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“PÓS-MODERNO”, MONSTROS, INUMANO:

UM HOMEM QUE DORME, DE GEORGES PEREC

KARIME AMARAL HAUAJI


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“PÓS-MODERNO”, MONSTROS, INUMANO:

UM HOMEM QUE DORME, DE GEORGES PEREC

Karime Amaral Hauaji

Dissertação apresentada ao programa de Pós-


graduação em Letras, Instituto de Ciências
Humanas e Letras, Universidade Federal de Juiz
de Fora, área de concentração Teoria da
Literatura, como requisito à obtenção do título de
Mestre em Letras - Teoria da Literatura.
Orientador: Prof. Dr. Evando Batista Nascimento.

Juiz de Fora, 2004


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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
DEFESA DE DISSERTAÇÃO

HAUAJI, Karime Amaral. “Pós-moderno”, monstros, inumano: Um homem que dorme, de


Georges Perec. Dissertação de Mestrado em Letras – Teoria da Literatura. UFJF, 2004.

Dissertação aprovada em ____de __________ de 2004.

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________
Prof. Dr. Evando Batista Nascimento
(Orientador)

____________________________________________
Profª. Drª. Vera Casa Nova
(Membro Titular)

___________________________________________
Profª Drª Jovita Maria Gerheim Noronha
(Membro Titular)

___________________________________________
Profª Drª Maria Clara Castellões de Oliveira
(Membro Suplente)

___________________________________________
Profª Drª Célia Pedrosa
(Membro Suplente)
4

Ao meu pai e à minha mãe, sinônimos de sabedoria, por


sempre mostrarem o caminho.

Ao Samir, porque Paris não é triste... pare de pensar como


um homem que dorme!
5

AGRADECIMENTOS

À Universidade Federal de Juiz de Fora, funcionários,


professores e colegas de mestrado; ao Senai, colegas e
amigos, pelo apoio e concessões, indispensáveis a esse
momento.

Aos amigos Ana Carolina, Cecília, Vanessa e Eric por suas


estimadas participações, que reanimaram minha solitária
batalha.

À Jovita, responsável por meu ingresso na Literatura


Francesa, por seu zelo nesse momento tão melindroso.

Meu reconhecimento especial ao orientador Evando


Nascimento, por seu olhar atento e suas valiosas observações;
obrigada por acreditar ser possível realizar este trabalho.
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RESUMO

O objetivo deste estudo é desenvolver algumas discussões em torno do que se nomeia pós-

moderno, considerando alguns de seus aspectos principais, desde as mudanças ocorridas nas

concepções de tempo e espaço, passando pelo redimensionamento do conceito de homem -

através da categoria do inumano - até abordar uma nova visão da “monstruosidade”. Finalmente,

Georges Perec, em especial através de sua obra Un homme qui dort, é o objeto principal de

leituras baseadas nos elementos teratológicos.


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ABSTRACT

The aim of this study is to elaborate upon some discussions about the so-called Post-modernity,

taking into account a few of its main features, going all the way from the changes the concepts of

time and space have suffered, alongside the rebuilding of the conception of man trough the

category of the inhuman, to an approach to a new view of the "monstrous". Finally, Georges

Perec, particularly by means of his Un Homme qui Dort, is the main subject of some readings

founded on teratologic elements.


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Figura a escrever no espelho, de Francis Bacon (1976)


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Quando ele descobrir quem ele é,


o que poderá consolá-lo?
[...] porque na Terra,
todos que vivem, vivem em um sonho.

