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RESUMO
As organizações religiosas fazem parte de uma área evita-
da por muitos pesquisadores. Primeiro, porque elas são
consideradas fonte de questiúnculas domésticas e de
informações irrelevantes para o conhecimento científico
das organizações; segundo, porque se sentem desenco-
rajados diante das peculiaridades institucionais e do pudor
clerical em expor publicamente seus bastidores. Trabalha-
mos aqui com dois pressupostos: primeiro, uma análise
desses fenômenos organizacionais pode contribuir para
uma avaliação mais ampla das organizações “profanas”,
também conhecidas como “lucrativas” ou “empresariais”.
Segundo, neste começo de século assistimos o surgimento
* Uma versão preliminar deste texto foi apresentada no 21º Enanpad, realizado em Rio das
Pedras, RJ, de 21 a 24 de abril de 1997, na área temática “Organizações”. Esta versão
definitiva incorpora modificações e acréscimos relacionados a algumas discussões
posteriores do tema e novas publicações sobre o objeto aqui enfocado.
** O autor é Mestre em Administração de Empresas e Doutor em Ciências da Religião pela
Universidade Metodista de São Paulo. Foi docente na Pós-Graduação em Administração
até 1999 e a partir dessa data trabalha no Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Religião, ministrando disciplinas na área de Sociologia das Organizações e Instituições
Religiosas. Escreveu Teatro, templo e mercado: organização e marketing de um empreendimento
neopentecostal e diversos artigos em revistas especializadas.
ABSTRACT
The religious organizations are part of an area prevented for
many researchers, first, because they consider them source
of little domestic questions and irrelevant information for
the scientific knowledge of the organizations, and
entrepreneurship; second, because they felt discouraged to
go ahead in the institutional peculiarities and the clerical
modesty in displaying its embroidery frames in public. We
work here with two presupposes: an analysis of these
organizational phenomena can contribute for a better
evaluation of “the profane” organizations, also known as
“lucrative” or “entrepreneurial”. Second, in this first
decade of XXI century, we attend the “boom” of religious
enterprises governed by the laws and rules of the market, in
such a way, with the use of marketing for the optimization
of the results, thus making possible the comparison, as until,
the confusion between, religion and company, territories till
then, supposedly, very well delimited.
Key-words: religious organizations; organizational
phenomena; marketing; entrepreneurship.
INTRODUÇÃO
1
Essa entrevista que fizemos com o pastor J. Cabral, falecido alguns anos depois, aconteceu
no seu local de trabalho, Editora Gráfica Universal, no Rio de Janeiro, em 20/7/95. Na
época, Cabral, uma espécie de superintendente da casa publicadora da IURD, também era
visto como “teólogo” e “intelectual” da IURD, que não somente gerenciava a Editora mas
também estava pessoalmente envolvido com a redação dos livros de Edir Macedo.
2
Usamos aqui o termo “iurdiano” para designar os fiéis e membros da Igreja Universal do
Reino de Deus, fundada em 1977, no Rio de Janeiro, entre outros por Romildo R. Soares,
Roberto Augusto Lopes e Edir Macedo de Bezerra. Essa Igreja rapidamente cresceu e se
tornou um império religioso e mediático, com profundos vínculos com a política por
meio de seus representantes no Congresso Nacional. Analisamos em 1997 essa Religião-
Empresa (CAMPOS, 1997) e vários aspectos de seu crescimento foram estudados em Ari
Pedro Oro, André Corten e Jean-Pierre Dozon (2003).
3
Partindo de uma análise de Walter Powell, Paul J. DiMaggio (1991) e de P. Selznick
(1971), Marcelo Marinho Aidar (2003) analisou em sua tese de doutoramento o papel
desempenhado pela institucionalização da gestão e do desempenho organizacional por
meio do “Prêmio Nacional de Qualidade”.
4
Ernst Troeltsch foi um teólogo e filósofo alemão, amigo próximo de Max Weber. A sua
contribuição ao estudo sociológico das organizações religiosas se deu por intermédio de
seu livro The social teaching of the Christian Churches, de 1911 e Protestantism and Progress,
de 1912. A ênfase inicial nessa tipologia vem de Max Weber e seu texto clássico A ética
protestante e o espírito do capitalismo (1981).
