Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
RESUMO
O presente estudo consiste em uma revisão bibliográfica sobre as funções
executivas em crianças e/ou adolescentes com Transtorno do Espectro Autista
(TEA), cujo objetivo foi verificar, na literatura científica, quais componentes das
funções executivas são abordados nas pesquisas realizadas com crianças e
adolescentes com transtorno do espectro autista, destacando quais das
características do transtorno sugerem relação com as funções executivas. O estudo
foi realizado a partir de revisão bibliográfica e de outras fontes de pesquisa
publicadas pela BVS Psicologia Brasil e BVS em Saúde, na base de dados
INDEXPSI e LILACS, pelo Repositório Institucional da UFBA e pelo Repositório
Digital Institucional da UFPR, no período de 2014 a 2016, no Brasil e em países da
América Latina. Os resultados sustentam a hipótese de que as funções executivas
estão prejudicadas nas crianças e adolescentes com TEA, principalmente nos
componentes executivos: flexibilidade cognitiva, controle inibitório, atenção seletiva,
planejamento, fluência verbal e baixo desempenho no componente visuoespacial da
memória de trabalho. Além disso, os resultados sugerem relação com os padrões
restritos e repetitivos de comportamento abordados pelo Manual diagnóstico e
estatístico de transtornos mentais - DSM 5. Tendo em vista a importância do tema, é
preciso desenvolver mais estudos empíricos sobre o funcionamento das funções
executivas em crianças e adolescentes com transtorno do espectro autista.
ABSTRACT
This study consists of a bibliographic review of the executive functions in children
and/or teenagers with Autism Spectrum Disorder (ASD), which aimed to verify in the
scientific literature which components of executive functions are addressed in the
research conducted with children and adolescents with autism spectrum highlighting
which of the characteristics of the disorder suggest a relation with the executive
functions. The study was carried out based on a bibliographical review and other
research sources published by BVS Psicologia Brasil and BVS in Health in the
Estudos IAT, Salvador, v.5, n.1, p. 6-15, abr., 2020.
http://estudosiat.sec.ba.gov.br
127
INTRODUÇÃO
É importante destacar que, antes dessa Lei ser publicada no Brasil, Guilhardi
et al. (2011) já discutiam a importância da identificação precoce dos primeiros sinais
de autismo, a fim de possibilitar à criança uma intervenção precoce.
Na literatura brasileira, o percentual de crianças diagnosticadas com esse
transtorno, em uma amostra de 1.470 crianças, na idade entre 7 a 12 anos, é
equivalente a 0,3% (PAULA et al. 2011, apud CZERMAINSKI et al., 2014).
Especialmente no estado da Bahia, com base no Censo Escolar de 20151, o número
de alunos com TEA matriculados em escolas regulares das redes pública e privada
de ensino corresponde a um quantitativo de 2.111 alunos, sendo 536 matriculados
na educação infantil, 1.484 no ensino fundamental, 24 no ensino médio e 67 na
educação de jovens e adultos. Na cidade de Salvador, o número de alunos com TEA
matriculados no ensino fundamental corresponde a 309, sendo 93 alunos
distribuídos nas escolas privadas, 200 nas escolas da rede municipal de ensino e 16
nas escolas da rede estadual (BRASIL, 2016 apud CARDOSO, 2016).
Até hoje não se tem certeza do que realmente possa desencadear na criança
o TEA, entretanto, além dos estudos que investigam a influência de fatores
genéticos, ambientais e neuropsicológicos associados ao autismo, também existem
teorias cognitivas, tais como a teoria da mente, a teoria da coerência central e a
teoria das funções executivas, que tentam explicar a relação entre o funcionamento
do cérebro de indivíduos com TEA e os prejuízos relacionados à comunicação e à
interação social e aos padrões restritos e repetitivos de comportamento
característicos do transtorno. Entre os anos 80 e 90 e até hoje, vários estudos
1
BRASIL. Censo Escolar – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP).
Disponível em: <http://portal.inep.gov.br/básica-censo>. Acesso em: 12 abr. 2016.
Estudos IAT, Salvador, v.5, n.1, p. 6-15, abr., 2020.
http://estudosiat.sec.ba.gov.br
129
METODOLOGIA
2
Fonte: Pinterest (2016) .
2
Disponível em: <http://docplayer.com.br/docs-images/14/51410/images/16-0.jpg>. Acesso em: 10 nov. 2017.
Estudos IAT, Salvador, v.5, n.1, p. 6-15, abr., 2020.
http://estudosiat.sec.ba.gov.br
135
Apesar dos avanços obtidos ao longo de várias décadas, ainda há muito a ser
descoberto sobre a complexa interação entre os fatores genéticos, ambientais e
neurobiológicos, pois o que se têm publicado, até o presente momento, são dados
obtidos através de estudos científicos que suscitam hipóteses que tentam explicar a
etiologia do TEA.
No sentido de compreender o TEA, o próximo capítulo aborda as teorias
cognitivas que tentam explicar os déficits relacionados à interação social e à
comunicação, bem como, os padrões restritos e repetitivos de comportamento
relacionados a esse transtorno.