Pedro Calderón de la Barca, A Vida é sonho


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SUMÁRIO

1- APRESENTAÇÃO p. 12

2- OS NOVOS TEMPOS p. 16

2.1- Um Olhar sobre o Pós-Moderno p. 16

2.2- O Ciberespaço entre ritos e mitos p. 32

2.3- A Questão da subjetividade e o pós-moderno p. 38

3- A REIVENÇÃO DO CORPO p. 42

3.1- O Inumano p. 47

3.2- Novas fórmulas para o corpo: o homem-animal, o homem-máquina. p. 50

3.3- A Propósito do herói cotidiano p. 57

3.4- O Grotesco p. 63

3.5- Clonagem: o outro que é o mesmo sendo outro p. 67

3.6- Os Monstros p. 70

4- A DESSUBSTANCIALIZAÇÃO DO SUJEITO EM UM HOMEM QUE DORME


p. 74

4.1-A Possibilidade autobiográfica p. 76

4.1.1- O Jogo: o laboratório do texto e suas influências p. 80

4.1.2- Perec e o Judaísmo p. 83


11

4.1.3- A Escrita simbólica em W p. 87

4.2- O Dúplice p. 92

4.2.1- Os Pés inchados do homem que dorme p. 94

4.3- Um Homem que dorme p. 98

4.3.1- O Homem de Perec e o oxímoro niilista p. 102

4.3.2- Golem: homem de barro, homem que dorme p. 106

4.3.3- Périplos: o discurso do silêncio p. 109

4.4-Teorias bizarras ou clonadas sobre o estranho, ainda que familiar p. 119

4.5- De como nascem os monstros ou sete teses sobre o homem que dorme p. 124

5- CONCLUSÃO p. 136

6- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS p. 140

6.1- Bibliografia p. 140

6.2-Filmografia p. 147
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1- APRESENTAÇÃO

Que milagre é o homem?


Que sonho, que sombra?
Mas existe o homem?

Carlos Drummond de Andrade,


Especulações em torno da palavra homem

Especular sobre a significação de um vocábulo é admitir as falhas geradas pela

multiplicidade de suas evocações; desse modo, quando nos propomos investigar a palavra

HOMEM, simultaneamente se desvelam as imperfeições de que o próprio homem se reveste.

Ponto de partida delicado é mensurar seu valor, como o assinala Carlos Drummond de Andrade,

no poema “Especulações em torno da palavra homem” (1974, p. 226).

O que o poeta brasileiro faz ao “passar a vida a limpo”, em certo sentido, é o mesmo que

tem proposto o pensamento francês já há algumas décadas: a revisão dos conceitos de

humanismo. Em conseqüência disso, pensadores como Michel Foucault, Jacques Derrida e

Roland Barthes receberam a pecha de anti-humanistas; tendo apontado uma nova concepção

acerca da importância do homem, retirando-o do centro, os novos pensadores, como foi

entendido, estariam rompendo com a tradição, ao se basear em preceitos como os de

“desconstrução”, de não-idealização do humano.

Nesse sentido se faz mister compreender o aparecimento de apreciações como inumano

ou além-do-humano, as quais atuarão “junto à”, “a partir de”, mas nem sempre “em oposição à”
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idéia de humano. Assim é que se pretende, aqui, discutir esses novos julgamentos, que, presentes

na vida contemporânea, ganham evidência.

No primeiro capítulo, discutiremos algumas questões em torno da pós-modernidade: seu

organismo de funcionamento, os elementos que a motivam e os que, simultaneamente, são por ela

motivados. Consideraremos, para isso, as novas relações de tempo e de espaço geradas,

principalmente, pelo avanço das técnicas e da tecnologia; o abrolhar do ciberespaço, as

transformações do sujeito, desde sua nova condição no mundo, no intuito de vislumbrar se houve,

de fato, uma ruptura entre a pós-modernidade e o período que a antecedeu, ou se, como sugeriu

Lyotard (1997), a modernidade sempre esteve grávida da pós-modernidade.

Nossa intenção não é fazer vasta análise dos termos “pós-modernismo” ou “modernismo”

- embora sejam termos utilizados por alguns dos autores a partir dos quais nos propusemos a

realizar breve leitura - uma vez que estes são considerados movimentos culturais; o objetivo,

antes, é interrogar, ou verificar a posição de uma sociedade ainda em fase de transmutação,

nomeada hipotética e liminarmente como “pós-moderna”.