5
Veja Ricardo Mariano (in ORO, 2004) a respeito da expansão pentecostal no Brasil e Ari
Pedro Oro (2004) sobre a “exportação” brasileira de religiões para o mundo. Ambos os
artigos tomam a IURD como objeto de análise.
6
“Reencantamento” é uma expressão empregada para designar a busca humana por um
mundo simbólico que lhe dá sentido e que esteja além do mundo natural ou físico. Na
literatura da sociologia da religião, “desencantamento” é um termo empregado por
Max Weber (ver PIERUCCI, 2003) sobre o uso do conceito de desencantamento do
mundo, por Weber, para designar o avanço da racionalização, da secularização e o
advento de uma sociedade em que novas formas de reencantamento poder acontecer,
agora longe da religião.
7
Dos 52 movimentos religiosos catalogados pelo ISER, no Censo Institucional Evangélico
(FERNANDES, 1992), 50% deles surgiram no Rio de Janeiro depois de 1960, incluindo-se aqui
a própria IURD e a sua meio-irmã, a Igreja Internacional da Graça de Deus.
A CULTURA ORGANIZACIONAL DA
IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS
a) Liderança e autoridade
A Igreja Universal crê ter sido edificada “sobre e pelo Espírito
Santo”, por intermédio de pastores “escolhidos por Deus” com a
missão de curar, exorcizar os demônios e promover uma vida
próspera para seus adeptos, ainda neste mundo. Esse
empreendimento se autodefine como uma Igreja “que não pára de
crescer em todo o mundo, superando inclusive as perseguições, pois
ela é dirigida pelo Espírito Santo” (Folha Universal, 14.5.95). Além do
mais, ela tem tanto o “Espírito Santo como líder” como também o
“bispo Macedo como administrador” (Folha Universal, 19.2.95).
Edir Macedo parece ter conseguido de seus liderados uma adesão
que se explica pela existência de uma liderança visionária, eficiente,
que produz resultados na vida dos fiéis. Nesse aspecto, Macedo seduz
os liderados e com eles mantém uma interação simbólica capaz de
provocar mudanças na conduta dos que se acercam dele. A esses
elementos podemos ainda acrescentar, seguindo a metáfora empregada
por Thomas Wood Jr (2001) – organizações espetaculares –, que a IURD
exige um tipo de liderança capaz de administrar a distribuição e
atribuição de sentido para a vida cotidiana de seus fiéis.
Foi assim que, em 1997, depois de uma longa conversa que
tivemos com o autor de Organizações Espetaculares, a respeito de Edir
Macedo e de sua forma de gestão dos negócios religiosos, que
surgiu uma bem apropriada expressão de Thomas Wood Jr: “escola
Macedo de gestão empresarial”. Para ele, a maneira “macediana” de
gerenciar uma organização hierocrática engloba formas modernas
de gerenciamento, que podem ser aplicadas com sucesso em quais-
quer outras organizações. Isso porque Macedo trabalha com nicho
de mercado, tem foco no cliente, pratica a learning organization, o
empowerment, a centralização, a produtividade, a remuneração por
resultados, o job-rotation e o treinamento on the job (2001, p. 113).
12
Essa nova realidade não foi assimilada por Renato Suhett, que alguns meses depois se
despediu do Brasil e seguiu para os EUA. Em uma carta de despedida (Folha Universal,
21-11-93), Suhett afirmou que as novas funções a serem assumidas no exterior eram
decorrentes de ordens do Espírito Santo (sic). Assim, ele terminou a sua “carta de
despedida”: “vou fazer o mesmo trabalho, em Los Angeles, cumprir a carreira
administrativa que Deus nos deu”, antes solicitando “que as pessoas não se esqueçam
que as coisas são colocadas pelo Espírito Santo (...). E que toda mudança ocorre para o
bem do povo de Deus.”.
b) Sistema de dominação
Os mecanismos de dominação são necessários para a sobre-
vivência de qualquer tipo de organização. Reed Nelson (1985, 1993)
estudou os mecanismos colocados em prática pelos protestantes
tradicionais, pentecostais e até mesmo pelos mórmons norte-
americanos. Em vários de seus textos, Nelson mostrou que a do-
minação entre os protestantes históricos, presbiterianos, metodistas,
luteranos, congregacionais e outros, se dá por meio de um quadro
administrativo burocrático, no qual todas as manifestações de
carisma são eliminadas ou, no mínimo, abafadas. Entre eles pre-
valece a “autoridade institucional”, cuja competência se estabelece
por regras racionalmente elaboradas.
