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Literatura e resistência

Alfredo Bosi e a crítica (fora do Brasil)

Pedro Meira Monteiro

This article aims at putting Alfredo Bosi’s work in dialogue with well-known
theoretical trends in the English-speaking academia. I trace the steps I’ve taken
to make some of Bosi’s reflections available to an English-speaking audience,
and raise a few questions: In the discussion on the “coloniality of power,” which
brings together “Postcolonial” and “Subaltern Studies”, can Bosi’s criticism
play a role? What contribution can his “counter-ideological” critique make to
an academic environment radically different from the one where it originated?
Can a subaltern academic field speak? Finally, I focus on some of the founda-
tions of Bosi’s view and conclude with a discussion of the place of the margins
in his thought, thus identifying what makes it at once distant from and close to
a deconstructionist claim on the transitory nature of the subaltern subject.

Etosstamos acostumados, e fomos treinados, a refletir sobre objetos e sujei-


periféricos. É inegável haver certo charme em ocupar esse espaço, de
onde imaginamos uma série de conexões e cumplicidades com um uni-
verso que se situaria à margem de qualquer centro simbólico. Nem é preciso
demorar-se sobre a importância, para os estudos contemporâneos, sobre a
cultura e a literatura, de tal marginalidade. Para aqueles que foram forma-
dos na academia anglófona, e mesmo para aqueles de nós que trabalhamos
nela há algum tempo, o império dos assim chamados Postcolonial Studies e
Subaltern Studies (que de resto se insterseccionam todo o tempo) nos coloca
numa situação um tanto complexa.
Nós nos regozijamos por pertencer a um campo que diz respeito a sujeitos
dominados, violentados e descartados por todas as formas de pensamento

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ISSN 0024-7413, © 2013 by the Board of Regents
of the University of Wisconsin System
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único. Há um prazer ligado ao periférico, e à representação desse espaço a


um só tempo imaginário e real. Sabemos e repetimos, a todo instante, que
o lugar de onde emana um discurso etnocêntrico é um ponto cego, que se
torna invisível a si mesmo. Por exemplo, um europeu racista do século XIX
(embora talvez não seja necessário ir tão longe) estabelece uma relação de
alteridade com o colonizado sem jamais provocar em si mesmo a sensação
incômoda e fecunda da alteridade. Para colocá-lo de outra forma, podería-
mos supor que todo pensamento colonialista, propriamente eurocêntrico (e
a rigor falocêntrico), apagou os traços da leitura clássica de Montaigne, que
se abria ao outro a ponto de ver o próprio refinamento do Renascimento
como um rito exótico. O eu de Montaigne é um outro, porque é um sujeito
capaz de estranhar-se, enquanto o eu etnocêntrico não se torna ele mesmo
um outro, porque não há estranhamento ou distância alguma daquele cen-
tro simbólico, que é então tomado como o umbigo do universo. Umbigo
que pode aliás viajar em livros e mentes, embora termine por ser localizado,
amiúde, numa Europa ideal, de onde proviria toda uma estirpe espiritual-
mente elevada.
Curioso que os estudiosos das literaturas e culturas lusófonas compar-
tilhemos, com nossos colegas de inglês e literatura comparada – para ficar
apenas nestes campos mais próximos –, essa mesma crença na importân-
cia da periferia ou, quando menos, na importância daquilo que implica o
desvio e a diferença em relação a qualquer identidade fundamentada e cris-
talizada, tida como “culta”, em oposição à impureza da ignorância e dos
saberes não letrados. Falamos, contudo, uma língua periférica, ou “repre-
sentamos” o universo dos falantes dessa língua, o que nos coloca diante de
uma série de armadilhas no plano institucional, onde um domínio pobre
do inglês, por exemplo, pode despertar um verdadeiro desejo calibânico:
aprender a língua da instituição é a forma, muitas vezes, de poder final-
mente amaldiçoá-la.
Mas a língua periférica nos coloca numa situação ainda mais complexa:
fazemos parte da cidade letrada e, no entanto, no âmbito institucional, habi-
tamos a sua periferia, deslocados de um centro simbólico, onde a língua de
Próspero é falada e os seus livros são reverenciados. Em suma, a angústia a
que me refiro poderia resumir-se a uma pergunta muito conhecida, embora
submetida a uma ligeira inflexão: Can a subaltern field speak?
É com tal pergunta em mente que venho sugerindo, nos últimos anos, a
importância do trabalho de Alfredo Bosi, não apenas no quadro da crítica
brasileira, mas também num campo que, salvo engano, vem crescendo con-
sideravelmente. Refiro-me, é claro, à reflexão que se faz, nos países anglófo-
nos e fora deles, sobre a produção cultural dos territórios em que a língua
portuguesa é falada, e onde muitas vezes ela mesma é a língua do poder, isto
é, a língua de um Próspero local.
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Brevemente, recordo que venho de uma pequena cruzada pessoal por


