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O QUE SIGNIFICA A

HISTÓRIA DEUTERONOMISTA?

Estes slides são a esquematização do que vem exposto em:


RÖMER, Thomas. A chamada história deuteronomista. Petrópolis: Vozes, 2008, pp. 21-50.
• O conjunto que chamamos Obra Deuteronomista de
História (Dt – 2Rs) não é reconhecido nem pela tradição
judaica e nem pela tradição cristã como uma coleção
separada;

• Do ponto de vista judaico, a maior parte desses livros forma


uma parte dos Nebîim (Profetas) – os “Profetas Anteriores”;

• Do ponto de vista cristão, eles estão inseridos num conjunto


maior: os livros históricos (e o Dt no Pentateuco).
• É nesse sentido que Thomas Römer explica que o termo e o
conceito são, na verdade, uma “invenção da ciência bíblica
moderna” (p. 22);

• O considerado pai da História Deuteronomista é Martin


Noth que, em 1943, publicou a sua obra intitulada
Überlieferungsgeschichtliche Studien (Estudo sobre a História
das Tradições), a qual foi traduzida para o inglês como “The
Deuteronomistic History”.
ETAPAS DE NOSSO ESTUDO:
1) Antes de Martin Noth: a “pré-
história” da hipótese da História
Deuteronomista;
SERÃO BASICAMENTE
2) A “invenção” da História
Deuteronomista por parte de
TRÊS ETAPAS Martin Noth;

3) A discussão erudita a partir de


Noth.
A PRÉ-HISTÓRIA
DA HIPÓTESE
DEUTERONOMISTA
Antes de Martin Noth
PRIMEIROS PASSOS
• Em primeiro lugar, convém destacar que, nas interpretações judaica e cristã
da Bíblia, o Pentateuco teve mais destaque do que os livros históricos
(Profetas Anteriores);

• Assim como o Pentateuco foi atribuído a Moisés, também os livros


históricos foram atribuídos, pelos rabinos, a figuras que viveram no próprio
período descrito em tais livros: Josué, teria sido escrito pelo próprio Josué;
Juízes e Samuel, por Samuel e, os livros dos Reis, por Jeremias;

• Os rabinos, contudo, fizeram algumas observações que, de certa forma,


anteciparam as conclusões da exegese moderna: admitiram que tais livros
tivessem sido “completados” por outras figuras; ao atribuir a redação do
livro dos Reis a Jeremias, podem ter identificado as semelhanças estilísticas
que, de fato, existem entre esses livros.
• A preocupação principal, contudo, tanto em âmbito judaico como cristão,
não estava centrada na observação das semelhanças linguísticas, estilísticas
ou teológicas entre esses livros;

• A preocupação maior era harmonizar os textos contraditórios ou, então,


explicar passagens difíceis: Jefté que sacrifica sua filha (Jz 11,29-40); as ações
controvertidas de Davi, etc.

• Humanistas e reformadores é que começaram a criticar a visão tradicional a


respeito da autoria desses livros.

• Calvino começa por observar que Josué traz estilos diferentes, fala de Josué
na terceira pessoa etc. Logo, ele atribui a redação do livro a outra figura
contemporânea a Josué: Eleazar.
• Vemos que começa uma “visão crítica”, mas ainda tenta-se manter a redação
dos livros dentro do período no qual aquela história ali contada se
desenvolve;

• Em âmbito católico, o sacerdote belga André Masius, numa obra publicada


após sua morte (uma edição crítica dos textos grego e hebraico de Josué –
1574), afirma que Esdras deveria ser considerado o autor do conjunto que
vai de Js a 2Rs (o que deslocaria a redação da História Deuteronomista para
a época Persa – sécs.V – IV a.C.).

• Baruch Spinoza (1632 – 1677) adota a mesma ideia para o conjunto Gn –


2Rs. Além disso, ele admite o caráter “deuteronomista” dos livros de Js –
2Rs:
“Tudo quanto está escrito nos livros que temos (Js – 2Rs)

tem o único objetivo de expor as palavras e leis de Moisés

(Dt) e comprová-las através de acontecimentos

posteriores.”