A chave para a compreensão das organizações eclesiásticas está
na maneira como se dão o estabelecimento e a manutenção de uma
divisão entre “clero” e “laicato”. Isso exige, na maioria das deno-
minações religiosas, uma qualificação e um treinamento profissional
para o exercício da função clerical.
Nesse contexto, os leigos buscam satisfazer, de forma religiosa
ou simbólica, as suas necessidades de sentido para a vida. Por sua
vez, o clero busca nas suas relações com os leigos o reconhecimento
e a remuneração. A sua segurança está atrelada à consecução das
metas da organização. Da fusão dessas duas dimensões surge a
percepção de firmeza e solidez nos rumos da organização. Essa
dimensão nos faz encarar o surgimento de uma burocracia eclesiás-
tica, com o seu rol de normas e regras – os cânones –, que dão ao
clérigo a sensação de nunca estar sozinho diante de seus superiores
hierárquicos, e que sempre tem a quem apelar, principalmente ao se
sentir injustiçado. Por sua vez, o comprometimento com a organi-
zação depende de uma ligação psicológica estável e profunda entre
o agente e a organização religiosa a qual o clérigo serve.
Em pesquisas, temos observado que o comprometimento, visto
como “um estado psicológico que caracteriza a ligação dos indi-
víduos à organização”, como caracteriza Armênio Rego (2003, p. 26),
sofre de sérias deficiências na IURD. Isso porque essa Igreja tem
tratado os pastores de uma forma tal que há um significativo
número de pastores abandonando as funções ministeriais. Isso
ocorre, principalmente, com os pastores mais velhos. Pois, a cons-
tante mobilidade, a instabilidade na ocupação, os riscos de ser
expulso da Igreja por falta de produtividade, acabam prejudicando
o comprometimento organizacional. É possível que o esquema
Não tenho dúvida. Materialmente, eu sou rico pela minha família (...).
Todos os meus bens são da igreja, tudo o que eu uso é da igreja (...)
uso o carro da Igreja (...) [a casa, o apartamento] está (sic) em nome
da igreja (...). Ganho muito bem, mas o meu ganho é revertido para
a igreja, eu devolvo à igreja (...) [O senhor não tem nenhum bem no
seu nome?] Só a Record (IstoÉ/Senhor, 20.6.90).
Tal modelo faz da IURD prisioneira de uma pessoa física, pois,
em sua expansão ela precisa de meios de comunicação de massa
funcionando para atrair clientela para os seus templos. Ora, se tal
sistema de comunicação se encontra majoritariamente em nome de
Macedo, é fácil concluirmos que o processo de institucionalização
tende a passar obrigatoriamente pela pessoa dele. Essa dependência
gera um círculo vicioso, pois Macedo controla a mídia enquanto
dela recebe permanente reforço para a manutenção de seu carisma
e essa mídia para sobreviver precisa reforçar o carisma de Macedo.
Também a quantidade de elogios a Macedo no jornal de sua
Igreja permite-nos suspeitar estar em funcionamento dentro dela
uma espécie de “engenharia simbólica”, voltada à fabricação do
líder e à manutenção de sua imagem pública. Isso nos faz recordar
os mecanismos de criação e manutenção do carisma de Luis XIV, na
França, cuja imagem de estadista foi construída e retocada por um
grupo de especialistas da pintura, arquitetura, filosofia, história etc.
conforme análise de Peter Burke (1994), em A fabricação do rei.
c) Poder e conflitos
A construção de um carisma, bem como a formulação dos
mecanismos de sua passagem para a organização, acontece num
cenário marcado por conflitos. Daí, porque Macedo percebe o
mundo como “um campo de batalha”. Mas, como evitar que as
guerras externas causem batalhas e desgastes internos entre os
membros de sua aguerrida organização? Talvez por isso esteja em
curso na Igreja Universal, aparentemente com o consentimento do
próprio Macedo, um processo de fortalecimento institucional e a
adoção de estratégias de transferência do seu carisma, e dos demais
pastores e bispos, para a instituição eclesiástica.
