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SERMÕES SOBRE TITO

João Calvino

Tradução
Valter Graciano Martins
Copyright © 2015 de Robert White
Edição baseada na tradução inglesa publicada
pela The Banner of Truth Trust,
3 Murrayfield Road, Edinburgh EH12 6EL, UK.

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por

E M
SCRN 712/713, Bloco B, Loja 28 — Ed. Francisco Morato
Brasília, DF, Brasil — CEP 70.760-620
www.editoramonergismo.com.br

1ª edição, 2019

Tradução: Valter Graciano Martins


Revisão: Felipe Sabino de Araújo Neto e Fabrício Tavares de Moraes
Capa: Bárbara Lima Vasconcelos
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Calvino, João

Sermões sobre Tito / João Calvino, tradução Valter Graciano Martins — Brasília, DF:
Editora Monergismo, 2019.

Título original: Sermons on Titus

1. Sermões — João Calvino 2. Novo Testamento — Tito 3. Teologia reformada I. Título

CDD 230
Sumário
INTRODUÇÃO
ESBOÇO DA CARTA DE PAULO A TITO
1. PRIMEIRO SERMÃO: SERVO DA PALAVRA DE DEUS [Tito 1.1-4]
2. SEGUNDO SERMÃO: PROMESSA ATUAL E ESPERANÇA FUTURA [Tito 1.1-4]
3. TERCEIRO SERMÃO: A FÉ COMUM [Tito 1.4, 5]
4. QUARTO SERMÃO: LIDERANÇA NA IGREJA (1) [Tito 1.5, 6]
5. QUINTO SERMÃO: A LIDERANÇA NA IGREJA (2) [Tito 1.7-9]
6. SEXTO SERMÃO: MANTENDO A VERDADE [Tito 1.9-10]
7. SÉTIMO SERMÃO: O ADVERSÁRIO DE DENTRO [Tito 1.10-12]
8. OITAVO SERMÃO: SADIOS NA FÉ [Tito 1.12-15]
9. A TIRANIA DA TRADIÇÃO [Tito 1.15, 16]
10. O CARÁTER CRISTÃO (1) [Tito 2.1-3]
11. O CARÁTER CRISTÃO (2) [Tito 2.3-5]
12. CARÁTER CRISTÃO (3) [Tito 2.6-13]
13. GRAÇA E GLÓRIA [Tito 2.11-14]
14. O MANDATO DO PREGADOR [Tito 2.15-3.2]
15. DEUS É QUEM SALVA [Tito 3.3-5]
16. NOVA VIDA EM CRISTO [Tito 3.4-7]
17. PROVEITOSAMENTE OCUPADOS [Tt 3.8-15]
ORAÇÕES ANTES E DEPOIS DO SERMÃO
INTRODUÇÃO
As três cartas que, juntas, constituem as Epístolas Pastorais
de Paulo — 1 e 2 Timóteo e Tito — pertencem ao final da vida do
apóstolo. Diferentemente das outras cartas de Paulo, que são
endereçadas coletivamente a uma igreja cristã, estas são
endereçadas pessoalmente a homens a quem ele considera colegas
íntimos e de plena confiança: Timóteo em Éfeso e Tito em Creta. A
despeito das aparências, as cartas não são um projeto de reforma
nem um manual de governo eclesiástico. As incumbências de Paulo
a Timóteo são específicas: refutar os falsos mestres que se
encontram ativos em Éfeso (1Tm 1.3); manter a sã doutrina e, se
possível, juntar-se ao apóstolo em Roma (2Tm 1.13; 4.9).
Igualmente específica é sua ordem a Tito: completar a obra
começada em Creta, estabelecendo em cada cidade presbíteros
que sejam, a um só tempo, homens íntegros e mestres eficientes,
capazes de coibir a influência de certos oponentes judeus cristãos,
“porque existem muitos insubordinados, palradores frívolos e
enganadores, especialmente os da circuncisão” (Tt 1.5-10).
No que concerne à liderança irrepreensível, ao ensino fiel e ao
bem-estar espiritual dos membros da igreja, a carta a Tito soa uma
nota fortemente ética e evangelística em sua ênfase sobre o viver
íntegro, pelo qual Deus é honrado e os estranhos são atraídos à fé.
A fé que se expressa publicamente em culto a Deus também se
expressa publicamente em obras excelentes, pelas quais se
entendem não simplesmente os bons feitos, mas visível e
atrativamente as boas ações (Tt 2.7, 14; 3.8, 14). A partir dessas
ações os incrédulos podem receber um vislumbre do poder do
evangelho e de sua graça, libertando-os dos maus atos e
capacitando os crentes a viver, “no presente século, sensata, justa e
piedosamente” (Tt 2.12).[1]
Portanto, em seus sermões sobre Tito, Calvino ressalta
consistentemente a centralidade da Palavra revelada de Deus na
vida coletiva da igreja e a necessidade de que cada crente se
conforme ao padrão divino de santidade, integridade e pureza. Uma
vida saudável é, pela obra graciosa do Espírito, tanto a
consequência quanto o acompanhamento do ensino saudável.
Entretanto, a inconsistência de conduta não é fácil de evitar, e o
mundo com razão condenará os cristãos que dizem uma coisa e
fazem outra. Transformação à semelhança de Cristo é uma obra da
vida inteira. Arrolados na escola de Deus, os crentes são instados a
tirar proveito de cada dia, crescendo não só em conhecimento, mas
também em amor, e não somente para proveito próprio, mas para o
benefício de seus semelhantes, aos quais estamos jungidos pelos
laços de humanidade e fraternidade. Desta forma, a igreja é
fortalecida, seu testemunho é confirmado e se dá prova tangível de
que ela é o que alega ser — a comunidade dos redimidos de Deus
sobre a terra.
Dada a importância que Calvino vinculou aos pastores e
presbíteros em seu conceito de ministério, é inevitável que o
pregador insista longamente nas funções e qualidades do prestre-
evesque, o presbítero-supervisor, como delineado por Paulo, e que
ele comentaria de um modo ácido sobre a indiferença de Roma para
com o ensino dos apóstolos. Ecos da cena genebrina
contemporânea podem ser encontrados na sensível defesa que o
Reformador faz da disciplina eclesiástica, em suas advertências
contra os falsos mestres (onde ele tem em mente particularmente
Serveto), e sua defesa em prol da generosa hospitalidade que deve
ser estendida aos refugiados religiosos para os quais Genebra
representava um precioso lugar de asilo.
Um lampejo da compreensão que o próprio Calvino tinha de
seu papel como arauto do evangelho é fornecido por uma série de
passagens sobre “nós”, onde a atenção é dirigida não ao universal
— “nós, humanos”; “nós, cristãos”; “nós, pecadores” — mas ao
particular: “nós, pregadores”; “nós, ministros da Palavra de Deus”.
Acima de tudo, os sermões sobre Tito revelam o coração do pastor
Calvino, o pastor do rebanho de Deus, cujos membros são nutridos
pela Palavra da verdade, feitos um com Cristo pelo poder
regenerador do Espírito, adotados na família de Deus, cuja
promessa da herança celestial não pode falhar. Embora o pregador
recuse-se a aprovar a divisão tradicional entre clérigos e leigos, ele
não é um nivelador. É verdade que, pela graça, todos somos filhos
de Deus e do mesmo rol de membros de Cristo. Cada um de nós é
guarda de nossos irmãos. Todavia, nem Paulo, em sua carta a Tito,
nem Calvino, em seus sermões, falam de um presbiterado ao qual
todos os crentes podem aspirar indiscriminadamente. O padrão de
Deus para a igreja é bem ordenado, onde há os que ensinam e os
que são ensinados, cada um segundo sua vocação. Portanto, os
que ensinam fielmente lideram; e os demais recebem a Palavra, não
passivamente, mas com reverência e ação de graças.
Não obstante, o pastorado não é uma casta privilegiada. O
presbítero não é mais que um administrador na casa de Deus,
conduzindo-a sob o olhar vigilante de seu Senhor no céu, a quem
ele tem de sempre prestar contas. Seu modelo não é o sacerdote
sacrificador ou o prelado monárquico da Igreja Católica Romana, e
sim Cristo, o Servo obediente. Sua liderança é como a de alguém
cuja vida e doutrina são julgadas, respectivamente, pelos homens e
por Deus, e cuja conduta no púlpito e fora dele tem de ser exemplar.
Como mestre, ele mesmo tem de ser ensinado constantemente;
deve confiar em seu próprio juízo sem o auxílio de ninguém, buscar
conselhos mais sábios e atentar para as advertências bem
intencionadas. A presunção, não menos que a cupidez, a ambição e
a imoralidade, lhe constituem em morte.

***

A primeira obra de Calvino sobre as Epístolas Pastorais tomou a


forma de um comentário sobre 1 e 2 Timóteo, publicada em 1548.
Um comentário separado sobre Tito apareceu no início de 1550.[2]
Somente em setembro de 1554 é que o Reformador, no curso de
seus deveres regulares de pregação, em Genebra, começou a expor
a primeira das Epístolas Pastorais, seguida pela segunda em abril de
1555 e pela terceira — Tito — em agosto daquele ano. Ele dedicou
dezessete sermões à última epístola mencionada, pregando
normalmente duas vezes a cada domingo sobre os versículos
consecutivos e concluindo a série em meados de outubro de 1555.[3]
Anotadas taquigraficamente por Denis Raguenier e transcritas
subsequentemente, as três séries de sermões foram publicadas
juntas em um só volume pelo tipógrafo genebrino Conrad Badius em
1561, sob o título Sermons de Iean Calvin sur les deux Epistres S.
Paul à Timothée et sur l’Epistre à Tite.[4] A obra foi habilmente
traduzida para o inglês por Laurence Tomson e impressa em Londres
por G. Bishop e T. Woodcocke em 1579. Uma versão grandemente
abreviada e modernizada da tradução de Tomson foi publicada em
Nova York em 1830, e uma reimpressão fac-similar do volume inteiro
foi publicada por The Banner of Truth Trust em 1983.
A tradução atual dos Sermões sobre a Carta a Tito foi feita
recentemente com base no francês de 1561. É baseada no texto
preparado por G. Baum, E. Cunitz e E. Reuss para sua monumental
edição das obras reunidas de Calvino. No entanto, a leitura foi
totalmente cotejada com a cópia da edição de Badius fornecida pela
Bibliothèque de Genève. Os títulos dos sermões são de minha lavra.
A pontuação foi modernizada e foram introduzidas divisões em
parágrafos onde no original não aparece nenhuma.
Com frequência, o pregador cita a Escritura de memória ou
ainda se contenta em parafraseá-la, nem sempre da mesma forma;
em cada caso, eu traduzi o texto conforme ele o cita. As referências
bíblicas, que aparecem nas margens do texto de Calvino, são
identificadas à medida que ocorrem. Em alguns lugares, elas foram
corrigidas e referências ausentes foram adicionadas. Um pequeno
número de notas explicativas também foram incluídas. Calvino
começava seus sermões com uma oração para iluminação e os
concluía com uma breve oração de improviso, que por sua vez
levava a uma longa oração de intercessão cuja forma, ao menos
para o culto matutino de domingo, era afixada pela liturgia genebrina
de 1542. Eu restaurei a oração de improviso que os editores da CO
omitiram, e incluí tanto a oração por iluminação como a oração
intercessória no final deste volume. Também está incluso o “Esboço
da Carta de Paulo a Tito”, que prefaciou a edição de 1561 e que
Calvino já havia acrescentado a seu Comentário a Tito (1550). Em
deferência às normas da polêmica do século XVI, não tentei
suavizar as farpas dirigidas por Calvino ou à Igreja Católica Romana
— principalmente à sua hierarquia — ou a outros oponentes que,
visando a ridicularizar o Reformador, algumas vezes podiam ser
encontrados na própria Genebra.
É-me um grande prazer expressar minha gratidão aos
curadores de The Banner of Truth por concordarem em publicar este
volume, e minha gratidão ao editor, Jonathan Watson, cujo auxílio,
encorajamento e sábio conselho têm sido, como sempre, de valor
imensurável para mim.

— Robert White
Sydney, julho de 2015
ESBOÇO DA CARTA DE PAULO A TITO
Paulo, tendo apenas lançado os fundamentos de uma igreja em
Creta e se vendo obrigado a mudar-se para outros lugares — não
sendo pastor de uma ilha, mas apóstolo aos gentios —, confiara a
Tito, na qualidade de evangelista, a tarefa de continuar a obra
começada. Pode-se ver facilmente, à luz da carta, que, logo após a
partida de Paulo, Satanás se empenhou não só em subverter o
governo e a ordem da igreja, mas também em corromper seu
ensino. Havia pessoas ambiciosas que buscavam promover-se
como mestres na igreja e ser tidos entre seus pastores. Uma vez
que Tito recusou-se a partilhar de seus propósitos perversos,
promoveram-se contra ele falatórios de um tipo calunioso e
derrogatório entre alguns grupos. Havia também judeus que, com o
pretexto de sustentar a lei de Moisés, praticavam toda sorte de
inconveniência. Essas pessoas encontraram um auditório disposto e
não se fez nenhuma tentativa para dissimular o apoio deles.
Portanto, o alvo de Paulo, ao escrever como o fez, era conferir
a Tito reconhecimento e autoridade para que ele suportasse melhor
um fardo tão pesado do ofício. Pois não há dúvida de que havia
alguns que achassem fácil menosprezá-lo, como se ele não tivesse
mais condição do que qualquer outro ministro ou pastor. É também
possível que aqui e ali se ouvissem queixas de que ele estava
empreendendo demais e assim assumia mais autoridade do que lhe
era próprio; porque ele não devia admitir ninguém como pastor até
que pessoalmente examinasse e testasse o candidato.
E assim podemos inferir que Paulo não escreveu tanto em
razão do próprio Tito, mas por causa das congregações cretenses
em geral. É improvável que em sua carta ele pretendesse reprovar
Tito pela prontidão em promover pessoas que eram indignas de ser
supervisores e pastores; nem desejasse instruí-lo como um
principiante ou alguém totalmente novato para o ofício, com o fim de
mostrar-lhe como deveria instruir seu povo. Visto, porém, que Tito
não era tido na devida estima e respeito, aqui Paulo lhe outorga
autoridade para designar ministros e fazer o que é necessário para
o bom governo da igreja, como ele próprio teria feito se estivesse
presente. Pois, de igual modo, visto que muitos teriam preferido
outro tipo de ensino e estilo de instrução do que aqueles
empregados por Tito, Paulo deixa claro que ele a nenhum aprova
senão estes e rejeita todos os demais e exorta Tito a continuar como
vem fazendo desde o início.
Daí ele discutir antes de tudo que tipo de homens devem ser
escolhidos como ministros. Entre os demais dons que ele requer de
um ministro, Paulo deseja que seja alguém bem versado na sã
doutrina e de tal modo equipado com ela, que repila os adversários.
Nesta conexão, ele menciona um número de falhas entre os
cristãos, mas repreende principalmente os judeus que buscavam
santidade em distinções sobre alimento e em outras questões
externas. Com o intuito de rebater suas tolices, ele descreve as
práticas que realmente constituem a piedade e o viver cristão. Para
corroborar seu ensino, ele dá uma lista detalhada de qual é o dever
de alguém em conformidade com sua vocação. Para que as
pessoas não sejam importunadas por ouvir a mesma coisa repetidas
vezes, ele ordena a Tito de maneira explícita que enfatize este
ponto cuidadosa e constantemente, e explica que este é o alvo da
redenção e da salvação que Cristo já conquistou para nós. Se
algum indivíduo confuso ou obstinado resistir e recusar-se a se
submeter, ele lhe diz que nada tem a ver com o tal.
Vemos, portanto, que o único propósito da carta de Paulo era
defender a causa de Tito e dar-lhe toda assistência enquanto este
estava comprometido com a obra do Senhor.
1. PRIMEIRO SERMÃO: SERVO DA PALAVRA DE DEUS [Tito
1.1-4]
Paulo, servo de Deus e apóstolo de Jesus Cristo, para promover a
fé que é dos eleitos de Deus e o pleno conhecimento da verdade
segundo a piedade, na esperança da vida eterna que o Deus que
não pode mentir prometeu antes dos tempos eternos e, em tempos
devidos, manifestou a sua palavra mediante a pregação que me foi
confiada por mandato de Deus, nosso Salvador, a Tito, verdadeiro
filho, segundo a fé comum, graça e paz, da parte de Deus Pai e de
Cristo Jesus, nosso Salvador.

Não é a primeira vez que tantos homens ímpios, reivindicando


pertencer à congregação cristã, têm se esforçado com o máximo de
seu empenho para subverter a ordem da igreja e obstruir o curso de
tudo o que é bom e santo. Têm feito tudo o que podem para
corromper todas as coisas. Sabemos que uma igreja não pode
manter-se sadia sem pastores bons e fiéis. Deus forneceu uma
norma boa e segura para sua escolha e designação no ofício. Não
obstante, muitos homens têm tentado promover-se através de
ambição e por meios corruptos. Mesmo no período dos apóstolos,
quando o evangelho florescia em toda sua pureza, este mal já
prevalecia, como podemos ver. Por contraste, se andarmos em
obediência a Deus, a verdade na qual somos instruídos terá
autoridade sobre nós, e os que são encarregados dessa tarefa
serão ouvidos com respeito. Pois se os pastores forem
desprezados, a Palavra também será desprezada e calcada sob os
pés.
Ora, é óbvio que já nos dias de Paulo havia muito desafeto e
protesto. Falsos mestres eram prontamente tolerados e bem
recebidos, embora os fardos que impunham fossem pesados e
severos. No entanto, quando os homens que buscavam servir a
Deus lealmente faziam o que lhes era requerido, de imediato
apareciam facções, formavam-se panelas e surgiam conflitos com o
intuito de subvertê-los e assenhorear-se deles. É isso que Paulo
tinha em mente quando escreveu esta epístola. Seu propósito era
castigar os que desejavam prejudicar a ordem e o bom governo da
igreja, que se recusavam a submeter-se ao jugo ou receber
mansamente e com deferência a Palavra que lhes era anunciada.
Além de tudo isso, visto que sempre houve pessoas levianas que
preferiam dar rédeas soltas à sua curiosidade, em vez de edificar
mediante a sã doutrina, Paulo descarta todas as frivolidades
infrutíferas, mostrando que, se mantivermos o ensino que é de
acordo com Deus, devemos depositar nossa confiança nele e
deixar-nos encorajar a invocá-lo com a devida confiança. Além do
mais, para que nossa vida seja devidamente ordenada, temos de
mostrar, por nossas ações, que nossa herança está no céu e que
devemos passar por este mundo sem nos determos nele.
Portanto, essa é a meta de Paulo ao escrever esta carta.
Consideremos, pois, se tais admoestações não se aplicam também
aos nossos próprios tempos e se não nos são muitíssimo
proveitosas. Pois que tipo de pregadores podemos ter hoje se
dermos importância à opinião popular? Quão ardiloso tem sido
Satanás em introduzir homens indignos para trazer desdém e
opróbrio à Palavra de Deus! Há muitos cujo desejo é propor como
pastores e ministros da Palavra indivíduos que ou são de uma vida
dissoluta ou são destituídos de zelo, que amam meramente
tagarelar e que até zombam de Deus. Preferem uma taverna a
qualquer outra coisa!
Por que as pessoas preferem tais coisas? Porque percebem
que tais pregadores são facilmente amordaçados; que o que dizem
pode ser ridicularizado; inclusive podem ser silenciados ou
corrigidos num instante. Aliás, poderiam trabalhar apenas para
receber ordens como asnos e ser intimados à repreensão: “Quem
você pensa ser? Você nem sabe que é afortunado em ocupar a
posição que ocupa. Você não serve nem mesmo para ser guardador
de porcos ou vaqueiro, mas aqui você é um pastor!”.
Portanto, há muitas pessoas malignas que procuram
pregadores que se ajustam ao gosto delas. Vemos isso acontecer
tanto agora como no passado. Quisera Deus tais coisas não fossem
tão comuns! Portanto, mais que qualquer outra coisa, temos de
atentar bem para a advertência de Paulo, de modo a termos
pessoas competentes para ensinar e que cumpram fielmente seu
dever. E quando pregarem como pretendem fazer, que sua vida seja
compatível com sua pregação; que esta confirme a doutrina que
proclamam e deem visível prova dela. Além do mais, hoje vemos
muitos cujos ouvidos são tão delicados que, tão logo um tênue
nervo é tocado, se irritam, se enfurecem e demandam uma
completa mudança quando a pregação não lhes sai ao gosto.
Raramente um em cem está disposto a calmamente obedecer ao
santo ensino. Pensem naqueles que alegam ruidosamente ser
crentes verdadeiros. Se alguém tenta instruí-los, mas não lhes
permite continuar em sua vida pecaminosa, imediatamente se
tornam irritados ou seguem de mal a pior e terminam inclusive
perdendo o gosto e prazer pela verdade de Deus. Outros ficam
embaraçados e desafiam tudo, e se contentam com as coisas que
causam tortura e ruína, contanto que sejam deixados livres para
causar seus danos.
Assim, quando vemos estas coisas, certifiquemo-nos de que o
Espírito Santo já fez justa provisão para tais males e já nos supriu
com um remédio, de modo que cada um de nós obedeça
serenamente e com toda humildade à Palavra de Deus. E quando
virmos entrar em cena agitadores e escarnecedores, com o intuito
de atazanar-nos e atormentar-nos, fujamos deles como de uma
praga e procuremos dar cabo deles. Se quisermos que Deus nos
ajude a reter a posse do tesouro de seu evangelho, de nossa parte
não tomemos partido com os que desejam ver tudo arruinado, o
rebanho de Cristo disperso e a casa de Deus destruída. Por fim,
como hoje o povo de Deus está tão consumido por estúpida
curiosidade como sempre, sejamos cautelosos em evocar o que
aqui Paulo nos ensina: quando lemos a Palavra de Deus e quando
vamos à igreja, que nosso único alvo seja ser instruídos na sã
doutrina — aquela doutrina que promove nossa salvação, de modo
que cresçamos continuamente na fé de nosso Senhor Jesus Cristo,
tendo certeza da salvação que ele conquistou para nós e confiando
na graça que ele já nos comprou. Que sejamos aptos a invocar a
Deus com pureza e sem pretexto e olhemos sempre para a herança
celestial; conheçamos a vontade de Deus, de modo que não
vacilemos nem duvidemos, mas prossigamos em frente, uma vez
que somos aprovados por Deus e uma vez que nos apegamos tão
somente à sua Palavra.
Recordemos, pois, que esta carta nos é tão necessária hoje
como sempre o foi. Passemos agora ao que a carta contém.
Em primeiro lugar, Paulo se autodenomina servo de Deus e
apóstolo de Jesus Cristo. Ora, o termo “servo”, neste texto,
comunica não apenas a ideia de submissão. Naturalmente, todos
nós devemos engajar-nos no serviço de Deus, pois ele já se
agradou de aceitar-nos. Aqui, Paulo enfatiza a natureza especial da
tarefa que lhe foi confiada. E, assim, há diferença entre aquele que
vive em “sujeição” e aquele que é “servo”. Todo povo vive sujeito a
um governo ou à liderança daqueles sob os quais ele vive, os
portadores de um ofício que exercem uma função pública. Assim,
Paulo não era apenas um cristão a serviço de Deus, mas também
era um mestre que tinha uma responsabilidade particular e uma
posição na igreja. Ele descreve tal responsabilidade denominando-
se “apóstolo de Jesus Cristo”. Sabemos que Deus enviou seu Filho
sob a condição de que somente ele exercesse domínio sobre nós.
Ele não vive pessoalmente entre nós, mas escolheu aqueles a quem
ele bem quis para declararem sua Palavra e o representarem em
sua ausência. Isso é explicado mais plenamente no quarto capítulo
de Efésios: “Aquele que desceu é também o mesmo que subiu
acima de todos os céus, para encher todas as coisas. E ele mesmo
concedeu uns para apóstolos, outros para profetas, outros para
evangelistas e outros para pastores e mestres” (Ef 4.10, 11). Ele não
abandonou os seus, mas assim estabeleceu um governo para que
não cesse de governar-nos, embora, no corpo, ele esteja ausente.
Portanto, o propósito de Paulo é claro. Também vemos que ele
não escreveu exclusivamente para um homem, mas para que seu
ensino visasse a todo o povo cristão. Pois havia muitos homens
malignos, como já pontuamos, que rejeitavam a liderança de Tito.
Desse modo, Paulo serve aqui como um tipo de escudo e reforça
com sua própria autoridade aquele que está sendo atacado.
Consequentemente, não foi por causa de Tito que ele reivindica
para si esses títulos honoríficos. Isso teria sido sem sentido. Tito o
conhecia como pai, visto que Paulo tinha boas razões para chamá-
lo “verdadeiro filho”; e Tito também sabia por quem Paulo fora
enviado. Assim, Paulo não tinha necessidade de causar impressão
em alguém que já o tinha em máximo respeito. Visto, porém, que o
povo de Creta não queria ser governado por Tito, Paulo não se lhes
apresenta como uma pessoa avulsa, mas como alguém enviado por
Deus e por nosso Senhor Jesus Cristo.
Entretanto, a fim de dar mais substância às suas palavras,
Paulo acrescenta para promover a fé que é dos eleitos de Deus. E
então explica o que é esta fé: o pleno conhecimento da verdade, o
que não é uma coisa simples, mas segundo a piedade [ou no temor
de Deus]; e é na esperança da vida eterna.
Aqui podemos ver o que o apostolado de Paulo envolve. Não é
uma honra fútil ou algum título etéreo, mas uma solene incumbência
de declarar a Palavra de Deus, a fim de que o povo seja edificado
em toda a bondade, a salvação que nos é prometida seja
proclamada e os crentes sejam levados a participar dela. Em suma,
esse é o significado desta passagem. No entanto, a entenderemos
melhor se aplicarmos este ensino a nós mesmos. Sempre houve
dois extremos no que diz respeito à recepção da Palavra. Ou
aceitamos os que a proclamam ou os rejeitamos. Muitos têm sido
motivados pela ignorância ou, melhor, pela estupidez, de modo que
não podem diferenciar o bem do mal, mas se contentam meramente
em ouvir palavras vagas e afetadas. Deste modo, a plebe cresce
sem cultura, como é o caso hoje no papado. Os que são apóstatas
na igreja e em seu frenesi rejeitam a Palavra de Deus, não obstante
alegam que de boa vontade se submetem à santa mãe igreja, e em
nome da humildade deflagram guerra, à semelhança de bestas
dementes, contra Deus e contra sua Palavra. Todavia, querendo
promover a honra de Deus, se submetem à tirania dos homens!
Ora, qual a razão disso? Carência de sabedoria e de
discernimento. Imaginam ser suficiente ouvir a palavra “igreja”
ecoando em seus ouvidos. Na verdade, eles indagam o que a
Palavra significa e, quando o papa se denomina o vigário de Cristo e
sucessor de Pedro, deveriam inquirir se ele tem razão ou não. Se
ele fosse capaz de provar sua tese, então deveriam ter aceito seu
ensino. Mas sabemos que muitos têm admitido que são enganados.
Esse pobre povo é feliz em ter seus olhos cegos — se deixa
embrulhar e arrastar para cá e para lá ao erro e superstição.
Portanto, é um extremo realmente terrível quando, sob a capa do
nome de Deus, assim os homens se deixam arrebatar pelo mal.
Entretanto, há outro erro que é pior e ainda mais nocivo. É
quando muitos rejeitam todo ensino e todo jugo, e de nada mais
cuidam senão ouvir algo de Deus em qualquer aspecto ou forma.
Temos visto como os pobres papistas estão em perigo de perdição,
porque se acham tão cegos, que prontamente aceitam tudo o que
lhes é dito pelos homens, mas são totalmente ignorantes das coisas
que procedem de Deus. No entanto, como se dá entre nós? Muitos
professam verbalmente em alto e bom som que querem seguir o
evangelho, mas têm pouco interesse em ser instruídos. Não sentem
nenhum remorso por zombar de Deus, desafiando sua majestade e
lançando vitupérios contra sua Palavra e contra os que lha trazem.
Que sentido, pois, tem hoje para muitos a expressão “servo de
Deus”, por mais que a achem bonita? Para eles, é vazia de
significado. Que terrível insolência é esta, segunda a qual aqueles
que desejam ser considerados cristãos e que se envergonhariam de
passar por turcos ou incrédulos se opõem total e abertamente a
Deus e à sua Palavra e não se importam com nada que se lhes diz!
Nós, em contrapartida, devemos refletir e notar, em primeiro
lugar, que para sermos considerados cristãos temos de ter suficiente
humildade para obedecer ao que nos é ensinado e submeter-nos a
esse ensino sem discordância; e quando ouvimos as palavras
“servo de Deus”, devemos entender que o termo não é um chamado
a ser desprezado. Como Paulo já disse, se Deus designa em sua
própria casa pessoas para dirigi-la, não devemos rejeitá-las para
que, ao mesmo tempo, Deus não nos rejeite. É justo que ele nos
reconheça como seus filhos e que nós resistamos a ele e, supondo
que podemos, lhes cuspamos no rosto? Se dizemos que não temos
tal intenção, Deus já disse que deseja ser conhecido através de sua
Palavra, e deseja que demos as boas vindas àqueles a quem ele
escolheu para proclamá-la. Ele os chama de despenseiros de seus
mistérios e administradores de sua casa. Haveríamos de demiti-los
sem nenhuma consideração? Onde, pois, está a honra que
devemos para com nosso Deus? Ele não deseja aparecer numa
forma fantasmagórica aos olhos dos perversos. Ele quer que o
reverenciemos, aceitando sua Palavra, como se expressa através
de seu profeta: “Eu te enviei minha palavra, de modo que ela seja
recebida dos lábios de homens e de mão em mão até o fim do
mundo” [cf. Is 59.21].
Em suma, tomemos cuidado de ouvir o ensino que nos é
oferecido em nome de Deus. Ouçamo-lo com humildade, sabendo
que é Deus quem fala, ainda que pela ação humana e por meio de
homens que são desprezíveis segundo a carne; não deixemos de
inclinar a cerviz e mostrar que realmente somos suas ovelhas, visto
que lhe aprouve ser nosso Pastor. Nada façamos com orgulho e não
sejamos duros de governar. Que tenhamos o espírito de mansidão
de que fala Tiago, quando nos ensina como receber a Palavra de
Deus em verdade [Tg 1.21]. No entanto, é suficiente o que foi dito
sobre este ponto.
É importante que saibamos que, quando outros falam, não
agem por sua própria iniciativa e não apresentam suas próprias
ideias fantasiosas, mas sim o que foi realmente enviado por Deus.
Como podemos saber disso? Basta abrir nossos olhos e ouvidos! E
então? Há muitos que de bom grado escolhem ser cegos, como
fazem os papistas sempre que lhes é dito que examinem a doutrina
que lhes é ensinada. Eles recusam atender, pois se contentam em
brincar com Deus. Com seus rituais, suas tolas cerimônias e toda
escória inútil, acreditam já terem mais do que cumprido seu dever e
fabricam todo tipo de ídolo segundo seu gosto. Assim, ninguém é
realmente enganado a menos que o queira. Portanto, estes
escarnecedores que querem ser deixados inteiramente livres
recusam-se a indagar se o ensino é ou não de Deus.
Invariavelmente, exibem a mesma defesa: “Oh! Não pretendo
contender com Deus. Mas como fico sabendo se o pregador está
falando a Palavra de Deus?”. Então, por que não observam o que
está sendo dito? “Não gosto de fazer isso. Eu posso sentir-me
importunado.” Assim fica claro que todos os que se recusam a
congregar-se com Deus e com seu rebanho se perdem
voluntariamente. É culpa deles que pereçam: são responsáveis pelo
próprio infortúnio.
É verdade que não cessam de apelar para a ignorância. Mas
não podem brincar com Deus sem que sua própria perversidade se
torne óbvia. Em suma, os homens nunca enfrentam desgosto exceto
por sua própria decisão. Pois, reiterando o que eu já disse, a
ignorância sempre envolve certa medida de hipocrisia, indiferença
ou rebelião franca. Alguns afrontam a Deus espontaneamente.
Outros agem hipocritamente e, com a desculpa de dever religioso,
apresentam pequenos rituais, gestos triviais e se aprazem em
devoções. Outros seguem as vaidades deste mundo e assuntos
comerciais; e outros, por interesses urgentes, se veem impedidos de
buscar a Deus, e assim sua displicência aumenta. As advertências
são sem proveito. Todos são indiferentes: o que entra em um ouvido
sai pelo outro. E por que é assim? Porque sua mente está posta em
coisas totalmente diferentes.
Devemos, pois, prestar a máxima atenção a este texto.
Quando ouvimos a Palavra de Deus e somos informados pelo
pregador de que esta não é sua, mas de Deus, e que Jesus Cristo,
que tem domínio e autoridade sobre tudo, o designou para este
santo e inviolável ofício, ouçamos atentamente e inquiramos se aqui
o Filho de Deus está falando a nós, prestemos-lhe aquela
homenagem que bem merece, pois ele mesmo disse: “Beijai o Filho”
[Sl 2.12]. Portanto, sirvamo-lo e honremo-lo, a fim de não
ofendermos a Deus, negando-lhe sua majestade e glória e —
protestemos como pudermos — não sejamos culpados de
sacrilégio.
Nesta passagem, Paulo mostra que todos os que proclamam o
ensino de Cristo são verdadeiros servos de Deus, pois o Pai e o
Filho são um. O Filho é não só da mesma essência que o Pai; ele
está em plena concordância com o Pai que se nos revela na pessoa
de seu Filho. Como o próprio Cristo declara: “Quem crê em mim crê,
não em mim, mas naquele que me enviou” [Jo 12.44]. É como se ele
quisesse dizer que, como um homem mortal, de si mesmo nada
possui. Visto, porém, que ele é aquele que desceu do céu, e visto
que nele reside toda a plenitude da Divindade, se cremos nele,
seremos conduzidos à eterna glória de Deus. Pois é por meio dele
que fomos criados e formados; e é por meio dele que somos
preservados e sustentados. Portanto, é isso que devemos notar
sobre a descrição que Paulo faz de si mesmo como “servo de Deus”
e “apóstolo de Jesus Cristo”.
Entretanto, para sermos aceitos e reconhecidos por Deus,
devemos, antes de tudo, obedecer a seu Filho, a quem ele deu
poder e senhorio sobre nós. Ainda que os turcos protestem
fortemente que é a Deus que eles adoram, contudo fazem para si
um ídolo, porque se separam de Jesus Cristo. “Todo aquele que
nega o Filho, esse não tem o Pai”, como João escreve em sua carta
[1Jo 2.23]. O mesmo é verdade quanto aos judeus e a todos os
pagãos. E, embora os papistas com frequência se gabem de sua fé
em Deus, sua incredulidade é evidente, porque resistem ao
evangelho e não podem adorar o Filho de Deus mediante
obediência ao seu ensino. Visto que se recusam a render-lhe
obediência, podemos denominá-los de incrédulos. Acaso cremos
que Deus nos aceitará como seu povo, contanto que também
rendamos plena obediência a nosso Senhor Jesus Cristo? Quando
ele nos envia seus apóstolos, saibamos que Cristo se fez Rei sobre
nós, de modo que já lhe pertencemos. O cetro pelo qual ele nos
governa é seu evangelho; e os homens que ele designa sobre nós
representam sua pessoa. Uma vez fracassados nesse ponto, não
pensemos que Deus se dispõe a aceitar-nos. De fato, ser-nos-á de
grande custo nos gloriarmos no título “cristão”, contanto que
façamos como Paulo nos ensina aqui e ouçamos o Filho de Deus
quando ele nos fala, mesmo quando seja através dos lábios de
homens mortais.
Reiterando o que eu disse previamente, não devemos esperar
que Cristo desça do céu. Basta que ele levante pessoas que
fielmente nos tragam sua Palavra, os quais de certo modo são
instrumentos de seu Santo Espírito e que recebem dele a Palavra a
fim de no-la ministrar, sem mistura com quaisquer ideias fantasiosas
propriamente suas. E assim, quando nosso Senhor Jesus Cristo nos
outorga sua graça, é justo que aceitemos obediente e mansamente
tudo o que nos é comunicado. Portanto, sejamos bem cientes
dessas coisas.
Agora Paulo adiciona uma afirmação que temos de notar muito
bem. Ele se denomina apóstolo para promover a fé que é dos
eleitos de Deus [ou, apóstolo segundo a fé comum dos eleitos de
Deus]. Ao escrever nesses termos, ele se identifica com todos os
patriarcas e santos pais que viveram desde o princípio do mundo e
com todos os crentes que desde então têm vivido. Portanto, ele
afirma que todos os que não aceitam seu ensino se excluem e se
separam da igreja de Deus. São réprobos, pois, se pertencessem à
companhia dos eleitos, se poriam lado a lado com Paulo, dado que
seu apostolado de modo algum é diferente da fé dos eleitos. Aqui,
Paulo realça um ponto sobre o qual já tocamos: o ofício apostólico
não é uma honra banal, mas é uma incumbência confiada a ele por
Deus, a fim de que a verdade de Deus seja proclamada com pureza.
Neste aspecto, podemos julgar quão longe estamos de aceitar
o papa como cabeça da igreja e quão importante é toda a hierarquia
da qual ele se gaba — isto é, todos os parasitas clericais que se
deixam consumir pela ambição. O papa alega que ele e seus bispos
mitrados são sucessores dos apóstolos. Ora, tal alegação não deve
enganar a nenhum de nós, uma vez que aceitamos o comando de
Deus. Temos um guia seguro e infalível que identifica os verdadeiros
sucessores dos apóstolos, a saber, todos aqueles que nos pregam o
evangelho e que concordam com a fé de todos os eleitos de Deus.
Uma vez que encontremos o papa pregando a verdade mantida
pelos patriarcas e profetas, e também mantida pelos apóstolos, não
haverá mais necessidade de negar-lhe a condição de pastor. Mas
ele se comporta como um ídolo, exerce bárbara tirania e é incapaz
de pronunciar sequer uma palavra na forma de ensino; pois isso
aviltaria sua posição!
Portanto, devemos execrar tal simulação introduzida por
Satanás. Constitui uma corrupção diabólica, que se opõe à
autoridade do Filho de Deus e à ordem que ele estabeleceu em sua
igreja. Acaso se encontrará ali a fé dos eleitos da qual Paulo fala?
Além do mais, sabemos que, para sustentar o poder tirânico que ele
usurpou, o papa não tem interesse em que alguém, de algum modo,
investigue a verdade de Deus. Seu alvo é sepultar a Santa Escritura
e assim exaltar-se acima de todas as criaturas, que os profetas e
apóstolos são como nada em comparação. Assim, quando vemos
com que sacrilégio ele usurpa a Deus de sua majestade, e não
permitirá nada que valide seu ofício; quando, independente de seus
méritos, ele demanda reconhecimento como apóstolo, não nos cabe
dúvida de que isto é uma vil falsificação engendrada pelo diabo com
o fim de destruir todo bom governo na igreja, em franca oposição ao
mandamento de nosso Senhor. Esse é um ponto que temos de reter
na memória.
Quanto ao restante, observe-se que, se soubéssemos com
certeza que alguém está nos falando em nome de Deus,
deveríamos inquirir da fé sustentada pelos santos pais, quer antes
da lei, quer sob os profetas, e igualmente mantida pelos apóstolos.
Se fizermos isso, não podemos errar. É uma fonte de infindável
conforto descobrir que Deus nos absolve mesmo quando o mundo
nos condena; e que ele nos aceita como seus filhos mesmo quando
o mundo nos considera como piores que réprobos. Como isso é
possível? É possível porque Jesus Cristo governa sobre nós e nos
dá as boas-vindas como membros de seu corpo, para que
concordemos com os santos pais e partilhemos com eles da fé
comum. Pois estamos unidos a Cristo por um vínculo que não pode
ser quebrado. Deixemos bem claro, pois, que estamos unidos em
um só corpo com eles, porquanto temos a fé que eles tinham. E é
assim que hoje podemos desafiar e provocar os papistas a despeito
de sua ignorância. Por mais que se gabem de ser verdadeiramente
católicos — pois é assim que se denominam —, estamos certos de
que Deus nos reconhece como seus e os condena. Eis por que
existe entre nós a regra espiritual que o Filho de Deus nos impõe.
Ouvimos sua Palavra de maneira tal que entre a fé dos irmãos de
outrora, entre todos os eleitos de Deus e nós, há plena e
harmoniosa concordância.
Visto ser assim, podemos ter completa certeza. Que o mundo
nos julgue tão severamente como lhe apraza, somos inteiramente
livres para condená-lo. Pois se temos o dever de coibir os anjos
celestiais quando se levantam contra o evangelho de Jesus Cristo, o
que não podemos fazer no caso daquele nauseante amontoado de
esterco que é o papa e seus associados, quando reivindicam aquele
poder que reduz Cristo a nada; quando a fé é calcada sob os pés e
quando presumem ensinar tudo quanto lhes apraza? Eis como
devemos aplicar este texto de Paulo.
Isto deve igualmente prover segurança àqueles a quem Deus
envia para pregar sua Palavra; de modo que, quando se sentirem
inapropriados a proclamar a mensagem do evangelho, eles têm a
palavra de Paulo de que o que ensinamos concorda com a fé de
todos os eleitos de Deus. Isto deveria ser suficiente para repelir
todos os que se levantam contra nós e deve ajudar-nos a confessar
com Paulo: “Porque as armas da nossa milícia não são carnais, e
sim poderosas em Deus, para destruir fortalezas, anulando nós
sofismas e toda altivez que se levante contra o conhecimento de
Deus; e levando cativo todo pensamento à obediência de Cristo; e
estando prontos para punir toda desobediência, uma vez completa a
vossa submissão” [2Co 10.4-6].
É verdade que devemos esforçar-nos sempre por conduzir
alguém à obediência a nosso Senhor Jesus Cristo. Não obstante,
não hesitemos em declarar que todos os que não se unem a nós e
não prestam a devida homenagem a Jesus Cristo são lançados fora
da igreja e banidos do reino de Deus. O que todos eles podem
esperar é a terrível vingança que já foi preparada para eles.
Note-se ainda que todos os cristãos acham neste texto um
pronto suporte quando se veem bafejados por muitas tribulações.
Basta que eles já tenham sido congregados ao rebanho de Cristo e
que partilhem de igual fé com os antigos pais e com todos a quem
Deus escolheu. Que se contentem com isso. Não obstante, para se
compreender quão proveitosa é esta passagem, vemos que Paulo
aqui buscava armar tanto a Tito quanto a todas as pessoas contra
um escândalo que angustia muitos que são fracos. Quando os
ignorantes se deparam com animosidade e oposição entre os assim
chamados cristãos, que se comportam mal e de forma brutal, se
veem grandemente atribulados. Aqui somos informados de que é
suficiente saber que somos associados e unidos com os eleitos de
Deus. Paulo nos adverte a que não nos surpreendamos se houver
na igreja pessoas sediciosas que tentam subverter toda a ordem, se
há hipócritas que semeiam discórdia com o fim de afastar os
ignorantes da pureza do evangelho ou se houver perversos e
licenciosos que atacam violentamente a Deus e guerreiam contra o
reino de nosso Senhor Jesus Cristo.
Por que agem assim? Porque nem todos são eleitos.
Entendamos que, para termos fé e obedecermos ao evangelho de
Cristo, temos de ser membros do rebanho de Cristo; e isso por um
especial dom de Deus. Nosso Senhor declara que os que creem
nele têm de ser-lhe dados pelo Pai como sua herança [Jo 6.65].
Desse modo, ele deixa claro que nossa salvação não é iniciada por
nós. Todavia, esses palhaços, ou, melhor, estas ferramentas de
Satanás, fomentam a intenção de solapar o primeiro fundamento de
nossa fé, a saber, a eterna eleição e predestinação de Deus, e
vivem preparados a censurar tanto a Deus quanto ao seu Santo
Espírito. Paulo, ao contrário (e Cristo igualmente, no versículo já
citado), salienta que a fé não tem seu início causado por nós. É
porque Deus nos escolheu, em razão de sua imutável eleição, e por
causa da imerecida bondade que ele exibiu em adotar-nos como
seus filhos, visto que ele nos deu a Jesus Cristo. Portanto,
acheguemo-nos a ele. Fazemos isso porque fomos enviados a ele
por Deus, seu Pai. Essa é sua maneira de mostrar que ele nos
mantém como sua possessão e herança.
Por isso devemos aprender que, se o evangelho atual não é
recebido sem protesto e disputa; se há muitos adversários francos
na própria casa de Deus — gentalhas misturadas conosco; pessoas
que agem pior que os papistas! —, não desfaleçamos nem trema
nossa fé em face de tais escândalos. Nossa submissão a nosso
Senhor Jesus Cristo não é algo dado a todos. Basta-nos ser
arrolados entre os eleitos de Deus. Ele quis que fosse assim; e visto
que seu beneplácito só é de direito quando chegarmos a um acordo
com ele.
Sumariando, sempre que virmos a arrogância desses
malfeitores que blasfemam de Deus; quando virmos escândalos e
erros que entre nós são ainda piores que entre os papistas; quando
virmos os que resistem todo o são ensino, aceitando somente o que
lhes apelam; quando escarnecem da própria advertência; quando
torcem seus narizes e inclusive erguem seus chifres e desviam a
cabeça de Deus e dos que os ensinam, não nos escandalizemos e
caiamos, mas nos armemos com o que nos é dito aqui.
De qualquer maneira, eles não alienarão dele nenhum dos
eleitos de Deus; ele bem conhece os que são seus, pois eles são
sua própria herança. Portanto, ele os sustentará. No ínterim, nada
sintamos senão aversão pelos capangas do diabo — isto é, pelos
que se opõem abertamente a Deus e à sua verdade — fugindo
deles o quanto pudermos. Permaneçamos solidamente invencíveis
contra todos os que impiamente se levantam contra Deus; e não
importa o que aconteça, andemos sempre na simplicidade do
evangelho. Eis, pois, a razão por que aqui Paulo fala explicitamente
dos eleitos de Deus.
A seguir o apóstolo amplia o que disse anteriormente sobre a
fé, descrevendo-a como o pleno conhecimento da verdade segundo
a piedade, na esperança da vida eterna que o Deus que não pode
mentir prometeu antes dos tempos eternos [ou, o conhecimento da
verdade que é de acordo com o temor de Deus, na esperança da
vida eterna]. Ao denominar a fé “conhecimento da verdade”, antes
de tudo ele revela que a fé não é mera opinião, senão que temos de
saber que ela procede de Deus e concorda com sua vontade. De
sua própria fabricação, os papistas forjaram uma fé a que chamam
de “implícita”, significando que é suficiente que o inculto e o leigo
creiam no que a igreja crê. Nisso não há qualquer vestígio de
conhecimento! E então, que tipo de crença é essa? Um tipo sem
sentido que afirma: “Não tenho ideia de como é Deus; nem uma
gota de entendimento no que diz respeito à sua Palavra. Porém
confio na santa madre igreja. Nada direi contra ela se isso é o que
devo fazer”. Mas, e se supusermos que lhes foi dito que há
centenas de deuses? “Muito bem, se a santa madre igreja pensa
assim, não discuto. Farei a mesma confissão sobre o que ela faz.
Para mim, ela é tudo. Eu sempre me submeto à nossa santa madre
igreja.”
Afirmo que este é o tipo de fé que os papistas têm! É
plenamente justo que os chamemos de incrédulos, mesmo quando
pensam que possuir a fé implícita é perfeitamente correto; e que é
suficiente que um cristão simples creia por procuração. Em
contrapartida, Paulo diz exatamente o contrário, asseverando que a
fé não é estúpida, e sim conhecimento — aliás, conhecimento da
verdade de Deus, pela qual alcançamos a esperança da vida eterna.
Para que sejamos reconhecidos como cristãos, aprendamos, pois, a
abrir nossos olhos e a matricular-nos na escola onde passamos a
ser estudantes daquele que é o Mestre e Instrutor designado por
Deus, seu Pai. Pois, se formos ensinados por Jesus Cristo, de fato
podemos confessar que somos dele, contanto que nós mesmos
aceitemos a instrução que vem dele e é ministrada em seu nome.
Não basta manter uma mera opinião sobre o que os chamados
crentes fazem. Embora eles tenham uma ideia ou outra do
evangelho — ou assim pensem —, não têm certeza sobre isso;
raramente há entre eles alguém capaz de produzir plena convicção
e persuasão. Todavia, nesta passagem, Paulo toma particular
cuidado em distinguir entre fé e incerteza de todo tipo. Não demos
vazão a pensamento fugaz e assim digamos: “Penso que isto é
assim”. Em vez disso, tenhamos certeza, como quando João
escreve: “Amados, agora somos filhos de Deus” [1Jo 3.2; 5.19].
Crer, no que diz respeito ao evangelho, vai bem além do que
comumente entendemos. Dizemos: “Eu creio. Realmente não sei, e
não estou disposto a descobrir”. Entretanto, o verdadeiro crer, como
diz João em outro lugar [Jo 1.12], é aquela sólida e inabalável
convicção pela qual aceitamos tudo o que nos é proclamado no
nome de Deus, como se fôssemos testemunhas de um documento
legal ao qual adicionamos nossa assinatura.
Isto é o que Deus demanda de nós e é assim que o honramos,
confessando que ele é confiável em tudo o que ensina e que sua
Palavra é a inabalável verdade que nunca pode frustrar-nos. É isto o
que ele quer dizer por conhecimento. E quando Paulo fala da
verdade, por nada mais Deus quer que depositemos nossa
confiança em sua Palavra. Por quê? Porque seu ensino não
constitui uma mentira; ele é seu autor. Deus é a fonte primordial da
verdade. Acaso poderia haver algo dúbio sobre o que ele nos diz?
Ele quer que dependamos dele. Por isso devemos possuir aquela
certeza da qual Paulo fala aqui. Devemos ser resolutos, isentos
daquela sorte de pensamento que se verga como caniços ao sabor
do vento. Nunca podemos ser tidos por crentes a menos que
manifestemos adesão total a Deus. Ao descrever a fé como
conhecimento da verdade, Paulo busca omitir tudo quanto procede
dos homens. Pois o que os homens poderiam contribuir para
consigo mesmos? A Escritura reza que eles são mera vaidade [Sl
39.4-6]. Com isso, usam de todo volteio com o intuito de enganar-
nos — isto é, contanto que hajam recebido seu ensino do alto e
possam mostrar que de mão a mão ministrem uma verdade tão
sacra que nada se misture a ela.
A verdade de Deus, quando pregada, deve ser isenta de todas
as adições, de modo que ela permaneça absolutamente pura. É isso
que Paulo quer dizer aqui, especialmente quando ele declara que
esta verdade “é segundo o temor de Deus e na esperança da vida
eterna”. Devemos ser edificados em toda boa obra e aprender a ser
um povo santificado a Deus. Não devemos viver nossas vidas neste
mundo como animais miseráveis, buscando tão somente ser
alimentados e vestidos como se estivéssemos presos a esta vida
transitória. Ao contrário, devemos subir àquela herança que já nos
foi prometida. A intenção de Deus ao enviar-nos seu evangelho foi
atrair-nos do mundo e atar-nos a si, de modo que possamos esperar
com confiança na herança da vida eterna tão amorosamente
adquirida para nós por nosso Senhor Jesus Cristo. Para obtê-la,
andemos com toda pureza no temor de Deus, como Paulo insta
conosco para fazermos. Ao enviar-nos seu evangelho, Deus nada
menos buscou senão nossa salvação, a qual é a suprema felicidade
e a mais perfeita das bênçãos. Portanto, sejamos mui dispostos a
obedecer-lhe e a assumir nosso lugar no rebanho de Cristo, de
modo que ele seja nosso Pastor e nosso Guia.
Oração
Agora, lancemo-nos diante da face de nosso bom Deus,
reconhecendo nossos erros e rogando-lhe que nos faça tão
cônscios deles que, sendo humilhados em nós mesmos, por sua
bondade nos ergamos acima da imundícia deste mundo, acima de
todos os desejos e pecados perversos que ainda reinam em nós.
Sejamos mais e mais conformados à sua justiça e à sua santa
Palavra, e ele se agrade de suster-nos em todas as nossas
fraquezas até que ele as remova totalmente de nós.
2. SEGUNDO SERMÃO: PROMESSA ATUAL E ESPERANÇA
FUTURA [Tito 1.1-4]
Paulo, servo de Deus e apóstolo de Jesus Cristo, para promover a
fé que é dos eleitos de Deus e o pleno conhecimento da verdade
segundo a piedade, na esperança da vida eterna que o Deus que
não pode mentir prometeu antes dos tempos eternos e, em tempos
devidos, manifestou sua palavra mediante a pregação que me foi
confiada por mandato de Deus, nosso Salvador, a Tito, verdadeiro
filho, segundo a fé comum, graça e paz, da parte de Deus Pai e de
Cristo Jesus, nosso Salvador.

Vimos nesta manhã que Paulo descreveu a fé verdadeira como


conhecimento da verdade, advertindo-nos assim de que devemos
ser diligentes alunos na escola de Deus se quisermos ser
reconhecidos como cristãos à sua vista. Ao mesmo tempo, notamos
que o que foi dito sobre a Palavra de Deus constitui-nos um conforto
especial. Pois quando compreendemos que é Deus quem nos tem
falado, somos libertos de todas as dúvidas e apreensões. Nele, a
verdade é certa e infalível, como Paulo nos lembra quando diz que
Deus não pode mentir. Portanto, esta não é uma questão de confiar
nos homens, os quais nos conduziriam a desconfiar de tudo quanto
foi dito. O que procede da boca de Deus é absolutamente
indubitável e deve tranquilizar-nos por completo.
A Escritura nos informa com frequência que a Palavra de Deus
é pura, isenta de toda mácula e superfluidade, sem mistura. Essa é
a razão por que ela é comparada ao ouro e à prata derretidos e
refinados pelo fogo [Sl 12.6; 19.10]. Essa certeza nos é dada para
que possamos dizer que nossa fé não procede dos homens, mas,
antes, tem Deus como seu Autor; e assim somos armados com
confiança, seja qual for a luta que Satanás decida empreender
contra nós. Quanto ao restante, fica claro que, supondo que
tivéssemos todo o conhecimento do mundo, sem o conhecimento de
Deus e de sua Palavra não somos mais que vento.
Não é apenas nesta passagem que o Espírito Santo expressa
a ideia de que a Palavra de Deus é a verdade — verdade límpida e
sem adulteração, como reza o adágio. Portanto, quando Paulo, em
Colossenses, busca exaltar o evangelho, ele escreve: “tendes
conhecido a verdade, isto é, a palavra da vida que está preparada
para vós” [Cl 1.5, 6]. “O Espírito vos guiará a toda a verdade”, diz
nosso Senhor Jesus Cristo [Jo 16.13]. E, quando fala com seu Pai,
ele diz: “Pai celestial, a tua palavra é a verdade” [Jo 17.17].
Aprendamos, pois, que Deus quer de toda maneira firmar-nos
solidamente a ele, para que o honremos como bem merece e
reconheçamos sua autoridade como ele demanda e para que
também vivamos seguros, resolutos, dominados não por opinião
leviana, mas capazes de dizer como foi dito à mulher samaritana:
“Já agora, não é pelo que disseste que nós cremos; mas porque nós
mesmos temos ouvido e sabemos...” [Jo 4.42]. Esta é a lição que
Paulo nos deixa aqui.
A seguir somos informados da natureza desta verdade. O
apóstolo a distingue de qualquer outro ensino que esteja jungido a
esta vida fugaz e às atividades do mundo. Ele escreve que esta
verdade é segundo a piedade [ou, segundo o temor de Deus]. Isto é,
seu propósito é edificar-nos em tal santidade, que Deus seja
glorificado. Trabalhamos em vão em cada ramo do conhecimento
humano; nenhum deles é capaz de guiar-nos a Deus. E assim Paulo
contrasta a fé dos cristãos com tudo o que porventura temos a
chance de ouvir. Não há outra regra para a verdadeira religião
senão aquela que se encontra na Palavra de Deus e que nos vem
dele. Ao mesmo tempo, Paulo adiciona na esperança da vida eterna
ou por causa da esperança da vida eterna. Aqui ele mostra que os
homens nunca se engajam no serviço de Deus, a menos que o
ponham em primeiro lugar e antes de tudo mais. Pois embora
sintamos a mão de Deus sobre nós e tenhamos certo afeto para
com ele, isso é nada e logo passa. Em suma, não há nenhuma raiz
viva de fé ou religião até que sejamos elevados em direção aos
céus, isto é, até que vejamos que Deus não nos fez viver sobre a
terra como os animais brutos, senão que nos adotou como sua
herança e nos conta como seus filhos.
Enquanto não olhamos para o céu, não podemos ter uma
devoção tão verdadeira que nos rendamos a Deus nem podemos ter
em nós um fiapo de fé ou cristianismo. Eis por que hoje, entre todos
os que se denominam cristãos e que reivindicam tal direito, há bem
poucos que portam a verdadeira marca que Paulo aqui assinala
para os filhos de Deus. Pois todos se ocupam com esta presente
vida e de tal maneira se aferram a ela que não nutrem nenhum
anelo pela vida celestial. Uma vez despertados dessa falha comum,
esforcemo-nos grandemente por preservar-nos e lançar de nós as
coisas que nos atam à terra. Usemos a força bruta para quebrar o
que de outro modo não podemos desatar, até que por fim adiramos
a Deus. Só poderemos fazer isso quando tivermos real e
conscientemente concebido a esperança da vida eterna como Paulo
aqui a descreve.
Em particular, isto envolve instrução, cujo alvo deve ser
ensinar-nos que, se nossa vida está agora escondida de nós, nem
por isso devemos amofinar-nos desta realidade. Pois os homens
são sempre limitados em seu entendimento, razão por que não
podem abraçar a promessa da salvação que diariamente lhes é
oferecida. São cegos para o que Deus lhes promete e não podem
imaginar nada além do que veem e o que suas mentes concebem.
Não obstante, quando ouvimos que Deus nos fala, há a
necessidade de todos compreendermos as coisas que ora nos estão
ocultas, embora não possamos apoderar-nos delas com nossos
poderes naturais. Portanto, apoderemo-nos da esperança de que
Paulo fala. E ainda que não tenhamos divisado a herança que nos
aguarda, não cessemos de amá-la com fervente afeto e assim
deixemo-nos de tal modo transportar que as coisas deste mundo se
tornem lixo; já que sabemos que elas nos tolhem os passos no
progresso rumo à salvação que Deus nos oferece e que são
entretenimentos que não só nos seduzem e nos mantêm presos à
terra, mas que tramam arruinar-nos e destruir-nos e infectar-nos
com peçonha mortal à medida que nos deixarmos prender a este
mundo. Eis o que Paulo subentende quando denomina de “servo de
Deus segundo a esperança da vida eterna”.
Da mesma maneira que ele louva os colossenses pelo amor e
afeto que nutrem para com Deus em razão da esperança
depositada para eles no céu [Cl 1.4, 5], ele insta com os crentes a
que sirvam a Deus de todo o coração: esforcem-se por praticar o
bem e lutem contra todo obstáculo, com os olhos firmemente fixados
na herança que lhes está reservada no céu [Cl 1.10-12]. Isso é algo
extra que ele ensina nesta passagem.
Ora, visto que os homens buscam continuamente o que está
junto deles e, quando se mostram ignorantes de algo, são incapazes
de pensar mais longe, Paulo tenta corrigir esta falha, rememorando
a promessa de Deus. Na verdade, o apóstolo diz: “Meus amigos,
ouvir sobre o reino do céu equivale a contemplar algo além de
nosso poder de compreender; é alto demais e infinitamente
profundo. Mesmo assim, aspiremos ainda alcançá-lo, visto que
temos um penhor seguro. Deus mesmo nos fez esta promessa e ele
não pode mentir”. Vemos como todas as coisas daqui de baixo são
mutuamente dependentes; nós, porém, somos separados de todas
as demais criaturas. Nossa fé não seria firme se fosse direcionada
somente para os homens ou para as coisas terrenas. Confiantes de
que Deus fará novas todas as coisas, devemos solidificar a
esperança e persistir nela. Rendamos, pois, a Deus a honra que ele
merece. Ponhamo-lo bem acima das posições humanas, como fez
até mesmo Balaão, o falso profeta, muito embora ele fosse pago
para mentir [2Pe 2.15]. Não obstante, ele se viu compelido a falar a
verdade como um criminoso sob tortura. Diz ele: “Deus não é
homem” [Nm 23.19]. Notemos bem quem fala nestes termos — um
enganador, um malfeitor que de bom grado subverteria a honra de
Deus e a salvação da igreja! Se Balaão fala assim, o que nos
convém fazer? Acaso lançaremos dúvidas sobre as promessas de
Deus feitas a nós, as quais nunca falham e nunca causam
desapontamento?
Assim, atentemos para o que nos é dito aqui e o apliquemos a
ponto de ver que o fundamento de nossa fé é o conhecimento que
Deus mantém à parte dos homens. Nunca se pode atribuir falsidade
àquele que jamais erra e é a verdade eterna. Quando deixamos de
ver a glória prometida e somos tentados a duvidar, devemos ter em
mente que é assim que devemos dizer: “Muito bem, é verdade que
estas coisas se acham além de nosso entendimento, mas devemos
confiar em Deus e tudo se fará claro”. Portanto, confiemos-lhe nosso
tesouro, e ele o manterá a salvo. Eis por que Paulo afirma em 2
Timóteo que Deus é o fiel guardião de nosso tesouro — isto é, de
nossa salvação — e que por isso podemos ousadamente confiar-
nos a ele [2Tm 1.12].
Além disso, aqui Paulo fala da promessa feita por Deus “antes
dos tempos eternos”, e do que nos será revelado no devido tempo.
Há quem tome a palavra “promessa” como referência à eleição
divina de todos os crentes, como na afirmação feita a Timóteo de
que a vida lhes foi dada desde toda a eternidade [2Tm 1.9]. No
entanto, visto que a palavra “promessa” implica uma comunicação
entre Deus e os homens aos quais ele fala, não tenho dúvida de que
“antes dos tempos eternos” significa um penhor feito desde muitas
eras de tempo. Pois sabemos que, desde o princípio do mundo,
Deus testificou que desejava ser o Salvador dos homens e que lhes
enviaria o Redentor. Ele continuou a honrar sua intenção, que é a
razão por que Paulo diz corretamente que agora a salvação nos foi
revelada no evangelho prometido por Deus “antes de todas as eras”.
Esta foi a mesma promessa feita aos pais de outrora, pois quando
Deus os adotou e se manifestou ao pai deles, ele os conservou em
estado de expectação até a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo. Os
profetas sempre visualizaram o tempo do cumprimento, o qual a
Escritura indica como “o fim da lei” [Rm 10.4]. Portanto, as
promessas de Deus persistiram, por assim dizer, vacantes até a
vinda do Redentor; mas elas são muito mais plenamente manifestas
agora que Jesus Cristo já nos foi enviado.
À primeira vista, as palavras de Paulo podem parecer
contraditórias, pois primeiro ele fala de “esperança” e então, por
assim dizer, de coisas postas por Deus diante de nossos próprios
olhos. A contradição é facilmente resolvida se notarmos que três
passos estão envolvidos. O primeiro diz respeito à condição dos
pais que viveram sob a lei. Possuíam evidência da misericórdia e
compaixão de Deus e também esperavam a salvação que lhes fora
prometida. Não obstante, viveram sob sombras, vendo as coisas de
longe, no dizer da Escritura [Hb 11.13], e tendo um véu diante dos
olhos que os impedia de ver o que Deus hoje nos mostrou
plenamente, ao manter a promessa de que Paulo fala. Portanto,
somos instados a colocar nossa salvação sempre e com paciência
nas mãos de Deus. Uma advertência similar é dada pelo apóstolo
em Hebreus: “Não podeis ter fé, a menos que confieis nas
promessas da vida por vir. Pois neste mundo não temos descanso.
O que é esta vida, senão peregrinação que prossegue até a morte?”
[Hb 11.1, 13]. Temos assim as promessas de Deus; mas, até agora,
no dizer de Paulo, vemos obscuramente como num espelho [1 Co
13.12].
Em segundo lugar, vemos que, comparados com os pais que
viveram sob a lei, possuímos a substância e a verdade. Nada
poderia ser mais claro, pois nosso Senhor Jesus Cristo já cumpriu
perfeitamente tudo o que era necessário para nossa salvação.
Vivemos atemorizados, pois, só porque ainda somos pecadores?
Achamos justiça no Filho de Deus. Nossa ignorância nos angustia?
Ele é dado a todos para sabedoria. Somos ainda cativos e escravos
de Satanás? Ele é aquele que nos redime. Somos corruptos e
contaminados? Ele nos santifica. Somos fracos? Ele é o poder de
Deus que nos fortalece. Vemos em nós apenas imundícia? Ele é a
fonte de toda pureza. Nada possuímos em nós senão morte? Ele é
vida e Senhor sobre a morte, porquanto ele já a venceu. Os pais
esperaram estas coisas em esperança; hoje, nos são dadas na
pessoa de nosso Senhor Jesus Cristo. É verdade que ainda não
vemos em nós seu fruto e cumprimento; não obstante, temos muito
mais que os pais jamais tiveram. Assim, o que os pais esperavam,
Deus no-lo revelou; deles se requereu que esperassem pelo que
Deus lhes prometera.
O terceiro passo é a perfeição prometida para o último dia,
quando formos reunidos juntamente com os pais. Então a fé cessará
de existir, pois fé equivale a ver o que não é visto e conhecer o que
ainda não está presente [Hb 11.1]. Portanto, não haverá
necessidade de fé, porque possuiremos o que hoje Deus nos
oferece no evangelho. Assim, o que Deus prometeu antes de todas
as eras e se nos fez conhecido em nosso Senhor Jesus Cristo,
embora ainda não seja visível a nós que somos seus membros, é
deferido para o último dia.
Quando Paulo fala, em particular, do tempo devido e próprio,
faz isso para glorificarmos a Deus em seu conselho secreto,
admitindo que ele dirige todas as coisas segundo a sua vontade e
refreando o protesto arrogante quando deixa de fazê-lo como lhe
apraz. Eis por que Paulo escreve aos gálatas: “Quando chegou a
plenitude do tempo, ele enviou seu Filho” [Gl 4.4]. Ora, qual é o
significado aqui? A curiosidade leva os homens a indagar: “Por que
ele não se manifestou antes? Vemos Adão trazendo ruína a si e à
sua raça. Os homens permaneceram perdidos por tanto tempo que
quase pereceram em sua miséria. Por que Deus conservou os pais
pendentes, por assim dizer? Por que o Redentor não foi enviado
antes, visto que o mal já se proliferava em nosso meio? Por que
Deus não poderia ter provido um remédio mais cedo?”. É assim que
os homens argumentam; mas, ao tomar tais libertinagens, poderiam
ainda perguntar por que o mundo só foi criado seis mil anos atrás e
por que Deus não pensou em fazer isso logo! E então? Quando
adentramos nesse tipo de desordem, corremos o risco de completa
e total ruína. Aprendamos, pois, a ser sóbrios e a não inquirir além
de nossa capacidade. Estejamos certos de que justamente como
Deus escolheu o tempo certo para criar o mundo também conhecia
o tempo apropriado para enviar o evangelho.
Por conseguinte, em Romanos, na segunda carta a Timóteo,
em Coríntios e em Efésios [Rm 14.1-4; 2Tm 2.16, 23; 1 Co 8.2; Ef
5.6], Paulo elabora sucintamente todas as questões frívolas. Ali ele
ressalta que não cabe aos homens julgarem; que seria presumir
demais sobre uma matéria tão elevada como o conselho de Deus.
Deveríamos nos contentar em saber que Deus organizou atividades
desse tipo e que ele conhece o tempo mais oportuno para realizar
sua obra. E, assim, quando ouvimos que o evangelho nos é
pregado, mas que tal graça ainda não fora dada aos pais e aos
profetas de outrora, devemos louvar a Deus por levar-nos a dar um
passo além deles; não porque o mereçamos, mas em razão de sua
infinita bondade. Não busquemos conhecer além de nossa
capacidade, porque, se lançarmos a prudência aos ventos,
inevitavelmente fracassaremos. Tudo o que faríamos seria soçobrar
em nosso abismo e bem longe da praia. Tenhamos aquela singeleza
mental que diz: “Deus tem feito o que bem sabe ser melhor; e sua
vontade é tudo de que precisamos para a sabedoria”. Buscar
conhecer mais é ser culpado de orgulho diabólico. Desonramos a
Deus quando deixamos de confessar que ele tem feito tudo com
maravilhosa sabedoria e justiça. Portanto, devemos ser discretos e
circunspectos.
Havendo estabelecido que o evangelho foi revelado no bom
tempo de Deus e em cumprimento da expectativa dos pais, a seguir
Paulo fala que Deus manifestou sua palavra mediante a pregação
que [lhe] foi confiada. Por “palavra” é bem possível que esteja
implícita uma referência a nosso Senhor Jesus Cristo. Eis como
João a representa em sua carta: “O que era desde o princípio, o que
temos ouvido, o que temos visto, e as nossas mãos apalparam com
respeito ao Verbo da vida (e a vida se manifestou, e nós a temos
visto, e dela damos testemunho, e vo-la anunciamos, a vida eterna,
a qual estava com o Pai e nos foi manifestada) [1Jo 1.1, 2]. Ele diz
que, na pessoa do Filho de Deus, a vida nos foi oferecida, de modo
que ela nos é dada ainda quando seu fruto ainda não seja evidente.
Ora, nesta passagem Paulo relaciona “a palavra” com as promessas
de Deus que nos foram reveladas no devido tempo. Deus nos deu
sua Palavra, à qual devemos apegar-nos como testemunho da vida
que temos. Mas para onde a Palavra de Deus nos guia senão a
Cristo? Pois ele é sua substância, como Paulo declara quando
escreve: “Porque quantas são as promessas de Deus, tantas têm
nele o sim; porquanto também por ele é o amém para a glória de
Deus” [2Co 1.20]. Não possuímos firmeza, a menos que
descansemos em nosso Senhor Jesus Cristo. Não que em si
mesmo Deus seja mutável, pois não há argumento sobre o que
Deus pode fazer. Não devemos buscar vida em algum outro lugar
senão no lugar onde Deus no-la concede. De nenhum outro lugar
podemos derivar plena confiança em sua promessa.
Portanto, Paulo está certo em referir-nos a pessoa de Cristo,
especialmente pela razão disto ser o que nos distingue dos pais que
viveram outrora. Temos o Redentor em quem vemos claramente
tudo o que nos era necessário para nossa salvação. Os pais tinham
os sacrifícios, porém o sangue de um novilho ou cordeiro tinha a
virtude de santificá-los ou de reconciliá-los com Deus? É evidente
que não! Eles tinham suas lavagens, mas tais ritos podiam conferir-
lhes justiça real? Longe disso! Eles tinham um mediador, Moisés,
mas ele era um homem mortal, sujeito como eles a todas as
debilidades, e que tinha que interceder por seus próprios pecados
junto a Deus. Eles possuíam um santuário visível, porém nada podia
conduzi-los a um estado de perfeição.
E assim temos o Filho de Deus em quem toda a bondade está
contida [Cl 1.19; 2.9]. Ele é o nosso Mediador e não tem
necessidade de ser perdoado de pecado, pois ele é puro e
imaculado, e continua em perfeita justiça. Em contrapartida, ele não
é desconhecido de Deus; pois ele saiu dele, não só quando se fez
nosso Redentor, mas porque ele é da mesma essência, sendo
nosso Deus imortal. De modo que na pessoa de Jesus Cristo somos
elevados a um passo acima dos pais de outrora. Sua morte e paixão
constituíram o eterno sacrifício pelo qual todas as nossas
transgressões foram perdoadas e a ira e maldição de Deus foram
removidas. Deus ficou satisfeito com a remissão paga, a saber, em
que o sangue de Cristo foi vertido para nossa purificação. Visto que
tudo isso é nosso, vemos como nos foi revelado na pessoa de Cristo
o que outrora foi garantido aos pais.
Ao mesmo tempo, Paulo refere à sua pregação, a qual não
pode separar-se de Jesus Cristo e sua Palavra. Entre Cristo e o
evangelho há um vínculo inquebrável. Se fôssemos considerar a
mera figura de Cristo, sem referência a seu ensino, nós o
reduziríamos a algo sem sentido, como fazem os papistas que o
transformam em um ídolo. A verdade é que eles estão perenemente
aclamando Cristo como “Filho de Deus” e “nosso Redentor”, mas
revelam ignorância quanto à sua obra e não têm noção de por que
ele veio — e o que é pior, eles nem mesmo têm desejo de saber!
Estão de tal modo emaranhados em suas frívolas fantasias que,
enquanto confessam que Cristo veio, não podem dizer por quê, pois
seu poder só é conhecido através do evangelho que rejeitam e do
qual escarnecem.
É evidente, pois, por que Paulo nos lembra que, sem a
pregação, Jesus Cristo não pode ser-nos de nenhuma ajuda. A
menos que estejamos unidos a ele através do evangelho,
frustramos o plano de Deus e obstruímos o quanto podemos seu
propósito. Carecemos da certeza que Deus dá através de sua
Palavra: se nos aferrarmos a ela, jamais seremos desapontados.
Mas é Jesus Cristo quem provê a garantia mais segura de sua
verdade. Cuidemos, pois, de não separar as duas coisas que Paulo
enfeixou numa só. Consideremos como sagrado o vínculo entre
elas. E assim, sempre que ouvirmos a Palavra de Deus proclamada,
olhemos para nosso Senhor Jesus Cristo; ele é o alvo que
almejamos. Podemos estar certos de que nele temos tudo o que
pertence à esperança de nossa salvação. Quanto ao resto, quando
os homens nos falam de Jesus Cristo, não o pintemos como alguma
sorte de fantasma, como fazem os papistas; mas levemos o
evangelho aonde ele possa ser conhecido, onde aprendemos por
que Deus, seu Pai, no-lo deu, a bênção que ele adquiriu e seu
ministério para nós. Visto que o evangelho nos mostra claramente
estas coisas, seguramente podemos considerá-lo um verdadeiro
espelho no qual contemplamos nosso Deus na imagem de nosso
Senhor Jesus Cristo, como o apóstolo escreve [2Co 4.4].
Paulo adiciona que esta pregação lhe foi confiada, de modo
que pode ser recebida da maneira apropriada. Paulo alega falar com
autoridade, pois, sem isso, o que teria lucrado escrevendo? Ele
deseja que aceitemos suas palavras como que vindas de Deus, não
de um mero homem. Daí ele insistir que não foi por escolha própria
que assumiu a obra da pregação; foi uma tarefa a ele confiada. Ora,
não nos cabe usurpar qualquer ofício na igreja de Deus. Ninguém
deve escolher para si esta honra, no dizer do apóstolo [Hb 5.4].
Jesus Cristo não se precipitou a ela, embora estivesse muito acima
de tudo e tivesse a posse de toda autoridade. Ele não se lançou a
um mero capricho a fim de assumir o ofício; foi por Deus, seu Pai,
designado sacerdote mediante um juramento solene, como lemos
no Salmo: “O S jurou e não se arrependerá: Tu és sacerdote
para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque” [Sl 110.4].
Portanto, Cristo confirma que seu Pai celestial lhe conferiu
autoridade. Se o Dono da casa fala nesses termos, Aquele que é a
cabeça dos anjos, a quem todas as criaturas devem homenagem e
diante de quem dobram seus joelhos, o que cabe a nós que somos
pobres e frágeis vasos de barro, e nada somos? Acaso ousaremos
reivindicar o nome de Deus, a menos que ele nos haja chamado?
Notemos que Paulo não reivindica autoridade a fim de
conquistar a estima dos homens, nem se gloria de que o mundo
pensa bem dele. Diz simplesmente que foi chamado por Deus.
Naturalmente, ele foi especialmente chamado como o foram todos
os apóstolos. Entretanto, agora Deus estabeleceu uma ordem que
ele quer que toda a igreja observe. Assim, os que são chamados de
acordo com Deus e buscam servi-lo podem dizer com Paulo que
lhes foi confiada a tarefa da pregação. Se forem rejeitados, essa é
uma injúria feita a Deus, não às suas pessoas. Mas tudo deve ser
feito com autoridade, pois os falsos mestres podem até mesmo
reivindicar o nome de Deus como sempre fazem. Paulo, contudo,
que declara que a pregação lhe foi confiada, tem sólida e infalível
prova de sua reivindicação. Portanto, seu ensino só podia ser
genuíno.
Paulo não estava falando apenas a seu próprio tempo, mas,
visto que a verdade de Deus é eterna, falava também ao nosso
próprio tempo. Não se deve imaginar que o apóstolo ensinava um
produto do cérebro de alguém; ele era o instrumento do Espírito
Santo; sendo incumbido da pregação, ele cumpriu fielmente sua
tarefa. Ele serviu a Deus, administrando o tesouro do evangelho no
qual temos a certeza da salvação. Por isso, aferremo-nos ao que foi
escrito, confiantes de que nossa fé não depende dos homens.
Paulo conclui o versículo, afirmando: por mandato de Deus,
nosso Salvador. Aqui não se põe dúvida sobre a dignidade pessoal,
embora o apóstolo tivesse razão de vangloriar-se caso fosse essa
sua intenção, como de fato ele faz quando compelido a fazê-lo. “Se
há homens que ousam vangloriar-se”, diz ele, “eu não sou
absolutamente inferior. Se dizem que são da linhagem de Abraão,
porventura também não o sou? Se eles mesmos são ministros,
acaso não sou mestre da lei? Caso se gabem de sua integridade e
maneira de viver, eu vivi de modo irrepreensível durante toda minha
vida. Eu possuía a reputação de santidade antes que me tornasse
cristão. Eu posso reivindicar tudo isso, mas tudo não passa de
esterco e imundícia desde que Jesus me foi dado; pois eu sei que, a
despeito de minha sabedoria e santidade, fui precipitado nas
profundezas do inferno. Agora considero tudo isso como refugo e
perda para conquistar a Cristo” [2Co 11.21-23; Fp 3.4-7]. Em suma,
Paulo era um homem cuja vida estava sempre em perigo, que
abandonou tudo que uma vez lhe foi tão querido a fim de salvar sua
vida e que só pode ser salvo lançando de si tudo o que lhe era
precioso com o fim de se enriquecer com os dons de nosso Senhor
Jesus Cristo. O apóstolo poderia ter se vangloriado de tudo isso,
porém renuncia a tudo para demonstrar que nada portamos que
seja propriamente nosso quando queremos que os homens ouçam o
que recebemos da parte de Deus.
Esse tipo de abordagem é profundamente humilhante. Como
Paulo diz em outro lugar: “E que tens tu que não tenhas recebido?”
[1Co 4.7]. Pois há muitos que falam dos dons de Deus, porém são
saturados de orgulho. Assemelham-se ao fariseu no templo que,
inflado de orgulho e presunção, considerava o outro como indigno
de aproximar-se dele. “Eu te dou graças, Senhor”, diz ele. Agora
podemos imaginá-lo isento de arrogância, mas seu orgulho se
sobressai. Ele espera que Deus o ouça em razão de seus méritos e
boas obras; contudo, ele não conhece a graça de Deus com
sinceridade de coração. Por isso, ele permanece sob a maldição de
Deus, ao passo que o homem a quem ele não se digna a olhar e a
quem descarta como um mísero desgraçado é ouvido por Deus,
como nosso Senhor Jesus Cristo declara [Lc 18.11-14].
Esse era o comportamento de Paulo. E essa é a razão por que
nesta passagem, como em outras, quando fala de sua obra em prol
do evangelho, ele declara que isso se deu por mandato de Deus,
significando que Deus não o escolheu por ser o mais adaptado e
mais capaz, e sim porque isso foi de seu agrado. Aprendamos, pois,
a submeter-nos inteiramente à vontade de Deus, muito mais do que
temos feito até agora. E se nossos próprios sentimentos não nos
permitirem, que este seja o pensamento que nos dirige. Que Deus
seja aquele que nos governa e que esteja no controle. Quando
ocorrer algo para irritar-nos e atribular-nos — algo que deveríamos
antes evitar —, pensemos: “Não é justo pensar desta maneira. Não
é isto que Deus quer”. Esse pensamento repelirá todas as tentações
da carne que porventura poderiam levar-nos a errar.
Quanto à boa ordem que Deus designou para a igreja, não
introduzamos nada de nossa própria invenção, como se
disséssemos: “Penso que esta será uma boa ideia. É isto que eu
quero”. Apenas atente bem para quem está falando: vermes que
rastejam pela terra a levantar bem alto suas cabeças, seres
desprezíveis que saltam para cima e para baixo! Estejamos certos
de que seus ventres estão empanturrados; o que fazem de real
valor? Peste e podridão! Contudo, presumem aceitar ou rejeitar a
igreja como bem lhes apraz e sentar-se em juízo sempre que
desejam.
Não obstante, temos esta advertência de Paulo. Sem dúvida,
ele procurava desafiar os poderosos deste mundo que não querem
obedecer ao ensino de Cristo e ao mandamento de Deus, seu Pai.
Mas ele avança ainda mais a fim de abrandar seus corações,
declarando que Deus é o Salvador, que através do ministério do
evangelho e o ato de comissionar pregadores visavam à nossa
salvação. Portanto, ai de nós se agirmos como bestas selvagens e
levantarmos nossos chifres contra Deus, rejeitando os dons que nos
são oferecidos! O que nós, míseras criaturas, tencionamos lucrar
com isso? Paulo faz mais que evocar a majestade de Deus diante
da qual devemos curvar-nos; ele adiciona a cativante palavra
“Salvador”. Foi isso que Deus se declarou quando ordenou aos
homens que pregassem o evangelho, o qual Paulo descreve no
primeiro capítulo de Romanos como “o poder de Deus para a
salvação de todo o que crê” [Rm 1.16]. O Deus que antes de tudo
enviou seus apóstolos, hoje designa pastores em sua igreja, a fim
de injetar em nós a certeza da salvação. Se formos ingratos e não
lhe rendermos plena obediência, sofreremos uma dupla perda por
havermos recusado a bênção oferecida. Sejamos claros, pois, que
para termos Deus como nosso Salvador temos de arrolar-nos em
sua escola e deixar-nos instruir pelo evangelho, o qual é Jesus
Cristo. E, quando desfrutarmos desta bênção, aceitemo-la como um
tesouro que excede a tudo quanto já possuímos sobre a terra.
Aos gritos, os papistas reivindicam Deus como seu Salvador,
mas o que realmente significa para eles o poder de pregar?
Porventura conhecem o propósito da vinda de Cristo? Porventura
veem o evangelho como o poder de Deus para sua salvação?
Rosnam como animais selvagens e o perseguem furiosamente.
Acaso sabem que, quando abandonam e negam o ensino de Cristo,
cessam de reverenciá-lo? Portanto, se quisermos que Deus nos
reconheça, não nos apartemos de sua vontade, mas aceitemos a
salvação que nos é apresentada no evangelho. Aceitá-lo equivale a
desfrutar da mais seleta consolação, já que sabemos que Deus
completará nossa salvação. Por mais débeis que sejamos e por
mais que tantas misérias nos assaltem, nossa salvação está
assegurada. Como assim? Através da pregação do evangelho
aprendemos que Deus quer ser nosso Salvador — um Salvador que
exerce domínio sobre nós e cujo trono está estabelecido com a
máxima segurança.
Eis a lição que temos de aprender. Não sejamos obcecados
por nossos vãos e fúteis pensamentos, os quais nos iludem e
enganam, mas abracemos a verdade de Deus e confiemos nela,
sem jamais desviar-nos. Olhemos muito acima deste mundo
presente e da vida terrena, e corramos para nosso Senhor Jesus
Cristo, rogando-lhe que derrame sobre nós seus dons a fim de que,
assegurados da bondade de Deus para conosco, sejamos
confiantes em obter o fruto e cumprimento do que hoje nos é
prometido e pelo qual esperamos. Nesse ínterim, glorifiquemos a
Deus que nos tem abençoado mais do que abençoou os pais sob a
lei. Ele nos preferiu a eles ao conceder-nos uma revelação mais
completa de sua vontade e da promessa da salvação. Acheguemo-
nos a ele com um coração mais disposto e amemo-lo com afeição
mais veraz até que nos chame para seu reino celestial. Ali veremos
em sua perfeição as coisas que agora contemplamos pela fé.