Spinoza – 1670 – Tratado Teológico-político


• Outros estudos foram se juntando a esses até o séc. XVIII;

• No final do séc. XVIII a tradicional visão judaica e cristã sobre a


composição de tais livros é questionada;
• os autores de tais livros não são
contemporâneos aos
acontecimentos nele narrados;
TORNAM-SE

• a história ali apresentada é


EVIDENTES TRÊS
moldada a partir de uma

COISAS: perspectiva teológica própria;

• tal perspectiva está relacionada


com o livro do Deuteronômio.
A “DESCOBERTA DO
DEUTERONOMISMO”
Em 1805, numa nota de rodapé
de sua tese doutoral, M. de
Wette identificou o livro
“encontrado” no Templo sob o
reinado de Josias (2Rs 22)
com o livro do Deuteronômio
(ou sua primeira edição).
1780 - 1849
• Ele sugeriu que o Deuteronômio teria sido composto para legitimar a
reforma que estava sendo empreendida por Josias (e não vice versa, como
conta o livro dos Reis);
• Wette vai “separar” o Deuteronômio do Pentateuco. Para ele, o que existia
antes era um “Tetrateuco” (Gn – Ex – Lv – Nm);
• O Deuteronômio teria sido composto depois, com parte do material
contido no Tetrateuco;
• Ele é o primeiro a falar de uma “redação deuteronomista” para explicar a
origem do conjunto Js – 2Rs;
• Mais tarde, Colenso (séc. XIX) vai examinar atentamente o vocabulário do
Deuteronômio, demonstrando sua diferença com relação a Gn – Nm e sua
proximidade de Js – 2Rs.
A ELABORAÇÃO DA
IDEIA DE EDITORES
DEUTERONÔMICOS
Heinrich Ewald (1803 – 1875)

Na sua obra “História de Israel” ele divide da


seguinte forma os livros bíblicos:

Gn – Josué (Grandes livros das Origens)

Juízes – 2Reis (Grande livro dos Reis)


A coleção de Jz – 2Rs teria sofrido uma dupla redação
deuteronomista:

• a primeira ainda pressupõe a existência da monarquia,


com textos como 1Sm 12, que demonstram que, apesar
do povo ter pecado pedindo um rei, o que conta é sua
disposição de ouvir e obedecer a Deus;

• essa primeira redação teria se dado na época de Josias, e


seria reflexo da esperança de que uma nova fase se
inauguraria para Israel;
• durante o exílio, todavia, um segundo redator teria
“atualizado” a história de Judá, pouco após a
reabilitação de Joaquim (2Rs 25,27-30);

• tal redator teria inserido o livro dos Juízes como


introdução de sua história, demonstrando que o
exílio foi consequência da desobediência povo a
YHWH (Jz 2,6 – 3,6).
• Ewald supõe, ainda, que a primeira coleção (Gn – Js)
tenha sido completada por um editor que ele chama
de “deuteronomista”;

• Este teria composto os livros do Dt e de Js e teria


feito modificações no conjunto Gn – Nm.
Em síntese:

Ewald admite camadas deuteronomistas em Dt – Js e no


conjunto Jz – 2Rs;

Ele insiste na ruptura entre Js e Jz, não admitindo uma


única redação do conjunto Js – 2Rs;

Ele devia estar influenciado pela ideia de um Hexateuco,


uma vez que, somente em Josué se dá a conquista da terra
anunciada em Dt.
• Com a hipótese documental de Wellhausen (Javista,
Eloísta, Jeovista, Deuteronomista e Sacerdotal), a
pesquisa centrou-se muito no Deuteronômio e na
sua relação com Josué;

• Os livros de Jz – 2Rs não ficaram no centro da


pesquisa crítica.
• Alguns autores, contudo, como Samuel R. Driver,
George F. Moore e Bernhard Duhm, insistiram sobre
a redação “deuteronomista” tanto de livros do
Pentateuco, quanto do conjunto dos Profetas
Anteriores (Js – 2Rs);

• Foi preciso esperar, contudo, a obra de Martin Noth


(1943) para que tal hipótese ficasse mais claramente
explicada.
A PRÉ-HISTÓRIA
DA HIPÓTESE
DEUTERONOMISTA
A hipótese de Martin Noth
AS ORIGENS DA TESE
DE MARTIN NOTH
Martin Noth

1902 - 1968
• Noth abandona a ideia de um Hexateuco (Gn – Js);

• Isso abre espaço para que ele possa pensar num


conjunto histórico que vai de Js a 2Rs;

