas. Nosso Senhor Jesus Cristo as tinha como tão queridas, que deu
sua própria vida para nossa redenção e salvação. Mas quando famílias
inteiras se desviam, e cada membro delas, isso é abominável. E assim vemos
que, se for adicionado à massa um pouco de fermento, imediatamente tudo
azeda. Já notamos que, quando Paulo se referia às graves e pesadas ofensas
dos enganadores, ele os acusou de conversação vazia e especulações fúteis
e de certas tradições que os judeus haviam tomado de sua lei, a qual eles
entendiam erroneamente. Ele diz que isso se dava para que pudessem
enganar mais facilmente. Como, pois, é possível que, ao sermos plenamente
advertidos, não nos ponhamos em guarda? Se vivemos fora do caminho, de
quem é a culpa? Se nosso Senhor permite que Satanás nos engane, de modo
que nos tornemos insensíveis e dados a uma mente réproba, teremos feito
isso por nós mesmos, por razão de nossa displicência e falta de
discernimento, a despeito de Deus, uma vez que fracassamos em fazer uso
do remédio que ele providenciou. Portanto, antecipemos tais perigos, pois o
Santo Espírito nos ensina que muito pouco é necessário para que todas as
famílias se envenenem. Estejamos alerta ao que pode acontecer, pois Paulo
continua explicando a causa que é a raiz de tais coisas — lucro desonesto.
Quando a cupidez nos impele, quando, em suma, pomos nosso coração nos
bens terrenos, não podemos ensinar com pureza. Meramente distinguimos a
verdade e, como os vendedores, falsificamos tudo. Essa é a imagem que
Paulo emprega quando escreve que proclamava o evangelho com pureza
[2Co 2.17]. Ele não era um vendedor dado ao disfarce, mas, ao contrário,
preservava a simplicidade pura da Palavra de Deus.
Daí, todos os que são incumbidos do ensino na igreja devem certificar-
se de que aprendem a servir a Deus com sinceridade. Devem contentar-se
com o que ele lhes dá e voltar suas costas a todo o amor pela riqueza; devem
refletir que são mais que ricos quando tiverem edificado a igreja de Deus. E
quando, inocentes de cupidez e do desejo por riquezas, percebem que o
Senhor faz uso de seu trabalho, então que se alegrem porque o trabalho não
foi em vão, senão que Deus o tornou frutífero. Esse pensamento deve ter
precedência em suas mentes. Pois, quando os homens buscam ajuntar para
si dádivas e subornos, quando um homem demanda favores e outros tomam
posse de todo o mundo, quando isso acontece, então surge um princípio fatal,
pois toda a verdade de Deus é infectada pelo veneno. Isso é o que Paulo
ensina nesta passagem.
No entanto, ele faz soar uma nota mais grave quando diz que toda a
raça no meio da qual Tito se encontra há muito se tornara refratária e imunda.
Ele tem em vista a ilha de Candia, que hoje é chamada Creta. É uma ilha
grande que já contou com cem vilas ou cidades. Não obstante, diz Paulo. que
eram lugares de má reputação, conhecidos pelos modos pecaminosos e
malignos de seu povo. Portanto, Tito tinha de ser muito mais bem armado
com força e constância a fim de abrandar a dureza desses brutos obstinados.
Em consequência, o apóstolo cita um de seus poetas nativos, um homem
célebre como seu próprio profeta, que declarou: Cretenses, sempre
mentirosos, feras terríveis, ventres preguiçosos.[13] Quão inglório é ser
chamado de ociosos, glutões, mentirosos e ventres preguiçosos! E assim lhes
é negado qualquer nome bom. Aqui, Paulo parece se lhes opor como seu
inimigo, pois ele não escreveu a Tito em segredo, mas a fim de ser lido e
publicado, de modo que todos os cretenses pudessem ouvir o que estava
sendo escrito sobre eles. A impressão que Paulo deixa é que tem em mente
abandoná-los.
Mesmo assim, ele era seu pastor; e, embora seus deveres o levassem
a outros vastos lugares, ele tinha também que cuidar desta igreja. Daí
devermos aprender que, embora um homem queira a salvação de seu povo e
tenha amor especial para com eles, o mesmo não pode deixar de apontar-
lhes seus erros. Na verdade, não podemos exibir o amor que temos para com
aqueles que são entregues ao nosso cuidado, exceto se tentarmos corrigir os
erros e males que os mancham. Pois, se não dissermos nada, simplesmente
embalamos os homens a dormir quanto são capazes de fazer. Não pensam
em emendar suas vidas, e tudo o que fizermos, em certo sentido, equivale a
espalhar a praga entre eles. Eis por que eu disse que um bom pastor, por
mais asperamente que invectiva contra seu povo, mesmo assim ele deve
amá-los ainda mais que sua própria vida. Mas, justamente como o dever dos
pregadores é fazer uso da liberdade que Paulo lhes permite, assim os crentes
não devem ter ouvidos tão delicados, que se tornam excessivamente
aborrecidos quando seus erros lhes são apontados. Infelizmente, hoje
chegamos ao ponto em que as pessoas nada toleram. Muitos esperam ser
bajulados; ou, pior, seu modo de pensar o evangelho não foi propriamente
alcançado. Creem que a verdadeira pregação consiste em encobrir sua
imundícia e em entregar-se a ela e comprazer-se nela!