Para tanto, ser-nos-á necessário examinar qual a parcela devida ao homem, desde o

momento em que o pensamento Iluminista é questionado, avaliando as conseqüências acarretadas

pela “Morte de Deus”, a “Morte do homem”, ou mesmo pela “Morte do autor”.

No segundo capítulo nossos olhares voltar-se-ão para esse novo homem. Se alterações

ocorreram, elas estão atreladas ao nascimento dos “organismos desorganizados”, cuja

descendência patética se faz, muitas vezes, pelos prolongamentos técnicos aos quais têm acesso

tais organismos. O grotesco, o bizarro e o monstruoso fornecerão, ainda, subsídios para

apreendermos a respeito da natureza desse novo homem.

O inumano, ou o além-do-humano, nascido não só das mudanças tecnológicas, mas,

sobretudo, de novas percepções filosóficas, guiará o nosso olhar. Entendemos que o inumano
14

aceita uma compreensão tanto positiva, quanto negativa. A primeira, concernente àquilo que no

homem ultrapassa o próprio humano, ou, na concepção nietzschiana, que vai “além” do humano,

pode ser entendida como uma forma de redimensionar o homem, sem, necessariamente, negá-lo,

mas articulando os novos valores daí depreendidos. A segunda visão compreende o inumano

como uma forma destrutiva, um modo de aniquilar o próprio homem. O problema do inumano,

seja em um sentido positivo ou negativo, é que ele nos impele a não mais aceitar o que se

compreendeu, até aqui, como humano.

É nesse mesmo espaço, do inumano, do monstro, da fronteira, do homem em seu habitat

pós-moderno, que surgirá também (implicado, até, pela clonagem) o duplo. Essa duplicação diz

respeito tanto aos desdobramentos físicos, quanto aos psicológicos; isto é, duplicação gerada,

muitas vezes, por espelhos mais ou menos satânicos e que permitem ao homem vislumbrar a si

mesmo.

Por isso é que, no terceiro capítulo, nos voltaremos para um desses casos de efeito do

dúplice na literatura universal. Georges Perec, autor francês do século XX, será o nosso objeto

para, através da obra Un homme qui dort, publicada na década de 60, atingir essas questões que

permeiam o próprio homem.

Ainda que no texto de Georges Perec não sejam encontrados, explicitamente, um

Frankeinstein, um vampiro ou qualquer outra “deidade” avernal, o Homem de Perec cuidará de

ser ele mesmo esse “monstro”. Analisaremos a obra a partir de A cultura dos monstros: sete teses

(COHEN, 2000), buscando compreender o quê ou quem é o monstro, ente limítrofe, a que

relacionaremos o personagem.

Também será considerada a questão do judaísmo, intrínseca à condição do autor,

manifestada de forma consciente ou não seus textos. Por isso, escolhemos o Golem
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(especificamente o descrito por Meyrink) como uma forma de assinalar tais nuances da cultura

hebraica, presentes também em outras obras de Perec, como W ou Les souvenirs d’ enfance.

Ressaltamos ainda que o texto por nós escolhido compete - em termos de periodização

dos movimentos literários - ao final do Modernismo, o que nos incita ainda mais a querer

compreender de que modo ele pode ser aproximado à pós-modernidade, permitindo uma forma

de leitura de um homem que tende ao inumano, ao “monstruoso”, e, conseqüentemente, a uma

interpretação de nós mesmos.


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2-OS NOVOS TEMPOS

E quando, ao cabo do último milênio,


A humanidade vai pesar seu gênio
Encontra o mundo, que ela encheu, vazio!

Augusto dos Anjos, O fim das Coisas

2.1-Um Olhar sobre o Pós-Moderno

Espaço e tempo, já não se pode senti-los da mesma maneira: vêm se reorganizando,

afetados pela concepção ocidental de que o mundo deve ser visto de uma maneira global. E é a

partir dessa nova compreensão, seja ela social, econômica, ou mesmo cultural que, em geral, se

caracteriza o que entendemos por “pós-modernidade”.

