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TEMA 1
OBJECTIVOS:
Explicar a emergência da etnografia;
Entender a sua especificidade enquanto método de investigação;
Explicitar as diferentes fases do trabalho etnográfico;
Analisar o processo de escrita como parte constituinte da experiência e saber
antropológico.
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a dimensão físico-biológica e pré-histórica, associada à história natural da humanidade
(com o contributo da arqueologia).
Com o evolucionismo, a antropologia adquire uma nova dimensão, direcionando-se
para os aspetos sócio-culturais dos povos/sociedades em estudo (explora os domínios
da linguagem, da organização social, nomeadamente, do parentesco, do religioso, do
político e económico). Articulando-se com a etnografia (etno: povo/etnia; grafia:
descrição) e a etnologia (etno: povo/etnia; logos: discurso), a antropologia integra-se
como uma das etapas da investigação antropológica, que segundo Lévi-Strauss (1996)
corresponde a 3 fases de pesquisa:
A etnografia corresponde à fase de investigação no terreno, recolhendo os
respetivos dados.
A etnologia corresponde a uma primeira fase de comparação e síntese dos
dados num âmbito regional
A antropologia, social/cultural, corresponde à última fase de síntese global.
Etnografia: Consiste na observação direta e na descrição dos factos reais, tais como
eles saem no inquérito do terreno.
O trabalho de campo etnográfico inclui várias técnicas de recolha de informação,
feita através de diversas formas de observação.
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Formas de Observação
Observação participante:
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A etnografia estuda e revela os costumes, as crenças e as tradições de uma
sociedade ou povo, de caracter geracional, permitem a continuidade de uma
determinada cultura ou de um sistema social.
“Significa literalmente “escrever sobre os povos” e designa a atividade
antropológica de recolha de informação através da observação participante,
prática que consiste em ficar durante meses num lugar estudando a vida de um
grupo de pessoas ou de uma pequena sociedade.” - Batalha (2005:29)
Surgem escolas teóricas que se afastam dos pressupostos evolucionistas, duas delas
representadas por Franz Boas (1852-1942), percursor do Particularismo histórico (uma
forma de difusionismo moderado que assenta no trabalho de campo) e Bronislaw
Malinowski (1884-1942), um dos mentores do Funcionalismo, defende a estadia
prolongada no terreno e introduz a observação participante como método de pesquisa
antropológica. Malinowski desenvolve o seu trabalho de campo nas Ilhas Trobriand,
publicando mais tarde a obra “Os Argonautas do Pacífico Ocidental”, fruto da sua
investigação no terreno, estabelece-se como o produto/modelo do trabalho etnográfico
na antropologia.
Pressupõe que cada cultura tem uma história particular (esta deve ser reconstruída
em factos palpáveis, incluindo os linguísticos, arqueológicos e etnográficos).
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Defende que a difusão de traços culturais pode ter lugar em qualquer direção do
mundo, cada cultura é única devendo ser compreendida pelo observador dentro do
contexto cultural em que ocorre, pelo respeito pelos valores, normas, hábitos,
costumes e modos de vida da população estudada.
A evolução pode acontecer também do mais complexo para o simples.
Franz Boas: Defendeu que não há culturas superiores nem inferiores (relativismo
cultural) e insurgiu-se contra o nazismo. Promoveu a ideia de que os antropólogos
deviam aprender as línguas dos povos estudados, uma mais-valia para conhecer
profundamente a cultura, hábitos e modos de vida dos mesmos. Institui a advogacia na
defesa dos povos ditos “nativos”.
Esta corrente tenta fazer uma descrição das instituições de dada sociedade,
esclarecer a sua função social e comprovar a sua cooperação para a construção de
uma sociedade estável e equilibrada.
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E.U.A.: Domina a preocupação de como aplicar os conhecimentos antropológicos na
compreensão e resolução dos problemas inerentes à integração da população nativa
na agenda política americana. Resultando numa série de conflitos entre antropólogos
e políticos, dado que os objectivos dos políticos opunham-se às visões dos
antropólogos e à necessidade de tempo para o estudo dos “nativos”.