trazer o nome do Bosi para mais perto do debate intelectual na academia
anglófona. O primeiro movimento nesse sentido foi uma pequena entrevista
publicada em inglês na revista da American Portuguese Studies Associa-
tion. Depois disso, recebi Alfredo Bosi nos Estados Unidos (em sua primeira
viagem a este país, em 2008), onde ele proferiu uma série de palestras, das
quais resultou um pequeno e precioso texto publicado no número especial
da Luso-Brazilian Review dedicado ao centenário da morte de Machado de
Assis (Bosi, “Rumo ao concreto”).
A visita de Bosi (que só se dispôs a enfrentar a fila do consulado em São
Paulo quando George W. Bush já havia deixado a Casa Branca) marcava
a publicação de seu ensaio “Colônia, culto e cultura” nos Estados Unidos,
como volume inaugural da série Luso-Asio-Afro-Brazilian Studies & The-
ory, criada por Victor K. Mendes, da Univesity of Massachusetts em Dart-
mouth, numa tradução de Robert P. Newcomb, com um cuidadoso trabalho
de fi xação do texto por Anna Klobucka. Publicado em 2008, Colony, Cult
and Culture se encontra disponível online para livre consulta, com uma pe-
quena introdução crítica e um extenso corpo de notas que preparei tendo
em mente um público não afeito aos debates da historiografia brasileira.
Tais notas esclarecem referências que o texto original em português supõe
naturais para o leitor.
Naquele momento, portanto, como organizador do livro em inglês, me
vi repentinamente diante de um processo de desnaturalização do texto: re-
tirado de seu contexto original, o ensaio de Bosi se desnudava exatamente
naquilo que ele tinha de opaco. Ou seja, ele trazia uma série de referências
que à primeira vista poderíamos supor de alcance universal, mas que, lan-
çadas em outro contexto, para um outro leitor, exigiam explicação. O eu do
texto era um outro, quando deslocado. O texto exigia um paratexto, o que,
no plano filológico, é a prova cabal do estranhamento.
No entanto, havia ali, no texto de Alfredo Bosi, ressonâncias muito inte-
ressantes com questões que inflavam a discussão do estatuto pós-colonial,
na academia anglófona. O próprio conceito de “colonialidade” do poder
(complexo e polêmico como é) e a crítica que promove ao caráter autorrefe-
rente da razão colonial, parecia correr em paralelo àquilo que define a em-
presa crítica de Bosi, isto é, a exploração dos espaços “contraideológicos”, ou
ainda, em termos que recendem à matriz gramsciana em que tantos de nós
bebemos, conscientemente ou não, tais espaços e potências poderiam ser
nomeados “contra-hegemônicos”. Como é sabido, a busca de tais espaços
esgota o campo da alta literatura, avançando sobre um terreno que vai além
do plano estrito da letra, num diálogo cerrado e radical com as tradições
orais, do canto à fala cotidiana. É mais uma vez a cidade letrada que, inco-
modada com o círculo narcísico que marca a sua diferença absoluta em rela-
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ção ao resto do mundo, encanta-se com o espelho deformante de seu Outro.