De fato, a sociedade se transforma, seus ícones se multiplicam. Assumimos uma postura

digitalizada ante o que consumimos, permitindo, assim, que o sistema binário 0/1 controle muitos

de nossos mínimos gestos. Predomina muitas vezes a entrega ao prazer, ao consumo e ao

individualismo. Aos poucos, apaga-se a diferença entre o real e o imaginário; fabrica-se o hiper-

real, o culto ao simulacro.

Neste ambiente, fixam-se, entre o homem e o universo “legítimo”, os meios tecnológicos

de comunicação, ou seja, de simulação. As distâncias são encurtadas e o mundo torna-se um

grande espetáculo. Conceitos como o de proletário ou o de revolução, comuns ao ambiente da

modernidade, cedem lugar aos chips, ao niilismo, à simulação.


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Aos novos processos miméticos advindos da tecnologia, soma-se uma colossal crise do

indivíduo, que passa a ser entendido como um sujeito sem espaço ou, sob uma ótica mais

pessimista, sujeito inexistente; acrescente-se a isso uma crise do nacional, substituído em parte

pelo global, pelos novos referenciais de tempo e espaço, além de uma manifesta crise da arte e da

literatura, vistas sob a perspectiva do cômico ou da banalização, numa nova sociedade pós-

industrial, que transforma em arte objetos do dia-a-dia, dando continuidade ao processo de

desestetização do cotidiano e à estetização generalizada, iniciada nos primórdios do século XX,

pelos movimentos de vanguarda.

O pós-moderno, a princípio, se presta à técnica, ou à tecnologia, e pode perder a sua

função catártica, passando a existir, subsistir, ou mesmo a “voltar-se” contra o homem. Se, por

um lado, as técnicas contribuem para o avanço do homem, por outro, sua má utilização faz gerar

o risco de destituição de um objetivo (telos), substituindo a sua intencionalidade. Além disso,

através das distorções das mitopoiesis, pode-se provocar um desequilíbrio ético, social e racial,

que relega a técnica à unskilfulness.

Processo também suscetível de ocorrência, a fetichização da técnica pode reificar o

homem, eliminando-o de sua condição de motor da sociedade. Acontece que, segundo Gillo

Dorfles, em Novos ritos, novos mitos (1970), enquanto os instrumentos, as ferramentas, são

concebidos como prolongamentos dos membros físicos e psíquicos, isso parece algo lícito, mas

quando essas invenções incidem sobre o ego humano, instaura-se o perigo. A extinção do telos é

que leva à fetichização da técnica. A antropomorfização dos objetos é conseqüência da relação

contemporânea doentia entre o homem e suas máquinas e ao inibir determinados fatores,

sobressaem-se aspectos mágico-míticos que tornam o homem escravo de suas próprias invenções.

Assim, as técnicas acabam por ficar ainda mais misteriosas guardando um poder de atração.
18

Pierre Lévy pondera que “as técnicas carregam consigo projetos, esquemas imaginários,

implicações sociais e culturais bastante variados” (1999, p. 23). Se, no passado, as máquinas

serviam para escravizar um operário (recordemos Tempos Modernos, de Charles Chaplin, a

clássica cena do homem, em sua não-ação, passeando por entre engrenagens, ou das metafóricas

ovelhas atropelando-se, prontas à tosquia); se a automatização sempre foi o gigante a engolir uma

geração inteira prestes a se tornar massa desempregada, na iminência de sucumbir à técnica

somada de tecnologia, o computador é, por outro lado, o grande “milagre” capaz de viabilizar

uma rede mundial de comunicação.

