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RECENSÃO

Breve História da Angola Moderna


[séculos xix-xxi],
de David Birmingham,
por Michel Cahen

Análise Social, liii (2.º), 2018 (n.º 227), pp. 532-539


https://doi.org/10.31447/as00032573.2018227.18
issn online 2182-2999

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https://doi.org/10.31447/as00032573.2018227.18

birmingham, David
Breve História da Angola Moderna [séculos xix-xxi],
Lisboa, Guerra & Paz, 2017, 208 pp.
isbn 9789897022425

Michel Cahen

David Birmingham é um dos principais do século xvi, precisamente porque os


especialistas da história portuguesa, reinos africanos tinham as suas próprias
em particular colonial, autor de livros histórias. Serve também para explicar a
e artigos importantíssimos (Trade and posição do próprio autor –  por sinal o
Conflict in Angola: the Mbundu and their inventor da palavra “lusófono”, em 1973,
Neighbours under the Influence of the passada para português logo em 1974 –
Portuguese, 1483-1790, Oxford, Claren- no fabrico da história angolana. A cro-
don Press, 1966). Muito pouco depois nologia recua até 1483, apesar de o livro
da terceira edição da sua A Concise His- tratar do período posterior a 1822, até
tory of Portugal (Cambridge University 2002 –  e é pena não ter continuado até
Press, 2014 [2003]) saiu A Short History 2014 (atendendo a que a versão inglesa
of Modern Angola (Londres, C. Hurst & é de 2015).
Co, 2015) que foi bem acolhida pela crí- O capítulo 1, “O forjar de uma coló-
tica científica, e que agora se publica em nia” (pp. 19-33) é de uma importância
português. É um livro pensado para uma fundamental, sendo quase uma breve
difusão ampla em Portugal –  e espere- história da Breve História, apresen-
mos que seja também o caso em Angola tando uma reflexão sobre o quão difícil
e no Brasil  – mas não deixa de ser um e complexo foi o forjar de uma colónia
livro de historiador. Precisamente por- num século (“dos anos 20 do século xix
que é uma “breve história”, as grandes aos anos 20 do século xx”, p. 32), uma
tendências da história devem ser postas colónia que, chegada a 1960, tinha uma
em evidências, e é preciso fazer escolhas. riqueza “equiparável à do império fran-
É um livro sem referências nem notas de cês na África ocidental” e uma popula-
rodapé, mas com bibliografia final indi- ção colonial igual à britânica na Rodésia”
cativa, como guia de leituras comple- (p. 20). Assim, o autor não embarca em
mentares (voltaremos a isso infra). Além teses habituais sobre o “arcaísmo” da colo-
de um breve prefácio, o livro contém nização portuguesa em África – o que foi
uma cronologia, nove capítulos e mais bem arcaico foi o colonialismo português
um apêndice. perpetuado até a exaustão.
O prefácio serve para “posicionar” O capítulo 2, “A cultura urbana da
a história de Angola na história do sis- cidade de Luanda” (pp. 35-52), faz-nos
tema-mundo capitalista – visto não fazer entrar no que será o estilo do resto do
sentido falar do espaço “Angola” antes livro, quase escrito como uma novela,
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ou pelo menos um documentário. agrícola produtiva – salvo poucas exce-


