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O ARQUIVO DO FUTURO COMO NUNCA MÁS

Boaventura inicia dizendo que o arquivo dominante é a forma abissal moderna


de produzir conhecimento, sob o pretexto de armazenar, sendo uma
intervenção epistêmica que se apresenta como uma reformulação passiva e
neutra, que implica em um duplo poder, que seria o poder de produzir ou
selecionar o tipo de conhecimento que se considere que vale a pena se
armazenar e o poder de fingir que não existe qualquer seleção e, desse modo,
o ato de selecionar e o modo de armazenar se consubstanciaria em novo
conhecimento.
Segue Boaventura afirmando que o arquivo moderno é o “cartógrafo oficial”
da linha abissal, sendo que o outro lado da linha (sociedades e sociabilidades
coloniais) se registra no arquivo com uma dupla negação, em que a primeira é a
negação do critério colonial que se apagou como ausências, irrelevâncias e
invisibilidades, ou seja, tudo aquilo que pudesse evidenciar, denunciar o caráter
abissal das sociedades e sociabilidades metropolitanas e uma segunda
negação, consistente na negação de dominação colonial que possibilitou a
extração do que é registrado.
Independente do modo de seleção, aquilo que não é selecionado pelo arquivo,
faz parte daquilo do que é selecionado.
Como bem coloca Boaventura, a outra face do arquivo é o que ele chama de
epistemicídio moderno com todas as suas repercussões históricas.
Boaventura referencia Michel Taussig que, em comentário sobre o Museu do
ouro, em que ele fala sobre o silêncio do museu sobre os mais de três séculos
de ocupação espanhola, o que a colônia significou e o trabalho de escravos nas
minas de ouro, que funcionaram como força motriz do desenvolvimento da
Europa.
Ainda nesta introdução, Boaventura registra que para as epistemologias do sul
o arquivo abissal o que ele chama de artefato epistêmico, estando sujeito à
intervenções epistemológica e metodológica, que incluem várias dimensões
que correspondem às especifidades dos arquivos.
Sobre essas várias dimensões, Boaventura seleciona quatro, a saber: CONTAS
ACERTADAS, MONUMENTALIZAÇÃO, DOCILIDADE e AMBIGUIDADE.
CONTAS ACERTADAS
Sobre o que Boaventura chama de CONTAS ACERTADAS, ele diz que o arquivo
mostra o presente sob o disfarce de um passado concluído.
Embora o arquivo possa ser visualizado e acessado, ele é intocável, imutável,
podendo se admitir acréscimos.
Mesmo que não seja apresentado ao público, aquilo que integra o arquivo
nunca pode sair dele. Boaventura diz que não existe arquivo vivo sem arquivo
morto.
O arquivo confirma o presente, por mais problemático que ele seja,
dramatizando a irreversibilidade do tempo.
O arquivo é, em si mesmo, anti-histórico.
Para Boaventura, em uma perspectiva histórica, as contas nunca estão
acertadas. Quando muito, estão acertadas em um momento presente,
momento este que o arquivo se transforma no momento final.
MONUMENTALIDADE
Boaventura evidencia o duplo aspectos quanto à MONUMENTALIDADE: os
objetos ou documentos que armazena e o espaço no qual eles são
armazenados.
Objeto e espaço se fortalecem mutuamente.
A arquitetura do arquivo evidencia o peso e o valor histórico do que é
preservado.
Como o conhecimento escrito, o material arquivado é rigidamente preservado
por regras arquivísticas e museológicas.
Por outro lado, as vicissitudes sofridas pelo arquivo ao longo da história
revelam a fragilidade da monumentalidade, considerando que diante de
momentos de mudança política, a controvérsia gerada pode até provocar a
destruição dos arquivos.
DOCILIDADE
De forma paradoxal, o arquivo, cuja MONUMENTALIDADE provoca uma
distância e agressividade, ao mesmo tempo também é próximo e disponível.
Boaventura cita o Jardim Botânico, referenciando que o arquivo expõe-se
expondo, mostra-se mostrando, guardando tão bem os seus segredos que
parece que nem os tem.
Para Boaventura, a DOCILIDADE é enganador, na medida que a sua seletividade
só reflete o que está disponível e, seja por motivos de ordem política ou moral,
o que não está disponível não possibilita contestação ou não é contestado
porque não é conhecido ou mesmo porque é declarado não existente.
AMBIGUIDADE
Boaventura enuncia um outro paradoxo do arquivo, em que ele não consegue
iluminar sem projetar sombras ou enaltecer o vencedor sem mostrar o vencido.
Ou seja, o arquivo não é capaz de tornar invisível a história e a memória
negadas.
Boaventura conclui que o arquivo abissal, enquanto cartógrafo oficial da linha
abissal é, em verdade, um cartógrafo muito vulnerável, verificada apenas
quando confrontada com uma intervenção epistêmica hostil, contrapondo o
