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AS ECOLOGIAS EPISTEMOLÓGICAS DE BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS

O conhecimento é uma das heranças da humanidade. Se, por um lado, o conhecimento é uma
identidade histórica, por outro lado, de acordo com Francis Bacon, é um poder. Vejamos: com o
conhecimento as sociedades ganham o poder de realizar grandes conquistas tanto para si, como
sociedades particulares, quanto para a humanidade no geral. Quando dizemos que o
conhecimento é uma das heranças da humanidade, fazemo-lo tendo em conta que não existe, até
então, uma sociedade composta por indivíduos da espécie humana que seja desprovida de
conhecimento.

Certos tipos de conhecimentos como a religião, a filosofia e a moral foram vítimas de uma
tendência epistemológica que dominou toda modernidade, chamada de positivismo. Esta corrente
possui cânones, balizas, que determinam aquilo que é conhecimento e aquilo que não é. Seus
cânones são: a verificação, a mensuração, a experimentação, a quantificação e a análise.

Com o modelo canónico positivista, o conhecimento “periférico”, sobretudo aquele que é


produzido na África, na América-Latina e na Ásia, foi e continua, em certo sentido, sendo
desconsiderado como relevante pela Europa. Os povos fora da Europa eram considerados como
sem cultura, sem lei, e sem conhecimento. O que havia fora da Europa, segundo a mentalidade
europeia moderna, eram magias, feitiçarias e misticismos. Os outros povos não eram vistos como
povos que dispõem de faculdades cognitivas para apreender ou produzir conhecimento.

De acordo com Boaventura de Sousa Santos (2008), o conhecimento europeu moderno é


colonizador, pois autoafirma-se como único e verdadeiro, excluindo as outras formas de
produção científica. Há aqui uma injustiça cognitiva e epistémica realizada pela Europa moderna
contra os povos do Sul. Santos (2008) procura resgatar os saberes endógenos, colocados à
margem dos cânones positivistas da modernidade. Esse resgate, de acordo com Santos (2017), só
é possível mediante uma gama de ecologias epistémicas. Santos aponta para a necessidade de
cinco ecologias epistémicas: a ecologia de saberes, a ecologia das temporalidades, a ecologia do
reconhecimento, a ecologia da transescala, e a ecologia das produtividades.

A ecologia de saberes baseia-se no reconhecimento de que o homem tem uma existência


complexa, sendo que o caos e a aleatoriedade dominam maior parte de sua existência, não o
cálculo frio positivista. É por isso que, segundo a ecologia de saberes, as hierarquias
epistemológicas devem ser eliminadas, dando assim espaço a uma existência ecológica entre
todos tipos de saberes. Neste sentido, o conhecimento passará a ser mais humanista, pois não
haverá chauvinismo entre os saberes: os saberes culturais e populares passarão a estar em mesmo
pé de igualdade com o dito saber científico (o “infalível”).

A ecologia de saberes elimina aquela ideia positivista de que o conhecimento é legitimado pela
sua performance, isto é, agora o importante não são os resultados quantificáveis que o
conhecimento traz, mas que determinado conhecimento seja capaz de resolver problemas
concretos de uma determinada comunidade.

A ecologia das temporalidades reconhece que existem outras temporalidades, outros espaços e
outros tempos coexistindo em simultâneo, isto é, existe uma Europa com supertecnologia e uma
ilha no sul da Ásia com conhecimentos locais, culturais; ambas temporalidades são igualmente
contemporâneas, não há uma que deve ser considerada mais avançada do que a outra. É nisto que
reside a ecologia das temporalidades.

A ecologia do reconhecimento é uma proposta para a descolonização das mentes presas naquela
lógica das hierarquias epistemológicas positivistas, que são hierarquias de diferenças. “Somente
devemos aceitar as diferenças que restem depois que as hierarquias forem descartadas”
(SANTOS; 2009: 35).

A ecologia da transescala articula escalas locais, nacionais e globais, descaracterizando a análise


do local como menos significativo, e atribuindo-lhe a possibilidade de extensão às demais
escalas. Isto é, o local é também total, e o total não deixa de ser loca.

Por fim, temos a ecologia das produtividades. Este tipo de ecologia considera sistemas
alternativos de produção, ocultados e desacreditados pela economia capitalista. Santos 2009)
apresenta um raciocínio que leva a considerar paradoxal e inconcebível a existência de diferenças
profundas entre seres humanos num quadro de dissolução de fronteiras. Deste modo, Santos
defende que o processo de globalização hegemónica, através da lógica de mercado e dos valores
que promove, tem produzido efeitos profundamente negativos nos povos africanos.

BIBLIOGRAFIA
SANTOS, Boaventura de Sousa. Um Discurso Sobre as Ciências. 5.ed., São Paulo, Cortez, 2008.

__________. Epistemologias do Sul. Coimbra, Edições Almeida, 2009.

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