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Claridade

Jorge Barbosa Baltasar Lopes


Manuel Lopes

Do ponto de vista literário, a Claridade constitui-se como baliza da contemporaneidade estética e


linguística, superando o conflito entre o "antigo" e o "moderno", isto é, entre o
Classicismo/Romantismo de referente português, dominante durante o século XIX, e o novo
Realismo; "sensível às realidades do quotidiano do povo” (...)

 Contextualização sócio-histórica e cultural

Em 1956, Baltasar afirmou que vinte anos atrás ele e um grupo de reduzidos amigos começaram
a pensar nos problemas de Cabo Verde. Nessa época, havia um conjunto propício de circunstâncias
que os levou a fazerem-se os bandeirantes da descoberta literária da sua terra, os porta-vozes das
dores e das ânsias do povo cabo-verdiano.

Duas estiagens catastróficas nos primeiros anos das décadas de 20 e 30, aliadas aos surtos
epidémicos da peste bubónica e da gripe pneumónica, o encerramento da emigração para os EUA, a
queda vertical na cotação dos poucos produtos exportáveis do arquipélago e a decadência do Porto
Grande de S. Vicente são factores determinantes na consciencialização do escritor cabo-verdiano.

Para além desses é de realçar a importância dos escritores brasileiros e suas obras nessa tomada
de consciência, conforme se pode verificar nas seguintes palavras de Baltasar: “Ora
aconteceu que por aquelas alturas nos caíram nas mãos, fraternalmente juntas, em sistema de
empréstimo, alguns livros(…)O José Lins do Rego d’O Menino de Engenho e do Banguê, o Jorge
Amado do Jubiabá e Mar Morto; (…) Esta ficção e esta poesia revelavam-nos um ambiente, tipos,
estilos, formas de comportamento, defeitos virtudes, atitudes perante a vida que os assemelhavam
aos destas ilhas(…)”
 Temática

Este movimento literário surgia com o propósito de “fincar os pés na terra cabo-verdiana”
(Manuel Lopes) e de “pensar nos nossos problemas” (Baltazar Lopes). Os temas mais frequentes
passam a ser: as estiagens, a decadência do Porto Grande, o encerramento da emigração para os
EUA, a abertura do contrato para as roças de S. Tomé.

Segundo Manuel Ferreira, o espírito de denúncia dos claridosos residia “numa poesia de raiz
predominantemente telúrica e social”. António Aurélio Gonçalves refere-se a “necessidade de
protestar e dar alarme perante uma crise económica causada pela estiagem, pelo abandono do
Porto de S. Vicente, pela sufocação proveniente do encerramento da emigração para a América do
Norte”.

 Influências

A formação intelectual e literária dos primeiros claridosos resulta de influências várias, oriundas
do Brasil e de Portugal, que contribuíram para mudar a face da literatura cabo-verdiana.

A influência do realismo brasileiro, mais concretamente do Nordeste, se fez sentir devido às


similitudes entre essa região e Cabo Verde, na formação histórica, no teor da vida, na linguagem,
nos flagelos da falta de chuva. Jorge Barbosa afirma que “o exemplo, repito-o, do ensaísta, do
romancista e do poeta modernos brasileiros fez ecoar em nós, com a sua novidade, um ardor novo,
e daí advieram novas ideias e a indicação de outros caminhos”.

O contacto com o Modernismo português fez com que esse jovens procurassem colocar Cabo
Verde em dia com a nova arte que se fazia na Europa, rompendo bruscamente com o
tradicionalismo.

 Caracterização do movimento claridoso

O movimento claridoso veio a processar-se em dois momentos distintos: (1) o da libertação


formal, impulsionado pela revista modernista portuguesa Presença e pelo modernismo brasileiro; e
(2) o de sintonização com as realidades locais, comandada pelo exemplo da geração de 1930, do
Realismo Nodertisno Brasileiro.

No aspecto formal, a Claridade representa o rompimento com as formas clássicas quanto à rima,
à métrica, e aos géneros literários e constitui uma afronta ao purismo da língua. No aspecto
temático, a Claridade surgiu com o propósito de retratar a realidade cabo-verdiana, o drama vivido
pelo povo cabo-verdiano.

No campo linguístico, o período claridoso é caracterizado por um discurso de rotura e de


reelaboração da linguagem, num hibridismo (mistura) do crioulo com o português falado – uma
linguagem apropriada com o tipo de mensagem literária a que se propunham os escritores desta
época. Ensaia-se uma nova linguagem em que o português é enriquecido com o crioulo, ou melhor,
procura-se adaptar o português oral na escrita ficcional ou poética, de mistura com crioulismos,
como um atentado ao purismo da língua portuguesa e uma reivindicação regionalista, seguindo o
modelo brasileiro.
TEMÁTICA: SECA/ FOME/ EMIGRAÇÃO…