Assim, este capítulo sobre o século xix ções ­individuais, e as grandes empresas
assenta quase integralmente no relato do século xx vieram da metrópole ou do
de George Tams, médico britânico che- exterior. Também os ambaquistas (quase
gado a Luanda em novembro de 1841. uma casta de africanos letrados em por-
A sua leitura remete-nos para a Luanda tuguês, que trabalhavam para chefes e
escravista, e acompanhando o médico outros lugares, pp. 58-64) não puderam
podemos perceber como a totalidade tornar-se uma pequena burguesia afri-
dos aspetos da vida económica, social, cana – a burguesia tinha de ser branca,
cultural e até cultual da cidade era con- como no Brasil. Este capítulo descreve
dicionada pela escravatura – “Noventa também a conquista efetiva de Angola
por cento das exportações de Angola pelos portugueses, no século xix, bem
eram ainda compostas por escravos como o congresso de Berlim convocado
nos anos 40 do século xix” (p. 36), mas em 1884 para encontrar uma “solução”
nem todos os escravos eram exportados para o rio Congo. Depois de um capítulo
(p. 45). principalmente virado para o Norte, o
O capítulo 3, “Comércio e política capítulo 4 mantém-nos no século xix,
no interior” (pp. 53-72) segue o mesmo mas é relativo à “Terra e trabalho no Sul”
estilo, mas agora partindo da narrativa de (pp. 73-90).
Ladislau Magyar, um viajante e comer- O autor mostra bem como, até esse
ciante húngaro. Este visitou o Norte de momento, Benguela tinha sido uma
Angola, e depois outras regiões, e teste- colónia quase autónoma desde 1617, e
munhou que Angola se podia tornar um como foi profundamente afetada e “inte-
novo Brasil, com a existência de alguns grada” pelo comércio internacional, em
fazendeiros que utilizavam parte dos primeiro lugar pelo comércio do marfim
seus escravos para tarefas produtivas em nos anos 30, depois pelo da borracha sel-
quintas em vez de exportá-los, tal como a vagem, e finalmente pelo “revivalismo
famosíssima D. Ana Joaquina no Cazengo do velho comércio de trabalhadores,
(pp. 54-55). Mas, como salienta o autor, na verdade escravos, que eram envia-
os “ministros coloniais [sic] em Lisboa dos para a ilha de S. Tomé já não para
haviam sonhado com um “Novo Brasil”, o cultivo do café, mas antes do cacau”
mas não o iriam encontrar no Cazengo: (p. 73). Neste capítulo continuamos a
3 000 escravos não se comparavam aos seguir os passos de Ladislau Magyar,
300  000 escravos que continuavam a desta vez nas terras altas por trás de
trabalhar no Brasil e 3 000 toneladas de Benguela. Nestas zonas consideradas
café não tinham comparação com as pelos estrangeiros como terra incognita,
300 000 toneladas produzidas pelo Bra- o húngaro constatou que a penetração
sil” (p. 56). O fim do trato dos viventes portuguesa antiga tinha deixado ras-
em Angola não provocou a transforma- tos importantes e que essas terras não
ção dos ­traficantes negreiros numa elite precisavam de ser descobertas de novo
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(p. 76). Além do comércio lícito, a de Benguela. Falhou, porque o projeto