A letra, por fim, tenta dar conta de sua diferença (aqui, não mais absoluta),
interrogando e flertando com aquele espaço onde o iletrado reponta como
organizador de um outro centro possível do discurso.
Uma pergunta despontava então: seria possível e desejável trasladar um
pensamento como o de Alfredo Bosi, que radica na noção da ideologia como
falsa consciência, a um debate pós-marxista, já marcado pela experiência do
desconstrucionismo, como é o caso dos debates sobre a subalternidade es-
grimidos a partir dos grandes centros universitários de língua inglesa? Seria
possível aproximar o que Bosi chama de “contraideologia” da desconstrução
de um discurso colonial a partir das suas margens – margens também do
próprio campo acadêmico?
É claro que a noção de ideologia como encobridora (ou falseadora) pres-
supõe que no outro polo – o da contraideologia – reside um núcleo de ver-
dade que a ideologia, mais que negar, silencia. Nesse sentido, a ideologia
seria uma espécie de cerrada malha discursiva que oculta a experiência do
Outro.
Seguimos encantados, nesse molde de pensamento, pela ideia de um nú-
cleo contraideológico que, no caso da crítica de Alfredo Bosi, conecta-se à
experiência popular, lida e sentida como uma vivência plena do Outro. No
quadro epistemológico que então se forma reside algo fundamental na his-
tória das ideias na América Latina – ou talvez na história das ideias no cha-
mado terceiro mundo, em termos mais amplos –, que é o encontro do pen-
samento católico, em sua legitimação da vox populi, com uma ampla gama
de leituras de Marx. No caso de Bosi, o segredo desse encontro remete à sua
formação intelectual ítalo-brasileira, já que ele se forma, no início dos anos
sessenta, na Itália, onde é testemunha do embate ferrenho entre croceanos
e gramscianos, e onde o apaixonam a poesia de Leopardi e os personagens
angustiados de Pirandello. Mas em que medida esse corte italiano nos ajuda
a imaginar essa inusitada zona de intersecção entre o pensamento de Bosi e
tendências acadêmicas recentes no meio intelectual de língua inglesa?
No cenário acadêmico italiano de então, de um lado havia uma aposta
idealista, em seu limite espiritualista, no poder semovente da palavra poé-
tica, que em Benedetto Croce é imbuída de um ânimo, ou sopro vital, capaz
de pôr o discurso em movimento. Sabe-se que, sem esse sopro original, não
há poesia para Croce. De outro lado, o debate no seio do marxismo, em es-
pecial no caso dos leitores de Antonio Gramsci, supunha a preponderância
de condições concretas a partir das quais o jogo político se monta. Por-
tanto, a própria liberação das classes oprimidas dependeria da quebra da
hegemonia burguesa – quebra que, de uma perspectiva gramsciana, se faz
mediante o tecer de uma resistência que é também de ordem cultural, o que
aliás permite a Gramsci tornar-se mais tarde uma referência importante nos
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estudos culturais, fazendo uma carreira fulgurante justamente nos Estados