Oração
Agora lancemo-nos diante da majestade de nosso bom Deus,
reconhecendo nossos pecados e rogando-lhe que nos faça de tal
modo cônscios deles, que mais e mais nos enfademos deles e nos
entristeçamos por eles, até que realmente nos arrependamos e
sejamos purificados de toda imperfeição. Visto que somos
totalmente corruptos e que em nossa natureza persistem tantas
falhas que o ofendem, que lhe apraza sustentar-nos e tratar-nos
com misericórdia; de modo que, sendo governados por seu Santo
Espírito, não lhe provoquemos a ira como temos feito até então. E
que ele nos perdoe em sua paternal bondade e nos faça aceitáveis
a si; no nome e por amor de nosso Senhor Jesus Cristo.
3. TERCEIRO SERMÃO: A FÉ COMUM [Tito 1.4, 5]

[Paulo] a Tito, verdadeiro filho, segundo a fé comum, graça e paz,


da parte de Deus Pai e de Cristo Jesus, nosso Salvador. Por esta
causa, te deixei em Creta, para que pusesses em ordem as coisas
restantes, bem como, em cada cidade, constituísses presbíteros,
conforme te prescrevi.

Nada mais resta na saudação de Paulo a ser explanado, exceto a


frase Tito, meu verdadeiro filho segundo a fé comum; e a súplica,
para que Deus lhe conceda graça, misericórdia e paz.
É verdade que neste mundo somos proibidos de chamar
alguém de “pai” [Mt 23.9], mas o que está implícito é que não
sejamos tão obcecados com a criatura a ponto de privar Deus de
sua honra, pois todo parentesco tem origem nele e deve referir-se a
ele. Não simplesmente em um sentido espiritual. Sempre e em toda
parte Deus deve ser reconhecido e honrado como um e único Pai.
Por certo que o apóstolo em Hebreus o chama “o Pai de nossas
almas” e o compara a nossos pais “segundo a carne” [Hb 12.9]. Não
obstante, Deus é também nosso Pai em um sentido físico, pois,
embora, em concordância com a natureza, nasçamos de pais
terrenos, foi Deus quem nos formou e fez. Este é um milagre que
merece ser celebrado quando Deus cria uma criatura tal como o
homem e lhe dá forma particular. Aqui, Deus exibe sua maravilhosa
sabedoria, de modo que nossos corpos são espelhos em que
podemos contemplar a obra de sua mão. Como eu disse, Deus é
Pai de nossos corpos tanto quanto de nossas almas. Mas, acima de
tudo, ele quer ser nosso Pai espiritual.
Isso dito, nada impede os que nos geram através da Palavra
de Deus de ser considerados nossos pais, ainda que inferiores a
Deus, que permanece soberano em poder e não tem parceiro;
nenhum homem mortal é seu igual. Entretanto, visto que lhe
aprouve usar homens mortais e empregá-los como instrumentos a
fim de nascermos para a vida celestial — por meio do que Pedro
chama de “a semente imperecível” [1Pe 1.23], isto é, através da
mensagem evangélica —, aqueles designados para pregar a sua
Palavra são nossos pais. Paulo, pois, não usurpou o que pertence a
Deus. Ele é chamado pai de Tito por havê-lo gerado na fé cristã.
Longe de ocultar a honra e a dignidade de Deus, o título constitui
um endosso delas.
Se os que nos ensinaram a mensagem da salvação são
nossos pais, que diremos daquele que enviou essa mensagem, o
qual é seu Autor e usa os labores dos homens, qualquer que seja o
meio que escolhe? Quando ele fornece habilidade e os meios,
quando dá poder à Palavra, de modo que ela nos beneficia, quando,
repito, Deus opera tão poderosamente que gera e completa todas
as coisas, acaso ele não deve receber toda a glória? Quando se diz
que os ministros da Palavra perdoam os pecados e liberam as
almas [Mt 16.19; Jo 20.23], isso se dá não porque Deus lhes cedeu
suas responsabilidades e se desembaraça delas; mas, ao confiar-
lhes sua Palavra, também lhes ensinou qual seria seu fim e
propósito. Pois, entre os que recebem as promessas que lhes
apresentamos no nome de Deus, é preciso haver a certeza de que o
que pregamos é sancionado no reino celestial. Deus nos enviou a
fim de que chamemos os homens de volta para ele. Assim,
enquanto aqueles que são responsáveis por proclamar o evangelho
liberam as almas e perdoam pecados em nome de Deus, as
palavras de Isaías permanecem inteiramente verazes: “Eu, eu
mesmo, sou o que apaga as tuas transgressões por amor de mim e
dos teus pecados não me lembro” [Is 43.25].
Não pode haver confusão entre Deus e qualquer de suas
criaturas, pois somente ele pode lavar o pecado. Todavia, o meio
que ele usa e o instrumento que emprega é a sua Palavra, a qual
ele confia a homens mortais. Portanto, como vimos, Paulo não se
exalta além da medida, mas apenas desejava mostrar a que
propósito o evangelho é ensinado. Seu alvo é transformar-nos em
novas criaturas, porque [o evangelho] é a semente imperecível; de
modo que a Palavra de Deus nos vivifica a fim de que alcancemos a
herança eterna que nos foi preparada. Desta maneira, quando apraz
a Deus enviar-nos sua Palavra, somos instados a recebê-la com
prontidão, como se ela nos adquirisse a vida, pois é justamente isso
que ela faz. Não podemos estar cônscios dela nem apreendê-la em
nosso pensamento, mas esse é o caso. Portanto, consideremos
quão grande é a bênção quando Deus nos comunica sua Palavra.
Essa também é a razão por que a igreja é chamada nossa
mãe. No dizer de Paulo, ela tem a incumbência da Palavra que lhe é
confiada. Visto que Deus dispensa sua Palavra pela ação de
homens e estabeleceu esta ordem na igreja, assim como Deus é
nosso Pai, a igreja deve ser nossa mãe [Gl 4.26; 1Tm 2.15]. Ela
deve conceber, alimentar e nutrir-nos. Da mesma forma que o
esposo concorda com a esposa em que devem alimentar seus
filhos, e a esposa assume particular cuidado deles, assim Deus
confia à igreja esta responsabilidade, de modo que, por seu leite,
somos alimentados até que alcancemos a maturidade, como lemos
no quarto capítulo de Efésios [Ef 4.13].
Daí Paulo chamar Tito “meu verdadeiro filho” —
especificamente seu filho verdadeiro e natural, com o intuito de
distingui-lo dos hipócritas que aparentemente nascem na casa de
Deus, como lemos em Gálatas, mas que, no fim, à semelhança de
Ismael, têm de ser lançados fora como filhos bastardos e não como
filhos legítimos [Gl 4.22, 30]. Pois casa de Abraão constitui uma
genuína imagem e representação da igreja. Ismael é filho de Abraão
segundo a carne, mas sua mãe é excluída. Ismael aparenta ter o
direito da primogenitura, e inclusive moteja de Isaque, seu irmão,
buscando frustrar a promessa de Deus de que a bênção viria
através de Isaque. Ele ridiculariza a promessa porque pensa ser
suficiente que ele seja o primogênito. A despeito disso, ele é banido
da casa, não só por Abraão, mas principalmente por Deus; ele é
mandado embora como um proscrito. E, assim, ele é um membro
decomposto, e tudo o que ele tinha anteriormente, no dizer de
Paulo, é perdido.
Agora Paulo aplica esta lição a fim de recebermos todo o
benefício. Ele declara que, quando a Palavra de Deus é anunciada,
muitos a ouvirão, porém não conseguirão tirar proveito dela, posto
que não nasceram para a liberdade, não foram iluminados pelo
Espírito de Deus, não aceitaram a graciosa promessa de sua
salvação e não possuem nenhuma fé viva que lança raízes em seu
coração. Bem que poderiam ser considerados filhos de Deus, mas
não há neles nenhuma semente genuína. Há apenas exibição
externa; só há, por assim dizer, uma forma sem substância. E, ainda
que se gloriem nela por algum tempo, não se sentem surpresos pelo
que acontece. Ismael era o mesmo, mas finalmente foi excluído. Eis
como se dará a todos os que falsamente alegam pertencer ao povo
de Deus, enquanto os que realmente nasceram [pela fé] são
preservados e desfrutam da herança da salvação. Aprendamos,
pois, a ser conhecidos como filhos, não apenas nominalmente, mas
em realidade e verdade. Isto sucederá se, fazendo proficiência no
ensino do evangelho, permitirmos que sua mensagem lance raízes
próprias em nós e produza seu fruto. Tomemos o cuidado de não
ser filhos bastardos. Então Deus nos guardará sempre entre o
número e na companhia dos que são dele. De outro modo, a
vanglória de que somos cristãos e crentes provará ser de nenhum
préstimo. O que aconteceu a Ismael poderia acontecer-nos.
É evidente que Paulo não estava se dirigindo a um homem,
pessoalmente, mas estava provendo ensino útil para a igreja como
um todo. Seguindo o exemplo de Tito, todos seremos filhos
legítimos e portaremos a marca dos que são gerados pela Palavra
da salvação, recebendo e beneficiando-nos da graça de Deus e sem
regozijar-nos simplesmente no nome, mas em sua verdade e
substância.
A seguir Paulo acresce que isto é segundo a fé comum, a qual
eles têm unanimemente. Isto serve para reforçar a ideia que Paulo
apresentou anteriormente quando chamou a si de “pai”. Sua
intenção não era empanar a glória de Deus ou obliterar a honra de
Jesus Cristo. Embora seja pai, ele se situa firmemente na categoria
dos filhos de Deus. Consequentemente, aquele que é pai na igreja
de Deus — visto que tem a semente da vida e que, através de seus
labores, as almas são recriadas à imagem de Deus — permanece
parte da companhia comum. Como assim? É a fé que nos concede
o privilégio de ser filhos de Deus, como vimos no primeiro capítulo
de João: “Mas, a todos os que o receberam, deu-lhes o poder de
serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que creem em seu nome”
[Jo 1.12]. Porque esse dom é nosso pela fé —, se lemos que a fé é
comum tanto aos mestres quanto aos alunos —, todos nós
pertencendo à mesma companhia e tendo a mesma posição.
Somente Deus possui a preeminência e governa sobre todos;
somente ele merece ser exaltado como Pai.
Notamos, pois, que, com as palavras “fé comum”, Paulo
serenamente assume seu lugar lado a lado com os demais, de
modo que ninguém pense que ele avidamente reivindica mais que o
devido ou toma para si a honra que pertence a Deus. Ele deixa claro
que continua sendo irmão de Tito, visto que ambos foram gerados
pela Palavra de Deus. É verdade que Paulo precedeu a Tito. Não
obstante, reiterando o que já foi dito, visto que todos nós,
juntamente, renascemos pelo Espírito de adoção, Deus deve ser
nosso Pai e devemos ser humildes e obedientes diante dele.
Ninguém busque anulá-lo em nome da fé do evangelho, como se
possuísse alguma autoridade procedente dele próprio. Que Deus
permaneça intocado e que nada nele seja diminuído. Todos os
homens são obrigados a servi-lo, cada um em seu próprio lugar e
vocação.
O apóstolo termina sua saudação com as palavras graça,
misericórdia e paz da parte de Deus Pai e de Jesus Cristo nosso
Salvador. Normalmente, quando ele saúda os irmãos, Paulo se
contenta com duas palavras: “graça” e “paz”, significando, como
dissemos alhures, que nossa bem-aventurança e felicidade residem
no fato de que já fomos reconciliados com Deus, e que ele nos
guarda em seu amor e favor. Esta é a fonte de tudo que devemos
desejar: o amor e a bondade de Deus dados a nós. Ai de nós se
Deus for nosso inimigo, mesmo quando o mundo inteiro conspire
para ajudar-nos! Mas, se Deus nos aceita, por mais desditosos que
sejamos aos olhos dos homens, tudo será feito para nosso bem e
para nossa salvação.
Portanto, a graça de que Paulo fala não é algo pequeno. Ele a
chama “graça” em vez de “afeto” ou “amor” porque é amor
imerecido. Deus não pode receber-nos favoravelmente, a menos
que ele se apiede de nós. Em nós nada existe senão pecado.
Portanto, Deus com toda razão teria que odiar-nos, teria que sentir
aversão de nós, teria que repudiar-nos como parte de sua criação.
No entanto, quando decide ter compaixão de nossa miséria, então
começa a amar-nos de livre bondade.
Aqui, Paulo adiciona a palavra “misericórdia”, a qual expressa
ainda melhor a bondade que já descrevemos. Deus deve receber-
nos em sua mercê, visto que somos perversos e perdidos. Se não
se deixasse comover de compaixão, jamais poderia deixar-se levar
a amar-nos. Naturalmente, estritamente falando, misericórdia vem
antes de graça, pois quando contempla a humanidade, Deus nada
vê senão ruína, visto que todos nós somos malditos em Adão. Como
já dissemos, é verdade que, em razão de sua eleição, ele não se
apieda de todos. No dizer de Moisés: “Ele tem misericórdia de quem
quer” [Ex 33.19], pondo assim um fim a todo argumento, para que
os homens não indaguem por que ele age assim. No dizer de
Moisés, “ele age assim porque essa é a sua vontade”. Em qualquer
caso, Deus olha com amor compassivo para aqueles a quem quis
eleger para a salvação e em sua livre bondade os recebe em seu
favor. Assim, a misericórdia vem em primeiro lugar e a graça se une
a ela, tendo sua fonte e origem na misericórdia. Aqui, contudo,
Paulo reverte a ordem a fim de mostrar-nos mais claramente de que
maneira Deus nos é favorável uma vez que ele nos recebeu em sua
mercê. Ou então o alvo de Paulo é salientar que, embora Deus nos
ame, nos adote, nos repute como seus filhos e nos exiba sua
bondade, que é um seguro emblema de seu amor, ele deve
continuar a exibir-nos sua mercê até o fim.
E qual a razão? É verdade que, quando nos chama, ele nos
inclui no número de seu rebanho e nos governa por meio de seu
Santo Espírito, coibindo-nos de levar vidas dissolutas e libertinas.
Ele nos recria em conformidade com sua própria imagem, ainda que
permaneçamos fracos, pecadores e maculados. Assim, Deus nos
perdoa diariamente e exerce sua misericórdia para conosco,
apagando nossos delitos e pecados, sem o que seríamos
imediatamente vazios da graça que ele nos outorgou. Suponhamos
que Deus oferecesse a um homem sua mercê somente uma vez e,
permitindo que ele partilhe das promessas do evangelho, o deixasse
no mesmo estado como antes. Mesmo que ele fosse o homem mais
perfeito da terra, ainda necessitaria que Deus continuasse a
sustentá-lo ou logo perderia a honra que recebera e o grande
privilégio de ser filho de Deus. Eis por que Deus tem de exibir-nos
continuamente sua mercê, pois a graça que foi outorgada por um
dia não seria suficiente, senão que ineficaz, a menos que Deus
continuasse a instilar-nos nova graça. Esse, em suma, é o ensino de
Paulo neste texto.
Lembremo-nos, pois, que, quando Paulo roga a Deus que dê
sua graça a Tito, a menção da misericórdia não é uma adição
supérflua; pois dela nos vem, como já dissemos, paz e todo nosso
senso de felicidade. É como se Deus enviasse do céu chuva para
regar a terra; quando a terra estiver regada, ela germina e floresce.
Donde vem a chuva? Do céu. Também todas as bênçãos que tanto
desejamos nos vêm do livre amor de nosso Deus. Além do mais,
quando tivermos sofrido muita aflição, quando Deus provar-nos
através de doenças, infelicidade ou perda terrena, temos que
aprender a sempre visualizar sua graça, repousar e ser felizes no
conhecimento de que Deus nos ama. Aprendamos a adoçar todos
os nossos sofrimentos com a consolação que Paulo introduz no
oitavo capítulo de Romanos: “Todas as coisas contribuem para o
bem dos que amam a Deus” [Rm 8.28]. Aqui Paulo está falando das
tribulações, opróbrios e outras misérias pelas quais passamos nesta
vida terrena. Neste versículo, não é sem motivo que o apóstolo
associa nosso Senhor Jesus Cristo com Deus, o Pai. Pois embora
Deus seja o Autor de tudo o que é bom, não obstante devemos
olhar para Jesus Cristo, sem o qual haveria uma distância imensa
entre Deus e nós e não poderíamos achegar-nos a ele para
degustarmos sua graça e participarmos dela.
Deste modo, enquanto Deus, o Pai, nos envia cada bênção,
Jesus Cristo deve estar junto de nós. A majestade de Deus seria
elevada demais, mas nosso Senhor Jesus Cristo se fez pequeno —
aliás, se reduziu a nada! — a fim de guiar-nos ao Pai. Para que não
deixemos de buscar Aquele que está tão longe de nós, ele é o
nosso Deus que se manifestou na carne. Eis a razão por que Paulo
nos faz lembrar de nosso Senhor Jesus Cristo, para que através
dele alcancemos a glória consumada e a divina majestade de Deus.
Observemos ainda que o apóstolo atribui o título “Salvador”
tanto a Deus Pai quanto a nosso Senhor Jesus Cristo, mas por
razões diferentes. Deus Pai é nosso Salvador pelo fato de nos
enviar a salvação através de seu Filho unigênito. Jesus Cristo é
nosso Salvador porque ele fez tudo o que era necessário ser feito
para nossa salvação. Segundo a Escritura, “Deus amou o mundo de
tal maneira que não poupou seu Filho, mas no-lo deu para morrer
por nós” [Jo 3.16; Rm 8.32]. Daí concluirmos que a principal causa
de nossa salvação é o beneplácito que Deus manifestou a nós
quando decidiu salvar-nos da perdição. Eis como Deus, o Pai, é
nosso Salvador, mas se revelou como Salvador na pessoa de seu
Filho. Pois nosso Senhor Jesus Cristo nos redimiu da escravidão à
morte, fez satisfação por todas as nossas dívidas, ofereceu em
sacrifício a Deus Pai seu corpo e sangue — sua própria alma —
para que fôssemos perdoados à vista de Deus. Visto que somos
justificados por nosso Senhor Jesus Cristo e que ele fez tudo o que
lhe foi requerido para nossa salvação, é de direito seu que aqui ele
seja chamado nosso Salvador. Portanto, isto é o que devemos
aprender: onde está em pauta nossa salvação, ela está fundada na
mercê de Deus Pai e consumada por nosso Senhor Jesus Cristo.
Em sua morte e paixão, temos, por assim dizer, um modelo e
espelho, a própria verdade e substância do sacrifício que ele fez por
nós e da redenção pela qual somos justificados.
Seguindo estas observações, Paulo explica por que deixou
Tito na ilha de Creta. Foi para que Tito pudesse corrigir com
sabedoria as coisas que restam e designar anciãos ou presbíteros
em cada cidade. Ao dizer isso, Paulo não tem em mente ensinar a
Tito quais são seus deveres, porém busca dar-lhe autoridade para
que ninguém lhe resistisse quando gerisse a tarefa que lhe fora
designada. É como se Paulo dissesse: “Não que algo o impeça em
seu trabalho em Creta. Corrija o que precisa ser corrigido e
mantenha o estado e governo próprios da igreja. Que nada o
detenha da tarefa que lhe confiei”. Essa era a intenção de Paulo. No
entanto, note-se ainda que ele não concede a Tito mais do que lhe
foi permitido. O que Paulo desfrutava não era o direito de governar
ou algum poder régio; era apenas os deveres de ministro. A tarefa
de Paulo era edificar a igreja de Deus e ver o avanço da obra até
que fosse completada.
Ora, a razão de ele ter deixado Tito para trás era clara. Os
apóstolos não receberam a ordem de pregar em um lugar ou noutro,
mas de “pregar o evangelho no mundo inteiro a toda criatura” [Mc
16.15]. E assim Paulo se viu obrigado a fazer este trabalho com o
máximo de sua habilidade, indo de um lugar a outro para pregar o
evangelho por toda parte. Assim era suficiente que ele pregasse em
um lugar durante três meses, ou seis, ou mesmo por um ano? Não.
Esse trabalho deveria continuar ou a edificação sofreria um colapso
imediato, e tudo o que foi começado se reduziria a nada, a menos
que fosse continuado. Embora os fundamentos já estivessem
lançados, o edifício tinha de ser erguido ou tudo estaria perdido.
Não bastava construir uma parede; isso seria inútil se toda a casa
não fosse completada.
Foi assim que se deu com o evangelho. Não bastava pregá-lo
por certa extensão de tempo. Os apóstolos tinham que nomear
bispos em seu lugar; pois é assim que Paulo os denomina alhures,
quando fala da ordem permanente da igreja [At 20.28]. Os pastores
tinham também que ser designados, como ele afirma aqui. Pois esta
é a diferença entre um apóstolo e um pastor: um pastor é designado
para um lugar e deve permanecer ali como um lugar fixo; requer-se
de um apóstolo que ele vá por toda parte, e o ofício era temporário
até que o evangelho fosse proclamado a todos. Portanto, havia
necessidade de apóstolos; no entanto, uma vez que sua existência
cessasse, somente o ofício regular de pastor era permanente. Os
apóstolos eram como deputados, usados para assegurar que Jesus
Cristo tomou posse de seu reino. Dessa forma, no dizer de Paulo,
cumpria-se a profecia de Isaías: “Fui buscado pelos que não
perguntavam por mim; fui achado por aqueles que não me
buscavam; a um povo que não se chamava do meu nome, eu disse:
Eis-me aqui, eis-me aqui” [Is 65.1; Rm 10.20]. Essa, repito, era a
tarefa para a qual Paulo e seus companheiros foram comissionados.
Tinham que proclamar a Palavra de Deus em lugares onde
anteriormente ela era desconhecida; tinham que levar avante o reino
de nosso Senhor Jesus Cristo; reconduzir as pessoas que viviam
longínquas; reunir no rebanho os que eram bestas indomadas; e
trazê-los à submissão do grande e supremo Pastor os que lhes
foram dados por Deus, o Pai. Mas para os pastores o ofício era bem
diferente — cada um tinha que ter um lugar fixo a ele designado, e
tinha que ficar ali.
Em nossa própria época, os pastores são escolhidos. Como
isso é feito? Não como os apóstolos que tinham de ir por todo o
mundo sem parada. Cada pastor deve conhecer a tarefa que lhe foi
confiada e, quando designado a um lugar, deve lançar mão à obra e
trabalhar com toda fidelidade. É esse o significado de Paulo quando
escreveu: “Eu te deixei em Creta para que designasse pastores e
presbíteros em cada cidade”. A palavra “presbíteros” usada por ele
aqui significa a mesma coisa que “ancião”. Não é que todos os que
eram chamados para aquele ofício fossem pessoas idosas, pois
vimos que Timóteo, um ancião — também uma pessoa ilustre —,
era jovem. E quando Paulo o comissionou, não significava uma
perversão da ordem de Deus. Comumente, a Escritura refere os que
exercem a liderança como “anciãos”, ainda que não fossem
relacionados à igreja. Mas por causa de sua sabedoria, seriedade e
bom senso, é como se já fossem avançados em idade. Essa é a
razão para que fossem sempre assim descritos.
Quanto a essa ralé que no papado é chamada de sacerdócio,
são uma piada, inclusive uma desgraça! Não obstante, o fato de que
tornaram a palavra odiosa e um opróbrio, não significa que um
termo empregado pela Santa Escritura seja rejeitado.[5] A palavra
“presbítero” é um título em si mesmo santo, ainda quando fosse
preferível ser pendurado de um patíbulo do que ser um sacerdote
papal! Esta é uma maldição tão abominável que deveríamos
considerá-los como açougueiros de Jesus Cristo, pois o crucificam
diariamente o quanto forem capazes.[6] Ser um presbítero cristão,
porém, é algo muito diferente.
Aqui, portanto, a intenção de Paulo é mostrar que não basta
que o evangelho seja pregado uma vez em um lugar; a obra
pedagógica deve prosseguir até o fim. Por quê? Porque não somos
levados imediatamente à perfeição. Assim, pois, o que uma vez foi
edificado tem de ser mantido até o fim. Razão por que necessitamos
de pastores em todos os lugares; os presbíteros que seguirem
outrem fortalecem os crentes continuamente e os capacitam a fazer
proficiência na escola de nosso Senhor Jesus Cristo. Devem servir,
respectivamente, grandes e pequenos; idosos e jovens; e assim
corpo a corpo o ofício alcança aqueles que vierem depois de nós.
Com isso em mente, visualizemos agora o que a seguir está
escrito: Por esta causa, te deixei em Creta, para que pusesses em
ordem as coisas restantes. A palavra que Paulo usa realmente
significa “emendar”, mas também tem o sentido de “levar à
completude”. Ora, ele não está sugerindo que Tito emendasse,
mudando tudo o que Paulo havia feito desde o início; em si, coisas
boas e sólidas e acima de censura. Entretanto, visto que ele havia
começado a construir, a obra deveria continuar e se completar. Tito,
pois, tinha que corrigir o que ainda estava faltando, porém sem
mudar ou desfazer o que Paulo havia posto no lugar. Ele tinha que
fazer acréscimo e, assim, levar a obra à sua completude. Enquanto
Paulo arma Tito com autoridade, devemos recordar que devemos
ajudar os servos de Deus tanto quanto pudermos para o
cumprimento de seu ofício; e se alguém resistir e tentar obstruí-los,
esse deve ser repelido.
Na verdade, devemos provar que somos cristãos? Demos um
sólido suporte àqueles que estão incumbidos de declarar a Palavra
de Deus, a fim de que façam tudo o que lhes é requerido. Se forem
estorvados, ajudemos-lhes com o melhor de nossa habilidade; cada
um segundo sua posição e situação. Os indivíduos privados devem
resolver dar sua assistência aos que estão em dificuldade, porém
que sirvam a Deus fielmente e sustentem a autoridade deles. Caso
haja intrometidos e salafrários que se levantem contra eles, que
sejam resistidos e que todos nós concordemos em indiciá-los, por
assim dizer, num sentido legal. Eis como podemos mostrar que
somos cristãos genuínos. Os que exercem o poder da espada
devem entrar em ação, principalmente para assegurar que o
ministro do evangelho permaneça a salvo e íntegro — isto é, que os
pastores não sejam impedidos de desfrutar da liberdade que lhes é
permitida por Deus, a fim de preservar a ordem e disciplina
necessárias.
Que os pastores também tratem uns aos outros desta
maneira. Aquele que recebeu um dom maior não empurre para um
lado os colegas com o fim de tirar deles vantagem e conservá-los
em posição inferior. Ao contrário, que lhes ofereça uma mão
ajudadora e os ajude a serem promovidos. Os que estão abaixo
deles e que não exercem a mesma autoridade, sejam cuidadosos
em seguir o exemplo dos outros e se unam harmoniosamente com
eles. E o que quer que aconteça, que isso coopere para que a obra
de edificação avance rumo à sua completude. Que sirvam a Deus
sem inveja ou rivalidade e sem perturbar a ordem designada por
Deus. Que isso seja clara evidência de que de fato são filhos de
Deus.
À moda de contraste, vemos que tipo de pessoas são aqueles
que desejam destruir a autoridade dos pregadores. É verdade que,
se os homens, sob o pretexto de ser pastores da igreja e ter a
incumbência da mensagem da salvação, buscam subir mais alto, tal
tirania deve ser resistida. Mas quando os homens se inclinam a
caluniar os que pregam a Palavra de Deus, de modo que a sua
mensagem só é recebida pela metade e são continuamente
ridicularizados, devemos considerar como ferramentas de Satanás
todos os que tentam vilipendiar e denegrir os pastores da igreja.
Isto foi o que vimos acontecer no conflito circunjacente com
um mísero herege cujo único desejo era subverter tudo e semear
terrível confusão entre nós.[7] E os que se envolvem com tais
vermes deveriam enrubescer-se de vergonha durante toda a vida,
pois eles lutaram tão ferrenhamente quanto puderam contra Deus e
se mostraram inimigos da igreja quando se puseram ao lado
daquele miserável que tentou acender aqui um fogo diabólico que
não teria facilmente se extinguido. Não devemos ter respeito por
pessoas como essa. Em vez disso, sigamos a Paulo e tentemos o
quanto pudermos ver que a Palavra de Deus é aceita com toda
reverência. Mostremo-nos bem dispostos para com aqueles que
fielmente no-la pregam. Asseguremo-nos de que sejam aptos a
cumprir livremente seus deveres e que se armem não com a espada
física, mas com a espada da Palavra de Deus; de modo que,
quando falarem em nome de Deus, sejam ouvidos sem dissensão
ou porfia. Que haja entre nós tal ordem que não soltemos as rédeas
e não deixemos cada um agir livremente como lhe apraz; em vez
disso, submetendo-nos ao jugo de Deus, nos guardemos de toda
confusão. É assim que devemos aplicar este versículo onde Paulo
declara que deixou Tito em Creta.
Portanto, Paulo, o santo apóstolo que foi posto muito acima
dos demais, não nutre inveja de Tito, que era inferior em idade,
porém lhe diz que “corrigisse o que ainda resta”. Os que são
motivados por ambição gostariam de ser tidos imediatamente como
talentosos; desejam ser respeitados como pessoas que prestam um
serviço fiel e impecável. Ao contrário, supondo que temos labutado
a vida inteira para edificar a igreja, jamais conseguiremos concluir.
Portanto, somos advertidos a não contar tanto com nosso duro
labutar e nossa própria força, como se uma pessoa com dons
superiores pudesse de uma vez edificar com perfeição a igreja de
Deus. Ao contrário, nossa intenção deve ser ajudar uns aos outros;
e a pessoa que já avançou mais deve entender que não pode fazer
tudo sozinha. Em vez disso, que cada um se curve ao trabalho, mas
também peça ajuda àqueles a quem Deus supre; que se alegre
vendo o progresso de outros, contanto que o alvo de todos seja
servir a Deus e fazer avançar o reino de nosso Senhor Jesus Cristo.
Se pensarmos seriamente em nós mesmos, teremos sempre
motivo para gemer, uma vez que estamos mui longe de cumprir com
nosso dever. Estão grandemente equivocados os que se contentam
com facilidade e dizem a si próprios: “Esta é uma igreja realmente
reformada; não falta nada”. Pois se soubessem qual foi a reforma
real, seriam precavidos em pensar que tudo foi feito sem falha. Por
mais arduamente que tentemos ordenar e organizar as coisas, vê-se
que é um notável empreendimento, uma vez tenhamos começado a
realizar mesmo a tarefa mais simples! Quanto ao começo, a obra
que deveria ser feita com perfeição, ainda estamos longe de
alcançar a meta. Por isso temos de recordar o que Paulo diz em
outro lugar sobre o alvo rumo ao qual ele labuta: havendo feito
quatro ou cinco corridas, e havendo avançado até o limite, ainda
não havia alcançado o ponto de chegada [Fp 3.12-14]. Diz ele: “Eu
labuto ao máximo que posso; mas o que tenho feito equivale a
nada, até que Deus conduza meus labores ao ponto final — até que
ele me remova deste mundo”. Portanto, não devemos presumir que,
havendo trabalhado por um tempo, podemos então viver aqui em
nosso ócio. Temos de ser servos de Deus sob a condição de viver e
morrer visando à edificação de sua igreja.
Ora, visto que o tempo não nos permite explicar mais
detalhadamente, vejamos que o usemos para nossa instrução.
Quando Paulo fala da igreja de Deus, ele descreve seu trabalho
como ainda incompleto; e declara que um homem não é suficiente;
a necessidade requer não é apenas o trabalho de dois ou três, mas
o trabalho contínuo de todos a quem foi confiada a tarefa; a obra
deve avançar e aumentar corpo a corpo. Assim, quando tivermos
consumido toda a nossa vida na edificação da igreja e quando Deus
graciosamente fizer prósperos nossos esforços, tentemos
assegurar-nos de que, após nossa morte, a obra não é abandonada,
senão que haverá sempre pessoas a levá-la a bom termo e, se
possível, conduzi-la à completude. Para tal realização, não
negligenciemos os meios e auxílios que Deus nos designar. Pois
precisamente como ele conhece bem nossa fragilidade e ignorância,
assim também conhece o remédio a ser aplicado.
Eu insisto neste ponto, porque no próximo domingo
receberemos a Ceia do Senhor.[8] Ninguém deve pensar em vir
irrefletidamente à santa mesa e adentrar como suínos que metem
seus focinhos na gamela. Tal sacrilégio não ficará impune. Toda vez
que a Ceia do Senhor é preparada, temos de nos lembrar de nossa
fraqueza e de como Deus provê socorro para nossa fragilidade. Ele
faz isso quando o evangelho nos é pregado diariamente; quando
fazemos orações e súplicas; quando lemos em nossas casas ou
quando ouvimos falar o que é pertinente à nossa salvação. Em
meios como estes, Deus mostra continuamente que ele nos
sustenta. Não obstante, a Ceia dá especial testemunho do fato de
que nosso Deus nos ajuda quando estamos, por assim dizer, a meio
caminho de casa; ele busca impelir-nos ainda mais, de modo que
olhemos sempre para ele.
Notemos também que a Ceia serve para corrigir e completar
as coisas que ainda estão faltando. Nada seria se Deus meramente
começasse em nós uma obra, sem continuação, a ajudar-nos a
sentir sua graça, da qual temos na Ceia firme certeza. Então, ai de
nós se macularmos esta santa mesa que é dada para auxiliar-nos
em nossa salvação. Portanto, quando tomarmos parte nela,
cuidemos de estar bem fundamentados na fé, no arrependimento e
no amor. E visto que somos plenamente persuadidos de nossa
fraqueza e fragilidade, visto que não temos tudo o que nos é
requerido, roguemos a Deus que nos fortaleça para seguirmos
adiante, para aumentarmos nossa fé e nossa esperança da vida
celestial. Anelemos por isso com todas as nossas forças; e que
cada um se esforce e lute, não com sua própria força, mas na força
que Deus supre. Ele não falhará.
É isso que devemos aprender desta passagem. De tal modo
construamos que cada um de nós assista a seu próximo para que
cresça na graça. Não invejemos o outro, mas nos esforcemos para
avançar na obediência a Deus e nosso Senhor Jesus Cristo.
Estando unidos por aquele santo e inseparável vínculo que ele
santificou para nós quando nos chamou para sermos membros de
seu corpo, sirvamo-lo e honremo-lo, a fim de que, finalmente,
sejamos herdeiros com ele de sua glória celestial.

Oração
Agora prostremo-nos diante da face de nosso bom Deus,
reconhecendo nossas falhas e orando para que ele nos faça senti-
las, e tudo mais, de modo que sejamos sempre levados a odiar
nossos pecados, amar sua justiça e anelar por ela, até que ela
realmente reine dentro de nós. E que sejamos recriados segundo
sua justiça, a qual se concretizará quando formos esvaziados de
nossas imperfeições e vestidos de sua glória.
4. QUARTO SERMÃO: LIDERANÇA NA IGREJA (1) [Tito 1.5, 6]
Por essa causa, te deixei em Creta, para que pusesses em ordem
as coisas restantes, bem como, em cada cidade, constituísses
presbíteros, conforme te prescrevi: alguém que seja irrepreensível,
marido de uma só mulher, que tenha filhos crentes que não são
acusados de dissolução, nem são insubordinados.
Começamos esta manhã pontuando quão difícil é a obra de
edificação da igreja de Deus e quão impossível é ser bem-sucedido
em um dia ou em curto período. A obra é contínua, e a vida inteira
de um homem não basta. Naturalmente, Deus poderia conduzir seu
povo à perfeição se porventura quisesse fazê-lo, mas ele quer levar-
nos por passos medidos — tudo com o fim de humilhar-nos e
ajudar-nos a reconhecer nossas misérias e deplorá-las, de modo a
caminharmos por este mundo sempre nos volvendo para ele. Pois
sabemos que o que ele começou em nós nada é até que, como
costumamos dizer, ele ponha um ponto final. E, visto que cada um
de nós deve acima de tudo ser um templo do Santo Espírito,
apliquemo-nos a esta obra de construção.
Aqueles a quem Deus chamou a pregar sua Palavra designou
pedreiros na construção de seu templo. Da mesma forma, ele
deseja que nos ocupemos nisso, cada um em sua própria esfera.
Entretanto, notemos que é a toda a igreja que edificamos em
comum, e cada um de nós deve trabalhar nela, pois nos cabe fazer
as coisas progredirem o máximo que pudermos. No entanto, os que
vivem satisfeitos com o atual estado de atividades estão muito
enganados. É um sinal de que ainda não entenderam o alvo ao qual
Deus os chama nem se examinam, pois estão muito longe da meta
a que deveriam almejar. Assim, esforcemo-nos o máximo que
pudermos para alcançá-lo e reflitamos cuidadosamente sobre qual é
nossa deficiência. Ainda que Deus permita graciosamente que sua
Palavra nos seja ensinada com pureza e mesmo quando entre nós
prevaleça alguma ordem tolerável, lembremo-nos de que tudo ainda
não é perfeito e que a obra nunca é feita com inteireza. Isto não
deve deprimir nossos espíritos, mas, ao contrário, deve estimular e
inspirar-nos a observar a injunção de Paulo e a seguir seu conselho.
Mas, notemos bem, assim que Deus começa a edificar sua
igreja entre nós, os homens se dispõem a desfazer tudo. Em
qualquer caso, quem realmente se põe a refletir sobre o que é
errado? Ao contrário, não podemos suportar o presente estado de
coisas — frágil como ele é — sem nos queixarmos de que o jugo de
Cristo é demasiadamente pesado; e se há entre nós alguma sorte
de ordem, por mais insignificante que seja, não o podemos tolerar:
“Oh! Se esta disciplina continuar, onde irá terminar?”. Caso se faça
alguma tentativa de sofrear a blasfêmia: “Oh! Por que tanta
severidade? Todos nós fazemos isso ocasionalmente!”. Caso se
faça menção de outras irregularidades: “O que é isso? Não
podemos regozijar-nos legalmente?”. Quando se pune a dança e
outras infâmias, alguém protesta. Se há leis que procuram refrear
um comportamento desenfreado, dizemos que são severas demais.
Por quê? Porque somos surdos para com a instrução de Paulo aqui.
Embora trabalhasse em Creta com dificuldade e houvesse
estabelecido uma forma de igreja segundo o mandato de nosso
Senhor Jesus Cristo, contudo não havia conduzido o reino de Cristo
à completude. Isso só poderia se dar na plenitude do tempo. Como
podemos hoje fazer melhor que Paulo? É um equívoco pensar que
somos mais prontos a aceitar uma forma mais completa e mais
sólida de governo do que o povo daquele tempo. Aprendamos, pois,
a sentir desprazer em nós mesmos. Sejamos sempre levados a
buscar o avanço do reino de Cristo e, à medida que virmos o edifício
ainda incompleto, tentemos terminá-lo quanto for possível.
Se temos uma casa que tem infiltração de água da chuva e
receamos que ela apodreça, reparamos o teto. Se há uma parede
que ameaça cair, a reconstruímos. Acaso há uma casa neste mundo
mais preciosa que o santo templo de Deus, que nos honra com a
habitação de seu Santo Espírito em nós e que espera que nos
unamos como pedras vivas que formam uma casa espiritual, onde
lhe oferecemos sacrifícios, adorando-o e invocando seu nome?
Vemos a chuva chegando, ouvimos estalidos, vemos sinais óbvios
de decadência e, no entanto, não nos apressamos a preservar algo
de tão grande preço e valor! Quando vemos porcos invadindo a sala
de um homem nobre, acaso não tomamos providência imediata a
fim de que uma coisa tão vil não aconteça outra vez? No entanto,
vemos cães e porcos enlameando a igreja de Deus e trazendo-lhe
infecção, vemos desabrida licenciosidade que traz opróbrio ao nome
de Deus, vemos sua igreja vilipendiada, sem que alguém pareça
notar! Pior, há homens que querem esta confusão e que o mal seja
encoberto! Em suma, a maioria das pessoas dá seu máximo para
arruinar e solapar todo o progresso já feito.
Enquanto um dos servos de Deus prega fielmente a Palavra e
é zeloso em guiar seu povo a uma vereda certa, há bem poucos que
tentam ajudá-lo. A maioria fará tudo quanto pode para lançar tudo
de ponta cabeça. Enquanto alguém com muito esforço e dificuldade
carrega uma pedra, outros arrancarão três com o fim de impedir o
prosseguimento da obra. Tais coisas são corriqueiras hoje. Por isso
devemos labutar com ousadia para construir este templo espiritual
de Deus e que nenhuma dificuldade nos impeça de prosseguir, pois
Deus nos dá graça para terminar enquanto não formos ociosos e
negligentes.
É oportuno, pois, que trabalhemos muito seguindo o exemplo
de Paulo. Observemos especialmente as palavras o que ainda
resta. Que cada um de nós olhe para si mesmo e considere
cuidadosamente o que ainda lhe falta. Descobriremos que ainda
estamos sujeitos a muitas falhas, de modo que fracassamos
completamente no cumprimento de nosso dever. Somos também
tão indolentes que não fazemos a centésima parte do que
deveríamos. Deveríamos voltar nossos pensamentos para a vida
celestial e, enquanto passamos por este mundo, subjugar todos os
nossos maus desejos para que eles não mais nos façam recuar. Em
vez disso, dificilmente conseguimos manter-nos pensando, ainda
que de maneira efêmera, no céu. Em suma, quando nos pomos a
olhar para Deus e a buscar a vida a que ele nos chama, somos mais
frios que o gelo. Entretanto, nos deixamos arrebatar por um
vagalhão de sentimento e desejo. Assim, quando vemos que somos
carentes de muitas coisas neste mundo, que todos sejamos mais
prontos a corrigir-nos e, tendo feito isso, a considerar o mundo ao
nosso redor, onde vemos, de um lado, blasfêmias, e, do outro,
imoralidade, indisciplina, indulgência e outros escândalos e
infecções. Estas coisas, repito, deveriam despertar-nos para não
sermos tão arrogantes a ponto de pensar que somos tão perfeitos
que não se requer de nós mais nenhuma obra. Em vez de disso,
deveríamos assegurar-nos de que o que é bom continue
avançando, que prevaleça melhor ordem do que se dá hoje e que
nos aproximemos ainda mais de Deus e do padrão de pureza que
ele nos ordena em sua Palavra. Isso é o que devemos ter em
mente.
Vemos que o evangelho só pode ser mantido se atentarmos
para o que Paulo acrescenta em seguida: bem como, em cada
cidade, constituísses presbíteros. Pois a pregação é o meio pelo
qual a igreja é mantida. Como dissemos nesta manhã, ela é a
semente imperecível pela qual somos gerados por Deus ⸻ é o
leite para cada jovem e alimento para os adultos. A igreja
fracassaria e pereceria se não fosse sustentada pela pregação da
Palavra de Deus. Eis por que Paulo requer que fossem designados
anciãos ou presbíteros, homens que têm a tarefa de guiar sempre o
povo de Deus e de conservá-lo obediente a ele. Estes não são o
tipo de pastores sonhado pelos papistas: entre eles, sacerdócio é
uma infecção saturada de sacrilégio que almeja destruir toda ordem.
Estes são presbíteros cristãos cuja tarefa é declarar o evangelho;
não sacrificar Jesus Cristo como fazem aqueles demônios que
falsamente reivindicam o direito de oferecer Cristo a Deus Pai. Nada
disso tem algo a ver com o ofício de presbítero como o achamos
aqui, pois Paulo mostra sucintamente que os presbíteros de quem
ele fala são ministros e pastores da igreja. Entretanto, este é um
tema que consideraremos mais plenamente em seu lugar. Agora
basta saber que, se queremos que a igreja de Deus seja sadia e
íntegra, deve haver pessoas que nos proclamem a Palavra de Deus,
porém não aqueles que, movidos pela ambição, logo subverteriam
toda a ordem como se corta a garganta de um homem! Pois não há
outra vida à vista de Deus além daquela que temos pela fé, como
dissemos nesta manhã.
É importante enfatizar este ponto e rogar a Deus, quando ele
enviar-nos sua Palavra, que ao mesmo tempo levante homens que
verdadeiramente no-la ministrem. A seguir Paulo se refere aos
presbíteros que sejam escolhidos [ou constituídos]. Ele prefacia
suas palavras a Timóteo com a mesma observação: “se alguém
aspira ao episcopado, excelente obra almeja” [ou, o homem que
deseja ser bispo assume uma tarefa nobre] [1Tm 3.1]. Esta não é
uma ocupação ordinária, e não é uma diversão. Como continua a
dizer: “Porque é indispensável que o bispo seja irrepreensível como
despenseiro de Deus” [ou, aquele que é pastor na igreja é como um
administrador na casa de Deus, tendo o cuidado das almas] [Tt 1.7].
Portanto, que ninguém lance mão da obra irrefletidamente, nem
promova o primeiro homem que apareça. Que se faça uma escolha
discriminatória, para que o lugar somente seja assumido por alguém
apto para edificar a igreja de Deus e competente para exercer seu
ofício.
Em primeiro lugar, se requeria que os escolhidos fossem
irrepreensíveis. Aqui, a intenção de Paulo é a mesma que em sua
primeira carta a Timóteo. Ele não esperava que os pastores fossem
isentos de todas as falhas, pois seria impossível encontrar tal
pessoa. Quando, no tempo da lei, os sacerdotes que prefiguravam
nosso Senhor Jesus Cristo entravam no santuário para mediar entre
Deus e os homens, eles faziam reconciliação e paz entre os dois.
Antes de tudo, eles tinham que confessar que, na verdade, eram
pecadores miseráveis. Assim, a igreja seria destituída de mestres
caso se requeresse que estes fossem impolutos e sem mácula.
Entretanto, há falhas ocasionadas por fraqueza e pecados dos quais
todos os homens são culpados. É possível achar homens que
sirvam a Deus e cuja vida seja sem aquela sorte de mancha que é
merecedora desta censura: “Tu és um ladrão, um mulherengo, um
ébrio, um blasfemo”, ou algo similar. Pode ser que possuam
fraqueza como todos os homens, porém que não sejam tão
corruptos que não possam servir a Deus fielmente se chamados
para essa tarefa, ou não possam reprovar e censurar homens por
seus pecados. É isso que Paulo quer que entendamos nesta
passagem.
Ele tinha toda razão em demandar que os que pregam Palavra
de Deus sejam irrepreensíveis, pois o que aconteceria se um
homem fosse culpado de uma falha tão notória que o
desacreditasse inteiramente? Poderia abrir a boca para recriminar
os ofensores? Ele não seria livre para isso. Pois, como diz Paulo em
outro lugar, faz-se necessária uma consciência limpa e pura se
temos de proclamar a verdade e ensinar livremente e sem oposição
[1Tm 1.19; 3.9]. A conclusão a que chegamos do que lemos aqui,
portanto, é que a Palavra de Deus não deve ser diminuída pela
culpa de alguém que a porta, de modo que alguém diga: “Quem ele
pensa ser? Ele fala muito bem quando se encontra no púlpito, mas
um violonista poderia fazer outro tanto, e um comediante realizaria
muito mais. Isso outra coisa não é senão tagarelar”. A Palavra de
Deus se transformará em objeto de escárnio se um homem falha em
mostrar com sua vida que fala seriamente. Para evitar o sacrilégio
de ver a Palavra de Deus entre nós calcada sob os pés, Paulo
afirma que o ministro que a prega seja isento de toda mácula [2Co
6.3].
É verdade que os servos de Deus nunca estarão acima de
qualquer censura. O próprio apóstolo confessa que teve de sofrer
opróbrio e desgraça [1Co 4.13]. No entanto, em toda a sua vida ele
se comportou tão inocentemente que nele não se achava falha
nenhuma; mesmo antes que abraçasse a fé em Jesus Cristo, ele
era irrepreensível, um espelho e pérola de toda santidade.
(Seguramente, ele não sabia o que estava fazendo, pois ainda não
era governado pelo Espírito de Deus. Mesmo assim, viveu uma vida
de tanta retidão, que ninguém poderia achar nele qualquer falha.)
Não obstante, ele nos informa de que foi excluído por zombaria e
opróbrio, era acusado até pelos crentes que mostravam tão pouca
gratidão que em sua ausência foi injuriado e amplamente caluniado
[1Co 4.9-13; 2Co 10.8-11; 12.16-18]. Então, quando Paulo demanda
que os pastores sejam irrepreensíveis, ele quer dizer-nos que
investiguemos e examinemos se a vida do homem é pura e impoluta
e se ele continua a se comportar dessa maneira.
Portanto, embora não possamos silenciar o fofoqueiro e,
assim, evitar toda e qualquer difamação, nós mesmos temos de ser
irrepreensíveis, visto que nos é dito que, a despeito de nossa pureza
e inocência, seremos ultrajados como malfeitores. Como isso é
possível? Temos da parte de Deus este testemunho de que ele nos
aprova e, por mais que façam mexericos contra nós, isso não passa
de mentira. Uma vez que Deus nos tenha aceitado e recebido,
seremos aptos a manter nossa integridade. Existem homens
perversos que falarão mal de nós sem razão. Todavia, se um
homem se esforça em defender sua causa justa e está pronto a
responder por si mesmo sempre que for intimado, ele se mostra
irrepreensível comparecendo ousadamente, tendo, no dizer de
Isaías, sua testemunha no céu [Is 50.8]. Então, ao exigir que os
pastores escolhidos sejam irrepreensíveis, Paulo deixa bem clara a
sua intenção. Seu desejo é que a Palavra de Deus seja honrada
como bem merece e que não sofra nem opróbrio nem ódio por conta
dos pecados dos homens. Os acusados que reprovam os ofensores
devem cumprir livremente com seu dever; não devem ser detidos
por qualquer objeção que porventura os homens façam: “O que
você pensa ser? Conhecemos a sorte de vida que você vive e como
se comporta!”. Eis por que Paulo insiste que os ministros da
Palavra, cumprindo com a tarefa de liderar outros, devem ser
irrepreensíveis. Somente assim cumprem as demandas de seu
ofício.
Daí Paulo continuar dizendo: marido de uma só mulher. Este
texto tem sido mal entendido, porque ninguém considera o que
levou Paulo a fazer esta afirmação. Entre os judeus havia uma
corrupção tal que se pensava ser lícito ter muitas esposas,
justamente como os patriarcas tiveram, cujo exemplo estupidamente
seguiam. Pois os homens, assenhorando-se da mais leve
oportunidade para a libertinagem, sempre converterão uma má
tradição em lei. Se este erro existiu entre os patriarcas — e só entre
alguns deles —, a intenção de Deus não era que isso se tornasse
um precedente e uma norma. Nosso Senhor Jesus Cristo nos
aponta a instituição original do matrimônio, dizendo: “Não tendes
lido que o Criador, desde o princípio, os fez homem e mulher e que
disse: Por esta causa deixará o homem pai e mãe e se unirá a sua
mulher, tornando-se os dois uma só carne” [Mt 19.4, 5]. Então, os
judeus tinham falsamente tentado seguir o exemplo dos santos
patriarcas. Seja como for, este abuso era praticado entre eles em
grande escala.
Quando o cristianismo começou, teria sido algo demasiado
doloroso e amargo compelir os homens a deixarem as esposas a
quem haviam tomado. Lançá-las fora teria sido duro demais. Não
obstante, não pode ser que uma prática tolerável entre os povos
fosse permitida a alguém que se destinava a ser um espelho a
outros e a mostrar-lhes o caminho. Caso eu seja criticado por uma
falha, posso replicar: “Meu vizinho faz exatamente a mesma coisa!”.
Isso procede, mas meu vizinho não tem a tarefa de ensinar e corrigir
outros. Os ministros da Palavra de Deus nem por isso devem ser
livres para fazer o que é tolerado em outros; devem conhecer o que
lhes é permissível. É próprio que sejam mantidos com rédea mais
apertada; se outros são mantidos por uma só rédea, então os
ministros devem ser mantidos por duas!
Por conseguinte, Paulo viu que entre os judeus existia um mal
que não podia ser corrigido com facilidade. A despeito do
mandamento de Deus, um homem poderia tomar para si duas ou
mais esposas, de modo que um direito habitual há muito
reivindicado se tornara lei e não podia ser removido imediatamente,
como sucede quando um vício se torna profundamente radicado. O
apóstolo proíbe expressamente que os pastores e aqueles a quem
foi confiado o ensino se comprometessem com uma prática como
essa, a qual nada mais é senão incontinência. Quando alguém
tenha maculado o que deveria ser o mais santo dos contrastes e
inclusive tenha subvertido a ordem natural, como não poderia ser
culpado disso? Bem sabemos que o matrimônio é um vínculo
sagrado, e a natureza nos ensina que a poligamia é vil e detestável.
Imaginemos um homem que chega a destruir os próprios
fundamentos da natureza, mas que sobe ao púlpito e declara: “Meus
amigos, devemos mostrar em cada parte da vida que nos cabe
servir a Deus com temor, obediência e integridade. Não devemos
ser como os pagãos que não se deixam governar pela Palavra de
Deus”. Como pode ele chegar a falar nesses termos, quando
alguém pode dizer-lhe: “Miserável! Você ousa dizer-nos ser um
abuso do vínculo conjugal ter duas esposas, logo você que tem
duas?!” Essa é a razão por que Paulo buscava estigmatizar a
prática entre os pastores, a fim de que todos soubessem que esta
era repugnante a Deus e uma desordem que não deve ser tolerada.
Embora entre o povo ordinário ela não pudesse ser corrigida quanto
era necessário, pessoalmente temos de aprender a aderir à regra
apostólica.
Esse, pois, é o primeiro ponto que Paulo estabelece, e
devemos compreender bem seu significado. Não obstante, vemos
que, diferente do papa, ele não recomenda que os ministros da
Palavra se abstenham do matrimônio como forma de buscar a
santidade. Quando ele declara que um ministro deve ter uma casa
bem ordenada, viver pacificamente com sua esposa e governar
seus filhos com aquela disciplina que sirva de exemplo para os
demais, ele não estaria falando com a autoridade de nosso Senhor
Jesus Cristo? Portanto, esta é a santidade que Deus requer de seus
servos e dos que são designados a pregar sua Palavra; devem viver
castamente com suas esposas e como um casal casado. Aqui, no
entanto, temos o papa asseverando que, se um sacerdote é casado,
então ele se conspurcou, é um filho deste mundo, indigno daquele
estado angélico e obrigado a renunciar o matrimônio se quiser ter
um lugar na igreja. Se o papa alega falar com a autoridade de Deus,
então que a produza!
Há uma clara contradição aqui, pois o Espírito Santo mantém
que o matrimônio é legítimo entre os pastores da igreja, de modo
que ninguém nutra quaisquer dúvidas. Além do mais, em outro lugar
ele diz: “Digno de honra entre todos seja o matrimônio” [Hb 13.4].
No mesmo versículo, lemos ainda que Deus julgará os imorais e
adúlteros, mas que o matrimônio é digno a seus olhos; e não só
entre o laicato — para usar o termo inventado por esta escória e
gentalha papais —, mas entre todos. Visto isto ser assim, acaso não
teria o diabo falado pela boca do papa e de todos os seus lacaios,
quando negaram o matrimônio aos que são chamados a pregar a
Palavra de Deus? E não contente em exercer sua tirania e privar os
homens da liberdade outorgada por Deus, têm blasfemado
terrivelmente, declarando que os que vivem na carne não podem
agradar a Deus. Ora, o que é isso, senão torcer e falsificar a Santa
Escritura [Rm 8.8]? Ali Paulo está falando de adúlteros e devassos,
de roubadores, blasfemos e enganadores, os maldizentes que
mentem acerca de seus vizinhos e malfeitores de toda espécie.
Esses tais, reiterando, não podem agradar a Deus. Além disso, o
diabo, em Roma, vomitou sua blasfêmia infernal, declarando que os
que se casam não podem agradar a Deus! Acaso o santo
matrimônio poderia ser mais vilmente conspurcado ou mais
gravemente blasfemado do que isso?
Além do mais, quem é o autor do matrimônio? Evidentemente,
Deus tem permitido que Satanás reine nesse trono de apostasia, de
modo que os que veem que ele é um fosso do inferno se deixam
cegar voluntariamente e merecem a perdição. Ninguém pode alegar
tal ignorância a ponto de dizer: “Esta pobre plebe simplesmente
segue aonde seus prelados os guiam”. O fato é que são mais que
ditosos deixando-se tapear e enganar e seguir em frente rumo à
destruição. Deus não poderia fazer outra coisa senão tomar
vingança de uma confusão tão diabólica. Pois como seria se o
mundo fosse destituído de bons pastores? Todos os que buscaram
viver vidas santas e impolutas foram silenciados, como se deu com
aqueles que desejavam servir a Deus e abster-se da imoralidade e
outras perversidades. Nenhum desses teve a ventura de ser bispo,
sacerdote ou algo mais. Por quê? “Oh! Eram casados!” Enquanto os
que livremente se entregaram à orgia foram tidos como aptos a ser
cúmplices do papa. Portanto, não fazia diferença se eram bispos
mitrados ou sacerdotes besuntados![9] Esses eram aptos ao ofício, e
no fim do mundo foram saturados com sua infecção.
Foi assim que a imoralidade se espalhou e o matrimônio foi
despojado e os lares só foram mantidos puros com a maior
dificuldade; pois o fedor desses homens prevaleceu onde quer que
eles expelissem seu veneno, e tão contagiosa era a doença que
quase ninguém ficou imune dela. Além do mais, Deus os cegou e
injetou neles tal depravação, que não podiam falar bem dos maus,
não da maneira dos animais brutos — pois a brutalidade daqueles
que sustentavam a tirania do papa é de uma ordem bem diferente
—, mas, de uma maneira muito pior e mais aversiva. Estes, pois,
são os salários que Deus lhes enviou em sua ira e justo juízo,
porque rejeitaram o santo matrimônio, o qual é um estado nobre e
eminente. Portanto, se possuímos verdadeira firmeza, não nos
deixemos guiar por nossas próprias ideias; consideremos o que
Deus aprova e nos contentemos com isso.
Ora, quando lemos que o servo de Deus deve ser esposo de
uma só mulher, não devemos exigir dele mais do que isso. A
intenção de Paulo não era tornar o matrimônio obrigatório ao
homem nem proibi-lo aos que são designados ministros da Palavra.
Não há sugestão de compulsão. Paulo meramente estabelece o
princípio geral: que cada um olhe para si mesmo e que o homem
solteiro use de sua abstinência para a honra de Deus e assegure-se
de que dê ao serviço de Deus o máximo que puder. O próprio Paulo
se absteve de uma esposa, como nos informa no sétimo capítulo da
primeira carta aos Coríntios [1Co 7.8]. Ele preferia que todos
fizessem o que ele mesmo fez, porém insiste que seu desejo não
era pôr um jugo nas almas, mas que todos fossem inteiramente
livres. O homem que é casado deve passar por este mundo como
se fosse solteiro, e o solteiro não olhe de viés para os outros. Seria
preferível que um homem fosse imoral do que vituperar o
matrimônio porque ele mesmo não tinha esposa. Ser-lhe-ia
preferível sepultar a si mesmo em um bordel do que desprezar o
matrimônio, abstendo-se dele e rejeitando um estado que Deus
santificara.
Mais que a imposição de uma lei que requer o casamento,
Paulo deseja apenas se assegurar de que os que são designados a
pregar a Palavra de Deus não sejam intemperantes ou dissolutos e
que, se houver alguma falha que ao povo comum seja permitida,
que a mesma seja proibida aos pastores da igreja que se destinam
a ser espelhos. Devemos ser cuidadosos para não justificar as
falhas dos pastores sob a alegação de que são toleradas nos
homens ordinários de menos reputação. Os ministros estão sujeitos
a uma disciplina mais estrita do que os indivíduos privados e devem
ser vigiados mais de perto. Sob nenhuma circunstância lhes é
permitida rédea solta.
A seguir somos informados que seus filhos sejam crentes e
não acusados de dissolução, nem sejam insubordinados. Este é um
ponto importante para observar, pois também nas cartas a Timóteo
vemos que Paulo não se confina unicamente aos ministros, mas
requer que suas esposas sejam bem ordenadas, de modo que, se
um homem viveu uma vida honesta e irrepreensível, mas tinha uma
esposa indisciplinada, o erro dela repercutiria sobre ele. Qualquer
que fosse a acusação, as pessoas diriam: “Vejam, aquela mulher
desavergonhada é a esposa do pregador! Seu marido deveria pôr
um freio em toda essa frivolidade e desordem. Ele é o culpado de
todo o problema!”. Pois, no dizer de Paulo, se ele não consegue
governar a própria casa, como poderá governar a casa de Deus
[1Tm 3.5]? Como poderá controlar toda a congregação, homens e
mulheres, jovens e idosos, quando não puder controlar a própria
esposa? Por isso, quando se faz menção de filhos neste texto, o
que se pretende é mostrar que, para um homem ser apto a guiar o
povo de Deus e ser um bom líder da casa de Deus e da igreja, deve
provar a propósito que administra sua própria casa.
Portanto, se um homem revela que não só anda no temor de
Deus e não comete injustiça, mas que Deus é honrado e servido
pelos que estão sob seu cuidado; que ele não permite que sua casa
se transforme em um bordel, um covil de jogadores, uma taverna de
bêbados ou outras coisas assim; que ele não permite que seus
servos, sua esposa ou seus filhos sejam, de alguma forma, levianos,
desordeiros, extravagantes ou fúteis — quando um homem governa
assim sua casa, fica em evidência que é vigilante, zeloso para com
Deus e em si mesmo sábio e sóbrio. Esse é um teste seguro que
demonstra que ele é apto para liderar a igreja de Deus.
Ao requerer que os filhos sejam crentes, não dissolutos nem
rebeldes, Paulo fala de três qualidades essenciais. Primeiro, os
filhos devem ser crentes. Se um homem decidiu pregar a Palavra de
Deus e não tem instruído sua família, e se seus filhos, quando
indagados não podem dar sequer uma razão para sua fé, como
pode ele conduzir à fé os de fora, quando ele mesmo não conduziu
os seus? Esse é o ponto de partida. Se virmos que ele tem instruído
bem seus servos e tem se comportado com propriedade em sua
própria casa, então podemos concluir que fará ainda melhor quando
for posto em posição mais elevada, e que se devotará a edificar
todo o povo. Aqui, pois, a fé deve vir em primeiro lugar.
Ao mesmo tempo, contudo, sua família não deve ser
publicamente acusada de indisciplina. No dizer de Paulo, seus
membros não devem parecer dissolutos. Não é uma questão de
algum processo legal na presença de um juiz, com acusadores
enfileirados contra eles. A intenção de Paulo é que não haja uma
indisciplina óbvia ou erros claros nos filhos dos pregadores.
Suponhamos que ele dissesse: “Ora, pois, quem ousa censurar
meus filhos? Qualquer um que tente culpá-los de injustiça terá que
me responder!”. Se um homem alega ser zeloso para consigo e
honra seus filhos, porém os deixa livres a um mau comportamento,
de modo que se torna um motivo de riso, tal homem pode ser
escusado? No entanto, há muitos que pensam que já fizeram tudo
quando há em sua casa conversação que causa dano. “Se alguém
me atacar”, retrucam, “esse tal pagará por isso! Eu o enfrentarei e
lhe mostrarei de que barro sou feito!” Nesse ínterim, as pessoas
ridicularizam a ele, a toda sua casa e a sua esposa. Acaso esse tal
não merece ser um marido tapeado? Um homem pode não querer
que seus filhos sejam difamados, contudo permite que sejam
irresponsáveis. Eles zombam das reprovações que recebem;
desafiam a Deus; neles só se vê o mal. Todavia, não se deixarão
advertir do perigo que os ameaça; sabem que estão a um passo da
destruição, porém não podem suportar deixar seu caminho. Visto,
porém, que são doentes que não querem ser curados; visto que
recusam todo o remédio que lhe é oferecido, deixe-se que pereçam
como pobres criaturas que são.
E assim, quando Paulo demanda que os filhos dos ministros
sejam isentos da acusação de indisciplina, ele quer dizer que não se
encontre neles nenhuma perversidade; que se comportem
honestamente; não deem motivo de ofensa nem apresentem
escusas quando alguém os injuriar e os difamar. Esse é o segundo
ponto.
Em terceiro lugar, não devem ser rebeldes; isto é, o ministro
que proclama a Palavra e que governa a igreja de Deus deve prover
que seus filhos não sejam intemperantes, obstinados ou duros de
manejar como bestas selvagens. Se não tiver bom êxito com seus
filhos, como poderá ter bom êxito com os que não são relacionados
com ele? Se ele não pode controlar a insolência de uma criancinha,
o que fará com uma congregação inteira? Esse, pois, é o que Paulo
queria dizer.
Note-se, contudo, que, embora esteja falando dos que haverão
de ser escolhidos pastores, este ensino é relevante a todos nós.
Paulo não está propriamente falando a pastores sobre o que devem
ser, mas está descrevendo as qualidades da pessoa escolhida para
tal ofício. O homem, diz ele, que é tão perverso que não pode
governar sua própria casa, esse mesmo não pode suportar uma
carga muito mais pesada e mais difícil. Quando vem a questão da
escolha de ministros, devemos ir muito além disso. Qualquer
homem escolhido para ensinar a Palavra de Deus, mas que se
comporta mal, tanto ele quanto toda a sua casa, perde o direito à
sua herança. Ele deve ser afastado; sua ofensa não deve ser
tolerada. Assim como cada um deve olhar para si mesmo, também
aquele que mantiver o ofício público atente bem para o conselho de
Paulo, de modo que saibamos quais pessoas podem ser escolhidas
e que obedecem a regra aqui estabelecida. Roguemos de Deus a
graça de viver de tal modo que sua Palavra não seja exposta ao
ridículo por nossa causa e que nossas falhas não deem ao perverso
motivo de blasfemar o nome de Deus, dizendo: “Esse homem é um
blasfemo e malfeitor. Que belo bispo ele representa!”. Que tal
censura não saia dos lábios do perverso sem que seja
envergonhado e se revele sua perversidade quando disser tais
coisas. Portanto, Paulo nos ensina que tipo de cristãos devemos
ser.
É verdade que os ministros da Palavra de Deus devem
assumir a liderança, mas os demais devem seguir, cada um
segundo sua vocação. E quando, em sua bondade, Deus permitir
que um homem se case, que seu desejo seja de tal modo adstrito e
jungido à sua esposa, que não seja assaltado pela luxúria ou seu
coração seja tentado em qualquer lugar. Que ele siga em frente,
sabendo que se casou em nome de Deus e que deve ser fiel à sua
esposa, visto que ela lhe foi dividida com ele por Deus. Por isso
todos os cristãos, ainda que cidadãos privados, devem viver de tal
modo que se contente com sua esposa, vivendo com integridade
sem porfia. E aqueles a quem Deus honrou com filhos saibam que
têm um dever ainda maior de dar assistência à instrução de seus
filhos. Ora, se desejam que seus filhos recebam um ensino sólido,
então que comecem sempre com o exercício da fé.
É possível que os filhos aparentem possuir todas as virtudes
do mundo, mas nada serão a menos que sejam tementes e honrem
a Deus. Por exemplo, existem muitos pais que exercem grande
cuidado para que seus filhos sejam bem-educados nas atividades
mundanas. Eles os munem com numerosos tutores, mas apenas
com o fim de ensinar-lhes maneiras atraentes e duas ou três
palavras em latim de modo que possam exibir-se à mesa,
conversem polidamente e pareçam bons aos olhos do mundo. No
entanto, não se fala sequer uma palavra sobre o conhecimento de
Deus. Esse não é o caminho a seguir; agir assim equivale a pôr a
carroça adiante do cavalo. Portanto, devemos seguir o exemplo de
Paulo de primeiramente instruir nossos filhos na fé. Uma vez que
passem a conhecer a Deus, um firme fundamento terá sido lançado
sobre o qual construir; sem este, só haverá ruína e confusão.
Quando nos esforçarmos a ensinar nossos filhos a fé em Deus e o
puro conhecimento de sua verdade, que sua vida dê testemunho
disso. Que eles sejam íntegros, sem indisciplina ou falta de controle;
que sejam de tal modo disciplinados que se mantenham limpos de
glutonaria, embriaguez, jogatina maligna e coisas semelhantes; que
neles não haja velhacaria, fazendo uso de um termo comum. Esta,
pois, é a segunda lição que Paulo quer que aprendamos.
Todavia, visto que os jovens constituem um tipo de fera difícil
de domar, Paulo lhes ordena que sejam humildes e tratáveis; pois
se as criancinhas não podem aprender o autocontrole, por mais que
tentemos educá-los, darão coices como potros indomados que
mordem e correm desembestadamente de seus donos. Eis por que
Paulo, aqui, situa a humildade como a virtude muitíssimo necessária
para os jovens. Todavia, tão necessária como é, é muito raramente
encontrada. Se visualizarmos os jovens de hoje, como se
comportam? É verdade que os pais às vezes bem merecem ter seus
filhos arrancando seus olhos, porquanto não cuidam em vê-los
criados no temor de Deus. Porventura não é justo que sejam pagos
com moeda semelhante? É deplorável que os filhos sejam tão
desobedientes que não possam ser de modo algum domados
quando pequenos, ou ser de alguma forma levados a degustar a
bondade. O que acontecerá, pois, quando forem mais crescidos?
Não digo “quando chegarem a ser homens viris”, mas quando já não
forem crianças, quando forem o que denominamos de adolescentes.
Oh! Gostariam de ser chamados homens e pensam que é um erro
se são chamados de um nome diferente! Deveriam ser mantidos na
escola por mais dez anos e sentir a vara do professor; contudo,
querem ser tidos como adultos! Uma vez e outra lhes tenho dito:
“Acaso são palhaços se denominando de homens? Vocês precisam
é de vara para que se mantenham controlados!”. Se atentassem
para estas advertências, então não haveria necessidade de lágrimas
agora ou da presente exibição de severidade. Não haveria
necessidade de envergonhá-los com punições se fossem mais
sábios e com maior discernimento.
Por isso devemos ser duplamente cuidadosos em seguir o
conselho de Paulo. Que os pais mantenham rédea curta para com
seus filhos; e seus filhos tentem fazer a parte de homens quando
estiverem ainda sujeitos à vara e sejam assim poupados.
Naturalmente, os pais não devem provocar seus filhos ou levá-los a
um mau comportamento em razão de sua excessiva severidade.
Mesmo assim, devem temer que seus filhos, sendo de difícil
controle, não quebrem as peias e se entreguem a toda forma de
perversidade e vão de mal a pior com o fim de ver seu caminho
liberado. Ao mesmo tempo, os jovens saibam que, a menos que
exerçam controle e obedeçam serenamente à liderança de seus
anciãos, haveremos de chorar envergonhados de todas as suas
virtudes. Estas não serão mais que arrogante presunção e lixo sem
valor, e Deus lhes abaterá o orgulho. Que todos nós aprendamos
esta lição como que aprendida do apóstolo nesta passagem.