Foi dito que a função essencial da técnica é causar uma constante metamorfose no modo

natural, haja vista a passagem do homem tribal ao homem dos grandes palácios - possível graças

à utilização da técnica. O que assistimos, porém, muitas vezes, é a cisão de algumas técnicas, o

que incorre na autonomia de suas funções específicas:

Toda a descoberta científica, toda a invenção técnica (e tecnológica) e artística


tem habitualmente, de início, uma função catártica: liberta o homem da sujeição
a uma situação de escravidão, de submissão, que pode ser física (servos da
gleba), psíquica, social (classes, castas, etc.) (DORFLES, 1970, p. 24).

Assim, enquanto Dorfles discursa com certa apreensão acerca do momento então vivido,

Pierre Lévy, quase três décadas depois, aponta para o lugar de hoje, onde a humanidade se

desenvolve: o ciberespaço.

Já Roberto Cardoso Oliveira (1995, p. 27), em uma visão antropológica, avalia que a

condição pós-moderna acontece a partir do interior das sociedades informatizadas, pós-

industriais, o que faz afetar a pesquisa e a transmissão de conhecimento.


19

Afirmação semelhante faz Nicolau Sevcenko, no artigo “O enigma pós-moderno”, quando

põe em relevo a questão do tempo, ainda que não homogêneo e linear, dificultando o recorte

simplista que muitas vezes somos tentados a fazer. Assim define o pós-moderno:

Trata-se antes de uma atitude nascida do espanto, do desencanto, da amargura


aflitiva, que procura se reconstruir em seguida como alternativa parcial
desprendida do sonho de arrogância, de unidade e poder, de cujo naufrágio
participou, mas decidiu salvar-se a tempo, levando consigo o que pode resgatar
da esperança (SEVCENKO, 1995, p. 45).

Para Sevcenko, a “salvação” refere-se ao “mal do progresso”, à análise pictórica elaborada

por Benjamim a partir da obra de Paul Klee, “Angelus Novus” (1920). No quadro, o anjo

retratado permanece estático, embora expresse clara intenção de mover-se; sua atitude parece

representar a rebeldia impotente comum àquele que, ao assistir à condenação do mundo,

vislumbra, como Janus 1, o passado e o presente simultaneamente: é o anjo da própria História.

No entanto, apesar de denominado “Novus”, o anjo de Klee (fig.01) é impotente e decaído; seu

castigo é a imortalidade que o condena ao estado de paralisia e de mera expectação: “ele cuja

missão precípua é agir e salvar, [assiste] à destruição do mundo e à degradação de si mesmo”

(SEVCENKO, 1995, p. 50).

1
Janus era o responsável pela porta dos céus na mitologia romana. “Como entidade guardiã das portas, era
geralmente apresentado com duas cabeças, pois todas as portas se voltam para os dois lados” (BULFINCH, s/d. p.
15), justificando o porquê de ser sempre referenciado como aquele que tem acesso ao dentro e ao fora, ao passado e
ao presente.
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(fig.01) Angelus Novus, de Paul Klee (1920).

O texto de Benjamin e o quadro de Paul Klee deixam transparecer certo desconforto,

perceptível naqueles que apostaram nas vanguardas modernistas, as quais apontavam para

transformação da sociedade a partir da fusão da arte, da técnica e da vida. Assim, “Angelus

Novus” representa, conforme Sevcenko, o intelectual, o artista após a perda da inocência do

sonho modernista.

Se o movimento do moderno não foi homogêneo, o do pós-moderno expõe ainda mais essas

ambigüidades. Um momento voltado para o “des” provoca uma ruptura com aquilo que ainda

estava intacto no modernismo. Em termos principalmente literários, a intertextualidade é a marca

do pós-modernismo; a subjetividade abre espaço à intersubjetividade; a queda do romance

tradicional dá lugar às metaficções, infiltradas pelo burlesco - como em Lost in the funhouse

(1968), de John Barth - ou impregnadas de uma plêiade real e ficcional - como explorou E. L.

Doctorrow, em Ragtime (1996).


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Surge, então, o questionamento: o pós-moderno é tendência meramente artística ou pode ser

ampliado à esfera social?