• Na sua época, a abordagem da “história da


transmissão das tradições bíblicas” está mais
preocupada com a formação dos grandes conjuntos,
do que com as chamadas “fontes” do Pentateuco
(Wellhausen).
Ü BERLIEFERU NGS GES C HIC HTLIC HE
S TU DIEN
• Noth escreve em 1943 a sua obra
Überlieferungsgeschichtliche Studien (Estudo sobre a
história das tradições);

• Ele admite como ponto pacífico a “existência de uma


redação deuteronomista” dos Profetas Anteriores (Js
– 2Rs);

• Ele acredita que tenha sido obra de um único


redator/autor.
• Seu argumento principal para falar dessa obra
unificada (Js – 2Rs) são os chamados “capítulos de
reflexão”: determinados textos que, no decurso da
narrativa, vão fazendo o leitor olhar “para trás” e
“para frente” e, desse modo, vai sendo dada a
interpretação do curso dos acontecimentos:

Js 1,1-9; 12,1-6; 23,1-16; Jz 2,11 – 3,6;


1Sm 12,1-15; 1Rs 8,14-53; 2Rs 17,7-23
Estas passagens permitiriam estruturar a história de
Israel nos seguintes períodos:

a) A conquista sob Josué (Js 1; 12; 23);


b) O tempo dos juízes (Jz 2,11 – 1Sm 12);
c) A instituição da monarquia (1 Sm 12 – 1Rs 8);
d) Judá e Israel (1Rs 9 – 2Rs 17).
• O final da História Deuteronomista se identifica
com fim do Reino de Judá e a reabilitação de
Joaquin;

• Como tal reabilitação deu-se em torno do ano 562


a.C. (37º ano da deportação de Joaquin – 2Rs
25,27), a História Deuteronomista teria sido,
segundo Noth, escrita logo depois de tal evento
(cerca de 560 a.C.).
• Noth pergunta-se, também, sobre o verdadeiro início de tal
obra histórica;
• Para ele, não pode ser Josué, pois este alude ao final do
Deuteronômio;
• Com isso, ele encontra no Deuteronômio o início da Obra
Deuteronomista de História;
• Este seria a “chave hermenêutica” para se compreender a
história subsequente (Js – 2Rs).
• Para o “deuteronomista”, a tomada de Jerusalém e o exílio
não significam a vitória dos deuses babilônicos sobre YHWH
mas, ao contrário, foram a expressão do juízo de YHWH
sobre o povo que não quis ouvir a sua voz;

• Noth considera o deuteronomista um verdadeiro


historiador;
• Para Noth, ele é tanto um redator, tendo em vista que reúne
material que lhe é anterior, quanto um autor, porque dá à
esse material um arranjo próprio.
EM SÍNTESE

“A História Deuteronomista, que inclui os livros de Deuteronômio até Reis,


foi escrita, de acordo com Noth, durante a ocupação neobabilônica de Judá,
por volta de 560 a.C. Dtr foi ao mesmo tempo um “editor”, já que editou
fielmente documentos e materiais mais antigos, mas também um “autor”, já
que construiu uma complexa visão da história de Israel, incluindo uma
sequência de épocas sucessivas, a fim de explicar a catástrofe final.”
(Thomas Römer, p. 33)
REAÇÕES AO MODELO
DE MARTIN NOTH
• O modelo de Noth tornou-se amplamente conhecido
e aceito, sobretudo a partir da segunda edição de sua
obra (1957);
• Alguns aceitaram bem suas ideias, outros questionaram
alguns pontos;
• Alguns estudiosos pensaram o Deuteronomista como
um “grupo” ou uma “escola de escribas”;
• Otto Eissfeldt, por exemplo, considera simples demais imaginar
um único autor para uma obra tão complexa. Como
compreender, por exemplo, que as diferentes visões presentes
em Jz 2,11 – 3,6 para explicar a permanência de não israelitas
em Canaã provenha um mesmo autor? Afinal, qual a finalidade
da permanência desses povos na terra? É castigo, em virtude
do pecado da idolatria, ou é apenas para que os israelitas
aprendam a arte da guerra?
• No ponto seguinte, veremos as modificações e críticas à
hipótese de Martin Noth.
OUTRAS HIPÓTESES
FRANK MOORE CROSS

1921 - 2012
• Analisou textos que parecem ter sido desconsiderados por Martin
Noth;

• Ele acredita que o Dtr (Deuteronomista) não tinha, na sua primeira fase,
uma visão assim tão pessimista;

• Ele parte da análise de textos como 2Sm 7, que fala da perenidade da


dinastia davídica. Como justificar um texto desse depois do exílio?