Oração
Agora curvemo-nos diante da face de nosso bom Deus,
reconhecendo nossas falhas e orando para que ele nos faça de tal
modo senti-las que, do maior ao menor, nos humilhemos e
busquemos refúgio somente em sua mercê. Assim também,
resolvamos retornar para ele e crescer ainda mais em seu temor e
em sua obediência. Invoquemos seu nome para que sua casa seja
purificada de toda corrupção e para que esta não prevaleça entre
nós e cada um seja ajudado a almejar sua salvação. Que todos nós,
em comum acordo, façamos com que esta seja nossa meta comum.
5. QUINTO SERMÃO: A LIDERANÇA NA IGREJA (2) [Tito 1.7-9]
Porque é indispensável que o bispo seja irrepreensível como
despenseiro de Deus, não arrogante, não irascível, não dado ao
vinho, nem violento, nem cobiçoso de torpe ganância; antes,
hospitaleiro, amigo do bem, sóbrio, justo, piedoso, que tenha
domínio de si, apegado à palavra fiel, que é segundo a doutrina, de
modo que tenha poder para exortar pelo reto ensino como para
vencer os que contradizem.

Para extrair o máximo benefício desta passagem, devemos ter em


mente que os que são chamados a declarar a Palavra de Deus
devem ser transparentes quanto ao que envolve sua tarefa e ofício,
de modo que cumpram fielmente seu dever tanto para com Deus
quanto para com sua igreja. Todos os cristãos, em geral, deveriam
considerar o que se requer de um bom pastor, de modo que não
decidam displicentemente ou ajam com parcialidade, interesse
pessoal ou de maneira irrefletida. Que cada um de nós leve em
conta o bem-estar e a salvação de todos os filhos de Deus e que a
mesma coisa seja observada nos que já exercem seu ofício. Não
devem reter seu cargo, a menos que se comportem como ordena o
Santo Espírito. Mais uma vez, visto que as virtudes descritas por
Paulo são requeridas de todos os ministros da Palavra de Deus,
sendo aqueles que têm a incumbência de mostrar o caminho a
outros, há aqui uma lição geral para todos nós. Pois, se um pastor
se comporta bem e em conformidade com a vontade de Deus,
enquanto o povo se entrega a toda sorte de mal e depravação, o
que acontecerá? Assim como o pastor deve mostrar o caminho e
dar o bom exemplo, assim também todo o corpo da igreja deve se
comprometer com o que é ensinado aqui.
Para explicar o texto de Paulo de maneira mais ordenada,
devemos observar que aqueles a quem ele inicialmente chamou de
presbíteros ou anciãos agora os denomina bispos, significando —
como devemos intitulá-los — “supervisores” ou “guardiães”, e dá
este título a todos os que se destinam a proclamar a Palavra de
Deus. Este termo veio a ser um equívoco e perversão entre os
papistas e, aliás, na Igreja Primitiva, ao empossar um homem como
bispo. Isso alterava as palavras do Espírito Santo, ao passo que
nosso dever é falar de acordo com a Escritura. É óbvio que Satanás
tentava afastar-nos da simplicidade pura da Palavra de Deus, e
erramos e injuriamos o próprio Deus quando buscamos apartar-nos
da ordem que ele sancionou por sua infalível autoridade. Notemos,
pois, que todos aqueles a quem Deus tem chamado e comissionado
a pregar sua Palavra devem, como anciãos, ser antes de tudo
maduros e sóbrios. São também supervisores, como vemos o
profeta Ezequiel comparando-os a vigias em uma torre [Ez 3.17].
Este não é um título de honra ou distinção; é um cargo — um cargo
muito difícil e oneroso: vigiar e cuidar de todo o rebanho enquanto
outros dormem.
Portanto, esta é a primeira coisa a considerar. O título que o
Espírito Santo designa a todos os pastores já revela a obra para a
qual Deus os chama e o dever que devem para com sua igreja. Em
consequência, que os homens não pensem que merecem ser
tratados como prelados enquanto gastam seu tempo repousando,
dormindo ou comendo até se fartar! Deus não escolhe pastores, em
sua igreja, por sua bela aparência, como corre o dito. Ele os junge
estritamente a todo o seu povo, pois não podemos servir a Deus
exceto quando trabalhamos para servir a todo o rebanho. A maior
honra que os ministros da Palavra podem ter é servir aos crentes —
todos eles!
Mudemo-nos agora para o que é dito sobre os supervisores.
Devem ser irrepreensíveis, sendo despenseiros na casa de Deus.
Já notamos as palavras de Paulo a Timóteo: “para que, se eu tardar,
fiques ciente de como deve proceder na casa de Deus, que é a
igreja do Deus vivo, coluna e baluarte da verdade”. “Ninguém
despreze a tua mocidade; pelo contrário, torna-te padrão dos fiéis,
na palavra, no procedimento, no amor, na fé, na pureza” [1Tm 3.15;
4.12]. Seria algo tão pequeno ser administrador de Deus e exercer o
controle de sua casa? Daí a insistência de Paulo em que aqueles
que foram honrados por Deus portem e preguem sua Palavra, tendo
cuidado de como andam, pois são administradores de sua casa.
Em contrapartida, encontramos neste texto uma mensagem de
grande e especial conforto. Deus nos honra ainda mais quando se
digna chamar-nos para sua casa, fazer-nos membros de sua família,
habitar em nosso meio e continuar conosco. Isso só pode se dar
quando vivemos juntos dele, quando seus olhos permanecem sobre
nós e ele se esforça em nos guiar e alimentar. Deveria comover-nos
grandemente saber que não somos separados de nosso Deus; que
não cremos, como se diz, por procuração; que não somos deixados
à deriva para extraviar-nos, mas somos reunidos por ele ao seu
rebanho, de modo que ele está e permanecerá conosco até o fim do
mundo. Assim somos encorajados a amá-lo e a servi-lo com um
coração mui fervoroso. Visto que ele nos tem em seu cuidado, nos
recebe em sua família e é nosso Pai e Mestre, e visto que ele
designa administradores para que tudo seja feito segundo a
necessidade, tudo é ordenado e entre nós nada fica fora de lugar —
quando vemos que Deus se faz conhecido de maneira tão íntima,
acaso realmente não seríamos ingratos se não fôssemos levados a
amá-lo e a servi-lo?
Portanto, quando a igreja é chamada casa de Deus, isso se dá
para que engrandeçamos a infinita bondade que Deus tem
demonstrado atraindo-nos para junto de si, habitando no corpo
composto de todos os crentes e esperando que nos unamos a ele.
Ele cuida de nossa salvação e a todo tempo nos dirige e nos
alimenta como nosso Senhor e único Guardião, não para sua
própria vantagem, mas para nossa salvação. Além do mais, visto
que isso é assim, saibamos que não podemos escapar à vista de
Deus, pois estamos perto dele. Portanto, que cada um de nós se
mantenha sob controle. E, porque ele nos tem admitido à
companhia dos fiéis, sejamos ainda mais zelosos a oferecer-nos a
ele e, assim, ele nos guie; e não nos comportemos como bestas
selvagens, visto que ele nos tem abençoado, congregando-nos em
sua casa. Ele quer que sejamos como cordeiros, já que deseja ser
pessoalmente nosso Pastor.
Vemos, pois, que este texto não visa somente aos ministros da
Palavra, mas é proveitoso a todos os crentes se aprenderem a pô-lo
em prática. Nesse ínterim, Paulo explica em detalhe as outras
virtudes requeridas de um bom pastor. Não devem ser orgulhosos
ou obstinados, apegados demais às suas próprias ideias, não
irascíveis, nem dados a muito vinho, nem cobiçosos de torpe
ganância [ou lucro desonesto]. Aqui o apóstolo cataloga as virtudes
por seus opostos, como se quisesse dizer que um homem dado ao
vinho, obstinado, rixento e cobiçoso de lucro poluísse o lugar onde
está e contaminasse toda a igreja. Essas são as ofensas às quais
ele referiu anteriormente quando declarou que o bispo devia ser
irrepreensível. Ora, os erros descritos aqui são de fato graves;
apontam para a contaminação que os pagãos causam em todo o
governo da igreja. Um homem que é manchado de alguma maneira
por tais erros não pode servir a Deus; ele tem primeiro de ser
purificado de todos. A lista que Paulo faz das virtudes principais
requer do homem que proclama a Palavra de Deus que se abstenha
dos erros que aqui são condenados e se esforce por corrigi-los, de
modo que nada o impeça de realizar seu trabalho.
Portanto, o pecado da obstinação que Paulo menciona torna
os homens insuportáveis. Quando confia plenamente em seu
próprio julgamento, o homem é um mundo à parte, como os
escritores pagãos disseram com sabedoria. Assim como um ministro
da Palavra de Deus deve conquistar os que são de fora, por assim
dizer, ele deve também preservar a unidade e a paz entre os que já
pertencem à igreja. No entanto, se ele tem muitas opiniões fixas,
será levado a agitar o rebanho de Deus, e daí resultarão terríveis
divisões. Eis por que um homem deve pôr de lado suas próprias
ideias a fim de servir a Deus e manter a harmonia na igreja.
Duas coisas são especialmente importantes aqui. Quando nos
pomos a ensinar os outros, antes de tudo nós mesmos temos de ser
ensinados, pois, se formos relutantes em aprender e então crescer
em entendimento, de modo que outros cresçam conosco, não
podemos cumprir nossa tarefa. Portanto, aquele a quem Deus
estabeleceu como mestre e instrutor em sua casa tem que ser o
primeiro aluno, devendo estar ainda mais disposto a receber o
ensino e a admoestação. Este é o primeiro ponto. O segundo é que
devemos permitir que outros deem seu parecer e ofereçam
conselho, bem como estejam preparados a aceitar o que for mais
conveniente. Essa, em suma, é a intenção de Paulo aqui. Os que
são chamados a pregar a Palavra não devem ser teimosos demais;
têm de ser ensináveis, tendo maneiras brandas e espírito pacífico,
sendo seu único desejo edificar. Tampouco devem ser inflados de
orgulho a ponto de pensarem que já conhecem tudo. Ao contrário,
devem indagar com o fim de aprender algo novo a cada dia, e que
nutram a ânsia de receber instrução. Quanto à disposição, que
sejam igualmente flexíveis. É um fato que todos os que são
culpados de orgulho são também, em qualquer tempo, suscetíveis a
causar cismas, gerando facções na igreja de Deus e inquietando a
todos. É por isso que Paulo é justificado em querer corrigir tal
arrogância. Ele a chama de ofensa, e a experiência o corrobora.
Reiterando, lemos que o bispo não deve ser irascível. Este é
um erro parecido com a arrogância, pois, se alguém permite que
sentimentos fortes o dominem, decerto será impedido de servir a
Deus. De modo semelhante, a embriaguez inflama o orgulho dos
que já são demasiadamente inclinados a esse comportamento. Visto
que ela é uma sorte de demência, Paulo convoca explicitamente os
ministros de Cristo a que sejam sóbrios e não inclinados a muito
vinho. Se um homem sucumbe à embriaguez, é inapto ao raciocínio,
à firmeza e à moderação. Tudo isso, pois, nada mais é do que
pragas mortais, que Paulo chama de fracassos e dos quais os
ministros devem se precaver. Além do mais, ele acresce que não
devem ser violentos [ou, belicosos ou rixentos]. Não devem ser
como soldados, sempre prontos a sacar sua arma e incitar uma luta,
como se a espada estivesse sempre em sua mão. Este é outro erro
que deve ser corrigido. Por último vem cobiçoso. É indubitável que
um homem que, enquanto no ofício, tenta obter riqueza não é
superior a um alcoviteiro quando ostenta a Palavra de Deus e a
macula. Ele busca agradar a um homem e contentar a outro, porém
termina desfigurando e distorcendo tudo. Ou, pior, ele põe um verniz
tão falso nas coisas que se faz evidente que sua intenção é enfeitar
suas velas. Seu alvo é beneficiar a si mesmo e, como corre o dito,
trazer mais grãos para seu moinho. Portanto, se a motivação do
ministro da Palavra for a cobiça, seguramente ele não será melhor
que os forjadores, pervertendo a sã doutrina e convertendo a
verdade em mentira.
Esta é a primeira lição que Paulo apresenta em sua lista de
virtudes em termos negativos, onde se requer dos que desejam
edificar fielmente a igreja de Deus se abstenham de todo vício
abominável que nesta vocação é intolerável. A seguir ele fala
positivamente sobre as virtudes. Um bispo deve ser hospitaleiro
para com os estrangeiros e recebê-los bem e de modo generoso.
Este é um dever que deve sempre ser observado; mas, como já
dissemos em um sermão sobre Timóteo, havia uma razão particular
naqueles tempos.[10] Os crentes pobres se assemelhavam a aves
em um ramo, saltando de um lugar para outro; como as
perseguições surgiam e as fogueiras eram acesas, um grupo se
levantava e mudava para outra cidade ou para onde pudessem,
estando frequentemente em risco de morte. Então havia
necessidade de muita compaixão. É com boa razão, pois, que Paulo
requer que o bispo, mais ou menos o pai da igreja, seja generoso e
dê as boas-vindas aos estrangeiros, recebendo-os de forma
fraterna.
Após a hospitalidade, Paulo lista amigo do bem, ou bondoso,
uma virtude associada à precedente, pois, embora o apóstolo
empregue somente uma palavra, ela tem o sentido de “amor pela
humanidade”, sendo o sentimento magnânimo que nos inspira a
praticar o bem para com os que são necessitados, e a fazê-lo com
boa vontade. Daí, a pessoa que é descaridosa ou destituída de
piedade e que vive no ócio sem qualquer respeito para com os
demais, nunca pode exibir hospitalidade para com o perseguido e
afligido. Eis por que Paulo liga estas duas virtudes. Mas ele
prossegue, adicionando as palavras: sóbrio, justo, piedoso e que
exerce domínio de si. Sobriedade tem a ver com o modo como
vivemos. Então há justiça, isto é, equidade, quando um homem é
cuidadoso em respeitar os direitos de outrem e prefere antes morrer
que errar, prejudicar ou fazer violência a outrem. Isso é o que Paulo
tem em mente com a palavra “justiça”. Então há também a
santidade [ou, piedade], que diz respeito principalmente a Deus.
Devemos viver não só sem injuriar nossos semelhantes, devemos
também ser puros, dedicados ao serviço de Deus e valorizar tudo o
que está contido na primeira tábua da lei, significando orações,
súplicas e a honra que rendemos a Deus. Além do mais, devemos
aprender a esquivar-nos do mundo, fugir da extravagância,
esvaziando-nos da vaidade e da autoindulgência, contentando-nos,
em vez disso, em conduzir-nos em obediência a Deus. Eis o que
santidade envolve, enquanto justiça, conduta honesta e íntegra
entre nós mesmos, tem a ver com os homens.
Por último, vem o domínio de si. Isto cobre tudo o que a
palavra “sobriedade” implica. Pois não basta ser sóbrio em nosso
beber e comer; temos de ser disciplinados e decentes em cada área
da vida, mantendo sob controle nossas mãos, olhos, ouvidos e
lábios. Por domínio de si, Paulo realmente quer dizer-nos que
estejamos prontos e moderados, não indômitos nem devassos em
nosso comportamento e sem presunção — tudo o que nos
caracterizaria como dissolutos e sem boa reputação. Temos de tal
modo de obrigar-nos para com Deus por nossa obediência, que os
homens vejam que já renunciamos o mundo. Essa é a mensagem
de Paulo para nós aqui.
Ele conclui dizendo que os bispos devem ser apegados à
palavra fiel, que é segundo a doutrina. Esta é a principal coisa que
se exige dos ministros da Palavra. Não só que sejam bem instruídos
a fim de que possam ensinar a outros, mas também que sejam
firmes e constantes em seu fundamento, para lutar quando a
verdadeira doutrina tiver de ser defendida, de modo que permaneça
intocada. Eis por que a palavra que Paulo usa significa tanto “reter”
quanto “abraçar”. Por isso, devemos ver que nosso ensino seja
verdadeiro. Se estivermos fortemente apegados a ela, ela jamais se
desvencilhará de nós. Por mais que o diabo faça seu melhor
empenho para afastá-la de nosso alcance, jamais nos separaremos
dela. Paulo ainda explica seu uso. Ela é o meio pelo qual podemos
exortar pelo reto ensino e convencer os que o contradizem. Isto é,
nos é dada a habilidade e os meios para ensinar os que se
prontificam a obedecer a Deus e que são tranquilos; mas também
temos o poder de lutar contra os que se mostram hostis para com a
Palavra de Deus; contra os rebeldes e escarnecedores; contra os
que buscam a ruína da igreja. Temos o poder e a autoridade de
reprová-los; de modo que, se insistirem, serão envergonhados. Isso,
sucintamente, é o que nos é ensinado aqui.
Já dissemos que, embora Paulo tenha ministros para liderar,
ele considera seu ensino relevante a todos os crentes. Pois, por que
os ministros da Palavra devem viver uma vida bem regrada, justa e
santa? Por que devem ser sóbrios, não dados ao vinho, não
intrigantes ou amantes das disputas? Por que devem ser
temperados? Para que a Palavra de Deus não seja blasfemada
quando são encontrados neles esses erros óbvios. Também é para
que possam atestar sua doutrina mediante seu bom viver e assim
possam confirmá-la e esta seja mais prontamente recebida. Por fim,
é para que o povo siga seu exemplo e se modele em todas as
virtudes vistas em seus pastores. É claro, pois, que Paulo não quer
meramente que os ministros da Palavra evitem um comportamento
selvagem e indisciplinado, dominado pela cobiça e pela arrogância,
e sejam benignos, justos, sóbrios e puros. Todos os crentes não são
menos instados a fazerem da sobriedade uma virtude comum a
todos, lado a lado com a justiça, santidade, domínio próprio e todo o
resto que se menciona aqui. Acaso temos de dar prova real de que
somos filhos de Deus? Então resolvamos corrigir os erros que Paulo
condena e a perseguir as virtudes que ele demanda.
Ora, se um ministro é encarregado da casa de Deus, não
significa que cada um de nós, como pessoa privada, tem uma
vocação similar de servir como líder. Quando Deus chama
determinada pessoa para proclamar sua Palavra, não é para que ele
escuse os demais ou que não queira fazer uso deles. Ao contrário, é
para que Deus seja servido por todos sem exceção. É em plena
consciência que nos entregamos ao seu serviço que Deus nos
ordena a pregar sua Palavra. Pois, quando ele nos honra,
recebendo-nos em sua casa e nos adotando como seus filhos, sua
intenção não é que sejamos ociosos, nem nos dá nossa aptidão e
nos permite que nos intrometamos como bem quisermos. Ele
pretende manter-nos sob o jugo para que tudo façamos para
glorificá-lo. Não devemos ser inúteis, pois Deus nos tem honrado,
empregando-nos em seu serviço. Em consequência, que os
ministros da Palavra olhem detidamente para si mesmos e que
todos os cristãos também saibam que possuem uma regra que tem
a ver com eles e os inclui, desde o maior até o menor.
Portanto, que sejamos guiados pelo espírito de equilíbrio e
sobriedade, justiça e santidade, de que Paulo fala. E também
observemos tal disciplina, que os pecados mencionados aqui não
nos dominem. Por exemplo, nada pode ser mais avesso ao caráter
dos crentes do que a embriaguez. Se todos os homens são feitos à
imagem de Deus, e se o ébrio afunda tão baixo que chega a
assemelhar-se a um animal sem raciocínio ou entendimento, acaso
não devemos manter-nos com rédeas mais curtas? Quando os
homens se embriagam, não só a brutalidade oblitera a imagem de
Deus que Cristo restaurou em nós, mas também toda a decência da
vida. Eles se comportam como cães e porcos. Então, se desejamos
ser tidos como filhos de Deus, acaso não devemos nós
desvencilhar-nos deste vício? Essa é a razão de Paulo excomungar
todos os ébrios e proibir-nos de ter transações com eles ou de
buscar sua companhia [1Co 5.11], de modo que, vencidos pela
vergonha, emendem suas vidas — porquanto estão longe de ser
admitidos à santa mesa de nosso Senhor Jesus Cristo.
Reiterando, acaso o orgulho e a arrogância não são totalmente
opostos ao espírito de mansidão que é a verdadeira marca dos
filhos de Deus? Como alguém saberá que tiramos proveito da
escola de Cristo? Somente se formos mansos, humildes e
moderados. Portanto, quando alguém se infla de orgulho, esse é um
sinal de que o tal é amante demais de seus próprios pensamentos e
pretensões e nunca provou o que significa tirar proveito da escola
de Deus ou de nosso Senhor Jesus Cristo.
Quanto à cupidez, sabemos que esta é comum não só nos
ministros, mas também em todo o rebanho de Deus. Pensamos
tanto sobre este mundo e nos esquecemos das benesses espirituais
e da herança à qual Deus nos chama. Então, o que sucederá se a
cupidez prevalecer e se formos de tal modo apanhados em nossa
preocupação com os bens do mundo, a ponto de nos esquecermos
da vida celestial? Embora esta repreensão seja martelada em
nossos ouvidos e sejamos diariamente lembrados deste pecado,
nos preocupamos perenemente com os cuidados terrenos e de tal
modo nos vemos atados a este mundo, que não podemos elevar
nossas mentes ao alto com o intuito de pensar seriamente na vida
celestial. O que a Escritura diz nunca cessa de ser verdadeiro:
“Onde estiver o nosso tesouro, aí estará o nosso coração” [Mt 6.21;
Lc 12.34]. Os que são apegados aos bens deste mundo, de tal
modo põem neles sua mente e coração, que não podem aspirar à
herança celestial. Eis por que chamamos a cupidez uma praga
mortal que cega os homens e lhes rouba a promessa de Deus. Não
surpreende, pois, que Paulo a intitule “a raiz de todos os males”
[1Tm 6.10], pois ela suscita a ilusão e outros males: a traição, a
deslealdade e a crueldade. Não há perversidade que não se origine
da cupidez. Um homem motivado pela cupidez se esquecerá de
toda retidão, como se lhe fosse permitido fazer qualquer coisa. Ele
se sentirá livre para roubar e apanhar tudo quanto possa e, então,
se voltará e se rirá de Deus. Ele não demonstra nenhum temor
quando se fala de agressão ou violência. A cupidez leva os homens
a matar, a corromper e a fazer tudo quanto possa para prejudicar
uns aos outros. Em suma, é uma demência que de tal modo se
apodera dos homens, que estes se tornam como demônios quando
dominados pela cupidez. Que tanto os ministros da Palavra de Deus
e todos quantos são crentes se mantenham livres dela.
Paulo prossegue exortando-nos não só a sermos pacíficos,
mas também pacificadores, uma marca pela qual nosso Senhor
Jesus Cristo quer que sejamos conhecidos. “Bem-aventurados os
pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus” [Mt 5.9]. Ora,
se formos vingativos, rixentos e amantes de disputas, acaso não
estaremos demonstrando que somos estranhos à paz de Deus e
que nada há dele em nós? Sabemos que toda afinidade e
relacionamentos vêm de Deus, e somos instados a preservar entre
nós a fraternidade e a santa unidade, como membros de um só
corpo. Como, pois, pode ser que os que são rixentos e contenciosos
sejam realmente chamados filhos de Deus? Além do mais, requer-
se de nós que sejamos bondosos para com os estranhos, quando
os virmos destituídos de ajuda e socorro. É um ato de monstruosa
barbárie deixar de demonstrar piedade ou compaixão para com os
que nada possuem. Sempre foi um hábito mesmo entre os pagãos
vilipendiar os que eram tão insensíveis e ignorantes, que não
recebiam os sem teto. Então, quando a igreja de Deus se vê
atribulada por tiranos e inimigos da verdade e quando os crentes
pobres são arrancados de seus lares, quanto mais culpado somos
nós se negamos a Deus deixando de recebê-los calorosamente!
Pois a intenção de Deus é que também sejamos estrangeiros
neste mundo, e isto sob a condição de que ele nos faça seus filhos,
como escreve o apóstolo na carta aos Hebreus [Hb 11.13]. Deus
está no céu, contudo desceu onde estamos a fim de ter domínio
sobre nós. Por seu exemplo, ele não mostra o quanto se apieda dos
que se achegam a nós em busca de refúgio, posto que são como
pobres ovelhas dispersas por lobos vorazes? Aqui, outra vez, Paulo
fala não só aos ministros, mas lhes revela como em um espelho o
que devemos ser, como se faz evidente à luz de suas observações
seguintes sobre a bondade e as boas obras. Se somos tão
renitentes a ponto de não querer ajudar o necessitado e destituído,
ou sentir compaixão quando nossos semelhantes sofrem, é óbvio
que não temos parte em Deus. Portanto, Deus quer que nos
conformemos à sua semelhança, praticando o bem. Nosso Senhor
Jesus Cristo ensina que este é o que se parece com o Pai celestial,
visto que ele faz raiar seu sol não só sobre os bons, mas também
sobre os indignos [Mt 5.45]. Então, o que devemos fazer, senão
pesar bem o que Deus põe em nossas mãos e ter na memória que
devemos partilhar uns com os outros, cada um servindo ao
próximo? De outro modo, Deus teria que ter criado tantos mundos
quantos há homens e mulheres, se cada um de nós tencionasse
cuidar somente de si próprio e fechar-se em seu canto tacanho!
Contudo, visto que ele nos conduz juntos, e visto que temos vida em
comum, devemos reconhecer que não nascemos para nós mesmos
a ponto de viver neste mundo para nosso próprio benefício, mas
para partilhar com nossos semelhantes e servi-los. E ai de nós se
não pudermos ver isso!
Devemos ser cuidadosos em demonstrar tanta bondade
quanto possível e sempre que tivermos os meios; e resolvamos
fazer o bem a todos: assistir aos que necessitam de nossa ajuda;
trazer-lhes alívio e partilhar com eles o que temos para que não seja
somente nosso, mas, à medida que nos permitir a oportunidade,
para o benefício de todos. É verdade que não se pode estabelecer
aqui nenhuma definição da lei. Paulo se contenta em encorajar-nos
a agir livre e generosamente. Não obstante, damos claras provas de
que não somos filhos de Deus se não houver em nós amor e
bondade que nos inspirem a ajudar o necessitado. De fato, se
falharmos aqui, distorcemos o que a própria natureza nos tem para
ensinar, ainda que sejamos vazios de fé, religião ou conhecimento
da lei e do evangelho.
A lista de Paulo inclui a sobriedade e a temperança, revelando
que, se somos cristãos, não basta abster-nos do mal, da extorsão,
da violência, da crueldade, da usura, do furto e do roubo. Devemos
também observar tal moderação, que não sejamos mundanos nem
dados à vã exibição, como os que nada mais querem senão
pavonear-se ostensivamente, ser respeitados, ataviados
esplendidamente e admirados à distância. As pessoas que têm tal
disparate em suas cabeças mostram que o mundo, em grande
medida, continua sendo seu dono. São libertinos, sempre desejosos
de fazer-se glutões e de ventres empanturrados. Longe de ser
pródigos alunos na escola de Deus, nem mesmo merecem ser
reconhecidos como humanos! Se de fato fossem respeitáveis, não
esqueceriam esta lição. São desenfreados em seu beber e comer?
Então são demasiadamente dissolutos em cada área de sua vida.
Assim, os ébrios ficam tão alienados de suas faculdades mentais,
que matam a si mesmos como se quisessem cortar a própria
garganta. Quando chegam à mesa, se espojam como cães e a
deixam como porcos. Descontrolados em sua bebida e comida, se
prestam para nada. Quando os homens perdem a noção de como
comer e beber, como podem realmente dizer que é a mão de Deus
que os alimenta? Os pagãos mostram mais decência, como já
dissemos, visto que a natureza os conduz a isso.
No entanto, somos muito bem ensinados e temos uma razão
mais eficiente ao refrearmos nossos apetites. Pedimos a Deus que
nos dê nosso pão cotidiano e, ao comermos e bebermos, sempre
retemos em nossa mente que recebemos tudo de sua mão. Então,
se usamos mal estas coisas em razão da glutonaria ou bebedice,
acaso não estamos mais ou menos obliterando sua imagem em
nós? E acaso com isso não demonstramos que estamos tão
aferrados às coisas passageiras deste mundo que nos esquecemos
completamente do céu? Esta é a lição que devemos aprender deste
texto.
Paulo, ao seguir em frente, descreve os bispos como justos e
santos, e então deveríamos reconhecer que nos é requerido ser
íntegros e equânimes, permitindo que todos desfrutem do que é
seu, o que só podemos fazer se evitarmos a fraude e a malícia.
Portanto, não sejamos astutos em buscar nossa própria vantagem;
intuamos, porém, o que é devido aos outros e cumpramos nosso
dever para com eles. Ora, ao vivermos entre os homens, acaso
nunca lhes causamos dano ou injustiça? Então, vejamos também
que à vista de Deus demonstremos verdadeira santidade em nosso
comportamento. A Escritura nunca se enfada de ensinar-nos que
Deus, ao separar-nos da corrupção do mundo, faz da santidade a
marca pela qual mostramos que somos membros de sua família e
estamos sob o controle do Santo Espírito. Tomemos isto no coração
e olhemos mais detidamente para nós mesmos do que temos feito
até aqui. O requerimento de Paulo concernente ao ensino é algo
que, querendo Deus, consideraremos depois do jantar. Pois agora é
bastante trazer à memória que aqui Paulo buscava prover-nos de
uma regra que se aplica a todos os crentes, de modo que ninguém
pense em si mesmo como isento. Resta-nos ver como podemos
alcançar essas virtudes e como podemos subjugar e vencer os erros
que são condenados.
Ah! Quão inútil é nosso livre-arbítrio bem como nossa
inteligência. Esta tem de ser uma obra do próprio Deus. O que, pois,
está envolvido? Temos de ser membros de nosso Senhor Jesus
Cristo e nos tornarmos justos, santos, sóbrios e disciplinados. Como
isto pode ser feito? Somente quando o Espírito Santo nos governa é
que possuímos estas virtudes. Dizem-nos para fugir da embriaguez,
da intemperança, das rixas, das disputas e do orgulho. Como?
Quando tivermos o espírito de brandura, de humildade, do temor de
Deus, de sabedoria e de discernimento. Todas estas coisas foram
dadas a nosso Senhor Jesus Cristo, a fim de que as partilhasse com
seu povo fiel. Visto, pois, que por natureza somos intemperantes,
saturados de vaidade, mentiras, ambição e orgulho, dados à
injustiça, engano e furto; visto também que damos rédeas soltas aos
apetites desregrados, devemos chegar-nos em submissão com
nossa cabeça bem ordenada, sabendo que não há outro modo de
conservar-nos obedientes a Deus e viver em conformidade com sua
vontade, exceto estando unidos ao corpo de Cristo. Pois então seu
Santo Espírito nos é derramado; ele nos fortalece com mais eficácia,
porque ele é a fonte de toda santidade, de toda justiça e, em suma,
de toda perfeição. Esta é a vereda que devemos seguir a fim de
obter as coisas que Paulo demanda de nós. Eis por que somos
diariamente intimados à comunhão com nosso Senhor Jesus Cristo,
pois quando Paulo fala do propósito e uso próprio do evangelho, ele
diz que somos chamados à participação de Cristo. Estando unidos a
ele, somos feitos a um só corpo com ele, de modo que ele vive em
nós e estamos unidos a ele por um laço inquebrável. Sendo esse o
alvo do evangelho, segue-se que a mesma verdade nos é
comunicada pela santa ceia que neste momento é disposta diante
de nós. Como, pois, achegamo-nos a esta santa mesa? Sabendo
que aqui nosso Senhor Jesus Cristo se nos oferece a fim de
confirmar-nos na união que já recebemos pela fé no evangelho; de
tal modo somos parte de seu corpo, que ele vive em nós e nós nele.
E, assim, vejamos bem que façamos o máximo desta santa união e
nos apeguemos mais estreitamente ao Filho de Deus do que já
fizemos antes. Por esta razão, somos instados fortemente a fazer
uso desta santa ceia; essa é também a razão por que ela nos é
repetida. Somos terrenos e carnais enquanto vivermos neste
mundo. Devemos trazer à memória com frequência as coisas que
temos ouvido apenas uma vez; de modo que nos beneficiemos do
que é posto diante de nós. Só nos beneficiamos se formos
cuidadosos em não profanar a graça que nos é dada por Deus que,
por estes sinais, testifica que temos comunhão com seu Filho, nosso
Senhor Jesus Cristo.
Portanto, roguemos-lhe que de tal modo nos governe
mediante seu Santo Espírito, que não maculemos sua santa mesa.
E, reconhecendo que somos criaturas pobres e miseráveis,
acheguemo-nos a nosso Senhor Jesus Cristo para que nos purgue
de toda mácula. Como a fonte de toda pureza, que ele de tal modo
nos purifique, que renunciemos a todas as nossas falhas para que,
muito embora elas ainda permaneçam em nós, não exerçam
domínio sobre nós. E que o Santo Espírito de tal modo nos controle,
que os homens vejam que estamos unidos a ele e já nos afastamos
do mundo em busca das coisas espirituais. Lutemos, pois, contra as
vaidades de nossa carne e contra todas as paixões nocivas;
desejemos mais e mais crescer em sua imagem e ser reconhecidos
como seus filhos. Que o próprio Pai celestial nos reconheça como
seus herdeiros.

Oração
Agora nos prostremos diante da face de nosso bom Deus,
reconhecendo nossos erros e orando para que ele nos faça senti-las
mais agudamente do que antes; para que aprendamos a odiá-las e,
ao odiá-las, volvamo-nos para ele, oferecendo-nos a ele como
sacrifícios. E, fazendo morrer nossa velha natureza, que ele se
agrade de renovar-nos, de modo que glorifiquemos sempre seu
nome. Nesse ínterim, que ele mostre ser nosso Pai e nos sustente
em todas as nossas imperfeições; até que estas sejam totalmente
removidas de nós.
6. SEXTO SERMÃO: MANTENDO A VERDADE [Tito 1.9-10]

Apegado à palavra fiel, que é segundo a doutrina, de modo que


tenha poder para exortar pelo reto ensino como para convencer os
que o contradizem. Porque existem muitos insubordinados,
palradores, frívolos e enganadores, especialmente os da
circuncisão.

Paulo começou descrevendo a maneira de viver dos que proclamam


a Palavra de Deus de modo que fossem mais bem habilitados para
edificar, mediante sua sinceridade de linguagem e pela reverência
para com Deus. Agora ele passa a um ponto muito importante:
devem perseverar inabaláveis em pureza e ensino saudável. Isto
pressupõe que eles já haviam sido instruídos. Tal firmeza é
impossível a menos que antes de tudo se lance um fundamento
sólido.
É assim que descobrimos a diferença entre os homens que
são simplesmente renitentes e os que são firmes. Quando alguns
estúpidos, sem instrução adicional, criam uma ideia, eles se tornam
tão obstinados, que não darão ouvidos a outra opinião. Não é
virtude se alguém não mudar sua mente ou desvencilhar sua
cabeça de uma fantasia tola. Em contrapartida, a firmeza é sempre
fundada na razão e na verdade. Assim, quando aconselha os
pastores a se manterem firmes na sã doutrina, a fim de que ela não
lhes escape, Paulo quer que eles saibam que estão seguindo a
verdade de Deus, a fim de que declarem confiantemente de quem
procede sua mensagem e de modo algum se deixem abalar. Em
suma, pois, o apóstolo afirma que ninguém é apto a dirigir a igreja
de Deus, a menos que seja competente para ensinar; mas, também,
acrescenta a qualidade da firmeza. Um homem não deve ser
leviano; e, por mais que os ventos e os furacões soprem de todas as
direções, deve perseverar no que bem sabe vir de Deus.
Reiterando, Paulo insiste que a verdade de Deus deve ser
aplicada ao povo para sua instrução, pois ele fala da palavra fiel,
que é segundo a doutrina. É assim que ela deve ser usada para
edificar o povo. Quando Deus intima homens a pregar a Palavra,
seu propósito não é alimentar nossos ouvidos, ainda que haja
muitos que se achegam para ouvir o sermão movidos por
curiosidade irrefletida. Deus tem algo mais em vista: devemos ser
edificados, é possível dizer, para nosso próprio bem. Esse é um
ponto. Mas, além disso, Paulo sugere que não basta que os
pastores guiem os que são passíveis de aprender e prontos a
obedecer. Devem também estar armados para convencer os que o
contradizem. Caso haja alguém que se oponha à Palavra de Deus,
o homem que é designado pastor deve reprová-lo poderosamente.
Portanto, vemos o que Paulo está pretendendo. Ele demanda, com
razão, que aqueles que são estabelecidos por Deus em sua casa
sejam mestres íntegros. Se um homem escolhe alguém para
administrar sua casa, ele lhe designa seus deveres. Que deveres,
pois, Deus nos designou, senão comunicar a seu povo o alimento
da vida, isto é, sua Palavra? Sem isso, o título “pastor” significa
alguma coisa? Alguém que reivindicou ser o pastor de um rebanho
de ovelhas ou o guardador de uma manada de vacas, mas que
deixa os pobres animais famélicos até a morte, seguramente
merece ser apedrejado. Todavia, somos pastores, não de animais
irracionais, mas de filhos de Deus! Nossa tarefa é alimentar, não
corpos com alimento que perece, mas almas com o pão celestial. Se
não possuímos o que é necessário para cumprir nosso ofício, acaso
não estamos motejando de Deus, usurpando um título tão nobre,
quando a realidade é bem outra?
Observamos, pois, que ser pastor, supervisor, ministro,
presbítero e líder da igreja equivale a ser alguém cujo ensino edifica
o povo de Deus. Aqui, vemos muitíssimo bem que tipo de igreja
existe no papado. Gabam-se em alto e bom som de sua
preeminência ordenada por Deus, que é o argumento que usam
principalmente para rejeitar a própria Palavra de Deus e negar sua
autoridade. Quando citam a Santa Escritura, e o papa e seu fétido
clero permanecem publicamente condenados, seu único recurso é
dizer: “O que você quer dizer? Porventura não somos a igreja?”.
Ora, isso é algo a ser provado de uma maneira ou de outra. Alegam
que representam a igreja porque são prelados. Ah, sim, mas quem
tem o direito de decidir se são ou não prelados? Deus deve falar e
passar sentença, pois ele é o único juiz competente. Neste texto, ele
demonstra que as únicas pessoas a quem reconhece como
prelados ou bispos são as que são aptas e capazes de ensinar e
que cumprem com seu dever.
Então fica claro que Satanás estabeleceu uma sinagoga
infernal em todo o papado, visto que seus bispos não são melhores
que cães mudos. Enquanto seguem seus rituais e outros disparates
afins, enquanto montam um espetáculo convincente e são tratados
como ídolos, isso lhes basta. Pois não é parte do papel de um bispo
pregar a Palavra de Deus, e, mesmo que o fosse, tem de ser feito
com tão grande pompa e cerimônia, que seja tido como algo
muitíssimo incomum. Seria como um homem que caísse das nuvens
se um bispo entrasse com sua mitra cornuda na cabeça e abrisse a
boca para falar de Deus! Não devemos sentir-nos intimidados pela
ostentada reivindicação papista de constituir a igreja, pois seus
assim chamados prelados e bispos antes de tudo devem ser
ministros da Palavra de Deus. É suficiente o que foi dito sobre esse
ponto.
Os bispos, escreve Paulo, devem ser apegados à “palavra
fiel”. Se não podemos dizer a diferença entre o que é de Deus e o
que tem sido inventado pelos homens, isso só se dá porque somos
irredutivelmente obstinados. Portanto, temos de estar certos de que
a doutrina pela qual ele luta é de Deus; de outro modo não podemos
ter certeza. Sabemos que os homens, por natureza, são dados a
futilidades e mentiras. Temos de estar firmemente fundados em
Deus a fim de estarmos certos de nossa fé. Lembremo-nos, pois,
que a religião é nula e vazia a menos que o que nos é pregado
produza fruto. Isto é, não devemos nutrir dúvida de que ela vem de
Deus e de que é nisto que repousa nossa certeza. Aqui, uma vez
mais, observamos entre os papistas a pior confusão possível.
Esperar que eles nos ensinem a Palavra de Deus é fora de questão;
temos que contentar-nos com o que aos homens aprouve inventar
para si. São destituídos de discernimento. Aliás, sentir-se-iam felizes
em converter os homens em idiotas, pois, para crer como eles, seria
necessário abandonar toda a razão e o bom senso.
É verdade que a fé começa com a obediência a Deus.
Teríamos de tornar-nos imbecis; isto é, teríamos de esvaziar-nos de
nosso próprio entendimento. Não obstante, temos de ser bastante
sábios para ouvir a Deus e saber que é ele quem fala, de modo a
estarmos absolutamente certos de que o ensino ao qual aderimos é
confiável. Ao mesmo tempo, devemos observar que Paulo requer
também de nós que atestemos o que é ensinado, a fim de confirmar
sua autoridade, pois ele deve ser-nos proveitoso. Não basta que um
homem assevere que nunca ensinou o erro nem foi acusado de
pronunciar falsidades. Isso é bom enquanto se comprova, porém
não é tudo. Suponhamos que eu decida discutir alguma
especulação fútil. Se tudo o que eu disse foi proferir umas poucas
ideias engenhosas, mesmo que atraentes, sem que dentre os que
me ouvem sejam encorajados a temer a Deus, confiar em sua
bondade, ter certeza da salvação, fazer oração e súplica ou praticar
a paciência, se eu não fizer mais que isso, seria suficiente dizer que
eu não prego erro? Absolutamente, não! Profanamos a Palavra de
Deus quando pregamos sem qualquer objetivo e sem nenhum fim
real em vista. Eis por que, havendo falado da Palavra de Deus como
fiel e verdadeira, Paulo declara que ela também deve ser usada
para salvar almas, de modo que os que ouvem não gastem seu
tempo e o que fala não encha o ar com sons vãos e sem proveito,
porém mostre que ensina a Palavra de Deus para o bem-estar e a
salvação de todos. Eis também por que ele escreve no capítulo
doze de Romanos: “o que ensina, esmere-se em fazê-lo” [Rm 12.7].
Nesse texto, Paulo mostra que os que têm responsabilidades
públicas se empenhem em ver que tudo o que é feito seja para a
edificação da igreja e de todo o corpo. Os que ensinam não devem
tentar acentuar sua própria reputação ou alardear-se. Ai dos que
dão vazão a essa ambição! Em vez disso, devem alegrar-se por
poderem servir à igreja de Deus e ter sido de alguma utilidade. Daí a
injunção de Paulo, que os mestres ensinem e que os instrutores
atentem para sua instrução.
Agora fica claro o que Paulo quer dizer por “a palavra fiel que
é segundo a doutrina”. A verdade deve ser proclamada com pureza
e livre de qualquer mistura humana. Os crentes devem ter certeza
da fé e estar plenamente certos de que sabem de quem ela vem. De
resto, que não sejam alimentados de curiosidades fúteis, mas
tenham o alimento sólido que nutre amplamente nossas almas. Pois
quando ouvimos sermões sofisticados que nos agradam, mas que
não nos faz bem, isso se dá se nosso estômago estiver cheio de
vento a ponto de explodir e nossas entranhas estiverem inchadas e
empanzinadas. Mas onde está todo o alimento? A intenção de Deus
é que sua Palavra seja nosso alimento, como lemos no sexto
capítulo de João [Jo 6.35, 51]. Por isso devemos receber seu
ensino; ou, do contrário, qualquer outra coisa dada será meramente
lixo sem valor. Mesmo quando não seja possível dizer: “Isto é um
erro! Isto é heresia!”, não é suficiente. Ao mesmo tempo, devemos
estar aptos em dizer: “Isto nos foi muito proveitoso. Deus foi
gracioso para conosco, pois ouvimos a sua Palavra”. Como ela é
proveitosa? Porque, quando nos é pregada, ela nos dá certeza, a
fim de que não sejamos errantes como os ignorantes, mas nos
aferremos à sua graça e mercê, verdadeira e totalmente a ambas. E
assim nos acheguemos a Jesus Cristo para receber a certeza de
nossa salvação, conhecendo a obra que ele realizou e as bênçãos
sem preço que ele adquiriu para nós. Saibamos também o que
significa invocar a Deus em confiança e volver-nos para ele em
busca de socorro, ser pacientes na aflição e na adversidade, e
regozijar-nos em meio aos ais desta presente vida. Sabemos sobre
a vida celestial e como devemos passar por este mundo. Estas,
pois, são as coisas que Paulo especialmente requer.
Ele adiciona algo mais: “firmeza” [ou, constância]. Ele escreve
que “o pastor de tal modo abrace a doutrina pura e se mantenha
com segurança tal, que esta nunca escape de sua mão uma vez
recebida da parte de Deus”. Reiterando, aqui está uma virtude
muitíssimo necessária. Pois se mesmo os menos escolados e os
mais simples dentre os crentes forem firmes na fé, e não parecerem
caniços que tremem com o vento, o que será dos que devem dar o
exemplo aos demais? Paulo, no quarto capítulo de Efésios, nos
informa que, se formos instruídos no evangelho, então não seremos
como meninos que podem ser facilmente persuadidos de que giz é
queijo! Devemos receber a verdade de Deus com segurança e
permanecer constantes nela; que não nos deixemos emaranhar por
todo vento passageiro — essas são suas palavras —, senão que
resistamos a toda tentação e astúcia de Satanás e seus lacaios [Ef
4.14].
Esta advertência visa não só aos pastores, mas a cada crente,
do maior ao menor. O que dizer, pois, dos que são chamados para
ser colunas sobre as quais o resto repousa? João declara que a fé é
a vitória que vence o mundo [1Jo 5.4], e ali ele fala inclusive do
ignorante. Pois Isaías diz de todos os cristãos que “serão ensinados
por Deus” [Is 54.13]. Acaso esse ensino não implica que nossa fé
deve ser resoluta e solidamente fixa, de modo que nada possa
desviar-nos dela ou abalar-nos? Se a fé de uma pessoa particular
deve vencer o mundo — não um ataque ou mesmo uma dúzia, mas
todo e qualquer ardil que o diabo possa usar para destruir nossa fé
— e se, não obstante, a fé permanece invencível, estável e sem
mudança, o que dizer daqueles que guiam outros e que servem de
coadjuvantes da fé cristã? Consequentemente, Paulo tem toda
razão em instar conosco não só para que sejamos bem fundados na
verdade de Deus e nos certifiquemos de que ela é útil a todo o povo,
mas também permanece firme sem recuar. E ainda que os ventos,
os furacões e as tempestades se levantem, não tremamos, mas nos
aferremos sempre à sã doutrina, de modo que ninguém a arrebate
de nós, por mais ferozes e inexoráveis sejam seus ataques. Que
este tesouro nunca nos seja tomado, mas que conservemos sempre
a posse do ensino que nos foi confiado.
Eis uma coisa mui necessária; contudo saibamos que poucos
a observam realmente bem. Quantos encontramos hoje com
suficiente confiança para conservar bem segura a verdade de Deus
que uma vez lhes foi revelada? Vemos o que aconteceu quando
entrou o Interino diabólico; muitos se rebelaram e preferiram sentar-
se no muro em vez de encarar os odiados do mundo.[11] Isso se deu
porque deixaram de considerar a admoestação de Paulo de que
ninguém é apto para ensinar, a menos que resolva permanecer
firme e não transigir. Quisera Deus que exemplos desse tipo fossem
poucos e remotos! Mas, vejam só, há muitos pregadores que estão
tão prontos a promover o Alcorão de Maomé ou o breviário do papa
como sendo o evangelho, contanto que tenham algo a lucrar e
possam continuar vivendo como antes. Enquanto possuírem sua
panela de guisado e uma tigela à mão para enchê-la, realmente não
se preocupam. Alegam que creem na reforma evangélica, porém
são instrumentos de aluguel, menos dignos até mesmo que os
animais irracionais. São alcoviteiros, sempre mudando sua
aparência e desatentos do que o povo diz. É suficiente que
desfrutem do favor dos homens. Portanto, tais pessoas são uma
praga — uma praga dupla, pois com ela ou sem ela não podem
escapar ao tribunal daquele que já passou sobre suas cabeças a
sentença de condenação.
Seja como for, de nossa parte devemos determinar continuar,
pois temos a incumbência da parte de Deus de sustentar a verdade
e defendê-la contra todos os ataques, por mais que o mundo se nos
oponha. E assim Jeremias foi enviado sob esta condição: “Pelejarão
contra ti, mas não prevalecerão”. Por quê? “Porque eu sou contigo,
diz o S , para te livrar” [Jr 1.18, 19]. Isso foi dito primeiramente
a Jeremias, mas a intenção de Deus é dar-nos, em sua pessoa,
uma norma para mostrar-nos o que fazer.
A seguir, retornemos ao que Paulo diz sobre como o ensino
deve ser aplicado. Devemos exortar os que se contentam em viver
tranquilamente e repreender os que contradizem. Sabemos que um
bom pastor usará uma linguagem suave e agradável quando reúne
seu rebanho. Daí Jesus Cristo dizer que suas ovelhas ouvem sua
voz e facilmente a distinguem da voz de um estranho, de modo que
se reúnem sob seu cajado [Jo 10.4, 5]. Todavia, não basta que um
pastor chame suas ovelhas e as ajunte; deve também ter uma voz
que afugenta os lobos e ladrões; deve gritar quando vê seu rebanho
atacado e seus cães latindo para espantar os que espalham as
ovelhas. Se cumprirmos nosso dever, devemos imitar a voz graciosa
de Jesus Cristo para atrair as ovelhas para si e mantê-las a salvo.
No entanto, devemos ter uma voz temível para espantar os lobos e
ladrões que buscam destruir o rebanho.
Esta, pois, é a dupla função da Palavra de Deus. Na verdade,
esta é uma tarefa para todos, pois, quando Paulo arma os crentes,
ele descreve a Palavra de Deus como uma espada; a fé como seu
escudo; e a esperança como seu capacete [Ef 6.17; 1Ts 5.8]. Desta
maneira, ele mostra que a Palavra de Deus é não só boa para nós
quando passamos a conhecê-la e quando aprendemos a render
obediência a Deus, ela também nos ajuda a repelir o diabo e a todos
os que o servem. Se eles nos tentassem corromper e afastar da
casa de Deus, seríamos capazes de resistir a eles. Se é assim com
todos os crentes, o que se dirá dos que servem como oficiais que
levam os primeiros golpes e são mais bem armados do que todos os
demais? Por isso, aqui Paulo registra corretamente ambos os usos
da Palavra de Deus. Portanto, aprendamos que sempre podemos
tirar proveito da lei, do evangelho e de toda a Santa Escritura se,
sendo instruídos na vontade de Deus, soubermos que são úteis e se
nos beneficiamos do encorajamento que daí recebemos. Ao mesmo
tempo, nos é dado o que nos convém para a batalha, a fim de que,
quando nossa fé é assaltada e Satanás maquina nossa ruína, não
nos deixemos desfalecer. Sejamos bons soldados, pois nossa
bandeira é hasteada e sabemos que Jesus Cristo nos escolheu
como campeões que lutam em prol de sua verdade. Essa é a
primeira lição a ser aprendida.
Muito bem, quantos encontramos que perseveram quando
sopra mesmo a mais leve brisa? São imediatamente esmagados! E
por quê? Porque há bem poucos que cuidam de armar-se. Quase
todos creem que basta ter provado a Palavra de Deus de
passagem, como dizem. Daí o diabo os acharem de mãos vazias.
Era tudo uma questão de exibição externa; não havia neles
nenhuma firmeza. Longe de se equiparem para enfrentar a
provação, mesmo na ausência de algum ataque direto, logo
desistem, pois não possuem nenhuma raiz viva e não extraem da
Palavra de Deus nenhuma nutrição sólida para suas almas. Não
obstante, este é o poder que o Senhor sempre conferiu à sua
Palavra. No último dia, é bem possível que ele nos repreenda por
havermos feito tão pouco uso dela, se não formos bem instruídos
como deveríamos ser, nem tão bem armados para resistirmos todos
os estratagemas, erros e males que Satanás emprega para desviar-
nos da vereda da salvação. Portanto, concluímos que a falha é
nossa se realmente não tivermos certeza do que temos de fazer,
pois isso equivale a profanar a verdade de Deus.
Aqui vemos ainda quão terrivelmente os papistas blasfemam
quando comparam a Santa Escritura com um nariz de cera que não
pode prover nenhuma certeza de fé.[12] Pois, se a Palavra de Deus
não tivesse poder para assegurar-nos do que é necessário para
nossa salvação, Paulo jamais teria falado nesses termos. Por isso,
devemos admitir o que Deus tem dito para guiar-nos, e assim
assegurar-nos de que não podemos errar nem extraviar-nos. Isso é
suficiente para esse ponto.
Aprendamos melhor que antes a esquivar-nos de todos os
assaltos, pois a Palavra de Deus é nossa espada espiritual. Quanto
virmos o evangelho enfrentar ataques de todos os lados, oremos
para que Deus nos fortaleça e cada um de nós se equipe com as
armas que Deus supre, de modo que não sejamos tomados
desprevenidos. Recordemos bem que seremos envergonhados se
nos acharmos despojados da armadura. Deus nos tem dado os
meios, provendo-nos para que de nossa parte tenhamos suficiente
cuidado. Acima de tudo, aqueles cuja tarefa é declarar a Palavra de
Deus se assegurem de que ensinem e exortem pelo uso da sã
doutrina. Pois Paulo não se contenta em falar de “ensino”; a palavra
que ele usa — “exortação” — é muito mais forte, significando que,
embora os homens estejam prontos a aprender, se deixem guiar
espontaneamente e receber humilde e mansamente o jugo de Deus,
não basta apenas dizer: “Este é o caminho a seguir”. Devem ser
estimulados, pois o melhor e, por assim dizer, o mais piedoso, ainda
necessita ser incentivado. Sempre haverá neles alguma indolência e
muita fraqueza.
Daí, não basta que aceitemos o que nos é ensinado. Temos de
ser instigados, e a Palavra de Deus deve ter o poder de impelir-nos
como que pela força. É preciso notar cuidadosamente este fato, pois
Paulo, nesta passagem, não está falando dos que são mal-
humorados, malevolentes, hipócritas ou obstinados; ele está falando
dos que são genuínos cordeiros que buscam obedecer a seu pastor
e que, numa palavra, são condescendentes. Mesmo assim, ele está
ciente de que há tal enfermidade em todos os homens. Uma vez
que tenham sido ensinados, devem continuar sendo instados. Além
do mais, é necessário que sejam ajudados. Eles têm de ser
incentivados e instruídos acerca do que mais têm que fazer. Embora
a palavra “exortar” algumas vezes signifique “confortar”, Paulo
sugere que não é suficiente ouvir o que é bom; devemos ser
também estimulados a pô-lo em prática. Então, quando formos à
igreja, não devemos considerar estranho se ouvirmos um apelo para
irmos a Deus, pois alguns há que prefeririam que os sermões
fossem frios e sem vida, e que gostariam que só lêssemos para eles
o que a Escritura contém.
E então? Deus sabe melhor que nós o que é necessário para
nossa salvação. Portanto, devemos ir e ouvir a Palavra de Deus,
não só para aprender o que é bom, mas também para sermos
encorajados a agir de acordo com ela, quanto for necessário e
quanto requeira nossa indolência e fraqueza. Enquanto isso,
resolvamos estar entre aqueles de quem Paulo fala, se tivermos a
Palavra de Deus como nossa instrutora; de outro modo, fecharemos
a porta a Deus para que ele não seja nosso Mestre ou opere em
nós; à medida que o resistirmos, fugiremos dele envergonhados e
recusaremos seu jugo. Isso, reitero, é o que devemos fazer se
quisermos que Deus seja nosso Mestre. Então, acaso estaremos
abertos à sã e proveitosa doutrina? Devemos considerar-nos entre
as ovelhas e cordeiros que ouvem de bom grado seu Pastor, os
quais não são tão difíceis de lidar e que tranquilamente atentam
para as exortações que se destinam a estimular-nos.
Além disso, contudo, notamos que os que contradizem devem
ser repreendidos. Aqueles que têm a incumbência de ensinar a
igreja devem assistir sabiamente a todos os que voluntária e
serenamente se deixam guiar e que, sem dissentimento, permitam
que o Senhor Jesus exerça domínio sobre eles. Não obstante, se
houver dissentimento, que se aplique o remédio proposto por Paulo.
Qualquer pregador do evangelho que negligencia este dever jamais
o cumprirá bem. Daí, quando o ministro subir ao púlpito, seu
primeiro alvo deve ser sempre conduzir todos à obediência a Deus,
como Paulo declara na segunda carta aos Coríntios. Ali, ele escreve
sobre a espada espiritual que destrói todos os sofismas humanos e
anula toda altivez que se opõe a Jesus Cristo, e sobre a vingança
que, quando nossa obediência é completa, aguarda a todos os que
desobedecem [2Co 10.5, 6]. Com efeito, ele diz isto: “Quando
pregamos o evangelho, nosso alvo primordial deve ser introduzir na
igreja os que se contentam em ser guiados tranquilamente”.
Esse é um ponto; não nos esqueçamos, contudo, do segundo.
Se houver quem contradiga, que esse seja repreendido
incisivamente. Ora, há muitos que gostam disso. Alguns se propõem
a difundir suas heresias com o fim de prejudicar a pura doutrina de
Deus; irradiam mentiras e fantasias. A estes devemos resistir acima
de tudo. Outros não são tão nocivos nem tão extremados, mas
ainda são maus. Pois alguns se deixam excitar facilmente, sendo
demasiadamente amantes de ninharia e futilidade, coisas indignas
que nunca podem edificar. Estes também devem ser repelidos.
Ainda há outros que desprezam a Deus. Eles não buscam refúgio
atrás de falso ensino, mas se sentiriam contentes se todo o governo
da igreja fosse abolido e toda religião varrida. Também aqui o pastor
deve estar armado. Quando os homens são dissolutos e dados a
todo tipo de mal, se não permitirmos nenhuma corrupção e nos
recusarmos a acomodar-nos a eles, então se ajuntarão e traçarão
planos diabólicos a fim de destruir toda a disciplina e ordem. Contra
homens como esses devemos também enfrentar com ousadia.
Resumindo, uma pessoa que contradiz é alguém que se
recusa a ser guiado pela Palavra de Deus. Portanto, não devemos
pensar ser estranho se os pastores falem asperamente desde o
púlpito e pareçam excessivamente radicais e severos. Pensemos no
estado em que vivemos hoje. Acaso realmente somos melhores e
mais perfeitos que esses que viveram nos dias de Paulo? Sabemos
que o mundo havia atingido tal clímax de perversidade que se
tornara um dilúvio! Em consequência, como é possível que sirvamos
à igreja de Deus sem deflagrar batalha contra os que a contradizem,
visto que são infinitos em número e se erguem com maior ousadia e
fúria do que nunca e visto que o diabo, como costumamos dizer,
está fazendo um jogo desesperado? Sendo assim, os ministros da
Palavra de Deus devem olhar atentamente e descer à obra.
Não obstante, eles estão longe de fazer tudo o que deveriam,
embora muitas almas sensíveis e suscetíveis se queixem de que
fazem tanto. Ah! Quando Deus nos pedir contas, não poderemos
escapar à responsabilidade de haver falhado em cumprir metade de
nosso dever — nem ainda um décimo dele! Todavia, devemos
esforçar-nos por obedecer ao que nos é ensinado aqui e seguir a
regra contida neste texto. Se virmos homens que contradizem,
então nos armemos contra eles. Que soe a trombeta e declaremos
guerra franca contra eles! De outro modo, somos covardes e
traidores de Jesus Cristo, o qual nos chamou sob a condição de
lutarmos sob sua bandeira contra todos os que se levantam, os
quais buscam denegrir e escarnecer sua Palavra e desacreditá-la.
Em vez disso, devemos recebê-la com aquela reverência que bem
merece. Daí, os que não querem ser julgados severamente pela
Palavra de Deus que se cuidem de não fazer resistência. Antes e
acima de tudo, devem aceitar a verdade ensinada nela e manter a
paz e a harmonia entre o rebanho. Esse é um ponto.
O segundo ponto é que não devem tentar encher o mundo
com seus joios diabólicos, ou desprezar a Deus, ridicularizando sua
Palavra. Que a Palavra cause neles temor e inclusive os faça
tremer, no dizer do profeta Isaías: “O Espírito de Deus repousa
sobre os que tremem de sua palavra” [Is 66.2]. Que os que não
desejam ser tratados asperamente, se uma vez foram obstinados,
se tornem obedientes e emendem sua vida e saibam que, se não se
comprometerem a fazer progresso, seremos compelidos a deflagrar
guerra contra eles. Se um farrista, ébrio ou blasfemo se diverte em
sua imundícia, seria possível que ficássemos surpresos se os
servos de Deus lutassem contra ele? Imaginemos uma vila onde um
agricultor é contratado a velar pelos campos e vinhas do
proprietário. Ele vê ladrões que surgem para roubar, mas finge que
nada está errado e se fecha em sua casa, agindo como se fosse
cego. Porventura ele não seria cúmplice dos ladrões — pior ainda,
mais que criminoso, porque a ele foram confiados os pertences do
proprietário, enquanto não a outros?
Daí, quando virmos homens maus subvertendo todo o temor
de Deus e toda a integridade, que se inclinam a poluir tudo com seu
mau cheiro, se dissimularmos e falharmos em enfrentá-los, seremos
a causa de toda esta perversidade. Portanto, eles não devem
queixar-se quando forem severamente repreendidos; porque, se
tomam tais liberdades, tudo que podem fazer é subverter a ordem
que nosso Senhor Jesus Cristo estabeleceu. Sempre que
encontrarmos os que contradizem, isto é, sempre que a Palavra de
Deus não for recebida com a devida reverência, deve-se juntar a
batalha. E se clamarem, “Oh!, que estardalhaço é esse? Que se
levante contra eles uma tempestade!”, são eles mesmos que fazem
todo o alvoroço, pois neles não há fé, nem religião, nem temor de
Deus que inspire obediência. Visto que são eles os que subvertem
tudo, então que nos esquivemos deles quando tentarem tirar o Filho
de Deus de seu trono, despojá-lo de seu reino neste mundo e
desfazer tudo.
Enquanto Paulo dirige expressamente suas observações aos
ministros da Palavra de Deus, há aqui uma regra para todos os
cristãos: que movamos batalha contra todos os inimigos de Deus.
Se tivermos ciência de que escarnecem de Deus e que tentam
subverter e arruinar tudo; se Satanás tem falsos mestres que torcem
a verdade pura; se há pessoas indisciplinadas que marcham para
semear confusão e impedir Deus de ser servido e honrado, não
neguemos nosso compromisso a Jesus Cristo, mas nos armemos
contra eles e usemos as armas da Palavra de Deus para rechaçá-
los. Naturalmente, vivamos pacificamente com todos, o quanto nos
for possível. Paulo mesmo faz essa exceção [Rm 12.18]; pois ele
pôde ver que, neste mundo, não podemos viver sem nos opormos
aos perversos e sem, em qualquer caso, ser seu inimigo. Ai de nós
se formos pacíficos para com os que claramente deflagram guerra
contra Deus! Acaso isso não significa tramar vil e traiçoeiramente
em favor dos inimigos de nosso rei? Portanto, lemos no salmo 15
que Deus conta como membros de sua igreja os que odeiam os
malfeitores, porém amam e reverenciam os retos [Sl 15.4]. Pois que
tipo de pessoas somos nós se não tratarmos com carinho a verdade
e odiarmos o mal?
É isso que esta passagem tem para ensinar-nos. Temos que
tentar com toda brandura instruir os que permitem que Deus seja
seu Guia, por mais fracos que sejam em ser suportados por nós.
Mas, se forem rebeldes, um asno insubordinado merece um dono
obstinado. Então temos que fazer o que o salmo 18 nos diz [Sl
18.40-42]. É verdade que Deus nada mais deseja senão que
conheçamos a sua bondade. Todavia, lemos que ele é duro com os
duros; e rude e áspero para com os que despudoradamente se
rebelam e são como árvores petrificadas. Esses devem ser
derrubados e removidos. Daí devermos pôr em prática esta lição,
resistindo a todos os que são maus. Roguemos a Deus que nos
preserve como membros de seu povo.
Para mostrar quão vital é esta lição para nós hoje,
ponderemos sobre a explanação que Paulo faz em seguida: existem
muitos insubordinados, palradores, frívolos e enganadores. Mesmo
entre os judeus que se gabavam de ser o povo de Deus — os filhos
mais velhos, por assim dizer, da igreja — e que reivindicavam o
privilégio mais elevado, Paulo declara que muitos dentre eles eram
indignos e capazes de destruir tudo, a menos que fossem resistidos.
Em consequência, ele aponta para uma necessidade atual e urgente
a fim de motivar mais intensamente a Tito e aos demais pastores.
Devemos considerar ainda nossa própria posição, como eu já
disse. Pois seguramente chegamos a um tempo em que o mundo
nunca foi tão obstinado nem as coisas tão más como o são hoje. Se
visualizarmos atentamente o atual estado do mundo, ficaremos
totalmente desanimados. Nesse caso, não devemos estar mais bem
armados do que nunca? Não devemos ser zelosos em resistir a
todos os que contradizem? Visto que o mundo está cheio de tais
pessoas; visto que tanto os grandes quanto os pequenos fazem
guerra contra Deus, acaso não deveríamos demonstrar a quem
servimos? Acaso nosso próprio Senhor Jesus Cristo não nos
convocou para manter a glória de seu reino aqui em baixo? E visto
que ele graciosamente nos fez administradores de sua verdade, não
deveríamos labutar ferrenhamente em prol dela? Pois é plenamente
certo que, enquanto não puder considerar-nos aptos para a tarefa,
ele não nos conferirá a honra de usar-nos. O mínimo que cada um
de nós pode fazer é chegar diante dele, dizendo: “Usa-me, Senhor.
Que eu jamais concorde com os que se opõem à tua Palavra ou os
considere amigos; mas que eu seja contado no número de teu
povo”. O apóstolo afirma expressamente que Moisés só podia ser
parte do povo de Deus deixando para trás as riquezas do Egito [Hb
11.25, 26]. O que mais ele tem em mente senão que devemos
deixar a companhia dos que têm se levantado contra Deus? Pois se
alguém pensa que está suficientemente pronto para rivalizar-se com
os perversos enquanto ainda cumpre seu dever para com Deus,
esse está equivocado. Esta palavra certamente se provará ser
verdadeira: “Um pouco de fermento levada toda a massa” [1Co 5.6].
Portanto, aprendamos a fugir o quanto possível de todos os
que buscam introduzir-se entre nós, com o fim de apoderar-se de
nós e fazer-nos desobedientes a Deus. Notemos outra vez que não
podemos escapar à obrigação de lutar contra os que se opõem a
Deus; pois, de outro modo, Jesus Cristo nos renunciará. Ele é
designado cabeça de sua igreja sob o critério de que nos tornemos
iguais a ele. Ele diz que o zelo da casa de Deus o consumiu, e que
os opróbrios que se destinavam a Deus caíram sobre ele [Sl 69.9;
Jo 2.17; Rm 15.3]. Portanto, nós também devemos fazer nossa a
causa de Deus, e não permitir que sua Palavra de modo algum seja
profanada. Devemos batalhar não só contra seus inimigos
declarados tais como os papistas, mas contra os que se misturam
conosco, da mesma forma que Paulo fala dos judeus, pois ele tem
em mente os que possuem os meios de nos causar muito dano,
quando dispersado entre os cristãos.
É assim, pois, que devemos nos desvencilhar não só dos
turcos, dos papistas e de outros incrédulos, mas daqueles que
vivem entre nós e que gostariam de pôr fim a toda a obediência a
Deus. Em todo caso, devemos ser seus inimigos, a menos que se
reformem, tornando-se obedientes e mostrando que são um
conosco. Devem dar sua mão; de modo que, de todo o coração e
voz, adoremos aquele que governa terra e céu, diante de quem todo
joelho deve dobrar-se e toda língua há de confessar que ele está
assentado à destra de Deus Pai.

Oração
Agora prostremo-nos diante da face de nosso bom Deus,
reconhecendo nossos erros e orando para que ele nos faça senti-los
mais sensivelmente do que antes. Que todos nós, a um só tempo,
sejamos alimentados e nutridos pelo alimento de sua Palavra e,
visto que todos necessitamos tornar-nos fortes, cada um de nós se
esforce por receber a graça que ele oferece, a fim de que
escapemos dos ataques de todos os que contradizem e que
diariamente se opõem à sua doutrina. Que batalhemos contra nós
mesmos, pois nossa natureza é tal que nos faz insurgir contra Deus,
seu culto e sua justa lei. Sejamos soldados corajosos, para que,
uma vez sendo vitoriosos em todo combate desta vida mortal,
alcancemos a glória celestial que está preparada para nós, a qual
ele tão amorosamente conquistou para nós e onde possamos
desfrutar o fruto de todo o nosso labutar.
7. SÉTIMO SERMÃO: O ADVERSÁRIO DE DENTRO [Tito 1.10-
12]
Porque existem muitos insubordinados, palradores frívolos e
enganadores, especialmente os da circuncisão. É preciso fazê-los
calar, porque andam pervertendo casas inteiras, ensinando o que
não devem, por torpe ganância. Foi mesmo, dentre eles, um seu
profeta, que disse: Cretenses, sempre mentirosos, feras terríveis,
ventre preguiçosos.