Unidos que ele olhava com tanta desconfiança – como Bosi, aliás.
O crítico brasileiro viveu profundamente esse embate entre gramscianos
e croceanos e, em certo sentido, trouxe-o de regresso ao Brasil, pouco antes
de 1964. Mas o que ele encontrou na volta da Itália, senão justamente o
vasto campo de articulação das esquerdas que então se dava? Após o fiasco
da renúncia de Jânio Quadros, uma frente progressista plural (comunistas,
socialistas, cristãos de esquerda) tinha o respaldo do governo João Goulart,
o que de certa forma aceleraria a reação que levaria à encruzilhada em que
se dá o golpe de Estado, em março de 1964. A isso juntava-se a liberalização
do clero a partir do Concílio Vaticano II, e a formação daquilo que veio
a chamar-se Teologia da Libertação. Em traços bastante largos, nesse am-
biente da utopia do pré-64 até à resistência do pós-64, Alfredo Bosi forja
uma concepção do sujeito popular que, no plano conceitual, acaba por rea-
lizar aquele casamento que era praticamente impossível na Itália, entre cro-
ceanos e gramscianos. A mudança política, em suma, passava a ser condi-
cionada à existência de um sujeito capaz de transmitir o seu sopro liberador
ao tecido social, criando algo que se pode identificar como uma resistência
cultural. Em outras palavras, eram a alma e a matéria que se enlaçavam,
mediadas pela cultura popular, contra-hegemônica, resistente e, finalmente,
contraideológica.
É evidente que essa concepção da ação popular pode levar à idealização
de um sujeito sofrido, a eterna vítima imolada pelo capital – e tal vítima
seria o sujeito do povo, compreendido como o indivíduo exemplar que per-
corre a via crucis da exploração e que, em si mesmo, detém o segredo de
toda redenção. No entanto, esse sujeito popular, para Alfredo Bosi, não é
um personagem monolítico, nem é um elemento puramente sacrificial, ou
redentor. O sujeito dominado é um sujeito de cultura, de uma outra cultura
que nos permite avaliar, a partir de sua diferença, a incompletude da cultura
dominante, que encontra nesse Outro popular um ponto opaco, resistente
a qualquer definição que se faça a partir dos termos forjados apenas no in-
terior da cultura letrada. Ou seja, a produção cultural desse Outro popular
é o espaço de desmontagem de algo que se pode identificar como o lógos do
dominador, ou do colonizador.
A escrita de um livro já clássico da historiografia literária brasileira,
Dialética da colonização (de onde sai, justamente, o ensaio recentemente
traduzido ao inglês, Colony, Cult and Culture), inicia-se nesse contexto, a
partir da década de setenta, com a aposta total numa leitura a contrapelo da
literatura, a qual, para revelar-se propriamente contraideológica, não pre-
cisa ser, necessariamente, uma literatura popular. O mais das vezes ela é a
mesma literatura canonizada pelos manuais de história literária, embora
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nela o crítico vá buscar as fissuras daquele discurso que encapsula o Outro e