Edir Macedo experimentou, nos anos posteriores, um período
de relativa calma após os conflitos iniciais com os demais
empreendedores. Porém, com a expansão da Igreja nos anos 80 e a
aquisição de emissoras de rádio e de televisão, houve um abrupto
14
Para uma análise sociológica do pastor no protestantismo tradicional veja: Jean-Paul
Willaime (1992) especialmente o capítulo 7, “Le pasteur comme type spécifique de clere”;
Profission:pasteur (1986).
15
Sobre esse tema veja nosso artigo (CAMPOS, 2003) sobre o estudante de teologia que é
candidato a pastor: contribuições das ciências sociais para uma análise da formação do
futuro clero protestante brasileiro.
16
Observem que na raiz da palavra “hierarquia” está o termo grego “hieros”, usado para
transmitir a noção de santo, de divindade ou de manifestação do sagrado na vida humana.
O poder, religioso ou não, tem assim uma fundamentação ou uma legitimação divina.
17
Números tirados das revistas Veja (19-4-95); IstoÉ (14-12-94) e dos jornais Correio
Brasiliense (25-3-94) e Jornal da Tarde (4-8-95). O Censo do IBGE de 1991 apontou para
apenas 269 mil fiéis. Já o Censo de 2000 afirma que a IURD passou para 2,1 milhões de
fiéis, totalizando somente ela, 12% dos pentecostais brasileiros.
18
Sobre o crescimento da IURD em várias partes do mundo, sugerimos o exame da
coletânea organizada por Ari Pedro Oro, André Corten e Jean-Pierre Dozon (2003).
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Esses números apresentados referem-se a templos que a IURD tinha há dez anos. Não
temos dados recentes. Porém, em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba e
outras capitais brasileiras, estão surgindo as “Catedrais da Fé”, que são mega-templos
com capacidade para mais de dez mil pessoas. Em compensação, pequenos tempos
(talvez onerosos e pouco produtivos) de periferias, estão sendo fechados para que as
pessoas participem mais das cerimônias religiosas nos mega-templos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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A esse respeito, a revista Veja, n. 1964, ano 39, n. 27, de 12-7-06 publicou uma matéria de
capa intitulada “Os novos pastores”, da qual participamos ajudando com informações.
Nessa reportagem foi enfatizado que “com menos ênfase no sobrenatural e mais
investimento em técnicas de auto-ajuda, a nova geração de pregadores evangélicos
multiplica o rebanho protestante e aumenta a sua penetração na classe média”.
21
Juliana Linhares, revista Veja, op. cit.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
SOARES, Edio. Prier, c´est jouer un peu: approche ethnographique de la ´priere forte´ à
l´Eglise Universelle du Royame de Dieu. In: www.ethnographique.org. Acesso em: 3 jan.
2006 (revista eletrônica Ethnographique.org, n. 8, novembro de 2005).
THEVENET, Maurice. Cultura de empresa: auditoria e mudança. Lisboa: Monitor, 1990.
TROELTSCH, Ernst. The social teaching of the christian churches, 2 v. New York: Harper &
Brothers, 1970.
VEJA. Os novos pastores, edição 1964, ano 39, n. 27, 12 de julho de 2006.
VINDE. Revista mensal da Visão Nacional de Evangelização. Rio de Janeiro, n. 2, dezembro
de 1995.
WACH, Joachim. Sociologia da religião. São Paulo: Paulinas, 1990.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo-Brasília: Pioneira- UnB, 1981.
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WILLAIME, Jean-Paul. La précarité protestante: sociologie du protestantisme contemporain.
Geneve: Labor e Fides, 1992.
WILLAIME, Jean-Paulo. Profission: pastor. Geneve: Labor et Fides, 1986.
WOOD JR. Thomas. Organizações espetaculares. Rio de Janeiro: FGV, 2001.