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NORMAS SOCIAS: CARACTERÍSTICAS GERAIS1

Ferdinand Tönnies

Chama-se norma a uma regra geral de ação ou a uma regra qualquer de


conduta. A norma estabelece – sem especificação concreta ou em relação a casos
previamente determinados – o que deve ou o que não deve acontecer, segundo
esteja esse acontecer condicionado pela vontade de seres racionais,
concretamente, de homens, para os quais a norma deve ser válida. De um modo
geral, a essência da norma pode ser compreendida como uma negação ou uma
proibição, ou seja, como uma limitação da liberdade humana, pois o mandato
positivo anula também a liberdade existente de agir segundo a própria vontade, ou
de maneira diferente da determinada e, sobretudo, da liberdade de agir contra o
mandato. Omnis determinatio est negatio. A proibição fecha um determinado
caminho, permitindo, porém, todos os outros, ou seja, deixando-os abertos. O
mandato fecha todos os caminhos exceto o indicado e prescrito, o qual, como
caminho autorizado, é o único permitido, ao mesmo tempo em que é proibido não
percorrê-lo. Por isso, a relação entre a proibição e o mandato não é apenas uma
relação de oposição, uma vez que o mandato é conjuntamente uma proibição
ampliada e aumentada.
Entretanto, apenas um mandato ou proibição não constitui uma norma,
ainda que se dirija a muitas pessoas. Se se ordeno silêncio na mesa de banquete,
ou descanso na frente de batalho, isso apenas significa que, por um tempo
determinado, se deve estar calado ou quieto, mas não significa que isso deva
continuar por muito tempo, nem mesmo em casos determinados. Porém, quando
se diz por exemplo: "Fica definitivamente proibido colocar panelas na mesa", ou:
"Quando um soldado estiver na presença de um superior, deve permanecer atento
e silencioso", estamos nos referindo a normas. Sua característica essencial é,
portanto, a generalidade.
Entretanto, por que algumas normas são chamadas "normas sociais"? Em
que se diferenciam das normas individuais, das associais ou outras? A diferença
reside não no fato de elas serem estabelecidas pela vontade conjunta de
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Ferdinad TÖNNIES, Principio de sociología, Ed. Fondo de Cultura Económica, 1942, México,
págs. 213-218. Trad. de Leôncio Martins Rodrigues Netto.

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diferentes pessoas socialmente unidas entre si (pois tais normas poderiam ser
tanto sociais como associais) mas no fato de as pessoas para as quais a norma
deve ser válida serem as mesmas que as estabelecem e as desejam, baseando-
se, portanto, na autolegislação, na autonomia, direta ou indiretamente:
diretamente, quando diferentes pessoas, de antemão, estão ou se puseram de
acordo para aceitar as referidas normas ou regras; indiretamente, quando
reconhecem as normas estabelecidas externamente, isto é, quando as afirmam,
as aplicam e lhes dão consentimento.
Mandar e proibir constituem atividades surgidas do querer que aparece nas
mais diversas manifestações da vida social, seja exteriorizando-se como mandato
isolado ou como norma, seja como norma social ou associal. Em primeiro lugar,
devemos considerá-la como exercida por um homem em relação a outro. É um
fenômeno diário. Uma pessoa pode tentar limitar desta forma a liberdade de outra
e limitará, de fato, se lograr êxito em sua tentativa. O que é mandado ou proibido
com êxito ou o que é obedecido, não nos interessa no momento. A tentativa de
limitar assim a liberdade de outro homem constitui uma das múltiplas formas com
que se tenta agir sobre a vontade de outra pessoa, determinando-a ou impedindo-
a, isto é, agindo de modo positivo ou negativo. Outras formas são o pedido, o
conselho, a exortação, a advertência, a requisição, a citação, o convite, a
instrução, a doutrinação, a persuasão, a recomendação, a incitação, a animação,
a sedução, o suborno, simples tentativas de estímulo, de dar oportunidade a
alguém por meio de palavras faladas ou escritas ou manifestadas de outro modo
qualquer de fazer ou omitir. As palavras podem reforçar sua influência através de
ações e, em determinadas circunstâncias, podem mesmo ser substituídas por
gestos e contactos, como, por exemplo: o rogo com as mãos estendidas; o abraço
nos joelhos da pessoa a quem se roga, prostrando-se de joelho ou arrojando-se
ao solo; o conselho com o rosto alegre, pensativo ou triste; a exortação com
empurrões, puxões de orelha e tapas; a recomendação ou a incitação com efeitos
sobre os sentidos: figuras, imagens, sons. Todas estas formas podem ser
reforçadas mediante palavras de diversos conteúdos: por meio de elogios e
censuras, de carícias e repreensões e, sobretudo, por intermédio de promessas e
ameaças. No caso de o rogo, o conselho, o mandato, a proibição ou outras formas
de influência alcançarem êxito, as promessas põem à vista atividades específicas
que, espera-se, devem ser desejadas pelos outros. No caso de não se ser

