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Violência obstétrica e morte materna no contexto da pandemia da Covid-19.

Essa apresentação é um recorte do meu projeto de tese de Doutorado em Direito


(UFAC/UNB).
Primeiramente, antes de conceituar violência obstétrica, um termo que talvez não seja
conhecido por todos e todas, faz-se necessário pontuar que um indicador intrínseco à
qualidade de vida de uma população, a mortalidade materna é considerada como uma
violação dos direitos humanos, principalmente, por ser evitável em cerca de 92% dos
casos, configurando-se em um problema de saúde pública. Índices significativos de
mortalidade materna, com desfechos negativos para díade mãe-bebê, revelam falhas
na atenção obstétrica oferecida no pré-natal, parto e pós parto (SANTOS, 2017).
No Brasil, são poucos os dados de mortalidade materna com recorte
racial/étnico. O “quesito cor”, apesar de constar na Declaração de Óbito, muitas vezes
não é preenchido ou a informação não corresponde à realidade. No entanto, alguns
estudos publicados indicam que a morte materna por toxemia gravídica (a primeira
causa de morte materna no Brasil) é mais frequente entre as mulheres negras, sendo
que a taxa das mulheres negras é quase seis vezes superior se comparado às
mulheres brancas (BRASIL, 2005).
De acordo com o Sistema de Monitoramento de Indicadores - Relatórios
Dinâmicos ® ODS[1], em 2000, o Brasil pactuou 24 metas a serem cumpridas até 2015
nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) junto à Organização das Nações
Unidas (ONU). Uma das metas, não alcançadas, consistia em reduzir 75% dos índices
da mortalidade materna. O Óbito materno é aquele decorrente de complicações na
gestação, geradas pelo aborto, parto ou puerpério (até 42 dias após o parto).
Entre 1990 e 2015, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), as
mortes reduziram de 143 para 60 mortes a cada 100 mil nascidos vivos, o que
representou redução de 58%. Contudo, os índices voltaram a subir em 2016,
provocando um distanciamento do país da meta estipulada pela ONU – máximo de 35
mortes maternas a cada 100 mil nascidos vivos, até 2015.
Ainda segundo o Sistema de Monitoramento, em 2015, novos objetivos foram
propostos para serem atingidos até 2030, nomeados Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável (ODS). A nova meta brasileira relacionada à mortalidade materna é: 30
mortes maternas a cada 100 mil nascidos vivos, até o ano de 2030.
O estado do Acre registrou a taxa de mortalidade materna de 48,91 óbitos a
cada 100 mil nascidos vivo em 2017. No mesmo ano, 73,11% das mortes que
ocorreram em menores de 0 a 27 dias eram evitáveis. As causas de mortes evitáveis
mais frequentes foram: Reduzível por adequada atenção ao recém-nascido (28,97%); e
Reduzível por adequada atenção à mulher na gestação (27,59%).
Leal (2005) relata a pesquisa “Nascer no Brasil: Inquérito Nacional” realizada
em 2014 sobre o parto e nascimento, coordenado pela Escola Nacional de Saúde
Pública e Fiocruz, acompanhou exames de pré-natal de 23.894 mulheres de 191
municípios de todos os estados brasileiros em 266 hospitais. O estudo demonstrou
falhas na assistência no período gravídico- puerperal, tais como, dificuldades no
acesso, pré-natal com início tardio, número inadequado de consultas e realização
incompleta dos procedimentos preconizados e violências, evidenciando ainda as
dificuldades de acesso às mulheres indígenas e pretas, com menor escolaridade, com
maior número de gestações, e residentes nas regiões Norte e Nordeste. Os autores da
pesquisa advertiram sobre um problema de saúde pública envolvendo populações
vulneráveis, como as mulheres negras, para uma melhor compreensão e
enfrentamento das desigualdades sociais e discriminação racial.

[1] http://rd.portalods.com.br/

O conceito ​disrespect and abuse during childbirth tem sido internacionalmente


utilizado para definir o que no Brasil traduz-se por “violência obstétrica” (VO). Essa
terminologia é utilizada para descrever e agrupar diversas formas de violência (e
danos) durante o cuidado obstétrico profissional e abrange maus tratos físicos,
psicológicos, e verbais, assim como procedimentos desnecessários e danosos.
Em 2014, a Organização Mundial de Saúde (OMS) reconheceu a problemática
como sendo uma questão de saúde pública que afeta mulheres e bebês. Nesse mesmo
ano, emitiu uma declaração considerando a VO como uma violação dos direitos
humanos.
A Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH), proclamada em 1948, considera
saúde como direito essencial à vida do ser humano, portanto a VO consistiria na
violação do “ direito à vida, direito de não ser submetido à tortura e a tratamento cruel
ou degradante, direito ao respeito pela vida privada, direito à informação, direito a não
ser discriminado e direito à saúde” (Adaptado. BRASIL, 2013).
D’Gregorio (2010) comenta que ​apesar de inúmeras definições, uma em
especial é da primeira legislação latino-americana, aprovada na Venezuela, o primeiro
país a adotar essa expressão:

Qualquer conduta, ato ou omissão por profissional de saúde, tanto


em público como privado, que direta ou indiretamente leva à
apropriação indevida dos processos corporais e reprodutivos das
mulheres, e se expressa em tratamento desumano, no abuso da
medicalização e na patologização dos processos naturais,
levando à perda da autonomia e da capacidade de decidir
livremente sobre seu corpo e sexualidade, impactando
negativamente a qualidade de vida de mulheres (VENEZUELA,
2007).

Dados do estudo “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado”,


realizado pela Fundação Perseu Abramo em parceria com o Sesc, em 2010, no qual
apontou que de cada 4 mulheres, pelo menos uma sofreu violência obstétrica.

A violência obstétrica, produto do patriarcalismo e reflexo da fragilidade dos


direitos das mulheres, é considerada, portanto uma violência de gênero e uma violação
aos direitos sexuais e reprodutivos.
De acordo com estudo publicado na International Journal of Gynecology and
Obstetrics, das 160 mortes registradas entre o início da epidemia e 18 de junho nada
menos que 124 ocorreram no Brasil. O segundo colocado neste macabro ranking são
os Estados Unidos, com 16 óbitos.

Chamado de "A tragédia da Covid-19 no Brasil", o trabalho foi feito com base em dados
divulgados pelo Ministério da Saúde. Das 978 grávidas ou mulheres no pós-parto
diagnosticadas com covid-19 entre os dias 26 de fevereiro e 18 de junho no País, 124
morreram - um número 3,4 vezes superior ao total de mortes maternas relacionadas ao
novo coronavírus em todo o mundo no mesmo período. Os números indicam também
que a taxa de letalidade da doença entre as grávidas no Brasil é de 12,7%, ou seja, a
mais alta do mundo. Para se ter ideia, nos Estados Unidos, no mesmo período, 8 mil
gestantes foram diagnosticadas com o novo coronavírus.

Segundo o estudo, 22,6% das mulheres que morreram no Brasil não tiveram acesso a
um leito de UTI, 36% não chegaram a ser intubadas.

“Há uma falha gigantesca na assistência. Com a pandemia de Covid-19, a rede de


saúde está mais desarticulada”, diz a obstetra Melania Amorim, uma das
pesquisadoras.

Para o grupo que fez o estudo, a má qualidade do pré-natal, recursos insuficientes para
o manejo de situações de emergência e dificuldade no acesso aos serviços de saúde
durante a pandemia são algumas das hipóteses que explicam o aumento de óbitos.

Segundo a médica Fátima Marinho, consultora sênior da Vital Strategies e professora


de saúde pública da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), o número de
mortes pode ser ainda maior.

Além das lacunas nos dados dos óbitos de mulheres em idade fértil, há ao menos 97
mortes computadas como síndrome respiratória aguda grave. “Grande parte [destas]
deve virar Covid porque não tinha diagnóstico [quando entrou no sistema]”, afirma ela,
que também estuda o tema.

Marinho diz que esses números precisam servir de alerta para que os gestores de
saúde melhorem urgentemente a atenção das gestantes.

O assunto foi discutido em um evento virtual do Conass (conselho dos secretários


estaduais de saúde).

Segundo Maria Auxiliadora Gomes, pesquisadora da Fiocruz, os desafios de acesso e


qualidade do pré-natal foram agravados pelas medidas de isolamento. “Nem todos os
locais estavam preparados para fazer o acompanhamento das gestantes de forma
remota.”

O grupo de pesquisadoras acaba de publicar outra análise em que faz um recorte racial
desses óbitos. Em 69 casos pesquisados, o risco de morte das mulheres negras foi
quase duas vezes maior do que o das brancas (17% contra 8,9%).
“É um cenário aterrorizante. A frequência de comorbidades foi a mesma, mas as
negras chegaram em condições mais críticas, com dispneia e queda de saturação de
oxigênio. Tiveram mais necessidade de UTI e de ventilação mecânica”, diz Melania
Amorim.

Para ela, o retrato reflete não só as falhas de acesso e de assistência do sistema de


saúde mas também problemas socioeconômicos e estigmas que afetam esse grupo.