“(...) pode dizer-se que toda a poesia cabo-verdiana prosseguida a partir dos anos 30 se
nutre de uma substância comum e se ramifica a partir de alguns pontos, que são as traves
mestras de quase toda a sua actual literatura: as secas e a fome; a emigração; o mar, a
evasão; a insularidade (...).” Manuel Ferreira

 SECA / FOME

Nestes tempos
Casebre não tem descanso
a padiola mortuária da regedoria.
Foi a estiagem.
Levou primeiro
E o silêncio depois. o corpo mirrado da mulher
com o filho nu ao lado
Nem sinal de planta de barriga inchada
nem restos de árvore que se diria
no cenário ressequido da planície. que foi de fartura que morreu.
O homem depois
com os olhos parados
O casebre apenas abertos ainda.
de pedra solta
é uma lembrança aflitiva. Tão silenciosa a tragédia das secas nestas ilhas!
Nem gritos nem alarme
O tecto de palha - somente o jeito passivo de morrer.
levou-o
a fúria do sueste. No quintal do casebre
três pedras juntas
Sem batentes três pedras queimadas
as portas e as janelas que há muito não serviram.
ficaram escancaradas
para aquela desolação. E o arco de ferro do menino
com a vareta ainda presa.
Jorge Barbosa, Caderno de um ilhéu, 1956
Foi a estiagem que passou.
Mamãe

Mamãe-Terra Sinto sempre tão presente no meu coração


venho rezar uma oração ao pé de ti. o teu gesto de te levantares
Teu filho vem dirigir suas súplicas a Deus buscando o pão para as nossas bocas de criança
Nossenhor e nos dirigires a consolança das tuas palavras
por ele sempre animadoras…
por ti
pelos outros teus filhos – espalhados Eu procurei o teu túmulo e não o encontrei.
na superfície cinzenta do teu ventre mártir, E depois,
Mamãe-Terra. na minha dor de filho angustiado,
me disseram que te haviam sepultado
Mamãezinha, numa migalha de terra
dorme, dorme, no meio do mar.
mas, pela Virgem Nossa Senhora,
quando te acordares Embarquei num veleiro
não te zangues comigo e fui navegando, navegando…
e com os teus meninos
que se alimentam das ternuras das tuas entranhas. Não morreste, não Mamãezinha?
Estás apenas adormecida
Mamãezinha, para amanhã te levantares.
eu queria dizer minha oração Amanhã, quando saíres,
mas não posso; eu pegarei o balaio
minha oração adormece e irei atrás de ti,
nos meus olhos, que choram a tua dor e tu sorrirás para todo o povo
de nos quereres alimentares que vier pedir-te a bênção.
e não poderes. Tu não deitarás a bênção.
E eu me alimentarei do teu imenso carinho…
Mamãe-Terra,
disseram-me que tu morreste Mamãezinha, afasta-te um bocadinho
e foste sepultada numa mortalha de chuva. e deixa o teu filho adormecer ao pé de ti…
O que eu chorei! Osvaldo Alcântara (Baltasar Lopes)
Claridade, nº2, 1936

 EMIGRAÇÃO PARA SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE

Romanceiro de S. Tomé
Filho

Nicolau, menino, entra.


Onde estiveste, Nicolau, Dorme, Nicolau,
que trazes a arrastar dorme sem medo,
o teu brinquedo morto? que o fantasma ficou lá longe.

Nicolau, menino, entra. Quando acordares a jornada será mais longa.


Vem dizer-me onde foi que tu estiveste
e a estrela fugiu das tuas mãos. Nicolau, menino,
onde foi que deixaste
Tens comigo o teu catre de lona velha. o corpo que te conheci?
Deita-te, Nicolau, o fantasma ficou lá longe. Deus há-de querer que o sono te venha depressa
no meu catre.
Dorme sem medo. Osvaldo Alcântara inClaridade, nº 8, 1958
Porão, roça, medos imediatos,
Tudo ficou lá longe
 DECADÊNCIA DO PORTO GRANDE

Nocturnos
(Porto Grande)

I
Algum vapor que entra no porto vazio?
Luzes, raras da baía alguma ilusão mais?
saltitam na água macia algum abraço generoso,
- enguias de ouro a brincar ou uma palavra mais linda
numa alcatifa negra de veludo – de algum náufrago de ramos junto ao cais
e multiplicam-se no mar ou no mar-alto ainda?
no mar sonâmbulo e mudo.
III
Perpassam gritos
como os que se calam dentro da gente … Em que pensas, carvoeiro debruçado,
Fantasmas negros de lanchas no cais deserto sobre o mar,
enchem o porto de manchas cuja sombra, como a um morto.
sacodem os mastros aflitos
silenciosamente… O mar iluminado embala?
Sonhas a voz do porto que já perdeu a fala?

II Carvoeiro dos tempos idos,


- peça de uma engrenagem inútil
Rapariguinha solitária tombada no chão:
- quinze gastas primaveras – eu sinto o drama no teu rosto limpo
o que é que esperas onde não há vestígios de carvão!...
olhando a noite extraordinária Manuel Lopes,
e o mar macio? Poemas de quem ficou, 1949

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