Ora, neste texto temos uma doutrina bem diferente, a qual não pode ser
licitamente alterada. Aqui, respectivamente, os ministros e todo o corpo dos
crentes têm lições a aprender. Quando, de sua parte, os ministros descobrem
erros entre os que lhes foram confiados, não devem escondê-los, e sim pô-los
a descoberto, pois é preferível que envergonhem os que se tornaram tão
adormecidos do que pôr-lhes vendas para que vejam ainda menos. Eles
devem, repito, ser despertados, como quando Paulo diz que os coríntios não
tinham outro pai além dele. Diz ele: “Não vos escrevo estas coisas para vos
envergonhar; pelo contrário, para vos admoestar como a filhos mui amados.
Porque, ainda que tivésseis milhares de preceptores em Cristo, não teríeis,
contudo, muitos pais; pois eu, pelo evangelho, vos gerei em Cristo Jesus”. No
entanto, ele continua: “Para vos admoestar como a filhos mui amados” [1Co
4.14-15]. Seu propósito não era fazê-los publicamente desditosos, mas
envergonhá-los entre si, porque não sabiam o que eram antes. Foram
enganados por sua fútil reputação e ainda haviam se gloriado em cometer
erro. O alvo de Paulo era este: primeiro proibir; então, usar o bisturi como faz
o cirurgião quando há uma ferida que ele deve curar. Ele elimina a carne
pútrida; ou, se há um abscesso, é preciso limpá-lo até o âmago, a fim de
remover tudo o que está infectado e corrompido. Assim se dá com os que
devem cumprir com seu dever para com Deus e para com o povo sob seu
cuidado. Mas é suficiente dizer isso nesse ponto.
Pelo mesmo emblema, é também necessário que os crentes suportem
pacientemente os castigos, por mais sejam ásperos ou severos que sejam.
Devem entender que precisam ser tratados desta maneira, particularmente
quando vedam seus olhos através da negligência, quando não desejam
reformar, mas se tornam piores em sua perversidade; ou quando se tornam
empedernidos e seus pecados são tão entranhados, que nada se pode fazer
por eles. Portanto, os crentes devem aprender que é preciso empregar serras
e outros remédios mais dolorosos como em casos de enfermidade extrema.
Que resmunguem ou protestem contra os que trabalham em favor de sua
salvação. Pois que vantagem há quando somos honrados aos olhos do
mundo, porém amaldiçoados à vista de Deus e seus anjos? E quando à plena
luz do dia os livros forem abertos, nossa perversidade exposta e cada criatura
clamar vingança contra nós? No entanto, é isso que acontecerá aos que
rogam que seus erros permaneçam ocultos e sepultados. Querem que os
homens valorizem seu bom nome, mas em todo tempo aumentam a ira de
Deus contra eles e se tornam ainda mais odiosos aos anjos do paraíso, aos
profetas, apóstolos e a toda criatura, porquanto desafiam a Deus com sua
frenética obstinação. Que lucro há nisso? É mera demência, o que até mesmo
as criancinhas acham absurdo, quando os homens não podem suportar que
seus erros lhes sejam revelados. Pois se o pregador abre sua boca para
dizer: “Este é um pecado que vemos entre nós”, sentem forte calor sob o
colarinho. Alguns rangerão os dentes para ele; alguns tentarão vários
estratagemas para coibir sua liberdade; e outros se rirão dele nas tavernas.
Não obstante, sua depravação é óbvia a todos. Ao redor, vemos
malogros da justiça; favores dados e recebidos; excessos; iniquidade e atos
de desobediência, tais que fariam uma criancinha enrubescer de vergonha.
No entanto, quem ousa pronunciar sequer uma palavra contra estas coisas?
Os homens falam delas em casa, nas lojas, nas ruas e nas praças da cidade;
mas se alguém no púlpito ousar falar sequer uma palavra da verdade, a ira se
irrompe e o gênio se inflama como se tudo estivesse perdido! No entanto, nos
recessos dos lares e nas ruas públicas essas almas sensíveis são julgadas e
condenadas. Bem sabem que é assim, mas não se preocupam; para eles,
não significa nada. Somente quando a Palavra de Deus expõe seus erros é
que se exasperam. Quão prodigioso é que sejamos clarividentes e Deus seja
cego; que os homens falem, mas Deus fique mudo; que os homens ouçam,
mas que Deus seja surdo! No entanto, é justamente assim que acontece.
“Bem, que sabichões são esses pregadores!” Sim, mas pode-se
esperar que sejamos ignorantes do que é óbvio às copeiras e criancinhas?
Não há ninguém, quem quer que seja, que não possa dizer livremente: “Tal e
tal pecado é comum entre nós. Ele é praticado assim e assim”. Em suma,
nada há que impeça alguém de julgar os pecados e vilanias que prevalecem
hoje. Todavia, aqueles cuja tarefa é manter a vigilância não ousam abrir suas
bocas ou dizer alguma coisa! Não obstante, seu dever decreta outra coisa. A
Escritura diz que a Palavra de Deus que proclamam penetra os pensamentos
mais secretos; que é uma afiada espada de dois gumes que traspassa
medula e ossos, respectivamente, e quase põe a descoberto nossa própria
estrutura, revelando o que se oculta no interior [Hb 4.12]. Como Paulo escreve
aos Coríntios, a Palavra traz à luz os pensamentos que antes jaziam ocultos
[1Co 114.25]. De acordo com o versículo de Hebreus já citado, Deus designa
à sua Palavra a tarefa de sondar as profundezas do próprio coração. Se esse
é o poder da Palavra, então imaginamos que os que são ministros dela a nós
não deveriam ser sábios para ver e velar de longe? E não deveriam investigar
cuidadosamente a fim de antecipar o perigo, aplicando todo o remédio que
bem sabem ser necessário?