A partir dos anos quarenta e sobretudo por influência de Jorge Dias, desenvolvem-se os
estudos de comunidades e culturas, quer nacionais quer coloniais. A institucionalização
lenta da antropologia só ocorre após a revolução de 1974. É também neste período que
se revela a emergência de uma Antropologia Aplicada em consonância com a
Académica. Isto não quer dizer que a antropologia não tivesse anteriormente uma
dimensão aplicada.
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formalmente, e os assuntos de que vai ocupar-se revestem, além do seu grande
interesse científico, uma alta importância nacional, para além, de privilegiar a
antropologia física e a classificação das características somáticas das populações
colonizadas. Neste contexto desenvolveram-se várias missões às colónias no sentido
de recolher dados tanto físicos como culturais sobre as suas populações.
A prática antropológica sofre alterações significativas com o fim dos impérios coloniais,
centrando-se nas sociedades ditas “ocidentais” e na sua maioria de origem dos
antropólogos. Surge um novo olhar para o estudo do próprio meio onde se inserem, a
cultura, os valores, os costumes, e em simultâneo, renovados interesses pela esteira
dos outros, nativos e antropólogos. Os vestígios nativos são referidos em âmbito
museológico e para os antropólogos abrem-se os arquivos das pesquisas perpetuadas
ao longo do tempo. Inicia-se uma afluência de “nativos” para as ex-metrópoles, em
contexto de migrações de trabalho ou forçadas por outros motivos, constituindo deste
modo novos campos de investigação antropológica.
Escrita etnográfica:
Objeto de acérrimos debates e críticas, questionando o contexto e a forma da
sua produção. O antropólogo passa a ser igualmente um objeto.
Writing Culture (Clifford e Marcus, 1986): um dos 1.ºs textos pós-modernistas
que reúne os textos resultantes de uma conferência realizada em 1984. As
ideias centrais são:
o A antropologia devia deslocar-se do campo da etnografia científica para o
estudo dos próprios textos etnográficos, visando a sua desconstrução (no
caso dos antigos) e a sua elaboração,
o Contextualizar e ponderar face à metanarrativa (ideia da grande teoria),
Trabalho do Antropólogo
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como dominante e a dominada. O antropólogo deve considerar e avaliar este
contexto que indica uma forma de etnocentrismo.
Houve a necessidade de uma consciencialização das condições e reciprocidade
entre o antropólogo e os informantes, comunidades, colaboradores, bem como,
uma reflexão sobre as políticas estatais, corporativas e académicas a adotar na
produção de material etnográfico.
PRINCÍPIOS DE UM MÉTODO:
O que resulta da etnografia enquanto método qualitativo e o que lhe é específico?
No debate deste tema, segundo Stewart (1998, 5-8) os cinco princípios que
caracterizam a pesquisa etnográfica, aludindo de modo resumido são: observação
participante / holismo / contextualização / descrição sociocultural / conexões teoréticas.
TEXTO 1
Urpi Montoya Uriarte
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O que é fazer etnografia para os antropólogos
Na etnografia, a teoria, as evidências empíricas e os dados adquiridos estão de tal
forma interligados que se conclui que a Teoria e a Prática são inseparáveis: o fazer
etnográfico (campo) é sempre moldado pela teoria, o que não significa que ele está
submetido a ela, uma vez que por definição, a realidade supera sempre a teoria.
Na perspetiva de Peirano (2008:3): defende que a etnografia, não é apenas uma
metodologia ou uma prática de pesquisa, “mas a própria teoria vivida /.../ No fazer
etnográfico, a teoria está, assim, de maneira óbvia, em ação, emaranhada nas
evidências empíricas e nos nossos dados.”
Quando o pesquisador vai para o campo, está sujeito a alterações à sua teoria pelo
conhecimento das realidades, adquiridas através da prática (a comunidade, grupo,
povo, sociedade, etc. ao serem pesquisados, no campo, o olhar e o escutar do
pesquisador é guiado pela teoria), pois a realidade irá sempre superar a teoria.
A teoria volta a manifestar-se quando o investigador coloca todos os conhecimentos
adquiridos no papel, ou seja, ao voltar e escrever o texto etnográfico, põe em ordem e
traduz os factos vivenciados numa teoria interpretativa.