Já explicamos previamente por que Paulo diz que nas cidades e no campo de
Creta havia muitas pessoas necessitadas de corretivo. Seu propósito era
advertir Tito, que então vivia na ilha, a que fosse mais vigilante em designar
pessoas que pudessem repreender os que se opunham à verdade de Deus,
que perturbavam a igreja e que para alguns eram motivo de escândalo. Pois
bem, sabemos que temos de ser cuidadosos em remediar as ocupações
segundo demandem o perigo e a necessidade. Daí, quando virmos
malfeitores cuja intenção é derrubar a igreja, devemos estar ainda mais
alertas e zelosos em detê-los. Essa era a intenção de Paulo quando salientou
que muitas dessas pessoas haviam se misturado com os crentes. Não
pertenciam à ralé ordinária, pois assumiam para si o ensino, eram
desobedientes, sendo dados, no dizer de Paulo, à conversação fútil e lucro
desonesto, ensinando coisas que não podem edificar.
Observemos, pois, que, quando vemos a igreja de Deus perturbada por
homens malignos, os pastores devem agir com ainda mais dureza para
manter a boa ordem, e devem estar armados, não com a espada física, mas
com a Palavra de Deus e com sabedoria e energia, a fim de espantar tais
homens. Ao notarmos os indivíduos que inventam apresentar alguma
novidade, façamos nosso melhor para ver que a igreja de Deus seja suprida
com líderes íntegros que podem prevenir que Satanás leve os homens a
tropeçar.
Isso, em suma, é o que esta passagem ensina. Quanto ao resto, Paulo
não se contenta apenas em dizer que isto era justamente o que algumas
pessoas eram: ele distingue principalmente os judeus. Ora, estes eram a nata
da igreja, o primogênito da casa de Deus [Rm 11.16]. Como bem sabemos, os
gentios eram como brotos silvestres que Deus graciosamente escolheu para
enxertar no tronco da raça de Abraão. Daí os judeus serem, desde tempos
imemoriais, os verdadeiros herdeiros da salvação; a herança da vida lhes
pertencia. Mesmo assim, Paulo não hesita em lançar-lhes opróbrios, dizendo
que eram os que mais perturbavam a igreja. Notemos, pois, que não pode
haver dúvida alguma de poupar os que são aptos a causar dano ou injúria.
Devem sofrer desgraça, de modo que todos se acautelem deles assim que
fique evidente que não há outro modo de detê-los.
É verdade que odeiam ver seus erros sendo trazidos à luz, mesmo
quando todos conheçam o tipo de pessoas que são. Contudo, consideremos
se preferimos essas ferramentas de Satanás a todo o corpo da igreja de Deus
e seu povo. Se há perversos que semeiam suas cizânias, quer doutrinas
falsas ou conversação torpe, com vistas a que os crentes se desviem do
caminho reto e se dissimularmos ou pretextarmos não ver, as pessoas
simples serão infectadas; não se tomará nenhuma precaução e muitos
ignorantes se desviarão. Então, a praga se espalhará por toda parte. Mas, se
notarmos tais homens e apontarmos para eles, todos os evitarão e estes
ficarão impossibilitados de causar dano. Era isso que o apóstolo tinha em
mente.
Seguindo seu exemplo, ao virmos pessoas propensas ao mal, as quais
só criam estrago na igreja, se pudermos trazê-las serenamente de volta às
veredas certas, então que tentemos. Se, no entanto, obstinadamente aderem
aos seus maus caminhos, não devemos ser mais sábios que o Espírito Santo.
Que sejam descobertos e expostos; que sua depravação seja exibida para
seu opróbrio, de modo que os homens venham a detestar seu estado e
esquivar-se deles, como já vimos no caso de outros textos. Outros objetam
quando tais passos são tomados para mostrar claramente que nada querem
senão a ruína da igreja. Naturalmente, alegam ser motivados pelo espírito
magnânimo: “Olhe aqui, acaso dessa maneira não estamos denegrindo as
pessoas e envergonhando-as como se realmente quiséssemos destruí-las?”
Mas, nesse ínterim, não estamos levando a pobre igreja de Deus aos lobos,
por assim dizer, e aos ladrões? Todo o rebanho deveria ser disperso, o
sangue de nosso Senhor Jesus Cristo calcado sob a planta dos pés, aquelas
almas perdidas que ele redimiu por grande custo e toda ordem varridas,
enquanto ninguém diz sequer uma palavra e todo olho se fecha? Que
covardia é essa? Então, tanto quanto possível, devemos trazer de volta os
que não estão totalmente carentes de correção, sem envergonhá-los,
especialmente se seus erros são ocultos. No entanto, quando lançarem toda a
prudência aos ventos e ameaçarem a igreja com ruína, então deve ser
empregado um remédio mais eficaz. Devemos expô-los pelo que são e
certificar-nos de que as pessoas os conheçam e se acautelem deles. Não
devem ser poupados, porque aqui é a própria salvação de todo o povo de
Deus que está em jogo. Esse é um ponto.
Mais uma vez, a menção que Paulo faz dos judeus nos lembra que não
devemos permitir que nos influenciem parcialmente, a ponto de dizermos: “A
este homem devemos respeito; e, àquele, tolerância”. Como se tem dito, que
façamos tudo quanto pudermos para reconduzir os irredutíveis; mas, se
soubermos que o mal tende a se espalhar mais, Satanás deve ser detido e
posto em fuga. Por isso, hoje, não nos concentremos nos honrados e nos
privilegiados, a ponto de negligenciar nosso dever. Deveras há homens que
são tão santos, que meramente tocá-los ameaça sua existência; transpiram
complacência, ainda que neles só haja imundícia. Contudo, mesmo supondo
que sejam homens de eminente dignidade, que mais podem reivindicar além
do que foi reivindicado pelos judeus? Acaso podem gabar-se de ser melhores
que qualquer outro? Já dissemos que o evangelho veio dos judeus; que, em
certo sentido, eles eram a raiz santa, o povo santo e escolhido, a igreja de
Deus. Quando os judeus desfrutavam desses privilégios, não podiam dizer
que não deviam ser criticados, mas que, embora o mundo inteiro fosse
desditoso, pelo menos eles tinham o direito a alguma honra?
Não obstante, Paulo considera que eles tinham ainda maior liberdade
para praticar o mal. Como o evangelho veio da Judeia e da raça de Abraão,
pareciam ser anjos, mas tinham maior escopo para causar dano. Não lhes
bastava gabar-se: “Somos o primogênito na casa de Deus” — pois assim
Paulo os denominava. Somos o povo que Deus escolheu para si. “Somos da
linhagem de Abraão que Deus há muito adotou. Foi a nós que Deus se
revelou; e é tão somente por nosso intermédio que vocês possuem a
mensagem da salvação.” Se os judeus pudessem fazer tal reivindicação,
como os ignorantes não se sentiriam intimidados?
Então, quando alguns desfrutam certa medida de honra e havia muito
eram tidos em alta estima, se usam sua influência para fazer dano, ou semear
a discórdia, ou destruir a casa de Deus, temos de resistir-lhes com vigor e
dominá-los, como se deles nos viesse o maior perigo, pois abusam do nome
de Deus para melhor deflagrar guerra contra ele. Então, um homem comum
que é desconhecido e que não possui nenhum recurso para estragar tudo
deve, no entanto, ser detido se for mau, a fim de que sua peçonha não se
espalhe a longa distância. No entanto, um homem proeminente que está
exposto ao público e se gaba de sua reputação será como um homem
possesso e bem armado. Se ele for deixado intocado, o que não fará?
Lembremo-nos, pois, que, quando os homens são honrados por sua
posição social ou por sua reputação consolidada e quando, tendo dado
evidência da fé cristã, se tornam maus e se ajuntam contra Deus, tramando
perversamente suprimir toda a verdade evangélica, os pastores devem
desconsiderar seu povo e deflagrar guerra principalmente contra estes. Pois é
nesses termos que Paulo o expressa. Guiado pelo Espírito de Deus, ele
estabelece uma regra de perseverança para a seguirmos. Além do mais, quando
descreve tais pessoas, notemos que ele não as chama de hereges — um termo
usado em outros lugares acerca daqueles que pervertem totalmente a
mensagem evangélica e espalham o erro e a falsa doutrina. Ele os denomina
palradores [ou, tagarelas], desobedientes e obstinados, homens surdos para
com a razão e a verdade. Assim, ainda que a doutrina de Deus não seja atacada
abertamente, devemos precaver-nos do caso de alguns, de maneira sorrateira e
clandestina, porem tudo de ponta cabeça. Devemos impedi-los de ir longe
demais e não esperar que alguém se revele um inimigo mortal do evangelho. Se
o tal tentar secretamente promover problema, esse de fato é um inimigo; pois
não há inimigos mais mortais do que os traidores e os que, sob o disfarce do
nome de Deus, semeiam divisões na igreja, na tentativa de retardar o que Deus
pretende e, assim, conseguir enlamear a pureza da doutrina, mesmo quando
não introduzam heresias óbvias.
Por exemplo, sabemos que alguns há que não confessam que o que
ensinam é falso. Por mais descarados que sejam, sentem envergonha de
afirmar tais coisas, pois nada se pode lucrar que valha a pena. Assim, esses
demônios não mostram seus chifres imediatamente. Em vez disso, tentam
suscitar antagonismo entre as pessoas, como vezes sem conta tem sucedido.
Queira Deus que sejamos real e completamente purificados de tais
infecciosas imundícias! A seguir eles tentam forjar seu próprio esquema de
introduzir mudanças e novidades, a ponto de serem capazes de lançar tudo
em confusão. Naturalmente, as mudanças não são feitas de imediato, nem
tais pessoas dizem que o que ensinam é em si mesmo falso. Não obstante,
tornam sua inimizade perfeitamente clara. Ora, se nada fizermos e
pretextarmos que tudo está bem, onde tudo isso terminará? Acaso o diabo
não terá vencido? E porventura não seremos culpados de deixar o rebanho
desprotegido, de modo que o que edificamos em nome de Deus seja
destruído? Em consequência, não temos que lutar somente contra os papistas
ou os turcos, os quais rejeitam totalmente nossa doutrina, mas contra os
inimigos em nossa própria casa, os quais, em sua perversidade e insídia, se
empenham em demolir o que foi corretamente estabelecido e enfraquecer o
governo de Deus, de modo que pouco a pouco tudo seca e, finalmente, se
decompõe, infectando toda a pureza da religião. Devemos esquivar-nos de
tais homens com toda firmeza.
Ora, tão longe estamos de manter-nos em guarda, que cada um parece
conscientemente querer sorver o veneno! Se nutríssemos dúvida sobre o
alimento, certamente não o tocaríamos; tal é o amor e a preocupação que
temos por esta vida fugaz. Contudo, quando Deus nos adverte que constitui
veneno nos afastarmos de sua Palavra, em razão do respeito que lhe
devemos e do ardoroso desejo de fazer proficiência dela, não prestamos
atenção. Alguns se contentam em alimentar seus ouvidos com umas poucas e
estúpidas especulações; outros saltam de alegria quando veem interrompida
a obra do ensino; sentem-se felizes vendo os servos de Deus importunados e
exultam publicamente nisso. Eis por que dão aos hereges uma mão
ajudadora, como tão frequentemente tem sido o caso aqui, para não alongar
mais a vista. Em qualquer caso, os crentes devem pôr-se em alerta quanto ao
que Deus diz: se quiserem que suas almas estejam a salvo e em segurança,
precisam estar vigilantes e livres de todo e qualquer falso ensino. Aliás,
quando virem que Satanás se empenha secretamente em torná-los enfadados
da Palavra de Deus quando lhes é pregada, devem estar cientes disto e agir
com propriedade, cada um de sua própria maneira. Porque, como eu disse
previamente, Paulo está se dirigindo não só a Tito, mas a todo o povo.
O apóstolo adiciona ainda que estes homens pervertem casas inteiras.
Já é demais que uma pessoa seja desviada, pois as almas devem ser-nos
preciosas. Nosso Senhor Jesus Cristo as tinha como tão queridas, que deu
sua própria vida para nossa redenção e salvação. Mas quando famílias
inteiras se desviam, e cada membro delas, isso é abominável. E assim vemos
que, se for adicionado à massa um pouco de fermento, imediatamente tudo
azeda. Já notamos que, quando Paulo se referia às graves e pesadas ofensas
dos enganadores, ele os acusou de conversação vazia e especulações fúteis
e de certas tradições que os judeus haviam tomado de sua lei, a qual eles
entendiam erroneamente. Ele diz que isso se dava para que pudessem
enganar mais facilmente. Como, pois, é possível que, ao sermos plenamente
advertidos, não nos ponhamos em guarda? Se vivemos fora do caminho, de
quem é a culpa? Se nosso Senhor permite que Satanás nos engane, de modo
que nos tornemos insensíveis e dados a uma mente réproba, teremos feito
isso por nós mesmos, por razão de nossa displicência e falta de
discernimento, a despeito de Deus, uma vez que fracassamos em fazer uso
do remédio que ele providenciou. Portanto, antecipemos tais perigos, pois o
Santo Espírito nos ensina que muito pouco é necessário para que todas as
famílias se envenenem. Estejamos alerta ao que pode acontecer, pois Paulo
continua explicando a causa que é a raiz de tais coisas — lucro desonesto.
Quando a cupidez nos impele, quando, em suma, pomos nosso coração nos
bens terrenos, não podemos ensinar com pureza. Meramente distinguimos a
verdade e, como os vendedores, falsificamos tudo. Essa é a imagem que
Paulo emprega quando escreve que proclamava o evangelho com pureza
[2Co 2.17]. Ele não era um vendedor dado ao disfarce, mas, ao contrário,
preservava a simplicidade pura da Palavra de Deus.
Daí, todos os que são incumbidos do ensino na igreja devem certificar-
se de que aprendem a servir a Deus com sinceridade. Devem contentar-se
com o que ele lhes dá e voltar suas costas a todo o amor pela riqueza; devem
refletir que são mais que ricos quando tiverem edificado a igreja de Deus. E
quando, inocentes de cupidez e do desejo por riquezas, percebem que o
Senhor faz uso de seu trabalho, então que se alegrem porque o trabalho não
foi em vão, senão que Deus o tornou frutífero. Esse pensamento deve ter
precedência em suas mentes. Pois, quando os homens buscam ajuntar para
si dádivas e subornos, quando um homem demanda favores e outros tomam
posse de todo o mundo, quando isso acontece, então surge um princípio fatal,
pois toda a verdade de Deus é infectada pelo veneno. Isso é o que Paulo
ensina nesta passagem.
No entanto, ele faz soar uma nota mais grave quando diz que toda a
raça no meio da qual Tito se encontra há muito se tornara refratária e imunda.
Ele tem em vista a ilha de Candia, que hoje é chamada Creta. É uma ilha
grande que já contou com cem vilas ou cidades. Não obstante, diz Paulo. que
eram lugares de má reputação, conhecidos pelos modos pecaminosos e
malignos de seu povo. Portanto, Tito tinha de ser muito mais bem armado
com força e constância a fim de abrandar a dureza desses brutos obstinados.
Em consequência, o apóstolo cita um de seus poetas nativos, um homem
célebre como seu próprio profeta, que declarou: Cretenses, sempre
mentirosos, feras terríveis, ventres preguiçosos.[13] Quão inglório é ser
chamado de ociosos, glutões, mentirosos e ventres preguiçosos! E assim lhes
é negado qualquer nome bom. Aqui, Paulo parece se lhes opor como seu
inimigo, pois ele não escreveu a Tito em segredo, mas a fim de ser lido e
publicado, de modo que todos os cretenses pudessem ouvir o que estava
sendo escrito sobre eles. A impressão que Paulo deixa é que tem em mente
abandoná-los.
Mesmo assim, ele era seu pastor; e, embora seus deveres o levassem
a outros vastos lugares, ele tinha também que cuidar desta igreja. Daí
devermos aprender que, embora um homem queira a salvação de seu povo e
tenha amor especial para com eles, o mesmo não pode deixar de apontar-
lhes seus erros. Na verdade, não podemos exibir o amor que temos para com
aqueles que são entregues ao nosso cuidado, exceto se tentarmos corrigir os
erros e males que os mancham. Pois, se não dissermos nada, simplesmente
embalamos os homens a dormir quanto são capazes de fazer. Não pensam
em emendar suas vidas, e tudo o que fizermos, em certo sentido, equivale a
espalhar a praga entre eles. Eis por que eu disse que um bom pastor, por
mais asperamente que invectiva contra seu povo, mesmo assim ele deve
amá-los ainda mais que sua própria vida. Mas, justamente como o dever dos
pregadores é fazer uso da liberdade que Paulo lhes permite, assim os crentes
não devem ter ouvidos tão delicados, que se tornam excessivamente
aborrecidos quando seus erros lhes são apontados. Infelizmente, hoje
chegamos ao ponto em que as pessoas nada toleram. Muitos esperam ser
bajulados; ou, pior, seu modo de pensar o evangelho não foi propriamente
alcançado. Creem que a verdadeira pregação consiste em encobrir sua
imundícia e em entregar-se a ela e comprazer-se nela!
Ora, neste texto temos uma doutrina bem diferente, a qual não pode ser
licitamente alterada. Aqui, respectivamente, os ministros e todo o corpo dos
crentes têm lições a aprender. Quando, de sua parte, os ministros descobrem
erros entre os que lhes foram confiados, não devem escondê-los, e sim pô-los
a descoberto, pois é preferível que envergonhem os que se tornaram tão
adormecidos do que pôr-lhes vendas para que vejam ainda menos. Eles
devem, repito, ser despertados, como quando Paulo diz que os coríntios não
tinham outro pai além dele. Diz ele: “Não vos escrevo estas coisas para vos
envergonhar; pelo contrário, para vos admoestar como a filhos mui amados.
Porque, ainda que tivésseis milhares de preceptores em Cristo, não teríeis,
contudo, muitos pais; pois eu, pelo evangelho, vos gerei em Cristo Jesus”. No
entanto, ele continua: “Para vos admoestar como a filhos mui amados” [1Co
4.14-15]. Seu propósito não era fazê-los publicamente desditosos, mas
envergonhá-los entre si, porque não sabiam o que eram antes. Foram
enganados por sua fútil reputação e ainda haviam se gloriado em cometer
erro. O alvo de Paulo era este: primeiro proibir; então, usar o bisturi como faz
o cirurgião quando há uma ferida que ele deve curar. Ele elimina a carne
pútrida; ou, se há um abscesso, é preciso limpá-lo até o âmago, a fim de
remover tudo o que está infectado e corrompido. Assim se dá com os que
devem cumprir com seu dever para com Deus e para com o povo sob seu
cuidado. Mas é suficiente dizer isso nesse ponto.
Pelo mesmo emblema, é também necessário que os crentes suportem
pacientemente os castigos, por mais sejam ásperos ou severos que sejam.
Devem entender que precisam ser tratados desta maneira, particularmente
quando vedam seus olhos através da negligência, quando não desejam
reformar, mas se tornam piores em sua perversidade; ou quando se tornam
empedernidos e seus pecados são tão entranhados, que nada se pode fazer
por eles. Portanto, os crentes devem aprender que é preciso empregar serras
e outros remédios mais dolorosos como em casos de enfermidade extrema.
Que resmunguem ou protestem contra os que trabalham em favor de sua
salvação. Pois que vantagem há quando somos honrados aos olhos do
mundo, porém amaldiçoados à vista de Deus e seus anjos? E quando à plena
luz do dia os livros forem abertos, nossa perversidade exposta e cada criatura
clamar vingança contra nós? No entanto, é isso que acontecerá aos que
rogam que seus erros permaneçam ocultos e sepultados. Querem que os
homens valorizem seu bom nome, mas em todo tempo aumentam a ira de
Deus contra eles e se tornam ainda mais odiosos aos anjos do paraíso, aos
profetas, apóstolos e a toda criatura, porquanto desafiam a Deus com sua
frenética obstinação. Que lucro há nisso? É mera demência, o que até mesmo
as criancinhas acham absurdo, quando os homens não podem suportar que
seus erros lhes sejam revelados. Pois se o pregador abre sua boca para
dizer: “Este é um pecado que vemos entre nós”, sentem forte calor sob o
colarinho. Alguns rangerão os dentes para ele; alguns tentarão vários
estratagemas para coibir sua liberdade; e outros se rirão dele nas tavernas.
Não obstante, sua depravação é óbvia a todos. Ao redor, vemos
malogros da justiça; favores dados e recebidos; excessos; iniquidade e atos
de desobediência, tais que fariam uma criancinha enrubescer de vergonha.
No entanto, quem ousa pronunciar sequer uma palavra contra estas coisas?
Os homens falam delas em casa, nas lojas, nas ruas e nas praças da cidade;
mas se alguém no púlpito ousar falar sequer uma palavra da verdade, a ira se
irrompe e o gênio se inflama como se tudo estivesse perdido! No entanto, nos
recessos dos lares e nas ruas públicas essas almas sensíveis são julgadas e
condenadas. Bem sabem que é assim, mas não se preocupam; para eles,
não significa nada. Somente quando a Palavra de Deus expõe seus erros é
que se exasperam. Quão prodigioso é que sejamos clarividentes e Deus seja
cego; que os homens falem, mas Deus fique mudo; que os homens ouçam,
mas que Deus seja surdo! No entanto, é justamente assim que acontece.
“Bem, que sabichões são esses pregadores!” Sim, mas pode-se
esperar que sejamos ignorantes do que é óbvio às copeiras e criancinhas?
Não há ninguém, quem quer que seja, que não possa dizer livremente: “Tal e
tal pecado é comum entre nós. Ele é praticado assim e assim”. Em suma,
nada há que impeça alguém de julgar os pecados e vilanias que prevalecem
hoje. Todavia, aqueles cuja tarefa é manter a vigilância não ousam abrir suas
bocas ou dizer alguma coisa! Não obstante, seu dever decreta outra coisa. A
Escritura diz que a Palavra de Deus que proclamam penetra os pensamentos
mais secretos; que é uma afiada espada de dois gumes que traspassa
medula e ossos, respectivamente, e quase põe a descoberto nossa própria
estrutura, revelando o que se oculta no interior [Hb 4.12]. Como Paulo escreve
aos Coríntios, a Palavra traz à luz os pensamentos que antes jaziam ocultos
[1Co 114.25]. De acordo com o versículo de Hebreus já citado, Deus designa
à sua Palavra a tarefa de sondar as profundezas do próprio coração. Se esse
é o poder da Palavra, então imaginamos que os que são ministros dela a nós
não deveriam ser sábios para ver e velar de longe? E não deveriam investigar
cuidadosamente a fim de antecipar o perigo, aplicando todo o remédio que
bem sabem ser necessário?
Outra vez digo, há aqueles que apenas querem que os pastores sejam
surdos, cegos e mudos, enquanto as mulheres e crianças sejam livres para
ouvir, falar e ver. Ora, como seria possível não vermos nada, enquanto tudo
era aberto e manifesto a todos os demais? Aprendamos, pois: se quisermos
ser conhecidos como cristãos, tenhamos uma disposição tranquila e cordial, e
nos contentemos em que nossos erros sejam repreendidos e seja extraído
todo e qualquer abscesso oculto. Não fiquemos satisfeitos meramente com
emplastros; e quando o tumor for doloroso e inflamado, não cessemos de
amar a medicina, sabendo que ela existe para nosso bem. Não resistamos ao
médico quando ele busca restaurar nossa saúde. Esse, em suma, é o teor
deste versículo.
Observemos o método que Paulo segue. Tendo autoridade, com base
na Palavra de Deus, de passar juízo, ele podia exibir ao público os erros dos
quais os cretenses eram culpados. Ele podia tê-los ensinado a lição espiritual
encontrada nos lábios de nosso Senhor Jesus Cristo e convencido o mundo
do pecado, da justiça e do juízo [Jo 16.8]. Ele podia ter dito: “Eu cheguei a ver
quão prontos vocês estão a permanecer na igreja de Deus. Descobri no meio
de vocês infecções que corrompem suas mentes e que não faz de vocês
ovelhas, mas piores que lobos vorazes”. Ele poderia ter dito tudo o que estava
em direito dizer, em conformidade com a autoridade que lhe fora confiada. No
entanto, o que ele faz? Cita um poeta pagão, um estranho! Ele declina usar o
que Deus lhe dera, mas no lugar disso ele declara: “Vocês serão repreendidos
por alguém que é cego; um incrédulo. Deus lhes deu graciosamente a luz de
seu evangelho; e nosso Senhor Jesus Cristo, o Sol da Justiça, governa em
seu meio. No entanto, ele toma um homem ignorante e privado da visão para
subir ao púlpito e condená-los!”.
As palavras de Paulo se destinam claramente a cobrir os cretenses da
máxima vergonha. Nós também devemos recordar que, a menos que
encurvemos nossos pescoços para que recebam a canga de Deus — isto é,
ser convencidos por sua Palavra —, e a menos que permitamos que ele nos
governe espiritualmente através daqueles que foram designados para pregar
sua Palavra, seremos condenados, respectivamente, pelos incrédulos e,
finalmente, pelos demônios do inferno. Eis por que os papistas de hoje são
aptos a caluniar-nos. É verdade que não podemos viver tão retamente além
de censura. De acordo com Paulo, este é o nosso estado atual: “Por honra e
por desonra, por infâmia e boa fama, como enganadores e sendo
verdadeiros” [2Co 6.8]. Deus quer testar-nos neste conflito e ensinar-nos a
olhar para ele. Portanto, os homens bons se veem obrigados a suportar
calúnias, mas, às vezes, o erro é nosso, porque nos recusamos a permitir que
Deus nos julgue. Eis por que os papistas de hoje vomitam contra nós um
abuso tão vil, e isso corretamente, para que encurvemos nossas cabeças e
fechemos nossas bocas em reconhecimento de nossa culpa.
E qual a razão disto ser assim? Gloriamo-nos no evangelho, contudo
queremos um evangelho adulterado e inventado, algo que se dissipe no ar e a
ninguém perturbe. Não queremos que alguém toque nossos pontos
inflamados ou nos castigue e nos envergonhe. É óbvio que não queremos
isso. E assim nosso Senhor se ri duas vezes à nossa custa e nos confunde
duas vezes. Virão os cegos, e ainda que nada vejam e andem às cegas ao
redor, eles nos condenarão; o mudo também falará. Portanto, saibamos que,
se não quisermos que os incrédulos nos condenem, então que sejamos
mansos, longânimos e amantes da instrução, sempre que nosso Senhor nos
convencer através de sua Palavra.
Não obstante, nossos erros são postos diante de nós para que sejamos
levados a declarar-nos culpados e, como costumamos dizer, confessar
francamente nossas dívidas. Por isso, podemos julgar quanta fé pode ser
encontrada naqueles que se queixam: “Como você espera que eu me
aperfeiçoe?”. Tais são os teólogos noviços que imaginam ser inteligentes. Se
algo errado lhes é apontado, sua resposta é: “Olhe, isso não cabe a você
dizer!”. E assim Paulo foi longe demais quando condenou asperamente os
cretenses! Mesmo assim, esta é a regra que nos é ensinada pelo Santo
Espírito por toda a Escritura. No entanto, a prática comum é recusar-se a ser
corrigido. Queremos ser deixados livres para nos refestelarmos no pecado,
sem ninguém a coibir-nos. Esse não é o comportamento de quem deseja ser
tido como cristão. Ouvimos a exortação: “Consolai-vos uns aos outros” [1Ts
5.11]; “E não sejais cúmplices nas obras infrutíferas das trevas, antes, porém,
reprovai-as” [Ef 5.11]. A quem o Espírito Santo está falando nestes dois
textos? A todos os crentes, sem exceção! Pois, embora Deus só designasse a
alguns a tarefa de exortar, advertir e reprovar os que se extraviam, também
manda que todos os indivíduos privados resistam ao mal, de acordo com os
meios e a oportunidade que lhes são dados. Se esse é o caso com os que
não têm deveres públicos, qual dos ministros ele encarregou especificamente
desta responsabilidade?
Infelizmente, aqui em Genebra comumente ocorre que ninguém é
incomodado por tais correções. Há cristãos falsos que sabem menos sobre Deus
e sua Palavra do que os nativos que temos como pertencentes aos Novos
Mundos. Se alguém se aventura a pronunciar uma palavra de reprovação, eles
gritam: “Oh! eu tenho meu próprio juiz regular. Não sou obrigado a dar-lhe
resposta!”. Essa é a resposta que sempre obtemos de todos os que desprezam
a Deus e rejeitam toda disciplina. Certamente tentam por todos os meios achar
uma saída para evitar que sejam levados ao acerto de contas, porém nada
acham que os justifique. E assim vemos que, quando Paulo repreende os
cretenses, lembrando-os das palavras de seu profeta, e quando lhes diz que
Deus põe a descoberto nossos erros e providencia, por assim dizer, sobre nós
um líder a fim de dar curso à nossa salvação, devemos, com toda humildade,
reconhecer nossos pecados e lamentá-los e odiá-los. Nada lucramos com nossa
obstinação, com a dureza de nossos corações e com a fúria como de animais
selvagens. Na longa corrida, devemos confessar-nos derrotados e, se não
pudermos nos submeter, certamente Deus nos quebrantará. Recordemos, pois,
do que esta passagem nos diz.
Visto, porém, que agora não podemos explanar o pleno significado
deste texto, reflitamos que foi mediante um milagre de Deus que o evangelho
chegou a Creta, onde, como esta passagem nos informa, o povo era maligno.
A despeito disso, nosso Senhor os visitou em sua bondade, precisamente
como se sua graça chegasse ao próprio inferno, trazendo à luz de seu
conhecimento o que era vil e depravado. Observemos, pois, que Deus não
olhou para nossa dignidade quando nos chamou primeiramente para
estarmos em sua igreja; mas algumas vezes ele decide exibir sua misericórdia
até mesmo para com os de maior inteligência. Em consequência, quando ele
nos atrai a si, nós que estávamos perdidos, e quando reteve sua mão sobre
nós, sua dignidade merece o mais intenso louvor. Porque, como nada
merecíamos da parte dele, então que toda boca se feche e nada presumamos
de nós mesmos. Se temos o evangelho, isso não se deve à obtenção dele por
nossas virtudes, mas porque a Deus aprouve estender-nos sua bondade. Ele
não pode ser movido por nada, exceto pela livre mercê que exibe chamando a
si os homens, para que conheçam sua vontade.
Aprendamos, pois, com toda humildade, a glorificar nosso Deus e a não
sermos demasiadamente complacentes conosco. Se nosso Senhor nos
escolheu e passou por alto os demais, saibamos que, se quisermos manter
firme esta bênção, então examinemos diariamente nossas vidas e,
reconhecendo que somos malditos e por natureza só podemos provocar a ira
de Deus, condenemo-nos e, assim, antecipemos sua ira. Pois, quando cada
um de nós julga a si mesmo, somos absolvidos diante de Deus. Ele não só
nos purificará de todos os nossos males, mas também, mais e mais, fará com
que sua glória brilhe sobre nós, de modo que o invoquemos como Pai e
confessemos diante do mundo que ele nos adquiriu por intermédio de seu
Filho, a fim de fazer-nos sua herança.
Oração
Agora nos prostremos diante da majestade de nosso bom Deus,
reconhecendo nossos erros e orando para que ele nos faça senti-los mais e
mais, e nos ajude a nos submetermos plenamente, sem orgulho ou ambição,
à disciplina de nosso Senhor Jesus Cristo. Aceitemos não só seu ensino, mas
também suas correções, de modo a não nos deleitarmos no mal que
praticamos, mas, em vez disso, resolvamos fugir dele. E, enquanto isso,
passemos por este mundo com nossos olhos fixos no reino celestial, até que,
sendo reunidos em e vestidos com sua justiça, nos seja permitido partilhar da
glória que ele já preparou para nós.
8. OITAVO SERMÃO: SADIOS NA FÉ [Tito 1.12-15]
Foi mesmo, dentre eles, um seu profeta, que diz: Cretenses, sempre
mentirosos, feras terríveis, ventres preguiçosos. Tal testemunho é
exato. Portanto, repreende-os severamente, para que sejam sadios
na fé e não se ocupem com fábulas judaicas, nem com
mandamentos de homens desviados da verdade. Todas as coisas
são puras para os puros; todavia, para os impuros e descrentes,
nada é puro. Porque tanto a mente como a consciência deles estão
corrompidas.

Nesta manhã dissemos que, se os homens forem indispostos a julgar a si


mesmos, só aumentam sua condenação. Eles se equivocam se pensam que
podem tirar o melhor proveito de Deus com sua arrogância e obstinação, pois
perecerão estritamente quando Deus vir o quanto são cabeças-duras. Deus
age em concordância com o bem conhecido provérbio: “Uma mula obstinada
demanda um dono obstinado”. Nosso Senhor nem sempre dá aos homens a
honra de julgá-los por sua Palavra, quando tudo o que querem é que seus
pecados sejam permitidos; ele levanta o cego para condená-los, como ocorre
aqui neste notável exemplo. Paulo, no poder do Espírito de Deus, poderia ter
facilmente lembrado aos cretenses quão perversos eram; mas ele não se
digna a julgá-los. Convoca um pobre pagão, um incrédulo sem visão, que
nunca possuíra um vislumbre de luz, ou da lei, ou do evangelho. Ele o invoca
para transmitir a sentença e, assim, deixá-los ainda mais envergonhados.
Em primeiro lugar, ele os chama de mentirosos, o que inclui infidelidade
de todo tipo. É como se fosse dito a essas pessoas que elas eram insinceras
e desonestas, ou dadas a falar falsamente, trapaceiras, fraudulentas e
insidiosas. Ele continua descrevendo-as como feras terríveis, como que para
excluí-los das condições humanas. Isso parece ser o que a palavra implica,
como quando dizemos que alguém não é um ser humano, mas transformou-
se numa besta, e não há mal pior que esse. Ele também os chama gulosos,
dissolutos e preguiçosos. Se não permitirmos que Deus nos reprove, ainda
que brandamente, com o fim de corrigir algum erro, é isto o que acontece: não
receberemos nenhuma palavra bondosa de advertência, mas os próprios
incrédulos denunciarão nossa perversidade e nos infamarão à vista de todas
as criaturas. Portanto, aprendamos a humilhar-nos e a deixar-nos conduzir
mansamente, a fim de recebermos as correções que Deus nos envia.
Encurvemos nossos pescoços à sua canga; e, acima de tudo, aprendamos a
condenar-nos, de modo que permaneçamos perdoados diante dele.
Reconheçamos nossas falhas a fim de que elas sejam cobertas e ocultas
quando ele nos chamar a prestar contas. Sintamos vergonha dos erros que
tivermos cometidos, para que nossa perversidade não se apresente em juízo
à vista ou dos anjos ou dos homens mortais. Isso é suficiente para esse
ponto.
A seguir, Paulo diz a Tito que os repreenda incisivamente, a fim de que
sejam sadios na fé. Pareceria que este ensino ou exortação particular não
requer tal extremo, porque simplesmente requer que os homens sejam sadios
na fé. Seguramente não há necessidade de sermos rudes aqui. Essa ordem
severa não é necessária para que se demonstre que estamos longe de seguir
a pureza do evangelho e que devemos permanecer obedientes a nosso
Senhor Jesus Cristo? Acaso este é o lugar para reprovação? Aqui, o ensino
de Paulo parece algo sem sentido. No entanto, quando consideramos quão
ingratas são muitas pessoas, vemos que o apóstolo teve boa razão para tratar
os cretenses dessa maneira. Há muitos que não se deixam vencer por meio
de bons modos; precisamente como quando a pessoa que não tem apetite
por alimento, ao ser chamada para o jantar, se sente aborrecida e agitada, de
modo que tem de ser quase impelida com os ombros! Algumas vezes, o
doente tem de ser tratado com energia para que se consiga algo dele, pois,
sempre que pode, se recusa. Há multidões assim. Se forem informados de
que todo seu bem-estar depende de seguir o evangelho, e o Deus que sabe
que estamos à mercê da morte nos levanta pela oferta da graça, cura todas
as doenças e nos assiste como um médico — se, repito, aprendermos isso de
maneira mais branda, a maioria de nós se sente tão aferrada a este mundo
que menosprezará as benesses espirituais e se rirá delas; ou, pior, fugirá
acanhado e escapará se tentarmos conduzi-lo a Deus. Só se sentirão felizes
se forem deixados totalmente livres para ir aonde quiserem. Há alguns a
quem o diabo enche com tal fúria que desejam tirar Deus de seu trono e
apagar toda a memória dele. Essas são as coisas como as vemos.
Eis por que Paulo diz a Tito que constrangesse muitos que se sentem
indispostos a se render, visto ser isto para seu bem. Ele escreve: “Repreende-
os severamente, para que sejam curados”. Pois se virmos algum inválido que
é desatento para com sua saúde e que é surdo a todo conselho e razão,
precisa ser levado a cooperar, ainda que seja indisposto. Se um homem se
mostra corrigível e consente serenamente em ser guiado, não há necessidade
de severidade. Assim vemos que Deus se dispõe a acomodar sua Palavra a
nós enquanto formos passíveis de ensino. Ele quer que os homens nos tratem
de maneira bondosa, pois somos suas ovelhas. Ele quer que o pastor fale de
modo gracioso, mas, se formos animais irredutíveis, então temos de ser
domados como que à força. A Palavra de Deus não pode ser pregada
simplesmente com o fim de sermos ensinados qual seja nosso dever; ela
deve ser pregada severamente ao ponto de castigo. Nossa arrogância interior
tem de ser extinta, querendo nós ou não. Essa é a mensagem de Paulo neste
versículo.
E assim cada um de nós considere sua própria disposição; e quando
virmos quão morosos somos em ir a Deus, a menos que sejamos aguilhoados
e acicatados, compreendamos que merecemos ser tratados com rigor,
puxados pelas orelhas e repreendidos brusca e penosamente, pois de outro
modo Deus jamais exercerá domínio sobre nós. Já que é assim, aprendamos
a amar todas as correções de Deus, as quais nos beneficiam, e não sejamos
como os que se recusam a ser atraídos a ele, embora ele empregue quase
todos os meios para ganhá-los para si. Os que necessitam de um castigo
mais incisivo não podem suportar ouvir uma palavra áspera. Mesmo os bons
e bem dispostos a ir a Deus são de igual modo inclinados, mas que lutem
contra a tentação, de modo que aceitem ser graciosamente advertidos,
instados, despertados e poderosamente exortados. Pois, embora não sejam
cônscios de suas enfermidades, sabem que elas lhes são ocultas, porém
visíveis a Deus. Eis por que não se rebelam quando seus pecados são
repreendidos. Mas aqueles cujas cabeças são empedernidas e têm pescoços
de bronze, de modo que não podem render-se, esses zombam de Deus e de
toda mensagem de salvação, os quais se assentam com as vaidades deste
mundo ou, melhor, se sentem tão enfeitiçados por elas, que não têm nenhum
gosto por todas as promessas de Deus — estes, se lhes for dito alguma
palavra áspera, se irritam e se enfurecem e a qualquer momento estão
prontos a arremessar para longe o evangelho. Esse é um fato comprovado.
Somente os animais selvagens provam ser ingovernáveis. Os homens
que são razoáveis, que são fáceis de manobrar, e que rendem obediência a
Deus, agem normalmente mesmo quando reprovados. Aceitam serenamente
tudo o que lhes for dito sem rejeitar colericamente o que é ensinado ou resistir
aos que os repreendem. É assim especialmente importante que tomemos
nota deste texto. Os que têm a tarefa de proclamar a Palavra de Deus devem
se precaver das capacidades daqueles que foram confiados ao seu cuidado.
Assim que virmos que os homens não se rendem espontaneamente, devemos
empregar o remédio que Deus nos ordena usar. Devemos repreendê-los com
veemência, sem afetação em nossas palavras; pois isso é o que Paulo quis
dizer aqui. Devemos ir fundo no problema sem grande afetação de
eloquência. Não devemos animar o desobediente, mas dirigir-lhes esta breve
palavra: “Olhe aqui, miserável criatura, com quem você pretende brincar?
Acaso você não percebe que está deflagrando guerra contra Deus? Acaso ele
não é soberano? Você pensa que ele o tolerará para sempre? Se agora ele o
trata com brandura, e se através de um homem mortal ele o convida a ir a ele,
você pensa que ele agirá sempre assim? Acaso ele não lançará os raios do
relâmpago no fim? Você deseja assemelhar-se aos demônios em vez de
criaturas feitas à sua própria imagem? Acaso você não pensa quão horrível é
esquecer o custo de sua redenção, escarnecendo da graça do evangelho?”.
Quando os ministros da Palavra de Deus percebem que as pessoas são tão
avessas a deixar-se guiar, é assim que deve ser nosso tom de linguagem:
incisivo e áspero. Mas isso basta para esse ponto.
Portanto, Paulo insiste que o pastor encarregado do rebanho de Deus
não deve apenas provê-lo com alimento, mas também dever sentir compaixão
das ovelhas que são fracas, a fim de fortalecê-las. Deve buscar cura para os
enfermos; e quando, no devido curso, ele descobre alguns que são
indisciplinados, deve domá-los. É evidente, pois, que a Palavra de Deus deve
ser levada em conta quanto à natureza e temperamento daqueles a quem ela
é dirigida.
Esta é, além do mais, uma questão para todos os crentes sem
distinção. Pois, se formos severamente castigados, que vantagem teremos
desafiando a Deus? Muitos dos que são tratados com menos brandura que
gostariam se tornam furiosos e rangem os dentes contra a Palavra. É como se
um homem fosse desafiar seu estômago se recusando a comer; a única
pessoa a quem finalmente ele causa dano é a si mesmo. E assim se dá com
os que negam a si o alimento espiritual para suas almas; virão a morrer de
fome, a menos que Deus se apiede deles e os faça voltar ao seu bom senso.
Então, nenhum de nós deve se indispor quando for tratado de modo rude,
pois sabemos que é disto que necessitamos. A menos que sejamos
provocados e instados, permaneceremos sem bom senso e embrutecidos.
Portanto, sabendo que Deus não nos trata assim sem justa causa, e que ele
vê em nós doenças que jazem ocultas, mas que devem ser purgadas,
deixemo-nos governar por ele como ele bem sabe ser adequado.
Nesse ínterim, não sejamos prontos demais a agradar-nos,
especialmente já que o mundo moderno é tão corrupto que o mal se prolifera
por toda parte. Entendamos que, se os homens protestam e nos censuram
ferinamente, eles estão certos em agir assim. Se compararmos nosso tempo
com o de Paulo, o mundo se tornou muito pior do que então. Alcançamos
mais ou menos o auge de toda a perversidade. Portanto, acaso Deus nos
lisonjeará hoje e nos animará? Nós nos tornamos putrefatos no pensamento e
no sentimento, contudo todos nós queremos ser besuntados com azeite mais
que ter a cura própria para as doenças extremas que sofremos. Aprendamos,
repito, a sentir que necessitamos ser rudemente despertados e sem rejeitar as
correções que Deus nos envia, visto que elas são a mais útil dos remédios.
Podemos objetar que não somos como a raça de pessoas de que Paulo
fala. No entanto, é certo que, se havia erros tão graves entre eles, entre nós
hoje os há semelhantes ou piores. E assim devemos curvar nossas cabeças e
parar de pilheriar-nos com lisonjas fúteis. Permitamos àquele que nos julga
tratar-nos como ele bem o queira, visto que somos inteiramente ignorantes do
que nos é próprio e proveitoso. É verdade que, quando um pregador adota o
tipo de tom que é ordenado aqui, não será bem sucedido em conduzir alguém
a Deus. Isso é impossível. É verdade ser bem provável que os cretenses se
sentissem muitíssimo ofendidos com isso. Ter-se-iam irado ao pensar que seu
povo se sentisse abertamente envergonhado quando Paulo os chamou de
mentirosos, infiéis, bestas malignas, preguiçosos e glutões. Tal repreensão
não podia ter sido ministrada sem que muitos, ou, melhor, todos protestassem
aos gritos. Não obstante, Paulo se viu obrigado a falar nestes termos. Ele
tinha a aprovação da parte do Senhor, ainda que os que se sentiam irados
amontoassem sobre ele uma condenação após outra. Entretanto, nada podia
escusá-los. Deus os advertiu de que, se não podiam suportar que fossem
condenados por ele, os pagãos e os incrédulos já os haviam condenado.
Significa que já haviam sido encontrados culpados. Mesmo assim, havia bons
homens que aquiesceram de bom grado, pois viram que seu povo era
censurado com toda a razão. Hoje, como sabemos, há muitos que não
aceitam com espírito sereno as advertências a eles dirigidas; pensam que
elas são severas demais. Entretanto, devemos dar-lhes o máximo de crédito,
pois este será um testemunho a eles, dado que os privará de toda e qualquer
escusa diante de Deus. Em qualquer caso, os bons que realmente são
ovelhas de nosso Senhor Jesus Cristo aceitarão pacientemente a repreensão
e não se voltarão contra o evangelho nem enfrentarão seus pastores quando
souberem que é para seu próprio bem e salvação que foram acicatados desta
maneira. Se não podemos ver isso, então somos piores que feras irracionais.
Provamos que somos filhos de Deus quando, embora tratados com
austeridade, não nos desviamos da obediência ao evangelho ou da vereda de
nossa fé.
Agora Paulo continua explicando em poucas palavras como os homens
podem manter-se a salvo e seguros: perseverando na pureza da fé. Portanto,
se não nos desviarmos do claro ensino do evangelho, mas nos contentarmos
em ser guiados em concordância com a vontade de Deus, não nos deixando
mover por nossos sentimentos incertos e nos recusando a ser guiados por
nossos desejos triviais — se, em suma, formos bons alunos de Deus e
somente aceitarmos o ensino que ele oferece, então seremos guardados a
salvo de todo mal. Naturalmente, a cada dia o diabo espalhará por toda parte
infecções e tentará envenenar a todos com seu veneno; ele espalhará sua
imundícia para todos os lados, a ponto de encher o mundo inteiro com seu
mal e corrupção. Não obstante, não devemos apartar-nos da simplicidade de
nossa fé. Em vez disso, desejemos sempre ser instruídos por Deus com toda
sinceridade. Quando este for o curso tomado, seremos preservados de todo
dano que porventura Satanás faça para nos frustrar.
Isso é o que devemos notar sobre as palavras seguintes de Paulo:
sejam sadios na fé. O que ele tem em mente por “sadios”? Diz ele: “sadios na
fé”. É como se os homens deliberadamente buscassem seu próprio dano,
afastando-se da pureza do evangelho. Pois, se permitirem que Deus os guie e
desejarem somente ser ensinados por ele sem se extraviar para cá e para lá,
então devem permanecer unidos como deveriam. Visto, porém, que vacilam,
correndo para cá e para lá, e são totalmente capciosos, são facilmente
enganados e guiados ao erro. Assim, aferremo-nos à fé pela qual Deus nos
une como se fôssemos um só.
Por via de uma longa explanação, o apóstolo anexa: e não se ocupem
com fábulas judaicas, nem com mandamentos de homens desviados da
verdade. A palavra “fé” realmente sumaria tudo o que temos dito; mas, visto
que os homens são tão morosos em entender o que os beneficia
espiritualmente, Paulo se viu compelido a prover uma explanação mais
completa. Por “simplicidade da fé” ele tem em vista que rejeitemos toda
invenção humana e nos aferremos ao que Deus nos ensina em sua Palavra.
Nada mais deve ser acrescentado, pois a mistura resultante no fim seria
totalmente corrupta. Então, devemos preservar esta simplicidade? Rejeitemos
tudo o que os homens porventura introduzem de sua própria iniciativa e que
misturam com a Palavra de Deus. Esse é o significado de Paulo.
Ora, o que ele descreve aqui como “fábulas judaicas” são ninharias
mesquinhas, invenções baratas e fúteis. Ele explica o que tem em vista
quando fala de “mandamentos de homens”. Por que ele as denomina de
judaicas? Deduz-se do que dissemos nesta manhã. Os judeus, em particular,
suscitaram muito problema na igreja primitiva, sob o pretexto de que desde os
tempos imemoriais foram o povo de Deus, educados desde a infância na lei
que de fato era sua herança. Eis a razão por que os homens os ouviam. No
entanto, buscavam misturar lei e evangelho. Propriamente entendidos, ambos
eram plenamente compatíveis, pois Deus não mudou sua mente. Quando
enviou o evangelho, sua intenção não era abolir a lei, mas ratificar o que ela
continha. Não obstante, a confirmação da lei reside no fato de que as
observâncias cerimoniais foram abolidas. Elas funcionavam simplesmente
como sombras na ausência de nosso Senhor Jesus Cristo. Uma vez que a
verdade e a substância de todos os símbolos antigos se fizeram manifestos,
tudo o mais tinha que cessar. Dizer que foram canceladas não equivale a
prejudicar as observâncias da lei nem condenar a forma de culto instituída
para os judeus. É simplesmente mostrar que todo o seu vigor e eficácia foram
revelados quando nosso Senhor Jesus Cristo se manifestou. Se isso não
fosse assim, que outra coisa veríamos nessas observâncias senão jogos
infantis? Todavia, quando consideramos sua veracidade e o padrão celestial
que Moisés contemplou no monte — como visto no vigésimo terceiro capítulo
de seu terceiro livro [Lv 23.1-44] — observamos que nada de supérfluo foi
ordenado.
É nisto, pois, que a lei e o evangelho concordam. Todavia, os judeus
eram intérpretes voluntariosos da Escritura e não permitiriam que os antigos
símbolos fossem abolidos. Gastavam seu tempo nessas coisas triviais, as
quais de fato foram ritos bons e úteis até que o Redentor se revelou ao
mundo. Seja como for, tudo o que fizeram foi ocultar nosso Senhor Jesus
Cristo, e inclusive impuseram uma servidão intolerável. Em consequência,
Paulo repreende expressamente os judeus, ao dizer que, com suas fábulas,
haviam obscurecido o evangelho e que deveriam ficar satisfeitos com o
ensino de Cristo, segundo o qual a lei permanece em vigor no tocante à
doutrina, porém é obsoleta no que tange à prática; ela já não tem nada a ver
com o cristão.
A intenção de Paulo fica assim bem clara. À luz deste texto, em
primeiro lugar aprendemos que os mandamentos de homens devem ser
rejeitados. A única base sobre a qual o apóstolo omite as invenções humanas
é dizer: “Que bem elas fazem?”. Por isso devemos aprender que Deus de tal
modo deve governar-nos que os homens não nos imponham suas leis. O que
eu tenho em vista por leis espirituais é o que diz respeito às nossas almas,
pois estas não se envolvem nos negócios do governo. Há uma ordem externa,
e nosso Senhor insiste que neste mundo as leis são necessárias. A Escritura
declara acima de tudo que Deus, em sua sabedoria, dirige os soberanos e
magistrados para que possam promulgar leis e estatutos. Aqui, contudo, o
ponto em pauta é a esfera espiritual da alma, a saber, como Deus deve ser
servido e qual a verdadeira religião. Aqui, os homens não se devem aventurar
a impor leis ou promulgar decretos, asseverando que é assim que Deus deve
ser servido. Ele manteve para si essa prerrogativa. Então, o que no papado é
chamado culto de Deus meramente serve para subverter a obediência real
que a ele devemos. Não há necessidade, pois, de longa e penosa
investigação; basta que Paulo, no poder do Santo Espírito, tenha dito que os
mandamentos de homens devem ser descartados, a lousa seja apagada e
que entre nós observemos a ordem aprovada por Deus.
Notemos que todos os mandamentos dos homens são denominados de
fábulas ou ilusões, a despeito de sua aparente sabedoria. Não há dúvida de
que tudo o que é inventado pela iniciativa do homem sempre será preferido ao
que Deus ordena. E por que é assim? É porque vemos nossa própria
natureza refletida nisso. Daí, quando as leis são elaboradas pelos homens, o
povo sempre achará que elas são mais apetecíveis e agradáveis do que se
seguissem a simplicidade da Santa Escritura. “Oh! isso não é maravilhoso?”
No papado, os homens valorizam grandemente as leis que foram forjadas por
eles. Então gritam: “Não é uma boa ideia abster-se de carne nas sextas-
feiras? Como guardar a Quaresma? Antes de tudo, esse não um modo de
domar a carne, e não é para honrar a morte e paixão de Cristo que
guardamos esses dias? Não é bom que os sacerdotes renunciem o
casamento, pois necessitam de estar cheios de toda santidade? Seria
impensável se viessem a tornar-se profanos como os leigos. Eles têm que
ministrar os santos sacramentos. Não ser diferente dos homens comuns
detrairia da excelência das coisas santas. E quando vêm para a confissão,
não é preferível que o homem se prostre humildemente e confesse todos os
seus pecados?”. Em suma, todas essas invenções, por mais estúpidas que
sejam, são obrigadas a ter a aparência de sabedoria, porque, eu já disse,
amamos as coisas que concordam com nosso próprio modo de pensar.
Tudo o que os homens têm assim inventado se adéqua à nossa
natureza, e amamos tudo o que se assemelha a nós. Deus, no entanto, não
está preocupado com as coisas que se parecem conosco e às quais nos
sentimos atraídos. Sua vontade deve ser a regra que retemos, venha o que
vier. Assim, quando descobrirmos que estamos gostando e apreciando as
invenções humanas, saibamos que Deus as condenou de uma vez por todas
como lixo completo, mera imundícia, mitos e coisas de nenhum valor. É
verdade que em outro lugar, a saber, Colossenses, Paulo diz que as leis que
se originam nos homens têm aparência de sabedoria e inclusive de
humildade; cremos que nos humilhamos quando obedecemos aos
mandamentos de homens. Mas, ao mesmo tempo, Paulo acrescenta que,
visto que são mandamentos de homens, nada significam [Cl 2.22, 23].
Portanto, segue-se que o que consideramos como de elevado valor e
importância, traz um fétido odor e é abominação à vista de Deus, como ele
mesmo declarou pela boca de nosso Senhor Jesus Cristo em Lucas [Lc
16.15]. Isso é que temos de recordar aqui.
A seguir, consideremos o que Paulo escreve concernente à
pecaminosidade dos homens: Todas as coisas são puras para os puros;
todavia, para os impuros e descrentes, nada é puro. E qual é a razão? É
porque eles corrompem tudo. Quando lidam com as boas criaturas de Deus,
as infectam com sua poluição, pois a incredulidade é como uma praga
mortífera. Então, quando um homem é conspurcado, tudo o que ele toca é
maculado juntamente consigo. O que Paulo mostra é que os judeus, tentando
compelir os cristãos a se absterem de alimento proibido pela lei,
simplesmente pervertem o culto de Deus, por mais virtuosos que pareçam ser.
Ora, é possível que estranhemos que Paulo falasse tão energicamente
sobre coisas que não têm muita importância; ou assim pensamos. Acaso não
importa a diferença se comemos carne ou não? Ele tinha que fazer tanto
estardalhaço? Se os judeus praticavam sua piedade, deixando de comer
certos alimentos, bem, embora pudessem estar errados e mostrar-se
propensos à superstição e erro, Paulo teria deixado passar
desapercebidamente sem notar algo. Eis como os homens sábios deste
mundo sentem hoje: gostam de se sentar indecisos e nos chamam de
perturbadores quando pedimos aos homens que não se submetam às leis
humanas. Dizem: “Por que é tão errado não comer carne nas sextas-feiras?”.
Entretanto, o que nos interessa são os essenciais. Ao condenarmos os
papistas, não estamos preocupados em saber se é lícito comer carne nas
sextas-feiras. Queremos ir à fonte do problema e indagar se os meros
homens têm o direito de usurpar a autoridade de Deus a ponto de governar as
consciências, promulgando leis de sua própria decisão, impondo sua
observância sob a pena de pecado mortal e aplicando uma compulsão de tal
vulto que seus estatutos são postos acima da Palavra de Deus.
Aonde tudo isso nos conduzirá? O que está em pauta é como Deus
deve ser servido e honrado: se pela obediência a ele ou segundo o bel-prazer
dos homens. Precisamos saber qual realmente é o culto verdadeiro de Deus e
qual a verdadeira religião. Uma vez que isso é assim, porventura os que não
podem criar a ínfima mosca, podem proibir-nos de comer alimento que Deus
criou para nosso uso? E se uma pessoa condena a outra por causa de coisas
que foram inventadas segundo os caprichos dos homens, acaso Deus deve
ser despido de sua autoridade, arrancado de seu trono e perder seu direito de
nos governar, enquanto os homens têm o poder máximo de condenar-nos ou
de salvar-nos como bem decidam? Este é o ponto essencial se entendermos
a base de nossa discussão com os papistas. Eis por que Paulo colericamente
resistiu a superstição dos que negavam aos cristãos a liberdade de comer tal
alimento como Deus criara para nosso uso. É verdade que Deus fez alguma
distinção entre diferentes tipos de alimento. Todavia, como já dissemos, tudo
isso cessou com a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo. Foi tudo abolido, visto
que os filhos só estão sob um guardião até que atinjam a maioridade. Quando
um guardião ou protetor é escolhido para uma criança, não significa que na
idade de trinta ou quarenta anos ela ainda permanecia criança.
Assim, Deus decidiu guiar seu antigo povo de uma maneira adequada
às criancinhas, no dizer de Paulo [Gl 3.24,25]. Agora, porém, ele nos provê
com orientação e direção apropriadas à perfeição a que ele nos conduziu. Se
os judeus tentavam forçar os crentes a obedecerem aos seus ritos, isso seria
uma grosseira ofensa a nosso Senhor Jesus Cristo e diminuiria as benesses
que ele nos outorgou, pois, em sua igreja, ele quer que desfrutemos a
liberdade que ele mesmo conquistou para nós. Além do mais, isso
obscureceria sua graça, pois justamente como podemos julgar um objeto
oculto mediante sua sombra, assim os judeus de outrora podiam ter sido
prontamente guiados a Jesus Cristo pelas sombras que Deus lhes designara.
Entretanto, agora que Jesus Cristo se manifestou, se continuarmos a
ocupar-nos com as sombras e ignorarmos a realidade e a substância, acaso não
zombamos dele e o desafiamos totalmente? E assim vemos que a luz do
evangelho foi velada pelas obrigações que os judeus tentavam impor aos
cristãos. Com boa razão, pois, o apóstolo os tomou por alvos e lhes falou
severamente. Portanto, lembremo-nos de que, quando os homens planejam
introduzir alguma nova forma de servir a Deus, não se pode permitir tal coisa. É
como se o homem buscasse trazer Deus ao nível comum, e como se meras
criaturas desejassem usurpar o que ele reservou exclusivamente para si.
Essa é a primeira coisa que devemos ter em mente sobre essas
tradições elaboradas pelo homem. No entanto, notemos ainda que, quando
estabelecemos essas coisas triviais como um padrão de santidade,
barateamos o verdadeiro culto de Deus. O que ele requer de nós? Que
depositemos nele nossa confiança; reconheçamos nossa miséria e nos
volvamos para ele em busca de misericórdia; invoquemo-lo em cada
necessidade da vida e suportemos com paciência as aflições que ele nos
envia; mantenhamo-nos esperando nele, por maiores que sejam as
tribulações que nos assaltem; andemos em pureza de consciência e portemo-
nos honestamente e com integridade para com nosso próximo. Isso é o que
está implícito pelo verdadeiro culto de Deus. Não obstante, há sempre os que
nos dizem ser uma coisa excelente nos abstermos de carne em tais e tais
dias. Eles não querem que nos dediquemos ao serviço espiritual prestado a
Deus e tentam persuadir-nos de que ele fica satisfeito com ninharias dessa
sorte. Pois que mais são as coisas que os homens inventam senão
brinquedos de criancinhas?
É assim, pois, que os papistas mantêm Deus em ridículo. Assim, ao nos
ocuparmos com seus mitos, nos manchamos da maneira como Paulo
condena aqui. Ora, se os papistas querem servir a Deus como bem lhes
apraz, deixemo-los sozinhos e mantenhamo-nos fora de seu caminho. Eles
dizem: “É assim que se pratica a religião. Faz bem não comer carne em um
dado dia, e nos demais fazer isto ou aquilo. Seja como for, deixem que
empilhem uma absurdidade sobre outra. O que é tudo isso comparado com o
que Deus nos ordenou em sua Palavra? Acaso não é um sacrifício muito mais
excelente invocar o nome de Deus do que fazer algo forjado pela própria
cabeça dos papistas? Eis o que Paulo ensina aqui, quando insiste que
rejeitemos a servidão com que os judeus buscavam agrilhoar as consciências.
E assim ele deixa claro que, se quisermos para nós uma norma sã, peçamos
a Deus o que ele aprova e o que lhe é aceitável. Que de modo algum façamos
algo de nossa própria invenção, pois devemos saber que ele quer que
andemos em pureza de consciência e que seu culto seja espiritual.
Ele não requer que se lhe ofereça em sacrifício uma manada de gado;
não requer grande exibição ou qualquer outra coisa. De nós, ele exige que
neguemos a nós mesmos e nos submetamos a ele; volvamo-nos para ele em
busca de asilo, visto ser ele quem supre todas as nossas necessidades;
atribuamos a ele todo o louvor por todas as nossas benesses; e, quando ele
nos afligir, permaneçamos serenos, e não nos queixemos quando as coisas
não andam bem como gostaríamos; andemos neste mundo como que à
sombra da morte, sempre contemplando a vida celestial como no-la é
oferecida no evangelho. Repito que esse é o verdadeiro culto de Deus,
segundo o claro ensino desta Palavra.
Não obstante, os homens tentarão justificar-se por todas as sortes de
absurdidade. Praticarão suas devoções como que a dizer: “É assim que quero
agradar a Deus e fazer satisfação por meus pecados. Conquistarei mérito
fazendo isto ou aquilo. Melhor ainda, quero que se rezem missas. Essas coisas
conquistarão o paraíso para mim!”. Se os homens pensam que isto dará avanço
à sua causa, estão gravemente equivocados. Essas coisas são não só infantis e
fúteis, são vis e infernais abominações que Deus não pode tolerar. Daí se dar
que toda a obediência que devemos a Deus seja servi-lo em concordância com
sua vontade. Ele nos informa que não é por meio de cerimônias ou por
realizações externas que é corretamente servido, senão que devemos começar
com a integridade interior; fazer orações e súplicas; e devemos renunciar nossa
razão e vis apetites e oferecer-nos como verdadeiros sacrifícios, sendo
renovados interiormente a fim de que o Espírito de Deus reine em nosso interior.
Se nos lembrarmos disto, veremos que tudo o que os homens têm inventado é
mera zombaria que facilmente se desvanece. Então, em vez de dar grande
importância a essas coisas e ser extraviado, descobriremos que são apenas
imundícia, hipocrisia e coisas como tais. Uma vez fazendo proficiência em saber
como Deus gostaria que o servíssemos e o honrássemos, não correremos
nenhum risco de ser trapaceados ou enganados. No entanto, o resto deve ser
reservado para outro momento.
Oração
Agora prostremo-nos diante da majestade de nosso bom Deus, reconhecendo
nossos erros e orando para que ele nos faça senti-los, para que sejamos
guiados ao verdadeiro arrependimento, a fim de que não só nos condenemos
interiormente, mas busquemos o remédio, sendo purificados de todas as
mazelas pelo poder de seu Santo Espírito. Que ele nos ajude a conformar-nos
à justiça de sua lei e que cada dia de tal modo imprimamo-la em nossos
corações, a fim de nos rendermos somente a ele e ao seu beneplácito.
9. A TIRANIA DA TRADIÇÃO [Tito 1.15, 16]
Todas as coisas são puras para os puros; todavia, para os impuros e
descrentes, nada é puro. Porque tanto a mente como a consciência
deles estão corrompidas. No tocante a Deus, professam conhecê-lo;
entretanto, o negam por suas obras; é por isso que são
abomináveis, desobedientes e reprovados para toda boa obra.