• Além disso, alguns textos seguidos da expressão “até o dia de hoje” (1Rs
8,8 – os varais da arca da Aliança; 1Rs 9,21 – remanescentes dos povos
da terra utilizados como mão de obra “até o dia de hoje” – como
explicar essa expressão no período exílico?
• Defende uma dupla edição da História Deuteronomista
(1968);

• A primeira teria acontecido na época de Josias e serviria


como texto de propaganda;

• Seu final seria 2Rs 23,25 que pode ser lido em conjunto
com Dt 6,4-5:
Não houve antes dele rei Ouve, ó Israel: o
algum que se tivesse Senhor nosso Deus é o
voltado, como ele, para o único Senhor!
Senhor, de todo o seu Portanto, amarás a
coração, de toda a sua alma Senhor teu Deus com
e com toda a sua força, em todo o teu coração, com
toda a fidelidade à Lei de toda a tua alma e com
Moisés; nem depois dele toda a tua força.
houve algum que se lhe
pudesse comparar. (Dt 6,4-5)
(2Rs 23,25)
• Após o exílio, a História Deuteronomista teria sofrido
uma segunda redação, com a inserção de 2Rs 23,26 –
25,30 e de textos que aludem ao exílio, como Dt 28,36-
37.64-68; Js 23,11-16; 1Sm 12,25.
RUDOLF SMEND (1932 - )

Escola de Göttingen
• Smend analisa textos menores, como Js 1,1-9;
• Nesse texto, por exemplo, ele vê duas camadas redacionais: 1,1-6 e
1,7-9;
• Seguindo essa forma de trabalho, Smend acredita que haja múltiplas
redações deuteronomistas;
• Ele identifica pelo menos duas: DtrN (Deuteronomista Nomista) –
nos textos em que a observância da Lei é enfatizada; DtrH
(Deuteronomista Historiador) – fase mais antiga [exílica] do texto;

• Os fundamentos da sua teoria foram lançados no seu artigo de


1971...
• Os fundamentos da sua teoria foram lançados no seu artigo de 1971:

SMEND, Rudolf, Das Gesetz und die Völker: Ein Beitrag zur
deuteronomistischen Redaktionsgeschichte. In: Hans Walter Wolff
(Hrsg.): Probleme biblischer Theologie. Gerhard von Rad zum 70.
Geburtstag. München 1971, pp. 494–509.

Tradução para o inglês:

SMEND, R., The Law and the Nations: A Contribution to Deuteronomistic


Tradition History. In: KNOPPERS, G. N.; McCONVILLE, J. G. (Ed.).
Reconsidering Israel and Judah: Recent Studies on the Deuteronomistic
History.Winona Lake, IN: Eisenbraus, 2010.
• Seu aluno, Walter Dietrich, identifica uma terceira camada, que
ele chama de DtrP (Deuteronomista Profético);

• Para Dietrich, a maior parte dos relatos e oráculos proféticos


presentes em Samuel e Reis não pertencem à primeira redação
da História Deuteronomista;

• Tais relatos foram acrescentados depois, com o intuito de


demonstrar que tudo o que o Senhor falou pela boca dos
profetas realmente se realizou.
NEO NOTHIANOS
• Alguns estudiosos voltaram ao modelo de Noth, mas com
modificações;

• Van Seters (1935 - ), por exemplo, defende a ideia de um autor


deuteronomista, mas admite acréscimos posteriores;

• Assim, textos que apresentam de modo um tanto quanto


negativo a imagem de Davi, por exemplo, tão idealizada pela
História Deuteronomista, como 2Sm 2 – 4; 9 – 20; 1Rs 1 – 2,
teriam sido acrescentados posteriormente.
CONCLUSÃO
• É possível falar de uma História Deuteronomista ou Obra Deuteronomista
de História;

• O conjunto Js – 2Rs é uma leitura da história de Israel à luz dos


princípios teológicos do Dt;

• Tal obra histórica não deve ser confundida com uma “historiografia”, no
sentido moderno do termo;

• Tal obra deve ter sido composta ou no exílio, com acréscimos pós-
exílicos, ou mais cedo, no tempo de Josias, sofrendo revisões e
alterações posteriores.

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