Outra vez digo, há aqueles que apenas querem que os pastores sejam
surdos, cegos e mudos, enquanto as mulheres e crianças sejam livres para
ouvir, falar e ver. Ora, como seria possível não vermos nada, enquanto tudo
era aberto e manifesto a todos os demais? Aprendamos, pois: se quisermos
ser conhecidos como cristãos, tenhamos uma disposição tranquila e cordial, e
nos contentemos em que nossos erros sejam repreendidos e seja extraído
todo e qualquer abscesso oculto. Não fiquemos satisfeitos meramente com
emplastros; e quando o tumor for doloroso e inflamado, não cessemos de
amar a medicina, sabendo que ela existe para nosso bem. Não resistamos ao
médico quando ele busca restaurar nossa saúde. Esse, em suma, é o teor
deste versículo.
Observemos o método que Paulo segue. Tendo autoridade, com base
na Palavra de Deus, de passar juízo, ele podia exibir ao público os erros dos
quais os cretenses eram culpados. Ele podia tê-los ensinado a lição espiritual
encontrada nos lábios de nosso Senhor Jesus Cristo e convencido o mundo
do pecado, da justiça e do juízo [Jo 16.8]. Ele podia ter dito: “Eu cheguei a ver
quão prontos vocês estão a permanecer na igreja de Deus. Descobri no meio
de vocês infecções que corrompem suas mentes e que não faz de vocês
ovelhas, mas piores que lobos vorazes”. Ele poderia ter dito tudo o que estava
em direito dizer, em conformidade com a autoridade que lhe fora confiada. No
entanto, o que ele faz? Cita um poeta pagão, um estranho! Ele declina usar o
que Deus lhe dera, mas no lugar disso ele declara: “Vocês serão repreendidos
por alguém que é cego; um incrédulo. Deus lhes deu graciosamente a luz de
seu evangelho; e nosso Senhor Jesus Cristo, o Sol da Justiça, governa em
seu meio. No entanto, ele toma um homem ignorante e privado da visão para
subir ao púlpito e condená-los!”.
As palavras de Paulo se destinam claramente a cobrir os cretenses da
máxima vergonha. Nós também devemos recordar que, a menos que
encurvemos nossos pescoços para que recebam a canga de Deus — isto é,
ser convencidos por sua Palavra —, e a menos que permitamos que ele nos
governe espiritualmente através daqueles que foram designados para pregar
sua Palavra, seremos condenados, respectivamente, pelos incrédulos e,
finalmente, pelos demônios do inferno. Eis por que os papistas de hoje são
aptos a caluniar-nos. É verdade que não podemos viver tão retamente além
de censura. De acordo com Paulo, este é o nosso estado atual: “Por honra e
por desonra, por infâmia e boa fama, como enganadores e sendo
verdadeiros” [2Co 6.8]. Deus quer testar-nos neste conflito e ensinar-nos a
olhar para ele. Portanto, os homens bons se veem obrigados a suportar
calúnias, mas, às vezes, o erro é nosso, porque nos recusamos a permitir que
Deus nos julgue. Eis por que os papistas de hoje vomitam contra nós um
abuso tão vil, e isso corretamente, para que encurvemos nossas cabeças e
fechemos nossas bocas em reconhecimento de nossa culpa.
E qual a razão disto ser assim? Gloriamo-nos no evangelho, contudo
queremos um evangelho adulterado e inventado, algo que se dissipe no ar e a
ninguém perturbe. Não queremos que alguém toque nossos pontos
inflamados ou nos castigue e nos envergonhe. É óbvio que não queremos
isso. E assim nosso Senhor se ri duas vezes à nossa custa e nos confunde
duas vezes. Virão os cegos, e ainda que nada vejam e andem às cegas ao
redor, eles nos condenarão; o mudo também falará. Portanto, saibamos que,
se não quisermos que os incrédulos nos condenem, então que sejamos
mansos, longânimos e amantes da instrução, sempre que nosso Senhor nos
convencer através de sua Palavra.
Não obstante, nossos erros são postos diante de nós para que sejamos
levados a declarar-nos culpados e, como costumamos dizer, confessar
francamente nossas dívidas. Por isso, podemos julgar quanta fé pode ser
encontrada naqueles que se queixam: “Como você espera que eu me
aperfeiçoe?”. Tais são os teólogos noviços que imaginam ser inteligentes. Se
algo errado lhes é apontado, sua resposta é: “Olhe, isso não cabe a você
dizer!”. E assim Paulo foi longe demais quando condenou asperamente os
cretenses! Mesmo assim, esta é a regra que nos é ensinada pelo Santo
Espírito por toda a Escritura. No entanto, a prática comum é recusar-se a ser
corrigido. Queremos ser deixados livres para nos refestelarmos no pecado,
sem ninguém a coibir-nos. Esse não é o comportamento de quem deseja ser
tido como cristão. Ouvimos a exortação: “Consolai-vos uns aos outros” [1Ts
5.11]; “E não sejais cúmplices nas obras infrutíferas das trevas, antes, porém,
reprovai-as” [Ef 5.11]. A quem o Espírito Santo está falando nestes dois
textos? A todos os crentes, sem exceção! Pois, embora Deus só designasse a
alguns a tarefa de exortar, advertir e reprovar os que se extraviam, também
manda que todos os indivíduos privados resistam ao mal, de acordo com os
meios e a oportunidade que lhes são dados. Se esse é o caso com os que
não têm deveres públicos, qual dos ministros ele encarregou especificamente
desta responsabilidade?
