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A formação do cânon hebraico

DARIO DE ARAUJO CARDOSO


INTRODUÇÃO E ANÁLISE AO ANTIGO TESTAMENTO
O que é cânon?

Definição
Usado nesse sentido pela primeira vez por Atanásio,
bispo de Alexandria (c. 367 d.C.).
Esse conceito se aplica à Bíblia Hebraica?
Teorias

4 grandes teorias
 Tradicional
 Documentária
 Fragmentária
 “Recitacional”

Ponto de contato: 2 Reis 22.8-10


2 Reis 22.8-10

 8 Então, disse o sumo sacerdote Hilquias ao escrivão Safã: Achei o Livro da Lei na Casa do

Senhor. Hilquias entregou o livro a Safã, e este o leu. 9 Então, o escrivão Safã veio ter com o

rei e lhe deu relatório, dizendo: Teus servos contaram o dinheiro que se achou na casa e o

entregaram nas mãos dos que dirigem a obra e têm a seu cargo a Casa do Senhor.

10 Relatou mais o escrivão Safã ao rei, dizendo: O sacerdote Hilquias me entregou um livro.

E Safã o leu diante do rei.


Teoria tradicional

Retirada do próprio texto


A Bíblia foi escrita por homens de reconhecida
autoridade que apresentavam sua
mensagem/escritos ao povo e os reunia num centro
religioso (templo)
Atividade escritora de Moisés:
 Ex 17.14:  Então, disse o SENHOR a Moisés: Escreve isto para
memória num livro e repete-o a Josué; porque eu hei de riscar
totalmente a memória de Amaleque de debaixo do céu.

 Ex 34.27-28:  Disse mais o SENHOR a Moisés: Escreve estas


palavras, porque, segundo o teor destas palavras, fiz aliança
contigo e com Israel.  E, ali, esteve com o SENHOR quarenta
dias e quarenta noites; não comeu pão, nem bebeu água; e
escreveu nas tábuas as palavras da aliança, as dez palavras.
Leitura para o povo

Ex 24.7 – A leitura do livro da Aliança


E tomou o livro da aliança e o leu ao povo; e eles disseram: Tudo o
que falou o Senhor faremos e obedeceremos

Dt 31.19
Escrevei para vós outros este cântico e ensinai-o aos filhos de
Israel; ponde-o na sua boca, para que este cântico me seja por
testemunha contra os filhos de Israel.

Dt 31.22
Assim, Moisés, naquele mesmo dia, escreveu este cântico e o
ensinou aos filhos de Israel.
Livro guardado junto à arca da Aliança

Dt 31.24-27
Tendo Moisés acabado de escrever, integralmente, as
palavras desta lei num livro, deu ordem aos levitas
que levavam a arca da Aliança do SENHOR, dizendo:
Tomai este Livro da Lei e ponde-o ao lado da arca da
Aliança do SENHOR, vosso Deus, para que ali esteja
por testemunha contra ti.
Prática repetida

Por Josué (24.25-26)


Assim, naquele dia, fez Josué aliança com o povo e
lha pôs por estatuto e direito em Siquém. Josué
escreveu estas palavras no Livro da Lei de Deus;
tomou uma grande pedra e a erigiu ali debaixo do
carvalho que estava em lugar santo do Senhor.
Prática repetida

Por Samuel (1Sm 10.25)


Declarou Samuel ao povo o direito do reino, escreveu-
o num livro e o pôs perante o Senhor. Então,
despediu Samuel todo o povo, cada um para sua
casa.
Críticas

Atestada em parte limitada do texto bíblico


Deixa de dar resposta aos questionamentos usando
como justificativa a doutrina da inspiração.
Estrutura do Cânon Hebraico

Torah
Nebhiim
Bereshit (Gn) Kethubhim
Shemoth (Ex) Josué
Wayqra (Lv) Shofetim (Jz) Tehilim (Sl)
Bemidbar (Nm) Samuel Jó
Debarim (Dt) Melakim (Rs) Mishle (Pv)
Isaías Rute
Jeremias Shir Hashirim (Ct)
Ezequiel Qohelet (Ec)
TereAsar (Os, Jl, Am, Ob, Ekah (Lm)
Jn, Mq, Na, Hb, Sf, Ag, Ester
Zc, Ml) Daniel
Esdras-Neemias
Dibre Hayamin (Cr)
Teoria Documental

Fruto dos conceitos da modernidade


 Homem como medida de todas as coisas
 Ênfase na capacidade realizadora da razão
 Crítica às tradições e negação do sobrenatural
Propõe que o texto é fruto de um longo processo
natural de composição e confluência de 4
documentos que refletem a história e a evolução
político-religiosa de Israel
Focada no Pentateuco
Precursores

Thomas Hobbes, O Leviatã (1651)