No sermão anterior, Paulo enfatizou que devemos viver nossas


vidas em conformidade com a Palavra de Deus, e devemos
considerar os mandamentos dos homens como fúteis, visto que
neles não há santidade nem perfeição de vida. Agora ele dá
exemplo dos mandamentos que tem condenado, a saber: quando os
homens proíbem comer certos alimentos e negam ao povo de Deus
a liberdade que este lhes permite.
Os que atribulavam a igreja nos dias de Paulo eram aptos em
fazer uso da lei como cobertura para as tradições que estavam
promovendo. Entretanto, visto que tais leis só estiveram em vigor
por certo tempo, o apóstolo estava certo em chamá-las de
invenções humanas, pois o templo havia de ser removido na vinda
de nosso Senhor Jesus Cristo. Então, quando alguns na igreja cristã
buscaram supersticiosamente proibir certos alimentos, não tinham a
seu lado a autoridade de Deus, pois era contrário à sua intenção
que os cristãos se submetessem a tais ritos. Então Paulo mostra
claramente que hoje estamos livres para comer todos os alimentos,
sem exceção. Aqui a questão não é a saúde física, mas a
autoridade de impor-nos leis que contradizem o que Deus nos
ensina em sua Palavra. Uma vez que Deus não faz distinção entre
alimentos, então usemo-los sem nos preocuparmos com o que
agrada aos homens ou acarreta sua aprovação. Esse, em resumo, é
o ensino de Paulo na primeira parte deste texto.
É verdade que devemos usar as boas dádivas de Deus
sobriamente e com moderação. Mesmo que, como corre o dito,
tenhamos bastante alimento para sufocar-nos, cada um de nós deve
exercer controle e respeitar a norma que nos foi ensinada: que Deus
nos supriu com alimento para ser usado não com o propósito de
encher nossos estômagos como porcos, mas para sustentar nossa
vida. Digo outra vez que observemos a moderação que Deus nos
recomenda em sua Palavra. Além do mais, se não tivermos alimento
para contentar nosso coração, suportemos a privação com
paciência e assim ponhamos em prática as palavras de Paulo.
Saibamos tanto como sofrer carência quanto desfrutar abundância
[Fp 4.12]. Pois, se nosso Senhor nos dá mais do que esperamos,
não obstante devemos refrear nossos apetites; e, em contrapartida,
quando ele decide reduzir nossas rações, de modo que comemos
frugalmente, fiquemos satisfeitos e roguemos-lhe que nos dê
paciência quando nossa carne aspira por mais.
Em suma, devemos voltar ao que está escrito no décimo
terceiro capítulo de Romanos: “mas revesti-vos do Senhor Jesus
Cristo e nada disponhais para a carne no tocante às suas
concupiscências” [Rm 13.14], pois os males não teriam fim se aos
homens fosse dada rédea livre. Portanto, contentemo-nos em ter
aquilo de que necessitamos e o que Deus bem sabe nos ser
apropriado. Desta maneira, todas as coisas nos são puras, uma vez
que as tomemos como puras. Naturalmente, mesmo que todos os
homens fossem impuros, o alimento que Deus criou ainda seria
bom. No entanto, o que está aqui é uma questão de uso. Quando
Paulo diz que todas as coisas são puras, ele não tem em mente que
são puras em si mesmas, mas refere-se aos que as recebem. Já
vimos isso quando Paulo escreveu a Timóteo: “alimentos que Deus
criou para serem recebidos com ações de graças” [1Tm 4.3-5]. O
apóstolo afirma: “Deus encheu o mundo com tal abundância, que
devemos maravilhar-nos quando virmos que ele cuida
paternalmente de nós”. Pois, qual era o propósito de Deus em criar
as riquezas aqui embaixo, se não exibir sua generosidade para com
os homens?
Ora, se não sabemos que Deus, que é nosso Pai, deseja
também nutrir-nos, e se não recebemos de suas mãos tudo o que
ele nos supre no tocante à comida, então nos certificamos de que é
ele que nos alimenta — se não tivermos ciência disso, Deus não
pode ser glorificado como bem merece e não podemos comer um
naco de pão sem cometer sacrilégio! Seríamos passíveis de
julgamento, se não fôssemos convencidos de que Deus tanto nos
alimenta quanto nos sustenta e de que podemos corretamente
desfrutar as benesses que ele nos tem outorgado. Eis a pureza de
que Paulo fala quando declara que “todas as coisas são puras para
nós”, contanto que sejamos suficientemente probos em rogar a
Deus que nos dê nosso pão diário e não nos deixe subestimar as
benesses de que outros desfrutam. Nesse caso, podemos ter como
certo que estamos autorizados a receber, como nosso de pleno
direito, tudo o que Deus nos dá.
Notemos donde vem essa pureza. Ela não se encontra em nós
mesmos, mas nos é conferida pela fé. No décimo quinto capítulo de
Atos, Pedro — enquanto trata de um tema muito mais amplo — diz
que os corações de todos os antigos pais foram purificados por meio
da fé que Deus lhes deu [At 15.9]. É verdade que ali ele tinha em
mente nossa eterna salvação, pois éramos totalmente imundos até
que Deus nos reconciliou consigo mesmo através de Jesus Cristo, e
tendo-o tornado nosso Redentor, ele pagou o preço do resgate por
nossas almas. Não obstante, este ensino tem também relevância
para esta vida atual. Pois, enquanto não soubermos que, pela
adoção em Cristo, somos filhos de Deus e assim recebemos o
mundo como nossa herança, não podemos sequer tocar um naco
de comida sem que sejamos ladrões, visto que, pelo pecado de
Adão, estamos excluídos de todas as boas dádivas de Deus até que
nos apoderemos delas em nosso Senhor Jesus Cristo. A fé, pois,
deve purificar-nos, e então todos os alimentos nos serão puros —
isto é, seremos livres para desfrutar deles sem quaisquer
desconfianças.
Portanto, se os homens buscam impor-nos leis, podemos
desconsiderá-las, já que sabemos que Deus não pode ser agradado
se, obedecendo-lhes, tomarmos os homens como parceiros iguais a
ele. Sua prerrogativa exclusiva é controlar-nos e dirigir-nos. Norma
espiritual é direito inviolável de Deus, de modo que, quando
atribuímos supremacia aos homens, e quando enredam e enrolam
nossas almas em seus rolos, é como se estivéssemos negando o
poder e o domínio de Deus. Em resultado, nossos esforços de
parecer humildes, obedecendo às tradições elaboradas pelos
homens, seria pior que todas as rebeliões do mundo; pois eles
roubariam a Deus de sua honra e ele seria refém de homens
mortais e de criaturas sem nenhum valor.
É verdade que aqui Paulo está se referindo às práticas
supersticiosas de certos judeus que desejavam corroborar as
sombras e símbolos da lei. Mesmo assim, aqui o Espírito Santo
expressou uma verdade que deve ser obedecida até o fim do
mundo. Pois hoje em dia Deus não nos sobrecarrega como fez aos
pais de outrora. Ele pôs de lado seus primeiros mandamentos e
proibições atinentes a alimento, visto que eles eram meramente leis
temporárias. Ora, visto que Deus nos deu esta liberdade, quão
ousados seriam esses vermes que rastejam pela terra se
estabelecessem sobre nós novas leis; como se Deus não fosse
suficientemente sábio! Quando citamos este texto aos papistas,
dizem que Paulo estava falando unicamente dos judeus e dos
alimentos proibidos pela lei. Admito que isso procede; mas vejamos
se esta é uma resposta sã e aceitável.
Neste versículo, Paulo não só diz que é permissível desfrutar
do que foi proibido; ele faz também uma afirmação geral de que
“todas as coisas são puras”. Assim, Deus nos concedeu tal
liberdade no uso de alimentos, que não quer que sejamos
constrangidos como o foram os pais de outrora. Ora, visto que Deus
cancelou a lei que previamente promulgara e a considera como não
mais válida ou em vigor, se os homens se aventurarem a inventar
quaisquer tradições segundo seu gosto e não se contentarem com o
que Deus lhes tem ensinado, mas concluírem que são mais sábios
que ele, onde haverá fim? Porventura não será duplamente mau?
Notemos uma coisa: a igreja cristã será condenada ao mesmo
estado imaturo como prevaleceu sob o Antigo Testamento. Contudo,
Deus quer governar-nos como pessoas que já atingiram a idade
adulta e que não mais precisa aprender seu abc! Isso equivaleria a
subverter a ordem estabelecida por Deus. E então, outra coisa: ao
estabelecer algo inventado pelos homens e requerer obediência sob
pena de pecado mortal, esquecemos que hoje o próprio Deus já não
deseja que guardemos sua lei no que diz respeito às suas sombras
e símbolos, havendo tudo isso cessado com a vinda de nosso
Senhor Jesus Cristo. Portanto, seria mais lícito obedecer às coisas
intentadas pelo cérebro humano? E se tentarem forçar-nos a
obedecer, isso seria algo mais fácil de suportar? Acaso não vemos
que isto se arremete diretamente para o rosto de Deus?
Eis por que Paulo está determinado a resistir a esses
enganadores que queriam compelir os cristãos a se absterem de
certos alimentos como ordenados pela lei de Deus. Repito que, se
Paulo saísse a resistir a eles expressamente e com o máximo rigor,
o que faríamos quando os homens desafiam abertamente a Deus,
tentando arrastá-lo de seu trono, reivindicando a autoridade que lhe
pertence com exclusividade, tratando-o como um troféu que haviam
conquistado e levando-o em triunfo? Não deveríamos considerar
isto uma monstruosa blasfêmia contra o próprio Deus? Se alguém
argumentar dizendo que abster-se de carne nas sextas-feiras e na
Quaresma não é muito importante, devemos considerar se usurpar
e macular o culto de Deus é também sem importância. Existem
aqueles que, em desafio à Palavra de Deus, tentam promover tudo
o que lhes agrada com o fim de abrir caminho para as tradições
elaboradas pelo homem. Evidentemente, são culpados de sacrilégio
e correm o risco de arruinar tudo. Visto que Deus quer que o
sirvamos em obediência, cuidemos de manter-nos dentro dos limites
que ele estabeleceu e não permitamos que os homens acrescentem
algo de si próprios.
Igualmente, esse erro leva a outros erros, como quando
pensamos que prestamos um serviço meritório pela abstenção de
carne — uma insistência já feita — e assim adquirimos santidade.
Servir a Deus é um ato, no entanto é completamente anulado
quando os homens são enganados por um absurdo tão indigno.
Eles confundem, por assim dizer, o glacê pelo bolo. Portanto, é
ainda mais importante insistir em nossa liberdade e certificar-nos de
que ela seja mantida entre os crentes. Devemos seguir a regra
ensinada por Deus em sua Palavra, de modo que os homens não
mais nos importunem e inventem novas leis para trazer as almas em
servidão. Essa é uma tirania diabólica que enfraquece a autoridade
de Deus; ela mistura a verdade do evangelho com os símbolos da
lei e distorce e corrompe o genuíno culto a Deus que deve ser de
caráter espiritual.
Portanto, isso é suficiente para a afirmação inicial de Paulo de
que “todas as coisas são puras para os que são puros”.
Observemos que privilégio inapreciável ser capaz de agradecer a
Deus com uma consciência tranquila, sabendo que sua vontade é
que desfrutemos suas boas dádivas. Ao agirmos assim, evitamos
enredar-nos na superstição humana. Contentemo-nos com a pura
simplicidade que se encontra em sua Palavra. No entanto,
entendemos que nos tornamos puros quando recebemos o Senhor
Jesus Cristo, o qual nos purifica de nossas manchas e desonra, e
quando o reconhecemos como o soberano do mundo inteiro.
Através de sua graça partilhamos hoje das benesses de Deus, pois
somos contados entre seus filhos; e ainda que em nós mesmos não
sejamos nada, não obstante Deus nos reconhece como membros
de sua casa a quem, por isso mesmo, alimentará.
A seguir, em nosso texto, Paulo fala dos impuros e descrentes,
para quem nada é puro. Esta é a forma de o apóstolo mostrar que
os que prescrevem novas leis não podem esperar agradar a Deus
por tais meios: ele sempre os afugentará, visto que tudo o que eles
produzem é saturado de infecção. Qual a razão? Porque, enquanto
são infiéis, são malignos e profanos, sendo tão imundos que tudo
em que tocam fica manchado por sua perversidade. Em
consequência, todas as leis e normas que elaboram são fúteis,
porque Deus repudia todas elas e as rejeita como totalmente
aversivas.
Vemos, pois, que, embora os homens levem a sério suas
cerimônias e observâncias externas, ainda que seja de coração reto,
labutam em vão — escavam a areia, como costumamos dizer. O
genuíno serviço a Deus deve começar com sinceridade e
integridade. Enquanto formos incrédulos, seremos conspurcados e
pútridos aos olhos de Deus; tudo o que vem de nós é imundo e
pestilento. Isto deveria ser perfeitamente claro e em si mesmo
evidente, a não ser que a hipocrisia esteja tão arraigada nos
homens que jamais aprendam coisas que não são difíceis de
apreender. Quando nos é dito que nosso culto não é agradável a
Deus até que nosso coração seja purificado de todo o mal, todos
admitimos que a afirmação é procedente e nela nada vemos que
seja obscuro. Não obstante, nós a descartamos de nossas mentes.
Como é possível que isso seja assim? Como eu já disse, é por
causa de nossa hipocrisia.
Eis por que Deus se digladiou com seu antigo povo acerca
desta doutrina, como vemos especialmente no segundo capítulo do
Profeta Ageu. Ali, Deus pergunta aos sacerdotes: “Se alguém leva
carne santa na orla de sua veste, e ela vier a tocar o pão... ficará
isso santificado?” [Ag 2.12]. Os sacerdotes respondem: “Não!”.
Então, ele pergunta: “Se alguém que tinha se tornado impuro pelo
contato com um corpo morto tocar nalguma destas coisas, ficará ela
imundo? Responderam os sacerdotes: “Ficará imunda”. Portanto,
Deus conclui: “Assim é este povo... assim é toda a obra de suas
mãos” [Ag 2.13,14]. Tragamos agora à luz da verdade o que a lei
continha em forma simbólica e obscura. Se um homem que fora
maculado tocasse alguma coisa, tudo era maculado e a seguir tinha
que ser purificado. Por isso diz nosso Senhor: “Considerai o que
sois. Sois totalmente corruptos e imundos; contudo, por vossos
sacrifícios, oferendas e coisas afins, pensais que podeis satisfazer-
me. Mas, não! Enquanto vossas almas se acham enleadas pelos
maus desejos; enquanto alguns são mulherengos e adúlteros, e
outros blasfemos e falsas testemunhas, saturados de fraude,
crueldade e malícia; enquanto vossas vidas são dissolutas, o que
podeis trazer-me? Tudo está contaminado. Não posso tolerar tal
coisa, por mais atraente que seja aos olhos dos homens”.
Então fica claro que, até que sejamos realmente reformados
em nossos corações, cada ato do serviço que prestamos a Deus
será apenas zombaria. Deus o rejeita e o condena totalmente. Mas
que homem realmente se deixa convencer de que isso é assim? De
fato, há malfeitores impregnados de suas iniquidades que, sentindo
remorso em sua consciência, se empenharão em fazer as pazes
com Deus, ocupando-se de cerimônias. No entanto, será
plenamente suficiente se puderem satisfazer aos homens na
esperança de que Deus seja assim aplacado. Foi assim que sempre
se fez em todos os tempos. Por isso os homens revelam em sua
duplicidade que são cegos ao que deveria ser-lhes óbvio quando
pensam claramente no assunto. Em outros lugares à parte de Ageu,
Deus os repreende por amarem a duplicidade e por crerem que
podem ser reconciliados com ele por esses meios mesquinhos. Esta
foi a causa do contínuo conflito entre os profetas e os judeus. “As
vossas festas da Lua Nova e as vossas solenidades, a minha alma
as aborrece; já me são pesadas; estou cansado de as sofrer” [Is
1.14; Am 5.22]. Essa é a imagem que Deus usa para mostrar quão
vil e torpe era o mau uso que os homens faziam das coisas que ele
ordenara e que os hipócritas profanavam. Como ele diz por
intermédio de Jeremias: “Porque nada falei a vossos pais, no dia em
que os tirei da terra do Egito, nem lhes ordenei coisa alguma acerca
de holocaustos ou sacrifícios. Mas isto lhes ordenei, dizendo: Dai
ouvidos à minha voz, e eu serei o vosso Deus, e vós sereis o meu
povo; andai em todo o caminho que eu vos ordeno, para que vos vá
bem. Mas não deram ouvidos, nem atenderam, porém andaram em
seus próprios conselhos e na dureza do seu coração maligno;
andaram para trás, e não para frente” [Jr 7.22-24]. Na mesma
passagem, ele os reprova ainda por haverem convertido suas
cerimônias e seu templo num covil de ladrões [Jr 7.11].
Portanto, aprendamos que, quando os homens tentam servir a
Deus de sua própria maneira, erram e se extraviam. Todos se
reduzirão a nada, como Deus declara em outro lugar em Isaías:
“quem vos requereu o só pisardes os meus átrios?” [Is 1.12]. Aqui
ele revela que, se quisermos que aprove nossas obras, temos de ter
a sanção de sua Palavra. É aí que temos de começar.
Agora podemos ver o que Paulo tinha em mente quando disse
que “para o impuro nada é puro”. A razão, como ele diz, é que suas
mentes e suas consciências são impuras. Isto é, até que tenhamos
aprendido a servir a Deus honestamente e com sinceridade, nada
lucramos das trivialidades que tanto afagamos, as quais nos
acariciam continuamente e nos é um acalanto para dormir.
Pensemos em todas as tradições que existem entre os
papistas. Seu propósito primordial é fazer as pazes com Deus por
meio das assim chamadas obras de super-rogação — isto é, obras
de superávit de mérito. Se eles fazem mais do que Deus lhes
ordenou, pensam que têm cumprido com seu dever para com ele e
que, ao fazer tal pagamento, então o satisfizeram. Computam tudo,
de modo que, quando tiverem jejuado e guardado vigília, feito
abstinência de carne nas sextas-feiras, realizado uma multidão de
ritos, ouvido piamente a missa e usado água benta, pensam que
Deus não esperaria nada mais deles, visto que se acham acima de
censura. Contudo, em todo o tempo continuam cultivando seus
vícios interiores — sua prostituição, suas mentiras e suas
blasfêmias —, cada um deles aferrado a seu pecado. Pois creem
que Deus aceitará como recompensa tudo quanto é lixo que lhe
oferecem, como quando usam a água benta, culto aos ídolos,
correm de altar a altar e assim por diante. Ao lançarem as palavras
mágicas de Satanás e murmurarem encantamentos, imaginam que
este é o pagamento e recompensa suficientes para suas ofensas.
Entretanto, ouvimos o que o Santo Espírito ensina sobre os
que são imundos: não há nada puro ou limpo em nada que fazem.
Apenas supõem que todo este disparate, ou, melhor, todas estas
abominações dos papistas, não eram más por natureza. Não
obstante, é o caso de que, segundo o ensino de Paulo, seriam
impuros, visto que os papistas continuariam manchados pelo
pecado. Imaginemos um deles entrando na igreja. Ele careceria de
trinta lagos — ou, melhor, oceanos! — para que se lavasse e ficasse
limpo. No entanto, ele toma três gotas de água benta e crê que está
completamente purificado aos olhos de Deus. Assim, ele requereria
também um vasto cortejo de luzes para que pudesse ver. Toda a luz
do mundo lhe seria inútil, pois ele é um mísero cego que nada sabe;
um homem que se brutalizou por sua ignorância. Mesmo assim, ele
se contenta com uns poucos brilhos fugidios de Luz e nada discerne
da verdade de Deus. Incansavelmente, saem aos atropelos para
ouvir a missa, mas o que ganham por todo esse disparate? É
verdade que enfrentam duras penas e pensam que Deus se sente
gratificado pelos esforços que fazem para servi-lo desta maneira.
Mas tudo o que fazem não mostra nenhum sinal de mudança:
continuam se refestelando em sua imundícia e incredulidade e não
retornam para Deus.
Ninguém necessita de ocupar-se com nada disso, nem pense
que, assim, pode achar um meio de se purificar de suas mazelas e
manchas. Tudo isso não passa de medicina do diabo e uma
infecção infernal. No entanto, escolho este exemplo para ilustrar, à
moda de contraste, o que Paulo está dizendo. Enquanto os homens
são infiéis, eles são corruptos e manchados, de modo a contaminar
tudo o que tocam. Portanto, a doutrina que temos ouvido deveria
fazer-nos muito mais prontos a condenar a nós mesmos e a
reconhecer que em nós nada se acha senão contaminação; mas
também deveria levar-nos a orar para que Deus, em sua bondade,
nos purifique mediante seu Santo Espírito e permita-nos participar
de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual é a fonte de toda justiça e
santidade. Pela fé temos comunhão com ele, de modo a sermos
tidos como puros e inculpáveis diante do Senhor. E mesmo que haja
em nós muita contaminação, devemos pedir-lhe que nos seja
favorável e aceite o que lhe temos dado de bom grado à maneira de
serviço obediente, e não segundo nossa própria inclinação.
Quanto ao resto, notemos que nunca atingiremos a verdadeira
pureza sem lançar fora todas as nossas queridas ideias e tudo o
que nossa mente carnal crê ser adequado e próprio. Por qual
razão? Porque só há uma regra que Deus aprova. Devemos atentar
sinceramente para tudo o que ele ordena e aprender a submeter-
nos sem qualquer adição que seja propriamente nossa; pois tudo o
que vem de nós é profano. É uma terrível condenação que nos é
imposta quando lemos que para eles nada é puro, e que tudo é
poluído e contaminado até que Deus os torne novos outra vez.
Longe de nós trazer algo que lhe seja aceitável, que não podemos
beber, nem comer, nem vestir-nos e nem sequer dar um passo sem
contaminação. E mais ainda, vivendo neste mundo, infectamos
todas as criaturas. Portanto, no último dia, estas rogarão vingança
sobre todos os que são infiéis e réprobos.
De modo que só temos razão para detestar-nos e
envergonhar-nos, visto que as criaturas de Deus sofrem dano por
nossa causa, e que somos culpados de haver contaminado o que
Deus separou para nosso uso. Aliás, em nós nada há senão
impureza, a qual Deus repudia e amaldiçoa. Em contrapartida, uma
vez que nos humilhemos dessa maneira, deveríamos entender quão
preciosa é a bênção de Deus quando nos une a si e quando,
havendo-nos purificado, nos permite desfrutar de suas mais
generosas dádivas com um coração puro, assegurando-nos que
podemos, licitamente, beber e comer com a devida moderação e
restrição racional. Além do mais, Deus não só nos santifica para que
não mais sejamos culpados de macular suas boas criaturas, mas
aceita o que lhe apresentamos, mesmo que nossas boas obras
ainda sejam um tanto maculadas e manchadas, já que não
podemos ser suficientemente perfeitos para servir a Deus com plena
integridade. Mesmo assim, ele não deixa de aceitar o que fazemos
em concordância com sua Palavra, pois, em sua imerecida
bondade, ele nos purificou por amor a nosso Senhor Jesus Cristo,
mas sob a condição de que não busquemos diminuir qualquer parte
de sua autoridade, usurpando o que lhe pertence exclusivamente,
como já dissemos.
Isso é o que temos de notar sobre esta passagem.
Reconhecemos a infinita bondade que Deus teve conosco ao
resgatar-nos de nossa maldita situação quando ainda estávamos
entre os papistas, e ao ensinar-nos como podemos servi-lo com
uma consciência serena. Somos livres para ir e vir e seguir nossa
vocação, cônscios de que Deus se agrada da liberdade que nos
deu. Não somos presas de contínua inquietação, sem saber se
temos uma regra definida ou que tipo de liberdade nosso Senhor
Jesus Cristo conquistou para nós. Desfrutemos de tudo isso de
modo que nunca permitamos que os homens nos apanhem outra
vez em seus ardis e nos traga em servidão.
Tal é a nota com que Paulo conclui: No tocante a Deus,
professam conhecê-lo; entretanto, o negam por suas obras; é por
isso que são abomináveis e reprovados para toda boa obra. Aqui o
apóstolo desmascara estes indivíduos, de modo que não mais
enganem com sua agradável aparência. Pois os que inventam
muitos estatutos e ordenanças concernentes às cerimônias
asseveram que seu alvo é servir a Deus. É essa sua escusa, mas,
se examinarmos as vidas que levam, veremos que escarnecem de
Deus e zombam completamente de sua majestade. Portanto, esse é
o principal tema de Paulo aqui.
No entanto, é importante olhar detidamente o que ele diz. Ele
salienta, à primeira vista, que tais pessoas aparentam ser religiosas,
parecem extremamente piedosas e zelosas para com a honra de
Deus. Mas zelosas de que maneira? Essa é a pergunta que
devemos formular, pois Deus quer que julguemos se de fato o
tememos ou não pelo padrão de sua Palavra. Quando queremos
testar a pureza de um metal, ou usamos uma pedra de toque ou o
pomos na fornalha. Não temos outro meio de julgar nossas vidas ou
provar nossos corações além de olhar para os mandamentos de
Deus. Mas, para estes homens, toda a santidade consiste em meros
atavios. Pensam ser suficiente se servimos a Deus por modos que
ele não requer e em que ele nos permite livre escolha. Todavia,
ignoram totalmente o que ele nos manda em sua Palavra! Sempre e
em cada época os homens têm desprezado a lei de Deus por amor
de suas próprias tradições, justamente como nosso Senhor Jesus
repreendeu os fariseus de fazerem [Mt 15.3], mas também como
sucedeu nos dias dos profetas. Isaías estava certo de vituperar
amargamente contra os que eram extraviados pelas tradições dos
homens [Is 29.13]. E por quê? Porque, enquanto se ocupavam em
fazer isso, omitiam levianamente os mandamentos de Deus, um
exemplo comumente visto entre os papistas.
Pois o que pretendem quando falam do culto de Deus? São
grotescos arranjos sem sentido que têm inventado a fim de agradar
a Deus. No mesmo instante que ouvem uma missa já estão prontos
para outra; há um sem fim de rituais a realizar; uma coisa após
outra: uma oferta, uma peregrinação a um santo do dia ou alguma
outra coisa. Em suma, não há fim ou limite para isso; é um abismo
sem fundo. Quando os homens endoidecem para fazer quanto lhes
agradam suas fantasias, certamente entram num labirinto tão
impenetrável que se torna pior que muitos abismos do mundo. Se
um homem fosse gastar seu tempo em nada senão isso, terminaria
emaranhado sem esperança. Assim, vemos como no papado o
excessivamente devoto, havendo ocupado toda a manhã, ainda têm
muitas outras maneiras de se promover: tantas mea culpa a entoar;
tanta água benta a aspergir — sua tarefa nunca termina. Em
confissão, ele nunca tira o suficiente de seu baú sem começar tudo
de novo! Numa palavra, quando os homens são tão obcecados por
suas tradições, não lhes sobra sequer um minuto para pensar no
verdadeiro culto a Deus; absorvido por suas invenções absurdas,
simplesmente o ignoram. É disso que os homens gostam quando
determinam agir como preferem, segundo suas próprias ideias.
Eis por que o profeta Isaías denunciou os que valorizavam
demais as tradições dos homens, declarando que Deus pronuncia a
terrível ameaça que cegará até mesmo o mais sábio dos homens,
visto que se extraviaram da norma pura de sua Palavra a fim de
seguir seus próprios inventos [Is 5.20, 21]. Eis a tese de Paulo nesta
passagem, quando sugere que tais homens não revelam nenhum
temor de Deus e que realmente o negam. Como assim? Diz ele:
“Basta olhar para sua maneira de vida; eles são vis”. O que ele tem
em mente é que, de fato, eles podiam lavar suas mãos quatro vezes
com o fim de serem santificados da mesma maneira que os papistas
usam a água benta. Em consequência, esses homens praticavam
suas costumeiras lavagens e alguma série de outros rituais além
desse. Todavia, onde está a coisa que realmente importa? Sabemos
que Deus requer de nós que andemos com integridade e nos
abstenhamos de toda e qualquer violência, roubo, crueldade,
malícia e fraude. Nossa vida deve ser isenta de todas essas coisas.
Ele nos ordena que sejamos sóbrios e disciplinados, moderados e
de modo algum desregrados. Todavia, Paulo insiste que esses
homens são maus. É óbvio que são carentes de autocontrole; suas
vidas são totalmente conspurcadas e não têm em si nenhum temor
de Deus.
Onde, pois, está o zelo de que se gabam para agradar a Deus
por meio de suas devoções intermináveis? É por isso que Paulo
insta conosco a marcá-los bem para que não sejamos enganados
pelo pretexto fútil de servirem a Deus. Portanto, somos advertidos
de que é inútil sermos estimados pelos homens. Podemos desfrutar
dos aplausos dos homens; mas, se o Juiz celestial nos rejeitar, o
que lucraremos com isso? Não obstante, nesta vida mortal
buscamos apenas a aprovação dos homens; e quando cada um de
nós crê deleitosamente a possuir, imaginamos haver pago
devidamente nosso débito com Deus. Mas não devemos ser
surpreendidos, pois Deus não revogará nenhuma das coisas que ele
nos ordenou em sua lei. Sabemos de fato o que é realmente uma
vida bem ordenada? Então atentemos bem para os mandamentos
de Deus. Não é, como já dissemos, uma questão de buscar
santidade através de tais refugos ostentosos ou através da exibição
externa tão grandemente encarecida pelos homens. Devemos
começar com a pureza do coração, de modo que invoquemos a
Deus e depositemos nele toda a nossa confiança. Despidos de todo
orgulho e arrogância, acheguemo-nos a ele com toda humildade,
não nos deixando dominar por nossos desejos carnais, mas cativos
a Deus e sob seu controle. Sejamos livres da cupidez, da orgia, da
autoindulgência, do furto, da blasfêmia e de outros males afins. É
para isto que Deus quer que nos acheguemos a ele, se nossas
vidas hão de ser bem ordenadas.
E, assim, os que buscam justificar os homens por sua prática
externa, não mais cubram uma fétida pilha de imundícia com um
lençol ou um manto de linho, pois então a imundícia permanece.
Desfaçamo-nos, pois, da podridão oculta em nosso coração; que
todo o mal, repito, seja arrancado de nós. Então nosso Senhor
aprovará a vida que vivemos.
Vemos aqui o que realmente significa conhecer a Deus. Não
nos entreguemos à especulação visionária, mas sejamos realmente
transformados em obediência a ele. Não podemos conhecer a Deus
sem sermos transformados à sua imagem. É verdade que, como os
pagãos, temos um vago conhecimento de Deus, mas isso nos faz
menos escusáveis, pois Deus não permite que os homens sejam tão
brutos que cessem de sentir que existe um Deus que os criou. No
entanto, isso simplesmente serve para condená-los, pois, ao
saberem, nada sabem. São embrutecidos; Satanás cegou seus
olhos, como diz Paulo [2Co 4.4]. Embora o evangelho lhes seja
pregado, dificilmente o percebem, como hoje se faz evidente em
tudo o que nos cerca. Quantos há neste mundo que foram instruídos
na mensagem do evangelho e, contudo, permanecem insensíveis
em sua ignorância e são tão brutos como sempre foram? Satanás
de tal modo os encheu com desejos malignos que, por mais radiante
que o sol brilhe, ainda são cegos demais para ver alguma coisa.
Portanto, entendamos que o verdadeiro conhecimento de
Deus não está morto, mas vivo e ativo; é visível e produz fruto em
cada parte de nossa vida. Daí, como Paulo salienta na segunda
carta aos Coríntios, a fim de conhecermos a Deus, temos antes que
ser transformados à sua própria imagem [2Co 3.18]. Pois, se
alegarmos que o conhecemos enquanto nossa vida é dissoluta e vil,
não há necessidade de testemunha que nos contradiga: nossa
própria vida dá amplo testemunho de que, ao abusarmos do nome
de Deus, o escarnecemos e pervertemos a verdade. Assim, Paulo
escreve em outro lugar que, se conhecemos a Jesus Cristo, temos
de despir o velho homem [Cl 3.9]. Isto é, não podemos conhecer
Jesus Cristo a menos que o recebamos como nossa Cabeça; e ele
nos una a si como membros de seu corpo, o que só pode acontecer
quando tivermos renunciado nosso velho ego e nos tivermos
convertido em novas criaturas. Ao mesmo tempo, o apóstolo anexa:
“Se o tiverdes conhecido como deveríeis” [Cl 3.10]. Esta observação
é acrescida deliberadamente, porque em cada idade os homens
abusam perversamente do nome de Deus, como ainda é o caso
hoje.
Então, pensemos seriamente sobre o verdadeiro e correto
conhecimento que Paulo descreve aqui. Quanto ao resto, e à
maneira de conclusão, quando ele se refere às boas obras, não
venhamos mais com nossas escalas e balanças e asseveremos:
“Em minha opinião, é isto que se requer, ou assim me parece”.
Tenhamos em mente que boas obras são as que Deus ordenou em
sua lei; e que tudo o que porventura fizermos redunda em nada.
Devemos render-nos aos mandamentos de Deus, colocando nele
toda nossa confiança, invocando-o em oração, dando-lhe graças,
suportando pacientemente tudo o que ele cuida de enviar-nos,
vivendo com integridade com nosso semelhante e sendo honrados e
moderados em nosso comportamento. Estas são as boas obras que
Deus demanda de nós. Se nossa natureza não fosse tão depravada,
todos prontamente veriam que isso é assim. Sim, até as criancinhas
teriam suficiente ciência para declarar: “Estas são as boas obras, e
todo o resto é futilidade — abominações que arruínam o culto puro
de Deus!”. Isso é, repito, como podemos saber o que Paulo quer
dizer com boas obras. Devem ser distinguidas de tudo o que os
homens inventam. Nossa tarefa é unicamente seguir o que Deus de
uma vez por todas revelou em sua Palavra. Não temos outra norma
além daquela que ele nos deu, e a qual ele haverá de endossar
quando, no último dia, lhe respondermos como nosso único Juiz.
Oração
Agora nos prostremos diante da face de nosso bom Deus,
reconhecendo nossos erros e rogando-lhe que nos faça senti-los
mais profundamente que nunca. Por amor de nosso Senhor Jesus
Cristo, que ele nos dê tal confiança, que não hesitemos em achegar-
nos a ele e em receber a certeza de que nossos pecados são
perdoados. Que ele nos conduza a uma fé tão sólida, que sejamos
purificados de toda mancha, de modo que cessemos de infectar o
mundo em que vivemos. Que sejamos purificados pela fé que ele
nos dá em seu evangelho e que nossas obras lhe sejam aceitáveis,
uma vez que ele não mais nos imputa os erros e imperfeições nem
os pecados que merecem condenação.
10. O CARÁTER CRISTÃO (1) [Tito 2.1-3]

Tu, porém, fala o que convém à sã doutrina. Quanto aos homens


idosos, que sejam temperantes, respeitáveis, sensatos, sadios na
fé, no amor e na constância. Quanto às mulheres idosas,
semelhantemente, que sejam sérias em seu proceder, não
caluniadoras, não escravas a muito vinho; sejam mestras do bem.

Vimos previamente como Paulo condenou os que, movidos pela


ambição, abusam da Palavra de Deus e, assim, a corrompem e que,
como resultado, fracassam em edificar a igreja. Deus não nos deu
sua Palavra para que meramente fatigue nossos ouvidos ou para
que se permita que o que foi dito se desvaneça no ar. Sua intenção
é que ela nos seja alimento e molde nossas vidas. Em suma, sua
vontade é que a ponhamos em prática e provemos que não
desperdiçamos nosso tempo como alunos em sua escola.
Ora, visto que as pessoas são sempre movidas por novidade e
visto que a maioria se contenta em ouvir as mais antigas questões
discutidas, os que são destinados a ensinar podem ser induzidos a
exercer um papel falso a fim de agradar e gratificar a congregação,
de modo que desaparece o ensino proveitoso e sadio. Isso é
especialmente assim quando há alguns que apresentam uma fina
exibição com o fim de impressionar. Outros podem ser tentados a
fazer o mesmo, a menos que, restringidos pelo temor de Deus,
parem para pensar: “Ora, pois, aqui me é confiado este ofício digno.
Sou responsável diante de nosso Senhor Jesus Cristo que me
ordenou que falasse de sua parte e com sua autoridade. A mim foi
confiada a salvação das almas — um tesouro tão querido a Deus
que ele não poupou a seu único Filho. Não devo profanar a doutrina
da salvação, mudá-la para adequar-se a mim mesmo ou para que
meu modo de pensar agrade outros. Isso equivaleria a falsificar
tudo. Ser culpado de tal pecado aos olhos de meu Deus seria pouco
mais que uma traição”.
A menos que os homens cuja tarefa é proclamar o evangelho
deem cuidadosa atenção a estas coisas, estejam certos de ser
levados ao redor e pregar coisas inúteis a fim de satisfazer a
homens com comichão nos ouvidos. Sabemos que isto é verdadeiro
em todas as épocas. Muitos se sentem mais que felizes se
conseguem excitar aplauso ou gargalhada. Creem que seu tempo
foi bem gasto; contudo, não têm atentado para a edificação, para
fazer bom uso do ensino e alimentar as almas dos homens. Pois,
assim como somos fisicamente sustentados de pão e alimento,
assim também nossas almas devem ser nutridas pela doutrina da
salvação.
Eis por que neste ponto Paulo diz a Tito: “Embora vejas
louvores amontoados sobre os homens que escarnecem de Deus,
embora todos os saciem e embora pareçam ser mui importantes
mestres em razão de seu dom para a especulação sagaz, supondo
que todos os homens estavam destinados a segui-los, tu não deves
afastar-te de teu alvo. Segue em frente e permanece fiel à doutrina
que é clara e sã. Cuida bem que a igreja receba o fruto de teu labor;
sente-te satisfeito por servires a Deus e estejas certo de que as
almas sejam salvas. Este é todo o louvor de que necessitas. Este
deve ser teu alvo. De modo que não sejas enganado pelos
exemplos que vês ao teu redor. Não os sigas nem os copies”.
Este, pois, é o sentido da expressão de Paulo: Tu, porém. Ele
acabara de falar de homens grandemente estimados por seu
excelente empreendimento, homens que pregavam ostensivamente
com o fim de impressionar. Então, Paulo diz: “Embora vejas o
quanto desfrutam os favores do mundo, não recues. Persegue a
obra que começaste. Que a doutrina que procede de teus lábios
seja sã”. Ele usa a palavra deliberadamente, porque, se temos de
permanecer realmente saudáveis, a Palavra de Deus que nos é
pregada deve ser nosso alimento espiritual. É verdade que não
vemos isto imediatamente; mas é assim que é. Por que não o
vemos? Porque somos demasiadamente aferrados à terra e cativos
de nossos sentidos. Quando nos falta alimento para o corpo,
imediatamente nos apavoramos; somos tomados pelo pânico; não
temos um minuto de paz; pois isto nos toca diretamente. Somos
sensíveis quanto ao que temos de fazer com esta vida perecível;
mas deixamos mais ou menos de preocupar-nos sobre o destino de
nossas almas. Somos tão estúpidos e obtusos, que não temos
consciência do que nos falta, por mais que tal coisa nos prejudique.
Notamos, contudo, quão frágeis nos tornamos se não somos
alimentados pelo ensino de Deus. Portanto, diz-se que ela é sadia,
pois isso é o que faz nossas almas sadias. Justamente como
nossos corpos são mantidos em boa condição graças à nutrição
regular, assim nossas almas são sustentadas pela sã doutrina, a
qual serve não só de alimento, mas também de medicina. Pois nos
saturamos de males que são piores que enfermidades. Devemos
ser purgados, se queremos ser curados deles. Isto nos acontece
quando fazemos bom uso da Palavra de Deus. É por isso que Paulo
tem razão em descrevê-la como sã, pois deseja demonstrar o efeito
que ela exerce em nós. Ela nos restaura quando estamos doentes e
nos mantém sadios, de modo que passamos a ter a força de
engajar-nos no serviço de Deus. Nada nos impede de ser
purificados de nossos erros e da contaminação que nos afasta da
vereda certa. Assim, vemos que a Palavra de Deus deve ser usada
para instruir os homens de tal maneira que sejam equipados para
servi-lo. É isso que a Escritura quer dizer com a palavra “edificar”.
Precisamos estar solidamente assentados, visto que, por natureza,
somos tão desajudados quanto é possível. Não podemos erguer
sequer um dedo para fazer alguma coisa boa; somos incapazes até
mesmo de gerar um bom pensamento. Assim, Deus deve agir por
meio de sua Palavra a fim de conquistar-nos para si. Então, quando
nos tiver estabelecido na vereda, ele nos dirigirá e nos guiará para
todo o sempre.
Seguindo este comentário geral, Paulo prossegue: Quanto aos
homens idosos, que sejam temperantes, respeitáveis, sadios na fé,
no amor e na constância. Ele poderia muito bem falar da lei e ter
dito a Tito que ensinasse as pessoas a se comportarem como Deus
quer que façam. Em vez disso, ele discute os deveres particulares
dos indivíduos. Isto é digno de nota, porque ocorre que, se os
homens pregam generalidades, seu ensino será deveras frio; faltar-
lhe-á ação. Eis por que, sempre que Deus nos chama a si,
recuamos o quanto podemos. Daí ser necessário que ele fale
diretamente a cada um de nós, com o intuito de tocar-nos mais
profundamente. E assim ele se volve a todas as classes de homens
e lhes explica seus deveres. Especificamente, ele se dirige
primeiramente aos mais velhos; e, então, aos jovens; aos casados,
tanto homens quanto mulheres; então, aos servos e senhores. Ele
fala aos ricos e aos pobres; aos que detêm autoridade e se
assentam como juízes; aos incumbidos da pregação de sua Palavra;
aos que têm famílias para governar e aos que não têm nenhuma.
Então, quando cada um de nós, por sua vez, é abordado
segundo sua vocação, a Palavra de Deus nos impressiona muito
mais. De outro modo, ignoraríamos tudo e tudo se dissolveria no ar,
como vemos da própria experiência. É claro que Paulo não se
contentou em falar, em termos gerais, da necessidade de ensinar às
pessoas como Deus é servido e como devem viver segundo a lei
que ele promulgara. Ele declara que cada um de nós deve ser
instruído na matéria de seu dever e que Tito devia falar tanto aos
senhores quanto aos escravos; tanto a jovens quanto a idosos; tanto
aos homens quanto às mulheres. Ninguém deve ser ignorado. Esse
é o primeiro ponto digno de nota.
Estas coisas, por certo, parecem bem familiares e dificilmente
precisam ser marteladas. Quem, afinal, não sabe que os homens
mais idosos devem mostrar certa seriedade e autocontrole em sua
conduta, ser exemplo de honestidade para os outros e pacientes, já
que Deus os treinou por mais tempo — numa palavra, devem
mostrar que, neste mundo, não têm vivido em vão? A própria
natureza nos ensina isso. Portanto, raramente parece necessário
dar assistência à igreja para que ela aprenda coisas que são tão
óbvias. O mesmo se aplica ao que lemos das mulheres, tudo o que
se pode aprender em casa. Cada um de nós, parece, poderia ser
seu próprio professor neste aspecto. Não obstante, Paulo não insta
Tito a proclamar estas coisas somente uma ou duas vezes; sua
vontade é que ele faça esta obra com persistência.
À primeira vista, a tarefa pareceria supérflua, mas, já que
sentimos um comichão de curiosidade ociosa, gostaríamos que a
cada dia se oferecesse algo novo. Sentimo-nos aborrecidos se
somos lembrados de coisas familiares. Qual a razão? Dizemos: “Oh!
eu posso aprender isso em casa, debaixo de meu próprio teto, onde
tenho que administrar uma esposa e filhos. Deveria Deus revelar
sua Palavra do céu sobre essas coisas triviais e rotineiras?”. E,
assim, pretextando que há pouco a ser ganho em dizer-nos estas
coisas, preferimos ouvir algo novo ou outras coisas que causam
impacto às nossas cabeças! Como eu disse antes, todos se sentem
inclinados a atentar para essas coisas estranhas, as quais gratificam
nossa tolice e apetites indisciplinados. No entanto, o Espírito de
Deus é mais sábio que nós; ele sabe o que nos é adequado.
Portanto, mantenhamo-nos sob freio. E embora nos ressintamos de
ser-nos ensinado o que se acha no texto, como se fosse um
desperdício de esforço, é com boa razão que Deus insta conosco a
evocar à mente estas coisas.
De fato, se olharmos detidamente para nós mesmos, veremos
desde logo que, enquanto vivermos, jamais faremos tanto progresso
quanto deveríamos nas coisas que descartamos como banais ou
autoevidentes inclusive para criancinhas. Por exemplo, ao se dirigir
aos idosos, primeiro Paulo solicita que sejam sérios e disciplinados
em sua conduta. Isso é facilmente dito e às vezes discutido, mas
quantos realmente compreendem isso? Vemos os mais velhos tão
firmes em seus maus caminho, para os quais olhamos como
modelos de perversidade; e é nesse procedimento que são
encontrados! Alguns são velhas raposas habilidosas na fraude e na
malícia, de modo que seguir seu exemplo equivale a perder toda a
fidelidade e retidão. Então, há os que vivem vidas conspurcadas e
dissolutas; outros que, na juventude, foram aferrados à blasfêmia e
que, na velhice, não mostraram nenhum sinal de emenda. Há velhos
libertinos que se afundaram de tal modo no vício que infectam tudo
e cuja conversação é tão vil que até os jovens se envergonhariam
de ouvir a imundícia que vomitam. Buscam apenas licença para
refestelar-se em sua desavergonhada vilania. Ainda que dificilmente
possam mover uma perna, a visão da dança e de outras
indecências os enche de deleite. Tudo isso é evidente entre os
idosos. Ao vermos tais coisas, estejamos certos de que Deus não os
admoesta sem razão.
Agora temos a noção de que somos por demais perspicazes e
de que nos basta que se diga uma ou duas palavras de passagem
sobre estas coisas. Contudo, paremos aqui: o ponto que
apresentamos hoje será apresentado outra vez amanhã. Nunca
cessamos de aprender; e, no final de cada ano, ficará evidente que
necessitamos de instar não duas, mas cem vezes mais.
Aprendamos, pois, a não impacientar-nos quando formos exortados
a fazer o bem; ao menos até que tenhamos atingido a perfeição
consumada. No entanto, isso deve ser buscado em outro mundo,
pois, a menos que sejamos completamente cegos, somos todos
cônscios de nossos erros e imperfeições.
Portanto, confiemo-nos a Deus e permitamos que ele nos
prense e nos repreenda. E porque somos duros de ouvidos e
também frios e lentos, se Deus nos aguilhoar diariamente com a
espora, suportemo-lo com paciência, sabendo que tudo isso é para
nossa própria vantagem. Dessa maneira, não seremos tão
exigentes a ponto de nos enfadarmos da sã doutrina. A menos que
ela atraia nossa atenção repetidamente durante toda nossa vida,
logo a esqueceremos, visto que nunca a aprenderemos totalmente
como se deve desejar.
Observemos outra vez o ponto já firmado. Antes de tudo,
quando Deus nos atrai a si e nos fala mais intimamente, ele explica
a cada um seu dever particular. É verdade que, possuindo a lei
como a possuímos, temos uma norma tão adequada que deveria
ser suficiente. Deus não lhe anexa nada. Quando fala acerca de
esposos e esposas, de pais e filhos, de senhores e escravos, de
senhores e súditos, de idosos e jovens, ele nada anexa ao que já
está em sua lei. Entretanto, ele a elabora de forma que nos instrua e
ajude a cada um de nós a olhar mais atentamente do que temos
feito durante toda a nossa vida. Em consequência, quando lemos a
Santa Escritura ou ouvimos um sermão, nos é proveitoso pensar
cuidadosamente em como devemos usá-la. A verdade é que
fazemos o contrário: só atentamos para o que afeta adversamente
nosso semelhante. E assim zombamos de Deus e fazemos com que
sua Palavra fique sem efeito. Fechamos-lhe, por assim dizer, a
porta. Portanto, cada um de nós note bem se o que é dito lhe diz
respeito e se lhe é relevante. Falemos a nós mesmos: “Deus fala
não só a toda a assembleia em geral, mas especificamente a mim.
É como se ele fizesse seu caminho direto ao meu coração e
insistisse comigo a fazer o bem”. Esse é o tipo de vigilância de que
precisamos se quisermos fazer uso prático da Palavra de Deus.
Eis por que lemos em João: “Pais, eu vos escrevo, porque
conheceis aquele que existe desde o princípio. Jovens, eu vos
escrevo, porque tendes vencido o maligno. Filhinhos, eu vos
escrevi, porque conheceis o Pai. Pais, eu vos escrevi, porque
conheceis aquele que existe desde o princípio” [1Jo 2.13, 14].
Ora, visto que aos homens idosos não é fácil ensinar e visto
que, havendo vivido no mundo, pensam que não têm nada mais a
aprender, tornam-se orgulhosos e indispostos para com Deus. Daí
João dizer-lhes: “Por que não ouvis àquele que existe desde toda a
eternidade? Suponhamos que vivais oitenta ou cem anos sobre a
terra; o que é isso comparado a alguém que não teve princípio e
que sempre existiu? Eis aqui o vosso Deus. Ele vos chama a
participar da infinita sabedoria que esteve eternamente oculta nele.
Contudo, sois tão orgulhos e arrogantes, que credes que não existe
nada novo para aprenderdes!”. E assim João fala aos idosos a fim
de acicatá-los. E aos jovens ele diz: “Quanto a vós, pensais que, a
tempo, podeis passar”. Ora, os jovens se deixam persuadir de que
viverão cem anos após sua morte! Daí se deleitarem nas vaidades
mundanas, se esquivarem de pensamentos melancólicos e amarem
bom alimento e entretenimento. Como resultado, poucos deles
saboreiam a Palavra de Deus ou prestam a devida atenção a ela.
No dizer de João: “Uma vez que Deus já vos adotou como seus
filhos e deseja ser vosso Pai, por que não pensais nele?”.
Esse é o tema desta passagem, na qual Deus não só faz um
apelo geral, mas fala a cada um de nós segundo nossa situação,
dizendo: “Vede, eu estou falando diretamente a vós. Ponde em
ordem vossos deveres e pensai em vossas obrigações”. Quando
vemos quão ávido ele é por conquistar-nos para si, não somos
obstinados se ao menos não respondemos quando ele
condescende conosco? Isso, em suma, é como devemos aplicar a
injunção de Paulo: “Ensina os homens idosos”.
Notamos que, embora os idosos tenham sido provados pela
experiência, não deveriam ser rabugentos como muitos são. É
possível que pensem que uma longa vida os tenha feito
suficientemente sábios. Mas não; vemos como Deus os intima a que
voltem à sua escola; e como, muito embora tenham um pé no
túmulo e tenham vivido muitos anos, ainda quer que eles ouçam e
pensem e se rendam à sua diretriz. Se eles alegam ser mais sábios
do que realmente são, ele os envergonhará em sua arrogância.
Portanto, a doutrina do evangelho não é um simples abc que nos
instrui em nossa inexperiência e nos anos de imaturidade; é a
perfeição de toda sabedoria à qual todos nós, jovens e idosos,
devemos nos submeter.
O versículo que diz temperantes, respeitáveis, sensatos serve
tanto para corrigir os vícios da velhice quanto para ilustrar as
qualidades apropriadas para aquele período de vida. É verdade que
algumas vezes vemos homens idosos que se excedem na bebida e,
porque isso acontece sempre, usam a velhice como desculpa. Ao
contrário, é vergonhoso e fora do natural que os que já viveram
sobre a terra por muitos anos ainda não usem as provisões de Deus
nem entendam por que e a que fim nos são dados o alimento e
bebida. Eis por que Paulo, aqui, buscou expressamente corrigir este
erro, ressaltando a necessidade de gravidade e temperança entre
os idosos.
Se os jovens são desobedientes, naturalmente devem ser
mantidos sob restrição. Se eles são errantes e correm como gado
selvagem, devem retroceder sob a canga. Mesmo assim, se
compararmos os dois grupos, os idosos são muito piores e muito
mais repreensíveis quando perseguem seus apetites volúveis; eles
têm de ser domados. A natureza, se não a própria idade, deixa isso
bem claro. No entanto, quando o evangelho demonstra claramente o
propósito de uma vida longa, devemos tirar proveito do que Deus
nos mostra aqui, para que mais adiante nossas vidas continuem
ainda mais disciplinadas, sóbrias e sérias. Reiterando, descobrimos
que desastre da natureza é que o idoso se divirta como um jovem
tolo e que se expanda como um adolescente. Que o idoso
experimente o que quiser; ele não pode arrastar uma perna após a
outra ou mover seus braços — sua fraqueza física testifica
amplamente essa realidade. Se seu corpo é frágil e decrépito, e se
sua alma é amarga, mal-humorada ou impetuosa, onde terminará?
Seria conveniente desafiar a própria natureza humana?
Vemos, pois, por que Paulo faz menção especial de
sobriedade, gravidade e temperança. E então ele anexa: sadios na
fé, no amor e na constância. Com isso ele quer dizer que, se os
idosos forem débeis e inválidos, portadores de muitas doenças e
com menos energia que antes, eles devem ao menos suprir isso
com a saúde da alma. Embora isto não seja dito por Paulo com
muitas palavras, este é o contraste que ele tem em mente. Para
entender isto melhor, consideremos o que ele diz na segunda carta
aos Coríntios: “Sabemos que, se nossa casa terrestre deste
tabernáculo se desfizer, temos da parte de Deus um edifício, casa
não feita por mãos, eterna, nos céus” [2Co 5.1]. “Mesmo que nosso
homem exterior se corrompa, contudo o nosso homem interior se
renova de dia em dia” [2Co 4.16]. Ele compara nosso corpo e tudo o
que diz respeito a esta vida atual a uma habitação. Se construirmos
uma pequena moradia de palhas e folhas, e se a chuva persistir e o
vento entrar, ela cai e se decompõe; não dura muito. Mesmo os
edifícios resistentes finalmente ficam velhos e vêm a ser
dilapidados. O que dizer, pois, de um amontoado de folhas
suspenso somente por forquilhas? Segundo Paulo, são logo levados
embora. Nossas vidas não são diferentes, pois ainda que vicejemos
por algum tempo, nossa força se esvai gradualmente. E embora não
possamos ver o modo de Deus retirar-nos deste mundo e embora
continuemos normalmente, nossos corpos vão se arqueando, nossa
vista se ofusca e nossos tendões enfraquecem e se retraem.
Tornamo-nos pesados e lentos em tudo o que fazemos.
Quando vemos isso acontecer, somos aconselhados a buscar
uma vida mais saudável. De outro modo, acaso Deus quer que
nossa sorte seja pior do que a dos animais irracionais? Pois,
durante o curso de sua vida, os animais irracionais exibem muito
mais energia do que os humanos. A que ponto nossa força dura?
Não dura quase nada: numa virada da mão chegamos ao fim! Ora,
alguns animais duram muito mais, e outros permanecem sem
alteração durante suas vidas. Então, o que dizer de nós? No dizer
de Paulo, “aprendamos a renovar-nos”. Mas como? O homem
interior deve ser refeito, e através da fé e esperança devemos
tornar-nos fortes. Ainda que nossos corpos falhem, que o reino de
Deus mantenha perenemente nossa forma e lhe adicione ainda
mais. Devemos rejeitar o mundo como o mundo nos rejeita; pois,
quando os homens começam a se debilitar, também o mundo os vai
abandonando; como corre o dito: “Eu não o alimentarei para
sempre. Você precisa saber que não possuo os meios de sustentá-
lo em sua atual condição”. E assim, quando o mundo nos abandona,
devemos também abandoná-lo; aspirar a todo o tempo pela vida
celestial à qual Deus nos chama.
Este versículo se reporta aos idosos, que eles devem ser
“sadios na fé, no amor e na constância”. Ora, os homens que são
cônscios somente de sua fraqueza podem ser tentados a dizer: “Ah!
O que mais posso fazer neste mundo? Já não posso aguentar esta
vida presente”. Tais homens realmente deveriam ter-se despedido
deste mundo desde o início! Mas os homens que são sadios e
espiritualmente íntegros não devem se combalir e se condoer de
seus corpos. Devem tentar recompor o que lhes falta.
A senilidade decerto merece respeito, como ordena nosso
Senhor e como também o demonstra a natureza. Não obstante,
devemos certificar-nos de que os idosos possuem alguma qualidade
digna de recomendação, pois às vezes atraem desprezo sobre si.
Se os homens lhes dirigem pilhérias, se queixam amargamente; se
os homens os ridicularizam, reclamam que são injustiçados
grosseiramente e clamam a Deus por vingança. No entanto, na
maioria das vezes a culpa é deles, porque não possuem sequer um
fiapo de virtude que mereça louvor. O que é pior, como eu já disse, a
maioria deles, conscientemente, traz vergonha sobre si mesmos por
corromperem os jovens. De certo modo, aparecem como modelos
de impureza e de vício. Portanto, acaso não merecem que os
homens cuspam em seu rosto? Os jovens que se comportam mal
não devem ser escusados, porém não devem ser estigmatizados.
Os idosos devem ser envergonhados duplamente pelo opróbrio que
sofrem; a menos, naturalmente, que ocorra serem homens de
dignidade autêntica.
Portanto, se os idosos devem ser respeitados, então que se
assegurem de que façam compensação por sua fragilidade física
com a saúde espiritual de que Paulo fala aqui. É verdade que os
servos de Deus nunca devem ser motivados por um interesse
egoísta, mas não vejo por que os idosos não devam diligenciar-se
na fé sadia, no amor e na constância. Eis por que Paulo fala
especialmente nesta passagem da saúde, pois há um tipo de
decadência progressiva nas pessoas idosas: não podem aplicar sua
vida a algo útil e já sentem o odor do túmulo. Seus rostos estão
voltados para a terra e os outros já parecem considerá-los como
redundantes. Visto ser assim, que adotem ao remédio que nos é
ensinado aqui.
O apóstolo ressalta a fé, o amor e a constância, os quais são a
perfeição genuína e própria de nossa vida. Deveras a Escritura
costuma mencionar a fé e o amor, dois elementos que, juntos, são
suficientes para explicar a norma de servir a Deus. No entanto, aqui
se anexa a constância para ampliar o todo, e isso corretamente.
Então, em primeiro lugar vem a fé. É na fé que nos
entregamos a Deus, confiamos em sua bondade, abraçamos o
perdão dos pecados que nos foi prometido no nome de Cristo e
recebemos a certeza da salvação que nos foi oferecida no
evangelho. Então, também devemos buscá-lo, voltar-nos para ele
em busca de proteção, rogar-lhe sua compaixão e força para alívio
de todas as provações. É fazendo isso que somos sadios na fé
descrita por Paulo. Assim, não podemos ser íntegros em nossa fé
sem a certeza das promessas de Deus, mediante as quais
confiamos em sua bondade, aceitamos o perdão dos pecados
oferecido por intermédio de nosso Senhor Jesus Cristo e recebemos
a salvação que nos foi conquistada e nos está reservada no céu.
Daí invocarmos ao nosso bom Deus e buscarmos refúgio tão
somente nele, que é a fonte de todas as benesses. Portanto, essa é
a fé. Ora, realmente temos honrado a Deus? Temo-lo reconhecido
como nosso Salvador e Pai? Temos confiado plenamente na morte
e paixão de nosso Senhor Jesus Cristo? Temos aderido à vida
celestial que ele nos prometeu?
É-nos requerido que vivamos com equidade e justiça para com
nossos semelhantes. Não podemos fazer isso a menos que
amemos nossos semelhantes como a nós mesmos. Como posso
guardar-me de enganar uma pessoa e roubar a outra, de fraudar e
prejudicar, de tramar maldade, de trapacear ou nutrir sede de
vingança? Como, pergunto, posso guardar-me dessas coisas se não
amo a meu semelhante? Como, de fato, posso buscar o bem estar
de outras pessoas se não promovo amizade com aqueles que Deus
uniu a mim? O amor deve ser o vínculo da justiça. Ele deve
controlar-nos e governar-nos; de outro modo, brigaremos como cães
e gatos, seremos piores que bestas selvagens, pois arrancaremos
os olhos uns dos outros. Daí, se nossas vidas têm de ser íntegras,
temos de nos comportar com amor mútuo, uns pelos outros.
Finalmente, vem a constância. É verdade que a constância
depende da fé. Não obstante, como foi dito previamente, Paulo a
menciona oportunamente aqui em razão de nossa ignorância. Se
temos fé, seremos pacientes em face de toda adversidade. Por
quê? Porque a fé nos conduz ao alto e nos faz esquecer o mundo;
ou, ao menos, nos ajuda a atravessá-lo. A não ser que sejamos
estranhos aqui embaixo, como podemos dizer que a nossa herança
está no reino celestial? Portanto, passemos por este mundo e não o
deixemos deter-nos. Se temos de sofrer tribulação e angústia,
estaremos capacitados a suportá-las pacientemente enquanto
fizermos do céu nossa meta, pois é para lá que Deus nos chama.
Contudo, os homens não suportam as provações calmamente
como deveriam; e o bem notório provérbio “A paciência excede a
inteligência” mostra o quanto nos é difícil consentir e ombrear todo
fardo que Deus quer que suportemos. Se recebemos a adversidade
da mão de Deus, é também necessário que ela nos impulsione para
a frente. Essas coisas demandam um árduo esforço e o sucesso só
vem depois de uma incessante labuta. Eis por que Paulo, neste
texto, anexa a palavra “constância”, com o fim de mostrar quão
estáveis e sãos devemos ser, pois então seremos aptos a abraçar a
bondade que Deus nos oferece em nosso Senhor Jesus Cristo, a
encontrar nele nosso refúgio e viver sincera e retamente com
nossos semelhantes, a amar àqueles a quem Deus uniu a nós — a
amar inclusive aos nossos inimigos. Sejamos, pois, pacientes, ainda
que Deus não nos trate como gostaríamos e faça o oposto do que
queremos. É possível que alguns sejam afligidos com pobreza e
outros, com doenças; outros se definham ou suportam menosprezo.
Ainda que todos tenham suas tribulações e vexações e sejam
tratados de um modo doloroso, inclusive em sua própria casa —
esposas pelos esposos, esposos pelas esposas, pais pelos filhos
—, esta é a vereda que devemos trilhar. A prerrogativa de Deus é
governar-nos; não nos cabe escolher que lei lhe imporemos; pois,
como seria se ele se sujeitasse aos nossos caprichos?
Portanto, permitamos ser governados por sua mão, de modo
que, se ele agir de modo contrário aos nossos desejos, não
protestemos, mas sejamos como cordeiros, tendo nossos lábios
selados. Mesmo assim lhe renderemos graças quando formos assim
afligidos e será suficiente que ele não permita que falhemos
completamente. Digo que essa é a verdadeira saúde benéfica aos
idosos, pois, quanto mais vivemos neste mundo, de mais paciência
precisamos. Esta é uma lição que Deus tão frequentemente nos traz
à memória e deveríamos ser exaustivamente escolados nela, a fim
de sabermos, sinceramente, o que havemos de sofrer. E então? O
fato é que sempre somos neófitos, e ainda notamos quão mais
impacientes são os idosos do que os jovens. Um jovem sofrerá
infortúnio com menos aborrecimento, se mostrará indiferente e
aceitará o freio entre seus dentes. Os idosos, por outro lado, são tão
exigentes que ainda que obtenham tudo o que querem acharão
alguma justificativa para continuarem aborrecidos; continuarão
ofendidos e acalentarão alguma amargura interior. E, assim, aqui
Paulo tem toda razão de recomendar a constância. Quão
completamente ingratos seriam se, em vez de se beneficiarem de
sua longa experiência com o sofrimento, os idosos a adicionassem a
tudo a fim de se afligirem ainda mais!
Um idoso deve dizer a si mesmo quando encara a
adversidade: “Esta é uma nova experiência para mim. Sei de tantos
que têm sofrido nas mãos de Deus. Se sou um deles, devo achar
isso estranho? Se Deus me trouxe sofrimento antes, e se com tudo
isso não me dobrei sob sua mão, mas suportei a canga, agora
chegou o tempo de ceder”. Quantos, por contraste, reconhecem
tudo e guardam um registro completo disso! Dizem: “Chegará o
tempo em que Deus se cansará de me afligir? Desde a juventude
tenho sofrido, de um modo ou de outro, e enfrentado infortúnio”.
Quanto às benesses de Deus, não tenho lembranças delas. E assim
Deus nada ganha com isso; ele tem gasto o seu tempo com
pessoas como eu. Além do mais, elas têm um truque para adicionar
aos seus ais. Eles clamam: “Tenho sofrido tanto”. “Supondo que eu
não tenha outro problema e supondo que Deus me punisse apenas
uma vez, isso seria suficiente. Mas não há fim para o problema.” Eis
como o idoso se queixa e põe Deus, por assim dizer, à prova. Em
razão dessa ingratidão foi que Paulo se viu obrigado a instar com
eles a que fossem pacientes, como faz aqui.
Ora, como já vimos, o apóstolo se dirige não apenas aos
homens, mas, ao mesmo tempo, às mulheres. Elas também têm sua
parte no jogo e são instadas a que sejam sóbrias. Em primeiro lugar,
Paulo fala de seu vestuário, empregando uma palavra composta
que significa “decência santa”; pois essa é a tradução literal.[14] Qual
a razão? Sabemos que as mulheres são muito cuidadosas com
seus adornos. E embora, quando avançam em idade, tanto a
natureza quanto o senso de pudor as forcem a se vestir com mais
modéstia, não obstante, tomam o maior cuidado possível. Em
consequência, Paulo deseja que sejam sérias em seu proceder,
sem requinte de encanto ou extravagância, pois é inconveniente que
as mulheres cristãs se vistam com apuro e se exibam como
bonecas. Sentem vergonha se seguem vadiando de um lado a outro
do país — uma coisa impensável entre os cristãos, embora
comumente seja visto!
Ora, se as idosas possuem algum senso de modéstia, se não
se sentem tentadas a vestir-se e parecer maliciosas a ponto de
chamar a atenção, podem errar de uma maneira diferente e serem
levadas a um extremo igualmente negativo. Podem adotar um tipo
supersticioso de vestuário, como vemos entre as mulheres que
vagueiam como monjas e cuja aparência se destina a chamar a
atenção à distância. Ora, excesso dessa sorte deve ser evitado.
Que as mulheres não tentem adornar-se e deixem bem claro que
não desejam exibir-se. Além do mais, não devem preocupar-se em
usar roupas que não se adequam a uma mulher cristã devota.
Pode parecer, na superfície, que nenhuma destas questões
importa muito, visto que roupas são coisas indiferentes, que Deus
deixa os homens e mulheres livres para se decidirem. Por que, pois,
Paulo insiste nessas coisas como se fossem realmente
importantes? Aqui devemos buscar a fonte daquela tola ambição
que se encontra nas mulheres. Se realmente pensam na vida
celestial, seguramente deveriam evitar todo excesso e
extravagância. Os que nunca ouviram sequer uma vírgula da
Palavra de Deus e que eram cegos e míseros pagãos, não obstante
tinham o discernimento de dizer: “Aquele que adorna o corpo com
excesso deixa sua alma conspurcada”.[15] Sabemos por experiência
que aos que são tão afeiçoados à exibição mundana e que se
vestem para ser vistos e admirados é impossível que tenham um
pensamento voltado para suas almas. Pior ainda, enquanto homens
e mulheres se deleitam em seu vestuário, suas almas são
manchadas e conspurcadas aos olhos de Deus.
Observemos, pois, que Paulo buscava, com razão, corrigir a
maneira das mulheres se vestirem, especialmente porque são muito
mais excessivas em seus gostos do que os homens. É verdade que
os homens também são excessivamente obsessivos sobre tais
coisas, mas, caso se faça uma comparação, descobriremos que as
mulheres são muito piores. Estão sempre ocupadas em se
embelezar, em olhar no espelho e em se compor. É uma ocupação
constante. Daí a preocupação de Paulo em remediar esta falha,
mostrando como a vida delas deveria ser ordenada. Vemos que tais
coisas, em primeiro lugar, afastam de Deus o coração; segundo, a
alma é conspurcada quando ela se rende a muitas atrações do
mundo. Meditar sobre o reino de Deus se torna impossível.
Indaguemos: acaso todos esses adornos e todo esse refinamento
não constituem uma forma de alcovitaria? Isso parece muito claro.
Quando uma mulher se mostra fogosa demais com vistas a ser
admirada, isso constitui um sinal seguro de que ela é menos que
casta; que ela é grosseira e lamentavelmente orgulhosa ou possui
algum outro vício nocivo. Sua escusa usual é que desejam agradar
a seus esposos. Para sua vergonha, seu propósito é bem óbvio!
Portanto, ao recomendar, respectivamente, a decência e a
reverência, Paulo buscava, numa palavra, remediar duas coisas: o
orgulho, de um lado; a concupiscência, do outro.
É o orgulho que leva as mulheres a exagerar sua posição, com
o objetivo de afirmar sua superioridade sobre os demais. Não há
nada de indecente em tal comportamento, mas sua altivez
certamente merece ser condenada. Temos aqui um importante
ponto a notar: o propósito de Paulo é ensinar-nos a temperança.
Então vem a concupiscência. Quanta exibição de elegância vemos
quando as mulheres se apresentam para ser admiradas! Praticam
tais artes de dissimulação quando desejam causar mais rubor no
vulgo aferrado à lei. Portanto, quando o apóstolo demanda delas
que sejam ataviadas decentemente e por meio de seu vestuário se
mostrem santas, ele formula sua tese de que o vestuário deve ser
mais útil do que fascinante; e que ninguém tente exibir-se ou buscar
o reconhecimento social.
Ora, há muitas mulheres que agem dessa maneira e às vezes
são conhecidas por preferirem se sujeitar à morte do que sofrer a
perda da condição. Desafiando, respectivamente, a Deus e à
natureza, seu alvo é impressionar, para que as pessoas pensem:
“Eis aí uma mulher elegante. Ela chegou lá!”. No ínterim, há outras
que não passam de pobres infelizes, que não podem oferecer uma
refeição decente! Em suma, embora Deus seja rigoroso com o
martelo para formar-nos, quando sua Palavra é infrutífera, ele não
pode vencer o orgulho dos que estão atolados na mais profunda
miséria. Eis por que ele permite que o orgulho e a presunção sejam
devorados pelos piolhos, tal é seu abominável desrespeito para com
Deus e a natureza.
O Espírito Santo já fez provisão para essas coisas, pois ele
conhece o que nos aflige. Portanto, saibamos que, até que
consintamos em ser tratados segundo nossas necessidades e a
prescrição fornecida aqui, comprovamos ser orgulhosos e
arrogantes. Se resistirmos a Deus, ele se aviará conosco com tanta
dureza, que teremos de nos submeter a despeito de nós. Vemos,
pois, que nosso Senhor tem de nos purgar como se contraíssemos
febre. Quando um paciente deseja um tratamento suasório, lhe são
dadas diretrizes para que se abstenha do que é nocivo. Por
conseguinte, Paulo ensina as mulheres cristãs a exercer restrição —
ele faz a mesma coisa em sua carta a Timóteo [1Tm 2.9, 10] — e as
orienta a evitar excesso em seu vestir-se como em tudo mais.
Todos nós devemos permitir que Deus nos governe de tal
modo que nos confiemos plenamente a ele; e, quando houvermos
aprendido como nos comportarmos, não fiquemos aborrecidos ou
mal-humorados. Curvemos nossos pescoços à canga de Deus, de
modo que a suportemos quando nos for posta para nosso próprio
bem e para nossa salvação.
Oração
Agora prostremo-nos diante da face de nosso bom Deus,
reconhecendo nossos erros e rogando que ele no-los faça sentir
mais agudamente do que antes; a fim de que nos envergonhemos
de nós mesmos e realmente odiemos nossos pecados. Que ele se
agrade de refazer nossas vidas, de modo que busquemos somente
aprazê-lo de todos os modos. Que sejamos estimulados e
encorajados a obedecer às suas obras e a seus mandamentos e a
praticar tudo o que ele nos pede que façamos.
11. O CARÁTER CRISTÃO (2) [Tito 2.3-5]
Quanto às mulheres idosas, semelhantemente, que sejam sérias em
seu proceder, não caluniadoras, não escravizadas a muito vinho;
sejam mestras do bem, a fim de instruírem as jovens recém-
casadas a amarem ao marido e a seus filhos, a serem sensatas,
honestas, boas donas de casa, bondosas, sujeitas ao marido, para
que a palavra de Deus não seja difamada.

Nesta manhã, vimos que Paulo ordena às mulheres idosas a se


vestirem decentemente e com toda a santidade, de modo a evitarem
qualquer insinuação de arrogância e pretensão. Sua aparência deve
ser tal que edifique e dê a todos um bom exemplo. Ele, pois,
continua a recomendar que elas não sejam caluniadoras, pois já
dissemos que sua meta é corrigir os erros aos quais são tão
inclinadas quanto os homens. E assim ele nos adverte a que
sejamos precavidos, cada um em seu próprio lugar, justamente
como um médico que, reconhecendo a condição de um paciente e
desejando curá-lo, informa-o de que o ajudará.
Consideremos, pois, o quanto era necessário que se instasse
com as viúvas e as idosas a que controlassem a língua. Sabemos o
quanto elas gostam de tagarelar entre si; é o erro mais comum que
existe. Quisera Deus que não tivéssemos que mencioná-lo! Mas,
visto que esta queixa é tão prevalente, Paulo insiste que as
mulheres — especialmente as mulheres de idade madura que
deveriam saber mais — evitem todo mexerico e maledicência. Pois
sabemos, e a experiência no-lo confirma, que as más línguas são
como tochas que incendeiam tudo; e visto ser mais fácil para uma
mulher vir e ir, ela pode causar muito mais dano. E assim o Espírito
Santo estabelece o ensino que bem sabe ser mais útil: que as
mulheres se comportem com restrição e se refreiem acima de tudo
de caluniar. Permitirem-se dizer tudo de que gostam e
especialmente se queixarem e difamarem e incitarem problema com
sua malícia equivaleria a resistir ao Espírito de Deus.
Além do mais, de acordo com Paulo, que não [sejam]
escravizadas a muito vinho. Ora, é excessivamente ruim se uma
mulher for ébria. Os homens que partilham do mesmo vício são
igualmente repulsivos. Acima de tudo, o que é a embriaguez senão
um tipo de bestialidade que destrói toda a razão e o discernimento
nos que são feitos à imagem de Deus? Sabemos que o ébrio não é
capaz de decência ou discernimento mais que um asno ou cavalo.
De fato, ele é muito pior, pois os animais refreiam seu instinto
natural, enquanto um homem é totalmente deformado e vem a ser
um monstro. E, assim, a embriaguez, quer nos homens, quer nas
mulheres, é algo terrível; uma coisa a ser detestada.
Ora, quanto à embriaguez nas mulheres, ah!, ela não é um
caso raro, como sabemos sobejamente bem. Eis por que esta lição
é importante para nós. Se mesmo os pagãos consideravam tão
intolerável o apego de uma mulher ao vinho, que o proibiam como
sendo algo antinatural, e quanto a nós que temos a Palavra de Deus
a guiar-nos e a iluminar-nos? Acaso não devemos comportar-nos
mais sobriamente do que os míseros cegos que, não obstante, viam
que deixar as mulheres sucumbirem à embriaguez equivalia ao
caos, ao extermínio de todo pudor e autocontrole? Esse, pois, é o
nosso segundo ponto.
Em terceiro lugar, as mulheres devem ser mestras do bem.
Aqui, Paulo pressupõe que as mulheres nutrem o desejo natural de
ser ouvidas. De fato, algumas mulheres são mais perspicazes do
que os homens quanto a serem ouvidas e estimadas! Ora, concede-
se mais precedência aos homens em vista de sua posição.
Entretanto, visto que as mulheres não podem elevar-se a um nível
tão alto, algumas vezes elas são mais ambiciosas e mais egoístas
do que os homens. Não significa que isto é sempre procedente, pois
pensar assim seria vergonhoso. Mas, quando miramos as coisas
mais detidamente, descobrimos que algumas mulheres são mais
projetadas do que os homens e mais perspicazes para
proeminência e liderança. Gostam de ser tidas por sábias, de ser
ouvidas com respeito e que sua palavra seja levada em conta
quando se debatem questões e se buscam suas opiniões. Disso não
pode resultar nada bom. Paulo, de sua parte, enfatiza a virtude
contrária: elas devem ensinar o que é bom. E, assim, em vez de se
exibirem quando estão com as jovens, devem assegurar-se de que
lhes transmitam bem sua lição e as exortem à prática do bem. Ele
declara que ensinar é o papel com que as mulheres se contentem.
Aqui nada há que desperte os sentimentos de superioridade ou o
desejo de se exibir. É como se Paulo dissesse: “Vejam bem, vocês
querem para si um bom nome e reconhecimento. Então descartem
todos esses pensamentos. Se, ao longo de seus anos o Senhor lhes
deu mais conhecimento do que às jovens, então tentem mostrar o
caminho da salvação a todas as que são menos capazes e a fim de
que aprendam por meio de seu exemplo”.
Do mesmo modo, às mulheres idosas se insiste
expressamente [que instruam] as jovens recém-casadas a amarem
ao marido e a seus filhos. Não devem encorajá-las ao mexerico ou a
dar ares de grande importância ou graças; ou difamar um e insultar
outro. No entanto, a maioria das jovens de hoje são ensinadas a
retrucar caso alguém indague e a agir como os que entram nas
arenas com uma lança em sua mão! Essa é a sorte de conduta que
vemos hoje. À moda de contraste, Paulo quer que as mulheres
ensinem às mais jovens o autocontrole. Diz ele: “Esta é toda a
sabedoria que necessitam ensinar. Devem mantê-las tranquilas;
detê-las de trapacear e de adquirir o hábito da conversação fútil.
Que vivam com simplicidade e se comportem de tal maneira que
ninguém pense que são escoladas na malícia ou na trapaça”. Como,
pois, as jovens e mulheres cristãs exibem a verdadeira sabedoria?
Naturalmente, não sendo pretensiosas e se comportando como as
damas da corte que, com suas línguas fluentes, assustam com seu
amor à tagarelice e mexerico ou, pior, com sua afetação e dengo;
mas que sejam discretas, administrando suas casas tranquilamente,
criando seus filhos e sendo submissas e obedientes aos seus
maridos. Tais são as mulheres a quem Deus tem por sábias, como
testifica o Espírito Santo.
Quanto às mulheres que querem ser admiradas, há quem as
considere como íntegras e sensíveis, mas isso nada é senão mera
vaidade. Mulheres como essas devem buscar louvor em outro lugar,
pois o Santo Espírito as condena e lhes diz que o único ensino
adequado para as mulheres é aquele que as treine no autocontrole,
em tranquila e boa ordem, de modo que nada de mal seja dito
contra elas.
A seguir, Paulo delineia mais virtudes apropriadas às idosas: a
amarem ao marido [ou, a viverem pacificamente com seus maridos]
e a seus filhos, a serem sensatas, honestas, boas donas de casa. O
que é dito sobre o amor dos esposos e filhos não parece ter muito a
ver com a doutrina da piedade. Acaso as mulheres não amam a
seus esposos? Sim, mas Paulo, aqui, fala de um amor que se afina
com Deus e sua Palavra. Pois, enquanto se recomenda que as
esposas amem a seus esposos e que os esposos amem a suas
esposas, aqui, mais que em qualquer outro lugar, percebemos quão
corrupta é nossa natureza. Se os homens amam a suas esposas, é
com um amor mau e excessivo; um amor sem medida ou
moderação. Se as esposas amam a seus esposos, esse amor não
conhece limites, ainda que às vezes seja estragado pelo ciúme. Na
verdade, é raro achar tal respeito entre esposo e esposa que ambos
se unam por genuína afeição. Quaisquer que sejam as falhas dos
esposos, as esposas os suportam, visto que Deus os uniu por um
vínculo santo e inviolável, de modo que ambos devem cumprir
fielmente com seu dever que ambos devem um para com o outro.
Quão poucos há que encaram o matrimônio desta maneira! De
qualquer modo, não vemos isso com muita frequência. Portanto, o
propósito de Paulo não é instar as mulheres a que de certa forma
amem a seus esposos como o ditam o mundo e a carne, mas para
mostrar que seu amor é santo e que se submetem sinceramente a
seus esposos. Pois, se a esposa despreza seu marido, onde está
seu amor? Mesmo entre as pessoas mais comuns, onde não há
superioridade, o amor real deve ser acompanhado por respeito e
reverência. Não posso amar, a menos que eu honre o ente a quem
amo. O que, pois, fazem as mulheres quando Deus as coloca sob a
autoridade de seus esposos? Sabemos que até mesmo as esposas
que amam loucamente a seus maridos a cada passo os
desobedecem e mostram a língua para eles. Os esposos não são
mais obedecidos do que um estranho ou intruso costuma ser! Então,
as esposas, para seu opróbrio, costumam perder o equilíbrio. Não
se pode receber delas nenhuma ajuda quando se ocupam de
vadiagem a ponto de negligenciarem a casa e os filhos. Em vez de
viver em ditosa união com seus esposos, perambulam e cometem
todos os tipos de loucura.
E assim vemos como Paulo estava certo quando fala do amor
das esposas por seus maridos. Ao mesmo tempo, ele inclui os
filhos, pois, se as esposas põem seus corações e mentes nisto,
seguramente evitarão um grande volume de erros. Por que as
mulheres não podem viver tranquilamente em seu próprio lar,
ajudando o marido e praticar o que é bom? A culpa é de sua
vaidade — de tal modo que que nunca estão satisfeitas e vivem
desocupadas demais para aceitar o que lhes é oferecido. A razão é
que não prestam atenção à tarefa para a qual Deus as chama.
Quando as conduz ao casamento, ele as ofende, dizendo-lhes que
se ocupem de sua casa; e quando têm filhos, ele demanda delas
que os eduquem, cuidem deles e lhes ensinem o temor divino
quando já tiverem idade suficiente. Se as mulheres pensassem
nessas coisas, veríamos muito mais harmonia nos lares do que
atualmente é o caso. Portanto, não consideremos supérfluos os
comentários de Paulo quando ele instrui as esposas a amarem a
seus maridos e filhos.
O apóstolo associa amor com uma virtude que é
inseparavelmente ligada a ele: a serem sensatas, honestas e boas
donas de casa. Um pouco antes, ele lhes ordenara que evitassem o
excesso de vinho, condenando assim a embriaguez e a
intemperança. Aqui ele requer mais, salientando a necessidade de
autocontrole ou o que pode ser chamado sobriedade. As mulheres,
pois, não devem render-se à sua insensatez e maus desejos.
Anteriormente, Paulo exigira o mesmo dos homens; e depois
repetirá sua incumbência quando se dirige aos jovens. Não
obstante, a primeira virtude que ele solicita das mulheres é que elas
sejam castas. A palavra em si tem um sentido mais amplo, pois
significa todas as formas de pureza. Não basta que a mulher se
refreie da imoralidade. Ela deve ser pura e honrável, pois, se se
embeleza e atrai para si os homens, ainda que nada de imoral
ocorra, sua reputação já está comprometida. Por isso o desejo de
Paulo é não só que as mulheres sejam castas, mas que guardem o
penhor da fidelidade e da lealdade aos seus esposos. Ele deseja
também que sejam sóbrias e se comportem honrosamente, de
modo que, por suas vidas e em cada aspecto da linguagem e
conduta, sejam puras e discretas. Se esse fosse realmente o caso,
teríamos ampla razão para louvar a Deus. Mas, entre as mulheres
que se denominam cristãs, quão poucas há cuja vida é bem
ordenada em conformidade com o que Paulo descreve! Portanto,
todos nós temos mais razão em gemer quando vemos quão
pecaminosas e manchadas são em seu interior. Portanto, que as
mulheres se empenhem em progredir no evangelho mais do que
antes e que aquelas a quem Deus graciosamente capacitou para
obedecerem a este ensino façam de tudo para incentivar as demais
a serem também boas mestres. Que as jovens também tentem tirar
proveito de seu exemplo. Essa é a lição que devemos manter em
mente.
A seguir Paulo anexa estas palavras: boas donas de casa,
bondosas e sujeitas ao seu marido. Quando as mulheres são
instadas a manter-se ocupadas de sua casa, esta deveria ser uma
virtude tão querida por elas, que já não se faria necessário nenhum
estímulo especial. A natureza deixa isso claro, e até mesmo os
pagãos insistem neste ponto por meio de uma tosca ilustração —
não diferente de nossos almanaques pastorais — retratando uma
mulher como uma tartaruga que carrega seu casco aonde quer que
vá. Assim, as mulheres nunca deveriam vadiar por todo o país. E
por quê? Os que são lembrados a fazerem como Deus ordena
sempre acharão o bastante em que se ocupar. Mesmo que tenham
apenas uma pequena casa para administrar, haverá para elas
abundância de ocupação, à medida que não se contentarem com a
ociosidade. Se possuem uma grande casa, terão que trabalhar
ainda mais duramente se quiserem fazer tudo o que seu dever
requer.
Portanto, é uma pena que estas coisas sejam tão
negligenciadas hoje. Pois o egoísmo, a curiosidade e as
oportunidades para o ócio arrastam as mulheres de suas casas e as
enviam daqui para ali. Durante todo o tempo, que infindável mal tal
agitação produz! Notamos previamente que, quando Paulo fala das
mulheres, ele descreve as que são ociosas como pessoas
intrometidas, amantes do mexerico, curiosas em ouvir tudo o que
possam passar adiante [1Tm 5.13].[16] Essa é sua insistência, a
menos que as mulheres estejam preparadas, como dizem, a pôr sua
mão na massa, a ociosidade as faz inquisitivas e as convertem em
pessoas intrometidas, de modo que de nada falam senão das
últimas sobras de informação que atingem seus ouvidos. São como
um tonel cheio de furos; quanto mais ar entra por eles, mais rápido
escapará! Uma palavra que lhes seja transmitida será ampliada
quatro vezes mais. O que aconteceria, pois, se fossem vender a
varejo o mexerico de toda uma cidade? Poderiam pôr fim à sua
tagarelice? Nunca! Explodiriam se tentassem! Quando se dão ao
falatório ocioso, não há como detê-lo; razão por que deveriam
prestar particular atenção a este ensino. Pois tal falatório, como eu
já disse, acende incontáveis fogueiras, espalhando rumores que
suscitarão inveja e ressentimento em uma casa, e então continuam
a espalhá-los nas casas vizinhas, causando discussões e
argumentos que arrastarão o mal em seu rastilho. Sendo esse o
caso, pode-se ter certeza de que uma mulher já fez muito progresso
no evangelho caso se conserve ocupada em sua casa.
Isso não significa que as mulheres são justificadas por não
servirem a seus vizinhos ou a alguém que necessite de seu auxílio.
Se uma mulher disser: “Oh! Tenho muito serviço em casa; não
posso me preocupar com os problemas de outras pessoas”, o que
será, então, do amor que devemos para com nosso semelhante?
Portanto, quando Paulo insta as mulheres a que se ocupem de sua
casa, o intuito é refreá-las, por assim dizer, para que não estejam
sempre a levar aos ouvidos as últimas notícias e, assim, vivam a
vadiar e a suscitar problema e disputas. Portanto, a fim de coibir tal
curiosidade que é tão comum, Paulo deseja que as mulheres
estejam ocupadas em casa.
Além disso, ele espera que elas sejam bondosas e submissas
aos seus esposos. Se não forem bondosas, como se poderia dizer
que amam a seus esposos ou que são obedientes e submissas a
eles? Se uma mulher fosse mal-humorada ou impetuosa, como seu
esposo poderia aguentá-la? Em consequência, se ela se dispõe a
seguir os ditames da natureza bem como os mandamentos de
Deus, antes de tudo ela deve preparar sua mente para dominar
suas más inclinações e não resistir obstinadamente ao que Deus
ordenou. Todas essas coisas devem ser postas de lado; não deve
haver orgulho ou arrogância que a impeça de cumprir o dever diante
de Deus e de seu esposo. Eis a sorte de bondade a que Paulo se
refere aqui. A submissão ao esposo provém daquela. Havendo
falado primeiramente do amor de uma esposa para com o marido, o
apóstolo anexa o dever da obediência. Pois, embora as esposas
não possam amar a seus esposos sem que os respeitem, requer-se
mais. Elas não devem se sentir tão mais resolutas que queiram
subjugá-los; ao contrário, devem reconhecer que seus esposos
foram designados como sua cabeça, e que a liderança não é o
papel dela. Se os homens tomassem a iniciativa de assumir tal
autoridade, se poderia dizer que agem egoisticamente. Visto,
porém, que Deus a ordena, e visto que a natureza concorda, como
podemos ainda discuti-la?
Não obstante, esta não é uma questão fácil, como bem o
sabemos. Além do mais, a experiência o comprova. Daí, as esposas
não devem importunar seus maridos sem razão. Em vez disso,
devem mostrar que, vivendo tranquilamente, amorosas e submissas
como o Senhor ordena, professam o evangelho. Pois, se uma
mulher for irritadiça e ingovernável, se ela insistir em viver a seu
próprio modo e não se deixar conduzir tranquilamente, ela vai
sempre assumir a liderança e, assim, todas as suas virtudes se
convertem em vícios. Nosso Senhor as condena à deterioração. As
mulheres devem aprender, pois, que não podem agradar a Deus e
que toda sua vida não pode ser-lhe aceitável a menos que estejam
preparadas a obedecer, como Paulo diz aqui.
Ora, é verdade que neste texto ele nada diz sobre os deveres
dos esposos, mas, se seguirmos seu raciocínio, descobriremos que
ele não visa a escusar os homens de cumprirem seu dever para
com suas esposas, como que a desfrutar livre e ilimitado senhorio
sobre elas. Essa não é a intenção de Paulo, como se pode ver de
outras passagens. Entretanto, visto que não é seu propósito
enumerar cada dever individual, ele se contenta em citar os
exemplos que encontramos aqui. Deles, cada um de nós pode inferir
seu próprio dever individual. Paulo ordena que as mulheres vivam
tranquilamente, de modo que os esposos lhes digam: “Deus nos
honrou, fazendo-nos o líder sobre nossas esposas. Então, podemos
nos comportar como tiranos? Podemos, como corre o dito, pôr
nossos pés em sua garganta? Não! Elas são nossas companheiras”.
Nunca lemos que uma mulher deve ser escrava. A Escritura a
descreve como a parceira na vida de seu esposo, como parte de
seu corpo e de sua pessoa [Gn 2.18, 21-23]. Além do mais, visto
que Deus tem honrado os esposos desta maneira, são duplamente
ingratos se forem inclementes com suas esposas e se deixarem,
nas palavras de Pedro, de sustentá-las como vaso mais fraco [1Pe
3.7]. Portanto, eles devem estar unidos por uma santa amizade,
como vemos em textos tais como Timóteo, Efésios e em outras
partes [1Tm 3.2; Ef 5.25; Cl 3.19]. Tão claro é o ensino de Paulo,
que ele diz aos esposos que desonram a Jesus Cristo se não
viverem em verdadeira harmonia com suas mulheres. Porque, diz
ele, no casamento de Jesus conosco temos um espelho da união
que deve existir entre esposo e esposa [Ef 5.25-33]. A santa união
que temos com ele constitui um casamento espiritual que nos torna
parte de seu corpo, carne de sua carne e ossos de seus ossos [Ef
5.30]. Pois o que foi dito a Adão e a Eva se cumpriu em nosso
Senhor Jesus Cristo [Gn 2.23]. Daí, a menos que o homem
certifique-se de que ama sua esposa, ele mostra que nunca provou
a graça de nosso Senhor Jesus Cristo ou de seu evangelho. Em
consequência, embora Paulo dirija suas palavras e exortações às
mulheres, sua intenção não é dar aos homens rédeas soltas para
que façam o que bem quiserem. Eles têm, igualmente, sua norma.
Essa é a substância deste versículo. Uma vez
compreendamos quão necessário é este ensino, não nos
preocuparemos se ele é incutido em nossos ouvidos e se somos
recompensados em nos lembrarmos dele. Além disso, para certificar
que o aceitamos mais prontamente, Paulo anexa: para que a
palavra de Deus não seja difamada. Devemos tomar estas palavras
num sentido geral, relacionando-as com o que já foi discutido. Com
efeito, Paulo tem em mente que, se os que alegam ser de Cristo e
que já foram batizados em seu nome, não vivem uma vida santa e
justa, ou se não dão bom exemplo, isso será contra o evangelho e
trará ridículo sobre a religião que professamos. Os homens dirão: “O
que é isso? Essas pessoas se gabam de que têm a verdade de
Deus e de que possuem a lei que é a regra de toda perfeição.
Contudo, vemos todo o mal que fazem e os escândalos que causam
com seu comportamento leviano. Que lei maravilhosa é essa! Que
tipo de reforma é esta e a que diretriz realmente seguem?”. É assim
que os homens maliciosos abrirão suas bocas a blasfemar contra
Deus e sua Palavra, e somos acusados quando não vivemos como
deveríamos. Portanto, vemos que uma vida íntegra e santa se
assemelha a um ornamento, como Paulo diz mais adiante — um
ornamento, isto é, do evangelho [Tt 2.10].
Porventura não é uma honra extraordinária que Deus nos faz
quando deseja que sua Palavra seja adornada e embelezada por
nossa boa conduta e nossas vidas santas e bem ordenadas? Pois o
que ele encontra em nós, e o que exatamente é sua Palavra? É sua
imagem na qual brilha sua glória e onde sua majestade se revela; é
o cetro pelo qual ele governará o mundo. Em suma, é a sabedoria, o
poder, a força, a justiça e a bondade que se encontram em Deus e
se manifestam em sua Palavra. Como, pois, podemos adorná-la,
nós que não somos mais que míseras rãs que vivem na imundícia e
no pântano, as quais são embaçadas com tantas manchas e
colorações — como podemos trazer honra à Palavra de Deus? Não
obstante, Deus se digna de chamar-nos a esta nobre tarefa, de
modo que, quando vivemos vidas santas, sua Palavra é honrada e
estimada. Se tivermos em nós uma gota de humanidade, isso não
abrandaria nossos corações? E porventura não acenderia em nós
uma chama de amor e zelo e de tal modo nos transportaria que
passaríamos a devotar-nos à bondade?
Então, quando Deus é blasfemado em razão de nossos
pecados, e quando sua Palavra é exposta às difamações e pilhérias
dos incrédulos, somos mais que culpados; merecemos ser
condenados. Pois como podemos nos defender diante dos anjos no
paraíso se, quando a imagem de Deus é maculada e os homens
cospem nela, a culpa é nossa? Supondo que digamos a alguém:
“Vejo que agora você se comporta decentemente; pois, se
continuasse como começou, você desonraria seus pais e também
toda a sua família”. Aquele que ouvir isto, por mais dissoluto que
seja, se sentirá de tal modo envergonhado que dirá: “Eu não quero
desonrar meu pai ou minha casa!”. E qual é o caso conosco? Ora,
Deus estampou em nós sua marca, e sabemos que sua glória é
esplendorosa em sua Palavra, a qual é a mensagem da salvação.
Todavia, se é devido a nós que as pessoas mostram a língua para a
Palavra, criticam-na e a ridicularizam; se dizem: “Esta religião é
mera ilusão, uma reforma apropriada para cavalos e asnos” — se,
repito, somos culpados de trazer tal infâmia a Deus e descrédito à
sua imagem, o que diremos? Portanto, visto que nosso Senhor quer
que nossas vidas sejam consistentes com o ensino que nos é
oferecido, vejamos bem que estudemos e nos esforcemos para
aumentar nossa força nela e aprendermos que, para lutar, não
temos necessidade de nossa própria força, e sim do poder do Santo
Espírito.
Naturalmente, mesmo que a Palavra de Deus não nos fosse
pregada, não deveríamos entregar-nos ao mal. No entanto, aqui
Paulo busca envergonhar os que se comportavam nocivamente e
que ignoravam o fato de que pecavam duplamente quando faziam
com que Deus fosse difamado e sua Palavra, profanada. Se sua
Palavra for escarnecida por algum erro nosso, embora não testifique
estar presente para repreender-nos, seria bastante sabermos que
nada é oculto de Deus. Em consequência, mesmo que não
trouxéssemos nenhum descrédito à Palavra de Deus, nossas
consciências nos refreariam a fim de andarmos íntegra e
inocentemente diante de nosso Deus.
Lembremo-nos ainda que havemos de comparecer diante dos
anjos do paraíso, e que o que agora jaz oculto será trazido à luz.
Então, nossa depravação será revelada à vista tanto do céu quanto
da terra. Visto que não podemos escapar ao escrutínio de tantos
juízes, não deveríamos refrear-nos de lançar algum escândalo
contra o evangelho? Mas se também formos acusados diante de
Deus, se nossa consciência nos condenar e se os perversos
abrirem suas bocas e por nossa causa presumirem zombar de
Deus, o que será de nós? Se pensarmos seriamente em tais
advertências, haveremos de nos comportar mais cautelosamente
que antes. Pois hoje sabemos quão de perto os inimigos da verdade
velam e nos espionam. Se os papistas encontram em nós pequenas
falhas, imediatamente acumulam toda sujeira contra nós. Por que
fazem isso? Para terem contra nós justificativas óbvias para
denunciar publicamente a Deus e à verdadeira religião. Isso não nos
vem como surpresa, pois Deus, por assim dizer, nos colocou num
palco, fez com que sua luz brilhe sobre nós e quer que sejamos
vistos mesmo de longe. Todavia, em todo o tempo, nos entregamos
a todo tipo de mal, como se quiséssemos desafiar o mundo e o
próprio Deus. E, embora ele nos advirta diária e constantemente
pleiteie conosco, designando-nos homens que sejam testemunhas
de sua verdade, não só a ignoramos, mas gastamos toda a nossa
vida desdenhando dela e denegrindo-a o quanto nos é possível.
Acaso não é um abominável sacrilégio quando o evangelho é
trazido à desonra por nossa causa?
Os papistas não são os únicos que buscam difamar-nos. Os
que se gabam de ter o evangelho também agem assim e, mesmo
quando lhes faltam razões, de bom grado lançam mão da chance de
zombar de nós e de ridicularizar-nos. Então, quando
compreendemos que outros estão olhando o que fazemos,
deveríamos ser ainda mais cuidadosos e disciplinados. No entanto,
parece que nada pode deter-nos, tão imersos estamos em nossos
apetites. É verdade que os homens são inclinados a culpar-nos; de
modo que, mesmo que sejamos inocentes, eles dirão o mal de nós.
Todavia, quando conscientemente damos aos mexeriqueiros um
bom motivo para nos difamarem, acaso não conspiramos com
Satanás para despertar homens contra Deus e ajudá-lo a instigar
seus servos a vilipendiar o evangelho? Encontramos tais coisas com
muita frequência. Quisera Deus assim não fosse!
Prestemos cuidadosa atenção, pois, às palavras do apóstolo,
para que a doutrina de Deus não seja difamada em razão de alguma
falha de nossa parte. Este é um ponto que ele continua elaborando;
e embora ele forme parte de outro versículo [Tt 2.8], nós o ligamos
ao ensino aqui, pois assim ele faz mais sentido. Portanto, Paulo
escreve isto: para que o adversário seja envergonhado, não tendo
indignidade alguma que dizer a nosso respeito.
A palavra “adversário” subentende alguém que é do outro
lado, alguém que se levanta e se opõe a nós ou a quem assume
uma posição contrária. Esse alguém, segundo Paulo, deve ser
envergonhado. Com estas palavras, o apóstolo almeja mostrar quão
importante é que estejamos em guarda, pois os inimigos da verdade
nos pressionam fortemente, buscando a chance de apanhar-nos
desprevenidos e achar erro em nós. Isto é o que sempre foi, e esta
é a forma de Deus moldar seu povo. Os pagãos e os incrédulos
realmente têm dito que nossos inimigos costumam ser-nos mais
úteis do que o são nossos amigos.[17] Ora, por que isso é assim?
Nossos amigos nos bajulam, se fazem cegos aos nossos erros e
pretextam não vê-los. Pior, nos ajudam a persistir neles, sempre
lado a lado conosco, por mais que isso nos seja um mal. Essa é a
vereda da destruição! Nossos inimigos, em contrapartida, têm seus
olhos postos em todas as nossas fraquezas; eles as investigam e
assim nos põem a falar de aflição. Por isso somos advertidos a que
corrijamos qualquer falha que porventura encontremos em nós. Ora,
se os próprios pagãos nos ensinam a olhar para nós mesmos, que
justificativa temos se falhamos de atentar bem para o que nos é
ensinado por todos os apóstolos?
Então, quando Paulo insta conosco a envergonharmos nossos
inimigos, para que nada encontrem com que nos criticar, ele deixa
bem claro que seguramente os homens têm seus olhos postos em
nós quando tentamos servir a Deus; e que eles nos espionam com o
fim de desacreditar-nos. Por tais meios, como eu já disse, Deus
busca estimular-nos. É verdade, em qualquer caso, que, o que quer
que façamos, não podemos impedir as más línguas de difundir a
calúnia, pois sabemos que o diabo, que é o pai da mentira, sempre
levantará seus servos a uma tal intensidade de fúria que certamente
nos denigre. E se o próprio Filho de Deus não foi poupado, o que
será dos homens que são sempre saturados com muitas
imperfeições?
Se nos comparamos com Paulo, ou com os profetas e outros
apóstolos, ah!, estamos longe de ser tão íntegros como eles o
foram. Neste mundo, eles eram como anjos; contudo, nunca
cessaram de ser estigmatizados e abusados. E quem foi como os
apóstolos, especialmente Paulo, que estivesse acima de censura?
Mesmo antes que se convertesse a Jesus Cristo, a vida que ele
viveu parecia estar além do alcance humano; e, quando Jesus
Cristo o chamou para seu evangelho, sabemos que tal foi seu
altruísmo, que era como um homem transportado deste mundo,
vivendo sempre absorvido por seu trabalho em prol da igreja. Ele
vivia tão despreocupado consigo mesmo, que se esqueceu de seu
próprio conforto. Em suma, seu único pensamento era o avanço do
reino de Deus e a exaltação de Jesus Cristo. Mesmo assim, acaso
ele escapou à crítica e à calúnia? Pelo contrário: aonde quer que
fosse, era estigmatizado; pois, como ele diz, não só teve que
suportar insultos e sofrer opróbrio como se fosse um malfeitor, mas
ele e seus companheiros foram considerados escória da terra; como
lixo e tudo quanto é sujeira pútrida que é lançada fora quando os
animais são mortos [1Co 4.12, 13]. Essas são as imagens usadas
por Paulo para mostrar como Deus o humilhou. Daí ser claro que,
seja o que for que façamos, não podemos fechar a boca dos
perversos ou evitar todo tipo de insulto e abuso.
Não obstante, vivamos de tal maneira que possamos apelar
para Deus e seus anjos a vindicar nossa integridade; e à vista dos
homens estejamos prontos a responder pelos erros dos quais
permanecemos acusados, e só nos esforcemos para demonstrar
que somos inocentes e que nossas vidas são isentas de todo e
qualquer escândalo. Ao agirmos assim, seguimos os apóstolos e
profetas, e nos acharemos na melhor das companhias!
Entrementes, embora nossos inimigos não cessem de falar mal de
nós, certamente haverão de ser envergonhados. Por quê? Nossa
consciência testificará de nossa inocência, de modo que eles serão
convencidos de que somos inculpáveis. Na verdade, ainda
vomitarão muitos males, mas isso passará e se desvanecerá. Será
como um rumor que, uma vez espalhado, se faz popular por algum
tempo, mas no fim se verá que não passa de uma nuvem
evanescente e momentânea, do primeiro ao último, um jugo
miserável.
Muitas pessoas de fato se sentem ditosas vendo os cristãos
desacreditados e, embora nada conheçam do que é dito sobre eles,
espalharão rumores ignorantes de uma parte a outra, e movidos de
um óbvio rancor, caluniarão os filhos de Deus. Quando isso ocorre,
devemos volver-nos para nosso protetor celestial. Acima de tudo,
que nossa vida responda por nós, de modo que traga opróbrio aos
perversos que tão ardentemente nos difamam; e, quando abrem
suas bocas para achar erro em nós, que nossas boas vidas e
conduta de tal modo os silenciem, que sua iniquidade seja óbvia à
vista. E assim, quando o diabo levantar seus ministros para
denunciar-nos e nos humilhar, asseguremo-nos de que temos os
meios para resistir a eles; e quando os monges mexeriqueiros
espalharem escândalos e falsas fábulas, que isso ricocheteie sobre
suas próprias cabeças, quando provarmos que somos inocentes.
Isso, repito, é o que devemos fazer — e de tal modo que nada
nos desencoraje mesmo que o mundo seja suficientemente ingrato
para conspurcar-nos pelo bem que fazemos. Quando uma pessoa
se empenha com todas as suas forças em fazer todo o bem que
possa e só é recompensada com desprezo, tal coisa nos indispõe e
nos irrita. Não obstante, tudo redunda nisto: que, se os homens são
tão perversos a ponto de censurar-nos pelo bem que fazemos, é
suficiente que tenhamos nosso protetor celestial a quem podemos
apelar. Também os profetas lutaram os mesmos tipos de batalhas.
“Persuadiste-me, ó S , e persuadido fiquei; mais forte foste do
que eu, e prevaleceste; sirvo de escárnio todo dia” [Jr 20.7].
Reiterando, Isaías diz isto dos que falavam mal contra ele: “Ofereci
as costas aos que me feriam, as faces, aos que me arrancavam os
cabelos” [Is 50.6]. Em outras palavras, “o povo é livre para abusar
de mim o quanto queira. Estou para ser feito em pedaços, insultado
em toda festa; cada um presume julgar-me e condenar-me. Mas,
enquanto os homens lançam contra mim seu ódio, eu tenho no céu
o meu protetor. Ele me salvará de todas as suas censuras”. Eis
como devemos agir sempre que os perversos acharem em nós
algum erro. Uma consciência pura e isenta de todo o mal que nos é
atribuído deve responder a Deus. Não devemos preocupar-nos se o
mundo nos retribui tão pobremente e nos culpa por fazermos o bem;
que nos alegremos pelo fato de que Deus conhece nosso valor.
Então, sempre que acontecer, nada nos afaste dele, senão que
continuemos a seguir nossa vocação rumo à glória de Deus. E
quando cada um de nós, pessoalmente, tiver se beneficiado desta
doutrina, tentemos atrair outros a ela e ao reconhecimento do
evangelho que Deus nos deu. No ínterim, que todos que nos
estigmatizam sejam envergonhados e que suas bocas sejam
fechadas, queiram eles ou não.