Infelizmente, aqui em Genebra comumente ocorre que ninguém é
incomodado por tais correções. Há cristãos falsos que sabem menos sobre Deus
e sua Palavra do que os nativos que temos como pertencentes aos Novos
Mundos. Se alguém se aventura a pronunciar uma palavra de reprovação, eles
gritam: “Oh! eu tenho meu próprio juiz regular. Não sou obrigado a dar-lhe
resposta!”. Essa é a resposta que sempre obtemos de todos os que desprezam
a Deus e rejeitam toda disciplina. Certamente tentam por todos os meios achar
uma saída para evitar que sejam levados ao acerto de contas, porém nada
acham que os justifique. E assim vemos que, quando Paulo repreende os
cretenses, lembrando-os das palavras de seu profeta, e quando lhes diz que
Deus põe a descoberto nossos erros e providencia, por assim dizer, sobre nós
um líder a fim de dar curso à nossa salvação, devemos, com toda humildade,
reconhecer nossos pecados e lamentá-los e odiá-los. Nada lucramos com nossa
obstinação, com a dureza de nossos corações e com a fúria como de animais
selvagens. Na longa corrida, devemos confessar-nos derrotados e, se não
pudermos nos submeter, certamente Deus nos quebrantará. Recordemos, pois,
do que esta passagem nos diz.
Visto, porém, que agora não podemos explanar o pleno significado
deste texto, reflitamos que foi mediante um milagre de Deus que o evangelho
chegou a Creta, onde, como esta passagem nos informa, o povo era maligno.
A despeito disso, nosso Senhor os visitou em sua bondade, precisamente
como se sua graça chegasse ao próprio inferno, trazendo à luz de seu
conhecimento o que era vil e depravado. Observemos, pois, que Deus não
olhou para nossa dignidade quando nos chamou primeiramente para
estarmos em sua igreja; mas algumas vezes ele decide exibir sua misericórdia
até mesmo para com os de maior inteligência. Em consequência, quando ele
nos atrai a si, nós que estávamos perdidos, e quando reteve sua mão sobre
nós, sua dignidade merece o mais intenso louvor. Porque, como nada
merecíamos da parte dele, então que toda boca se feche e nada presumamos
de nós mesmos. Se temos o evangelho, isso não se deve à obtenção dele por
nossas virtudes, mas porque a Deus aprouve estender-nos sua bondade. Ele
não pode ser movido por nada, exceto pela livre mercê que exibe chamando a
si os homens, para que conheçam sua vontade.
Aprendamos, pois, com toda humildade, a glorificar nosso Deus e a não
sermos demasiadamente complacentes conosco. Se nosso Senhor nos
escolheu e passou por alto os demais, saibamos que, se quisermos manter
firme esta bênção, então examinemos diariamente nossas vidas e,
reconhecendo que somos malditos e por natureza só podemos provocar a ira
de Deus, condenemo-nos e, assim, antecipemos sua ira. Pois, quando cada
um de nós julga a si mesmo, somos absolvidos diante de Deus. Ele não só
nos purificará de todos os nossos males, mas também, mais e mais, fará com
que sua glória brilhe sobre nós, de modo que o invoquemos como Pai e
confessemos diante do mundo que ele nos adquiriu por intermédio de seu
Filho, a fim de fazer-nos sua herança.
Oração
Agora nos prostremos diante da majestade de nosso bom Deus,
reconhecendo nossos erros e orando para que ele nos faça senti-los mais e
mais, e nos ajude a nos submetermos plenamente, sem orgulho ou ambição,
à disciplina de nosso Senhor Jesus Cristo. Aceitemos não só seu ensino, mas
também suas correções, de modo a não nos deleitarmos no mal que
praticamos, mas, em vez disso, resolvamos fugir dele. E, enquanto isso,
passemos por este mundo com nossos olhos fixos no reino celestial, até que,
sendo reunidos em e vestidos com sua justiça, nos seja permitido partilhar da
glória que ele já preparou para nós.
8. OITAVO SERMÃO: SADIOS NA FÉ [Tito 1.12-15]
Foi mesmo, dentre eles, um seu profeta, que diz: Cretenses, sempre
mentirosos, feras terríveis, ventres preguiçosos. Tal testemunho é
exato. Portanto, repreende-os severamente, para que sejam sadios
na fé e não se ocupem com fábulas judaicas, nem com
mandamentos de homens desviados da verdade. Todas as coisas
são puras para os puros; todavia, para os impuros e descrentes,
nada é puro. Porque tanto a mente como a consciência deles estão
corrompidas.
Oração
Agora nos prostremos diante da face de nosso bom Deus,
reconhecendo nossos erros e rogando-lhe que nos faça senti-los
mais agudamente do que antes; a fim de que lutemos mais e mais
contra nossas más inclinações; e que nos desviemos deste mundo
para anelarmos somente a ele. E, visto que sabemos que dureza e
rebelião há em nosso íntimo, que Deus nos dome e nos domine
para que, através de seu Santo Espírito, ele nos reja e nos governe.
Renunciemos a nossos próprios desejos e rendamo-nos cativos a
ele. Que deixem de exercer domínio sobre nós e sustentem a
obediência que devemos ao nosso Senhor Jesus Cristo, diante de
quem todo joelho deve curvar-se.