Segundo Favret-Saada (1990, apud GOLDMAN, 2008), o que caracteriza o antropólogo
é essa peculiar formação para se sentir “afetado” por outras experiências, o que se
traduz num trabalho de campo imbuído de teorias e ao voltar, tornar a reavaliar todo o
processo etnográfico, das informações obtidas, transformá-las e interpretá-las à luz da
autenticidade e veracidade dos factos vivenciados.
Para que o investigador execute um bom trabalho de campo, necessita de se preparar
previamente, fazer um estudo aprofundado do povo que vai estudar e acompanhar, ser
isento de senso comum e sobretudo ter “ vocação” para este tipo de trabalho que exige
da parte dele um “desenraizamento crónico”, ou seja, ”não se sentir em casa em lugar
nenhum”.
A antropologia do Séc. XIX era especialista no estudo dos ditos “povos primitivos”, na
análise de estudos feitos em documentos elaborados a partir de relatos de viajantes,
missionários, expedições científicas, de funcionários coloniais, entre outros. Estes
antropólogos trabalhavam essencialmente em gabinetes, lendo esse material,
deduzindo e especulando sobre o que eram estes povos, baseando-se estes textos
antropológicos em afirmações e teorias etnocêntricas.
Como uma resposta crítica a este método de estudo surge a antropologia do séc. XX,
com o objetivo de reconstituir a história dos povos e explicar como alguns tinham
evoluído em detrimento de outros.
Os antropólogos começam a integrar as expedições científicas cada vez mais
frequentes na 2.ª metade do séc. XIX, significando sinais de mudança nos
procedimentos antropológicos e consequentemente no fazer etnográfico.
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costumes e valores, ou seja, falar sobre o relativismo é não julgar as diferentes culturas,
é deixar um pouco de lado a sua cultura, abrindo a mente para conhecer novos
horizontes, novas culturas.
A antropologia do séc. XX passou a ter como objeto não os povos primitivos, mas as
sociedades humanas, incluindo os povos desconhecidos e todos aqueles que já faziam
parte da cultura do antropólogo. O discurso sobre o “Outro” deixou de se centrar na
sociedade do pesquisador e passou a ser relativizado com a vivência entre os nativos e
sua visão deles mesmos. O respeito pela alteridade, singularidade de cada sociedade
humana, é mote para pensar a diferença e o antropólogo é aquele que se interessa pelo
“Outro”, uma vez que tenta compreendê-lo no seu meio sócio-cultural, em detrimento da
defesa de uma identidade imbuído num território de certezas, quer ser abrangido pelo
“Outro” e desenraizar-se, procurando na alteridade uma solução e não um problema.
O método etnográfico passa a ser parte integral da antropologia, considerado por
Goldman como “o estudo das experiências humanas a partir de uma experiência
pessoal” (2006, p.167).
O MÉTODO ETNOGRÁFICO
O Método etnográfico pode ser considerado como meio de aproximação das realidades
a que nos propomos estudar e compreender.
“o método etnográfico não se confunde nem se reduz a uma técnica; pode usar
ou servir-se de várias, conforme as circunstâncias de cada pesquisa; ele é
antes um modo de acercamento e apreensão do que um conjunto de
procedimentos.” (MAGNANI, 2002, p.17).
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3. Método comparativo: quando se estudam vários casos e são alvo de
comparação;
4. Método do urbanismo errante: quando se percorre um local da cidade, de uma
forma lenta e à deriva.
O método etnográfico pode ser composto por três fases: a formação teórica, o
trabalho de campo e a escrita.
1) Estudo da teoria (formação teórica): recolhendo informações e interpretações
sobre a população em estudo, pode ser considerado como a “bagagem
indispensável para ir a campo”. A “sacada” etnográfica só provém do tempo em
campo e da formação do investigador (este, através da leitura de diversos textos
etnográficos, aprende a ver pessoas, não meros indivíduos, com as suas
particularidades, valores, sabedorias…)
2) Trabalho de campo: viver durante um longo tempo com os “nativos” (rurais,
urbanos, modernos ou tradicionais), conhecer o seu dia-a-dia, os seus
costumes, tradições, a língua, a cultura, em suma, estabelecer relações com as
pessoas. O trabalho de campo antropológico consiste em estabelecer relações
com pessoas, ou seja, os nativos são para o antropólogo pessoas e não
indivíduos abstratos, gente concreta e peculiar, dotada de suas características
próprias.