o reduz a uma identidade clara e compacta.
Em seu livro mais recente, Ideologia e contraideologia, Alfredo Bosi re-
gressa ao tema e promove um longo traçado do conceito e do debate sobre
a ideologia — palavra que, embora tenha surgido no nosso vocabulário no
contexto revolucionário francês, remonta pelo menos à antiguidade. Mais
especificamente, remonta à reação de Sócrates aos sofistas, ou talvez, à re-
ação dos sofistas a Sócrates. Sócrates é sacrificado pela pólis (na Defesa de
Sócrates que nos deixou Platão) porque teima em manter-se fiel aos seus
demônios, que são aquelas vozes que lhe falam desde a juventude. Tais vozes
são o motor, ou pelo menos nelas está a partida do discurso socrático, que
tem como imperativo a fala privada, o que evidentemente afronta a trans-
parência do espaço público e inferniza os sofistas, cuja retórica obedece não
aos demônios privados, mas sim ao compromisso de ganhar a massa, a um
só tempo agradando-a e convencendo-a. Os sofistas serão, para Bosi, os pri-
meiros “profissionais” do “mercado ideológico”, como se verá em seguida.
Curiosamente, a “transparência” aqui não é sinal positivo. Antes, ela é a
vigília da cidade, da pólis regulada e policiada pelos sofistas. A contraideo-
logia depende, então, da manutenção de um espaço opaco, privado, em que
surge a revelação de uma outra verdade. Tal verdade não tem contudo a pre-
tensão da universalidade na pólis: ela opera a partir de um núcleo pequeno,
o qual, da perspectiva contraideológica (e cristã, poderíamos já dizer) de Al-
fredo Bosi, é a comunidade. Em suma, haveria uma verdade partilhada e co-
mum ao grupo periférico, alijado do centro de domínio de onde emana um
discurso que se vê, a si mesmo, como universal e irresistível. Salvo engano,
esse é o ponto de encontro e de afastamento entre a perspectiva de Alfredo
Bosi e aquilo que nos acostumamos a identificar como uma perspectiva das
margens, a partir dos estudos “pós-coloniais”.
Afastamento, por quê? Porque uma perspectiva formada a partir da car-
tilha desconstrucionista não pode se deter sobre esse momento de cristali-
zação da verdade comunitária. A verdade da comunidade é um horizonte
ético que, para usar uma outra fórmula corrente, só é válida quando se li-
mita à estratégia instantânea dos subalternos. Aqui, a linguagem de sabor
gramsciano leva à engenhosa ideia de um “essencialismo estratégico”, se-
gundo a qual o grupo se encerra e se basta apenas momentaneamente, o que
nos lembra a precariedade de toda cristalização identitária.
Aproximação, por quê? Porque o horizonte ético que afronta a transpa-
rência do discurso (chamemos ou não tal discurso transparente de “ide-
ologia”) se furta à normatividade da língua do dominador. No cenário
imaginado por Shakespeare, de tão vastas consequências para os intelectu-
ais latino-americanos, Próspero fala de uma ilha repleta de ruídos (full of
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noises), e nós bem sabemos do valor dos ruídos como o avesso da linguagem.
Há uma poética que é também uma política nessa aproximação pelo avesso,
como se o conhecimento do sistema (capitalista, colonial, neocolonial, pós-
colonial) se desse ali onde ele se esgota, no ponto onde ele não se fecha, onde
se encontra a sua fissura, ou seja, na margem. A margem é o espaço em que
o sistema é confrontado pela alteridade, que não é absoluta, porque não se
trata de um Outro vingador, portador da subversão final. Ao contrário, a
margem é o espaço em que a diferença se intromete no lógos colonial (impe-
rialista/ etnocêntrico) e faz com que a máquina produtora de discursos (que
é a ideologia, tout court) deixe de funcionar, ainda que por um instante.
Volto à imagem do ruído que soa às margens porque, do ponto de vista
da transformação social, o sistema só pode se tornar outro quando não há
mais como pretender que esse ruído soante e marginal não possua uma arti-
culação própria. Uma vez articulado, o ruído às margens forma um discurso
paralelo. A articulação de um lógos (que paradoxalmente pode ser iletrado)
às margens do sistema pode encontrar, mesmo na literatura mais tradicio-
nal, uma janela por onde o Outro pode falar. O resultado é rascante ou não,
e pode ser alegórico, satírico, utópico. Não importa. O ouvido do crítico, da
perspectiva de Alfredo Bosi, deve abrir-se a tais espaços e fissuras, porque
através deles sopra a voz do Outro. Mas, como bom materialista (porque a
sua aposta espiritualista não descarta as condições sociais, insista-se), Bosi
reclama atenção ao lugar concreto de onde emana essa voz. Vejamos como
se articula o problema, nos parágrafos iniciais de seu livro mais recente, os
quais aliás se desenrolam sob a epígrafe de Elias Canetti, em A província do
homem (“O mais difícil é redescobrir sempre o que já se sabe” [citado em
Bosi, Ideologia e contraideologia, p. 11]):