12. CARÁTER CRISTÃO (3) [Tito 2.6-13]
Quanto aos moços, de igual modo, exorta-os para que, em todas as
coisas, sejam criteriosos. Torna-te, pessoalmente, padrão de boas
obras. No ensino, mostra integridade, reverência, linguagem sadia e
irrepreensível, para que o adversário seja envergonhado, não tendo
indignidade nenhuma que dizer a nosso respeito. Quanto aos
servos, que sejam, em tudo, obedientes ao seu senhor, dando-lhe
motivo de satisfação; não sejam respondões, não furtem; pelo
contrário, deem prova de toda a fidelidade, a fim de ornarem, em
todas as coisas, a doutrina de Deus, nosso Salvador. Porquanto a
graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens,
educando-nos para que, renegadas a impiedade e as paixões
mundanas, vivamos no presente século, sensata e piedosamente,
aguardando a bendita esperança e a manifestação da glória do
nosso grande Deus e Salvador Cristo Jesus, o qual a si mesmo se
deu por nós, a fim de remir-nos de toda iniquidade e purificar para si
mesmo um povo exclusivamente seu, zeloso de boas obras.
Oração
Agora nos prostremos diante da majestade de nosso bom Deus,
reconhecendo nossos erros e rogando-lhe que no-los faça sentir
ainda mais agudamente. Que ele nos mostre continuamente sua
misericórdia até que ele nos conduza ao seu reino; e, ao guiar-nos,
mais e mais mortifique nossos desejos pecaminosos, para que
sejam lançados para longe de nós.
13. GRAÇA E GLÓRIA [Tito 2.11-14]
Porquanto a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os
homens, educando-os para que, renegadas a impiedade e as
paixões mundanas, vivamos, no presente século, sensata, justa e
piedosamente, aguardando a bendita esperança e a manifestação
da glória do nosso grande Deus e Salvador Cristo Jesus, o qual a si
mesmo se deu por nós, a fim de remir-nos de toda iniquidade e
purificar, para si mesmo, um povo exclusivamente seu, zeloso de
boas obras.
Oração
Agora, prostremo-nos diante da face de nosso bom Deus,
reconhecendo nossos erros e rogando-lhe que no-los faça sentir
mais intensamente; e, ao senti-los, de tal modo os odiemos que nos
acheguemos a ele ainda mais e cresçamos em seu temor.
Aprendamos a livrar-nos deste mundo e dos muitos embaraços que
impedem nossa obediência. Fixemos sempre nossos olhos em
Jesus Cristo, sabendo que, quando ele se manifestou uma vez para
se oferecer em sacrifício, assim também virá com todos os
benefícios de sua morte e paixão, tomando-nos para si e
confirmando a salvação que nos é revelada nele, para que ela se
cumpra em nós, que somos membros de seu corpo.
14. O MANDATO DO PREGADOR [Tito 2.15-3.2]
Dize estas coisas; exorta e repreende também com toda a
autoridade. Ninguém te despreze. Lembra-lhes que se sujeitem aos
que governam, às autoridades; sejam obedientes, estejam prontos
para toda boa obra, não difamem a ninguém; nem sejam
altercadores, mas cordatos, dando provas de toda cortesia, para
com todos os homens.
Oração
Agora nos prostremos diante da face de nosso bom Deus,
reconhecendo nossos erros e rogando a ele que nos faça senti-los
ainda mais sensivelmente. Que ele, que se agrada em governar em
nosso meio, nos ajude a crescer a cada dia em todas as graças de
seu Santo Espírito. Que mostremos que somos o povo adquirido por
ele e que não foi em vão que nos reuniu a si; mas que, como ele
nos atraiu a si, também estejamos dispostos a ir a ele. E que nossas
vidas revelem que desejamos doar-nos totalmente ao seu serviço,
abandonando o mundo e anelando pela vida celestial à qual somos
diariamente chamados pela pregação de seu evangelho.
15. DEUS É QUEM SALVA [Tito 3.3-5]
Pois nós também, outrora, éramos néscios, desobedientes,
desgarrados, escravos de toda a sorte de paixões e prazeres,
vivendo em malícia e inveja, odiosos e odiando-nos uns aos outros.
Quando, porém, se manifestou a benignidade de Deus, nosso
Salvador, e o seu amor para com todos, não por obras de justiça
praticadas por nós, mas segundo a sua misericórdia, ele nos salvou
mediante o lavar regenerador e renovador do Espírito Santo.
Oração
Agora prostremo-nos diante da majestade de nosso bom Deus,
reconhecendo nossos erros e pedindo-lhe que nos faça senti-los,
para que cada um de nós aprenda a odiá-los. Que nós não só os
condenemos com nossos lábios, mas arrependamo-nos de nossa
malícia enquanto vivermos. Vejamos que a bênção de Deus não é
uma recompensa por nossa justiça, ou algo adquirido por nossos
próprios esforços. É-nos dada de sua livre graça, a fim de que lhe
rendamos graças e nos devotemos a ele mais e mais, rogando-lhe
que continue sua obra em nós até que ela esteja completada. No
ínterim, que todos nós, de comum acordo, de tal maneira vivamos
que não mais erremos e nos extraviemos como míseros incrédulos,
mas andemos como filhos da luz e por nossas ações confirmemos a
mesma coisa.
16. NOVA VIDA EM CRISTO [Tito 3.4-7]
Quando, porém, se manifestou a benignidade de Deus, nosso
Salvador, e o seu amor para com todos, não por obras de justiça
praticadas por nós, mas segundo sua misericórdia, ele nos salvou
mediante o lavar regenerador e renovador do Espírito Santo, que ele
derramou sobre nós ricamente, por meio de Jesus Cristo, nosso
Salvador, a fim de que, justificados por graça, nos tornemos seus
herdeiros, segundo a esperança da vida eterna.
Oração
Agora prostremo-nos diante da face de nosso bom Deus,
reconhecendo nossos erros e rogando que ele nos faça senti-los
intensamente. Que diariamente ele corrija os males e erros em
nosso íntimo, de modo que nos esforcemos unicamente por
obedecer aos seus santos mandamentos e tiremos deles mais e
mais proveito, até que nos desvencilhemos de todos os nossos
pecados e imperfeições e nos revistamos de sua justiça.
