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DOMINGO, 14 DE SETEMBRO DE 2014 O ESTADO DE S. PAULO

Arremate Após quatro meses de uso do volume morto, o Sistema Canta-


reira caiu ao nível de maio, chegando a 9,7% da capacidade de armaze-
namento da água. Logo que o volume morto começou a ser bombea-
do, o nível foi elevado para 26,7%. A Sabesp culpa a estiagem.

DENNY CESARE/ESTADÃO
modava de ficar amarrado. Andava pra lá e
pra cá, pegava sarna, vivia resfriado. O hún-
garo botou a mola para funcionar e, pelo
seu cálculo, naquele ponto havia o cruza-
mento de dois veios d’água – fenômeno de
interferência que desagradaria ao gado, ao
melhor amigo do homem e ao próprio ho-
mem, especialmente durante a noite. “As
radiações que vêm do espaço chegam a um
mínimo no período noturno, mas as ondas
emitidas pelas águas subterrâneas conti-
nuam, e elas perturbam o sono”, afirma,
peremptoriamente. Donde conclui: “Os lo-
teamentos deveriam empreender um estu-
do prévio sobre os sistemas de veios exis-
tentes na área e levantar prédios de acordo
com essa planta”. Que fosse pela harmonia
nas reuniões de condomínio.
Para o Parque Náutico, o que acalmaria
os nervos no momento seria exatamente o
oposto: um bom cruzamento de veios que
jorre água em profusão. Imre puxa um pa-
pel em branco do bolso traseiro, o apoia na
coxa, saca a BIC do bolso da camisa e traça
um perfil da área em que, a priori, seria per-
mitido cavar um poço. Observa um belo
cupinzeiro (cupins e formigas preferem
cruzamentos) e uma mangueira frondosa
nooutro limite (outraquegostadeumpon-
to de afluência, ao contrário do pé de café e
da laranja). Marca a posição da caixa
d’água, o limite superior do talude, a ascen-
são das águas subterrâneas. Vai e volta com
a mola em ômega, subindo e descendo, o
suor escorrendo pela blusa xadrez. Enfim
pede ao caseiro que traga uma estaca e um
martelo. Perto de uma ruela de paralelepí-
pedos estaria o ponto A, um cruzamento de
três veios, cada um com 8 metros de largu-
ra.Profundidade estimada:220metros. Va-
zão provável: 7 m³ por hora.
Imre cobra R$ 1.500 pelo serviço. “Quan-
do não cobrava, ninguém levava a sério.”

O chamado da água
Ágil no francês, no inglês (foi pesquisador
associado na Carolina do Norte), no ale-
mão, no húngaro (“se bem que não enten-
do mais esses jargões modernos”) e no por-
tuguês, é cuidadoso com as palavras. Sabe
que lida com uma margem de erro nas suas
contas, “afora o caráter excepcional das ca-
madas de subsolo”, e por isso usa verbos e
expressões relativizantes. Entre seus prin-
cipais clientes – postos de gasolina, hotéis,
indústrias, concessionárias, condomínios
–, alguns até são assertivos. “Ele manda fu-

Em tempos de secura, achadores de veios subterrâneos rar e a gente manda bala”, diz Claudino,
gerente de um posto Graal na Rodovia dos
Bandeirantes. O poço, marcado há quatro