Estudiosos ressaltam que essa habilidade começa cedo nas crianças que
apresentam desenvolvimento típico. Por volta dos 3 e 4 anos de idade, as crianças
começam a perceber alguns estados mentais presentes nas outras pessoas, como:
desejos, crenças, intenções e o modo como a pessoa se sente em determinada
situação. Segundo Baron-Cohen et al. (2011), é nessa idade que as crianças
começam a entender que uma determinada emoção pode ser causada por uma
situação ou por um desejo.
Os prejuízos da teoria da mente presentes em crianças com autismo foram
observados por Baron-Cohen, Leslie e Frith por meio do Teste Sally e Anne (1985
apud PADOVANI; MENDOZA; ROSSETTI, 2015). Nesse estudo, além das crianças
com autismo, estiveram presentes as que apresentavam desenvolvimento típico e
Síndrome de Down. Os resultados obtidos nesse experimento levaram os
pesquisadores a sugerirem uma relação entre os prejuízos de socialização das
pessoas com TEA e um déficit de teoria da mente; contudo, concluíram que essa
dificuldade não depende do nível intelectual, pois as crianças com autismo que
participaram da pesquisa possuíam boa capacidade cognitiva. Outro aspecto
presente em indivíduos com TEA, relacionado ao empenho deficitário da teoria da
mente, refere-se ao comprometimento da percepção facial e emocional, as
dificuldades para inferir segundas intenções, compreender olhares, desejos e
condutas de outras pessoas (RUGGIERI, 2015).
Outro estudo realizado por Baron-Cohen e colaboradores citado por Surian
(2010) envolvendo pessoas com TEA refere-se à aplicação do Teste do Olhar que
consistia em visualizar a expressão dos olhos a partir de uma série de fotografias de
semblantes de pessoas. Nesse estudo, os indivíduos com TEA apresentaram baixo
desempenho. Em outro estudo, esses pesquisadores modificaram este teste,
substituindo as fotografias por gravações curtas extraídas de peças de teatro, em
que o indivíduo teria que identificar através de adjetivos qual seria o estado mental
da pessoa que falava. Nesse estudo, as pessoas com síndrome de Asperger
apresentaram desempenho inferior ao grupo controle, pareado com a mesma
capacidade intelectual.
No estudo brasileiro, Assumpção Júnior et al., (1999) perceberam que as
crianças com TEA apresentavam dificuldade na capacidade de percepção das
pode trazer prejuízos para o indivíduo com TEA, isto é percebido quando não
consegue abranger o sentido global de um texto, pelo fato de ater apenas no detalhe
sem a compreensão do todo.
Dando continuidade aos trabalhos citados por Cruz, Camargos Júnior e
Facchin (2013), a relação entre a fraca coerência central e o estilo de
processamento visual pode ser vista nos estudos de Kline e colaboradores (2002) e
Schultz e colaboradores (2003), que abordam a dificuldade que os indivíduos com
TEA têm de olhar nos olhos das pessoas e focarem mais na região da boca, sem
considerar o contexto da face, o conjunto de expressões faciais que representa o
todo na situação de comunicação e interação com as pessoas.
A terceira e última teoria neuropsicológica, tema central deste artigo, refere-se
à função executiva, esta teoria diz respeito às habilidades cognitivas complexas e
superiores específicas da espécie humana e envolve vários componentes como:
memória operacional, atenção, planejamento, controle inibitório, flexibilidade
cognitiva, dentre outras habilidades indispensáveis na realização de tarefas do
cotidiano, na aprendizagem e na interação social (BARROS; HAZIN, 2013).
O termo funções executivas surgiu no século XX, foi Muriel Lezak (1982)
quem primeiro utilizou essa terminologia para fazer referência aos quatro domínios
cognitivos: volição (motivação), planejamento, ação intencional, desempenho efetivo
(habilidade de autocorreção, monitoramento e regulação do comportamento)
(UEHARA; CHARCHAT-FICHMAN; LANDEIR-FERNANDEZ, 2013). Esse conceito
surgiu com base nos estudos clínicos realizados com pacientes adultos que
sofreram lesão no lobo frontal, especialmente na região pré-frontal. Deste modo, “os
lobos pré-frontais são considerados como os alicerces neuroanatômicos das funções
executivas” (GILLET, 2015).
Todavia, vale destacar que, antes de Lezak, Luria foi o primeiro
neuropsicólogo a abordar as habilidades cognitivas como atenção, memória,
planejamento, dentre outras habilidades específicas da espécie humana, através do
termo “funções psicológicas superiores” ou “funções mentais superiores” (UEHARA;
CHARCHAT-FICHMAN; LANDEIR-FERNANDEZ, 2013).
Apesar de Luria não ter desenvolvido sua teoria, com base na expressão
“funções executivas”, ele e seus colaboradores descobriram que há uma interação
entre os sistemas funcionais linguísticos e o executivo, ao perceberem que
Estudos IAT, Salvador, v.5, n.1, p. 6-15, abr., 2020.
http://estudosiat.sec.ba.gov.br
139
tarefa em dado
momento, de focar a
atenção e não se
distrair com os
diversos estímulos do
ambiente (SEABRA,
2013).