exportação de escravos era a atividade de Israel Zangwill passava por criar uma
dominante nos anos 1840. Depois, “pátria judaica” em Angola, quando
seguimos de novo relatos de viajantes, Portugal só queria aceitar imigrantes
em particular Henry Nevinson, o qual individuais, que se tornariam perfei-
não considerava a condição dos traba- tos portugueses. Mas não esmoreceu o
lhadores “contratados” pior em Angola sonho de Norton de Matos de substituir
do que a dos coolies no império britâ- a velha elite mestiça de Luanda “por uma
nico, mas constatava que nunca eles nova geração de imigrantes portugue-
eram repatriados, pois eram escravos (p. ses brancos” e de criar uma população
83). Também é utilizada uma raríssima branca (homens e mulheres) trabalha-
autobiografia escrita por um escravo dora na agricultura (p. 97). O golpe de
angolano, Solomo, que conseguiu esca- 1926 acabou com este sonho, afirmando
par e foi educado numa missão suíça que os trabalhadores negros é que deve-
dos Camarões alemães (pp.82-83, 84). riam ser recrutados com prioridade para
O ultimato britânico de 1890 obrigou uma Angola financeiramente sustentável
os Portugueses a voltar à realidade, aca- (p. 100). Mas o novo regime continuou
bando com o sonho do Mapa Cor-de- a defender a separação racial até aos
Rosa, de ligação da costa à contracosta. anos 50 do século xx (p. 101), empur-
Com a data de 1890, ano do ultimato rando para baixo a velha elite crioula. No
de Lord Salisbury, evocado na primeira entanto, ao lado desses “velhos assimila-
página do capítulo 5, entramos, na dos”, o crescimento urbano fez aparecer
verdade, no século xx. David Birmin- o fenómeno dos “novos assimilados”,
gham insiste no contraste entre os dois africanos negros que vieram fazer con-
países: “Na história diplomática britâ- corrência ao meio social intermediá-
nica, o ultimato de 1890 não merece rio dos mestiços (p. 106). Chegados à
sequer uma nota de rodapé. A “resposta Segunda Guerra Mundial, “a tentativa
leve” de Salisbury não foi considerada de transformar Angola numa coló-
de especial significado. Em Portugal, nia branca estava longe de concluída”
anunciou o fim da velha ordem colo- (p. 107).
nial” (p. 91). Também provocou o for- A segunda metade do século xx, que
talecimento das ideias republicanas, começa em 1945, é abordada no capí-
que não eram em nada anticoloniais. tulo 6, “colonialismo vs. nacionalismo”
É o tempo de governadores-gerais (pp. 109-127): “Em 1945, Salazar pôs as
enér­gicos, Paiva Couceiro e Norton de bandeiras a meia haste quando soube
Matos, que sonham com uma Angola da morte do Hitler” (p. 109). Desta vez,
branca. Nesse sentido, até se ideali- seguimos os passos de Basil D ­ avidson
zou uma imigração massiva de judeus e de Henrique Galvão. É o período do
oriundos da Europa do Leste, em ­ligação boom do café com base no trabalho
com o avanço do ­ caminho-de-ferro forçado dos Ovimbundos, obviamente
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mal vistos pelos Bacongos, cujas terras usou] as forças de segurança políticas