17. PROVEITOSAMENTE OCUPADOS [Tt 3.8-15]
Fiel é esta palavra, e quero que, no tocante a estas coisas, faças
afirmação, confiadamente, para que os que têm crido em Deus
sejam solícitos na prática de boas obras. Estas coisas são
excelentes e proveitosas aos homens. Evita discussões insensatas,
genealogias, contendas e debates sobre a lei; porque não têm
utilidade e são fúteis. Evita o homem faccioso, depois de admoestá-
lo primeira e segunda vez, pois sabes que tal pessoa está
pervertida, e vive pecando, e por si mesma está condenada.
Quando te enviar Ártemas ou Tíquico, apressa-te a vir até Nicópolis
ao meu encontro. Estou resolvido a passar o inverno ali. Encaminha
com diligência Zenas, o intérprete da lei, e Apolo, a fim de que não
lhes falte coisa alguma. Agora, quanto aos nossos, que aprendam
também a distinguir-se nas boas obras a favor dos necessitados,
para não se tornarem infrutíferos. Todos os que se acham comigo te
saúdam; saúda quantos nos amam na fé. A graça seja com todos
nós.
ORAÇÃO INTERCESSÓRIA
Onipotente Deus e Pai celestial, tu prometeste ouvir e responder
nossos pedidos que fazemos a ti no nome de teu amado Filho,
Jesus Cristo, nosso Senhor. Somos ensinados por ele e seus
apóstolos a nos reunirmos em seu nome, com a promessa de que
estará entre nós e intercederá por nós diante de ti, para que
recebamos e obtenhamos todas as coisas nas quais concordamos
na terra.
Tu nos instas a orar primeiramente por aqueles a quem
estabeleceste sobre nós, nossos líderes e governantes, e, a seguir,
pelas necessidades de todo o teu povo e de todos os homens em
todos os lugares. Portanto, confiando em tua santa verdade e em
tua promessa, estando reunidos aqui diante de ti no nome de Jesus,
amavelmente te rogamos, nosso Deus e Pai, em tua infinita mercê,
que perdoes nossas transgressões e que eleves nossos
pensamentos e desejos a ti, para que te invoquemos ardorosamente
segundo tua boa vontade e beneplácito.
Portanto, oramos, ó Pai celestial, por todos os príncipes e senhores,
teus servos a quem confiaste a regra da justiça. Mui
particularmente, oramos pelos governantes desta cidade, para que
os revistas com teu Espírito, o único que é gracioso e soberano, e
diariamente aumentes neles seus dons, para que, reconhecendo teu
Filho Jesus Cristo como Rei dos reis e Senhor dos senhores, com
pleno poder no céu e na terra, busquemos servi-lo e exaltar seu
reinado em todos os seus domínios, e para que, segundo a tua
vontade, guiem e governem seus súditos, os quais são a obra de
tuas mãos e as ovelhas de teu pasto. E para que nós, teu povo, aqui
e em todos os lugares, sendo guardados em paz e tranquilidade,
sirvam a ti em santidade e justiça e, livres do temor de nossos
inimigos, rendamos louvor todos os nossos dias.
Oramos ainda, verdadeiro Pai e Salvador, por todos a quem tens
designado pastores de teu povo, os quais têm o cuidado das almas
e da administração de teu santo evangelho. Guia-os e dirige-os por
teu Santo Espírito, para que sejam achados fiéis e verdadeiros
ministros de tua glória, esforçando-se sempre por conduzir as
ovelhas errantes e teimosas ao Senhor Jesus Cristo, nosso sumo
Pastor e supremo Bispo, para que diariamente prosperem e
cresçam nele em toda a justiça e santidade. Concede, além do
mais, que todas as igrejas sejam libertadas das bocas dos lobos
vorazes e mercenários, os quais seguem seus próprios desígnios e
ambições e os quais não exercem nenhum cuidado pela honra de
teu santo nome e o bem-estar de teu rebanho.
A seguir, oramos, mui gracioso Deus e misericordioso Pai, por todos
os homens em geral. Visto que desejas que todos os homens te
reconheçam como Salvador do mundo, pela redenção conquistada
por nosso Senhor Jesus Cristo, que os que não te conhecem,
vivendo em trevas e cativos da ignorância e erro, possam, pela luz
de teu Santo Espírito e pela pregação de teu Evangelho, ser
conduzidos ao caminho da salvação, que é conhecer-te a ti, o único
Deus verdadeiro, e Jesus Cristo, a quem enviaste. Que aqueles a
quem já visitaste com tua graça e iluminaste pelo conhecimento de
tua Palavra, cresçam em toda bondade, enriquecidos por tua
bênção espiritual, de modo que, juntos, possamos cultuar-te de todo
o coração e voz, rendendo honra e louvor a Cristo, nosso Mestre,
Rei e Legislador.
De igual modo, ó Deus de toda consolação, encomendamos-te
todos a quem visitas e castigas com a cruz e tribulação, pela
pobreza ou prisão, doença ou exílio, ou aflição do corpo e da mente.
Que lhes faças conhecido teu paternal amor e lhes assegures de
que o castigo deles visa à emenda de vida. E que, com coração
disposto se voltem para ti e, uma vez feito isso, recebam teu
conforto, sendo eles libertados de todo estresse.