Começo por uma hipótese semântica. Suponho que haja uma esfera de sig-
nificado comum aos vários conceitos que já se propuseram para definir o
termo ideologia. Trata-se da ideia de condição. A ideologia é sempre modo
de pensamento condicionado, logo relativo. Essa hipótese é flexível, mas
pode enrijecer-se sempre que transponha a estreita faixa que a separa de um
pensamento determinista.
Que as construções de ideias e de valores dependam, em maior ou menor
grau, de situações sociais e culturais objetivas: eis o núcleo vivo das diferen-
tes perspectivas que compõem a história acidentada do conceito de ideolo-
gia. Essa hipótese é testada pela sua versão negativa, isto é: se a mente hu-
mana fosse, em qualquer situação, isenta e absolutamente capaz de abstrair
dos dados sensíveis a ideias que lhes corresponderiam adequadamente; ou,
em outras palavras, se a inteligência nunca estivesse sujeita a contingências
físicas e sociais, não haveria lugar para a falsa percepção das coisas, a que
chamamos erro, nem para a manipulação do conhecimento com que tantas
vezes se caracteriza a ideologia.
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A possibilidade do erro como ilusão dos sentidos ou efeito de paixões é,


desde Platão (que nos dá a ouvir o discurso de Sócrates nos Diálogos), uma
constante na história do pensamento ocidental. Os homens erram, ou por-
que se enganam, ou porque distorcem a verdade por força dos seus inte-
resses: este é o sumo das críticas que Platão faz à versatilidade dos sofistas,
primeiros profissionais da retórica e do mercado ideológico que a história da
fi losofia registra. (Ideologia e contraideologia 11)

Em conclusão, poderíamos afirmar que o erro em questão pressupõe, é


evidente, uma verdade. No entanto, essa verdade, sendo contraideológica, é
situacional e transitória. Não há como acessá-la senão pela linguagem, mas
uma linguagem outra, que recusa os lugares assinalados pelo comércio dos
interesses dominantes. O sujeito – chamemo-lo colonizado, subalterno, do-
minado, ou popular – fala das margens, que testam a adequação entre a
inteligência das coisas e o lugar real das coisas no mundo.
A ideologia se desmonta quando a articulação do mundo conhecido se
desfaz, nos limites do mundo que reconhecemos. Quando já não há mais
re-conhecimento do mundo, isto é, quando o mundo que conhecíamos pre-
viamente não se confirma diante de nossos olhos, é porque um outro mundo
nasceu diante de nossas vistas.
A duração desse outro mundo é matéria de debate. Se ele está aqui ou além,
é uma questão em aberto. Mas, num caso ou no outro, há uma passagem que,
se não é para o outro mundo, é pelo menos para um outro mundo. A diferença
é sutil, mas nos dois casos o sujeito às margens põe à prova este mundo, como
ele é. O mundo como ele é: haveria melhor definição para o que é a ideologia?

Notas

1. A passagem de Shakespeare é conhecidíssima. Diante da postura entre vio-


lenta e condescendente de Próspero, Caliban exclama: “You taught me language;
and my profit on’t/ Is, I know how to curse. The red plague rid you/ For learning me
your language!”
2. As referências aqui evocadas são igualmente conhecidas, e marcam profun-
damente os estudos latino-americanos na academia de língua inglesa, seja pela pre-
sença todavia central das teses de Ángel Rama na discussão do papel do intelectual
na região, seja na força dos Subaltern Studies na imaginação do espaço periférico
(do) latino-americano.
3. “Colônia, culto e cultura” é o longo ensaio de abertura de Dialética da coloni-
zação, livro que, publicado no Brasil em 1992, ganhou tradução integral em diversas
línguas, e será publicado em inglês, integralmente, pela University of Illinois Press,
também com tradução de Robert P. Newcomb.
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4. Para um panorama do debate pós-colonial no âmbito dos estudos latino-ame-