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obedecido, as ameaças revelam as atividades que não são supostas desejáveis.
A simples expectativa pode produzir tanto efeito como as palavras
expressamente prometedoras ou ameaçadoras, sem chegar a despertar
esperanças ou temores tão vivos: algumas vezes, pelas boas ou más
conseqüências ulteriores dos modos de agir que tenham sido pedidos,
aconselhados, ordenados, mandados ou proibidos; outras vezes, pela esperança
ou pelo receio que sentimos ante as ações de quem pede, aconselha, ordena etc.
Tais sentimentos podem influir em conjunto ou isoladamente na obediência: o
temor ainda mais do que a esperança, quando se considera que a limitação da
liberdade é mal recebida e que a obediência se efetua, portanto, de má vontade. A
esperança supõe uma determinação mais livre, uma obediência satisfeita, o
cumprimento agradecido do conselho, da sugestão, da exortação; o temor supõe,
pelo contrário, um fazer ou um omitir menos voluntário, um querer que se efetua
sob pressão.
Assim, em que se diferenciam essencialmente o mandar e o proibir das
outras classes de tentativas de modificação da vontade de outra ou outras
pessoas? No fato de constituírem uma tentativa de necessidade, ou seja, que se
produz com a esperança e com o propósito de obter, Por meio da ou das palavras,
uma ação ou uma omissão como conseqüência certa e segura das mesmas,
estando essa esperança unida com a confiança que desperta em uma ou várias
pessoas e sentimento de possuir-querer ou do não-poder-ser-de-outro-modo.
Esse sentimento se expressa na frase: "'Eu tenho que" e, mais precisamente
ainda, na frase: "Eu devo", as quais, juntamente com o sentimento da necessi-
dade, indicam que a referida necessidade está dada (ocasionada) por outra
vontade, ainda que também seja possível apelar indiretamente para a própria
vontade como se se tratasse dessa outra vontade.
Se toda negação é considerada hostil, então o mandar e o proibir são
também algo hostil. Todas as demais classes de tentativas para induzir uma
pessoa a fazer alguma coisa contra vontade, são amistosas quando não afetam a
liberdade desse outro de atuar segundo seu impulso, ou de qualquer outro modo,
quando só manifestam desejos (egoístas ou não) que o outro pode satisfazer ou
deixar de satisfazer segundo seu capricho. Quem tenta subornar ou seduzir só
pretende tornar mais efetivos seus desejos, valendo-se de suas habilidades e dos
meios aplicáveis ao caso em questão. Por sua vez, quem proíbe expressa um