 Apenas Deuteronômio escrito por Moisés
 Eventos históricos bem depois de seus acontecimentos
 Redação final feita por Esdras
Benedito Espinosa, Tractatus Theologico-Politicus (1670)
 Redação em 3ª pessoa e registro da morte
 Autor da Torah viveu muito tempo depois do período retratado
 Gn 12.6; 26.33; 35.20; Dt 3.14; 10.8
 Esdras coletou, de documentos existentes, histórias de vários
escritores.
 As confusões, repetições e inconsistências eram decorrência da morte
de Esdras antes de terminar sua tarefa.
Formação da Teoria

1678 – Richard Simons (padre francês)


Fontes a partir das diferenças de estilo
1753 – Jean Astruc (médico de Luiz XV)
Conjecturas Concernentes aos Memorandos
Originais, os quais, aparentemente, Moisés
empregou para compor o livro de Gênesis
Argumentou a favor de duas fontes usadas para Gn 1
e 2 com base no uso dos nomes divinos
Elohim – cap. 1 Yahweh – cap. 2
Formação da Teoria

1780-83 Johann Gottfried Eichhorn, Introdução ao


Antigo Testamento
 Dividiu Gênesis entre dois escritores, Elohista e Javista, E e J.
 Ajusta relatos paralelos e histórias duplicadas a essas duas
fontes
 Propôs traços característicos para cada uma
 Defendia Moisés como autor
 Nas edições posteriores estendeu o trabalho a todo o
Pentateuco e aderiu à tese de que ele era posterior a Moisés
Wilhelm M. L. De Wette
 1805 – Dissertatio; 1806 – Beitraege zur Einleintung
 (Teoria Fragmentária)
 Nenhuma parte anterior a Davi
 Deuteronômio – ação político-religiosa do rei Josias e do
sacerdote Hilquias – Documento D (621 a.C)
 EJD
Teoria suplementária
 Texto básico E, suplementado por autor J
Teoria da cristalização
 Texto básico de Moisés recomposto a cada nova contribuição
1853 – Hermann Hupfeld, Die Quellen der Genesis
 Revolução na teoria
 Reexaminou a fonte E e a dividiu em duas
 E2 – muito similar a J, exceto pelo uso de Elohim
 E1 – mais antigo, documento básico, de caráter sacerdotal
 Mais tarde foi chamado P de Priest

PEJD
Introduziu a figura de redatores que faziam
rearranjos e suplementações. Adaptando o texto.
Essa era a razão das dificuldades na aplicação dos
critérios de divisão de fontes
1866 – Karl Heinrich Graf
 Código Sacerdotal (P) posterior a Deuteronômio
 Pertencente à época do exílio (587-539 a.C.)
 Porções históricas muito antigas
 P histórico, E, J, D, P legal
 E suplementado por J e depois revisado por D
1869 – Abraham Kuenen – A religião de Israel
 Unidade de P - partes históricas inseparáveis da partes legais
 Assim a parte mais antiga de Hupfeld passou a ser a mais recente
 Esdras reuniu todo o Pentateuco
 JEDP
Versão definitiva

Julius Wellhausen – expoente clássico


 1876 – A composição do Hexateuco
 1878 – Introdução à História de Israel
 Redefiniu a teoria com perícia e capacidade de persuasão
 Apoiou a sequência JEDP na teoria da evolução (Darwin)
 Desenvolvimento do animismo primitivo até o monoteísmo
sofisticado
Críticas

Fundamenta-se demasiadamente no raciocínio e na


especulação lógicas. Hipóteses são feitas com base
em outras hipóteses
O advento da arqueologia no séc. XX não confirmou
nenhum dos pontos principais da teoria. Trata-se de
uma teoria documental sem documentos.
TEORIA FRAGMENTÁRIA /
TRADIÇÃO ORAL
Descrições

Contemporânea à teoria documental, menos radical


Relatos esparsos e textos isolados antigos foram
reunidos e compilados por redatores do período
monárquico
Teoria fragmentária – pequenos textos escritos e não
documentos extensos
Teoria da tradição oral – relatos e tradições que
eram preservados na cultura e transmitidos de uma
geração para outra até que se fez necessário registrá-
los por escrito
Desenvolvimento da teoria fragmentária

A linha documental da teoria fragmentária


desenvolveu-se sobre o Pentateuco paralelamente à
teoria das quatro fontes e foi superada por ela
Alexander Geddes – 1792-1800
 Propôs a teoria com base no trabalho de Astruc
 Pentateuco composto de fragmentos lendários, desconexos
entre si e de muitos autores desconhecidos, mas possuindo
apenas um redator do tempo de Salomão
J. Vater – 1802-1805
 39 fragmentos compilados no exílio babilônico
A. T. Hartmann – 1831
 Afirmou que a escrita era desconhecida entre os israelitas no
tempo de Moisés
 Grande número de documentos lendários e mitológicos pós-
mosaicos que receberam adições de tempos em tempos.
Wilhelm M. L. De Wette – 1805
 Deuteronômio escrito no tempo de Josias (621 a.C.) para
sustentar sua reforma religiosa
Heinrich Ewald – 1875
 Pentateuco composto de muitos documentos tendo E como
documento básico
Hipótese Deuteronomista

