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ARTIGO ORIGINAL

PERFIL EPIDEMIOLÓGICO DE PORTADORES DE HIPOTIREOIDISMO CONGÊNITO1

EPIDEMIOLOGIC PROFILE OF CONGENITAL HYPOTHYROIDISM PATIENTS

Alex Mota BENEVIDES 2, Carlos Henrique Vasconcelos LIMA2 , Cláudia Araújo da ROCHA 2, Ângela Regina Rosa CORRÊA 2 ,
Antonette Souto EL HUSNY3 e Milena Coelho FERNANDES-CALDATO4

RESUMO

Objetivo: determinar o perfil epidemiológico de crianças portadoras de hipotireoidismo congênito (HC). Método:
analisados os prontuários de 131 pacientes com diagnóstico de HC acompanhados na Unidade de Referência
Especializada Materno Infantil e Adolescente (URE-MIA) do Estado do Pará, segundo variáveis como idade,
sexo, procedência, realização do teste do pezinho e tempo do diagnóstico. Resultados: observou-se que 55%
dos casos estudados eram provenientes da Grande Belém; a prevalência segundo o sexo demonstrou predomínio
do feminino com 58%; aproximadamente 48% das crianças realizaram o teste do pezinho antes dos 30 dias de
vida e o tratamento foi instituído até os 90 dias em 57,3% dos pacientes; os principais sinais observados, no
momento da admissão, foram: hérnia umbilical (59,5%), macroglossia (42,7%), atraso no desenvolvimento
neuropsicomotor (39,7%), obstipação intestinal (36,6%) e hipoatividade (34,4%). Conclusão: predomínio de
crianças do sexo feminino e provenientes da Grande Belém. A procedência das crianças foi fator determinante
no tempo de intervenção diagnóstica e terapêutica, apontando lacunas no Programa de Triagem Neonatal do
Estado do Pará.

DESCRITORES: hipotireoidismo congênito, triagem neonatal.

INTRODUÇÃO
O hipotireoidismo congênito (HC) é a causa A prevalência da doença varia entre 1:3000 e
2,7
mais comum de retardo mental passível de prevenção.1,.2 1:4000 e por apresentar possibilidade de diagnóstico
Resulta da deficiência dos hormônios tireoidianos, pré-sintomático e tratamento efetivo e de bom
fundamentais na organogênese do sistema nervoso prognóstico, se efetuado antes do surgimento dos
central até os dois anos de vida, quando estimulam o sintomas, preenche os critérios necessários para o
crescimento dos dendritos e axônios, além de rastreamento a partir da triagem neonatal.8 Soma-se,
contribuírem para a formação do córtex cerebral ainda, uma sensibilidade favorável com poucos falso-
anterior, hipocampo, córtex auditivo e cerebelo.3 negativos e a relação custo-benefício altamente
Cerca de 85% dos casos de HC decorrem de favorável à triagem e ao tratamento.9
disgenesias tireoidianas, sejam elas ectopias, O diagnóstico clínico de HC no recém-nascido
hipogenesias ou agenesias4,5 , no entanto, deve-se notar, é muito difícil, uma vez que, a grande maioria dos
também, as causas secundárias e terciárias de pacientes parece normal ao nascimento, com
hipotireoidismo congênito, estas decorrentes de sintomatologia evidente somente por volta dos três
alterações hipofisárias e hipotalâmicas, meses de idade, quando os danos neurológicos já
respectivamente. 6 podem ter se estabelecido.1 0

Recebido em 10.03.2006 - Aprovado em 16.08.2006


1 Trabalho realizado na Unidade de Referência Especializada Materno Infantil e Adolescente (URE-MIA) do estado do Pará.
2 Médicos graduados pela Universidade Federal do Pará.
3 Graduanda do Curso de Medicina da Universidade do Estado do Pará.