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desejo; porém, une a este o propósito de excluir a liberdade de agir de modo
contrário a esse desejo. Seja qual for o motivo ou a causa pela qual se pode
obedecer realmente um mandato ou uma proibição, isso não implica que quem
obedece concede ao que ordena uma faculdade ou um "direito", ou, em outras
palavras, a permissão (geral em determinados casos) de dar-lhe ordens: isso não
supõe que quem obedece se atribua um dever, um ser-necessário estabelecido
por ele próprio, nem muito menos que sinta o dever de obedecer.
Que significa dizer que eu concedo a alguém um direito e atribuo a mim mesmo
um dever? Conceder um direito é mais do que dar uma simples permissão ou
deixar algo ao arbítrio de outro. Significa que a ação que eu permito é justa,
correta. Como correto assinalamos também o resultado de uma operação
aritmética quando seu resultado é correto. 2 + 2 = 4, significa: "4 é outro número
igualmente válido para a mesma pluralidade que se caracteriza, por outro lado,
como a soma ou adição de duas e duas unidades". O fundamento disso reside na
vontade comum e racional dos que possuem e usam o sistema comum de signos
da linguagem, graças ao qual se entendem mutuamente. E compreendem-se tanto
no que se refere ao sentido dos signos da igualdade como no que se relaciona ao
sentido dos números, pois aprenderam a contar e puderam fazê-lo graças à
faculdade humana geral de formar representações abstratas e de reunir e separar
o representado. A exatidão da operação aritmética baseia-se sempre, afinal, nos
axiomas lógicos de identidade e de contradição; o correto não pode ser posto em
dúvida racionalmente, nem, conseqüentemente, pode ser negado pelos homens
que tenham a faculdade de raciocinar. Tampouco pode ser racionalmente posto
em dúvida o fato de que uma coisa que eu próprio tenha na mão possa ser dada a
outro, o qual a toma e a possui desde o momento em que a retém em sua mão.
Um direito pode ser concebido ou pensado tal como uma coisa: se dou a alguém
um direito é porque devo tê-lo possuído antes, entendendo a palavra direito no
sentido indicado, ou seja, a liberdade, a faculdade (autorização) de realizar uma
ação correta ou justa. Uma ação é, portanto, correta quando é indiscutível
logicamente. Logicamente, é indiscutível que o homem, na medida em que possui
uma razão, é dono e senhor de suas ações. Este ser senhor de si próprio significa
também que ele pode proibir algo a si mesmo; com isso, expressa-se somente um
fato de nossa própria consciência que era comum caracterizar-se, além do mais,
como o domínio da parte racional da alma humana sobre sua parte irracional,

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sobre seus impulsos e paixões. A psicologia moderna - que com os conceitos de
sensação e sentimento pretende (ou pretendia) abranger toda a multiplicidade
psíquica e que chama representação a um conjunto de sensações - expressa esse
mesmo fato ao assinalar como característica do homem normal, do homem que
possui o uso da razão, a presença de representações inibitórias ou simplesmente
a presença de inibições. As referidas representações são de importância muito
diferente nos diversos homens e nos diversos momentos do mesmo homem.
Porém, dada a proporção de suas debilidades ou de suas falhas, o homem é um
ser animicamente enfermo ou irracional, considerado do ponto de vista do teórico
que o mede comparativamente ao homem normal, ao homem capaz de se
dominar. Por isso, é justo que eu me domine, que dê ordens a mim mesmo; e, se
a isso denomino um querer (racional), a liberdade da vontade é um direito a
querer, a dispor de minhas atividades tal como de meu corpo e membros, o que
constitui outra prova de que as esperadas e normais inibições estão presentes e
são eficazes. Se dou a alguém o direito de me dar ordens, querendo significar algo
mais do que um simples "Concedo o direito de me dirigires palavras às quais não
darei importância", isso quer dizer, ao mesmo tempo, que desejo também o que é
mandado. Quando, em virtude de uma ordem, ocorre o sentimento do "Eu tenho
que", e "Eu devo", esse mesmo sentimento já supõe, portanto, um "Eu quero", ou
seja supõe que, acima do querer da ação, surge um querer do ter que fazê-la, do
dever ser, e este é o sentimento ou a consciência do dever. Se obedeço às
minhas próprias ordens, o sentimento do "ter que" revela-se diretamente, um
sentimento do dever, posto que não é diferente do sentimento do "Eu quero".
Portanto, na medida em que o outro tem o direito de dispor de mim e sinto o dever
de obedecê-lo, a ordem desse outro equivale a eu ordenar a mim mesmo. Entre
nós, é considerado como previamente suposta uma relação mais ou menos
próxima da identidade, em virtude da qual nos sentimos de acordo com relação ao
querer e ao dever ser. Das relações positivas, chamadas precisamente por isso
relações sociais, pelo contrário, desenvolve-se o direito unilateral ou recíproco do
mandar e do proibir, e o dever unilateral ou recíproco do obedecer.

Extraído de: CARDOSO, Fernando Henrique e IANNI, Octavio. 1972. Homem e sociedade
– leituras básicas de sociologia geral. São Paulo: Cia. Editora Nacional . 7ª ed. p.
92-97.

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