Foi o crítico Ihab Hassan, colaborador da revista boundary 2, quem lançou a noção de pós-

modernismo, ora radicalizando, ora rejeitando as características do modernismo. O primeiro a

estender a apreciação a todas as artes inclui, em seu estudo sobre os novos traços do pós-

modernismo, nomes como os de Rauschenberg, Fuller, Cage e McLuhan. Hassan aproveita

“ultramodernismo”, termo criado por Onís, nos anos 30, ao defender tal existência: “[...] o pós-

modernismo sugere um tipo diferente de forma de acomodação entre a arte e a sociedade”

(HASSAN apud ANDERSON, 1999, p. 26). Entretanto, mais tarde se viu obrigado a reconhecer

que o próprio pós-modernismo mudou e acabou por dar uma guinada errada, permanecendo preso

em seu kitsch.

A arquitetura, por sua vez, como nos reporta Perry Anderson (1999), é uma das expressões

que ajudam a divulgar a teorização sobre o pós-moderno. Destaca-se, nesse sentido, um

manifesto publicado na década de 70, por Robert Venturi, Denise Scott Brown e Steven Izenour,

Learning from Las Vegas. Mas é Charles Jencks o primeiro a escrever sobre o pós-moderno,

compartilhando com Hassan a idéia do prolongamento da existência de um modernismo, ou

melhor, a existência de um ultramodernismo.

Em 1980, também Jürgen Habermas, o principal filósofo europeu da época, publica

Modernidade – Um projeto incompleto, considerado, erroneamente 2, conforme Anderson (1999,

p. 43), um ataque ao texto publicado um ano antes por Jean-François Lyotard. 3 Habermas foi o

primeiro a declarar que as vanguardas haviam envelhecido e que o espírito novo da modernidade,

nascido com Baudelaire, havia declinado e a isso o pós-modernismo devia sua ascensão.

2
O equívoco teria se dado uma vez que Habermas não sabia sobre o texto de Lyotard.
3
Em 1979, Lyotard publica A condição pós-moderna.
22

Sua definição de modernidade tomada de Weber de modo crítico,


essencialmente a reduzia a mera diferenciação formal de esferas de valor - a que
então acrescentou, como uma aspiração ao Iluminismo, sua reconfiguração
como recursos intercomunicantes no mundo da vida, [...] O que fica bem claro,
no entanto, é que o ‘projeto’ da modernidade como ele o traçou é um amálgama
contraditório de dois princípios opostos: especialização e popularização
(ANDERSON, 1999, p. 46).

Como explicita Perry Anderson (1999, p. 45), o projeto Iluminista havia perdido seu rumo

e o mundo urgia por uma fé que o refreasse. O Iluminismo queria diferenciar ciências,

moralidade e arte, estas governadas, respectivamente, pela verdade, justiça e beleza e, além disso,

intencionava que esses domínios tivessem livre circulação na vida cotidiana, a fim de enriquecê-

la. No entanto, houve uma falta de controle, pois cada uma - verdade, justiça e beleza - fechou-se

em seu mundo. O projeto da modernidade deveria ser realizado, mas quebrar as esferas poderia

representar o retrocesso; tratava-se de uma empreitada quase impraticável. De um modo ou de

outro, o pós-modernismo foi o que permitiu o hibridismo de tais fronteiras.

Foi Jean-François Lyotard, em A condição pós-moderna (2002), entretanto, o primeiro a

fazer uma análise filosófica sobre o que chamou de pós-modernidade - termo emprestado de

Hassan. Para ele, a pós-modernidade ligava-se à existência da sociedade pós-industrial, cujo

conhecimento era a força econômica de produção e que ganha conotação de rede de

comunicações lingüísticas e de inter-relações. Lyotard compreende que o pós-moderno “designa

o estado da cultura após as transformações que afetaram as regras dos jogos da ciência, da

literatura e das artes a partir do final do século XIX” (LYOTARD, 2002, p. xv). O saber sofre

uma alteração à proporção em que se entra na idade pós-industrial, modificando-se, por

conseguinte, as relações da sociedade civil e o poder público. O conhecimento passa a ser

entendido como quantidade de informação recebida. Tanto o saber científico quanto o técnico
23

podem ser acumulados; no entanto, não é o científico o único tipo de saber: há também o saber

narrativo que, embora não prevaleça sobre o primeiro, interage com ele sobremaneira.