ricanos (num quadro do qual, sintomaticamente, se excluem os estudos brasileiros),
consulte-se Moraña et al. Se o tema da “colonialidade do poder” é ainda central
para essa discussão, é curioso que ele tenha reaparecido, recentemente, nas denún-
cias de Mark Driscoll sobre o que teria sido um “roubo” da teoria latino-americana
(em especial de autores como Aníbal Quijano, Walter Mignolo e Eduardo Viveiros
de Castro) por Michael Hardt e Antonio Negri. A discussão sobre o caráter colonial
de todo poder ressurge, em suma, a partir da acusação de apropriação indébita, pela
teoria produzida a partir do centro, daquilo que se produz nas periferias – ainda
que as “periferias” em questão situem-se no centro simbólico que é o eixo das gran-
des universidades norte-americanas, onde a língua inglesa é tão comumente vazada
pelo espanhol.
5. A “diferença” em questão, quando retrabalhada a partir da ferida narcísica
aberta na cidade letrada, encontra a différance derridaica que tanto rende no plano
dos estudos pós-coloniais. A bibliografia a respeito é extensíssima, mas basta aqui a
lembrança do texto já clássico de Homi Bhabha, “DissemiNation”.
6. Não se trata simplesmente de alguma matriz ingenuamente idealista a que se
apõe o materialismo. Trata-se, antes, de reconhecer e buscar a linguagem em seus
momentos “aurorais”. É o que se lê quando, referindo-se ao entreguerras na Europa,
Bosi analisa, lado a lado, Antonio Gramsci e Simone Weil:
Mas é possível entrever, em meio a posições estéticas diversas, um fio conceitual co-
mum, que propõe uma forma de arte aderente às coisas e aos homens e, ao mesmo
tempo, distanciada do ponto de vista burguês que transforma os homens em coisas
para melhor explorá-los e consumi-los. Há uma poesia pura que se forma a partir
de uma intuição iluminadora dos fenômenos. Nesse processo de revelação, o poema
(como o considerava Croce) é um conhecimento auroral e se exprime aquém dos dis-
cursos de persuasão, portanto aquém da palavra movida pela retórica ideológica. É a
poesia dos trovadores provençais, de Petrarca, de Villon, de Shakespeare, de Racine,
dos metafísicos ingleses, de Goethe, de Hoelderlin, de Leopardi, de Mallarmé, de Va-
léry, os dois últimos intensamente lidos por Simone Weil. (Tivesse ela conhecido a
poesia de Ungaretti, de Lorca, de Manuel Bandeira, de Jorge de Lima ou de Cecília
Meireles!) Mas há outra poesia que, pelas circunstâcias históricas em que foi gerada,
teve de atravessar o pantanal das ideologias espalhadas por todos os cantos da vida em
sociedade. Trata-se de uma palavra de resistência, saturada de pensamento crítico, não
raro amargamente satírica ou paródica, ferina por necessidade e não raro por prazer,
enfi m, didática, mesmo quando lhe inspira desgosto a ‘heresia do ensino’ que tanto
aborrecia Baudelaire. Essa é a poesia entranhadamente política, contraideológica, que
Benjamin admirava em algumas líricas ardidas de Brecht. (Ideologia e contraideologia
175–176)