3) Escrita: trabalho a ser realizado depois das duas primeiras fases, ou seja
documentar o trabalho realizado em campo, ordená-lo de uma forma legível para
que outros o compreendam (para que haja uma correta aliança entre teoria e
prática).
Esta fase é para alguns tão difícil quanto a permanência em campo, pelo facto de
transcrever factos em texto de forma honesta e interessante. Por muita proximidade
que o antropólogo tenha estado com a população em estudo, a escrita é sempre do
antropólogo e este não é um nativo.
“A dificuldade advém da etnografia e a escrita serem duas coisas radicalmente diferentes: a
etnografia é uma experiência, uma experiência do outro para captar e compreender, depois
interpretar, a sua alteridade; a narrativa etnográfica é a transformação dessas experiências totais
em escrita, o que, necessariamente exige um mínimo de coerência e linearidade que não são
próprias da vivência.” (Sousa, 2016-2017:21)
De acordo com Viveiros de Castro (2002): “A voz do antropólogo não é a voz do nativo
porque uma coisa é o que o nativo pensa e outra, o que o antropólogo pensa que o
nativo pensa. O ponto de vista do antropólogo é, o da sua relação com o ponto de vista
do nativo”.
A escrita é tida como uma mistura de autoridade e fragilidade.
Autoridade, advém de quem testemunha e produz o relato,
Fragilidade, proveniente da consciência de que o “presente etnográfico” é uma ilusão,
pois, a escrita que hoje é correta, futuramente será corrigida por outro etnólogo.
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O realismo etnográfico: a sua importância reside na descrição dos detalhes, do
quotidiano e principalmente na maneira como é exposta usando sempre o sujeito “eu
estive lá ”, dando a parecer ao leitor que a narrativa é o mais próximo do real.
Marcus e Cushman dividem o realismo etnográfico em dois campos: clássico e
experimental.
Clássico: abuso de uso da terceira pessoa – “eles fazem”, “eles pensam”,
existindo uma ausência total da pessoa concreta e um tratamento marginal das
condições de trabalho.
Experimental: o etnógrafo já faz parte do texto, os nativos passam a ter voz,
os pontos de vista quer do nativo ou do pesquisador são distintos, as
condições do trabalho de campo são descritas pormenorizadamente.
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Na segunda fase, após um tempo de permanência com estes povos (uma presença
continuada e atenta), as ideias começam a fazer sentido e as informações recolhidas
tornam-se material importante para a pesquisa, dando -se o nome de “sacada”.
CONCLUSÃO:
O fazer etnográfico consiste em vários pontos fulcrais, que em consonância produzem
um equilíbrio e harmonia entre eles:
Não é somente ir ao campo, dar a palavra aos nativos ou ter um espírito
etnográfico.
Pressupõe uma vocação de desenraizamento, de uma formação para olhar o
mundo de forma descentrada, uma preparação teórica para compreender o
“campo” em estudo.
Aventurar-se, entregar-se e arriscar-se no universo a desvendar, prolongar-se no
tempo em campo, interagindo, dialogando com as populações ou pessoas que
tenta compreender.
Escutar e dar a devida importância às palavras e dizeres dessas pessoas.
Encontrar uma ordem nas coisas, para à posteriori ordenar esses dados
mediante uma escrita realista, polifônica e intersubjetiva (capacidade do
pesquisador de se relacionar com o sujeito/objeto de estudo).
Etnografia para o antropólogo não significa propriedade, mas sim uma afirmação
da sua complexidade. O facto de outras ciências sociais poderem apropriar-se
deste método transcende a antropologia e o próprio investigador. Estas recorrem
a certas técnicas de pesquisas que são exclusivas e peculiares ao método de
pesquisa qualitativa.
TEXTO 2
Composto por:
Técnicas e procedimentos de coletas de dados associados ao trabalho de
campo e à vivência do pesquisador no grupo social que pretende estudar.
O pesquisador através da inter-relação e interação entre ele e o sujeito estudado
recorre às técnicas de pesquisa como: observação direta, conversas informais e
formais, e de entrevistas diretas e indiretas, entre outros.
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A construção do próprio tema e objeto de pesquisa, passando pela adoção de
certos aspetos teórico-conceituais do próprio campo disciplinar e suas áreas de
conhecimento (Antropologia rural, Antropologia urbana, etc.)