arquivo com o um contra-arquivo.
As epistemologias do sul propõem duas formas de intervenção do arquivo
abissal: o arquivo palimpsesto, pautado pela sociologia das ausências e o
arquivo insurgente, orientado pela sociologia das emergências. Essas
intervenções visam criar critérios plurais de autoridade para que, nas palavras
de Boaventura, “um arquivo não autorizado não seja um arquivo sem
autoridade.”
Sobre o arquivo-palimpsesto, consiste em uma intervenção que, como
descreve Boaventura, raspa a superfície do que o arquivo mostra, para se
identificar as marcas, as sombras e silêncios do que foi destruído ou produzido
como ausente, invisível e irrelevante.
Segue Boaventura dizendo que o arquivo-palimpsesto é um arquivo pós-
abissal que funciona através de uma apropriação contra-hegemônica de uma
forma hegemônica, recorrendo à AMBIGUIDADE do arquivo, em que o arquivo
abissal não deixa de revelar aquilo que ele esconde tão bem.
Achei interessante a afirmação de Boaventura ao dizer que o arquivo-
palimpsesto é o contra-arquivo formado na base do arquivo abissal existente,
submetendo-o a questionamento e a uma intencionalidade não autorizados,
uma perspectiva curiosa que o desestabiliza, cujo objetivo é
desmonumentalizar o aquivo, forçando-o a reconhecer a sua natureza abissal.
Quanto ao arquivo insurgente, Boaventura faz uma diferenciação com o
arquivo-palimpsesto, que mantém a forma de museu e a forma de arquivo, mas
dando-lhe um significado contra-hegemônico, enquanto que o arquivo
insurgente, de outra banda, rompe com a forma de arquivo, dispersando-a por
uma gama de sítos e tipos de prática que visam arquivar, ainda que por pouco
tempo, um presente não autorizado e não oficial, um presente denso cuja força
advém da reinvidicação de um passado não suprimido.
Daí Boaventura fala em um arquivo disperso por paredes, performances,
vídeos, livros e exposições, verdadeiras manifestações artísticas, sendo elas
manifestações estéticas não autorizadas (contraestética), a exemplo de
murais, grafites, breakdance, hip hop, etc.
Do ponto de vista das epistemologias do sul, a arte tem existência contra-
hegemônica dupla (enquanto manifestação estética e exercício arquivístico).
Para Boaventura, a arte interrompe as convenções estéticas e as convenções
arquivísticas e, para Boaventura, o arquivo insurgente tem mais potencial para
realizar a sociologia das emergências, para permitir que as representações, as
memórias e as experiências negadas assumam suas próprias formas de
expressão.
Tanto o arquivo-palimpsesto como o arquivo insurgente são arquivos pós
abissais (formas de desestabilizar o arquivo ou o museu abissal), cabendo aos
grupos sociais que resistem à dominação avaliar, em cada situação, qual a
melhor estratégia arquivística contra-hegemônica a adotar.
Boaventura informa que a sociologia das ausências visa denunciar as ausências,
as invisibilidades impostas como exercício de dominação, não havendo espaço
para a sociologia das ausências quando os grupos oprimidos assumem a
própria ausência como forma de luta, um direito à invisibilidade ou ao silêncio.
Nesses casos, a ausência, de per si, é pós-abissal.
Boavantura refere-se à museologia social ou sociomuseologia como um dos
movimentos mais consistentes de articulação entre o arquivo-palimpsesto e
arquivo insurgente.
Define a museologia social é um exercício das sociologias das ausências e das
emergências que tem por objetivo a construção do arquivo e museu pós-
abissais em consonância com as epistemologias do sul, interessando-se pela
memória dos que não conseguem esquecer o injusto sofrimento causado pela
dominação capitalista, colonialista e patriarcal, invocando essas lembranças
como parte da luta contra aqueles que se recusam a se lembrar, sendo uma
memória para o futuro.
Desse modo, arquivo-palimpsesto e arquivo insurgente são arquivos do futuro,
rejeitando a idéia de CONTAS ACERTADAS, afirmando a possibilidade de um
futuro que se impõe como uma interrupção radical de um passado de exclusão,
opressão e sofrimento injusto.
É o nunca más (relatório sobre os crimes cometidos pela ditadura militar da
Argentina, publicado em 1984).
Por fim, Boaventura fala sobre o Museu da Maré, abordando um pouco da sua
história, dificuldades enfrentadas para se manter, a exemplo de constantes
ameaças de despejo e deslocação, referindo que o Museu da Maré é um
exemplo de como é possível colocar a memória e o patrimônio a serviço da
coesão social, da dignidade e capacitação, sendo um museu insurgente e
contra-hegemônico que faz a diferença na cena museológica do Brasil de hoje.

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