Oração
Agora nos prostremos diante da face de nosso bom Deus,
reconhecendo nossos erros e rogando-lhe que nos faça senti-los
mais agudamente do que antes; a fim de que lutemos mais e mais
contra nossas más inclinações; e que nos desviemos deste mundo
para anelarmos somente a ele. E, visto que sabemos que dureza e
rebelião há em nosso íntimo, que Deus nos dome e nos domine
para que, através de seu Santo Espírito, ele nos reja e nos governe.
Renunciemos a nossos próprios desejos e rendamo-nos cativos a
ele. Que deixem de exercer domínio sobre nós e sustentem a
obediência que devemos ao nosso Senhor Jesus Cristo, diante de
quem todo joelho deve curvar-se.
12. CARÁTER CRISTÃO (3) [Tito 2.6-13]
Quanto aos moços, de igual modo, exorta-os para que, em todas as
coisas, sejam criteriosos. Torna-te, pessoalmente, padrão de boas
obras. No ensino, mostra integridade, reverência, linguagem sadia e
irrepreensível, para que o adversário seja envergonhado, não tendo
indignidade nenhuma que dizer a nosso respeito. Quanto aos
servos, que sejam, em tudo, obedientes ao seu senhor, dando-lhe
motivo de satisfação; não sejam respondões, não furtem; pelo
contrário, deem prova de toda a fidelidade, a fim de ornarem, em
todas as coisas, a doutrina de Deus, nosso Salvador. Porquanto a
graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens,
educando-nos para que, renegadas a impiedade e as paixões
mundanas, vivamos no presente século, sensata e piedosamente,
aguardando a bendita esperança e a manifestação da glória do
nosso grande Deus e Salvador Cristo Jesus, o qual a si mesmo se
deu por nós, a fim de remir-nos de toda iniquidade e purificar para si
mesmo um povo exclusivamente seu, zeloso de boas obras.

No último domingo, explicamos o quanto Deus nos honra,


desejando que nossas boas obras e vidas santas confirmem a
doutrina do evangelho. Sabemos que a glória de Deus é
esplendorosamente exibida em sua doutrina; mas quem somos nós
para trazer-lhe honra? Não obstante, ele se agrada em usar
criaturas tão miseráveis em uma obra tão nobre e preciosa.
Devemos, pois, ser ainda mais aptos a fazer o que nos é requerido.
A Escritura declara que os que proclamam a Palavra de Deus
devem ser como espelhos, de modo que sejamos edificados por sua
boa vida e pelo exemplo. Eles são advertidos de que estarão em
falta se, por seu comportamento, o nome de Deus for blasfemado.
Pois os papistas e os incrédulos aproveitam a chance para rir de
nossa fé e do cristianismo que professamos se nossas vidas são
inconvenientes e inconsistentes. No entanto, aqui Paulo avança
mais e menciona os escravos que não eram como os servos
assalariados de hoje. Aqueles viviam em servidão; sua sorte se
assemelhava à do gado ou de outros animais; um senhor poderia
matar seu escravo tão facilmente como poderia fazê-lo ao seu cão.
A despeito disso, Paulo diz que a religião será adornada por eles se
sua conduta for tal que faça os malfeitores verem que a doutrina de
Deus tem poder para renovar os homens e conduzi-los à santidade
de vida. Visto ser assim, acaso não somos débeis, se não fizermos
nosso melhor para fechar a boca de todos os que falam mal e até
para forçá-los a honrar e glorificar a Deus?
Daí, os que são de posição humilde e que são desprezados
por todos devem se contentar em saber que Deus os tem honrado
grandemente, recebendo-os como filhos, e que ainda deseja que
sua glória resplandeça neles, de modo que não só usem o distintivo
dele, mas sua própria vida é como um ornamento e embelezamento
do evangelho. Entrementes, os que têm sido elevados a posições
de honra e importância atentem bem para si mesmos, pois se Deus
deseja que os mais humildes e menos estimados — meros
proscritos que não merecem um segundo olhar! — adornem sua
Palavra, acaso os que são preeminentes não devem fazer nada
para desacreditar a sã doutrina ou dar aos homens razão para
motejar de Deus por meio de sua má conduta?
Pensemos nos magistrados que em certo sentido são as
imagens de Deus no mundo.[18] Se alguns deles desprezam a Deus
ou são corruptos e avarentos; e se outros são totalmente cruéis ou
se dispõem a solapar e arruinar toda a boa ordem, acaso com seus
excessos não causarão tal escândalo que todos passem a difamar a
doutrina que pregamos? Daí, tomemos todo o cuidado, cada um em
seu próprio lugar, e que grandes e pequenos vejam bem que Deus
não rejeite a ninguém, mas que se apraza a estabelecer seu reino
entre nós, de modo que todos possam cultuá-lo e glorificá-lo. Se
agirmos assim, seremos bem sucedidos em impedir que as calúnias
dos homens maus circulem entre nós — não que serão
completamente silenciados, pois sabemos o quanto são
desesperadamente despudorados os que escarnecem de Deus.
Supondo que fôssemos tão perfeitos quanto os anjos, ainda
vomitariam suas calúnias contra nós! Não obstante, quando a
verdade é plenamente conhecida, ainda se exporão ao opróbrio,
pois nossa vida responderá por nós, e nossas consciências não só
testificarão de nossa inocência diante de Deus, como também
provaremos diante dos homens que somos injustamente
estigmatizados. Levemos a sério esta lição.
Ora, quando Paulo fala dos moços, ele lhes ordena que sejam
criteriosos [ou, tenham autodomínio]. Esta é uma virtude mui
necessária para os dessa idade. Sabemos que este é um tempo de
grande calor, pois é excessivamente difícil manter os jovens sob
rédeas curtas. São como uma panela que começa a ferver e
transborda. Sua idade é própria para isso: só pode ser dominada
com o mais vigoroso esforço. Em qualquer caso, Paulo enfatiza que
necessitam de domínio próprio. Por quê? Quando nossos erros
estão à vista, não constitui uma escusa dizer que eles são
meramente irrefletidos; ou, do contrário, não se deixarão coibir.
Antes, quando tais moléstias aparecem, devem-se aplicar remédios.
Um homem que jaz doente não se enfraquecerá onde está; buscará
ajuda usando todos os meios disponíveis. Em consequência,
quando os jovens veem que se acham dominados por maus
desejos, os quais os arrastam à prática do mal, quando somente a
força os fará render-se, quando alguns são promíscuos e outros
atingem o pior estado imaginável — temeridade, extravagância,
glutonaria, jogatina —, quando os jovens veem que este é o rumo
para onde sua natureza os leva, devem ser complacentes?
Esconder-se-iam por detrás do pretexto de que sua idade é
propensa a vícios desta sorte? Claro que não! Devem ouvir o que
lhes é ensinado aqui. Têm de lutar ainda muito mais contra suas
más inclinações, até que estas sejam vencidas; e até que Deus
vença tal senhorio sobre eles, para que seu mau comportamento
cesse.
Ora, ainda que esta exortação seja absolutamente essencial,
quão precariamente a praticamos! Os jovens, sendo também
teimosos, são destituídos de prontidão e autocontrole. Que tipo de
restrição notamos neles? Se eles são néscios e instáveis, deveriam
no mínimo ser humildes, aceitar bom conselho e segui-lo. Em vez
disso, são voluntariosos e presunçosos, como se possuíssem toda a
sabedoria e experiência do mundo; o exato oposto. Não se
preocupam em ouvir uma palavra, mas pensam que são
suficientemente expeditos. Ora, quando os jovens se tornam
excessivamente arrogantes, seu caso é sem esperança e além de
correção: nada de fidedigno se pode esperar deles. Um jovem pode
ter toda virtude possível; mas, se é arrogante, carente de humildade
e autodisciplina, tudo isso redundará em fumaça. Ele será como
uma semente inútil que se veste de germinação vigorosa, mas que,
por fim, não produz nenhum bom fruto. Seja qual for o caso, o
Espírito Santo não quer que ignoremos esta admoestação, tendo
sido de uma vez por todas dita pela boca de Paulo. Daí que os
jovens resolvam submeter-se e demonstrar que não buscam permitir
que o mau comportamento prevaleça. Que exerçam a restrição na
ausência de alguma outra instância.
No entanto, se os virmos incitando malefício, os que têm
responsabilidade sobre eles devem ser diligentes em ressaltar suas
loucuras e censurá-los. Os ministros da Palavra devem lembrar-se
de que são responsáveis diante de Deus, caso fechem seus olhos e
se esqueçam das paixões nocivas dos jovens. Se virem os jovens
agindo nocivamente, mas não pretendem notar nem protestar,
certamente terão que responder diante de Deus. E se os jovens
provarem que são ingratos e se deixam de tal modo se assenhorear
de cegueira a ponto de se tornarem ingovernáveis, não obstante,
deve-se manter o que nos é ensinado aqui. Também os pais devem
usar a autoridade que Deus lhes concedeu nesta questão e tentar
manter a indisciplina sob controle.
Neste ponto, o apóstolo volta a Tito, instruindo-o a que seja
como um espelho ou modelo de toda virtude, segundo a doutrina.
Isto é, o homem incumbido de proclamar a Palavra de Deus deve
pregar em cada parte de sua vida, já que Deus o escolheu para tal
tarefa. Quando as pessoas olhassem para ele a fim de ver como ele
se comporta, deveriam achar a confirmação da doutrina que ele
proclama; e ele deveria fazer o bem e edificar não só com os lábios,
e assim ensinaria aos homens seu dever, mas também por meio de
seu exemplo; de modo que ele seja conhecido por falar
sinceramente, e não sob pretexto, para a edificação de todos.
Aprouvesse a Deus que essa injunção fosse obedecida, a verdade
de Deus seria recebida com mais reverência do que é! Mesmo
assim, já que Deus escolhe usar-nos para disciplinar a outros, não
haverá escusa se não nos disciplinarmos com propriedade.
Devemos ordenar nossas vidas de tal maneira que, como por
consenso comum, para guiar outros, devemos também diligenciar-
nos em honrar a Deus sem lhe dar sequer um motivo para rejeitar
sua santa Palavra; pois ele nos fez seus instrumentos e quer que
aceitemos sua doutrina como se estivesse falando conosco
pessoalmente.
Mais precisamente, Paulo insta conosco a que ensinemos com
toda seriedade, sobriedade e com sãs palavras. Com efeito,
devemos certificar-nos de que mantemos sobre nós uma rédea mais
curta do que sobre outros. Pois vemos muitos que se deixam
dominar pela paixão quando é necessário repreender o pecado.
Desaprovam tudo; nada fica de seu gosto. Daí, a advertência de
Paulo redunda nisto: “Alguns se mostram prodigamente
condescendentes em seus pecados; contudo, fuzilam amargamente
contra os pecados de outros. Não é isto que se faz necessário — na
verdade, muito ao contrário! Quando solicitamos a outros que
obedeçam à vontade de Deus, antes de tudo, devemos dar atenção
aos próprios pecados. Não devemos encaminhá-los meramente em
seu caminho — devemos ir adiante”.
Uma excelente visão disto seria se o pregador instasse seu
povo a cultivar o autocontrole, enquanto ele mesmo fosse dissoluto
ou dado a uma conversação vil e desrespeitosa! Tal homem seria
claramente condenado por sua própria boca. Ou imaginemos
alguém que louvasse a sobriedade e a moderação, mas que ele
mesmo fosse ébrio e glutão. Retratemos um terceiro que
denunciasse a cupidez, mas que também se deleitasse em roubar
de todo mundo. Ou outro que, enquanto nos diz que esqueçamos o
mundo e nos deleitemos em Deus, permanecesse cravado na terra,
sem cuidar da vida celestial como fazem os meros animais! Uma
visão excelente, repito, seria se alguém nos instasse a fazer estas
coisas, dizendo: “Vá em frente”, enquanto ele mesmo se recusa a
seguir em frente! Sua tarefa seria guiar e mostrar a outros o
caminho certo.
E assim Paulo deseja não só que mostremos moderação e
ordenemos bem nossas vidas para que ninguém moteje de Deus e
menospreze sua Palavra; ele espera que também confirmemos e
endossemos sua doutrina por meio de nossa linguagem, de modo
que os homens atentem bem e se deixem animar a fazer o bem. Eis
por que ele anexa “com linguagem sadia”. Ele não aprova nenhuma
frivolidade em nossa linguagem que porventura excite gracejo, pois
sabemos que as más palavras e conversações têm sua origem na
corrupção da boa moral, como diz Paulo em outro lugar [1Co 15.33].
Ali ele cita um provérbio popular entre os pagãos, e registrado por
um poeta profano, a fim de envergonhar os crentes que
transgrediam em palavra e linguagem.[19] Conspurcação desse tipo
é um sinal de que sentimos menosprezo por Deus e que queremos
ser livres para desfrutar nossos vícios. Essa é a lição para nós aqui.
Agora são abordados os escravos e os que vivem em
servidão: que sejam, em tudo, obedientes ao seu senhor, dando-lhe
motivo de satisfação. Aqui, Paulo tem em mente as necessidades
daqueles a quem particularmente ele fala. Pois, naqueles tempos,
os escravos eram passíveis de roubar e também de retrucar, a
menos que fossem desencorajados pelo temor de serem açoitados.
Às vezes, o brutal tratamento que recebiam os tornava duros: eram
tratados como bestas brutas, surrados, atormentados e torturados;
para sua refeição, às vezes eram despidos e flagelados, seu sangue
jorrando em todas as direções. Não surpreenderia, pois, se,
empedernidos pelo sofrimento, fossem culpados de se vingar de
seus senhores sempre que tivessem ocasião.
Não obstante, Paulo os exorta a que agradassem seus
senhores — agradassem a eles em toda a coisa obra, uma exceção
que ele esclarece em outros lugares [Ef 6.5-8]. Também devem ser
pacientes e não retrucar; mas devem dar bom exemplo mesmo que
seus senhores sejam ingratos. Ora, ainda que esse tipo de
escravidão já não exista entre nós como outrora, a lição de Paulo de
modo algum é fora de lugar hoje. Aqueles de quem se requer que
trabalhem em serviço normal devem agir com muito mais
disposição, pois há uma comparação óbvia a ser traçada aqui. Se
Deus esperava que os escravos que eram tão maltratados e não
tolerados obedecessem aos senhores que os oprimiam, como será
com os servos assalariados que, embora não se irritem dessa
maneira, deixam de cumprir com seu dever? Acaso não são
duplamente culpados diante de Deus? Naturalmente, são! Quanto
mais fácil e mais suportável for nossa sorte, menos escusáveis
somos em recusar aquiescência. Portanto, que os empregados
como servos saibam que esta doutrina é para eles hoje; e que Paulo
lhes ordena que obedeçam aos seus senhores e não retruquem ou
tirem o que é deles, mas tentem agradá-los o quanto puderem.
Esse é um ponto. Segue uma admoestação mais geral. Somos
inclinados a pensar que, se alguém falha no cumprimento de seu
dever para conosco, somos justificados em fazer, por nossa vez,
muito pior. Então dizemos a nós mesmos: “O que lhe devo?”. Ah!
sim, mas não devemos a Deus? A Escritura declara que o amor nos
faça sujeitos uns aos outros, e que ele nos obrigue aos demais [Rm
13.8; 1Pe 5.5]. E, assim, este é o paralelo que devemos traçar:
“Embora ninguém possa forçar-me a fazer mais do que é requerido,
visto que Deus me tem tratado tão bondosamente, seria errado eu
não cumprir com meu dever”. Portanto, visto que não somos
tratados incorretamente, devemos prestar um serviço livre e
espontâneo ao nosso semelhante, e resolver não tirar daqueles aos
quais Deus nos têm unido.
É assim que esta doutrina se aplica não só ao serviço
prestado a homens e mulheres, mas a todos os crentes, sem
exceção. Onde lemos expressamente que os escravos devem
agradar a seus senhores, temos que entender que este não é
simplesmente um trabalho que fazem sob compulsão; sabem que,
ao fazê-lo, estão servindo a Deus. É verdade, como Paulo escreve
no sétimo capítulo da primeira carta aos Coríntios, que, se naqueles
dias um homem pudesse ser livre, ele não deveria rejeitar a
oportunidade, mas desejá-la [1Co 7.21]. Mesmo assim, Paulo quer
que cada homem permaneça em seu próprio lugar e situação. Tal
homem deveria dizer: “A Deus aprouve humilhar-me. Ele não me
pôs em um lugar elevado, mas decidiu fazer-me subserviente.
Então, permaneço onde ele me colocou”. Aprendamos, pois, que, se
alguém está em serviço, o mesmo não deve recuar de fazer o bem,
mas que se esforce em cultivar uma disposição alegre e em
trabalhar de todo o coração, como Paulo diz em outro lugar: “Que os
servos não servissem à vista, como para agradar a homens, mas
como servos de Cristo, fazendo de coração a vontade de Deus” [Ef
6.6; Cl 3.22]. Pois há os que se vestem da melhor aparência com o
fim de enganar a seus senhores.
Paulo demanda uma disposição que seja livre e de boa
vontade, de modo que, mesmo quando o senhor não esteja
olhando, os escravos não temam a demissão ou repreensão, muito
menos a punição. Deveriam ser sempre fidedignos como se
estivessem diante de Deus. No entanto, há uma exceção: tinham
que agradar a seu senhor com toda bondade [Ef 6.5-8]. Porque se,
com o intuito de gratificar o senhor, um escravo agisse como
alcoviteiro ou ferisse um homem e espancasse outro, ou roubasse,
ou surrupiasse, ou blasfemasse contra Deus, toda a ordem seria
destruída. E assim, quando Paulo fala de posição social, notamos
que Deus sempre retém sua autoridade e nunca abandona seu
ofício. Se os escravos, portanto, devem obedecer a seus senhores,
isso só pode visar a um bom propósito. Daí, se um senhor insta
seus filhos ou servos a agirem erroneamente, a saber, que sejam
ladrões ou homicidas; ou se, para agradar um senhor, um homem
planeja matar, envenenar, incitar porfia ou praticar a insídia, esse
será absolvido, alegando que seu senhor ordenou que ele o
fizesse? “E então? Seu senhor lhe ordenou? Mas ele também está
sujeito à autoridade civil. Quanto mais você!” Então, se a justiça
sempre tomasse seu curso, embora os senhores devam ser
obedecidos em sua própria casa, acaso cremos que Deus
renunciará a seu ofício e seus direitos, sob o pretexto de que os
senhores, magistrados e outros ocupam posição superior, enquanto
os servos e pessoas ordinárias ocupam uma inferior?
Lembremo-nos, pois, que, se devemos estar sujeitos aos
homens, os direitos de Deus de modo algum são obliterados ou
diminuídos. Ao contrário, devemos ser sempre mais encorajados a
servi-lo; pois até mesmo míseros escravos, por mais que sejam
maltratados e horrivelmente abusados, devem tentar satisfazer seus
senhores. Todavia, que são os homens em comparação ao nosso
Deus? Ele não nos trata tiranicamente nem nos explora como os
homens mortais buscam fazer. Ele não nos extorque o sangue nem
suprime de nós para seu próprio proveito ou vantagem. O que ele
demanda de nós que não seja para nosso bem-estar e salvação?
Visto que Deus exibe tal generosidade para conosco, somos
malditos e duplamente malditos se não nos dispusermos a servi-lo
com alegria e não nos oferecermos a ele como um sacrifício
voluntário! Então, que nos fique bem claro que, quando é uma
questão da obediência que devemos ao homem, nossa primeira
obrigação é, além de comparação, para com ele. Além do quê, sua
majestade, como bem sabemos, excede a toda sorte de supremacia
conhecida dos seres humanos. E visto que, de sua parte, ele deseja
apenas nos governar de uma maneira paternal; e visto que ele nos
sustenta como seus filhos, como ele diz por meio de seu profeta [Jr
31.9], todos nós somos ainda mais obrigados a servi-lo com
corações livres e voluntários.
Havendo tratado desse ponto, Paulo agora acrescenta: a
graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens,
educando-nos para que, renegadas a impiedade e as paixões
mundanas, vivamos, no presente século, sensata, justa e
piedosamente, aguardando a bendita esperança e a manifestação
da glória do nosso grande Deus e Salvador Cristo Jesus. Como
dissemos anteriormente, Paulo não entra em detalhes nem explica
plenamente cada dever específico às vocações dos homens. Ele se
contenta em prover uma série de exemplos. É como se quisesse
dizer que, para edificar a igreja de Deus, nós, que somos
incumbidos de pregar o evangelho, não devemos gastar tempo com
questões especulativas que a ninguém traz proveito; em vez disso,
devemos instar todo homem a que cumpra seu dever. No entanto,
não há necessidade de um amplo esboço de normas para o bom e
santo viver. Devemos ensinar aos pais como controlar seus filhos; e
os filhos, como obedecer a seus pais e mães. Devemos informar
aos esposos como viver pacificamente com suas esposas; e às
esposas, como viver pacificamente com seus esposos. Os servos
devem aprender que devem ser fidedignos no serviço prestado a
seus senhores; e os senhores devem ser restringidos no caso de se
sentirem livres para fazer tudo quanto lhes apraza ou para agir
cruelmente e, assim, abusem de seu poder. Devem contentar-se
com o privilégio de ter autoridade sobre criaturas racionais. E assim
o apóstolo explica sucintamente a doutrina de Deus, a fim de
mostrar que seu propósito não é satisfazer a coceira de nossos
ouvidos, mas edificar-nos em toda a bondade. Guardemos esse
pensamento bem solidamente.
A seguir nos é mostrado sobre que bases Paulo assenta sua
doutrina. Vimos, numa passagem anterior, que a graça de Deus que
se fez conhecida pela vinda de nosso Senhor Jesus Cristo deve ser
proclamada a cada dia.[20] Que espantoso mistério é que Deus se
manifestasse em carne e, não obstante, nos revelasse sua glória
celestial para que fôssemos feitos um com ela! Esta é a tarefa de
cada pastor, a saber, que proclamar que a sabedoria de Deus já nos
foi revelada na pessoa de seu Filho nunca é perda de tempo. Essa é
também a razão por que em Efésios Paulo fala do conhecimento em
toda a sua altura, profundidade, comprimento e largura [Ef 3.18, 19].
Podemos pairar nas alturas sobre as asas do pensamento
especulativo; podemos mergulhar no abismo em busca de verdades
impenetráveis; podemos explorar os oceanos em toda sua mais
ampla extensão. Não obstante, diz Paulo, temos uma sabedoria
infinitamente elevada e profunda, em sua longitude e amplitude:
compreendermos o amor que Deus nos fez conhecer na pessoa de
seu Filho unigênito.
Consideremos a razão por que os homens devem pregar
diariamente o elevado e inestimável mistério de que Deus se
manifestou em carne. Paulo afirma que este mistério provê uma
norma para o viver santo. João diz a mesma coisa quando declara:
“Aquele que pratica o pecado procede do diabo, porque o diabo vive
pecando desde o princípio. Para isto se manifestou o Filho de Deus:
para destruir as obras do diabo” [1Jo 3.8]. Em consequência,
quando ouvimos que a redenção nos foi obtida pela morte e paixão
de nosso Senhor Jesus Cristo, é para que pudéssemos ser
afastados deste mundo; renunciemos nossas más paixões e nos
dediquemos inteiramente a Deus. Daí lermos, respectivamente, em
Pedro e em Efésios que nosso Senhor nos redimiu para si, a fim de
que declaremos diariamente seu louvor, pois ele nos tirou deste
mundo com todas as suas mazelas [Ef 2.4-6; 1Pe 4.1, 2]. Por que,
pois, Jesus Cristo derramou seu sangue senão para purificar-nos? E
se somos assim purificados, haveremos outra vez de conspurcar-
nos, como porcos que voltam a chafurdar no excremento e lama,
uma vez que já foram lavados?
Esse é o significado de Paulo aqui. Agora temos de explanar
os vários pontos que se encontram neste texto. Notamos a principal
intenção, a saber, mostrar que a glória de Cristo apareceu a fim de
que, sendo separados do mundo, sejamos um povo santo; um povo
governado por Deus. Portanto, carecemos de encorajamento todos
os dias para o cumprimento de nosso dever. No entanto, Paulo,
havendo falado de escravos, declara que “Deus se manifestou a
todos os homens”. Isto é, Deus não escolheu apenas os grandes, os
nobres e os que são estimados; ele derramou sua misericórdia
sobre os inferiores, sobre os rejeitados, os escarnecidos e os
degradados. Ele escolheu honrá-los, admitindo-os à categoria de
seus filhos. É nesse contexto que Paulo fala de “todos os homens”.
Então vemos quão absurdos são aqueles obstinados que presumem
explanar a Santa Escritura; e que, verdadeiros quanto à forma,
equivocadamente mantêm que Deus quer que todos os homens
sejam salvos; uma vez que sua graça se manifestou para a
salvação de todos; e, portanto, já que existe o livre-arbítrio, não
existe eleição e ninguém foi predestinado para a salvação.
Ora, se as bestas fossem capazes de falar, teriam de ser um
pouco mais engenhosas do que isso! Porque, tanto neste texto
quando no que já explanamos em Timóteo,[21] Paulo simplesmente
quis dizer que os grandes são também chamados por Deus, ainda
que sejam indignos; e os humildes, ainda que desprezados; não
obstante todos são adotados pelo Deus que estende sua mão para
recebê-los. Naqueles dias, visto que os governantes e os
magistrados eram inimigos mortais do evangelho, Deus se
manifestou para receber os destituídos que jamais poderiam
alcançar a salvação. O apóstolo ensina que não devemos fechar-
lhes a porta; e que Deus, finalmente, é capaz de escolher dentre
seus membros, ainda que seu caso parecesse sem esperança.
Assim, neste texto, havendo referido a míseros escravos que
nem mesmo eram classificados como homens, Paulo afirma que
Deus não fracassou em ser-lhes misericordioso, e que deseja que o
evangelho seja pregado àqueles a quem nem sequer uma palavra
foi dita. Temos aqui um homem pobre a quem todos ignoram.
Dificilmente alguém lhe desejaria “bom dia”. Contudo, Deus se volve
para ele antes de todos e se lhe revela como Pai; ele o convida a
ouvir; e não pronuncia uma breve palavra de passagem, mas se
detém com ele e lhe diz: “Você pertence ao meu rebanho. Que
minha palavra seja seu alimento e vida espiritual para sua alma”.
Visto que Deus já exibiu tal benignidade para com a raça humana;
visto que os que foram abusados e vilipendiados, para quem
ninguém olhava favoravelmente, foram tomados, por assim dizer, no
regaço de Deus; foram tomados para que este fosse seu Pai e
foram adotados como seus filhos, quão horrivelmente duro seria se
não pudéssemos ser aplacados por esta revelação da bondade de
Deus!
Julguemos, pois, o significado das palavras de Paulo, quando
diz que a graça de Deus “se manifestou plenamente aos homens”.
No entanto, notemos as palavras que ele anexa: “para nossa
instrução”. Pois há muitos que abusam vergonhosamente da
bondade de Deus, aproveitando toda oportunidade para a prática do
mal. Por essa razão, Paulo insta-nos a não converter a liberdade tão
amorosamente conquistada para nós numa escusa para a
indulgência carnal [Gl 5.13]. De fato há muitos que se divertem com
Deus e pensam que tudo lhes é permitido, visto que já foram
redimidos por nosso Senhor Jesus Cristo. Isso é muitíssimo comum.
E há outros que permanecem indiferentes quando a mensagem da
misericórdia de Deus lhes é proclamada. Esquecem tudo sobre a
tarefa à qual Deus os chama e sobre qual é o propósito quando ele
põe diante de nós os tesouros de seu amor paternal. Em
contrapartida, Paulo nos diz que a graça de Deus se manifestou
para nossa instrução. Disto fica claro que não podemos separar a
santidade de vida da fé que permite que nos reclinemos em nosso
Senhor Jesus Cristo e a confiança na obediência que ele rendeu a
Deus seu Pai.
Portanto, não nos cabe ouvir a mensagem com que Deus nos
agraciou e quer reconciliar-nos na pessoa de nosso Senhor Jesus
Cristo? Seu propósito é este: que odiemos nossos pecados e
queiramos muito mais retornar para ele, porquanto ele não quer que
vivamos perdidos e sigamos a vereda da destruição e morte, onde
uma vez estivemos. Tal é o laço inquebrável entre a graça de Deus
e o viver íntegro. O dom divino da misericórdia, longe de reduzir-nos
a um estado de demente confusão no qual não podemos distinguir o
certo do errado, nos convence da necessidade de nos guardarmos
de todas as contaminações do mundo. Eis por que Paulo não
encontra um apelo mais premente e poderoso do que a misericórdia
de Deus, à luz da qual ele pode dizer: “Meus amigos, vejam quão
misericordioso Deus tem sido para com vocês. Essa misericórdia os
despertou e acendeu em vocês a chama do amor para com Deus”.
Porque, para reiterar o que eu já disse, somos monstruosamente
ingratos se deixarmos de permanecer obedientes a ele.
É isso que está implícito no versículo: “A graça de Deus se
manifestou para nossa instrução”. No entanto, aqui os pregadores
do evangelho devem acautelar-se. Se eles declaram que Deus, ao
enviar seu Filho para redimir-nos, se revela como o Pai de todos, de
modo que temos plena justiça mediante o perdão de nossos
pecados — se dissermos isso e nada mais, sabemos o quanto as
pessoas são inclinadas para o mal e o quanto tentam subverter a
graça de Deus e suprimi-la. Fazer isso equivaleria dar rédea solta
ao mal. Então, estas duas coisas podem ser enfeixadas:
arrependimento e fé. Assim, quando nosso Senhor Jesus Cristo
enviou seus discípulos, ele lhes ordenou que pregassem a remissão
dos pecados atrelada ao arrependimento; ele recusou separar uma
da outra [Lc 24.47]. A Escritura diz do casamento que o homem não
separe o que Deus uniu [Mt 19.6]. Quanto menos essa união, que
pertence à vida espiritual, deve ser quebrada! Portanto, quando nos
propomos a anunciar a fé, devemos também anunciar o
arrependimento. Nossa mensagem é que Deus tem tido misericórdia
de nós, perdoando diariamente nossas ofensas e que somos
justificados porque Jesus Cristo nos reconciliou com o Pai; de modo
que Deus nos tem como justos ainda que sejamos míseros
pecadores. Mas, enquanto pregamos essa mensagem, devemos
também adicionar que isso se dá sob a condição de que voltemos
para Deus, como os profetas proclamaram outrora.
Está escrito que Deus virá para salvar seu povo a fim de que o
remanescente de Jacó se afaste de toda iniquidade [Is 35.5, 8].
Visto que Deus já pagou um preço tão elevado para fazer-nos seus,
não convém que vivamos como bem nos apraz. Nosso Redentor
quer ter pleno direito sobre toda a nossa vida. Em consequência,
lemos: “renunciemos toda impiedade e desejos mundanos, vivamos
nesta presente era vidas santas, justas e sóbrias, enquanto
aguardamos a vinda deste grande Senhor, quando se manifestar em
sua glória”.
Não bastava que o apóstolo dissesse que a glória de Deus,
quando fielmente proclamada, envolve instrução ou santidade de
vida. Era necessário discutir as implicações deste versículo —
acima de tudo, a necessidade de abandonar toda impiedade e
desejos mundanos. Paulo, numa palavra, mostra como, antes de
Deus começar sua obra, a natureza humana é profundamente
pecaminosa, dada à impiedade e apetites mundanos. Por
impiedade, Paulo não quer dizer algum tipo de superstição, a sorte
que faz os homens sábios em seus próprios conceitos de modo que
impingem idiotices como sendo sabedoria de sua própria invenção.
São obstinados, orgulhosos e insolentes, destituídos de piedade.
Por impiedade, Paulo salienta mais o que fomos antes de Deus nos
despertar para a veracidade de sua Palavra. Não importa que
impressões que busquemos dar, e qual é o jogo do hipócrita, não há
em nós piedade real. Por exemplo, os incrédulos gostam muito de
exibir-se, demonstrando em seus rituais uma profunda e fervorosa
devoção. Todavia, entre os homens não pode haver temor de Deus,
a menos que sejam instruídos apropriadamente. Também há
paixões mundanas às quais estamos naturalmente sujeitos.
Devemos pesar cuidadosamente ambas estas coisas. Não
podemos discuti-las mais amplamente no momento; mas, ao
encerrarmos, devemos notar sucintamente o que Paulo quer que
aprendamos da doutrina do evangelho. Cabe-nos reconhecer o mal
que jaz em nós e, uma vez feito isso, o odiemos. Esse é um ponto.
O outro é este: os homens nunca começarão fazer o bem até que
sejam recriados; até que se tornem novas criaturas. Esta é obra de
Deus; pois estamos enganados se pensarmos que nossa disposição
natural é saudável. Então Deus deve empregar o poder de seu
Santo Espírito para dominar as más inclinações de nossa carne; de
outro modo, seremos deixados a consumir-nos em nossos pecados.
Agora fica claro que há dois pecados essenciais ou formas de
mal: menosprezo para com Deus, de modo que em nossa
impiedade deixamos de andar segundo sua vontade; e os desejos
mundanos e paixões nocivas que, até que Deus nos atraia a si,
inevitavelmente seguimos. É verdade que os incrédulos se
persuadirão facilmente de que são maravilhosamente devotos.
Quão equivocados estão! Corretamente, pois, o profeta Isaías
proclama que o Espírito do temor de Deus é dado a nosso Senhor
Jesus Cristo [Is 11.2]. Disto aprendemos que só podemos obedecer
realmente a Deus através da fé. Daí, graças a todas as suas
superstições, os infelizes incrédulos lançam desdém contra Deus;
fazem rodeios, mas nunca conseguem aproximar-se dele exceto
quando ele os atrai a si pela fé. Nossos apetites mundanos também
nos arrebatam; somos tão afeitos às nossas más inclinações, que
não há em nós fidelidade ou integridade; nem bondade; nem
brandura; nem pureza; nem autocontrole. O mundo nos arremessa e
nos agita até que Deus, através de sua Palavra, reine em nós e nos
prontifique; até que também ele nos dome mediante a ação de seu
Santo Espírito e nos ensine a não nos portarmos com descontrole
selvagem.
Isso, pois, é o que devemos apreender em primeiro lugar, se
queremos servir a Deus corretamente. Tal coisa não pode acontecer
até que os homens, envergonhando-se radicalmente, se ofereçam a
Deus e lhe roguem que ele os modifique a fim de que deixem de ser
o que outrora foram.

Oração
Agora nos prostremos diante da majestade de nosso bom Deus,
reconhecendo nossos erros e rogando-lhe que no-los faça sentir
ainda mais agudamente. Que ele nos mostre continuamente sua
misericórdia até que ele nos conduza ao seu reino; e, ao guiar-nos,
mais e mais mortifique nossos desejos pecaminosos, para que
sejam lançados para longe de nós.
13. GRAÇA E GLÓRIA [Tito 2.11-14]
Porquanto a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os
homens, educando-os para que, renegadas a impiedade e as
paixões mundanas, vivamos, no presente século, sensata, justa e
piedosamente, aguardando a bendita esperança e a manifestação
da glória do nosso grande Deus e Salvador Cristo Jesus, o qual a si
mesmo se deu por nós, a fim de remir-nos de toda iniquidade e
purificar, para si mesmo, um povo exclusivamente seu, zeloso de
boas obras.

Nesta manhã explicamos que, tão logo somos informados da


bondade de Deus que nos é revelada na pessoa de nosso Senhor
Jesus Cristo, havemos de ser incitados a uma vida de santidade.
Deus reivindica justificadamente nossa posse, visto que ele já fez
precioso pagamento por nós e, sobretudo, visto que, como já
dissemos, ele nos fez conhecer o propósito de nossa redenção.
Como Zacarias diz sucintamente nas palavras de seu cântico: “livres
das mãos de inimigos, o adorássemos sem temor, em santidade e
justiça perante ele, todos os nossos dias” [Lc 1.74, 75]. Ou, como
escreve Paulo no sexto capítulo de Romanos: “Porque o pecado
não terá domínio sobre vós; pois não estais debaixo da lei, e sim da
graça. Uma vez libertados do pecado, fostes feitos servos da justiça”
[Rm 6.14, 18].
Como isto pode ser feito? Submetendo-nos à justiça de Deus.
Aqui não há força nem compulsão: é uma submissão que é melhor e
mais desejável que todos os domínios deste mundo. Pois, se o
homem tem de ter o livre-arbítrio a fim de gratificar seus apetites, é
como se estivesse mergulhado no mais profundo inferno,
importunado e arrastado pelo diabo segundo a vontade deste. Eis
por que nossos apetites estão em inimizade com Deus; o pecado é
nosso senhor e faz mais estrago quando damos à nossa carne
rédeas soltas. Portanto, o único caminho para sermos realmente
livres é ceder o controle a Deus e à sua justiça.
Entretanto, voltemos ao ponto que tocamos previamente, a
saber, nossa necessidade de abandonar toda impiedade e desejos
mundanos caso queiramos dedicar-nos a Deus. Agora sabemos que
nada se acha em nós senão iniquidade e que Deus não pode
esperar nada bom de nós até que ele nos recrie. De outro modo,
não sabemos o que significa servir a Deus. Podemos pretextar ser
mais ou menos devotos, porém somos confusos e displicentes. Não
temos o menor prazer na verdadeira religião, a menos que Deus nos
recrie e nos transforme totalmente. Quanto aos incrédulos, de fato
parecem ter certo zelo para com a bondade, mas a Escritura não
pode mentir quando descreve os homens como rebeldes contra
Deus, pois vão de encontro à sua vontade, e lançariam de si a
canga, se isso fosse possível. Por que eles confiam nas cerimônias
para impor as coisas, se não escapam da mão do Deus que seria
seu juiz? Se fossem bem sucedidos, seguramente desafiariam toda
a majestade e poriam toda a ordem de ponta cabeça. Assim, até
que Deus nos renove e nos conduza a si, permanecemos tão ímpios
que viveríamos a vida das bestas, sem jamais pensar sobre o reino
do céu ou conhecer o que significa ter sido criado, tão brutos
seríamos nós.
Ora, visto que a impiedade é mais oculta, sendo um mal que
supura interiormente e não é tão visível, Paulo adiciona as palavras
desejos mundanos, os quais dão testemunho do que realmente jaz
em nosso íntimo — nosso desenfreado amor pelo mal. Em vez de
permitirmos que a natureza realize sua obra de guiar-nos a Deus, de
modo que o conheçamos e o contemplemos, somos piores que as
bestas brutas. Pois, embora os animais não possam distinguir entre
certo e errado, permanecem dentro de suas fronteiras e limitações.
Embora obedeçam a seus instintos naturais, ao menos repousam,
uma vez satisfeitas suas necessidades; e, uma vez hajam
descansado, voltam ao trabalho. Quando famintos, ingerem seu
alimento; ou, senão, procuram-no. Entretanto, quão deplorável é o
homem, que tenta ocultar seus instintos e sempre com atitudes
falsas! Somos temerários e impacientes em todas as nossas
carências. Não contentes com o repouso e com o conforto, somos
felizes somente quando semeamos confusão e misturamos céu e
terra. Em suma, visto que vivemos emaranhados no aqui e agora, e
visto que nunca pensamos sobre o reino do céu, não poderíamos
ser mais depravados. Não há em nós sequer uma gota de bondade,
e, como homens cegos, perseguimos nossos próprios interesses.
Estes visam somente a este mundo, enquanto fomos criados para
um fim muito diferente. Nossa sorte seria muitíssimo desditosa se
não pudéssemos ver para além desta terra, onde sofremos tanta
miséria, tanta preocupação, tanta tribulação e tanta angústia.
Os animais irracionais têm uma vida muito melhor. Somente
temem pelo presente, são imunes à preocupação, não se deixam
levar pela ambição e não podem prever a ocorrência de nenhum
dano. Diferentes dos homens, eles não sentem ciúmes uns dos
outros; não se preocupam pelo que porventura aconteça cem anos
depois de sua morte; só têm a ver com o alimento que está diante
deles. Em contrapartida, os homens se atormentam continuamente:
e se Deus nos abandonar, onde estaríamos? O mundo nos cerceia;
é nosso; estamos jungidos a ele — inclusive sepultados nele! Sem
sentido, só pensamos nesta vida transitória. Em consequência,
vemos que, a fim de aproximar-nos de Deus, temos que escapar da
natureza que herdamos de Adão. Acima de tudo, temos de
converter-nos em novas criaturas. Eis por que Paulo primeiramente
declara que devemos renunciar à impiedade e aos desejos
mundanos. Então, ele segue descrevendo o propósito essencial de
tudo isso: vivamos no presente século, sensata, justa e
piedosamente.
Aqui, Paulo faz a vida cristã consistir de três coisas: santidade
ou reverência para com Deus, de modo que ele seja obedecido;
honestidade e probidade para com nossos semelhantes; e decência
e autodisciplina, de modo que não haja em nós indisciplina, mas
sejamos temperantes e castos. Tal é a verdadeira perfeição que
Deus demanda de nós e a qual devemos almejar, caso queiramos
ser beneficiados enquanto passamos por esta vida. É verdade que a
Santa Escritura, como ficou dito, costuma mencionar somente duas
coisas quando ensina o que é a justiça perfeita. Justamente como a
lei inclui duas tábuas, assim a justiça consiste no serviço puro
prestado a Deus e na conduta íntegra e honesta para com nossos
semelhantes. Estas duas coisas são mui suficientes, mas a
autodisciplina ou sobriedade que Paulo descreve forma um terceiro
elemento que está indissoluvelmente vinculado aos outros dois.
Como podemos atingir o descanso espiritual que é requerido de
nós, a menos que a sobriedade prevaleça? Ou, como podemos ser
pacientes em nossas aflições? Previamente, Paulo estabelecera
como princípio básico o serviço a Deus e o amor que devemos ao
nosso semelhante. Todavia, não há contradição no que agora ele
anexa, pois autodisciplina significa que o homem se controla como
se fosse um prisioneiro, de modo que não seja presa de seus
prazeres, mas dominado pela mão Deus, submetendo-se, como
Deus quer, ao seu governo, e não às suas próprias inclinações.
Quando nossos corações são assim obedientes, temos aquela
sobriedade de que Paulo fala. Então vemos que, ao usar estas três
palavras, a intenção de Paulo é mostrar que Deus não nos guia por
desvios e curvas, mas traça para nós uma estrada segura e infalível,
contanto que não nos afastemos dela espontaneamente. Não
devemos ser como os que inventam devoções solenes a fim de
agradar a Deus; eles se dão a grandes lutas, mas termina
resultando em nada. Portanto, mantenhamo-nos na vereda certa,
pois, como Paulo deixa claro, os homens desperdiçam seu tempo
quando se extraviam por meio de sua imaginação. O verdadeiro
descanso espiritual se encontra na certeza de que somente uma
vida governada pela lei de Deus lhe será aceitável.
Concernente à probidade, a palavra implica todas as formas
de conduta íntegra para como nosso semelhante; conduta que nos
leva a uma vida naturalmente honesta e justa, como Jesus Cristo
mesmo declara: “Fazei aos outros somente o que quereis que eles
vos façam” [Mt 7.12]. E, assim, quando tivermos negócios com
nosso próximo, que não haja nenhuma fraude, má vontade ou
crueldade; não devemos recorrer ao furto ou buscar nosso próprio
lucro; não devemos ser motivados por ambição pessoal a fim de
ludibriar outros ou obter deles o melhor. Em vez disso, tentemos
compartilhar com nossos iguais, de modo que ninguém tenha motivo
de queixa contra nós. Especialmente, não busquemos beneficiar-
nos, mas visemos ao que trará benefícios aos demais. Para
descrever a probidade numa palavra, significa dar a cada pessoa o
que é seu por direito. No entanto, a definição de nosso Senhor
Jesus Cristo é ainda mais simples: fazer a todos o que queremos
que eles nos façam.
É claro, podemos argumentar infindavelmente sobre o que nos
cabe fazer. A esse respeito, nenhum de nós necessita de conselho!
De fato, aquele que tem motivo para recorrer à lei buscará
informação sobre como preparar seu processo tão plausivelmente
quanto possível, de modo que possa defender seus direitos com
mais eficácia. Mas não há ninguém, por mais ignorante ou obtuso,
que não tenha perspicácia de dizer: “Isto me pertence!”.
Naturalmente, ele pode não ser capaz de defender seu caso tão
plenamente quanto de explicar todos os seus direitos; mas, em
alguma medida, ele é bem capaz de dizer: “Isto é meu, e estou
sendo esbulhado de meus direitos!”. Por que, pois, somos tão
míopes que fracassamos em manter os direitos de outrem? É
porque somos conspurcados. Sem dúvida, nossas próprias
tendências naturais propiciam nossa falta de probidade. Se alguma
causa geral nos é confiada, a qual não suscita animosidade nem
preconceito, somos bastante rápidos em dizer: “Isto é o que se deve
fazer. Esse é o curso certo a tomar”. Não carecemos de ser grandes
alunos, nem temos de ir às melhores escolas a fim de julgar rápida e
decisivamente quando se põe diante de nós um caso. Mas, quando
ocorre algo que enviesa nosso julgamento, perdemos todo o senso
do que é direito.
Por isso devemos aprender que, para agradar a Deus, temos
de viver com nossos semelhantes, de tal maneira que não demos
nenhum motivo de queixa. Esse é um ponto. No entanto, há muitos
que labutam para agradar a Deus por meio de cerimônias, como no
papado, onde se praticam muitas dessas coisas. Sua intenção é
gratificar a Deus, todavia alguns são dados ao furto; outros, à fraude
ou malícia; enquanto outros ainda se deixam devorar pelo orgulho e
ambição. Muitos querem que se cante uma missa a fim de redimir-
se, mas o que é isso senão mera zombaria de Deus? Não é a uma
trivialidade como essa que Deus nos chama. Ao contrário, devemos
aprender a praticar o que é certo e fazer aquilo que é nosso alvo. Os
verdadeiros frutos que Deus requer e reconhece são estes: que
andemos retamente, assistindo aos que necessitam de nosso
socorro e abstendo-nos de toda injúria e ofensa.
Em adição à probidade há a santidade. E isso está certo, pois
não basta desfrutar da aprovação dos homens e evitar prejudicar
alguém. Deus merece vir em primeiro lugar. Se as esposas, como já
se disse, devem estar sujeitas aos seus esposos, quanto maior, por
comparação, é nosso dever para com Deus! As esposas são
parceiras de seus esposos, contudo devem-lhes respeito como sua
cabeça e também devem humilhar-se. Aqui, todavia, a questão diz
respeito a nosso Senhor Jesus Cristo, que fez conosco um
consórcio espiritual, um que é muito mais sagrado que todos os
consórcios que já foram feitos. Todavia, se traímos nossa palavra
empenhada, se alguns se envolvem em superstição e idolatria,
intrometendo-se ou espojando-se na imundícia papista, o que
diremos? Naturalmente, podem arguir que a ninguém ofendem.
Ninguém talvez aqui em baixo, mas a majestade de Deus é com
isso profanada. Alguém pode objetar: “Eu não furto”. Não obstante,
você tem injuriado a Deus! Paulo diz a mesma coisa [Rm 2.22, 23].
Portanto, temos que olhar para nós mesmos e, quando nos é dito
que devemos viver retamente entre os homens e não causar dano a
ninguém, mas, antes, fazer-lhes o bem, condenar estes míseros
bobos que se ocupam com reles ninharias e que buscam honrar a
Deus com suas infindáveis macaquices.
Tudo isso constitui um terrível equívoco. Por quê? Porque
Deus quer misericórdia, e não sacrifício; ele requer retidão, fé e
juízo, como diz por intermédio de seu profeta e como também
declara nosso Senhor Jesus Cristo [Is 56.1; Os 6.6; Mt 9.13; 12.7;
23.23]. Deus testa se o tememos ou não, vendo se andamos
justamente e vivemos inocentemente uns com os outros. Isso é o
que ele demanda.
Não obstante, Deus mesmo não deve ser ignorado. Devemos
volver-nos para ele e depositar toda a nossa confiança em Jesus
Cristo, em cujo nome devemos sempre invocar a Deus Pai, visto
que a necessidade nos compele e nos arrasta a cada minuto do dia.
Temos de glorificar a Deus, olhando para ele em cada bênção e
certificando-nos de que tiramos proveito de tudo o que nos é
ordenado na primeira tábua, a qual devemos especialmente
guardar. Temos também de seguir o restante, pois a lei de Deus não
pode e não deve ser dividida em duas. Deveras há duas tábuas que
devem ser distinguidas, de modo que saibamos que o serviço de
Deus ocupa o primeiro plano, e que o amor para com os homens lhe
é anexado. Ainda assim, Deus não deu aos judeus uma parte de
sua lei e a outra aos gentios. Ele quis que todos a recebessem, pois
ela é um todo indiviso que ninguém pode licitamente separar. Como
diz a Escritura: “Maldito aquele que não confirmar as palavras desta
lei, não as cumprindo” [Dt 27.26].
É verdade que ninguém pode cumprir tudo o que Deus ordena
— longe disso! E ainda quando Deus nos guia por seu Santo
Espírito, somos sempre impedidos por nossa fraqueza. Não
obstante, devemos fazer da submissão a Deus nosso alvo em todo
o tempo e em todas as coisas, visto que aquele que proibiu a
imoralidade também proibiu o roubo, no dizer de Tiago [Tg 2.11]. A
majestade de Deus é injuriada toda vez que nos entregamos ao
pecado em qualquer forma. Eis por que devemos aprender a
combinar a santidade com a probidade e a honestidade, e a viver
entre os homens sem causar-lhes injúria, ofensa ou violência, para
que a Deus não se neguem seus direitos e nosso culto não deixe de
ser puro. No entanto, não devemos pensar que nós mesmos nos
absolvemos se a esse respeito nossos iguais não nos condenam.
Pois, se diante dos homens ocultarmos nossos verdadeiros egos e
nos envergonharmos de seguir a Jesus Cristo, por sua vez ele nos
negará diante dos anjos do paraíso. Portanto, o corpo e a alma
devem ser dedicados a Deus — devemos estar certos disso. Se
uma mulher pretendesse fazer barganha com uma libertina, ela já
seria considerada imoral. Se um servo não só admitisse que seu
senhor fosse difamado, ou um filho a seu pai, mas também se
juntasse com seus difamadores como cúmplice, o que diríamos de
tal traição? Se nos associamos com os perversos e dissimulamos
de tal maneira que pareçamos aprovar sua impiedade, seguramente
traímos a Deus. Daí, não nos gabemos quando os homens nos
aplaudem ou encobrem nossa impureza. Somos responsáveis por
aquele que nos condenar duas vezes mais, se buscamos mascarar
sua verdade com nossa hipocrisia e fútil impostura. Em suma, isso é
o que este texto tem a ensinar-nos.
Finalmente, há a palavra “sobriedade”. Como já foi dito, isso
não acresce nada de novo à lei de Deus, mas ilustra que sorte de
santidade e retidão se acha implícita. Pois, se nos falta o
autocontrole, não podemos render-nos a Deus quando ele nos
enviar aflições com o fim de nos disciplinar. Se meramente
definhamos sobre a terra, cercados por muitas misérias e
tribulações, acaso seremos capazes de cultuar nosso Deus e louvar
seu nome sem restrição e com a sobriedade de que Paulo fala? Se
corremos às cegas como gado estourado, sentindo paixão pela
dança, por cânticos vulgares e escândalos desse tipo — se tudo
fosse um caos, eu indago, como poderia alguém contentar-se em
viver pacificamente com sua esposa sem pôr em risco o casamento
de outro? Se ocorre a transgressão, se o comportamento dissoluto e
desordenado é tolerado, se houver oportunidade, com certeza
vicejará a embriaguez e o adultério, e a fidelidade e a decência
entre os homens desaparecerão. Haverá uma infindável e livre
competição em que a brutalidade, o furto, a extorsão e o banditismo
correrão à solta. Portanto, o termo “sobriedade”, como a menção
anterior de Paulo à paciência, nada adiciona à lei. A intenção do
apóstolo é simplesmente ver como Deus deve ser obedecido.
Temos de lançar fora tudo o que é supérfluo neste mundo, de modo
que Deus nos guie tranquilamente e nos governe.
A seguir, lemos que, enquanto vivemos vidas puras e sóbrias,
estamos aguardando a bendita esperança e a manifestação da
glória de nosso grande Deus e Salvador Cristo Jesus. Isto é, Deus
nos porá em teste enquanto estivermos aqui na terra. Seu desejo é
ver o que de fato somos. Daí esta vida ser como um contínuo
conflito no qual Deus não nos deixa ociosos, mas nos testa para
darmos prova segura do temor e honra que lhe devemos. Ora, isto é
muitíssimo útil, visto que todos nós, bem o sabemos, nos queixamos
de que Deus não nos dá o que desejamos, mas faz exatamente o
oposto; queremos que ele nos conduza como gostaríamos, e que
cada um seja seu próprio senhor.
Portanto, Paulo declara que durante esta vida transitória é
justo que Deus nos treine para seu serviço e teste nossa atitude
para com ele. Entretanto, com a passagem do tempo, nos
cansamos. Daí sermos ensinados a aguardar a esperança da vinda
de nosso Senhor Jesus Cristo. Se estivermos prontos a servir a
Deus, não devemos preocupar-nos com o atual estado do mundo.
Antes, contemplemos a esperança que nos é dada, a saber, que o
Filho de Deus virá para julgar o mundo. Observemos, pois, em
primeiro lugar, que Deus deseja testar seu povo fiel, permitindo-lhe,
ao longo da vida, que seja atribulado e inquietado e passe por
muitas aflições. Quando ocorrem eventos desfavoráveis, é como se
Deus se esquecesse deles e, aliás, fosse seu inimigo. Entretanto, é
indubitável que ele age com boa razão, para que, por esses meios,
sejamos provados.
Quando nos é dado ouro ou prata, temos que saber se estes
são genuínos; quando ficamos em dúvida, não hesitamos em testá-
los pelo fogo. Acaso nossa fé, no dizer de Pedro, não é mais
preciosa que todos os metais perecíveis que são testados com tal
cuidado [1Pe 1.7]? Em consequência, uma coisa tão nobre como
nossa fé deveria permanecer em admiração a Deus e, assim, ser
bem e verdadeiramente provada. Tal é o propósito das aflições que
Deus nos envia. Ele não quer que busquemos nossa própria
vantagem, mas quer que sirvamos até mesmo os ingratos que, em
troca do bem que tentamos fazer-lhes, nos pagam com o mal. Deus
ordenou eventos desse tipo, e está certo de agir assim. Esta é a
primeira coisa a termos em mente.
Pensemos também na brevidade de nossa vida, para que não
percamos o ânimo, pois sabemos o quanto somos débeis. Até
mesmo os que têm revelado algum desejo de dedicar-se a Deus e
que têm dado poucos passos adiante, pensam que já estão
autorizados a se deter na metade da jornada quando se acham
cansados. “Será sempre assim?”, indagam. Não refletem sobre a
fragilidade de nossa vida. Se alguém tem apenas um curto trajeto a
percorrer, então recobra o ânimo; por mais exausto que se sinta e
por mais fracas que sejam suas pernas, ele coxeia até chegar em
casa. E, mesmo que um homem tenha viajado por dez ou doze dias,
ao aproximar-se de seu destino, ele celebra e se anima a continuar
até o fim. Então, quando vemos que não estamos longe do alvo que
temos de alcançar, por que não nos encorajamos a apressar,
especialmente quando o próprio Espírito Santo nos impele?
Todavia, não basta reconhecer que a vida é curta e fugaz; que
nosso curso logo terminará e que, portanto, não necessitamos
esmorecer. Devemos também contemplar a esperança a que fomos
chamados. Por quê? A razão de não nos dedicarmos arduamente a
Deus é que não vemos para nós mesmos benefício nem lucro
tangível. Se pelo menos Deus estivesse lá para animar-nos! Ora,
Deus não espera que o sirvamos primeiro antes de nos abençoar.
Não obstante, ele não quer tornar nossa vida neste mundo fácil
demais, a ponto de corrermos o risco de cair no sono. Lembremo-
nos do que ele disse, a saber, os que se interessam somente pelas
coisas atuais, já receberam seu galardão [Mt 6.2, 5, 16]. Nosso
Senhor, em contrapartida, nos convida a fixar os olhos no reino do
céu. Esta vida é saturada de muitas angústias e tribulações, que nos
cercam de todos os lados. Os sofrimentos que suportamos são
estocadas da espora pelas quais Deus nos aguilhoa, a fim de atrair-
nos a si, volver nossos pensamentos às coisas celestiais e afastar-
nos deste mundo.
Eis por que Paulo fala, particularmente aqui, da esperança. O
que ele sugere é que não devemos surpreender-nos se os homens
são mais que frios quando se põem a servir a Deus. Essa é a razão
por que seus olhos estão fixados nas coisas terrenas, as quais são
sua única preocupação. Em vez de contemplar a vinda de nosso
Senhor Jesus Cristo, nos desviamos dela; o mundo nos retém em
sua escravidão; fascina-nos com suas seduções e nos lesa de todo
sentido. Aprendamos, pois, que o único modo de servirmos a Deus
é passarmos velozmente por este mundo, cônscios de que ele nos
colocou na terra sob a condição de transitarmos por ela como
estrangeiros e não fazer nela nosso ninho. E, embora ele nos
conceda períodos de descanso, sigamos em frente, enquanto
olhamos para ele e para a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo. É
certo que, até que alcancemos aquele alvo, por maior que nos
pareça ser, tudo dentro de nós é vaidade.
A primeira regra de uma vida bem ordenada é compreender
que Deus não nos proveu de um perene alojamento aqui; ele quer
que o alcancemos na certeza da bendita vinda de nosso Senhor
Jesus Cristo. Então, à palavra “esperança” Paulo anexa “a
manifestação da glória de nosso grande Deus e Salvador Jesus
Cristo”. É como se Paulo dissesse: “Meus amigos, não pretendemos
chegar como que por acaso no reino do céu, na vaga esperança de
que podemos alcançá-lo. Sabemos quem nos fez esta promessa.
Deus é fidedigno, de modo que podemos confiar em sua fidelidade”.
Essa é uma coisa a notar. Quanto ao mais, temos uma firme
certeza e garantia. Como poderia ser de outra maneira? Lembremo-
nos de que nosso Senhor Jesus Cristo veio ao mundo. Acaso é uma
coisa de somenos importância que o Deus eterno redundasse em
nada, assumindo nossa natureza humana e o sofrimento da morte
— uma morte ignominiosa aos olhos dos homens, uma maldição e
condenação à vista de Deus? Assim, o Filho de Deus, a cabeça dos
anjos, a fonte da vida, a imagem viva do Deus a quem pertence toda
a glória e majestade, desceu e se fez um de nós e levou em si todas
as enfermidades, exceto o pecado. De fato, não houve nele mancha
alguma, senão que ele foi sujeito ao calor e ao frio e a todos os
demais sentimentos. Numa palavra, ele assumiu todas as nossas
fraquezas humanas e finalmente foi amaldiçoado por Deus, não por
sua própria conta, mas como o portador de nossos pecados. A
maldição de Deus caiu sobre sua cabeça e ele veio a ser o principal
devedor, a fim de que fôssemos inocentados. Achamos então que
Deus, havendo feito tais coisas, permitirá que sua paixão e morte
sejam infrutíferas, se crermos nele, ou que ele, havendo sido
crucificado e agora estando no céu, nos abandonará, nós que
somos seus membros? Sua morte e paixão se destinam a ter seu
pleno efeito.
Estamos certos de que seremos açoitados por sentimentos de
desconfiança e de que diremos: “Como é possível que isto seja
assim? Não vejo o Filho de Deus: ele está escondido de nós;
contudo sabemos que ele é o Salvador”. Quão sem propósito seria
se ele não aparecesse em sua glória! Sua morte e paixão não
passariam de um empreendimento que ele tivesse insinuado! O que
Deus ganharia alterando o curso da natureza de tal modo que
descesse à terra, assumisse a forma de um pecador — ainda que
pecador ele não fosse — e se manifestasse em carne, se ele se
recusasse a não mais nos conhecer? Por que ele permitiria que tudo
isso lhe escapasse, enquanto não recebeu nenhum benefício?
Abracemos, pois, a salvação que ele adquiriu para nós, de modo
que tenhamos a certeza de que Cristo, nosso Senhor, se
manifestará, ainda que agora não o vejamos. Lembremo-nos
também que Paulo adverte os colossenses a não se admirarem se
hoje definhamos no mundo e nada lucramos servindo a Deus. Pois
os crentes são angustiados quando veem os perversos
prosperando, enquanto eles mesmos são oprimidos com dureza.
Perguntam: “Onde Deus está? Ele se esqueceu de nós?”. Todavia,
Paulo nos aconselha a suportar pacientemente todas as coisas,
porque, como ele diz, nossa vida não está em nós, e sim em nosso
Senhor Jesus Cristo [Cl 3.3].
Agora Jesus Cristo está na glória do Pai até que nos seja
revelado no último dia. Então, diz Paulo, não desmaieis se vossa
vida está oculta e se vos assemelhais a árvores no inverno. Quando
as folhas caem, a floresta parece seca e morta, mas a vida continua
a existir em seu interior. Recebei, pois, a nosso Senhor Jesus Cristo
e confieis plenamente nele, sabendo que vossa vida está
enclausurada na dele. Visto que ele ainda não se revelou,
aguardemos com paciência e não nos atormentemos se temos que
enlanguescer-nos em meio a tanta miséria e aflição.
Paulo, havendo falado desta era atual, em outro lugar
descreve como uma forma fugaz [1Co 7.31], nos reconduzindo ao
nosso Senhor Jesus Cristo e nos exortando a perseverar na
esperança. Portanto, a constância dos crentes está toda na
esperança, pois é a esperança que nutre nossa fé. Qual, pois, a
diferença entre fé e esperança? Pela fé nos aferramos às
promessas, nunca duvidando de que ele as cumprirá. No entanto,
não basta haver crido em Deus de uma vez por todas. A fé deve ser
sustentada constantemente, o que é possível graças à esperança.
Assim, a esperança age como guia da fé, de modo que ela não
fenece como algo que é de caráter temporal — obrigado e sujeito à
decadência; ela persiste até o fim. É verdade que, no ínterim,
teremos muitas batalhas a enfrentar. Devemos lutar se quisermos
manter a esperança, e não desfalecer ou deixá-la escapar.
Podemos muito bem ser desencorajados por tal ensino, se não
formos firmemente convencidos de que, uma vez que Jesus Cristo,
que é nossa vida, ainda tem que se manifestar, então nossa vida
está a salvo e escondida nele; e embora não possamos vê-lo, os
olhos da fé estão abertos. Conhecemos aquele cujas mãos retêm a
fiança que fizemos. Suponhamos que um homem estivesse exposto,
em sua própria casa, ao perigo de fogo, ao ataque hostil ou roubo,
mas tinha um lugar a salvo, em alguma parte, ou tinha um amigo em
quem podia confiar. Se ele lhe desse seu tesouro para mantê-lo a
salvo, não retrocederia sequer um minuto por dia para inspecioná-lo
ou classificá-lo peça por peça; então, descansaria satisfeito. Esse
homem se sentiria feliz em deixar tudo o que possuía nas mãos de
seu amigo, porque mesmo depois de um ano ainda confiaria nele.
Dá-se o mesmo com Deus. Ele vela cuidadosamente por nossa
salvação, a qual, se deixada à nossa guarda, estaria em grande
risco. O diabo logo a arrebataria; Deus, porém, tem seus olhos
postos nela e a mantém a salvo. Ele é seu guardião. Como, pois, se
poderia dizer que o honramos se não depositamos nele a confiança
de que ele a guarda com firmeza e segurança?
Uma pessoa a quem algo é confiado e que fracassa em
protegê-lo é culpado de furto — furto da pior e mais vil espécie, visto
que a confiança foi traída. Portanto, porventura cremos que Deus
pode ser acusado de infidelidade, já que, tendo-se incumbido de
nossa salvação, reiteradamente prometeu concretizá-la? Então,
sempre que formos tentados ao desânimo, ou sempre que nos
sentirmos abatidos e apáticos, aprendamos a contemplar a vinda de
nosso Senhor Jesus Cristo e a confiar na salvação prometida que
estará pronta para nós. É assim que devemos aplicar o ensino de
Paulo.
Notamos que ele fala da “glória do grande Deus e de nosso
Senhor Jesus Cristo”. Ora, é importante não separar Deus Pai e seu
Filho. O apóstolo ensina claramente que Deus se manifestará na
pessoa de nosso Senhor Jesus Cristo, como quando ele diz que
Deus então será tudo em todos [1Co 15.28]. Devemos ser
cuidadosos em não seguir os que têm negado a Deidade de Jesus
Cristo e que pensam nele como algum deus recém-criado. Foi assim
que se deu com aquele odioso homem que foi punido nesta cidade.
Prontamente confessava que Jesus Cristo era Deus, porém
mantinha que ele nem sempre fora Deus, mas assumiu sua
essência divina na criação do mundo; e que Deus o Pai o fez passar
por um “alambique”, como ele o chamava; então, quando nasceu no
mundo, ele apareceu como Deus. Aí você tem uma Deidade
montada às pressas![22] Um grupo de pessoas tem mantido este
ponto de vista, e, como os hereges de outrora, tem se armado com
este versículo: “Oh!”, eles clamam, “Porque aprouve a Deus que,
nele, residisse toda a plenitude” [Cl 1.19]. Tais pessoas, digo, fazem
zombaria da Santa Escritura, pois Paulo insiste que devemos
pensar na majestade de Deus em termos unicamente de Jesus
Cristo. Como ele diz em outro lugar: “Porquanto, nele, habita
corporalmente, toda a plenitude da Divindade” [2.9]. Naquele
versículo, ele usa um termo gráfico com o intuito de ajudar-nos a
entender mais facilmente a essência infinita que está em Deus,[23] e
tornar nossa ingratidão mais aversiva caso imaginemos Deus como
sendo outro além do que ele é em Jesus Cristo.
Em consequência, Paulo declara que, na vinda de Cristo, nós
veremos a Deus em toda sua grandeza. Mas, por que ele fala da
grandeza de Deus? Porque, no presente, ela é diminuída por nossa
ignorância e nossa falta de confiança. É para vergonha nossa que
somos tão estúpidos! De fato, com nossos lábios declaramos
prontamente que Deus é grande, incompreensível e tão elevado que
confunde todo pensamento. Temos prazer em confessar isso;
contudo, em todo tempo o tratamos com desdém. Ninguém confia
nele; e ele não pode arrancar de nós obediência nenhuma que
honre sua majestade. Os homens ignoram seu reino celestial e se
aferram ardentemente à menor chance de lucro pessoal. Desafiam
abertamente a Deus e não levam em conta suas promessas no
evangelho. Em suma, os homens são tão obstinados que só querem
rebaixar a Deus, e se não fôssemos tão complacentes, veríamos
que toda nossa vida tende a isso.
Assim, até que Deus nos atraia a si, nossa natureza busca
somente depreciar sua glória e, aliás, se tal fosse possível, até
extingui-la completamente. Mas, diz Paulo, se cessarmos de cuidar
das coisas atuais e de entreter outros motivos mundanos, veremos
a grandeza de Deus. Não que Deus em si se fará maior, pois bem
sabemos que ele, em si mesmo, não aumenta nem diminui: significa
apenas que o veremos com olhos diferentes. Então, asseguremo-
nos de que nenhum de nós seja envergonhado. Quanto aos
perversos, certamente o contemplarão a despeito deles mesmos, e
não verão nenhum outro Deus grande além daquele que é o nosso
Redentor, Jesus Cristo. Porque, como notamos no versículo já
citado, ele se acha tão unido a Deus Pai que nele habita toda a
plenitude da Divindade. Seja como for, os perversos e os réprobos
contemplarão este grande Deus e se sentirão totalmente perdidos.
De nossa parte, resolvamos contemplar a grandeza de Deus pela fé.
Os homens dificilmente não tentarão obliterá-la e em sua arrogância
desafiarão a Deus, ridicularizarão seu evangelho e de tal modo
proclamarão seus sucessos que, em comparação, os que andam
em mansidão parecerão como nada. Haverá hipócritas que
dissimulam e buscam tão somente encobrir a glória de Deus. Muito
embora vejamos tais coisas, não obstante devemos atentar com os
olhos espirituais da fé na grandeza que está em Deus, até que, por
fim, o vejamos face a face e sejamos transformados naquela glória
da qual já portamos algum vestígio, visto que Deus reina em nós
mediante seu Santo Espírito. Esse é o teor desta passagem.
Consideraremos o restante em uma oportunidade posterior.