No arco do pensamento de Bosi, o momento talvez mais agudo de reflexão sobre


o potencial liberador (leia-se, contraideológico) da poesia se encontra num ensaio
produzido em meio à ditadura no Brasil, na década de 1970, quando o próprio ho-
rizonte mítico é reclamado e devolvido à sacralidade do espírito comunitário, ou à
sacralidade do indivíduo que se entrega à recordação ainda plena de sentido:
A resposta ao ingrato presente é, na poesia mítica, a ressacralização da memória mais
profunda da comunidade. E quando a mitologia de base tradicional falha, ou de al-
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gum modo já não entra nesse projeto de recusa, é sempre possível sondar e remexer
as camadas da psique individual. A poesia trabalhará, então, a linguagem da infância
recalcada, a metáfora do desejo, o texto do Inconsciente, a grafia do sonho. (“Poesia
Resistência” 150)
Mais recentemente, o âmbito da “resistência” o faria evocar as complexidades da
fatura do narrador machadiano, em quem vozes contraditórias se mesclam, dei-
xando que uma visão de mundo senhorial ou aristocrática seja rasgada por pun-
gentes mergulhos que dão acesso ao sofrimento do Outro, subitamente guindado à
condição de sujeito. Veja-se, por exemplo, sua interpretação de Eugênia, a “flor da
moita” em Memórias póstumas de Brás Cubas (“Brás Cubas em três versões”).
7. Aqui e doravante valho-me de uma longa entrevista com o crítico, gravada em
quatro etapas, entre agosto e setembro de 2005, em São Paulo – material que servirá
ainda para uma reflexão mais ampla sobre a trajetória e a obra de Alfredo Bosi.
8. O que não significa, é claro, que haja uma absoluta oposição entre os polos
do culto e do popular, nem mesmo uma linha divisória clara que permita qualquer
maniqueísmo quando se trata da avaliação do potencial liberador ou aprisionador
da cultura. Aqui, a questão da memória mobilizada pela coletivdade traz ao pri-
meiro plano a necessidade de atenção ao fenômeno religioso:
There is, of course, no colonizing agent without a past or without memory. Conquerors
did not spring forth from an atemporal zero-degree point. They brought with them in
their caravels beliefs that conditioned their attitudes toward the native populations
they came to dominate, when they did not destroy them altogether. Together with the
sword and the blunderbuss came the cross and the Bible. The Iberian, English and
French colonies were populated by men who practiced either a popular and still me-
dieval Catholicism or its counter-reformist version, or a puritanical Protestantism in
revolt against Anglican hegemony. Monotheism brought them together as Christians
opposed to “indigenous paganism,” though they were divided into active or passive
contemporaries of the Inquisition, the Reformation, or the Counter-Reformation,
and by the religious wars fought during the sixteenth and seventeenth centuries. How
can one understand José de Anchieta’s Latin and Tupi plays or the sermons of Father
Antônio Vieira (both missionaries and Jesuit writers whom I studied in individual
chapters of Dialética da colonização) without examining in depth the peculiar qual-
ity of the Medieval and later Baroque Catholic cult? How can one arbitrarily separate
the missionary spirit from the project of colonization? How is it possible to separate
colony-as-cultivation from colony-as-cult? How can their spaces of convergence and
divergence be detected? A parallel question may be directed to scholars of Anglo-Saxon
colonization in the United States: how can this process be understood without explor-
ing the religious and moral lives of the Puritans established there in the seventeenth
and eighteenth centuries? In the Old as in the New World, and particularly during this
period—prior to the Industrial Revolution and full-blown bourgeois hegemony—the
relations between the economic structure and religious ideas and practices were so in-
terconnected that they can only be entirely separated in the context of specialized (and,
in truth, one-sided) academic studies. (Colony, Cult and Culture 20)
9. “Pode parecer esquisito que eu me azafame por todo canto a dar conselhos
em particular e não me abalance a subir diante da multidão para dar conselhos
públicos à cidade. A razão disso em muitos lugares e ocasiões ouvistes em minhas
conversas: uma inspiração que me vem de um deus ou de um gênio, da qual Meleto
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fez caçoada na denúncia. Isso começou na minha infância; é uma voz que se produz
e, quando se produz, sempre me desvia do que vou fazer, nunca me incita. Ela é que
me barra a atividade política. E barra-me, penso, com toda razão; ficai certos, Ate-
nienses: se há muito eu me tivesse votado à política, há muito estaria morto e não
teria sido nada útil a vós nem a mim mesmo. Por favor, não vos doam as verdades
que digo; ninguém se pode salvar quando se opõe bravamente a vós ou a outra mul-
tidão qualquer para evitar que aconteçam na cidade tantas injustiças e ilegalidades;
quem se bate deveras pela justiça deve necessariamente, para estar a salvo embora
por pouco tempo, atuar em particular e não em público” (Platão 23).
10. Sobre a utilização do termo “strategic essentialism” em Spivak, cf. Kinnvall.

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