entortam suas molas e forquilhas em busca de futuros poços anos, tem 280 metros de profundidade e
jorra de 5 mil a 6 mil litros/hora. Na Ultra-
print, empresa de São Paulo, a obra atingiu
os mesmos 280 metros, porém tem vazão
maior, de 8 mil litros/hora. Luiz Tanan, do-
no de uma perfuradora, revela que uma in-
dústria em Suzano teve sucesso além das
Mônica Manir Ficouláaté1945.NoaugedaguerranaEuro- sado era chamada de rabdomancia, a adivi-
pa, a família de pai, mãe e quatro filhos zar- nhação por meio de vara. Vasculhar águas Requisitado. expectativas. Imre apostou em 270 metros
de fundura, mas a água apareceu antes, a
Imre cobra
Um
solardido torrava ococuru- pou para a Alemanha. Foram acomodados subterrâneas é coisa dos primórdios bíbli- 170 metros, e em dobro: 31 m³, e não os 15
to de Imre. Em volta, a au- num campo de displaced persons. “A comida cos, como o próprio Imre destaca no livro A m³ indicados. Em Sumaré, a previsão deu
diência não dava um pio. que os americanos forneciam era liofiliza- Vida Brota das Águas Subterrâneas, lançado R$ 1.500 com os burros n’água: a vazão foi muito
Melhor não perguntar nada nessa hora. Afi-
nal, o homem estava caminhando sobre as
da, aí fizemos uma horta lá; abastecíamos o em1998peloInstituto CampineirodeEnsi-
campo inteiro com verdura fresca”, lem- no Agrícola. Está no Êxodo que Moisés, pa- pelo serviço. pouca, 500 litros/hora. Em Diadema, Imre
quase acertou na bucha: 250 metros e 4 m³
águas... “Pode perguntar, sou macaco ve-
lho”, diz o húngaro. Macaco velho no me-
bra, num sotaque que eventualmente mis- ra saciar a sede do seu povo pelo deserto,
tura feminino com masculino. Em 1948 es- fez jorrar água da rocha usando uma vara. A
‘Quando não para 260 metros e 6,2 m³.
Agora, vá querer chegar perto do poço...
lhor dos sentidos. Imre Lajos Gridi-Papp tava tudo certo que viriam para o Brasil. técnica sofreu de ostracismo na Idade Mé- cobrava, As empresas garantem que está tudo em
tem 83 anos e há pelo menos 20 marca po-
çossistematicamenteusando umamolaes-
Mas uns despatriados de pai e mãe fizeram dia e ressurgiu no começo do século 20,
uma treta: trocaram suas radiografias de quando o abade Bouly cunhou o nome, de-
ninguém ordem, mas não permitem o acesso. O hi-
drogeólogo Ricardo Hirata, professor da
piral. Se a mola sobe, neca de água naquele
trechodeterreno.Sedesce,aliembaixopas-
pulmão com as dos Gridi-Papps e dois pois adotado pela Associação Francesa de
membros da família de Imre foram dados Radiestesia, fundada em 1922. Alemães e
levava a sério’ USP e diretor do Centro de Pesquisa de
Águas Subterrâneas, faz um sobrevoo so-
sa um veio. “Mudaram muito o relevo, o como inaptos para atravessar o mar. Ruma- russos a incorporaram sem pudor. Cuba- breotema:“NosEstadoscomregulamenta-
negócio aqui é complicado”, afirma, secan- ram então todos para a França, terra onde nos a têm em grande conta. Brasileiros mal ção própria, quase a maioria, a ilegalidade
do a umidade da testa com a costa da mão. Imre obteve o diploma de bacharel na Uni- conhecem a palavra radiestesia, mas al- pode chegar a 70%”. Pelos seguintes moti-
Estamos num condomínio em Piracaia, o versidade de Toulouse. guém sempre tem um causo de forquilha vos:faltadeestruturadogovernoparafisca-
Parque Náutico Jaguari, que de náutico, A chegada a São Paulo se deu em 1952 e a pra contar. Os “pajés da roça” se armam de lizar, morosidade no processo de outorga
nosúltimostempos,sótemosbarcoscober- naturalização brasileira, em 1958. Mora- um pau bifurcado feito de salgueiro, avelei- e, principalmente, um usuário que não vê
tos por lona encardida. Suas chácaras com vam no Bexiga, mas a poluição paulistana ro, bétula, marmeleiro, e vão seguindo pelo vantagem em ter sua captação legalizada.
vista para a represa Jaguari-Jacareí agora daquela época lhe entupiu os alvéolos. terreno até o estilingue se vergar. Vergou? “Ocorre que a água pode estar contamina-
avistam três níveis desoladores: um longo Imre se encantou com os ares da Escola Pode furar que ali tem água. da com solventes clorados, substâncias
declive esturricado, uma faixa considerável Superior de Agricultura Luiz de Queiroz Sergio Areias, presidente da Associação muito tóxicas e bastante persistentes nos
de lodo e, no miolo, o que restou depois da (Esalq-USP), em Piracicaba. Aos 30 anos se Brasileirade RadiestesiaeRadiônica,expli- aquíferos”, alerta Hirata. Quem tampa o
retirada do primeiro volume morto. Às vés- formou engenheiro agrônomo e depois foi ca que a Terra é um grande ímã, que emite fosso com a peneira também perde seus
peras da extração do segundo volume mor- para o Instituto Agronômico de Campinas um campo magnético. Se entre essa imana- direitos.Um poço bem construído pode es-
to, o engenheiro Eduardo Del Monaco (IAC)trabalharcommelhoramentogenéti- ção e a superfície houver água correndo, tarperdendovazãoporcausade interferên-