Oração
Agora, prostremo-nos diante da face de nosso bom Deus,
reconhecendo nossos erros e rogando-lhe que no-los faça sentir
mais intensamente; e, ao senti-los, de tal modo os odiemos que nos
acheguemos a ele ainda mais e cresçamos em seu temor.
Aprendamos a livrar-nos deste mundo e dos muitos embaraços que
impedem nossa obediência. Fixemos sempre nossos olhos em
Jesus Cristo, sabendo que, quando ele se manifestou uma vez para
se oferecer em sacrifício, assim também virá com todos os
benefícios de sua morte e paixão, tomando-nos para si e
confirmando a salvação que nos é revelada nele, para que ela se
cumpra em nós, que somos membros de seu corpo.
14. O MANDATO DO PREGADOR [Tito 2.15-3.2]
Dize estas coisas; exorta e repreende também com toda a
autoridade. Ninguém te despreze. Lembra-lhes que se sujeitem aos
que governam, às autoridades; sejam obedientes, estejam prontos
para toda boa obra, não difamem a ninguém; nem sejam
altercadores, mas cordatos, dando provas de toda cortesia, para
com todos os homens.

Já vimos por que o Filho de Deus se entregou à morte para nossa


redenção. Foi para assegurar que seríamos um povo separado e
santificado. Porque, visto que ele nos resgatou da escravidão a
Satanás, é próprio que honremos ao nosso Redentor, perseguindo a
justiça que ele revelou a nós. Todavia, visto que esta doutrina
parece muito geral e visto que as pessoas prefeririam muito mais
ouvir o que lhes agrada, Paulo nos exorta com toda veemência com
o intuito de realçar este ponto. Se havemos de servir à igreja de
Deus, devemos exortar todos os que com tamanho custo foram
redimidos a que se devotem à prática do bem; e, uma vez que
tenham sido ensinados, devemos estimulá-los e admoestá-los.
Não basta simplesmente ensinar, a menos que haja também
acicate a despertar os retardatários. Paulo chega a dizer que
devemos repreender os que erram, e repreendê-los severamente.
Visto que há muitos que escarnecem da Palavra de Deus, ele
requer que os pregadores proclamem-na com autoridade, a fim de
mostrar a que Senhor eles servem e em nome de quem eles falam.
Devem envidar todo esforço para ver que sejam ouvidos com todo
respeito e humildade. Aí temos o primeiro tema de Paulo. Ele segue
discutindo nosso dever de obedecer aos magistrados e de
comportar-nos pacificamente. Os que se chamam crentes devem
mostrar moderação; devem não só refrear-se de todo dano e
agressão, mas devem suportar o sofrimento com paciência; devem
também dar o melhor que puderem para manter a harmonia e a
fraternidade entre si. Nem devem importunar os incrédulos, mas
tentar ganhá-los com gentileza. Isso é o que Paulo ensina em
segundo lugar.
Ora, como já dissemos, nada disso é supérfluo. A intenção de
Paulo é reforçar os pontos que elaborara previamente. Nós nos
entediamos logo, se não nos disserem algo novo. Chegamos a crer
que desperdiçamos nosso tempo se não houver algo que instigue
coceira em nossos ouvidos e se todas as novidades que ouvimos
não passam de conto de fada. Contudo, ignoramos o fato de que
necessitamos manter na mente nosso dever, pois não podemos
demonstrar que conhecemos a vontade de Deus até que reajamos a
ele e, assim, mostremos que já fizemos boa proficiência na escola
de Cristo. Sabe-se muito bem que, ainda que instados a fazer a
mesma coisa vez após vez, não prestamos atenção. Se fôssemos
deixados nesse estado, o que ganharíamos por haver repetido a
Palavra de Deus três ou mesmo dez vezes mais? Daí, visto que os
homens são desordenadamente inclinados a receber de bom grado
um amontoado de conversação inútil, Paulo os traz de volta às
coisas que realmente edificam.
Então, ele se volta aos pastores cuja tarefa é guiar a igreja,
dizendo: “Eles não têm nada a ver com especulação fútil. Deus
espera que sua Palavra seja proveitosa e sirva a um propósito”.
Como isso pode ser feito? Lembrando cada indivíduo de seu dever,
de modo que, quando tivermos aprendido a graça que Deus tem
para nós e as riquezas de sua mercê manifestas em nosso Senhor
Jesus Cristo, olhemos para nós mesmos, a fim de que, em nossa
ingratidão, não sepultemos a memória de redenção. Ao vivermos
vidas que são boas e santas provaremos que somos o povo de
Deus e membros de sua família, visto que a ele agradou adotar-nos.
Reitero que não basta que os incumbidos do ensino façam isso e
nada mais. Cada pessoa que vai à igreja deve aprender a aceitar
tudo o que é para seu bem. O mesmo se aplica quando lemos a
Santa Escritura. Em suma, sempre que ouvirmos o que Deus fez a
nosso favor, devemos lembrar-nos de sua infinita bondade para
conosco e, por nossa vez, deixar-nos estimular a honrá-lo e servi-lo.
Em consequência, Paulo requer que o ensino seja seguido de
exortação. A palavra “exortar” significa que temos de ser
despertados de nossa letargia, pois sabemos que, se a Escritura for
meramente explanada, ela fenece e não somos atingidos até o
âmago. A menos que o ensino seja corroborado por meio de
exortação, ele é frio e não consegue traspassar o coração; no
entanto, quando há exortação, refletimos mais seriamente sobre nós
mesmos.
Há três tipos de exortação. Em primeiro lugar, devemos
repreender os que são tão displicentes que, mesmo quando os
pressionamos com firmeza, não se comovem. Portanto, tais
pessoas devem ser ameaçadas com o juízo de Deus e claramente
instruídas de que Deus punirá os que escarnecem de sua Palavra.
Devemos tratá-las de tal modo que consigam ver o poder e a
autoridade da doutrina que têm desprezado.
Em segundo lugar, notamos que, muito embora exista em nós
o temor de Deus, não basta que queiramos ouvir e aprender o que a
Escritura contém; devemos também estar abertos ao ensino e ser
bastante mansos para aceitar os castigos que nos estão reservados.
Por mais duros e rudes que eles possam ser, já que não podemos
ser atraídos a Deus de outro modo, não devemos tornar-nos
impertinentes ou mal-humorados. Se os homens nos irritarem e nos
tratarem mais severamente do que gostaríamos, não devemos
volver-nos contra a sã doutrina ou permitir que ela seja escarnecida.
Devemos continuar conservando o que Deus sabe ser-nos melhor.
Naturalmente, é possível que nos queixemos: “Olhem aqui, não
basta que tenhamos vindo para ser ensinados? Cada um pode
decidir consigo mesmo como se comportar. Não é certo que
devamos ser instados e açulados pela força. Esse não é o caminho
certo”. Dizemos, porém, que isso seria resistir a Deus, não aos
homens! Assim, os que dizem tais coisas mostram que nunca
olharam honestamente para suas consciências com o fim de
descobrir o que está ali. Aquele que realmente se conhece entende
que Deus espera, com razão, que sejamos, respectivamente,
exortados e repreendidos por sua Palavra.
Diga-me, alguém pode conhecer a si mesmo melhor do que é
conhecido por Deus? Nada vemos com clareza, muito menos os
nossos pecados, como João enfatiza [1Jo 1.8, 10]. Deus tem deles
uma visão muito mais clara: pois, a cada pecado que é de nosso
conhecimento, Deus conhece cem! Ora, uma vez que Deus o vê,
quando tivermos aprendido as coisas que nos são boas, quando de
fato tiverem sido bem discutidas entre nós a ponto de serem
totalmente familiares, ainda não será suficiente. Temos de ser
aguilhoados por exortações fortes e vigorosas; e também
repreendidos, como se tivéssemos enfermidade oculta. Visto que
nossas doenças costumam ser secretas, necessitamos que Deus
intervenha e esquadrinhe até a própria medula de nossos ossos.
Como o apóstolo escreve na carta aos Hebreus: “Porque a palavra
de Deus é viva, e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de
dois gumes, e penetra até o ponto de dividir alma e espírito, juntas e
medulas, e é apta para discernir os pensamentos e os propósitos do
coração” [Hb 4.12]. Visto que temos uma Palavra de Deus tão clara,
por que resistir ainda mais? Se o fizermos, esse é um sinal seguro,
como eu já disse, de que nunca pensamos seriamente sobre nós
mesmos, mas fechamos nossos olhos aos nossos sentimentos e
somos como os hipócritas, só pedindo que haja condescendência
para conosco. Portanto, deveríamos atentar bem para as palavras
de Paulo. A Palavra de Deus nos é dada para guiar nossos passos.
Além disso, não basta que nos mostrem a vereda adiante de
nós, pois somos indolentes e displicentes, e inclusive nossas boas
intenções logo se esfriam. Em consequência, precisamos ser
atraídos pela exortação, de modo que, se acontecer de voltarmos as
costas a Deus ou nos desviarmos em algum ponto, há este segundo
remédio que acabamos de descrever.
Agora temos de mencionar um terceiro remédio. É quando
Deus nos ensina por meio de ameaças a dobrar nossa cerviz em
submissão a ele. Eis como sua Palavra é mais bem usada, e
também por que devemos atentar paras os sermões e ler a Santa
Escritura. Desta maneira aprendemos o que Deus tem a ensinar-
nos, de modo que somos motivados a obedecer-lhe. Entretanto,
caso isso não baste, devemos ser dissecados em nosso íntimo e
passar a detestar-nos. Em suma, ninguém deve permitir-se cair no
sono e, se isso ocorrer, que consinta em ser despertado. É isso que
temos de nos lembrar aqui.
Quando Paulo diz a Tito que fizesse tudo isso com autoridade
ou comando, percebemos que não há como conceber um Mestre
tão poderoso quanto Deus. Todavia, há muitos, como vemos hoje,
que são francamente rebeldes. Alegam com muita certeza que são
cristãos, mas, se a Palavra de Deus lhes é pregada, querem que
Deus se acomode a eles e se vergue à vontade deles. Poderíamos
queixar-nos deles diversas vezes antes que digam sequer uma
palavra. Quem eles pensam que são? Supondo que fossem
governantes, ou, ainda mais, tudo o que o mundo considera
grandeza, eles têm de encurvar-se diante da soberana majestade
de Deus. Não obstante, quando esses patifes vagabundos
cometerem erro, não podem enfrentar uma palavra afiada de
ninguém. Dizem: “Isso não cabe a vocês ordenar!”. Então, tampouco
cabe a Deus, pois ele nos designou para proclamar sua Palavra!
Como fazemos isso? Por meio de súplica, de avisos e dos meios
mais brandos, mas que não exclua o exercício da autoridade.
Devemos demonstrar que nossa palavra procede daquele diante de
quem todo joelho se dobrará e a quem toda criatura renderá humilde
obediência. Fora, pois, com os que não podem suportar que a
Palavra de Deus lhes seja pregada com toda autoridade e comando!
Que inventem um evangelho diferente! Atentemos bem para o que
Deus nos diz aqui, sabendo que ninguém pode ensinar
propriamente a Palavra de Deus, a menos que falem
imperativamente, como que dizendo: “Isto é assim. É dessa maneira
que devemos seguir em frente”.
Temos um Mestre que não suportará o escárnio dos homens.
Eu mesmo não estou aqui por minha própria conta. Nada declaro
por mim mesmo. Nada adiciono que seja meu. Quando falo, faço-o
em nome de Deus. Portanto, por mais que os homens objetem,
todos se submeterão; todo orgulho será abatido; nenhuma criatura
erguerá a cabeça ou olhará com olhar desafiante para aquele a
quem grandes e pequenos obedecerão. Eis por que Paulo anexa a
palavra “comando” ou “autoridade”. Ora, se esta verdade realmente
estiver estampada em nós, então nos beneficiaremos muito mais da
Palavra de Deus. Por que, pois, após ouvirmos muitos sermões
continuaremos sempre como estamos? É porque não vemos que
nosso Senhor Jesus Cristo está a nos chamar a si a fim de o
honremos como ele merece; não meramente em nossas cerimônias
externas, mas com a nossa própria vida; e que ele domine nossos
sentimentos e mantenha cativos todos os nossos pensamentos,
respectivamente, com a mente e a vontade sob seu controle. Se nós
víssemos isso, decerto nunca ouviríamos sequer uma palavra da
Santa Escritura que não nos fizesse bem. Como é, achegamo-nos à
Escritura como bestas mudas, e nosso Senhor nos dispensa
precisamente como éramos antes — isso é bem merecido. Então,
aprendamos que, quando Deus quiser que sua Palavra seja
proclamada com autoridade, vamos com reverência, humilhando-
nos diante dele a fim de receber sem contestação tudo o que ele
nos diz. E aferremo-nos à sua própria Palavra a ponto de mostrar
que estamos dispostos quando nos apropriarmos dele como nosso
Deus e Pai.
Neste ponto, o apóstolo diz a Tito: Ninguém te despreze.
Embora seja a Tito que ele fala, as palavras de Paulo dizem respeito
a toda a igreja, à qual ele diz: “Assegura-te de que a palavra que
portas não seja tida em desprezo”. Não podemos fazer isso em
nosso próprio poder, pois há muitos que não suportam correção.
Quanto mais são ensinados — quanto mais tentamos todos os
meios dados por Deus para chamá-los de volta —, mais
empedernidos ficam e piores se tornam. A experiência nos mostra
isso. Não obstante, devemos demonstrar sempre, com autoridade,
que fomos enviados por Deus. Como Paulo diz quando desafia os
arrogantes que são surdos a todas as ameaças: “Mesmo assim,
temos a espada já preparada para exercer vingança sobre todos os
que nos rejeitam e que não têm obedecido ao nosso ensino” [2Co
10.5, 6]. Paulo não está se referindo a uma espada material; ele tem
em mente que Deus não permitirá que sua Palavra seja rejeitada
desta forma. Então ele fala de uma espada que retemos em nossas
mãos. Por quê? Porque devemos ser julgados pela Palavra de
Deus. Ainda que hoje a ignoremos, no último dia haveremos de
sentir seu poder. Daí Paulo, com boa razão, advertir Tito de que não
deveria permitir que alguém o desprezasse. Com efeito, ele lhe diz:
“Se os que te rodeiam são rebeldes, e se não podes controlá-los,
por mais que mostres que falas como emissário de Deus e em seu
nome, se persistirem zombando de ti e seguindo em frente como
antes, deves continuar lembrando-os da maldição que a impiedade
deles aguarda”. É isso, reitero, que se espera de nós.
No ínterim, a lição geral para todos os cristãos, como eu já
disse, é que devemos fazer bom uso da Palavra de Deus,
mostrando tal respeito que tudo o que nos é dito seja recebido, por
assim dizer, com tremor. É verdade que a Palavra de Deus deve
ser-nos doce e deleitosa; contudo, devemos também ter aquele
temor de que fala o profeta: “Repousará sobre ele o Espírito do
S , o Espírito de sabedoria e de entendimento e de temor do
S ” [Is 11.2]. Portanto, que todos nós sejamos cuidadosos em
não mostrar desdém. Não há melhor maneira de mostrar quão
desesperançados somos do que ridicularizando o que nos é
ensinado no nome de Deus e, acima de tudo, opondo-nos àqueles
que foram designados ministros de sua Palavra. Contudo, quantos
há que meramente sacodem a cabeça ante o que lhes é anunciado
nos sermões! Sentem que, quando os ministros falam, ouvir é um
esforço por demais difícil, tão longe estão de crer no que ouvem e
de obedecerem. Hoje em dia, esta sorte de coisa é muitíssimo
comum. O que, pois, devemos fazer, senão reconhecer tal
majestade na Palavra de Deus, para respeitarmos os que a
ensinam, de modo que ninguém rejeite o que lhes é dito? Pois todos
os que desprezam nosso ensino — ensino proclamado em nome de
Deus — descobrirão que não batalham contra homens, mas contra
Deus, que finalmente se manifestará do lado oposto, visto que eles
têm combatido a sua Palavra.
Passamos agora ao segundo tema principal, o qual Paulo
discute aqui. Ele insta os cristãos a que se sujeitem aos que
governam, às autoridades e obedeçam aos magistrados. A primeira
coisa a notar é quão difícil era governar os judeus. Eram sempre
sediciosos por natureza; e, visto que Deus, segundo sua promessa,
os escolhera para serem seu povo e sua herança, sentiam-se
injuriados se forçados a submeterem-se aos governantes
incrédulos. Vemos, em contrapartida, que arrogância há em todos
os homens, de modo que nada os irrita mais do que se submeter a
outrem. Entretanto, no ínterim, são totalmente adeptos do uso de
todas as promessas de Deus como uma escusa conveniente. Pois
quando a Escritura os chama “herdeiros do mundo”, “filhos de Deus”
e “sacerdócio real”, muitos se assenhoreiam dessas coisas para
seus próprios fins, como se fossem isentos de toda servidão. Dizem:
“Espere, que bem existe que Deus nos haja escolhido como seus
filhos e fizesse de nós sacerdotes e reis, se temos de manter uma
relação mais estreita e uma rédea mais curta?”. Portanto, os crentes
devem ser advertidos de que, muito embora Deus os haja soerguido
a tal posição de honra, isso não visa a esta presente vida. Em vez
disso, devemos contentar-nos com o reino espiritual de nosso
Senhor Jesus Cristo, sabendo que eles já foram libertados da
escravidão a Satanás e dos laços do pecado e da morte, e que
agora estão livres para desfrutar a herança que lhes foi preparada
no céu. Esse é o teor da exortação de Paulo aqui.
Hoje, embora não tenhamos o mesmo motivo como os judeus
tiveram de recusar toda submissão, este erro é tão profundamente
radicado em todas as nossas mentes, que é bom que sejamos
refreados e domados. Pois, se nosso Senhor não deixasse claro
que esta tinha de ser nossa sorte, jamais aceitaríamos ser
governados por alguém, como a experiência nos comprova
amplamente. Essa também é a razão por que têm ocorrido entre os
homens tantas revoluções, que têm raciocinado desta maneira: “Eu
tenho que me submeter a este ou àquele? Não somos todos filhos
de Adão? Não saímos todos da arca de Noé?”. Essas constituem o
tipo de ideias levianas que bem poderiam pôr em risco todo governo
sobre a terra! Ou, mais, os homens têm ensinado isto a si mesmos:
“Este homem é mais importante do que eu? Por que devo submeter-
me a ele? Ele deveria ser inferior a mim. Isso não está certo!”.
Quando pensamos desta forma sobre as pessoas, sempre achamos
boas razões para resistir. No entanto, uma vez entendamos
plenamente a tese de Paulo — de que o governo não existe para
adequar-se aos caprichos dos homens; que deriva de Deus e que
os soberanos não governam por acaso, mas pela determinação
divina — uma vez seja isso entendido, a menos que queiramos
fazer guerra contra Deus, só podemos escolher uma vida tranquila,
como Paulo declara no décimo terceiro capítulo de Romanos [Rm
13.1, 2]. À luz do texto de Paulo, aprendamos todos que, embora
Deus nos tenha adotado como seus filhos, nesta vida fugaz isso
nunca pode ser pretexto para que cada um seja seu próprio senhor
e não se submeta a mais ninguém. Devemos contentar-nos com o
fato de que Deus é nosso Pai e que aguardamos em esperança pela
herança que ainda está oculta de nós. Até que sejamos tirados
deste mundo, esperamos por ela com paciência.
No ínterim, que cada um se contente com seu próprio estado
inferior. Que os que são pobres, de condição humilde ou ultrajados à
vista do mundo, não busquem ser exaltados; que cada um aceite de
bom grado todas as providências que Deus preparar para eles. Que
os servos obedeçam aos seus senhores e à pessoa de seus
magistrados e a todos os que ministram justiça. Estejamos certos de
que tal serviço é aceitável a Deus. É verdade que aqueles que têm
sido elevados à honra não devem exercer sobre os demais um
senhorio orgulhoso, pois haverão de responder a Deus se abusarem
de seus poderes. O mesmo vale para o rico que intimida seus
irmãos e os oprime cruelmente. Os magistrados, igualmente, que
ultrapassam o marco e que não são, como a Escritura os chama,
verdadeiros pastores do povo [Is 56.11; 63.11], finalmente
compreenderão que são apenas como os demais homens. Como
reza o Salmo, foram representantes de Deus por certo tempo [Sl
82.1, 6], mas descobrirão que não passavam de vermes. Pois, uma
vez despidos daquela elevada condição que ofuscou seus olhos,
terminarão em putrefação, pois Deus não lhes permitirá que se
exaltem sobre seus irmãos.
Seja como for, que todos os cristãos, sem distinção, aprendam
que Deus não os fez reis e sacerdotes para que, neste mundo, a
realeza e o sacerdócio sejam para usufruto deles. Devemos
aguardar em esperança estas benesses espirituais. Quanto ao mais,
no que diz respeito ao mundo, devem permitir que Deus os guie
como ovelhas e que andem com toda a sinceridade do coração.
Porque, como eu já disse, enquanto atentarmos somente para os
homens, sempre seremos assaltados por preocupação, temos
disposições tão irrequietas, que pouco se faz necessário para
exasperar-nos e fazer-nos lançar fora todo freio e canga.
Portanto, voltemos à injunção de Paulo aqui. Quando nos
ordena que se nos submetamos aos poderes e autoridades, ele não
fala em seu próprio nome, e sim no de Deus. Ele provê uma
explanação mais detalhada no texto já mencionado, o décimo
terceiro capítulo de Romanos. Ele argumenta que todos os poderes
estão fundados na verdade de Deus, porque ele deseja que toda a
humanidade seja governada por um governo bom e ordeiro, e
deseja mostrar que, por sua própria mão, por assim dizer, ele
colocou homens com autoridade e na cadeira da justiça. É
prerrogativa de Deus outorgar a espada e também desatar a espada
do cinto, como quando humilha os que antes empunhavam a
espada da justiça. Ele lançará abaixo os que se elevaram a grandes
alturas. Então, que nos fique bem claro: não mais nos enganemos
com nossas especulações fúteis: “Por que devo obediência àquele
homem? Por que devo ser-lhe inferior? Por que ele deve dominar
sobre mim?”. Contra todos os nossos protestos, Deus tem uma
espada voltada para nossas escusas e nossos estratagemas: esse
é o seu beneplácito. Não nos cabe argumentar contra isso, uma vez
que Deus nos persuadiu desta verdade. É isso que Paulo quer que
compreendamos.
Então se segue que somos grandemente fortalecidos em
nossa esperança da vida eterna se, neste mundo, as coisas não
saem como desejamos. Como seria se todos nós fôssemos
pequenos príncipes? Para nós não haveria outro paraíso; a terra
nos sustentaria e o céu nada significaria para nós. No entanto,
quando o Senhor nos guia através deste mundo, de tal modo que
parecemos desprezíveis e inferiores aos demais, somos instados a
olhar para o alto com os olhos da fé e a aguardar pelo que ainda
está por vir. Ora, aos cristãos se ordenou solenemente que
obedecessem aos governantes e autoridades, num tempo em que
os que portavam a espada da justiça eram incrédulos e inimigos de
Deus. Nós, por contraste, somos privilegiados em ter os que
governam sobre nós como herdeiros conosco da herança celestial.
Visto que eles exercem a mesma fé que nós, temos ainda mais
razão para obedecer-lhes e muito menos escusa se nos rebelamos
contra eles. Se fôssemos governados pelos turcos, tiranos ou
oponentes mortais do evangelho, ainda teríamos a ordem de
submeter-nos a eles. Por quê? Porque essa é a vontade de Deus.
Ora, se todos partilhamos da mesma fé, acaso não estamos
duplamente errados se não obedecermos ou consentirmos em viver
tranquilamente sob a canga de Deus, a despeito do grande amor
que ele tem para conosco?
Em todo caso, esta deve ser a regra invariável para todos nós:
resistimos a Deus se não pudermos suportar ser governados por
qualquer governo que ele tenha estabelecido neste mundo. Pois
Paulo fala não só de submissão, mas também de obediência
voluntária. Às vezes, como bem sabemos, os homens não resistem
ativamente porque é impossível, ou inútil, ou, pior, por medo do
perigo. No entanto, o apóstolo avança mais, insistindo que devemos
obedecer. A palavra que ele usa implica, como eu já disse,
obediência voluntária, conforme lemos em Romanos: “É necessário
que estejais sujeitos, não somente por causa do temor da punição,
mas também por dever de consciência” [Rm 13.5]. E qual a razão?
Porque, embora os magistrados nada tenham que mereça honra ou
obediência, a cadeira que ocupam foi ordenada por Deus. Portanto,
resistência não é algo que os injuria; ao contrário, injuria aquele que
os pôs ali e que deseja que sua imagem resplandeça neles.
Lembremo-nos, pois, que não só se requer de nós a submissão,
devemos também, de nossa parte, assegurar-nos de que se
preserve a ordem estabelecida por Deus na terra; que ninguém
inveje os que são maiores e que foram elevados a um lugar de
distinção.
Se você perguntar por que, a resposta é que resistimos a
Deus sempre que incitamos problema e sedição. Agimos da mesma
forma quando não podem obedecer sinceramente, dizendo: “A
humildade é um sacrifício que Deus demanda de mim. Não me
exaltarei, e creio que mereço mais que qualquer outro, de modo que
ele deve obedecer a mim, e não eu a ele”. Deveríamos, reitero, agir
assim com todas essas coisas, sabendo que a vontade de Deus é
que eu, em mim mesmo, nada seja, senão que devo conservar-me
humilde e abandonar toda altivez e orgulho, pois essa atitude pode
ajudar-me a seguir em frente. Até que alcancemos esse ponto,
somos obrigados a suportar dolorosa tribulação; e, ainda quando
pareçamos bastante calmos, não rejeitando toda submissão,
seguramente estaremos indispostos. É importante lembrar, pois, que
os cristãos não devem esperar até que sejam compelidos pela força
a se submeter aos magistrados. Devem se submeter conscientes de
que Deus deseja testar nossa humildade, vendo quão prontamente
nos sujeitamos ao poder dos homens. Pois o poder foi ordenado por
Deus, e ele retém o domínio soberano. Quando obedecemos aos
homens que governam em concordância com sua vontade, então
obedecemos àquele que primeiramente os designou.
Entretanto, sejamos cônscios de que Deus algumas vezes
levantará indivíduos que são indignos de qualquer honra. Por quê?
Ele quer mortificar-nos; porque, se o obedecêssemos como
deveríamos, ele nos faria dispostos a deixar-nos governar por ele e
a aceitar sua autoridade sobre nós. Os que exercem justiça entre
nós devem ser tidos como pequenos anjos; os reis e governantes
deste mundo já não nos oprimiriam com sua tirania e orgulho e
refletiriam esplendorosamente a imagem de Deus. No entanto,
sucede que empurramos Deus para longe de nós; razão por que ele
tem de se esquivar e retirar sua bênção, deixando que nos
governem homens que pervertem todo o direito e equidade. Este é
um sinal de que Deus removeu para longe de nós sua graça, visto
que, por conta de nossa desobediência, não podemos suportar viver
sob sua proteção.
Seja como for, devemos retroceder ao ponto de que nosso
Senhor bem sabe o que nos ajusta melhor. Uma vez que isso é
assim, que todos nós vejamos bem que nos mantenhamos dentro
de nossos limites. Que o pobre curve a cerviz e saiba que Deus quis
que ele fosse subserviente. É isso que mostramos, a saber, que de
fato somos o rebanho de Deus; que não somos animais irracionais
nem tão duros de manejar que nos recusamos a permitir que ele
nos guie como lhe apraz. Que ele de tal modo nos trate, que
suportemos nossa sorte com paciência, por mais humilde e por mais
desprezível aos olhos do mundo que ela seja.
A tudo isso Paulo anexa um requerimento adicional: estejam
prontos para toda boa obra. Em outras palavras, os que não podem
conduzir-se à obediência aos magistrados só buscam problema e
confusão. Esta é a inferência a ser extraída da ordem que Deus
determinou para o mundo. Por que, além do mais, temos reis,
governantes, magistrados e juízes? É assim que os homens não
devoram uns aos outros como gatos e cães; é assim que a justiça
pode prevalecer, de modo que os mais fortes não consigam seu
próprio caminho; de modo que os pobres e humildes não sejam
calcados aos pés e sejam devorados. Eis por que a ordem da justiça
foi estabelecida. Não se pode negar que algumas vezes os
incumbidos dessa responsabilidade nem sempre cumprem seu
dever: pode ser que oprimam os bons e protejam os perversos. Não
obstante, ter alguma forma de governo sempre faz parte de nossos
interesses. Suponhamos que haja males seríssimos, como às vezes
é o caso — queira Deus que não vejamos tal coisa à mão! E
suponhamos que haja tiranos, indivíduos trapaceiros, líderes que se
deixam impregnar com perversidade, que pervertem a religião e cuja
cupidez não conhece limites. Mesmo assim, é melhor ter um mau
governo do que não ter absolutamente nenhum. Pois se não
existisse nenhum, ah!, que seria de nós? Seria preferível que
desaparecêssemos num abismo sem fundo!
Em consequência, se estamos prontos para todas as boas
obras, daremos boas-vindas à ordem civil e só buscaremos
obedecer aos magistrados. Nesta passagem, contudo, Paulo tem
algo mais em mente. Havendo indicado o dever que temos para
com nossos superiores, ele nos informa que temos responsabilidade
não só para com eles, mas também para com os menos
importantes. Nosso dever é reconhecer o laço natural que de tal
modo nos ata aos homens, que ninguém pode dizer: “Não devo
nada a este ou àquele homem. De outro modo, eu me excluiria de
toda a sociedade humana!”. E assim todos nós devemos ser
criteriosos em ver que exerçamos nossa parte, e façamos
continuamente o que pudermos em prol de nossos semelhantes.
Daí a regra geral que Paulo estabelece: devemos estar prontos para
toda a boa obra.
Ele continua a explicar como isto deve ser feito: não difamem
a ninguém nem sejam altercadores. Em vez disso, devemos ser
imparciais e de comportamento brando; em suma, devemos mostrar
que queremos viver retamente e ser gentis a todos. Observemos,
em primeiro lugar — e isso deve ser suficiente como nossa
conclusão — que estar pronto para todas as boas obras equivale a
manter a amizade com os que estão juntos de nós por aquele santo
e inquebrável vínculo do qual já falei. É ultrajante quando um
homem quer que os demais admirem suas virtudes, no entanto não
se poupa de pensar o pior dos demais. Nosso Senhor não quer
nada disso. A principal virtude que ele espera de nós é que façamos
nosso melhor, cultivando a paz e a harmonia, de modo que
demonstremos que queremos que todos os homens sirvam a Deus
com um só consenso. Como, pois, podemos viver pacificamente
entre nós mesmos? Suportando-nos uns aos outros.
Com certeza sempre temos falhas e imperfeições em nosso
íntimo; quando vemos Satanás inventando seus ardis para semear
discórdia entre nós e, assim, abater-nos, certifiquemo-nos de que
não temos para com ele nenhuma obrigação. Pratiquemos a
paciência e não promovamos lutas sempre que formos tentados a
cometer erro; ao contrário, que tenhamos sempre em mãos esta
consideração: A menos que estejamos dispostos a suportar muitas
ofensas, teremos motivo de volver-nos para a mágoa e para sentir-
nos irritados, para perder a cabeça e começar hostilidade. Em
essência, Paulo nos ensina que, para estarmos prontos para toda a
boa obra, não devemos buscar nossos próprios interesses como
naturalmente costumamos fazer, mas que devemos tratar nossos
semelhantes com tolerância, de modo que, quando aborrecidos,
sejamos capazes de suprimir todos os pensamentos impulsivos e
agressivos. Se sofrermos dano, refreemo-nos daquela extrema
severidade que pedimos apenas para ser vingados. Este é o modo
de manter a paz, como aqui somos ensinados a fazer.
O apóstolo ainda não concluiu, pois ele acrescenta: mas
cordatos, dando provas de toda cortesia [ou, que mostrem toda
gentileza para com todos os homens]. As palavras “todos os
homens” implicam que os crentes devem se empenhar
especialmente para conquistar os que ainda são como animais
irracionais e ainda não foram conduzidos ao rebanho de nosso
Senhor Jesus Cristo. Veja bem: eis um incrédulo. De fato, ele é
inimigo de Deus e se acha separado de sua igreja. Não obstante,
ele é apto à instrução. Minha tarefa é explicar-lhe as coisas com
brandura; de outro modo, ele não pode ser conquistado por tais
meios. Eu devo tentar levá-lo a Deus. Ora, se temos de ser gentis
com os incrédulos quando são totalmente indomáveis e não se
deixam vencer, e se este é o único meio que nos está aberto, que
faremos com os que já são filhos de Deus? Haverão de não achar
em nós nenhuma gentileza? Portanto, mostremos que pertencemos
à escola daquele que não nos trata de nenhuma outro modo senão
com benignidade. A menos que sejamos como nosso Senhor Jesus
Cristo neste aspecto, qualquer outra coisa que façamos pode
impressionar o mundo por sua exibição de santidade, mas diante de
Deus não passa de imundícia.
Então, resolvamos conformar-nos à imagem e padrão que
Deus o Pai provê para nós, visto que foi uma pomba que desceu
sobre nosso Senhor Jesus Cristo. Este foi um símbolo visível de
que, como membros de seu corpo, devemos viver pacificamente sob
ele. Que todos nós, pois, façamos como diz Isaías — ainda que ali
ele fale particularmente de Jesus Cristo [Is 42.3]. Se devemos ser
como ele, então não extingamos a vela que fumega, por mais que
desejemos que sua luz seja radiante. Ainda quando ela exale mera
fumaça, tentemos acendê-la antes que se apague de vez. Não
devemos esmagar a cana quebrada, mas marquemos os que são
fracos e frágeis; de modo que, com nosso apoio, muitos recobrem
ânimo, se incitem e de tal modo sejam atraídos a Deus que, com
eles, nos unamos a ele e nos mantenhamos fiéis a ele até o fim.

Oração
Agora nos prostremos diante da face de nosso bom Deus,
reconhecendo nossos erros e rogando a ele que nos faça senti-los
ainda mais sensivelmente. Que ele, que se agrada em governar em
nosso meio, nos ajude a crescer a cada dia em todas as graças de
seu Santo Espírito. Que mostremos que somos o povo adquirido por
ele e que não foi em vão que nos reuniu a si; mas que, como ele
nos atraiu a si, também estejamos dispostos a ir a ele. E que nossas
vidas revelem que desejamos doar-nos totalmente ao seu serviço,
abandonando o mundo e anelando pela vida celestial à qual somos
diariamente chamados pela pregação de seu evangelho.
15. DEUS É QUEM SALVA [Tito 3.3-5]
Pois nós também, outrora, éramos néscios, desobedientes,
desgarrados, escravos de toda a sorte de paixões e prazeres,
vivendo em malícia e inveja, odiosos e odiando-nos uns aos outros.
Quando, porém, se manifestou a benignidade de Deus, nosso
Salvador, e o seu amor para com todos, não por obras de justiça
praticadas por nós, mas segundo a sua misericórdia, ele nos salvou
mediante o lavar regenerador e renovador do Espírito Santo.

Vimos nesta manhã que Paulo ordenou a todos os crentes que


fossem gentis e brandos com todos os homens. Explicamos que isto
visava a encorajá-los a serem bondosos, de modo a poderem
suportar as falhas dos que ainda não haviam se iniciado na
verdadeira vereda da salvação. Com o fim de reforçar esta lição,
agora ele acresce que, antes de Deus chamá-los, eram exatamente
como aqueles a quem ele tinha toda razão em rejeitar. Nos dias
anteriores, bem que poderiam ter-se alegrado se outros se
mostrassem pacientes com eles. Com efeito, Paulo lhes diz que eles
têm um forte motivo para tratar os incrédulos com semelhante
gentileza.
Há em Gálatas outro versículo em que o apóstolo insta-nos a
que suportemos uns aos outros. Ele escreve: “guarda-te para que
não sejas também tentado” [Gl 6.1]. Pois, quando pensamos neles,
de fato teríamos que ser cegos se não entendêssemos que o errado
não deve ser tratado com extrema severidade. Por quê? Se eu
necessito de perdão em virtude de minhas muitas falhas, mas não
admito o mesmo para meus semelhantes, que esperança há para
mim? Isso seria imperdoável. Então, asseguremo-nos de manter um
olho em nossas próprias fraquezas e pecados. Isso nos impede de
ser duros demais, não perdoando e sendo inflexíveis quando
censurarmos aos que falham.
Paulo, contudo, vai ainda mais longe. Não só manda que os
crentes considerem sua situação presente; de modo que,
conhecendo bem suas próprias fraquezas, se mostrem gentis e
benignos para com todos os que são iguais a eles; também os
lembra do que uma vez foram e, assim, os leva mais adiante.
Devemos atentar cuidadosamente para seu ensino, pois muitas
pessoas há que creem que são justificadas enquanto são severas
em sua condenação de outros. Certamente devemos censurar o mal
sempre que nos depararmos com ele e nunca favorecê-lo com
lisonja. Mas essa não é a ordem que temos de seguir: cada um
deve começar consigo mesmo. E, assim, se eu julgar corretamente
os que são meus semelhantes e ajudá-los a purgar seus pecados,
antes de tudo tenho que reconhecer e condenar meus próprios
pecados. Esta, pois, é a regra que devemos seguir. Cada um deve
ser seu próprio juiz e júri, e condenar a si próprio antes de julgar
seus semelhantes.
Tal como é, esquecemos tudo sobre nossos próprios erros e
não queremos que ninguém os note. Pior, pensamos que temos de
ressarcir amplamente a Deus quando formos duros e severos com
os que erram e os deixamos entregues ao pecado, contanto que
deploremos o mal que vemos em nossos irmãos. Ao contrário,
somos ensinados aqui que, quando tivermos que repreender os
obstinados, não devemos pensar somente no que agora somos e
nos males que nos mancham, e então aprendermos a humildade e o
autocontrole; devemos também refletir que antes de Deus nos atrair
a si fomos desobedientes e merecedores de um tratamento tão
rude, a ponto de nos envergonharmos profundamente e nos
sentirmos usurpados de toda esperança. Eis por que devemos ser
bondosos para com as pobres almas cegas, até que Deus as
ilumine e as tenhamos colocado na vereda certa.
Portanto, as palavras de Paulo nos lembram que devemos
antes suportar os ignorantes mais do que os que, embora
conhecendo a vontade de Deus, se desviam deliberadamente.
Como assim? Os que professam conhecer o evangelho, mas que
francamente escarnecem de toda virtude e vivem vidas vis e
dissolutas, não merecem ser poupados; não podem alegar
ignorância, mas devem ser censurados mais incisivamente. Se, em
contrapartida, há pobres cegos entre o povo, que não podem
distinguir o preto do branco e que nunca foram instruídos, devemos
apiedar-nos deles e não pensar ser estranho se, no ímpeto, forem
difíceis de conquistar, pois não estão acostumados à canga.
Se tomarmos um potro que nada sabe de freio nem de sela, e
nunca usou ferradura, não podemos esperar dele o melhor, visto
que a natureza ainda não o domou para que se submeta ao
senhorio do homem. Esse é um hábito que virá com a prática. Ora,
por natureza, somos piores que os animais, pois somos indispostos
e rebeldes; Deus tem que mudar-nos a fim de nos conquistar para
seu serviço. Então, quando vemos os míseros incrédulos que nada
sabem de como servir a Deus, e desobedientes tanto em palavra
quanto em ato, devemos apiedar-nos deles e recordar que uma vez
fomos assim; e ainda seríamos, se Deus não exercesse em nosso
favor sua mercê e não nos renovasse por sua própria e livre
bondade. Esta é a mensagem de Paulo a nós aqui. Temos de
suportar os que nunca conheceram ou provaram a Palavra de Deus;
e até que os ensinemos, devemos mostrar-nos gentis e pacientes
para com eles. Esse é um ponto.
Notemos ainda a razão que Paulo fornece. Nós também fomos
incrédulos; e, se naquele tempo houvéssemos sofrido tratamento
extremamente áspero e amargo, não o teríamos suportado.
Teríamos nos tornado mais duros e não melhores. Aqui, pois, vemos
os meios que Deus quer que usemos, se quisermos guiar à
salvação as pobres almas perdidas. No entanto, há uma segunda
razão, a saber, que não só vivemos extraviados, por assim dizer, por
certo tempo, mas teríamos continuado a extraviar-nos, se Deus
nãos nos convertesse. Pois quando os homens se convertem do
mal para o bem, tal mudança não vem de seu próprio esforço ou
impulso; ela ocorre porque Deus estava em ação. Então
necessitamos compreender que, pobres e miseráveis como uma vez
fomos, teríamos afundado nas profundezas da perversidade, não
nos tivesse Deus estendido sua mão e nos atraído a si. Pois, se,
desde o nascimento físico, um homem nada é senão um rebelde,
ele se vê obrigado a ir de mal a pior. Por isso, Deus estabelece as
coisas corretamente.
Em consequência, Paulo ensina que, antes de Deus lhes dar
nova vida, os crentes viviam em desobediência. Não só isso, mas se
agora há neles alguma bondade, não têm razão para se gabarem,
mas devem considerar como ela veio a ser sua. “Deus nos salva”,
Paulo pergunta, “pelas obras que realizamos, ou nossa própria
justiça? Nada disso; foi tão somente pela mercê de Deus”. Uma vez
que isso é assim, que abaixemos nossa vista e demos fim à nossa
arrogância. Ora, visto que isso é assim, devemos ser bondosos e
gentis, tolerantes para com as falhas daqueles a quem Deus não
favoreceu da mesma maneira. Em suma, essa é a mensagem deste
texto.
No ínterim, olhemos mais detidamente o que Paulo diz: Pois
nós também, outrora, éramos néscios, desobedientes, desgarrados,
escravos de toda sorte de paixões e prazeres. Ao usar a palavra
“nós”, ele tem em mente suavizar consideravelmente sua afirmação;
de outro modo, poderia ter sido nociva se usasse a segunda pessoa
— “Vós éreis néscios e desobedientes” — e se se tivesse excluído
da companhia deles. Isso teria sido mais indigesto para o estômago.
Agora, porém, ele diz: “Muito bem, meus amigos, lembremo-nos do
que éramos antes de Deus nos haver tirado do abismo da
descrença onde uma vez vivíamos. Acaso não éramos néscios e
rebeldes? Portanto, durante todo o tempo, Deus teve que nos
suportar, porque, de nossa parte, esperávamos que os homens
fossem pacientes para conosco. Portanto, hoje, façamos o mesmo
em favor dos que ainda não conhecem o que significa obedecer a
Deus”. Eis, pois, por que Paulo se inclui entre os ignorantes e os
obstinados que se deixam arrastar e levar por suas paixões
diferentes.
No entanto, podemos perguntar se Paulo mesmo se
comportara de modo imoral ou era ébrio. Pois, ao falar dessas
várias paixões, ele une a alguém todo tipo de mal a que os homens
são propensos antes de Deus recriá-los pela ação do Santo Espírito.
Contudo, sabemos que, mesmo antes de ser atraído ao evangelho,
o apóstolo era irrepreensível, havendo vivido de um modo tão santo
e honesto, que se pensava que ele um fosse um pequeno anjo entre
os homens. Não obstante, não há nada de hipócrita em sua
afirmação de que fora desobediente. Quando a Escritura fala do
estado dos incrédulos a quem Deus ainda não havia regenerado
pela ação de seu Santo Espírito, isso descreve um grande volume
de vícios. Não que todos se deixam arrebatar por eles ou que eles
são óbvios em todos. Um homem se deixará submeter a um; e outro
a mais alguém; mas todos terão boa razão para curvar a cabeça e
permanecer condenados, porque tudo neles está contaminado.
Por exemplo, alguns, ainda que nada saibam sobre Deus, não
se renderão a todo tipo de pecado. Alguns que não se deixam tocar
pela ambição se contentam em viver vidas limpas e honestas, sem
invejar os grandes deste mundo nem a ninguém mais, e
expulsando-os de sua mente. Um será lavrador e outro,
comerciante; comerão seu pão sem se deixar perturbar por
nenhuma cupidez. Alguns se manterão limpos de imoralidade e
outros levarão vidas disciplinadas e sóbrias. Mesmo assim, se
olharmos detidamente para cada indivíduo, não descobriremos em
ninguém nenhuma boa semente ou boa raiz. E, embora pareçam ter
alguma virtude muito evidente, tudo é corrupção à vista de Deus.
Por quê? Porque o que é principalmente necessário numa vida bem
ordenada é andar com toda pureza de coração. Então, se os
incrédulos se refreiam da imoralidade, isso não se dá porque temam
ofender a Deus e, assim, têm isso como seu alvo; mas porque Deus
os restringe por razões que são suas. Ele busca salvar a raça
humana da ruína, porém não porque ela mereça ser tida como justa.
Seja como for, embora os incrédulos não sejam manchados por toda
sorte de vício, e embora vejamos muitos entre eles que vivem uma
vida bem ordeira e um a quem os homens admiram, em seu
coração há contaminação que Deus condena, pois, do maior ao
menor, todos são, no dizer de Paulo, ignorantes, insensíveis e
obstinados, nada sabendo do que significa servir a Deus.
E, assim, a despeito do fato de que Paulo não viveu uma vida
pródiga enquanto ainda era incrédulo e inimigo do evangelho, ele
era arrastado por muitos maus desejos, como ele mesmo confessa
no sétimo capítulo de Romanos. Ali ele diz que pensava de si
mesmo tão elevadamente, que se considerava justo, pois não
entendia o que a lei queria dizer quando afirma: “Não cobiçarás”
[Rm 7.7-9]. Ele se contentava em ter a estima dos homens e em
saber que nada fizera de errado ou merecedor de culpa. Contudo,
ele não havia examinado sua consciência ou perscrutado seus
pecados ocultos; ele era cego, em vez de hipócrita; vivendo o tempo
todo inflado e embebido com orgulho. Era nisto que baseava sua
justiça. No entanto, quando compreendeu que a lei de Deus é mais
que um código externo de conduta suficiente para evitar a censura
dos homens, mas que deveria reformar todos os nossos
pensamentos e sentimentos, requerendo justiça perfeita digna dos
anjos, então o apóstolo viu que em seu interior nada havia senão
impureza. Então, ele nos diz que renunciou até mesmo à justiça da
lei que pensava possuir.
O que Paulo chama de justiça da lei não é a justiça de Deus
exibida na lei, mas a justiça que pensava haver alcançado e da qual
se alimentava equivocadamente. Portanto, ele se viu obrigado a
rejeitá-la como imunda e mero lixo, pois sem tal humildade ele não
poderia possuir a graça de nosso Senhor Jesus Cristo. Neste texto,
pois, ele afirma que, como incrédulo, era como os demais homens
— um miserável, ignorante, enganado e levado por várias paixões.
Ainda que não se contasse entre os dissolutos e não desse nenhum
escândalo por sua maneira de viver, e ainda que não pudesse ser
assinalado como malfeitor, não obstante acalentava em si muita
coisa que era perversa, como aqui ele reconhece.
Havendo resolvido esse problema, extraiamos desta
passagem algumas lições saudáveis. Temos aqui uma ilustração do
que são os homens antes de Deus os iluminar por seu Santo
Espírito e fazer deles novas criaturas. De fato, somos muito felizes
por ser o que somos, mas isso se deve ao fato de não nos
conhecermos. Certamente obedeceríamos o dito, “Despreze-se a si
mesmo”, se não fôssemos cegos por nossa absurda presunção.
Cada um de nós é tão possesso do egoísmo, que ele nos fascina
completamente e deixamos de ver nossa própria depravação. No
entanto, aqui o Espírito Santo pronuncia sentença não sobre dois ou
três, mas sobre todos os filhos de Adão, sem exceção.
Neste ponto, já descobrimos o que somos por natureza até
que Deus nos transforme. Então, o que somos? Para começar,
somos néscios. Isso não é algo do que possamos ser
imediatamente persuadidos! Como bem sabemos, os homens
creem que são sábios. Esse é o maior obstáculo que nos impede de
ir a Deus, visto que não nos permitimos ser governados por sua
Palavra. Somos cheios de indagações, de modo que só pensamos
ser certo se Deus se mantiver quieto ou, pior, se consentir conosco,
como se toda a vantagem fosse nossa. Em sua loucura, os homens
sempre crerão em sua própria sabedoria; mas o que é bom em nós,
visto que aqui o Espírito Santo decretou irrevogavelmente que todos
nós somos néscios até que Deus nos ilumine por seu Santo
Espírito? De fato, somos relutantes em reconhecer isso, mas a
Escritura ensina que Deus conhece todos os pensamentos dos
sábios. E o que ele encontra, uma vez que os conhece? Que eles
são vaidades e mentiras [Sl 94.11]!
Portanto, há duas coisas a notar nesta passagem. Primeira,
devemos entender que, se há em nós uma única gota de
entendimento correto e próprio, é porque ele é um dom especial do
Espírito Santo. Não podemos dar crédito a isso sem cometer
sacrilégio, pois que equivaleria usurpar de Deus o que lhe pertence.
Em consequência, o que faríamos do livre-arbítrio que os papistas
louvam até os céus? Pois sempre que se menciona o livre-arbítrio,
interpretam-no como uma qualidade racional que dá aos homens a
sabedoria de escolher o bem ou evitar o mal.[24] Aqui, ao contrário,
Deus deixa claro que, até que ele nos ajude a progredir em sua
escola, nós, juntamente com o mais arguto dentre nós, somos
néscios. De modo que esse é o fim de nossa estúpida arrogância.
Devemos entender que, até que Deus nos chame à sua verdade,
somos destituídos de toda razão e sabedoria. Isso é suficiente para
esse ponto.
Em segundo lugar, devemos compreender que não há outro
modo de andar com retidão senão nos desvencilharmos de todas as
nossas ilusões. Por quê? Aos nossos próprios olhos, somos bons
administradores; contudo, Deus nos chama de néscios. Então, em
nossas assim chamadas devoções, nos detemos a enganar-nos
pensando: “Isto me parece certo”. Podemos ter êxito satisfazendo
os homens; Deus, porém, não se contentará com isso. Aqui, pois,
está a segunda lição que deve ser extraída deste texto. Temos de
parar de confiar em nossas próprias ideias e andar como Deus
manda, sabendo que tudo o que consideramos bom e que tem a
aparência de sabedoria e razão, não passa de demência e erro à
vista de Deus.
Paulo continua descrevendo todos os homens como
desobedientes, quer agora, quer no passado. Da mesma maneira
como todos nós somos néscios, também todos nós somos rebeldes.
De fato, ele envergonha a todos, retratando-os como saturados do
mal. Para começar, os homens são carentes de sabedoria; mas, pior
ainda, sabendo o que é bom e sendo aptos a traçar a diferença, são
lascivos e perversos; extraviam-se diretamente de onde Deus quer
que andem. Não somos meramente corruptos no coração e,
portanto, cegos; somos tão inclinados ao mal em todos os nossos
apetites, que abertamente resistimos aos mandamentos de Deus.
Então, o que nos é deixado? Podemos premiar o livre-arbítrio e
todas as virtudes o quanto quisermos; mas, até que Deus nos faça
novos, ele é obrigado a achar falha em nós em todas as coisas.
Nossa desobediência, admitidamente, nem sempre é óbvia: somos
bons em nosso papel de bajulador. Podemos fingir tão bem que as
pessoas ficam impressionadas, e até mesmo nos persuadimos de
que somos devotados a Deus. No entanto, tudo não passa de
ilusão, até que recebamos o novo coração de que nos falam os
profetas [Jr 32.39; Ez 11.19]. Não faria nenhum sentido se Deus nos
desse um novo coração quando já fôssemos sadios. Então, até que
Deus o mude e o renove, ele é embebido em iniquidade. É por isso
que devemos ser abatidos, de modo que busquemos de Deus a
bondade que é sua. Cessemos de bajular nosso pecado movidos de
louco orgulho e presunção.
A seguir, o apóstolo declara que os homens têm se extraviado
e se enganado. Portanto, permanecem cegos e miseráveis, até que
Deus os coloque na vereda da salvação. Todos os fúteis conceitos
de que os homens se gabam são varridos. “Oh!”, dizem, “estou para
ser condenado e ninguém me diz por quê?” A resposta de Paulo é
que Deus reprova todos os que são complacentes, pois enganam a
si próprios. É como se ele duplicasse a condenação que pronunciou
previamente quando nos chamou de néscios. Portanto, nossa
necessidade é dupla: falhamos em percebê-la como loucos; e nos
recusamos a crer que ela precisa ser corrigida. Então, aqueles a
quem Deus graciosamente restaurou saibam que, se há neles uma
gota de bondade e virtude, não a trouxeram consigo desde o ventre
de sua mãe, nem foi herdada da carne e sangue. É um dom
especial de Deus.
Quanto às palavras “diferentes paixões e prazeres”, Paulo não
as denomina de “muitas”; ele as denomina de “diferentes” ou
“diversas”. Esta é a razão de sermos assaltados por sentimentos
que parecem ser contraditórios. Por exemplo, um homem pode ser
miseravelmente devasso e ébrio; contudo, como é possível que
todas estas coisas existam juntas? São vícios contrários uns aos
outros. Um homem que é dado à avareza pode definhar quase até a
morte. O alimento é consumido nele; é como se ele pudesse obtê-lo
de volta de seu estômago! Ao mesmo tempo, ele é devasso e não
se preocupa com despesa, contanto que satisfaça sua luxúria
desordenada. O mesmo se dá a um homem ambicioso ou ébrio, que
se afunda na depravação e é indiferente como um animal irracional.
Ali você tem exemplos de erros tão contrários entre si, que não se
harmonizam mais que fogo e água. Não obstante, há pessoas nas
quais todas essas paixões, por mais perversas que sejam, são
muitíssimo evidentes. É esse o significado de Paulo nesta
passagem. Somos afligidos não apenas por um ou outro vício; todos
nós temos paixões conflitantes que surgem de uma ou de outra
maneira e que fazem guerra contra Deus. Assemelham-se a uma
tempestade no mar, onde as ondas se chocam umas contra as
outras; é assim que se dá com os nossos apetites.
Vemos, pois, quanta miséria se dá quando o diabo não só nos
escraviza e nos arrasta a cometer toda sorte de mal, mas também
se diverte conosco, como se fôssemos símios sem disciplina e
autocontrole. Ele incita dissenção entre nós e espalha tal confusão
que sofremos em nossas almas e corpos um infindável inferno.
Então, quando sentimos estas vis paixões atingindo ebulição e
solavanco entre si, passamos a ver nossa miséria, até que Deus,
em sua infinita mercê, nos contemple e nos restaure a si.
Lembremo-nos uma vez mais que aqui Paulo não tem em vista uma
só pessoa, mas toda a humanidade.
Ele conclui o versículo descrevendo-os como vivendo em
malícia e inveja, odiosos e odiando uns aos outros. Isto não é algo
visível em todos os que vivem alienados de Deus e de sua Palavra.
No entanto, a raiz está sempre em nós até que Deus nos
desvencilhe dela. Donde derivamos o genuíno amor para com o
semelhante? Acaso não vem de nossa consciência de que Deus é
nosso Pai e de que devemos viver associados e unidos uns com os
outros? Então, os que têm voltado suas costas para Deus não se
preocuparão com o amor para com os outros. Mesmo os pagãos
entendiam o problema do egoísmo — isto é, os que eram mais
perceptivos que os demais. Eu defendo que esta é uma doença
geral que afeta a todos, até que Deus os cure dela. Todos nos
amamos e nos tratamos bem. A que o egoísmo conduz senão ao
ódio para com os demais? Se eu me amo, vou querer somente o
que me beneficia; de modo que sinto-me obrigado a injuriar a um
homem e a fazer dano a outro. Assim também, os que amam a si
mesmos serão arruinados pelo orgulho e ignorarão seus
semelhantes, pois creem que são os únicos que possuem virtude,
sabedoria e tudo quanto é digno de encômio.
Portanto, Paulo declara com razão que os que amam a si
mesmos merecem ser odiados, visto que são saturados de malícia e
inveja. Acaso queremos ser amorosos e totalmente sinceros, de
modo que não nutramos má intenção para com nossos
semelhantes? Antes de tudo, nosso Senhor tem que nos recriar
mediante a ação de seu Santo Espírito. E acaso queremos ser livres
de toda inveja? Então olhemos para Deus, pois antes de tudo ele
olhou para nós, como Paulo escreve em outro lugar: “mas agora que
conheceis a Deus ou, antes, sendo conhecidos por Deus” [Gl 4.9].
Se já fomos atraídos para junto de Deus, ele deve ir adiante de nós
com sua graça. Lembremo-nos, pois, quando nos sentirmos
saturados de inveja e malícia, merecemos tão somente ódio; e que,
por nossa vez, odiaremos nossos semelhantes, até que nosso
Senhor nos atraia a si. Esta é a insígnia que devemos portar: que
nos humilhemos diante de Deus e confessemos que, ao decidir
iluminar-nos, ele demonstrou grande piedade e infindável mercê.
Pois, quando ele nos encontra, acaso não estamos em um estado
de completa desobediência, opondo-nos, respectivamente, a ele e a
tudo o que é bom?
Uma vez elaborado este ponto, Paulo agora escreve: Quando,
porém, se manifestou a benignidade de Deus, nosso Salvador, e o
seu amor para com todos, não por obras de justiça praticadas por
nós. Ora, que obras de justiça praticamos, exceto as que Deus pôs
em nós pela ação de seu Santo Espírito? É tão somente sua graça
que resplandece aqui; de modo que tudo quanto os homens alegam
em prol de si mesmos deve redundar em nada. Essa é a segunda
razão pela qual Paulo busca ensinar-nos a ser pacientes e suportar
gentil e brandamente os erros e imperfeições de nossos
semelhantes; e, acima de tudo, suportar àqueles a quem Deus
ainda não iluminou com a fé de seu evangelho. Reiterando, as
palavras de Paulo comunicam uma verdade universal, a saber, que
a fonte e princípio de nossa salvação está na mera bondade de
Deus. Por “mera bondade” excluo deliberadamente toda virtude que
os homens porventura pensam possuir. É verdade que mesmo os
mais ignorantes admitirão — como de fato devem — que, se Deus
não fosse misericordioso para conosco, todos nós estaríamos
perdidos e arruinados. Todos reivindicam para si alguma bondade,
de modo que não permitirão que Deus receba todo o louvor; parte
dele eles guardam para si. Este é um equívoco geralmente cometido
por todos os homens.
Hoje, esse equívoco é comum entre os turcos, os judeus e os
papistas. É um artigo de sua fé que não podemos obter a salvação, a
não ser ajudados pela mercê de Deus. Não obstante, entretêm a ideia
falsa e diabólica de que devemos cooperar —, isto é, devemos estar
ativamente envolvidos, tornando-nos, por assim dizer, parceiros de
Deus. Daí, eles concebem as obras de preparação. Entre os papistas
corre o dito de que, até que Deus tome a iniciativa, os homens não
podem ter mérito; pelo quê significam mérito de real valor. Por quê?
Porque Deus, dizem, deve dar o primeiro passo. Entretanto, temos em
nós bons princípios e impulsos. Uma pessoa não pode querer o que é
bom, visto que seu coração é contaminado. Todavia, ela pode trazer
consigo a disposição de fazer o bem. Seu desejo pode não ser forte,
mas ela pode, de sua própria iniciativa, ter uma ou outra boa
disposição que lhe permite dizer: “Eu desejo fazer o bem”. É assim
que os papistas veem estas coisas![25] Dá-se o mesmo com os judeus
e com todos os que pensam como eles. Deus, de sua parte, afirma
que não leva em conta as obras dos homens quando decide chamar-
nos e mostrar-nos sua mercê. Paulo não diz que nossas obras podem
ter valor, e que Deus simplesmente tem que nos suprir do que nos
falta. Nenhuma parceria desse tipo é possível, pois isso seria tomar de
Deus uma porção de seu louvor. Os homens não podem receber
crédito pela menor coisa sem negá-lo a Deus. O apóstolo não dá
crédito a essa ideia a fim de humilhar nossa presunção, declarando
que não é por nossas obras, mas pela mercê de Deus.
Ao falar de “obras que temos praticado”, ele nos lembra de
que Deus de modo algum é nosso devedor, visto que ele já disse
que somos néscios, desobedientes, ludibriados e saturados de
paixões ímpias, e que o diabo de tal modo nos controla, que somos
escravos do pecado e da perversidade. Como podemos merecer
algo, ou o que podemos levar à presença de Deus que o ponha em
obrigação para conosco? Eis como Paulo invectiva a néscia
hipocrisia dos homens, a qual os diverte sempre que reivindicam
para si alguma bondade. Como isso pode ser? É porque falham em
olhar para seu interior. E assim os mestres da doutrina papal
tagarelam infindavelmente sobre o livre-arbítrio, obras de
preparação e méritos. Isso se deve ao fato de que são
escarnecedores que nunca penetram suas próprias consciências.
Imaginemos, pois, um patife devasso ou um ébrio embebido em
todas as sortes de males, que prega sobre as virtudes tanto
cardinais quanto divinas. No entanto, nem uma vez se submetem a
Deus de modo que clamem: “Quem sou eu? Que tipo de homem eu
sou?”. Paulo, pois, moteja dos homens por serem deliberadamente
cegos e por fecharem os olhos para sua depravação. Não obstante,
somos ensinados que, se olharmos fixamente para nós mesmos,
não podemos merecer para nós sequer um átomo de louvor. Como
reza a Escritura, não é pelas obras que porventura tenhamos
praticado.
Adiciona-se a frase em justiça, de modo que Paulo parece dizer:
“Quando os homens se gabam de algum bem feito, falham em pesá-lo
na balança de Deus, pois costumam confundir vício e virtude. Deus
pensa de outro modo, pois somente ele é competente para julgar e
somente seu veredicto é final. Ele declara que justiça é o equivalente
de obediência à lei, de modo que devemos ordenar nossas vidas em
tudo como ele manda. É assim que ele julga a justiça”. Portanto,
observemos o que nos é dito aqui. Deus quer não só que andemos
retamente diante dos homens, e sejamos irrepreensíveis, mas
também que sejamos puros e isentos de toda inclinação maligna. Ora,
quem é capaz disso? Quando Paulo escreve sobre obras praticadas
em justiça, ele fala deliberadamente, pois ele mostra com que
facilidade os homens se iludem crendo que suas virtudes põem Deus
como seu devedor, e o obrigam a atraí-los a si. Na verdade, nunca
conheceram nem de modo algum provaram a justiça. E assim tudo
deve ser atribuído à bondade de Deus e ao amor que tem para com
os homens.
Ao mencionar primeiro a bondade de Deus, Paulo busca
demonstrar que somos inimigos de Deus, até que ele se agrade de
perdoar-nos graciosamente.
É verdade que somos redimidos pelo sangue de nosso Senhor
Jesus Cristo, a quem Deus não poupou, em razão do amor que ele
nutria para conosco. Como lemos no terceiro capítulo de João:
“Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu Filho
unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a
vida eterna” [Jo 3.16]. É importante entendermos quão livre era seu
amor; porque, como já dissemos, com sua ingratidão, os homens
fazem o máximo que podem para obscurecer a glória de Deus. E
embora possam confessar que, sem o amor de Deus, estavam
totalmente perdidos, então se volvem e indagam: “Por que ele nos
amou? Pode ser que ele tenha achado alguma bondade em nós. É
possível que tenhamos sido indignos, mas não fomos totalmente
excluídos, mesmo que nos faltasse o que leva Deus a chamar-nos a
si”. Então, a fim de despir os homens de seu fútil orgulho e humilhá-los
completamente, Paulo diz que é tão somente o amor de Deus — seu
amor paternal — que nos redime. Declara ainda que havia em Deus
uma bondade maior que o predispôs a se reconciliar conosco e a
estender-nos sua mercê, a despeito do fato de que éramos maus e
corrompidos, e de tal modo o impedíamos que bem poderia tornar-se
nosso mortal inimigo. Esse é o ensino de Paulo aqui.
Agora não podemos explicar o restante do texto. Aprendemos
que o amor de Deus se revelou não só quando Cristo veio ao mundo e
assumiu a carne humana, mas também quando o evangelho foi
anunciado, de modo que incrédulos miseráveis pudessem partilhar
deste dom inestimável. Hoje, o amor de Deus é revelado quando nos
reunimos em seu rebanho e nos resgata de nossos horríveis
estresses a fim de que, como membros de sua casa e igreja,
pudéssemos ter a certeza da herança preparada para nós no céu.
Uma vez, pois, tendo ouvido da livre bondade de Deus e do amor
paternal que vem dele, possamos assegurar-nos de que ele mostra o
mesmo para conosco hoje. Pois, quando o evangelho nos é
anunciado, é como uma lâmpada que nos fornece luz, permitindo-nos
perceber o que antes estivera oculto. Até que passemos a conhecer o
beneplácito de Deus, somos mais ou menos sepultados nas trevas.
No entanto, Deus é bondoso e gracioso, garantindo-nos que está
perto de nós e quer abraçar-nos como seus filhos. Agora que ele nos
enviou sua Palavra e nos certificou de sua verdade, não podemos
nutrir dúvida de que já nos garantiu sua salvação.

Oração
Agora prostremo-nos diante da majestade de nosso bom Deus,
reconhecendo nossos erros e pedindo-lhe que nos faça senti-los,
para que cada um de nós aprenda a odiá-los. Que nós não só os
condenemos com nossos lábios, mas arrependamo-nos de nossa
malícia enquanto vivermos. Vejamos que a bênção de Deus não é
uma recompensa por nossa justiça, ou algo adquirido por nossos
próprios esforços. É-nos dada de sua livre graça, a fim de que lhe
rendamos graças e nos devotemos a ele mais e mais, rogando-lhe
que continue sua obra em nós até que ela esteja completada. No
ínterim, que todos nós, de comum acordo, de tal maneira vivamos
que não mais erremos e nos extraviemos como míseros incrédulos,
mas andemos como filhos da luz e por nossas ações confirmemos a
mesma coisa.
16. NOVA VIDA EM CRISTO [Tito 3.4-7]
Quando, porém, se manifestou a benignidade de Deus, nosso
Salvador, e o seu amor para com todos, não por obras de justiça
praticadas por nós, mas segundo sua misericórdia, ele nos salvou
mediante o lavar regenerador e renovador do Espírito Santo, que ele
derramou sobre nós ricamente, por meio de Jesus Cristo, nosso
Salvador, a fim de que, justificados por graça, nos tornemos seus
herdeiros, segundo a esperança da vida eterna.