tinham sido expropriadas pelos colonos para reprimir qualquer independência
(p. 111). É o período de expansão das de pensamento que pudesse inflamar
culturas forçadas do algodão, que levou as aspirações da população urbana” (p.
à revolta de janeiro de 1961 na baixa de 141). Reprimida a “fação” nitista, come-
Cassange (p. 114) e da grande revolta do çou já a “fermentar um novo conflito, que
Norte, em março do mesmo ano, com consistia, mais uma vez, numa guerra
atrocidades dos dois lados (p. 116), pas- civil e internacional”, que é estudada no
sando pela revolta do 4 de fevereiro em capítulo 8, “Sobrevivência nos anos 80”
Luanda. Nascem grupos anticolonialistas (pp. 145-165).
(“nacionalistas”) com as suas divisões Com efeito, é durante esta nova
permanentes (pp. 119-124): “escrever guerra que o regime do mpla vai tran-
uma história da fnla, do mpla e da sitar de um “estilo de comando-gestão
unita representa um duro desafio”, reco- soviético [para]  um estilo de mercado
nhece o autor (p. 122). livre americano”, sem que isso detivesse
O que é certo é que esses foram sur- o apoio cubano ao governo e o apoio sul
preendidos pela Revolução dos Cravos -africano à unita (p. 147). Este período
(pp. 126-127). Assim, o capítulo 7, “As é também o do retorno de muitos anti-
lutas dos anos 70” (pp. 129-143) aborda gos bacongo do Congo para o Norte de
as “dores de parto de uma nova nação” Angola ou para a cidade de Luanda, onde
(p. 129) e as guerras angolanas. David serão muito ativos no renascimento de
Birmingham divide-as entre a guerra uma economia de mercado tolerada
de intervenção (agosto de 1975 a março pelo governo e aproveitada pela elite
de 1976), a Guerra Fria (1976-1991) e (pp. 147-150). Também é o período de
a guerra civil (1992-2002). É durante o uma migração gigantesca de populações
período intermédio entre a “guerra de rurais rumo às cidades. Este avanço do
intervenção” e a guerra fria que ocor- capitalismo não foi em nada um avanço
reu a dita tentativa de golpe de Estado da democracia: ao contrário, “a centrali-
de Nito Alves (17 de maio de 1977) zação do poder foi continuamente refor-
(pp. 137-141) provocada pelo descon- çada pela receita do petróleo” (p. 156),
tentamento de parte da base do mpla que não impediu o avanço da unita,
frente a um governo indiferente à situa- sobretudo depois de 1984, com apoio
ção social. Mas se a tentativa de golpe fez sul-africano e, doravante, americano
15 mortes, as “represálias que o Governo (p. 161). A batalha militarmente inde-
abalado tomou […] foram de tal modo cisa de Cuíto-Cuanavale (janeiro de
selvagens que Angola foi lançada para 1988) foi politicamente decisiva, con-
um caminho descendente de uma espiral vencendo a África do Sul que se devia
de violência que ultrapassava as cruelda- negociar. Em troca da partida dos cuba-
des da Guerra Colonial e as brutalidades nos, esta aceitou a independência da
da guerra de intervenção. [O governou Namíbia. Em maio de 1991 foi assinado
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o cessar-fogo de Bicesse para permitir um governo corrupto enfeitiçado pela