Lyotard considera ainda as regras que regem o próprio discurso científico: para que um

enunciado se torne científico, é preciso submetê-lo a uma série de condições. Assim é possível

perscrutar em Lyotard a discussão sobre a legitimação e a deslegitimação: “a legitimação é o

processo pelo qual um ‘legislador’ ao tratar do discurso científico é autorizado a prescrever as

condições estabelecidas [...] para que um enunciado faça parte deste discurso e possa ser levado

em consideração pela comunidade científica” (LYOTARD, 2002, p. 13).

Ele nos relembra o fato de que a legitimação encontra-se ligada à questão da “legitimação

do legislador” desde o discurso de Platão. Para se decidir o que é verdadeiro é preciso considerar

o que é justo, conceito atrelado à ciência, à ética e à política. Portanto, saber e poder caminham

juntos.

O saber não é, contudo, uma abordagem exclusiva dos enunciados denotativos: ele alcança

o saber-ser, o saber-fazer, o saber-viver, entre outros; compreende a formação das competências,

que se fixam num tríplice patamar: saber-falar, saber-ouvir, saber-fazer (representados pelo

emissor, pelo receptor e pela própria mensagem), tornando-se o relato, de fato, o gênero por

excelência do saber científico. Assim, o saber é o demarcador entre instrução e ignorância, capaz

de determinar a cultura de um povo.

Se o relato é a forma por excelência do saber, então, a ciência retorna a mero jogo de

linguagem, não podendo mais reivindicar sua primazia, como na era moderna. Sobre os jogos de

linguagem, vale ressaltar três observações: i) as regras são uma espécie de contrato entre os

jogadores, de forma explícita ou não; ii) na ausência de regras não existe jogo; iii) todo enunciado

é um “lance” feito no jogo. Há, para Lyotard, uma regra que rege todas as outras: falar é

combater, tomado aqui como jogar, e os nossos atos de linguagem provêm de uma agonística
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geral. Desse modo, “o verdadeiro saber é sempre um saber indireto, feito de enunciados

recolhidos, e incorporados ao metarrelato de um sujeito que lhe assegura a legitimidade”

(LYOTARD, 2002, p. 63). A grande questão é que os jogos de linguagem vão tornar-se jogos

para poucos, ou seja, a riqueza passará a ser sinônimo de eficiência e verdade.

O enigma agora é descobrir o jogo do adversário. A conclusão a que chega Lyotard, no

entender de Silviano Santiago 4 (LYOTARD, 2002, p. 130), de forma premonitória, é que o saber

na sociedade pós-industrial converte-se em subalternação para os países periféricos: o acesso à

revolução pós-industrial está no saber e este pode ou não ser fornecido aos países em

desenvolvimento.

O traço definidor da pós-modernidade, para Lyotard, é a perda da credibilidade nas

metanarrativas, desfeitas pela evolução da própria ciência. A “crise” do saber científico (desde o

século XIX), como Lyotard denominou, “não provém de uma proliferação fortuita das ciências,

que seria ela mesma o efeito do progresso, das técnicas e da expansão do capitalismo. Ela

procede da erosão interna do princípio de legitimação do saber” (LYOTARD, 2002, p. 71). Se,

por um lado, um cientista interroga os enunciados narrativos, o inverso não é verdadeiro, se bem

que ambos os discursos sejam formados por conjuntos de enunciados. Existe uma relação

desigual e ela é originária dos “lances” feitos de acordo com as regras intrínsecas a cada jogo.