A observação direta
Observação direta: técnica usada para investigar os saberes e observar as práticas
sociais, bem como, reconhecer as ações e as representações coletivas na vida dos
grupos humanos, comunidades, instituições, etc.
O pesquisador tem a necessidade de se envolver no meio social, absorvendo os
contrastes sociais, culturais, e históricos, imiscuir-se na vida social, e pesquisar os
valores éticos e morais, os costumes e códigos de emoções, intenções e motivações
que orientam uma dada sociedade.
Mais uma vez se afirma que o antropólogo, não se pode transformar em nativo, mas
tem uma necessidade de conhecer mais do que a sua própria cultura.
O trabalho de conhecer
Para obter este conhecimento, é fulcral a prática do olhar o OUTRO, como uma
alteridade, para que o pesquisador possa conhecê-lo, acabando ele próprio também
por se conhecer um pouco melhor, vencendo obstáculos epistemológicos (entraves à
aprendizagem, para que a construção do espírito científico se efetive) impregnados de
uma cultura científica (necessidade de justificar o que vê através do senso comum).
O pesquisador ao deslocar-se para o trabalho em campo, tem de estar preparado para
novos desafios e emoções, devendo abster-se do conceito de que a realidade é
mensurável ou visível, numa atitude individual.
A pesquisa passa pela aprovação de um projeto e pela orientação de um
professor/pesquisador ou antropólogo.
Para a realização do trabalho em campo, existe sempre a negociação entre ambas as
partes e quando o pesquisador se desloca, será acompanhado por alguém do grupo
alvo de estudo que o acompanha e apresenta aos restantes elementos do grupo social
– interlocutor principal ou padrinho/madrinha de iniciação.
Nem sempre os estudos são feitos a povos nativos, o antropólogo americano William
Foote Whyte (2005), realizou um trabalho de campo nas ruas da cidade, esta
aproximação foi mediada por um trabalhador que conhecia o chefe do grupo de jovens
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que ele pretendia estudar, através dos quais irá conhecer uma intensa rede de relações
no bairro.
Escuta atenta
Implica a permanência do pesquisador no terreno, conquistar a confiança do grupo e
para poder participar ativamente nas conversas, aprende a língua nativa, com o tempo
passa a reconhecer os sotaques, as gírias, os gestos, as etiquetas e performances
inerentes ao grupo e permitem revelar as suas orientações simbólicas e traduzir os
valores com que se regem para “pensar”, “olhar” o mundo
Escutar o outro não é tarefa fácil para o pesquisador, exige da parte deste uma mútua
aprendizagem, a conquista da confiança ao realizar as entrevistas e estar atento a cada
experiência observada, superando, assim as dificuldades existentes pelo
desconhecimento.
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Com a escrita, os investigadores criam narrativas onde recriam a sua vivência com
outros povos e fazem-no de tal modo que conseguem dar vida aos seus escritos.
Acabando por existir pontos em comum entre o método etnográfico e o romance,
aproximando-se da Antropologia da Literatura.
Margareth Mead (1979), num artigo diz que uma das características da antropologia é
ser uma disciplina de palavras, “… que a prática etnográfica traduz-se na memorização de
acontecimentos orais complexos (cerimónias, conversas, relatos, comentários, interações
verbais, etc.), que necessitam ser registados, classificados, correlacionados, comparados, e logo
após, retomados pelo etnólogo na forma de estudos monográficos, através do uso de conceitos
teóricos e metodológicos do seu campo disciplinar e não do próprio “nativo”. (Sousa, 2016-
2017:35)
A antropologia destes dois mestres foi responsável por uma revolução epistemológica,
no campo das ciências sociais:
Pela forma como a pesquisa etnográfica era realizada, tendo como fundamento o
trabalho de campo junto das sociedades ditas primitivas, que provocou ao longo
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do séc. XX, um novo vigor na produção do conhecimento e na metodologia
aplicada na investigação antropológica nas sociedades modernas, ditas
complexas.
Após as crises dos anos 30, cientistas sociais começaram a participar em instituições
públicas ou privadas, tendo como ação o trabalho com jovens ou indivíduos que viviam
em situações de crise social. Conseguindo efetuar a passagem da participação para a
observação das situações vividas pelos grupos, numa tentativa de reuni-los no interior
de um mesmo procedimento metodológico.