Fonte: CARDOSO (2016).
Quadro 6 – Modelo teórico de flexibilidade cognitiva (Miller, 2013 apud Gonçalves, 2014)
Jogo e Pensamento e Adaptabilidade
desenvolvimento compreensão
social conceitual
Jogo exploratório Uso e compreensão do Fazer escolhas
contexto
Jogo simbólico Amplo leque de Lidar com transições
interesses
Jogo criativo Generalização de Aceitar mudança e
habilidades aprendidas diferença
Jogo imaginativo “Links” semânticos e Adaptação de
conexões comportamento social
Resposta à interação Conceitos abstratos Planejamento e
organização
Iniciação de interação Habilidades de Resolução de
linguagem de “ordem problemas
superior”
“Rapport” e atenção Linguagem complexa e Uso de habilidades de
compartilhada implícita forma flexível
(adaptabilidade)
Compreensão de
emoções
Compreensão dos
outros
Fonte: Gonçalves (2014, p. 26).
com TEA, com idade entre 12 e 18 anos. Quanto à intervenção, verificou-se que a
repetição e a generalização são imprescindíveis para o aprendizado dessa
população. A autora também salientou como ponto negativo do seu estudo a
utilização de testes neuropsicológicos sem normatização brasileira e abordou como
fator relevante o não entendimento de algumas consignas destes testes, isso aponta
para a necessidade de instrumentos específicos e sensíveis para esse público.
Nesse sentido, a autora sugere que a testagem padrão não deve ser utilizada como
única forma de avaliação de avaliação de funções executivas para indivíduos com
TEA.
O estudo realizado por Talero-Gutiérrez et al. (2015) teve por objetivo avaliar
o desempenho dos testes de função executiva em uma população de crianças com
TEA, em que participaram 8 crianças, com idade de 8 e 9 anos. Como resultado
desse estudo, os pesquisadores encontraram correlação entre um alto índice de
CARS e um mau desempenho nos componentes executivos, como: flexibilidade
cognitiva, memória de trabalho, fluência gráfica não semântica. Isso significa que
crianças com TEA apresentam prejuízos significativos em tarefas relacionadas às
funções executivas, esse dado, hipoteticamente, tenta explicar a tendência que as
pessoas com TEA têm de querer persistir na mesma coisa, o que, decerto sugere
inflexibilidade cognitiva, que está relacionada à dificuldade ou incapacidade que o
indivíduo com TEA tem de mudar critérios e comportamentos estereotipados. Os
pesquisadores também destacaram como variáveis que essas dificuldades estão
relacionadas ao grau do transtorno e varia de acordo com a idade da criança.
Além do CARS, também foi utilizado nesse estudo um instrumento de
avaliação neuropsicológica infantil (Bateria - ENI), validada em Colômbia. Segundo
Talero-Gutiérrez et al. (2015), essa bateria é aplicada em indivíduos de 5 a 16 anos
de idade. No estudo analisado, foram aplicadas as seguintes subprovas: fluência
verbal (semântica e fonética), fluidez gráfica (semântica e não semântica),
flexibilidade cognitiva (classificação de tarefas), planejamento e construção
(pirâmide de México), habilidades gráficas (desenho da figura humana – cópia da
figura completa), memória de trabalho (cópia da figura completa), memória –
evolução de estímulos visuais (recuperação da figura completa).
Quanto ao comportamento que insinuam comprometimento das funções
executivas, Talero-Gutiérrez et al. (2015) destacaram que a incapacidade para
Estudos IAT, Salvador, v.5, n.1, p. 6-15, abr., 2020.
http://estudosiat.sec.ba.gov.br
150
Dos quatro estudos abordados, Czermainski et al. (2014) foi o que manteve
como amostra um número maior de crianças e/ou adolescentes com TEA, no
entanto, pela relevância que tem as funções executivas na vida cotidiana e na
aprendizagem, verifica-se a necessidade de ampliação dessa população, bem como,
a produção de outros estudos empíricos.
Os estudos analisados contribuíram para o conhecimento e a compreensão
de comportamentos específicos do TEA. Contudo, ainda não há na literatura um
consenso que determine, com precisão, quais dos componentes executivos são os
mais afetados e ou preservados nessa população, em decorrência de uma série de
fatores, como: a metodologia da pesquisa, o grau de comprometimento do
transtorno, os instrumentos utilizados, que na maioria das vezes não costumam ser
adequados e sensíveis para crianças e adolescentes com TEA. Entretanto, os
resultados demonstraram que não se pode descartar a hipótese de que há
comprometimento das funções executivas nessa população que, provavelmente,
responda a alguns dos comportamentos do transtorno, como já foi mencionado
pelos pesquisadores citados neste artigo nos quadros 1 a 4, quando foram descritos
os componentes executivos e os comportamentos do TEA.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
GUILHARDI, C.; ROMANO, C.; BAGAIOLO, L.; GIOIA, P. Risco autístico em bebês:
possibilidades de avaliação comportamental. In: PESSOA, C. V. B. B.; COSTA, C.
Recebido em 27/12/2019
Aprovado em 20/02/2020