“As mulheres grávidas são terra de ninguém. Se estiver em maternidade sem UTI e
desenvolver Covid grave, não terá a melhor assistência. Se for jogada numa
emergência geral, vai encontrar profissionais que não estão familiarizados com as
modificações que a gravidez causa no organismo”, diz Melania.

O grupo faz agora um trabalho mais minucioso para levantar dados sobre o local do
óbito, o perfil do hospital que atendeu as mulheres, a distância e se elas tiveram
acesso ao serviço.

Para Melania, as falhas assistenciais explicam muito mais as mortes maternas do que
as eventuais doenças prévias das pacientes.

“Essas mulheres poderiam ser hipertensas, diabéticas, asmáticas, obesas e teriam


muitos anos de vida não fosse o fato de terem contraído Covid-19 e terem encontrado
um sistema desestruturado, em que houve retardo do diagnóstico e das medidas
terapêuticas.”

Um trabalho do CDC (Centro de Controle de Doenças americano) mostrou que a


gravidez aumenta o risco de complicação por Covid-19, com mais internação e
necessidade de ventilação mecânica, mas não houve maior risco de morte. “Se há
protocolos de atendimento adequados, é possível evitar que elas

morram”, reforça Melania.

Impacto desproporcional do COVID-19 entre mulheres negras grávidas e puérperas no


Brasil
através da lente do racismo estrutural
Tai e colaboradores levantaram questões importantes sobre os potenciais fatores
biomédicos e sociais
determinantes que desempenham um papel nas disparidades raciais observadas nos
resultados do COVID-19 nos EUA [1].
A evidência de tal impacto desproporcional também está surgindo em grupos étnicos
historicamente oprimidos em
Brasil, atual epicentro pandêmico mundial [2]. Nosso grupo está monitorando de perto
um impressionante
número de mortes maternas relacionadas à SARS-CoV-2 no país [3]. Disparidades
raciais entre
mulheres grávidas dentro do sistema de saúde têm sido amplamente descritas e já
representam
desafios difíceis para melhorar os resultados maternos no país [4,5]. Assim, era
esperado que
Mulheres negras brasileiras grávidas e puérperas enfrentariam desafios adicionais
durante o
pandemia
Em nossa amostra, as mulheres negras tinham idade média e perfil de morbidade
semelhantes às mulheres brancas, mas eram
internados em piores condições (maior prevalência de dispneia e baixa saturação de
O2), tiveram maior
taxa de admissão na UTI, ventilação mecânica e óbito. Informamos anteriormente que
barreiras para
acesso à terapia intensiva parece desempenhar um papel no alto número de mortes
maternas relacionadas ao COVID-19 em
país [3]. No entanto, os dados apresentados aqui podem indicar que as negras
grávidas e no pós-parto
as mulheres foram afetadas de forma desproporcional pelo COVID-19 devido a
processos originados fora do
hospital[
Como apontado por Tai et al, lentes biomédicas podem ser usadas para abordar
disparidades raciais em
saúde. No entanto, em nossa amostra, fatores de risco clínicos comumente associados
a pior prognóstico para
COVID-19 não foi significativamente diferente entre mulheres negras e brancas.
Portanto, é
razoável confiar predominantemente nos determinantes sociais do Lens de saúde para
interpretar nossas descobertas. No
Brasil, isso implica reconhecer tanto o racismo quanto o sexismo como determinantes
estruturais que pioram a conformação
condições de vida e de trabalho, bem como a falta de acesso a cuidados de saúde e
oportunidades para o negro
população, particularmente mulheres negras [7].
Ao focar neste grupo, especificamente durante a gravidez e o período pós-parto,
direcionamos nossas lentes para os indivíduos mais vulneráveis em nossa sociedade
que
constituem a base da pirâmide de poder [8].
Nossos resultados mostraram que a mortalidade materna em mulheres negras devido

ao COVID-19 foi quase duas vezes

superior ao observado para mulheres brancas. Isso se soma às observações anteriores

dos EUA e do Reino Unido que

Negros e outros grupos étnicos minoritários estão lutando para sobreviver à gravidez e

ao pós-parto

período com COVID-19 [9,10]. No entanto, também destacam a necessidade de

avançar para as ações

abordar os determinantes sociais da saúde fora dos hospitais, incluindo políticas de

proteção social para reduzir

a probabilidade de adoecer e fortalecer os serviços de atenção primária amplamente

acessíveis, oferecendo

monitoramento, diagnóstico e tratamento de COVID-19 culturalmente apropriado, eficaz

e centrado na família

dentro de comunidades vulneráveis. No Brasil, a intersecção de gênero, raça e classe

social aprofundam a

tragédia das mortes maternas de COVID-19, principalmente quando o país não está

adotando

medidas de contenção de pandemias

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