4 Médica endocrinologista. Doutora em Medicina. Professora da Universidade do Estado do Pará.

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Nesse contexto, enquadra-se o principal RESULTADOS
objetivo dos programas de triagem neonatal para o Entre os 131 prontuários estudados, 58% eram
hipotireoidismo congênito, isto é, estabelecer o do sexo feminino (p=0,0806) e apenas 3 (2,3%) não
diagnóstico e iniciar o tratamento de forma precoce para haviam sido submetidos ao teste do pezinho. Quanto à
que as seqüelas sejam evitadas.7 procedência, observou-se que 72 pacientes, 55% dos
No Brasil, a triagem neonatal já é realizada há casos, eram provenientes da Grande Belém, incluindo
três décadas, entretanto, apenas em 2001, foi os municípios de Belém, Ananindeua e Marituba. O
estabelecido o Programa Nacional de Triagem Neonatal restante, portanto, se originou de outras Mesorregiões
(PNTN) pelo Ministério da Saúde, organizando o do estado.
serviço prestado pelo Sistema Único de Saúde e
oferecendo, gratuitamente, a realização do exame,
assim como, o acompanhamento e tratamento das
doenças investigadas.1 1
No Pará, o programa atinge 71 municípios e
apresenta 170 postos de coleta, com uma cobertura de
aproximadamente 50% do estado.12 Sendo a Unidade
de Referência Materno Infantil e Adolescente (URE-
MIA), o serviço de referência para confirmação
FIGURA 1- Distribuição dos pacientes matriculados no PNTN da
diagnóstica, acompanhamento e tratamento das doenças URE-MIA de acordo com a mesorregião de procedência,
triadas, entre as quais, o hipotireoidismo congênito. período de janeiro de 1995 a abril de 2004.
FONTE: Protocolo de pesquisa
*p (Nordeste do Pará x outras regiões do interior) < 0,05
OBJETIVO **p (Grande Belém x demais regiões) < 0,0005
Determinar o perfil epidemiológico das crianças
portadoras de Hipotireoidismo Congênito (HC), TABELA I – Distribuição dos pacientes com HC matriculados no
matriculadas no Programa de Triagem Neonatal do PNTN da URE-MIA de acordo com a idade de realização do
Estado do Pará. teste do pezinho (em dias), período de janeiro de 1995 a abril de
2004.
MÉTODO IDADE (em dias) %
Aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa Até 30* 48,1
De 31 a 60 26,7
do Hospital Universitário João de Barros Barreto.
> 60 10,7
O estudo tem caráter epidemiológico e Sem informação 14,5
transversal. Pesquisados os prontuários de 131 TOTAL 100,0
pacientes com diagnóstico clínico e/ou laboratorial de
FONTE: Protocolo de pesquisa
hipotireoidismo congênito, matriculados no Programa *p < 0,00001
Nacional de Triagem Neonatal (PNTN) da Unidade de
Referência Materno Infantil e Adolescente (URE-MIA)
do Estado do Pará. Também utilizados os arquivos do
Laboratório de Pesquisa em Apoio Diagnóstico
(LAPAD) da Universidade do Estado do Pará, onde as
análises do teste do pezinho são realizadas a partir do
segundo semestre de 1996.
Os pacientes incluídos na pesquisa são aqueles
provenientes de vários municípios do estado, assim
como, da capital, que receberam acompanhamento na
URE-MIA, período de janeiro de 1995 a abril de 2004.
As variáveis empregadas compreendem idade,
sexo, procedência, realização do teste do pezinho,
tempo do diagnóstico, sinais e sintomas presentes ao FIGURA 2 – Distribuição dos pacientes com HC matriculados no
diagnóstico, data de início do tratamento, presença de PNTN da URE-MIA de acordo com a idade de realização do
retardo mental, malformações associadas e atraso no teste do pezinho (em dias) em relação à procedência, período
desenvolvimento neuropsicomotor. de janeiro de 1995 a abril de 2004
FONTE: Protocolo de pesquisa
Os dados foram submetidos à análise estatística P < 0,05
com auxílio do programa BioEstat 2.0.
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TABELA II - Distribuição dos pacientes com HC da URE-MIA Apesar da relação entre HC e o sexo já ter sido
de acordo com a idade de início do tratamento, período de janeiro descrita na literatura com a predominância de 2:1 no
de 1995 a abril de 2004
sexo feminino 1,2 , o percentual de 58% de pacientes
IDADE (em dias) Freqüência % deste sexo não se mostrou, estatisticamente, significante
Até 90* 75 57,3 neste estudo.
De 91 a 180 24 18,3
No que se refere à procedência, a predominância
> 180 17 13,0
Sem informação 15 11,5 de pacientes provenientes da Grande Belém, sugere o
TOTAL 131 100,0 melhor esclarecimento da comunidade desta área
FONTE: Protocolo de pesquisa
quanto à importância da realização do teste do pezinho,
*p<0,00001 e, ainda, a maior abrangência do programa nesta região.
Pode-se afirmar que a proximidade da capital, possibilita
um maior número de casos triados e acompanhados,
também, pela facilidade de locomoção para consultas
subseqüentes e tratamento. A procedência do nordeste
paraense identificada em cerca de um terço dos
pacientes ratifica a hipótese.
Assim como, a existência de apenas uma criança
procedente do Baixo Amazonas reflete a dificuldade
de acesso à Unidade de Referência, pode sugerir a
cobertura irregular do PNTN.
A realização do teste do pezinho em crianças
com idade superior a 30 dias, encontrada
FIGURA 3 – Distribuição dos pacientes com HC matriculados no
aproximadamente 52% da casuística, revela o
PNTN da URE-MIA de acordo com o início do tratamento (em
dias) em relação à procedência, período de janeiro de 1995 a comprometimento do tratamento que, por consegüinte,
abril de 2004 é iniciado tardiamente.
FONTE: Protocolo de pesquisa Embora a maioria dos pacientes tenha iniciado
*p < 0,005 o tratamento em até 90 dias de vida, deve-se considerar
a colocação de outros autores que já consideram o
Na ocasião da admissão dos pacientes na URE-MIA, período como tardio para a instituição do tratamento,7,10
os principais sinais e sintomas observados foram: hérnia principalmente, em casos mais graves de HC em que
umbilical (59,5%); macroglossia (42,7%); atraso no algum grau de seqüela neurológica não poderá ser
desenvolvimento neuropsicomotor (39,7%); obstipação evitado, a menos que o tratamento inicie até a segunda
intestinal (36,6%) e hipoatividade (34,4%). semana de vida do paciente.7
Em 7,6% das crianças, observou-se malformação Entre os sinais apresentados, a hérnia umbilical
congênita associada ao quadro de hipotireoidismo apresentou forte significância estatística sobre os
congênito. Destas, 50% apresentavam Síndrome de demais. O bócio tireoidiano não foi encontrado na
Down. Estrabismo, cardiopatia congênita e pé torto casuística, concordando com os relatos de raridade deste
congênito foram encontrados em 20%, 20% e 10% dos sintoma no quadro de HC presentes na literatura.1 0
casos, respectivamente. A presença de Síndrome de Down em metade dos
pacientes portadores de nosologias congênitas
DISCUSSÃO associadas mostrou-se concordante com as observações
Por representar uma causa prevenível de retardo de Olivieri et al (2002)1 e Fisher et al (2002)6 .
mental, o hipotireoidismo congênito deve ser Por fim, vale atentar para a ausência de dados
diagnosticado de forma precoce, como objetivam os importantes nos prontuários de alguns pacientes, o que
programas de rastreamento neonatal. traduz uma falha na atuação do programa, quer seja no
Neste estudo, apenas três crianças foram momento da investigação diagnóstica, quer seja no
encaminhadas à URE-MIA, exclusivamente, por sinais controle documental do seguimento de seus pacientes.
e sintomas evidentes, sem a realização do teste no
período neonatal. Isso aponta o fato do estudo ter sido CONCLUSÃO
fundamentado no serviço de referência responsável O perfil dos pacientes matriculados no PNTN com
pelo atendimento das crianças com HC triadas pelo diagnóstico de Hipotireoidismo Congênito revelou o
PNTN. No entanto, reforça a idéia de difícil diagnóstico predomínio de crianças do sexo feminino e
precoce apenas por sinais clínicos. provenientes da Grande Belém.
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A procedência das crianças foi fator aprofundamento do tema exposto, a avaliação do
determinante no tempo de intervenção diagnóstica e programa de triagem vigente no Estado do Pará, no que
terapêutica, apontando lacunas no Programa de Triagem se refere à metodologia e abrangência, bem como a
Neonatal do estado. expansão da triagem neonatal a todas as cidades
Dessa forma, torna-se importante o paraenses.