eleições em Angola (p. 164) entre belige- riqueza e uma oposição desumana obce-
rantes, tendo perdido “os seus patronos cada pelo poder” (p. 177) e não parecia
da Guerra Fria” (p. 165). “estar à vista nenhuma solução para o
O último e nono capítulo vai até confronto militar entre o governo cen-
ao século xxi e aborda a “Guerra civil tral e as guerrilhas” (p.  179). Só que
e o rescaldo colonial” (pp.  167-186). o governo estava doravante apoiado
“Quando o fardo da guerra foi tempo- pelos eua e Israel, e mercê dos meios
rariamente levantado, os dezoito meses técnicos deles, o chefe da unita, Jonas
entre Maio de 1991 e Setembro de 1992, Savimbi, foi encurralado e morto a 22
representaram o mais espectacular de fevereiro de 2002. Assim terminou
período de optimismo e liberdade que a última das guerras angolanas. Mas,
Angola alguma vez testemunhara” (p. como adverte David Birmigham, “a
167). De acordo com a minha interpre- complexa realidade da Angola do pós-
tação, esse período durou pouco, frente guerra só pode ser compreendida com
a um acordo de Bicesse cego ao pro- referência ao seu passado. Os visitantes
blema da desmobilização e a uma mis- bem-intencionados, nos primeiros anos
são da onu sem poder. Segundo David do século xxi, apressaram-se a falar de
Birmingham, as eleições de 1992 divi- um “regresso à normalidade”, mas isso
diram os cidadãos angolanos “entre os representa uma incapacidade para com-
da cidade e os do campo”, os primeiros preender a História” (p. 180). Além do
votando a favor do mpla e os segundos terrível legado das minas antipessoais, as
da unita (p. 168), que foi oficialmente tensões sociais subiram com a crise das
derrotada. A “guerra civil” estalou a terras em Luanda e a expulsão de muce-
1 de novembro de 1992 “e foi diferente ques ligada à especulação imobiliária.
da guerra colonial de 1961, da guerra A alta dos preços do petróleo a partir
intervencionista de 1975 e da guerras de 2003 permitiu um locou enrique-
[sic] de destabilização dos anos 80. Os cimento de uma ínfima elite e as suas
três conflitos anteriores tinham sido tra- espetaculares compras de empresas na
vados, acima de tudo, no campo […]. antiga metrópole colonial. Como diz o
A guerra de 1992 dizia respeito “a cidades autor , o país “foi administrado por um
inteiras” (p. 169). Este novo período pro- governo altamente centralizado, presi-
vocou não somente ainda mais centrali- dencial, mas foi um governo livremente
zação, mas sobretudo personalização do escolhido por eleição popular. Até a
poder do presidente José Eduardo dos oposição parlamentar falou com opti-
Santos, e também uma onda organizada mismo acerca das perspectivas futuras
de racismo popular contra as etnicidades de Angola” (p. 186).
tidas como não apoiantes do governo Essas duas últimas frases permitam
(p. 175). Angola entrou no século frisar aspetos que merecem discussão,
xxi, num “conflito depravado entre e é com pena que referimos que o livro
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deveria ter sido atualizado, pelo menos (é estranho falar de “uma organização
com uma adenda sobre a década política exilada do outro lado da fron-
2003-2013, sobre os preços altos teira do Congo”, p. 116, sem citar a upna-
do petróleo e sobre os últimos anos -upa-fnla). A propósito do processo
(2014-2017), quando José Eduardo do “poder popular” em Luanda durante
dos Santos anunciou que não se iria a transição (1974-1975), animado pelos
recandidatar. Foi neste período que militantes dos Comités Amílcar Cabral
nasceu uma nova oposição político- (cacs), não citados, é abusivo dizer que
-cultural, a dos jovens Revus (“Revo- foi apoiado pela “liderança local do par-
lucionários”). Também a bibliografia tido” (p. 129, p. 139). Foi uma espécie de
(pp. 203-207) não foi atualizada, o que situação de duplo poder entre essas estru-
deixou de fora dois livros indispensáveis: turas bairristas lideradas pela extrema-
o livro de Ricardo Soares de Oliveira, -esquerda e a direção de um mpla muito
Magnifica e Miserável: Angola desde a enfraquecido pelas suas crises anteriores
Guerra Civil, Lisboa, Tinta da China, e manipulando essa nova geração antes
2015 e o livro de Justin Pearce, A Guerra de reprimi-la (Leonor Figueiredo, O Fim
Civil em Angola 1975-2002, Lisboa, Tinta da Extrema-Esquerda em Angola, Lisboa,
da China, 2017. Guerra & Paz, 2017).
No difícil género das “Breves his- As guerras, que são o pano de fundo
tórias”, o livro de David Birmigham é dos três últimos capítulos do livro, são
fundamental, mesmo tendo em conta classificadas pelo autor como “guerra
as escolhas drásticas que foram feitas. de intervenção” (1975-76), “guerra fria”
Talvez este livro seja demasiadamente (1977-1991) e “guerra civil” (1992-1994-
“português” no sentido de que podia -2002). Esta classificação induz em erro
ser dada maior ênfase, sobretudo para quanto à natureza civil das duas pri-
o século xix, aos Estados africanos do meiras guerras. Ora a guerra civil não
Centro, Sul e Este de Angola que, até ao começou depois da independência, mas
terceiro quarto do século, mantiveram a logo durante a guerra de libertação, com
hegemonia na relação económica e polí- ações violentas de movimentos contra
tica com os portugueses, como mostrou outros movimentos. Essa “guerra civil
Isabel Castro Henriques (Percursos da longa” tem uma forte historicidade. Não
Modernidade em Angola, Lisboa, iict, se trata de subestimar o peso das inter-
1997). O que aqui se demonstra muito venções exteriores, mas essas interven-
bem é o fracasso do “novo Brasil”, apesar ções sobrepuseram-se às guerras civis
do espetacular desenvolvimento econó- e não as criaram. Nunca foram meras
mico de Angola no colonialismo tardio. guerras proxy. A melhor prova é que a
Em contrapartida, a revolta da Baixa de pior das guerras foi a última, quando já
Cassange (que é evocada sem ser citada, não havia os ditos “patronos” (p. 165).
p. 114) e, sobretudo, a grande revolta do E mesmo quando se trata de intervenções
Norte, mereciam mais desenvolvimentos exteriores, não se pode dizer que a África
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do Sul do apartheid era o braço armado página 123, relativamente à atividade