Finalmente, ó Deus e Pai, concede também que nós, que ora
estamos reunidos aqui no nome de Jesus para ouvir a tua Palavra,
possamos, sem dissimulação ou hipocrisia, reconhecer que, por
natureza, estamos perdidos; que merecemos tua punição e que
diariamente acumulamos condenação sobre nós por nossas vidas
miseráveis e indisciplinadas. Ajuda-nos a ver que em nós nada há
de bom e que carne e sangue jamais podem herdar o teu Reino.
Que alegremente e com sólida confiança nos submetamos ao nosso
Senhor Jesus Cristo, nosso único Salvador e Redentor. E que ele de
tal modo viva em nós que nosso velho Adão, sendo entregue à
morte, se erga para uma vida nova e melhor, para o louvor e glória
de teu nome.
[1] Jerome D. Quinn, The Letter to Titus (Nova York: Doubleday, 1990), p. 13-14.
[2] Detalhes bibliográficos são dados por Rodolphe Peter e Jean-François Gilmont,
Bibliotheca calviniana, 3 vols. (Genebra: Droz, 1991-2000), I, p. 274-77, 342-44.
[3] Peter e Gilmont, Bibliotheca calviniana, II, p. 857-61. Em adição aos dezessete sermões
em Tito, o volume somou cinquenta e quatro sermões em 1 Timóteo e trinta em 2 Timóteo.
Sobre a data, preservação e transmissão dos sermões de Calvino, veja T. H. L. Parker,
Calvin’s Preaching [A pregação de Calvino] (Edinburgh, T. & T. Clark, 1992), p. 65-75, 163-
68.
[4] Calvini opera quae supersunt omnia, ed. G. Baum, E. Cunitz e E. Reuss, 59 vols.
(Brunswick e Berlin: C. A. C. Schwetschke & Son, 1863-1900), 54:373-596. Ali citado como
CO.
[5] Aqui e em outros lugares, Calvino usa o termo prestre para designar tanto sacerdotes
da Igreja Católico Romana quanto o ofício neotestamentário de “presbítero”, do qual deriva
tanto o prêtre francês como o priest inglês. Mais comumente, o Reformador traduz
“presbítero” como ancien (ancião), enquanto seu termo preferido para um ministro da
Palavra e do Sacramento é pasteur (pastor). A palavra evesque (bispo), para a qual o
pregador já havia chamado a atenção, semelhantemente, deriva do grego episkopos, e
designa a função de supervisor mencionado em Atos 20.28. Ver-se-á que em seus
sermões em Tito Calvino fala de presbíteros como aqueles que detêm um ofício
pedagógico na igreja. A distinção entre anciãos que ensinam e governam, que aparece
pela primeira vez nas Institutas de 1543 e é repetido no comentário sobre 1 Timóteo, não
se encontra aqui. Cf. Comentário de 1 Timóteo 5.17; Institutas IV.4.1, IV II.1,6.
[6] Uma referência à doutrina católico-romana da Missa como um sacrifício, na qual o corpo
e o sangue de Cristo são reapresentados a Deus como uma oferenda pelo pecado em
favor dos fiéis, quer vivos, quer mortos.
[7] O “mísero herege” de Calvino era o sábio espanhol Miguel Serveto; antes do ano de
1531, atacou vigorosamente a doutrina da Trindade e que mais tarde renovou sua crítica
em seu livro Christianismi restitutio de 1553. Preso pela Inquisição por heresia e
aprisionado na França, em abril daquele ano escapou, mas foi apreendido quatro meses
depois em Genebra. Ali, foi julgado, condenado e enviado à estaca em outubro de 1553. O
caso Serveto foi usado pelos membros do chamado partido Libertino, cuja influência em
Genebra chegou então ao seu auge, com o intuito de abalar Calvino e frustrar suas
tentativas de reforçar uma disciplina mais estrita tanto na igreja como na cidade. Não foi
até maio de 1555, três meses antes de o Reformador começar a pregar sobre Tito, que os
Libertinos se viram forçados a reconhecer a derrota. Além do mais, os ecos da controvérsia
com Serveto se encontram nos Sermões 7, 13 e 17.
[8] O sacramento da Ceia do Senhor era celebrado em Genebra, não semanalmente como
Calvino teria preferido (Institutas IV.17.43,46), mas trimestralmente, na Páscoa,
Pentecostes, no primeiro domingo de setembro e no domingo mais próximo ao Natal. De
antemão, tinha de ser feita a nota da celebração, como aqui, no domingo anterior. Cf.
Sermão 5 (datado de setembro de 1555).
[9] Os candidatos ao sacerdócio católico-romano são ungidos com óleo durante o rito de
ordenação, simbolizando a unção do Espírito Santo. Daí a referência a “sacerdotes
besuntados”. Cf. crítica de Calvino a tal prática nas Institutas IV.19.30-31.
[10] Veja o sermão vigésimo segundo em 1 Timóteo 3.1-4 (CO 53: 268-70).
[11] O Interino de Augsburg era um documento preparado sob a instigação do Santo
Imperador Romano, Carlos V, com vistas a assegurar o estabelecimento provisório entre as
confissões beligerantes em seus territórios germânicos. Aprovado em junho de 1548 pela
Dieta de Augsburg, o Interino concedeu aos protestantes o princípio do matrimônio clerical
e a comunhão em ambas as espécies (pão e vinho); mas, em contrapartida, mantiveram as
crenças e práticas tradicionais. Ele teve um efeito profundamente decisivo na opinião
protestante na Alemanha. Melanchthon, sucessor de Lutero, deu seu assentimento
limitado; outros, como Bucer, em Estrasburgo, recusaram-se a obedecer e escolheram o
exílio voluntário. Calvino sujeitou o documento à crítica em sua obra de 1549: O verdadeiro
método de reformar a Igreja, em que ele acusou os autores do Interino de “deixar-nos uma
metade de Cristo; de modo que não há nenhuma parte de seu ensino que não seja
obscurecida ou manchada por alguma nódoa de falsidade” (CO 7:591-92).