Ressurgimento da Teoria Fragmentária aplicada aos profetas


anteriores (Josué, Juízes, Samuel e Reis)
1943 – Estudo da História da Tradição de Martin Noth
Propôs a existência de um autor ou escola que, com base no
livro de Deuteronômio e diante do fim do reino de Judá,
escreveu uma história de Israel para explicar teologicamente
as causas do exílio.
Esse autor é chamado de Deuteronomista (Dtr) e sua obra é
chamada de História Deuteronomista (HDtr).
Esse autor teria feito uso de diversas fontes escritas compor
sua obra. Ex. Josué 10.13; 2Sm 1.18; 1 Reis 11.41; 14.19, 29; 2
Rs 11.12
Principais críticas

Não dispõe de prova material da existência dos


documentos propostos
Não descreve a forma de arquivamento e acesso dos
fragmentos ou dos livros propostos
TRADIÇÃO ORAL
Tradição oral

Hermann Gunkel (1862-1932)


 Deu grande contribuição para a crítica da forma e para o
estudo da tradição oral nos textos bíblicos
 1895 – Livros “Criação e Caos no começo e no fim do tempo”
 Comparou textos sobre criação e destruição de Gênesis 1 e
Apocalipse 12 classificando-os como mitos
 1901 – As lendas de Gênesis
 Aplicou os conceitos da crítica forma
 1926 – Comentário no Livro de Salmos
 Introdução aos Salmos – editado por seu aluno e sobrinho
Gunkel

Viu a narrativa de Gênesis como uma coleção de


lendas e sagas que alcançaram sua forma final
através da transmissão oral
Baseado em contos populares alemães, defendeu que
as narrativas do Pentateuco não começaram na corte
de Davi, mas nos primeiros dias dos juízes.
Propôs uma mudança de documentos de larga escala
para unidades pequenas, de textos para tradições, de
autores para a sociedade pré-literata do antigo Israel
Crítica da forma

Classificava os textos em gêneros para identificar o Sitz


im Leben (contexto vivencial) em que foram produzidos.
Cada tipo de gênero estava associado com uma situação
social ou histórica
Acreditava estar desenvolvimento uma crítica da fonte .
Buscavam identificar fontes menores e mais antigas do
que as que eram apontadas pela teoria documental
Acreditava que o autor final era um editor que
transformava os vários trechos isolados em produtos
literários conectados
Principais críticas

Está fundamentada na suposição de que a escrita


não era usada no Antigo Israel a despeito dos demais
povos a utilizarem.
Pressupõe também um sistema avançado de
transmissão oral que não pode ser visto em outros
povos
HISTÓRIA DAS
TRADIÇÕES
História das tradições

Propõe que o texto do Antigo Testamento surgiu do


desenvolvimento de temas teológicos específicos ao
longo do tempo.
Esses temas foram elaborados em unidades
independentes que eram defendidas e pregadas ao
povo de geração em geração.
Os temas mais antigos são a libertação do Egito e a
condução para uma terra agradável.
Outros três foram adicionados: promessas aos
ancestrais, condução no deserto e revelação no Sinai
Gerhard Von Rad (1901-1971) é um dos principais
proponentes dessa teoria.
Defendeu que esses temas teológicos serviam como
credos e eram expressões básicas da fé de Israel e que
provinham do culto de Israel e dos festivais religiosos.
Esses credos influenciavam no desenvolvimento das
tradições que eram desenvolvidas como teologia criativa
no momento em que eram incorporadas aos
documentos.
Para ele a História da Salvação é o centro da Teologia do
Antigo Testamento
Três credos básicos

Deuteronômio 6.20-25
Quando teu filho, no futuro, te perguntar, dizendo: Que significam os
testemunhos, e estatutos, e juízos que o Senhor, nosso Deus, vos
ordenou? 21 Então, dirás a teu filho: Éramos servos de Faraó, no
Egito; porém o Senhor de lá nos tirou com poderosa mão. 22 Aos
nossos olhos fez o Senhor sinais e maravilhas, grandes e terríveis,
contra o Egito e contra Faraó e toda a sua casa; 23 e dali nos tirou,
para nos levar e nos dar a terra que sob juramento prometeu a nossos
pais. 24 O Senhor nos ordenou cumpríssemos todos estes estatutos e
temêssemos o Senhor, nosso Deus, para o nosso perpétuo bem, para
nos guardar em vida, como tem feito até hoje. 25 Será por nós justiça,
quando tivermos cuidado de cumprir todos estes mandamentos
perante o Senhor, nosso Deus, como nos tem ordenado.
Três credos básicos