dos Estados Unidos, tinha a sua própria da pide-dgs, fala-se de “entrevistas”
estratégia regional. E Cuba também não quando se trata de interrogatórios. Na
era um mero fantoche da urss. página 129 os ativistas do “poder ao
Outro ponto é as eleições de 1992 e povo” na cidade de Luanda são obvia-
2003. O autor qualifica o regime de José mente os do “poder popular” como
Eduardo dos Santos (no poder de 1979 eram apelidados e se apelavam. Na
até 2018) de “presidencialismo totali- página 205, uma secção da bibliografia
tário” (p. 174) e fala de um “ditador” é chamada “outros materiais angolanos”
(p. 179). Mas considera que as eleições quando, com toda a evidência se trata
de 1991 “haviam sido claramente livres de “outros materiais sobre Angola”, que
e justas” (p. 171) e que, como já vimos, inclui obras portuguesas, brasileiras,
as de 2003 ditaram “um governo livre- francesas, etc.
mente escolhido por eleição popular” Aliás, a bibliografia deveria ser reestru-
(p. 186). Vejo aqui uma imensa contra- turada: num livro em português, porquê
dição. O aparelho de Estado ficou sem- começar a bibliografia com uma secção
pre totalmente controlado pelo mpla, “outras leituras em inglês”? E na já citada
mesmo em 1992, e não é preciso vir uma secção “outros materiais [sobre Angola]”,
orientação superior para uma fraude é de lamentar que não haja nada de José
local generalizada porque é inconcebível Curto sobre a escravatura (por exem-
perder o poder. Mesmo se se considerar plo, Enslaving Spirits: the Portuguese-
que a fraude foi insuficiente para inverter -Brazilian Alcohol Trade at Luanda
os resultados, não se pode dizer que as and its Hinterland, c. 1550-1830, Lei-
eleições angolanas tenham sido alguma den, Brill/Boston, Prometheus Books,
vez livres e justas. Também dizer que, 2004), de Jean-Michel Mabeko-Tali
em 1992, o campo e a cidade votaram sobre o mpla (Dissidências e Poder de
de maneira oposta (p. 168) me parece Estado: Ensaio de História Política: o
um pouco simples, mesmo se é verdade mpla perante si Próprio (1962-1977),
que as raízes sociais do mpla eram mais Luanda, Nzila, 2001), e que haja ape-
urbanas que as da unita. nas uma referência a Christine Mes-
Outra crítica que me permito fazer siant, quando a página 174 sobre a
incide sobre a qualidade da tradu- Fundação José Eduardo dos Santos é
ção. O título Short History of Modern claramente inspirada num artigo desta
Angola devia ter sido traduzido como autora (“La Fondation Eduardo dos
Breve História da Angola Contemporâ- ­Santos (fesa): à propos de l’‘investisse-
nea. Há vários outros erros de tradução. ment’ de la société civile par le pouvoir
Na página 104, por exemplo, a palavra angolais”. Politique africaine, 73, 1999,
native foi traduzida como “nativo”, o pp. 82-102) e que tinha sido publicada em
que é errado tratando-se dos indígenas tempo para poder ser citada a sua obra
enquanto estatuto social colonial. Na póstuma (L’ Angola postcolonial. Vol. 1,
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Guerre et paix dans démocratisation.


cahen, M. (2018), Recensão “Breve História da
Vol.  2. Sociologie politique d’une oléo-
Angola Moderna [séculos xix-xxi], Lisboa, Guerra
cratie, prefácio de G. Balandier, Paris, & Paz, 2017”. Análise Social, 227, liii (2.º), pp. 532-
­Karthala, 2008-2009). -539.
Apesar destas críticas avulsas, parece-
Michel Cahen » m.cahen@sciencespobordeaux.fr
-me óbvio que este livro será de grande
» cnrs/Sciences Po Bordeaux »  cnrs/Sciences Po
utilidade como livro curto sobre a longa Bordeaux — 33607-Pessac Cedex, França.
duração e a complexidade.

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