Caiuby, 59 anos, condômino do Parque codealgodão.Enredou-senessaárea.Publi- isso gera uma diferença de potencial elétri- cias hidráulicas de poços ilegais. O usuário
Náutico e duas vezes campeão brasileiro de cou manuais, livros e co.Treinando a mente, regularizado tem cacife para exigir o fecha-
iatismo na juventude, perdeu a classe. Está mais de 60 trabalhos o radiestesista conse- mento desses buracos sem fundo. “Mas,
sem pressão, o Estado não age. É um círcu-
exaltado. “Em 30 anos não se investe nada
em água no Estado”, gesticula. Ele explica
científicos, prestou as-
sessoria científica e
“O inconsciente capta gue identificar essa al-
teraçãoeliberarmicro- lo vicioso”, diz o hidrogeólogo.
que a represa divide a região em grandes coordenaçãodecomis- as radiações do movimentos através Em tempos de secura, não resta um pin-
panelas aquíferas. Tem condomínio próxi- sões técnicas, e então do instrumento que go de dúvida de que as águas subterrâneas
mo sem um gota no horizonte, e a panela do se aposentou em 1993,
ambiente. Não há lhe convier – um galho sejam a fonte das fontes. Representam o
Parque Náutico não está em situação tão agraciado com diplo- entidade extracorpórea deárvore, um pêndulo, quarto maior manancial da Bacia do Alto
melhor. “Pra você ter uma ideia, eu ia vele- mas de honra ao méri- uma mola. “Não tem Tietê, por exemplo. Mas Waldir Duarte
jando comprar pão pro café da manhã do to por governador de
envolvida” umaentidadeextracor- Costa Filho, presidente da Associação Bra-
outro lado da represa. Agora vou de jipe.” Estado e ministro da pórea fazendo isso”, sileiradeÁguasSubterrâneas(Abas),apon-
Se a panela está à míngua na superfície, Agricultura. ressalva. “Teu incons- ta um motivo político para sua baixa explo-
quem sabe emerge algo debaixo dela. Um A mola, feita de arame de aço, com as ciente consegue perceber todas as radia- ração. “Elas não rendem voto porque, ao
vizinho de cerca de Eduardo falou de um espirais fechadas e enroladas sob pressão, ções existentes no ambiente, mas o teu contrário das grandes barragens, são obras
senhorque erabom demarcar poço. Nãosó configurou-se um plágio. Um plágio assu- consciente não, graças a Deus.” Graças a quenãoseveem.”Quantoàsmolaseforqui-
poço comum como poço perfurado, desses mido. Imre mandou fazer um exemplar de Deus porque quem aguenta um canal aber- lhas, que estão no plano do quase invisível,
de grande vazão, que atingem as águas sub- 70 centímetros igual à mola que o tio enge- to full time para tanta onda de celular, rá- ele tem lá seu porém: “Existem na Europa
terrâneas. Diante da estiagem, as 44 resi- nheiro usava para marcar poços, achar pe- dio, TV, micro-ondas, radiação do cosmos, algumas sociedades de radiestesia que le-
dências do condomínio precisavam de tróleo e localizar, a mando dos comunistas, radiação telúrica do Sol?, pergunta Areias, vam o seu trabalho muito a sério e cobram
maisumafonte.Daíque, chamadoacompa- tesouros enterrados no território húngaro. queusaum pêndulo eumdinamômetro em preços altos para marcar um poço, mas há
recer,Imre tomouo norte de Piracaia a par- O pai, Imre M. M. Gridi-Papp, já radicado suas sessões de acupuntura. muitas pessoas desonestas que chegam a
tir de Campinas, onde mora. Seria sua 16ª no Brasil, mapeou jazidas de minerais e de Mais instintivos e sem esse filtro divino, fornecer a qualidade química da água; se
investigação em dois meses. “Desde 1952, petróleo usando o mesmo recurso. Trei- os animais captam a radiação e escancaram assimfor,desconfie”.Hirataresgataumde-
quando cheguei ao Brasil, não via uma seca nou Gridi-Papp júnior na técnica, e o filho sua satisfação ou seu desprazer com ela. safio contra o que chama de bruxaria: “Já vi
assim”, contabiliza. resolveu estudar a fundo o que sentia che- Antigamenteosfazendeirosescolhiamolo- hidrogeólogo apostando caixa de cerveja
Seus olhos translúcidos aparentemente gar pela coluna vertebral. cal onde construiriam a sede do seu terre- contra um radiestesista, e o hidrogeólogo
tinham visto de tudo. Nascido em outubro “Todo mundo tem essa sensibilidade, al- no observando o gado. Largavam os bichos acabouficando bêbado”.Imre tem a coluna
de 1930 em Istambul, onde o pai arquiteto guns menos, como os caras de pau, alguns pelo terreno e, onde eles dormissem, ali o sensível, mas não se abala. Ri com os olhos
acompanhava a reforma de um prédio his- mais, como os médiuns”, brinca. Depois se dono erguia o alicerce. Imre lembra que, azul-piscina.“Láatrás euteria sido queima-
tórico, ele foi registrado na Embaixada da apruma e volta à razão. Essa sensibilidade certa vez, o dono de um sítio pediu que ele do vivo.” Enrola a mola e parte para mais
Hungria e pra Hungria se mudou em 1932. às radiações seria a radiestesia, que no pas- checasse o canil onde um cachorro se inco- um chamado das águas.

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