[12] “Nariz de cera” era uma imagem desprezível empregada pelos apologistas católico-
romanos com o intuito de atacar várias leituras protestantes da Escritura, sendo o texto
sagrado vergado ou modelado para adequar-se aos preconceitos dos expositores
teológicos. Seu argumento era que somente o magistério oficial da igreja podia apresentar
uma interpretação unificada e autorizada da Palavra escrita de Deus. A imagem, que
parece ser de origem medieval, é frequentemente citada por Calvino a fim de demonstrar a
atitude arbitrária de Roma para com a Escritura.
[13] De um poema escrito em louvor a Zeus, por Epimênides de Cnossos (VII a.C.). A
mesma estrofe contém a linha citada por Paulo em seu discurso diante do Areópago [At
17.28]: “Nele vivemos, nos movemos e existimos”.
[14] O grego de Tito 2.3 traz hieroprepeis, “conveniente com o que é sagrado”; “reverente”
(ESV).
[15] Cf. Institutas III.10.4, onde são citados dois provérbios com este propósito. Um,
atribuído a Cato, o Velho (“Cuidar exageradamente do vestuário equivale a cuidar pouco
demais da virtude”); aparece numa forma ligeiramente diferente em Ammianus Marcellinus,
Book of Deeds [Livro dos Feitos], XVI.5.2.
[16] Veja o sermão 41 em 1 Timóteo 5.11-15 (CO 53: 494-96).
[17] Existem várias formas do provérbio. Cf. Ovídio (Art of Love [A arte de amar], I.751):
“Aquele que ama não precisa temer o inimigo; fuja dos que você tem por amigos, então
você estará a salvo”. Cícero (On Friendship [Da amizade], XXIV.90) atribui a Catão um dito
que Erasmo também registra em seu Adages [Adágios] (IV.3.76): “Alguns homens são mais
bem servidos por inimigos amargos do que por seus amigos de língua açucarada”.
[18] Cf. Institutas, IV.20.4: “O fato de que são chamados deuses todos os que exercem a
função de magistrados [Êx 22.8; Sl 82.1, 6] é o título de não menos importância,
significando que eles têm um mandato de Deus, recebem dele sua autoridade e
representam plenamente sua pessoa, sendo em certo sentido seus substitutos”.
[19] Aqui, Calvino faz uso um tanto livre do provérbio citado por Paulo em 1 Coríntios 15.33
(“As más conversações corrompem os bons costumes”). Em geral, o dito é remontado a
uma comédia perdida de Menandro, Thais.
[20] Veja, acima, o terceiro sermão em Tito 1.4.
[21] Veja o décimo terceiro sermão em Tito 2.3-5 (CO 53:147-54).
[22] Diferentemente da referência anterior a Serveto (Sermão 3, nota 3), esta é
inusitadamente detalhada. A despeito da aparente ortodoxia de certa fórmula empregada
por ele, Serveto recusou-se a reconhecer Jesus Cristo como o Filho eterno, preexistente,
igual em essência e dignidade ao Pai. Defendia que ele era humano e tornou-se divino pela
ação da Palavra eterna que, infundida no homem Jesus, elevou-o à divindade e vestiu-o
com carne celestial. O credo antitrinitário de Serveto, aliado ao molde geralmente panteísta
de seu pensamento, foi suficiente para condená-lo aos olhos de todos, com exceção dos
mais liberais de seus contemporâneos. Calvino refutou publicamente o conceito de Serveto
em seu tratado de 1554, Defense of Orthodox Belief in the Holy Trinity [Defesa da fé
ortodoxa na Santa Trindade] (CO 8: 433-644), e o fez novamente na última edição de suas
Institutas (II.14.5-8).
[23] Calvino está pensando no uso, em Colossenses 1.19 e 2.9, do verbo katoikein,
“habitar, assumir residência”.
[24] A afirmação católico-romana definitiva sobre o livre-arbítrio foi promulgada pelo
Concílio de Trento em seu decreto sobre a justificação (janeiro de 1547). O Concílio
determinou que o livre-arbítrio, embora enfraquecido e diminuído em seus poderes pelo
pecado de Adão, não se extinguiu e que, quando suscitado por Deus, era capaz de
cooperar com a ação de Deus “a fim de preparar-se para a obtenção da graça da
justificação”.
[25] A noção de que a vontade humana não regenerada é capaz, em algum grau, de
aspirar ao bem era um artigo de fé entre os escolásticos medievais e seus sucessores do
século dezesseis. Veja a longa crítica de Calvino nas Institutas II.2.27.
[26] Como mostram as observações de Calvino que levam em conta o uso da água e como
ele deixa claro mais adiante em seu sermão, o batismo em si não efetua a regeneração e a
renovação. Ele é um “sinal” da promessa de Deus de purificação através do Espírito Santo
e da nova vida em Cristo. Como todas as promessas de Deus, ele é apropriado pela fé, a
qual é em si mesma um dom de Deus. Cf. Institutas IV.15.1-2,14-15.
[27] O Reformador alude mais uma vez aos seus oponentes libertinos que, ao longo do
julgamento e detenção de Serveto (agosto-outubro de 1553), pareceram, por razões
pessoais, ser simpáticos ao prisioneiro. Aos olhos de Calvino, sua simpatia era equivalente
a conluio.