Eu disse anteriormente que neste texto Paulo atribui como causa


única de nossa salvação a mera bondade de Deus; de modo que
devemos reconhecer com toda humildade que tudo o que temos
vem dele a fim de que ninguém jamais se glorie novamente em si
mesmo. Eis por que ele omite qualquer mérito que porventura os
homens pensem possuir, declarando que nada temos feito que
obrigue Deus a nós, mas que obtemos a justiça quando ele decide
receber-nos em sua livre mercê. Agora Paulo explica como isso é
feito. É feito pela lavagem espiritual que Deus derramou sobre nós
através de nosso Senhor Jesus Cristo. Assim somos purificados de
todas as nossas manchas, e Deus nos aceita porque lhe somos
agradáveis.
Aqui, Paulo mostra claramente a fonte de nossa salvação, a
saber, o amor que Deus tem para conosco. Este é o ponto ao qual
devemos volver-nos sempre que perguntarmos como somos salvos
da maldição que é nossa por natureza. Mas, visto que existe tal
abismo entre Deus e nós, devemos ter algum meio pelo qual
possamos mais facilmente aproximar-nos dele. Nosso Senhor Jesus
Cristo é o meio; ele e todos os dons de seu Santo Espírito. É isto
que agora vamos discutir. Não obstante, é importante lembrar o elo
entre a causa principal e o que segue —, isto é, entre o amor de
Deus que se nos manifestou e o modo de obter esse amor e
desfrutar a salvação que nos é oferecida.
Antes de tudo, porém, lemos que Deus derramou sobre nós a
lavagem da regeneração e renovação do Espírito Santo, por
intermédio de Jesus Cristo, nosso Senhor. É evidente que, para
descobrir o meio de nossa salvação, temos que começar com o
Filho de Deus, pois foi ele que nos reconciliou com Deus seu Pai;
que nos lavou com seu sangue; que obteve para nós a justiça
mediante sua obediência; que é nosso advogado e através de quem
agora achamos graça. Foi ele que nos trouxe o Espírito Santo e que
nos assegurou de nossa adoção pela qual somos feitos filhos e
herdeiros de Deus. Portanto, entendamos que devemos visualizar
cada parte de nossa salvação em Jesus Cristo, e que nem sequer
uma gota dela pode ser achada em algum outro lugar.
No entanto, Paulo não insiste sobre esta ordem particular,
como se nada houvesse mais importante do que a lavagem a que
ele se refere. Aqui, seu alvo é simplesmente mostrar aos homens,
de uma maneira familiar, como podem unir-se a Deus e como
podem ter parte na salvação que foi previamente descrita. Sabemos
quão ignorantes somos e como Deus se condescendeu de nós e
nos ensinou o que de outro modo nos estaria oculto. Pois tudo o que
tange à nossa salvação está além de nossa compreensão e não
podemos alcançar o ponto mais alto que nos faculte apreendê-la.
Estes são mistérios que nos são ininteligíveis. Quando nos falam do
reino espiritual de Deus, é como se ouvíssemos uma língua
desconhecida. Eis por que Paulo, por assim dizer, primeiro mastiga
esses bocados por nós para que nos seja mais fácil de entender.
Então ele declara que Deus, para nos salvar, derramou sobre nós
uma lavagem. Em outras palavras, somos conspurcados e imundos
por natureza; não somos mais que imundícia e mau cheiro; somos
malditos à vista de Deus; de modo que ele deveria rejeitar-nos e
desprezar-nos e lançar-nos para tão longe de si, que nos fosse
negada toda esperança.
Portanto, o primeiro ponto de Paulo é que somos tão
contaminados e imundos, que só podemos ser detestáveis a Deus.
Então, sem dúvida, vangloriemo-nos o quanto quisermos! No que
respeita à nossa salvação, busquemo-la em nossos próprios
méritos! No entanto, tudo o que é sujo e contaminado é ofensivo a
Deus, que é a fonte de toda pureza. Então, visto que somos
inteiramente imundos, Deus se obriga a ser nosso inimigo. Como,
pois, podemos obter seu favor alegando nossa própria dignidade?
Devemos concluir que é o cúmulo da demência que os homens
aleguem algum crédito no tocante à sua salvação, e que sejam
ignorantes daquele amor puro e ilimitado do qual o apóstolo fala.
Avaliemos a palavra “lavagem” que Paulo anexa às palavras
“regeneração” e “renovação do Santo Espírito”. Indubitavelmente,
ele compreendia isto como uma referência ao batismo e buscou
retratar esta doutrina como em um espelho. Visto que somos
morosos para entender, Deus não se contenta em testificar no
evangelho que somos lavados e purificados pelo sangue de nosso
Senhor Jesus Cristo. Ele nos mostrou isso figuradamente,
representando o batismo como um sinal visível de que, quando
chegamos diante de Deus, só lhe apresentamos nossa mácula, e
que seu ofício é purificar-nos. É isso que nos cabe ver. Em
consequência, Paulo, em vez de dizer que nossos pecados são
perdoados e que a vida nos é oferecida, diz que Deus nos lavou e
nos fez limpos. Com estas palavras, ele nos traz de volta ao batismo
no qual é mais fácil contemplar a graça que é posta diante de nós
aqui. Não obstante, é óbvio que esta lavagem não é algo feito
visivelmente com água. Como poderiam nossas almas ser
purificadas por um elemento terreno e perecível? A água não tem
esse poder. Contudo, visto que somos fracos, devemos começar
com a água a fim de pôr as coisas em lugar mais alto. Repito que
devemos começar com a água, porém não devemos deter-nos aí,
pois este sinal que é feito visível a nós busca indicar-nos o Espírito
Santo e ensinar-nos que é dele que o batismo deriva sua eficácia.
Por esta razão, embora Paulo empregue a metáfora da água, ele
deixa claro que não devemos depositar nela nossa confiança, mas
atribuir todo seu poder e perfeição ao Espírito Santo. Esse é o
ponto.
Ao mesmo tempo, nos é mostrado que a graça nos foi dada
pelo Santo Espírito quando fomos batizados, a saber, regeneração e
renovação.[26] A palavra “regeneração” significa que nascemos uma
segunda vez. Não que devamos emergir novamente do ventre da
mãe! Deus nos faz novas criaturas gravando em nós sua imagem.
Pois, como filhos de Adão, o que mais produzimos senão a mais
direta maldição? Portanto, Deus tem que nos transformar. Devemos
reconhecer que em nós há tão somente malícia; que somos
indispostos; que o que chamamos sabedoria não passa de mera
loucura; e que o livre-arbítrio é apenas abominável escravidão ao
pecado. Mas, para reconhecer isto e para condenar-nos
imerecidamente, temos de ser formados de novo e transformados.
Eis o que significa regeneração. Paulo explica isso falando de uma
novidade em nós. A Escritura diz a mesma coisa, e comumente
afirma que devemos tornar-nos novos homens. Eis o que está
implícito: até que renunciemos tudo o que recebemos de nosso pai
Adão, não somos mais que rebeldes contra Deus; saturados de
malícia, hipocrisia e maus desejos. Em suma, a natureza humana é
um poço de iniquidade, e permanece corrupta até que Deus decida
pôr as coisas nos trilhos.
No entanto, Paulo insiste que é nosso Senhor Jesus Cristo
quem faz tudo isto. Pois, como já dissemos, como poderia o Espírito
de Deus ser nosso se ele não nos fosse dado por aquele que possui
em si a plenitude do Espírito? Ora, a fim de sermos lavados,
devemos tornar-nos novas criaturas; e, assim, devemos ver que
nossa salvação não depende de nós, e sim nos é dada por
intermédio de nosso Senhor Jesus Cristo e em sua pessoa. Daí, no
que diz respeito à salvação, saibamos que, como questão de fato,
se Deus não tivesse compaixão de nós, teríamos permanecido
perdidos e sem esperança. Portanto, devemos considerar a mercê
de Deus como a chave de nossa salvação e como sua própria fonte.
Mesmo assim, isso não bastaria para confirmar-nos em nossa
confiança. É verdade que as novas de que sem a misericórdia de
Deus os homens estavam perdidos e perecendo lhes deu motivo de
glorificar a Deus e humilhar-se. Como poderiam não humilhar-se e
não extasiar-se ao descobrir o quanto devem a um Pai tão
compassivo? Essa única verdade seria mais que suficiente para
tornar os homens humildes e levá-los ao reconhecimento da
bondade de Deus. Igualmente, nossa confiança jamais poderia ter
sido tão forte se Deus não houvesse se revelado a nós, e se ele não
houvera exibido seu amor para conosco de uma forma tão íntima.
Aprendamos, pois, a ir a nosso Senhor Jesus Cristo, que se vestiu
com nossa natureza para que o conheçamos mais de perto. Ele se
fez homem para que não necessitássemos buscá-lo ao longe a fim
de achá-lo. E assim somos lembrados do fato de nossa salvação
sempre que ela seja uma questão de confiança.
É verdade que Deus sempre conservaria nossa salvação em
suas próprias mãos, porque, se tivéssemos a incumbência de
mantê-la, ah!, o que seria dela? Mas, embora seja Deus quem
preserva a nossa salvação, e embora, no dizer de Pedro, esteja no
céu, ela é protegida de todos os perigos deste mundo [1Pe 1.5]. De
tal modo, Deus tem testificado pessoalmente de sua veracidade, é
como se sua certeza fosse garantida. Como isso é possível? É
porque Jesus Cristo se une a nós e nos chama “meus irmãos”.
Redunda-se, pois, a isto: se formos solidamente fundamentados em
toda certeza; se, sem duvidar, invocarmos a Deus; se estivermos
certos de nossa adoção e de nossa herança celestial, então,
volvamo-nos para Jesus Cristo.
No entanto, notemos, como um ponto adicional, que não basta
saber meramente o nome de Cristo. Temos também de reconhecer
seu ofício e seu poder. Devemos, repito, entender por que o Pai
celestial no-lo enviou e os benefícios que ele nos trouxe. Eis por que
Paulo aqui descreve a lavagem pela qual somos renovados e feitos
novas criaturas. Jesus Cristo não veio vazio dos dons requeridos
para a saúde espiritual de nossas almas. A perfeição completa do
Espírito Santo lhe foi dada para que ele distribuísse a cada um de
nós segundo sua partilha e medida. A Escritura reza que “o Espírito
de Deus repousou sobre ele; o Espírito de sabedoria, pureza, juízo e
poder” [Is 11.2]. Numa palavra, nada há remotamente no tocante à
vida eterna que não encontramos em Jesus Cristo. Tampouco, como
foi dito, podemos aproximar-nos de Deus, exceto por intermédio de
nosso Senhor Jesus Cristo. Reiterando, visto que temos tal
Mediador, podemos estar certos de que Deus nos ama e nos
reconhece como seus filhos.
Se aprendermos como isso sucede, então podemos volver-nos
ao ensino de Paulo. Ele declara que Jesus Cristo, nosso Senhor,
que por sua morte e paixão nos lavou; que derramou seu sangue,
de modo que todas as nossas manchas são purificadas e já não são
visíveis a Deus, seu Pai; que foi crucificado para obliterar o pecado
e livrar-nos da tirania que nos escravizava, agora nos comunica
todas estas coisas pela graça e pelo poder de seu Santo Espírito.
Sua morte e paixão são para nosso proveito, porque, se não
tivéssemos o Santo Espírito de Jesus Cristo, ele teria sofrido em
vão. De fato, sua morte e paixão tinham o poder de salvar-nos, mas
teríamos sido excluídos e privados dela. Pois sua morte e paixão,
para produzirem fruto em nós, teriam que fazer-nos participantes de
seu Santo Espírito. Eis a lição que devemos aprender.
Talvez se devesse falar mais sobre estas coisas, mas algumas
vezes uma exposição muito extensa só obscurece a verdade. Eis
por que tenho tentado não fazer mais que um breve sumário, de
modo que os mais ignorantes possam, com três palavras, entender
onde devem procurar a salvação e os passos que os levam a ela. O
que devemos saber é que Deus o Pai tem tido compaixão de nós;
que devemos ser levados a Jesus Cristo e temos de entender como
temos nele a salvação — isto é, como ele fez tudo o que era
necessário para nossa salvação, a qual liberalmente derrama sobre
nós pelo poder e graça de seu Santo Espírito.
Observemos agora o que Paulo diz sobre esta lavagem: que
ele derramou sobre nós ricamente. Em outras palavras, Deus não
instilou gota a gota, como se ele nos estivesse poupando, porém
derramou tal generosidade, que temos toda a razão de sentir-nos
satisfeitos. Isto serve a um duplo propósito. O primeiro é encorajar-
nos a exaltar e magnificar as riquezas de nosso Deus como
merecem. Pois embora nosso Deus continue a operar em nós
eficazmente, quase nunca pensamos nisso. Agimos como homens
confinados; em vez de abrir a mente, o coração e o pensamento
para aceitar a graça que ele nos oferece, somos apanhados pela
incredulidade e pela ingratidão. Deus não pode achar em nós
nenhuma via nem qualquer abertura que nos permita receber os
dons de um valor tão imenso. Em consequência, Paulo se refere
aqui às abundantes riquezas que são nossas em nosso Senhor
Jesus Cristo. Se apreendermos a mercê de Deus como revelada
nele, ela terá bastante comprimento e largura para encher-nos e
plenamente satisfazer-nos.
O segundo propósito de Deus é que nos desviemos de todas
as coisas fúteis nas quais depositamos nossa confiança. Como é
possível que repousemos em nosso Senhor Jesus Cristo?
Prontamente, o reconhecemos como nosso Salvador e como aquele
que nos reconciliou com Deus, mas também esperamos, vezes e
mais vezes, por outros auxílios. Os homens chegarão a algum
extremo, pois não farão de Jesus Cristo seu único e verdadeiro alvo
ou admitirão que a salvação completa se encontra somente nele.
Segundo Paulo, é monstruosa ingratidão recusarmos a benignidade
que nos é mostrada no Filho unigênito de Deus. Por que é assim?
Porque nele há tais riquezas que somente a mais profunda cupidez
pode não contentar-se com elas.
Então, essas são as duas razões por que Paulo emprega a
palavra “abundância” [ou, riqueza]. Havendo dito, pois, que Deus
nos salvou, o apóstolo anexa: a fim de que, justificados por graça,
nos tornemos seus herdeiros, segundo a esperança da vida eterna.
Estas duas sentenças — “Deus nos salvou” e “a fim de que nos
tornemos herdeiros segundo a esperança” — devemos tomá-las
juntas. Em primeiro lugar, somos informados de que, com respeito a
Deus e a nosso Senhor Jesus Cristo, nossa salvação já está
completa e além de discussão. Entretanto, enquanto existir o tempo,
nós a possuímos somente em esperança: ainda não vemos seu
cumprimento. Aqui, pois, temos que notar dois pontos. Um é que, ao
crer em Jesus Cristo, já passamos da morte para a vida, como
lemos no quinto capítulo de João [Jo 5.24]. Não devemos imaginar,
como os papistas, que Jesus Cristo já nos abriu a porta da salvação
e que nossa tarefa é entrar se quisermos, ou que o que ele
começou devemos completar. Estas são blasfêmias ímpias e
abomináveis. Sabemos que nossa salvação já foi consumada por
nós, certamente da parte de Deus. Não obstante, ainda não a
desfrutamos plenamente, pois nesta vida mortal temos que lutar e
sofrer tribulações e angústias. É como se fôssemos cercados por mil
mortes e afundados no mais profundo inferno.
E assim nossa salvação está oculta, como lemos no oitavo
capítulo de Romanos [Rm 8.23]. Contudo, em todo o tempo
permanecemos herdeiros através da esperança; isto é, embora
suportemos a disciplina de Deus e sejamos cônscios das
fragilidades que podem tornar-nos ansiosos e temerosos, não
obstante estamos certos de que Deus não muda, e uma vez ele nos
escolheu e testificou de sua adoção, a esperança que temos nele
confirma e sustenta a certeza da fé. Ainda quando esperamos,
nossa herança já está sendo preparada para nós. Tudo o que nos
resta é tomar posse dela quando chegar o tempo.
A mensagem deste texto agora se faz clara; falta-nos pô-la em
prática. Assim, sempre que se mencionar a mercê de Deus,
compreendamos que a confiança em nossos próprios méritos é
excluída e que toda vanglória deve cessar. Em nós mesmos, nada
possuímos de valor, e nada podemos levar a Deus, visto que tudo o
que possuímos vem dele. Lembremo-nos também de que não
poderemos compreender a bondade e o amor de nosso Deus, a
menos que estes sejam penhorados por Jesus Cristo. Esquivemo-
nos de toda especulação profunda e elevada enquanto buscamos a
certeza da salvação, pois há muitos indivíduos iludidos que nunca
ficam satisfeitos até que tenham percorrido céus e terra. Em vez
disso, olhemos para Jesus Cristo, pois Deus nos sustenta em nossa
fraqueza, levando-nos a confiar unicamente em seu Filho; de modo
que não tenhamos que percorrer distâncias infindáveis a fim de
achá-lo. Ele desceu a nós e de fato chegou a ser inferior a qualquer
homem, como lemos no salmo 22: “Mas eu sou verme e não
homem; opróbrio dos homens e desprezado do povo” [Sl 22.6]. O
profeta Isaías o descreve como desfigurado à semelhança de
leproso [Is 52.14]. Por que isso se deu? Foi para que pudéssemos
tomar posse da graça que ele oferece. Por que ele veio a ser como
nada? É exatamente assim que Paulo o descreve [Fp 2.7]. Todavia,
todos os dias, continuamente, ele nos convida a si, intimamente e
com toda brandura e benignidade imagináveis. Porque, em seu
evangelho, ele não nos ordena a vir, mas exorta e roga, como Paulo
ressalta na segunda carta aos Coríntios [2Co 5.20].
Nosso Senhor Jesus Cristo é mui gracioso para conosco.
Ouvimos diariamente que ele deseja fazer-nos membros de seu
corpo, e devemos ter sempre em mente o que ele disse: “Vinde a
mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados” [Mt 11.28].
Uma vez que isso é assim, não nos disponhamos a nos extraviar,
mas tomemos Jesus Cristo como nosso alvo, pois não podemos
errar se formos a ele. Reiterando, se sabemos que é através dele
que somos reconciliados com Deus o Pai, e somos feitos
completamente justos, entendamos também que ele nos outorga
essas coisas por seu Santo Espírito. Portanto, a coisa mais
importante é que nos contentemos com Jesus Cristo, sem nada
adicionar à graça que ele nos trouxe. Não devemos imitar os
papistas que reconhecem Jesus Cristo como seu Mediador, mas
que, então, olham para seus santos como protetores e advogados e
reivindicam os méritos dos apóstolos e mártires. Consideram a
expiação de Jesus Cristo como nada, a menos que possam
adicionar-lhe suas próprias miscelâneas. Pensam em seus méritos
como um ensopado misto e não se contentam com o perfeito
alimento com o qual o Filho de Deus supre nossas almas, lançam
um ou dois saborosos condimentos de seu próprio invento que visa
mais a seu próprio paladar!
Nós, de nossa parte, resolvamos viver satisfeitos com as
riquezas da bondade de Deus, as quais ele nos dá generosamente
na pessoa de seu Filho. Ao mesmo tempo, como já dissemos,
lembremo-nos de que Jesus Cristo somente nos distribui seus dons
quando nos tornamos participantes de seu Santo Espírito. Portanto,
de que nos serve que Cristo haja derramado seu sangue, se não
formos lavados nele por seu Santo Espírito, como diz Pedro em sua
primeira carta [1Pe 1.2]? De que nos serve que, ao morrer na cruz,
Cristo haja eliminado o pecado e a tirania da morte, se não nos
unirmos a ele pela graça de seu Santo Espírito? Então, roguemos
ao nosso bom Deus que nos ajude a desfrutar do que ele já
conquistou para nós pela morte e ressurreição de seu Filho, nosso
Senhor Jesus Cristo, para que os dons do Espírito Santo sejam
derramados sobre nós. Como isso sucede? Primeiro, recebendo a
luz da fé, pela qual conhecemos a Deus como nosso Pai e nos
asseguramos de sua bondade para conosco. Então, também,
recebendo o Espírito de temor piedoso, pelo qual abandonamos
nossas más inclinações e desejos e nos rendemos ao serviço
daquele que deve ser nosso Soberano. Necessitamos ainda do
Espírito de poder e de confiança para lutarmos contra todos os
ataques de Satanás e nos desviarmos de toda provação.
Finalmente, devemos ter o Espírito de sabedoria a guardar-nos
contra as cavilações e astúcias de nossos inimigos. Eis como seria,
se a morte e a paixão de nosso Senhor Jesus Cristo há de nos
beneficiar, e se sua ressurreição há de exercer seu pleno efeito e
poder.
Agora temos de notar aquele testemunho que é dado de todas
estas coisas por nosso batismo; de modo que, quando nos
sentirmos vazios dos dons do Espírito Santo, não devemos nutrir
dúvidas de que eles nos serão dados quando os pedirmos. Por quê?
Deus não nos frustra quando ordena o batismo como um sinal para
nós. Pois ali temos um penhor de que ele não é mesquinho nem
frugal para conosco; mas, sabendo o que nos é útil, derrama
amplamente sobre nós todos os dons de que necessitamos e que
nos faltam. Acaso sentimos em nós mesmos alguma fraqueza?
Acaso uma nuvem escura de ignorância nos cerca, de modo a não
podermos apreender as coisas espirituais? Olhemos para Deus e
que nosso batismo nos guie a ele; porque, como já foi dito, nosso
Senhor nele testifica que nada nos faltará enquanto o tivermos como
nosso refúgio. Em contrapartida, vejamos que meramente receber o
batismo é de nenhuma importância. Se tivermos apenas o sinal
visível, mas nunca sentirmos seu real efeito, ele só servirá para
condenar-nos ainda mais, e a culpa será nossa. Se algo sobre ele
estiver errado, devemos julgar nossa incredulidade mais
severamente do que temos feito até agora.
E assim Paulo atribui à lavagem do Espírito Santo o poder de
nossa renovação e regeneração. O que ele diz tem por alvo os
crentes que não recusam os dons de Deus, mas que abrem a boca
para que ele a encha, como o salmo nos exorta a fazer [Sl 81.10].
Em consequência, devemos reconhecer que os incrédulos se
assemelham a uma jarra que é hermeticamente fechada: Deus
derrama seus dons, mas não os aceitam, pois eles estão
firmemente selados e não há nenhuma passagem. Ou, pior, são tão
duros como as rochas sobre as quais cai a chuva em um dia, mas
que ficam secas por dentro, porque são duras demais. O mesmo se
dá com os que rejeitam os dons de Deus; mas, se abrirmos nossas
bocas com fé, ficaremos satisfeitos. Portanto, Paulo está certo
quando diz aos crentes que Deus já lhes derramou esta lavagem
espiritual, e lhes permite participarem dela.
Voltemos agora ao pensamento final neste versículo: ele nos
salvou. Deveras estamos salvos, porque já nos tornamos herdeiros
através da esperança. Aqui, o apóstolo revela as bases de nossa
salvação e nos mostra o que ela realmente é. Somos herdeiros de
Deus. Estritamente falando, nossa salvação não é nossa, exceto via
herança. Não somos herdeiros por natureza, mas por adoção,
porquanto Deus se agrada em receber-nos como seus filhos.
Nascemos filhos da ira; isto é, somos malditos; e estamos tão longe
de poder reivindicar a Deus como nosso Pai, pois somos rejeitados
por ele; não obstante, ele nos adota como seus. Como ele pode
fazer isso? Paulo nos convida a olhar para nosso Senhor Jesus
Cristo, o qual é realmente chamado o Filho unigênito de Deus. Isso
é o que ele é por natureza; a dignidade é sua por direito. Uma vez
enxertados em seu corpo e membros dele, também fomos
adotados. É por este meio que nos vem a herança do reino do céu.
Somos herdeiros? Então, somos salvos — no entanto, salvos
mediante a esperança.
É isto que realmente devemos ter em mente, pois Deus não
quer que sejamos ociosos neste mundo. Embora ele já houvesse
consumado nossa salvação na pessoa de seu Filho, não obstante
ele quer guiar-nos a ela segundo a ordem que ele já designou.
Então, quando recebemos a prova de seu beneplácito e de tudo o
que ele nos oferece em seu evangelho, isso visa a que sejamos
justificados por sua graça somente e sejamos treinados em nosso
combate contra Satanás. Essa é a batalha na qual Deus quer que
nos digladiemos, não por um dia, mas por uma vida inteira. Por isso
devemos lutar duramente para desvencilharmo-nos de todas as
paixões, aspirações e desejos, e até mesmo de nossa própria
sabedoria. É principalmente aqui que Deus quer testar nossa
obediência, instando-nos a que menosprezemos nossos mais
queridos pensamentos e a não sermos sábios a nossos próprios
olhos. Em vez disso, esforcemo-nos em submeter-nos totalmente a
ele, de modo que, seja aonde quer que nossos apetites nos
arrastem, tenhamos um freio a nos coibir; e assim, a despeito de
nós mesmos, morramos para o ego e cedamos o controle a Deus e
não às nossas afeições.
Visto, pois, que Deus deseja que trilhemos este caminho todos
os dias de nossa vida, atentemos bem para o que lemos aqui sobre
a esperança. A razão é que, embora sejamos informados de que
somos salvos, em todo o tempo o diabo conspira para destruir-nos e
tem os meios para efetuá-lo, a menos que sejamos preservados
pelo maravilhoso poder de Deus. Temos também ciência das
misérias que nos cercam. Tão miseráveis são nossas vidas, que os
incrédulos parecem mais abençoados e vivem em melhores
condições que os filhos de Deus. Todas estas coisas podem ser
vistas claramente. Como resultado, bem que poderíamos sentir-nos
completamente desfalecidos, se não fôssemos advertidos
antecipadamente pelo que Paulo diz neste texto, a saber, que
somos herdeiros através da esperança. De modo que somos
confirmados na certeza de nossa salvação. Quando neste mundo
formos ridicularizados pelos incrédulos e sofrermos mil insultos e
ataques, devemos aferrar-nos à certeza de que somos aceitáveis a
Deus. Reiterando, embora nossa vida esteja oculta, e embora
pareçamos quase perecer, sendo como ovelhas levadas ao
matadouro — como lemos no oitavo capítulo de Romanos [Rm 8.36]
— embora sejamos praticamente calcados sob a planta dos pés,
rejeitados pelo mundo e ridicularizados, nada disso nos detém de
aferrar-nos à fé na herança preservada para nós no céu. Por mais
perdidos que nos sintamos, podemos estar certos de que somos
verdadeiramente salvos. Por quê? Porque nossa salvação está em
boas e seguras mãos. Deus é o seu preservador.
Não obstante, não estamos cercados por tribulações de todos
os lados? Sim, mas jamais nos tornamos presas de Satanás, já que
Deus estende seu poder para defender-nos. Além do mais, nosso
Senhor Jesus Cristo cumpre a tarefa que lhe foi designada, pois ele
nos tem tomado ao seu cuidado. Sabemos que ele prometeu que
nenhum dos os que lhe foram dados pereceria [Jo 6.39]; e visto que
Deus é o Todo-Poderoso, nossa salvação é livre de todo perigo. Eis
como podemos ser confortados e como podemos desviar-nos de
Satanás, do mundo e de todas as tribulações que nos assaltam. Em
suma, já podemos gloriar-nos na vida eterna, mesmo quando
parecemos estar à beira do precipício e prontos para cair nele, e
somos ameaçados a cada minuto do dia pela própria morte.
Ora, quando Paulo fala da vida eterna, é óbvio que ele deseja
que sejamos tirados deste mundo ao qual somos tão afeiçoados.
Não há um sequer que não queira viver e existir. Mas não sabemos
como escolher a vida que é real. Estamos embrenhados em
sombras, como pessoas que tomassem a lua entre seus dentes,
como corre o dito. Somos fascinados por essa única palavra, “vida”;
no entanto, tudo o que fazemos é abraçar sua sombra, pois todos
nós estamos jungidos a esta vida fugaz e o mundo nos envolve
hermeticamente. E assim escarnecemos continuamente da vida
infindável à qual Deus nos chama e a qual Jesus Cristo adquiriu
para nós. Lembremo-nos, pois, que nos destinamos a passar por
este mundo, e que aqui Paulo aplica a espora, por assim dizer,
insistindo conosco a que busquemos a vida celestial e
atravessemos este mundo sem nada a nos deter. E visto que somos
excessivamente fracos e nossas mentes não podem subir tão alto,
que todos nós ponhamos nossos olhos em Jesus Cristo. E como
lembramos que o Filho de Deus desceu à terra e então nos recebeu
na glória — havendo Deus feito nossos amigos os próprios anjos —,
consideremo-nos simplesmente como peregrinos neste mundo, pois
não cessamos de ser cidadãos do céu, ao qual somos guiados pela
esperança.
Eis por que Paulo diz em outro lugar que já estamos sentados
nas regiões celestiais [Ef 2.6]. Como? Através da esperança!
Vemos, pois, que a esperança não é uma coisa inanimada ou
alguma mísera fantasia que acontece de concebermos. É um
impulso tal do Espírito Santo que, embora estejamos encerrados por
este corpo perecível e sintamos um grande peso suficiente para
arrastar-nos ao inferno, embora nossa vista seja dolorosamente
empanada e escurecida e embora toda nossa força nos falte, Deus
ainda assim opera pelo poder de seu Santo Espírito. Assim, ficamos
suspensos no ar e somos incapazes de prosseguir, sempre
anelando pela herança preparada para nós e sem duvidar de que a
alcançaremos, porque nosso Senhor Jesus Cristo então aparecerá,
e a vida que agora nos está oculta será revelada.

Oração
Agora prostremo-nos diante da face de nosso bom Deus,
reconhecendo nossos erros e rogando que ele nos faça senti-los
intensamente. Que diariamente ele corrija os males e erros em
nosso íntimo, de modo que nos esforcemos unicamente por
obedecer aos seus santos mandamentos e tiremos deles mais e
mais proveito, até que nos desvencilhemos de todos os nossos
pecados e imperfeições e nos revistamos de sua justiça.
17. PROVEITOSAMENTE OCUPADOS [Tt 3.8-15]
Fiel é esta palavra, e quero que, no tocante a estas coisas, faças
afirmação, confiadamente, para que os que têm crido em Deus
sejam solícitos na prática de boas obras. Estas coisas são
excelentes e proveitosas aos homens. Evita discussões insensatas,
genealogias, contendas e debates sobre a lei; porque não têm
utilidade e são fúteis. Evita o homem faccioso, depois de admoestá-
lo primeira e segunda vez, pois sabes que tal pessoa está
pervertida, e vive pecando, e por si mesma está condenada.
Quando te enviar Ártemas ou Tíquico, apressa-te a vir até Nicópolis
ao meu encontro. Estou resolvido a passar o inverno ali. Encaminha
com diligência Zenas, o intérprete da lei, e Apolo, a fim de que não
lhes falte coisa alguma. Agora, quanto aos nossos, que aprendam
também a distinguir-se nas boas obras a favor dos necessitados,
para não se tornarem infrutíferos. Todos os que se acham comigo te
saúdam; saúda quantos nos amam na fé. A graça seja com todos
nós.

Notamos previamente as instruções que Paulo ordenou que Tito


observasse. Agora ele conclui, dizendo-lhe que atentasse para as
coisas boas e evitasse as questões inúteis que não podem edificar a
igreja de Deus. Ao mesmo tempo, insta-o a falar com tal autoridade
sobre as coisas que valem a pena, para que os ouvintes não sejam
deixados em dúvida, mas se assegurem completamente delas. Ele o
adverte a não se preocupar com questões fúteis e disputas sem
sentido que a ninguém podem beneficiar. Visto que os que buscam
atribular a igreja desejam ter a última palavra e estar no topo; e visto
que podiam persuadir os servos de Deus a ficar do seu lado, Paulo
insiste que fossem deixados sozinhos. Diz ele: “Os servos de Deus
não devem se desgastar com tratantes dessa estirpe”. Pois que
lucro há quando os homens se comportam tão
desavergonhadamente e trazem condenação sobre suas próprias
cabeças? Não podem ser vencidos; é uma perda de tempo, pois o
diabo os possui e merecem ser entregues a uma mente réproba,
visto que lutam contra Deus e o desafiam movidos por malícia
deliberada.
Isso dito, o apóstolo exorta aos cretenses a que pratiquem o
bem, pois sabemos que havia entre eles muita indolência. A
despeito dos melhores esforços de mestres tão importantes, não
havia efeito óbvio em suas vidas; era como se nunca houvessem
ouvido sequer uma palavra do evangelho. Em consequência, Paulo
lhes ordena que se exercitem para que os homens vejam que eles
tiraram proveito da escola de Deus. É isso que Paulo tinha em
mente nesta passagem.
Tratemos agora de cada pensamento em ordem. Paulo
começa: Fiel é esta palavra, e quero que, no tocante a estas coisas.
Por “Fiel é esta palavra”, o apóstolo realmente está advertindo os
ministros do evangelho, na pessoa de Tito, a não promover na igreja
ideias estranhas que são inteiramente insuportáveis. Devem ensinar
o que tem sido provado e testado, para que os filhos de Deus sejam
edificados e tenham uma fé infalível, em vez de crença leviana.
Consideremos o que Paulo está dizendo. Ele não está falando de
especulações que não têm nenhuma base na Santa Escritura, mas
de coisas que têm a ver com nossa salvação — de fato, do que
Deus quis revelar-nos. Deixemos bem claro que não foi porque
Deus tinha ciúmes de nós que ele ocultou as coisas que a Escritura
não fez conhecidas. Ele escolheu o que nos é bom e útil. Então,
vemos quão estúpidas são muitas pessoas que se sentem
aborrecidas quando não encontram embasamento na Escritura para
as ideias a que apelam. Perguntam: “Por que Deus não falou sobre
isto? Por que nada foi dito sobre isso? Por que esta ou aquela
questão foi deixada sem solução?”. Muito bem, mas Deus revelou
as coisas que bem sabia nos seriam necessárias. Portanto,
contentemo-nos em ouvir o que ele diz e descobriremos que nada
nos falta. Como seria se Deus fosse incensar nossos tolos caprichos
e encher nossos comichantes ouvidos com vento? Que respeito
teríamos nós pela Palavra de Deus se tudo o que ela fez foi ser
alcoviteira de nossos apetites sem sentido? Visto, porém, que
achamos nela a verdade de nossa salvação, e visto que a
conhecemos como sendo santíssima e sacratíssima, aprendamos a
manuseá-la e recebê-la com o devido temor e humildade.
E, assim, quando Paulo descreve este dito como seguro e
certo, ele tem em mente manter-nos dentro dos limites e impedir-
nos de perambular como é nosso hábito, intrometendo-nos em
coisas que Deus não quis revelar. Mantenhamo-nos naquilo que
sabemos ser certo. Quanto ao resto, Paulo nos adverte a não ser
ousados a ponto de endossar coisas das quais somos ignorantes.
Então, o que devemos fazer? Não devemos olhar para nosso
próprio entendimento e, assim, decidir como pensamos ser
apropriado. Devemos começar com o que Deus nos tem ensinado
com seus próprios lábios; de outro modo, no fim, nossa leviandade
nos porá em ridículo. De fato, os homens podem nos admirar por
algum tempo, como sucede com os gabolas que abrem bem suas
penas como pavões! No entanto, quando tudo é dito e feito, Deus ri
de sua arrogância. O mesmo se dará conosco se tentarmos
conhecer mais do que é permissível ou se asseverarmos coisas
sobre as quais nada conhecemos. Necessitamos de evidência
sólida se quisermos ajuizar-nos do que nos é útil.
Portanto, estamos bem certos sobre a Santa Escritura? Então,
não mais formulemos as perguntas “por quê” ou “como”: basta-nos
que Deus haja falado. Vemos como isso se dá hoje. Alguns
presunçosos tentam mostrar-se inteligentes; são rápidos em
repreender a Deus caso haja algo não claro e difícil para eles.
Clamam: “Olhe aqui, nada disso faz sentido para mim!”. Supondo
que fossem os maiores mestres do mundo, iriam além de todos os
limites quando rejeitam a palavra que Deus tem falado. É verdade
que alguns brutos usam um distintivo de erudição e usam uma
máscara de estudiosos. Dizem: “Oh!, é difícil para o estômago a
ideia de que Deus salva alguns e rejeita outros a seu bel-prazer; que
ele dirija os negócios do mundo segundo sua vontade; que sua
vontade é soberana e que não podemos saber por que ele age
desta maneira”. Muito bem, se para você estas coisas são obscuras,
aprenda a humilhar-se e a ser paciente até que você seja apto a
tirar proveito com a ajuda de Deus.
Nós, de nossa parte, devemos aprender que, enquanto
vivermos neste mundo, vemos obscuramente, no dizer de Paulo
[1Co 13.12], e saboreamos apenas um pouco da verdade. Nós não
a temos em toda sua plenitude até que sejamos transformados para
a glória de Deus, quando veremos face a face. No ínterim, esses
chacais não ficam satisfeitos com isso, e se fantasiam como
poderosos estudiosos que argumentam sua disputa com Deus.
Paulo, ao contrário, mantém curta nossa rédea, ensinando-nos que,
quando tivermos clara evidência da verdade de Deus, devemos
segui-la e obedecê-la. Ele demanda ainda que os ministros
asseverem a verdade e não falem hipocritamente dela; devem
sustentar sua base por mais que os homens murmurem e
protestem. Se o mundo inteiro se erguer contra eles e tentarem
deter o progresso do evangelho, que desafiem todos aqueles
demônios que se rebelem contra Deus, por mais altaneiros e
poderosos que sejam eles. Que aqueles cuja tarefa é ensinar falem
o que é seguro e concordem firmemente conosco. Deus desafia o
mundo e todos os seus demônios e pronuncia palavras que são
autênticas. Então, que venham o que quiserem, nada deve impedir-
nos de declarar sua inerrante verdade com a máxima clareza.
Embora os homens pendam para cá e para lá, os ministros de Deus
nunca devem curvar-se aos seus desejos ou afastar-se da verdade.
É essa a mensagem de Paulo a nós aqui.
Em suma, este texto ensina que todos os que proclamam a
verdade de Deus não preguem algo que não possam afirmar ser
uma palavra dita por Deus. Para o mesmo propósito, devem
observar restrição, para que não gastem seu tempo com
trivialidades. Qual a razão? Porque Deus não lhes revelou tais
coisas; ele sabe o que é necessário para nossa salvação. E para
todos os crentes há a advertência de que não busquem conhecer
coisas que nosso Senhor ocultou deles; pois seremos enredados se
sondarmos demais os domínios de nossa imaginação. Em vez
disso, investiguemos o que é seguro e sólido. Não nos afundemos
na água onde não pudermos nadar. Mal podemos andar em terra
seca. O que nos acontecerá se saltarmos ao mar? Temos suficiente
habilidade para arrostar as ondas? Vamos aonde Deus nos
conservar a salvos. Em outras palavras, quando Deus, através de
sua Palavra, nos mostrar o caminho, aferremo-nos a ele e não
avancemos para além do que ele permite. Sigamos sempre,
iluminados por sua verdade, aonde ele nos levar, e detenhamo-nos
quando ele declinar mostrar-nos o que bem sabe não nos fará bem.
Ao instruir Tito a certificar-se destas coisas, Paulo insiste sobre
a necessidade de autoridade. Portanto, Tito não deve vacilar
quando os homens resistirem a sua insistência e alegarem que
estão sendo manobrados. Ele diz: “Embora as pessoas fiquem
aborrecidas, persiste com o teu trabalho”. Nossa preocupação deve
estar nas coisas que edificam. Acima de tudo, devemos ser
cônscios do que nosso Senhor manda e das verdades nas quais
estamos envolvidos e as quais devemos defender com invencível
determinação. E quando os homens nos impedirem de ensinar
como o Senhor manda, resistamos firmes e proclamemos as coisas
que são boas e úteis a todos. Desta maneira o apóstolo mostra o
quanto são ingratos os que não podem suportar ser edificados para
seu próprio bem, visto que recusam a bênção que Deus lhes
estende. Pois se nosso Senhor falasse somente das coisas que são
obscuras e além de nosso alcance, poderíamos ter razão de nos
queixarmos que estivemos gastando tempo com especulações que
requeriam um trabalho muito árduo, o qual no fim não nos fez
nenhum bem e não nos deixou mais sábios do que antes. Nesse
caso, seria justo nos sentirmos aborrecidos. No entanto, quando
nosso Senhor se condescende de nossa ignorância e nos ensina de
um modo tão íntimo, como um pai instrui seus filhos ou como uma
mãe acalenta seu filhinho imaturo para que ele entenda — quando,
repito, Deus nos trata de uma maneira tão graciosa e nos assegura
que não existe em sua Palavra nada supérfluo —, nada que não
produza fruto para nossa salvação —, quando vemos isso, não
deveríamos naturalmente sentir-nos indispostos, caso deixemos de
tirar proveito dela?
Então, em contrapartida, Paulo diz aos pastores da igreja que
não busquem prosperidade ou fama quando realizarem seu
trabalho, e não almejem o que é popular ou bem aceito, mas o que
beneficie a todos. De outro lado, quando os crentes forem à igreja,
não esperem que suas próprias fantasias sejam alimentadas; se os
homens planejam o que lhes agrada, tudo o que ganhariam seria
vento! Devemos pensar em nós mesmos: “Isto é para meu próprio
bem; portanto devo aceitá-lo”. Assim, temos de ser muito
cuidadosos, pois mais frequentemente do que gostaríamos, somos
como inválidos que só querem beber quando deveriam comer, e
estar de pé quando deveriam estar ainda deitados no leito.
Sinceramente, gostaríamos de escapar de ser repreendidos por
nossos pecados, e não temos nenhum desejo, como corre o dito, de
ser unhados onde não temos coceira. Se somos instados à prática
do bem, preferimos ser deixados sozinhos; se recebemos
reprimenda, fugimos para uma paixão; se nossas transgressões são
trazidas à luz, rangemos os dentes e nada teremos a dizer sobre
elas. Assim, cada um de nós é suspeito de si mesmo e considera o
que se requer dele — no entanto, não segundo sua própria estima,
pois corremos constante risco de cometer erro. Deus deve ser
nosso Juiz: somente ele é competente para falar. Daí Paulo fincar o
pé neste ponto: estas coisas são proveitosas aos homens.
Agora passemos à próxima questão que o apóstolo suscita.
Tito é instruído a evitar discussões insensatas. A palavra
subentende a inclusão de algo que incita conflito entre nós. É
verdade que certamente devemos inquirir antes de aceitar uma
doutrina como certa. Como reza o bem conhecido provérbio:
“Somente um tolo não duvida de nada”. Portanto, não só é
permissível que formulemos perguntas com o fim de remediar nossa
ignorância; isso é também necessário. Por que, pois, Paulo usa a
palavra como se fosse algo ruim? “Discussões néscias” é o nome
que ele lhes dá, significando, como já dissemos, tudo o que incita
porfia em nosso meio. Se indago sobre algo que pode ser-me
mostrado na Palavra de Deus e se aceito o que me é dito com
espírito manso e aberto ao ensino, esse não é, estritamente falando,
o tipo de indagação que está implícita. Mas se indago e objeto
rispidamente à resposta que me é dada, de modo que a discussão
segue perenemente, é isso que Paulo condena aqui.
Portanto, como bem sabemos, há pessoas que almejam
alardear-se, investigando problemas que nunca podem ser
resolvidos. Selecionam uma questão que lhes permite dizer: “Eis
aqui algo sobre o qual vale a pena refletir. É impossível formular
argumentos de um modo ou de outro; mas não importa a solução
alcançada, sempre tenho uma objeção sobressalente”. Os que
agem assim são maus por natureza. Portanto, formulo este ponto:
quando se passa à sabedoria de Deus, ele quer que estejamos
seguros e certos. Com certeza as coisas essenciais são a fé e a
obediência. Nosso Senhor também quer que tenhamos tranquilidade
mental, mas permanecemos ansiosos e estressados até que ele nos
mostre o caminho da salvação. Ora, visto que Deus quer aliviar-nos,
de modo que nossas mentes não mais se sintam angustiadas,
quando deliberadamente empilhamos questões sobre questões,
acaso não rejeitamos o precioso dom que Deus nos está
oferecendo? Também não profanamos sua santa Palavra quando a
tomamos como causa de porfia e controvérsia? Daí Paulo
efetivamente condenar tais ações, chamando-as de completamente
insensatas.
Não que isso seja sempre óbvio, pois, como já se disse, os
que fazem perguntas aparentemente sérias e novas consideram isto
um modo inteligente de adquirir um nome para si. Pessoas são
enganadas por eles, tanto que alguém que é mais bem habilitado na
prática da tagarelice é justamente o mais altamente admirado. Por
que, pois, Paulo descreve todas essas questões como sendo
insensatas? Sua ideia de insensatez não é aquela que os homens
imaginam. Por insensatez, ele tem em vista tudo quanto é sem
sentido, insignificante e irrelevante. Então, deixemos que estes
mestres argutos excitem quantas disputas quiserem e sejam
louvados por suas sutis especulações. Não obstante, o Espírito
Santo os chama insensatos, porque não tentam edificar o povo de
Deus nem se preocupam com a salvação das almas. De fato, Paulo
provê um exemplo do tipo de questões que ele tem em mente. Ele
descreve como néscios os que se ocupam com genealogias. Ora,
há muitas pessoas que gostam de provar quão inteligentes são
traçando o número de filhos nascidos em uma família e os vários
ramos nos quais mais tarde se separam. Certamente algumas vezes
se fará necessário tratar de genealogias; mas, ao fazer isso,
devemos exercer a moderação. Houve muita razão para Mateus e
Lucas relatarem como nosso Senhor Jesus Cristo descendeu de
Abraão. Na verdade, Lucas retrocede a Adão. Por quê? É assim que
chegamos saber que ele é realmente homem; e também que ele é a
santa semente prometida a Abraão, a qual foi revelada mais
plenamente a Davi, uma vez o reino se viu estabelecido solidamente
em sua mão e lhe foi dito que este seria eterno. Eis a sorte de
genealogia que deve ser explanada. No entanto, notamos quão
reservados foram os Evangelistas sobre isso. Lucas fala dele como
que às pressas, de modo a não ocupar tanto a nossa atenção.
Reiterando, Mateus se move rapidamente através de sua narrativa,
como se dissesse que basta sabermos que nosso Senhor Jesus,
que é chamado o Cristo, descendeu da linhagem de Abraão e de
Davi. Mateus se contenta em conhecê-lo como o Redentor que fora
prometido desde os tempos antigos aos santos patriarcas. O
Espírito Santo, pois, mantém rédeas firmes sobre nós, a fim de não
vaguearmos por pontos sem importância. Esta é a maneira de Paulo
enfatizar a necessidade de retermos o que Deus tem ensinado com
clareza. Por quê? Porque ele sabe o que nos é necessário.
Às genealogias, Paulo anexa ainda contendas e debates [ou,
discussões e controvérsias], pois sempre que os homens intentam
fazer sua marca, necessariamente o vulcão entra em erupção. O
interesse egoístico sempre leva a interminável porfia, quando os
homens passam a argumentar entre si, como Paulo nos lembra em
Filipenses [Fp 2.3]. Eis por que nunca devemos ser aferrados às
nossas próprias vontades e ao nosso senso de importância pessoal.
Não devemos tentar obter o melhor de nossos colegas; mas, em vez
disso, devemos buscar edificar uns aos outros. Os que são
responsáveis pelo ensino devem labutar fielmente até o fim, de
modo que ajudem os demais a progredir. Todos nós devemos
empregar os dons que Deus nos deu, partilhando como membros do
único corpo que temos recebido. Se esse for o padrão pelo qual
vivemos, seguramente não haverá disputas entre nós. Pois basta
obedecer à verdade, tendo Deus como nosso Mestre, a fim de que
grandes e pequenos tirem proveito dele: as mentes que são
instáveis e caprichosas certamente acenderão uma fogueira. O
diabo não tem maiores deficiências do que os que tentam seguir à
frente de todos. São pragas da pior espécie. Se um homem for
conceituado, então pode ter muita virtude; mas quando este vem
para liderar a igreja de Deus, seria preferível que fosse efeminado
ou ébrio, pois os pecados de um efeminado são peculiares a si
próprio; e o mesmo se dá com o ébrio. Mas quando um homem é
tão malignamente disposto a chamar a atenção e a se promover, o
diabo já venceu; e, a menos que Deus, em sua grande bondade
ponha as coisas nos trilhos, tudo estará perdido.
Em consequência, havendo falado da necessidade de evitar
questões irrelevantes, Paulo acresce que devemos evitar
controvérsia em todas as suas formas, pois estas duas coisas
devem seguir juntas, como foi dito. Então, ele insta Tito a evitar um
homem que é herege, quando for advertido uma ou duas vezes. Isto
se segue do que foi dito previamente. Se não tivermos esta palavra
de advertência, não poderíamos pôr em prática o que ensinamos
anteriormente; pois, enquanto não me dispuser a edificar a igreja e a
fazer isso com intenso esforço, não posso impedir a excessiva
curiosidade dos que se extraviam ou os facciosos de instigar porfia
e resistência franca. O que, pois, devo fazer? Paulo me diz que
devo agir decisivamente contra os que são motivados por interesse
pessoal e tentam impor-se. Naturalmente, ainda que crêssemos
neles, os argumentos ainda seguiriam seu curso; e, supondo que
suas bocas fossem fechadas, ainda estariam prontos a retrucar,
como aqueles que já perderam todo senso de pudor. A experiência
nos comprova isso. Não obstante, não seria a melhor solução isolá-
los, rejeitá-los e restringi-los de continuarem falando?
E assim há uma clara conexão entre este ensino e o que foi
explanado previamente. No entanto, é necessário fazer aqui uma
importante distinção. Quando os servos de Deus se veem atraídos,
querendo ou não, a controvérsias, são tentados a apresentar várias
questões. É verdade que, se dada a escolha, antes devem
proclamar a vontade de Deus e simplesmente apresentar o que é
bom e proveitoso para a salvação de todos. Mas, quando não lhes é
permitido fazer isso, quando são provocados e ameaçados com
vexame se deixarem de replicar, visto que estas coisas lhes são
impostas, então eles têm uma escusa genuína. Não obstante, Paulo
diz que não devemos permitir que sejam desviados do curso. Por
boa razão, pois, Tito é instruído a evitar o homem que é herege,
pois o diabo está sempre pronto a incitar os homens a divergir de
nosso trabalho, e a aborrecer-nos, de modo a não termos tempo de
ensinar o povo e a edificá-lo como demandam.
Veja bem! Aqui está a Santa Escritura: queremos anunciá-la
com pureza e para o bem de todos. No entanto, o diabo tenta
fechar-nos a porta e instigar os intrometidos que querem nos distrair
de tudo o que é bom e necessário. Ora, se fosse assim que
gastamos nosso tempo, o que seria de nós? Novas objeções a cada
dia; novos argumentos em réplica — a verdade de Deus estaria
escondida nas trevas! Resolvamos, portanto, obedecer ao que nos é
ordenado aqui e deixemos os hereges sozinhos, uma vez tenhamos
lhes ministrado uma ou duas advertências.
Paulo pressupõe que em primeiro lugar temos que reconhecer
o herege antes de expulsá-lo. Pois o que aconteceria se
condenássemos todos aqueles por quem sentimos aversão? É
preciso que em tais coisas haja discernimento. Quando Paulo fala
de hereges, ele distingue os que não dão seu assentimento à
verdade de Deus; os que se apartam da unidade da fé e causam
transtorno na igreja. Lemos que é dito aos Filipenses, que, se os
crentes não concordam sobre algum ponto e não chegam a uma
decisão unânime, devem ser razoáveis, promover a paz e a
concórdia, até que Deus lhes ensine o que ainda não conhecem [Fp
3.15]. Não podemos conhecer tudo; e alguns avançarão adiante dos
outros. Portanto, aquele que é mais adiantado haverá de desprezar
os demais, justamente por que sabe mais? Inclusive pode suceder
que alguém que é muitíssimo versado na Santa Escritura, e a quem
Deus revelou muitos de seus mistérios, seja ignorante sobre um
ponto particular. Então, em tais casos temos a necessidade de
suportar uns aos outros. Alguém que não concorda conosco não
deve ser condenado como herege; pois hereges são os que se
reúnem em oposição à Palavra de Deus e se desviam das verdades
essenciais de nossa fé — do que é chamado a substância de nosso
cristianismo —, e que, por suas ações, separam os outros do corpo
de nosso Senhor Jesus Cristo. Portanto, os que dispersam a igreja e
perturbam a casa de Deus, neste texto são intitulados hereges.
Quando Paulo escreve que devem ser advertidos, ele não está
falando meramente de advertências que podem ser ministradas
privadamente. Sua intenção é que sejam incisivamente
repreendidos e condenados. Portanto, se hoje um homem se
extravia, o mesmo não é um herege ainda que haja errado. Eu diria
que, por mais grave seja seu erro, se isso não se deve
simplesmente à inadvertência, o mesmo deve receber reprimenda; e
se a ofensa é grave, ele não deve ser alvo de complacência. Seja
como for, não há heresia quando não há resistência franca e quando
um homem não se exclui da unidade dos crentes. Para que a
heresia exista, deve haver uma cisão dos caminhos. Assim vemos
que o homem que foi advertido privadamente não é herege por
causa disso. No entanto, se ele resiste obstinadamente e não
consegue voltar à razão, isso deve ser corretamente levado ao
conhecimento público. Eis a sorte de advertência que o apóstolo
tem em mente.
Então, quando se envidam esforços para conquistar um
homem de volta, e quando de modo algum se torna melhor,
desafiando a Deus abertamente, tão somente buscando perturbar a
igreja e agir por mero despeito, devemos julgá-lo como um herege
sem esperança. Eis por que ele é aqui descrito como um homem
arruinado. A imagem é de um edifício que caiu em total decadência.
Se houver defeito numa casa, tudo bem, naturalmente ele será
reparado. Se houver buracos no teto, ou rachaduras numa parede,
nós os tampamos e emendamos, de modo que tudo seja corrigido.
Mas quando a casa é uma completa ruína, por que a preocupação?
Será uma perda de tempo, e o prejuízo será pior do que antes!
Paulo diz que uma pessoa que não sente o temor de Deus está
arruinada. Um homem pode errar em algum aspecto; mas, contanto
que ainda tenha em si alguma raiz do temor de Deus, finalmente se
recuperará. Da própria experiência sabemos que isto é procedente
da parte dos que têm ideias errôneas. Todo aquele que acalenta
uma falsa crença, mas que possui algum temor de Deus,
seguramente, mais cedo ou mais tarde, se recuperará, pois o
fundamento permanece e a casa pode ser outra vez edificada sobre
ele. Todavia, quando alguém de tal modo se encoleriza contra Deus,
que seu egoísmo diabólico o arrasta, o que há para se lucrar?
Portanto, cabe-nos julgar com todo cuidado e reconhecer se um
homem está ou não arruinado. O que nos cabe fazer? Antes de
tudo, ele deve ser instruído com brandura; então, conduzido perante
a igreja, como que na presença de Deus, e advertido e castigado.
Entretanto, se ele é empedernido e, no dizer da Escritura, possui um
espírito de amargura [Hb 12.15], de modo que nada aceita do que
lhe é dito, então esse é um homem arruinado. Por quê? Porque não
há nele o temor de Deus, o qual pode servir de fundamento. Esse é
o sentido de Paulo neste versículo.
Ora, se aqueles cujo dever é pregar a Palavra de Deus são
advertidos a evitar os hereges, isso deve aplicar-se também a todo
o corpo da igreja. Pois, se um indivíduo fizer oposição a um herege,
o que pode ele fazer? Certamente deve tentar o máximo que possa
reconduzi-lo a Deus. Se há uma ovelha que se extravia, ela deve
ser reconduzida ao rebanho. Sim, mas se há um lobo, deve ser
conduzido ao rebanho a fim de dispersá-lo? Porventura não zomba
de Deus quem diz, como muitos fazem: “Ele é uma pobre ovelha.
Deve ser reconduzido”. Na realidade, como bem sabemos, ele é um
lobo; ou, melhor, um diabo, cujo alvo é destruir tudo. Entretanto,
devemos pretextar que nada está errado? Alegaremos que somos
mais sábios que Deus? Se não pudermos entender isto, nosso
Senhor será vingado sobre nós, pois nossa displicência e uma
similar condenação cairão sobre nós. Nada mais será empreendido
por aqueles que querem ir além dos limites. Ora, se é errado ir longe
demais na conquista dos hereges, quando provam estar fora de
toda esperança, o que aconteceria se os recebêssemos em nossos
lares, os alimentássemos e fôssemos mais amigos deles do que de
qualquer parente ou irmão? Ou se os que administraram a justiça e
que por isso deveriam usar seus poderes para punir os hereges e
expulsá-los, clamasse protegê-los? Eles fariam de tudo para voltar
ao nosso meio e desafiar descaradamente a Deus sempre que
surgir uma oportunidade. Vejam! Eis um homem de autoridade no
governo: na verdade, ele alega sustentar o evangelho e recebe a
Ceia de nosso Senhor. Todavia, você outra coisa não é senão um
Judas! Você vê à sua frente hereges que têm solapado a doutrina
de Deus; lhes dá as boas-vindas; os favorece! Que bem isso faz
senão poluir e devastar todas as coisas?[27]
Eis como este texto de Paulo deve ser aplicado. Um herege,
uma vez advertido, como foi dito previamente, aconselhado com
protestos solenes, e como que na presença de Deus, deve ser
afastado como uma praga mortífera se persistir obstinadamente.
Que ninguém diga: “Responda: acaso a igreja não deve apiedar-se
da pessoa que crê e se arrepende?”. Claro que sim! Mas quando
vemos alguns, cuja boca e coração Deus fechou, publicamente
blasfemando e sem demonstrar sinais de arrependimento, devemos
reconduzir esses ao rebanho? Nós conhecemos os deveres
requeridos dos verdadeiros ministros do evangelho. Estes carecem
de uma voz mansa e amorosa para atrair ao rebanho os que são
passíveis de ensino e dispostos a aprender; mas devemos também
expulsar os lobos e ladrões e usar uma voz que grite contra todos
os que dispersam o rebanho. Essas são as tarefas de que os servos
de Deus devem ocupar-se se fazem adequadamente seu trabalho.
Paulo agora leva sua carta ao fim. Ele escreve: Agora, quanto
aos nossos, que aprendam também a distinguir-se nas boas obras.
Ele faz a mesma ênfase que fez previamente: que se empenhem
em fazer o bem. Aqui ele extrai um contraste com a absurda
arrogância de tantos que se orgulham em suas especulações
argutas. “Oh!”, diz ele, “suas teorias são excelentes, porém
considere de que maneira os filhos de Deus devem realmente
distinguir-se. Isso se dá quando mostram que têm feito proficiência
na prática do bem e quando se esforçam ao mesmo desempenho
até o fim.” As palavras “que aprendam” sugerem que, enquanto
tinham mal gastado seu tempo, se deixaram levar por néscio
egoísmo e se preocuparam com pensamentos fúteis. “Agora,
porém”, diz Paulo, “devem mudar a trajetória. Doravante vocês
devem exceder em boas obras e não em tagarelice sem proveito.
Sua ansiedade e preocupação de seguir em frente devem ser
descartadas, e cada um de vocês deve tentar com determinação
servir ao seu próximo”.
Paulo toma “boas obras” tanto no sentido de esmola quanto de
todos os demais socorros que podemos prestar aos que necessitam
de nosso auxílio. Portanto, aprendamos a ser empregados com
proveito; e, embora no passado possivelmente tenhamos sido
indolentes e indiferentes, e talvez até mesmo parecêssemos com
aqueles a quem Paulo dirige sua carta aqui, doravante devemos
assegurar-nos de que o Senhor nos tem em sua escola e nos tem
mostrado tal graça que, transportados pelo amor para com ele, só
buscamos os melhores e mais estreitos laços com nossos
semelhantes. E, assim, cada um de nós deve considerar que
permaneçamos em seu poder; e, segundo a habilidade que nos é
dada por Deus, que todos sirvamos uns aos outros. É assim que
mostramos que não recebemos o evangelho em vão.
Oração
Agora prostremo-nos diante da face de nosso bom Deus,
reconhecendo nossos erros e rogando-lhe que no-los faça sentir
mais acentuadamente do que antes. Que ele não nos permita
abusar e profanar seu santo ensino interpretando seu significado
erroneamente; mas, ao contrário, edifiquemo-nos na fé de Jesus
Cristo, de modo que permaneçamos sempre nele e sejamos
diligentes na oração e súplica. Que toda nossa vida seja devotada à
prática do bem e a socorrer nossos semelhantes a fim de que
possamos mais e mais aprender o crescimento na graça de nossa
adoção que Deus nos confirma diariamente. E, ao vivermos como
irmãos uns com os outros, que o conheçamos como nosso Pai e
como aquele que nos recebe e nos adota como seus filhos.
LOUVADO SEJA DEUS
ORAÇÕES ANTES E DEPOIS DO SERMÃO
A liturgia genebrina de 1542 especificou para o culto matutino
dominical uma oração por iluminação pronunciada pelo ministro
antes do sermão e uma série de orações de intercessão
pronunciadas depois do sermão. Calvino modelou sua oração por
iluminação naquela que ele já usara na igreja francesa de
Estrasburgo. À oração intercessória seguia-se uma breve oração
extemporânea com a qual concluía seus sermões, introduzida pelas
palavras “Assim todos dirão...” (Textos no CO 23:741-42; 6:175-78.)

ORAÇÃO POR ILUMINAÇÃO


Invoquemos ao nosso bom Deus e Pai, visto que toda plenitude de
sabedoria e luz se encontra nele, para iluminar-nos
compassivamente por seu Santo Espírito na verdadeira
compreensão de sua Palavra e para dar-nos a graça de recebê-la
em verdadeiro temor e humildade. Que sejamos ensinados por sua
Palavra a depositar somente nele nossa confiança e servi-lo e
honrá-lo como devemos fazer, de modo que glorifiquemos seu santo
Nome em todo nosso viver e edifiquemos nosso semelhante por
meio de nosso bom exemplo, rendendo a Deus o amor e a
obediência que os servos fiéis devem a seus senhores, e os filhos a
seus pais, visto que aprouve a ele receber-nos graciosamente entre
o número de seus servos e filhos.

ORAÇÃO INTERCESSÓRIA
Onipotente Deus e Pai celestial, tu prometeste ouvir e responder
nossos pedidos que fazemos a ti no nome de teu amado Filho,
Jesus Cristo, nosso Senhor. Somos ensinados por ele e seus
apóstolos a nos reunirmos em seu nome, com a promessa de que
estará entre nós e intercederá por nós diante de ti, para que
recebamos e obtenhamos todas as coisas nas quais concordamos
na terra.
Tu nos instas a orar primeiramente por aqueles a quem
estabeleceste sobre nós, nossos líderes e governantes, e, a seguir,
pelas necessidades de todo o teu povo e de todos os homens em
todos os lugares. Portanto, confiando em tua santa verdade e em
tua promessa, estando reunidos aqui diante de ti no nome de Jesus,
amavelmente te rogamos, nosso Deus e Pai, em tua infinita mercê,
que perdoes nossas transgressões e que eleves nossos
pensamentos e desejos a ti, para que te invoquemos ardorosamente
segundo tua boa vontade e beneplácito.
Portanto, oramos, ó Pai celestial, por todos os príncipes e senhores,
teus servos a quem confiaste a regra da justiça. Mui
particularmente, oramos pelos governantes desta cidade, para que
os revistas com teu Espírito, o único que é gracioso e soberano, e
diariamente aumentes neles seus dons, para que, reconhecendo teu
Filho Jesus Cristo como Rei dos reis e Senhor dos senhores, com
pleno poder no céu e na terra, busquemos servi-lo e exaltar seu
reinado em todos os seus domínios, e para que, segundo a tua
vontade, guiem e governem seus súditos, os quais são a obra de
tuas mãos e as ovelhas de teu pasto. E para que nós, teu povo, aqui
e em todos os lugares, sendo guardados em paz e tranquilidade,
sirvam a ti em santidade e justiça e, livres do temor de nossos
inimigos, rendamos louvor todos os nossos dias.
Oramos ainda, verdadeiro Pai e Salvador, por todos a quem tens
designado pastores de teu povo, os quais têm o cuidado das almas
e da administração de teu santo evangelho. Guia-os e dirige-os por
teu Santo Espírito, para que sejam achados fiéis e verdadeiros
ministros de tua glória, esforçando-se sempre por conduzir as
ovelhas errantes e teimosas ao Senhor Jesus Cristo, nosso sumo
Pastor e supremo Bispo, para que diariamente prosperem e
cresçam nele em toda a justiça e santidade. Concede, além do
mais, que todas as igrejas sejam libertadas das bocas dos lobos
vorazes e mercenários, os quais seguem seus próprios desígnios e
ambições e os quais não exercem nenhum cuidado pela honra de
teu santo nome e o bem-estar de teu rebanho.
A seguir, oramos, mui gracioso Deus e misericordioso Pai, por todos
os homens em geral. Visto que desejas que todos os homens te
reconheçam como Salvador do mundo, pela redenção conquistada
por nosso Senhor Jesus Cristo, que os que não te conhecem,
vivendo em trevas e cativos da ignorância e erro, possam, pela luz
de teu Santo Espírito e pela pregação de teu Evangelho, ser
conduzidos ao caminho da salvação, que é conhecer-te a ti, o único
Deus verdadeiro, e Jesus Cristo, a quem enviaste. Que aqueles a
quem já visitaste com tua graça e iluminaste pelo conhecimento de
tua Palavra, cresçam em toda bondade, enriquecidos por tua
bênção espiritual, de modo que, juntos, possamos cultuar-te de todo
o coração e voz, rendendo honra e louvor a Cristo, nosso Mestre,
Rei e Legislador.
De igual modo, ó Deus de toda consolação, encomendamos-te
todos a quem visitas e castigas com a cruz e tribulação, pela
pobreza ou prisão, doença ou exílio, ou aflição do corpo e da mente.
Que lhes faças conhecido teu paternal amor e lhes assegures de
que o castigo deles visa à emenda de vida. E que, com coração
disposto se voltem para ti e, uma vez feito isso, recebam teu
conforto, sendo eles libertados de todo estresse.
Finalmente, ó Deus e Pai, concede também que nós, que ora
estamos reunidos aqui no nome de Jesus para ouvir a tua Palavra,
possamos, sem dissimulação ou hipocrisia, reconhecer que, por
natureza, estamos perdidos; que merecemos tua punição e que
diariamente acumulamos condenação sobre nós por nossas vidas
miseráveis e indisciplinadas. Ajuda-nos a ver que em nós nada há
de bom e que carne e sangue jamais podem herdar o teu Reino.
Que alegremente e com sólida confiança nos submetamos ao nosso
Senhor Jesus Cristo, nosso único Salvador e Redentor. E que ele de
tal modo viva em nós que nosso velho Adão, sendo entregue à
morte, se erga para uma vida nova e melhor, para o louvor e glória
de teu nome.

[1] Jerome D. Quinn, The Letter to Titus (Nova York: Doubleday, 1990), p. 13-14.
[2] Detalhes bibliográficos são dados por Rodolphe Peter e Jean-François Gilmont,
Bibliotheca calviniana, 3 vols. (Genebra: Droz, 1991-2000), I, p. 274-77, 342-44.
[3] Peter e Gilmont, Bibliotheca calviniana, II, p. 857-61. Em adição aos dezessete sermões
em Tito, o volume somou cinquenta e quatro sermões em 1 Timóteo e trinta em 2 Timóteo.
Sobre a data, preservação e transmissão dos sermões de Calvino, veja T. H. L. Parker,
Calvin’s Preaching [A pregação de Calvino] (Edinburgh, T. & T. Clark, 1992), p. 65-75, 163-
68.
[4] Calvini opera quae supersunt omnia, ed. G. Baum, E. Cunitz e E. Reuss, 59 vols.
(Brunswick e Berlin: C. A. C. Schwetschke & Son, 1863-1900), 54:373-596. Ali citado como
CO.
[5] Aqui e em outros lugares, Calvino usa o termo prestre para designar tanto sacerdotes
da Igreja Católico Romana quanto o ofício neotestamentário de “presbítero”, do qual deriva
tanto o prêtre francês como o priest inglês. Mais comumente, o Reformador traduz
“presbítero” como ancien (ancião), enquanto seu termo preferido para um ministro da
Palavra e do Sacramento é pasteur (pastor). A palavra evesque (bispo), para a qual o
pregador já havia chamado a atenção, semelhantemente, deriva do grego episkopos, e
designa a função de supervisor mencionado em Atos 20.28. Ver-se-á que em seus
sermões em Tito Calvino fala de presbíteros como aqueles que detêm um ofício
pedagógico na igreja. A distinção entre anciãos que ensinam e governam, que aparece
pela primeira vez nas Institutas de 1543 e é repetido no comentário sobre 1 Timóteo, não
se encontra aqui. Cf. Comentário de 1 Timóteo 5.17; Institutas IV.4.1, IV II.1,6.
[6] Uma referência à doutrina católico-romana da Missa como um sacrifício, na qual o corpo
e o sangue de Cristo são reapresentados a Deus como uma oferenda pelo pecado em
favor dos fiéis, quer vivos, quer mortos.
[7] O “mísero herege” de Calvino era o sábio espanhol Miguel Serveto; antes do ano de
1531, atacou vigorosamente a doutrina da Trindade e que mais tarde renovou sua crítica
em seu livro Christianismi restitutio de 1553. Preso pela Inquisição por heresia e
aprisionado na França, em abril daquele ano escapou, mas foi apreendido quatro meses
depois em Genebra. Ali, foi julgado, condenado e enviado à estaca em outubro de 1553. O
caso Serveto foi usado pelos membros do chamado partido Libertino, cuja influência em
Genebra chegou então ao seu auge, com o intuito de abalar Calvino e frustrar suas
tentativas de reforçar uma disciplina mais estrita tanto na igreja como na cidade. Não foi
até maio de 1555, três meses antes de o Reformador começar a pregar sobre Tito, que os
Libertinos se viram forçados a reconhecer a derrota. Além do mais, os ecos da controvérsia
com Serveto se encontram nos Sermões 7, 13 e 17.
[8] O sacramento da Ceia do Senhor era celebrado em Genebra, não semanalmente como
Calvino teria preferido (Institutas IV.17.43,46), mas trimestralmente, na Páscoa,
Pentecostes, no primeiro domingo de setembro e no domingo mais próximo ao Natal. De
antemão, tinha de ser feita a nota da celebração, como aqui, no domingo anterior. Cf.
Sermão 5 (datado de setembro de 1555).
[9] Os candidatos ao sacerdócio católico-romano são ungidos com óleo durante o rito de
ordenação, simbolizando a unção do Espírito Santo. Daí a referência a “sacerdotes
besuntados”. Cf. crítica de Calvino a tal prática nas Institutas IV.19.30-31.
[10] Veja o sermão vigésimo segundo em 1 Timóteo 3.1-4 (CO 53: 268-70).
[11] O Interino de Augsburg era um documento preparado sob a instigação do Santo
Imperador Romano, Carlos V, com vistas a assegurar o estabelecimento provisório entre as
confissões beligerantes em seus territórios germânicos. Aprovado em junho de 1548 pela
Dieta de Augsburg, o Interino concedeu aos protestantes o princípio do matrimônio clerical
e a comunhão em ambas as espécies (pão e vinho); mas, em contrapartida, mantiveram as
crenças e práticas tradicionais. Ele teve um efeito profundamente decisivo na opinião
protestante na Alemanha. Melanchthon, sucessor de Lutero, deu seu assentimento
limitado; outros, como Bucer, em Estrasburgo, recusaram-se a obedecer e escolheram o
exílio voluntário. Calvino sujeitou o documento à crítica em sua obra de 1549: O verdadeiro
método de reformar a Igreja, em que ele acusou os autores do Interino de “deixar-nos uma
metade de Cristo; de modo que não há nenhuma parte de seu ensino que não seja
obscurecida ou manchada por alguma nódoa de falsidade” (CO 7:591-92).
[12] “Nariz de cera” era uma imagem desprezível empregada pelos apologistas católico-
romanos com o intuito de atacar várias leituras protestantes da Escritura, sendo o texto
sagrado vergado ou modelado para adequar-se aos preconceitos dos expositores
teológicos. Seu argumento era que somente o magistério oficial da igreja podia apresentar
uma interpretação unificada e autorizada da Palavra escrita de Deus. A imagem, que
parece ser de origem medieval, é frequentemente citada por Calvino a fim de demonstrar a
atitude arbitrária de Roma para com a Escritura.
[13] De um poema escrito em louvor a Zeus, por Epimênides de Cnossos (VII a.C.). A
mesma estrofe contém a linha citada por Paulo em seu discurso diante do Areópago [At
17.28]: “Nele vivemos, nos movemos e existimos”.
[14] O grego de Tito 2.3 traz hieroprepeis, “conveniente com o que é sagrado”; “reverente”
(ESV).
[15] Cf. Institutas III.10.4, onde são citados dois provérbios com este propósito. Um,
atribuído a Cato, o Velho (“Cuidar exageradamente do vestuário equivale a cuidar pouco
demais da virtude”); aparece numa forma ligeiramente diferente em Ammianus Marcellinus,
Book of Deeds [Livro dos Feitos], XVI.5.2.
[16] Veja o sermão 41 em 1 Timóteo 5.11-15 (CO 53: 494-96).
[17] Existem várias formas do provérbio. Cf. Ovídio (Art of Love [A arte de amar], I.751):
“Aquele que ama não precisa temer o inimigo; fuja dos que você tem por amigos, então
você estará a salvo”. Cícero (On Friendship [Da amizade], XXIV.90) atribui a Catão um dito
que Erasmo também registra em seu Adages [Adágios] (IV.3.76): “Alguns homens são mais
bem servidos por inimigos amargos do que por seus amigos de língua açucarada”.
[18] Cf. Institutas, IV.20.4: “O fato de que são chamados deuses todos os que exercem a
função de magistrados [Êx 22.8; Sl 82.1, 6] é o título de não menos importância,
significando que eles têm um mandato de Deus, recebem dele sua autoridade e
representam plenamente sua pessoa, sendo em certo sentido seus substitutos”.
[19] Aqui, Calvino faz uso um tanto livre do provérbio citado por Paulo em 1 Coríntios 15.33
(“As más conversações corrompem os bons costumes”). Em geral, o dito é remontado a
uma comédia perdida de Menandro, Thais.
[20] Veja, acima, o terceiro sermão em Tito 1.4.
[21] Veja o décimo terceiro sermão em Tito 2.3-5 (CO 53:147-54).
[22] Diferentemente da referência anterior a Serveto (Sermão 3, nota 3), esta é
inusitadamente detalhada. A despeito da aparente ortodoxia de certa fórmula empregada
por ele, Serveto recusou-se a reconhecer Jesus Cristo como o Filho eterno, preexistente,
igual em essência e dignidade ao Pai. Defendia que ele era humano e tornou-se divino pela
ação da Palavra eterna que, infundida no homem Jesus, elevou-o à divindade e vestiu-o
com carne celestial. O credo antitrinitário de Serveto, aliado ao molde geralmente panteísta
de seu pensamento, foi suficiente para condená-lo aos olhos de todos, com exceção dos
mais liberais de seus contemporâneos. Calvino refutou publicamente o conceito de Serveto
em seu tratado de 1554, Defense of Orthodox Belief in the Holy Trinity [Defesa da fé
ortodoxa na Santa Trindade] (CO 8: 433-644), e o fez novamente na última edição de suas
Institutas (II.14.5-8).
[23] Calvino está pensando no uso, em Colossenses 1.19 e 2.9, do verbo katoikein,
“habitar, assumir residência”.
[24] A afirmação católico-romana definitiva sobre o livre-arbítrio foi promulgada pelo
Concílio de Trento em seu decreto sobre a justificação (janeiro de 1547). O Concílio
determinou que o livre-arbítrio, embora enfraquecido e diminuído em seus poderes pelo
pecado de Adão, não se extinguiu e que, quando suscitado por Deus, era capaz de
cooperar com a ação de Deus “a fim de preparar-se para a obtenção da graça da
justificação”.
[25] A noção de que a vontade humana não regenerada é capaz, em algum grau, de
aspirar ao bem era um artigo de fé entre os escolásticos medievais e seus sucessores do
século dezesseis. Veja a longa crítica de Calvino nas Institutas II.2.27.
[26] Como mostram as observações de Calvino que levam em conta o uso da água e como
ele deixa claro mais adiante em seu sermão, o batismo em si não efetua a regeneração e a
renovação. Ele é um “sinal” da promessa de Deus de purificação através do Espírito Santo
e da nova vida em Cristo. Como todas as promessas de Deus, ele é apropriado pela fé, a
qual é em si mesma um dom de Deus. Cf. Institutas IV.15.1-2,14-15.
[27] O Reformador alude mais uma vez aos seus oponentes libertinos que, ao longo do
julgamento e detenção de Serveto (agosto-outubro de 1553), pareceram, por razões
pessoais, ser simpáticos ao prisioneiro. Aos olhos de Calvino, sua simpatia era equivalente
a conluio.

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