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A tendência monográfica e a grafia da luz
Monográfica - trata só de um assunto.
A escrita dos artigos relacionados com o estudo etnográfico é ponto fulcral do trabalho
do pesquisador, os trabalhos monográficos, os ensaios, as teses e dissertações, têm
sido importantes para que seja reconhecido pelo mundo académico. Com a
modernidade dos tempos, estes trabalhos escritos começaram a ser alvo de tendências
mais atuais, tais como recorrer aos recursos audiovisuais, como o caso da adoção da
máquina fotográfica pelo Malinowski, Margaret Mead e Gregoire Bates.
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rejeitar a ideia de que os antropólogos escondem as suas verdadeiras intenções em
campo).
A rutura com os obstáculos epistemológicos, como o senso comum, são também uma
questão que provoca divergências e dúvidas, no seio dos cientistas sociais, a partir do
momento em que se pensar que no conhecimento empírico, estão presentes as
próprias experiências do antropólogo, conhecimentos, informações e conceitos
teóricos adquiridos ao logo da sua vida social e cultural e vivências do quotidiano.
TEXTO 3
“Ser laowai: o estrangeiro antropólogo e o estrangeiro para os migrantes
chineses entre Portugal e a China”
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Ser laowai é uma forma particular de ser estrangeiro, constituída a partir de
processos históricos, políticos, sociais e culturais específicos.
O sentido mais forte do termo laowai deve ser procurado, principalmente, na
relação dos chineses com a modernidade ocidental e suas facetas de ambivalência,
de fascínio e de aversão.
Em suma, podemos dizer que a humilhação da China perante os poderes
ocidentais no século XIX constitui uma importante componente da aversão dos
chineses em relação aos ocidentais, mas, paradoxalmente, o sentimento de
inferioridade infligido foi também catalisador de fascínio.
O ocidentalismo de que fala Chen Xiaomei é reflexo de uma ideia do “ocidental”
como estrangeiro distante, mas aqui oscilando entre a ameaça e o ideal a alcançar.
É neste contexto de ocidentalismo, de um forte sentimento de inferiorização e de
discriminação dos chineses pelos “ocidentais”, e de grande segregação entre estas
duas categorias de pessoas, que surge o termo laowai – uma categoria
classificatória que ainda hoje convoca a carga de uma história de perceções e
práticas discriminatórias e desiguais entre chineses e estrangeiros.
Ser laowai implicava não apenas que eu poderia ser uma potencial ameaça, mas
também ser considerada muito diferente no meu modo de vida, moralidade e visão
do mundo.
Como referem Sarró e Lima (2006: 18), a partilha do quotidiano com as populações
que se estuda é um dos eixos definidores do trabalho de campo, tanto em terrenos
metropolitanos como na etnografia clássica. Assim, ao adaptar a minha forma de
estar no terreno à forma de estar na vida dos meus interlocutores, eu acabei por
partilhar com eles o seu quotidiano, ter a oportunidade de fazer observação
participante e, com o tempo, de conversar com eles também sobre assuntos que
me interessavam.
RESUMO
No terreno, o etnógrafo quase sempre tem de lidar com o facto de ser visto como
um estranho pelas pessoas com quem interage, mas, em contextos etnográficos
chineses, um etnógrafo não chinês pode experimentar uma forma particular da
condição de estranho encerrada na ideia de laowai, uma categoria nativa de
estrangeiro.
A partir de experiências etnográficas com chineses na China e em Lisboa, este
artigo reflete sobre as condições de produção de conhecimento etnográfico em
terrenos chineses, descrevendo e discutindo o modo como a categoria
de laowai, emergente num contexto social, político e histórico específico, envolve
o etnógrafo numa complexa teia de relações que o colocam de modo
ambivalente e simultaneamente em posições de distância e de proximidade.
Esta situação remete para o modo como a categoria de laowai, historicamente
imbuída numa relação de poder de tipo racial e colonial, se articula com a noção
de guanxi (contactos sociais privilegiados) e também de mianzi (face) (Yang
1994) entre os chineses, e que resultam em formas de acumulação de prestígio
social. Porém, a análise da importância das guanxi e da mianzi no trabalho de
campo está para além do âmbito deste artigo.
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