SUMMARY

EPIDEMIOLOGIC PROFILE OF CONGENITAL HYPOTHYROIDISM PATIENTS

Alex Mota BENEVIDES, Carlos Henrique Vasconcelos LIMA, Cláudia Araújo da ROCHA, Antonette Souto EL HUSNY e
Milena Coelho FERNANDES-CALDATO

Objective: to determine the epidemiologic profile of congenital hypothyroidism (CH). Method: information about
age, sex, hometown, neonatal screening test and age of diagnosis was collected from 131 CH patients assisted in
the reference service of the State of Pará. Results: it was shown that 55% of the cases were from Belém region. The
prevalence according to sex showed a female predominance (58%). Roughly 48% of the children have been tested
before 30 days of age and the treatment have begun until 90 days in 57,3% of patients. The main signs observed
at the admission act were: umbilical hernia (59,5%), macroglossia (42,7%), neurological development delay
(39,7%), intestinal obstruction (36,6%) and lack of activity (34,4%). Conclusion: predominance of female children.
Most of them were from the capital region. The origin of the children was a relevant factor about the diagnosis
and treatment time, pointing out to faults in the Neonatal Screening Program of the state of Pará.

KEY WORDS: congenital hypothyroidism, neonatal screening.

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Endereço para correspondência


Antonette Souto El Husny
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São Braz - 66063 000 - Belém-PA
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