Deuteronômio 26.5-9
Então, testificarás perante o Senhor, teu Deus, e dirás:
Arameu prestes a perecer foi meu pai, e desceu para o Egito, e
ali viveu como estrangeiro com pouca gente; e ali veio a ser
nação grande, forte e numerosa. 6 Mas os egípcios nos
maltrataram, e afligiram, e nos impuseram dura servidão.
7 Clamamos ao Senhor, Deus de nossos pais; e o Senhor ouviu
a nossa voz e atentou para a nossa angústia, para o nosso
trabalho e para a nossa opressão; 8 e o Senhor nos tirou do
Egito com poderosa mão, e com braço estendido, e com
grande espanto, e com sinais, e com milagres; 9 e nos trouxe a
este lugar e nos deu esta terra, terra que mana leite e mel.
Três credos básicos

Josué 24.2-13
Então, Josué disse a todo o povo: Assim diz o Senhor, Deus de Israel:
Antigamente, vossos pais, Tera, pai de Abraão e de Naor, habitaram
dalém do Eufrates e serviram a outros deuses. 3 Eu, porém, tomei Abraão,
vosso pai, dalém do rio e o fiz percorrer toda a terra de Canaã; também
lhe multipliquei a descendência e lhe dei Isaque. 4 A Isaque dei Jacó e
Esaú e a Esaú dei em possessão as montanhas de Seir; porém Jacó e seus
filhos desceram para o Egito. 5 Então, enviei Moisés e Arão e feri o Egito
com o que fiz no meio dele; e, depois, vos tirei de lá. 6 Tirando eu vossos
pais do Egito, viestes ao mar; os egípcios perseguiram vossos pais, com
carros e com cavaleiros, até ao mar Vermelho. 7 E, clamando vossos pais,
o Senhor pôs escuridão entre vós e os egípcios, e trouxe o mar sobre estes,
e o mar os cobriu; e os vossos olhos viram o que eu fiz no Egito. Então,
habitastes no deserto por muito tempo.
Três credos básicos

8 Daí eu vos trouxe à terra dos amorreus, que habitavam dalém do


Jordão, os quais pelejaram contra vós outros; porém os entreguei nas
vossas mãos, e possuístes a sua terra; e os destruí diante de vós.
9 Levantou-se, também, o rei de Moabe, Balaque, filho de Zipor, e pelejou
contra Israel; mandou chamar Balaão, filho de Beor, para que vos
amaldiçoasse. 10 Porém eu não quis ouvir Balaão; e ele teve de vos
abençoar; e, assim, vos livrei da sua mão. 11 Passando vós o Jordão e
vindo a Jericó, os habitantes de Jericó pelejaram contra vós outros e
também os amorreus, os ferezeus, os cananeus, os heteus, os girgaseus, os
heveus e os jebuseus; porém os entreguei nas vossas mãos. 12 Enviei
vespões adiante de vós, que os expulsaram da vossa presença, bem como
os dois reis dos amorreus, e isso não com a tua espada, nem com o teu
arco. 13 Dei-vos a terra em que não trabalhastes e cidades que não
edificastes, e habitais nelas; comeis das vinhas e dos olivais que não
plantastes.
Principais críticas

A despeito de propor um núcleo originador das


crenças de Israel não explica como essas tradições
básicas incorporaram o restante do material do AT
Não aborda a questão dos motivos que levaram à
mudança de reformulação oral para cristalização
textual, ou seja, de pregação para texto.
Bibliografia

Prazer, Lucas. A formação do Pentateuco


http://teologiabiblica.wordpress.com/2008/04/23/a-formação-do-pentateuco/

Tokashiki, Ewerton B. A Teoria Documentária do Antigo Testamento


http://doutrinacalvinista.blogspot.com/2008/04/teoria-documentaria-do-antigo-testamento.html

http://en.wikipedia.org/wiki/Hermann_Gunkel

http://www.sacred-texts.com/bib/log/

http://www.wfu.edu/~horton/r102/ho1.html

http://hesedweemet.wordpress.com/2009/08/26/challenges-to-the-documentary-hypothesis-hermann-gunkel-and-
gerhard-von-rad/

http://www.eharper.nildram.co.uk/pdf/who.pdf

BRUCE, F. F. Criticism in: BROMILEY, G. W. The International Standard Bible Encyclopedia. Grand Rapids: William B.
Eerdmans Publishing Co. p. 817-825

RAD, G. V. Teologia do Antigo Testamento. 2ª. ed. São Paulo: ASTE/Targumim. 2006. p. 107-128

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