Perry Anderson, em sua leitura sobre Lyotard, aponta para a existência de contratos

temporários em todas as áreas da vivência, “mais flexíveis e criativos que os da modernidade”.

Acrescenta ainda que em outra obra, Dérive a patir de Marx e Freud (1973), Lyotard concluiu

que “não há nada no kapitalismo [sic], nenhuma dialética que o leve a sua superação e sucessão

4
O artigo foi publicado no Jornal do Brasil, de 30 de Junho de 1990, originalmente, mas figura agora como posfácio
em LYOTARD, 2002.
25

pelo socialismo: está agora claro para todos que o socialismo é igual ao kapitalismo”

(LYOTARD apud ANDERSON, 1999, p. 34).

Assim, como houvesse cingido sua análise do pós-industrial em A condição pós-moderna

ao viés puramente científico, Lyotard se vê forçado a escrever também sobre a política e as artes,

no intuito de compreender como a pós-modernidade opera também nessas duas áreas.

Complementa, então, pelo menos em relação às artes, que o problema reside no fato de que o

pós-moderno entrou em vacância sem alguma integração intelectual. Não bastaria a alguém se

declarar pós-moderno, num campo ainda ideologicamente inconsistente, arraigado às velhas

idéias. Portanto, o pós-moderno era um princípio perene ao invés de uma categoria de período,

funcionando como uma restauração do realismo, contra o qual as vanguardas tanto lutavam.

Zygmunt Bauman é quem explica o termo avant-garde (vanguarda), em O mal estar da

pós-modernidade (1998), como sendo o grupo que toma frente no corpo mais importante das

forças armadas, a guarda considerada avançada, já que para o inimigo fica a idéia de que aqueles

que a seguem repetirão seus gestos:

O conceito de vanguarda transmite a idéia de um espaço e tempo essencialmente


ordenado, e de um essencial interajustamento das duas ordens. Num mundo em
que se pode falar de avant-garde ‘para a frente’ e ‘para trás’ têm,
simultaneamente, dimensões espaciais e temporais (BAUMAN, 1998, p. 121).

O mundo pós-moderno pode, por sua vez, ser tudo, menos imóvel - é constituído de

movimentos aleatórios, sem direção. Não é possível diferenciar o que é progressivo do que é

retrógrado, não existe movimento unificado. Segundo Bauman, se houve qualquer ato de

vanguarda, essa foi graças ao movimento modernista, que agiu em protesto contra as ações não

cumpridas da modernidade. A inquietação devia-se ao dissabor da palavra não exercida, numa

guerra em nome da aceleração; estavam certos de que o passado é anacrônico e de que o devir é
26

sempre melhor. Os modernistas tomaram realmente o sentido de serem modernos e, dizem, foram

mais modernos que a própria modernidade. Eles existiram graças a ela, serviram-se dela e

serviram a ela.

Por outro lado, o contra-senso não residia somente na decepção da vanguarda por ser

rejeitada, mas também por ser compreendida. A arte que ditava o que era de mau gosto passou,

ao mesmo tempo em que era capaz de estratificar, a ser alvo de consumo daqueles que gostariam

de parecer atualizados com a modernidade. Aos poucos, os limites e as fronteiras para

transgressões foram se esgotando e o que eram sinais inovadores, se tornaram fatos comuns, do

mesmo modo que hoje a eclosão nada revolucionária das tatuagens, piercings e tantas outras

manifestações, ganham ares de medíocres e passam a ser rito sin materia (conforme veremos no

item 2.2). A arte modernista resvalou-se numa espécie de autodestruição: “pode-se dizer que as

artes de vanguarda demonstraram ser modernas em sua intenção, mas pós-modernas em suas

conseqüências (suas imprevistas, mas inevitáveis, conseqüências)” (BAUMAN, 1998, p. 127).

Conforme Bauman, falar em “vanguarda pós-moderna” é uma parcial contradição, já que

não faz sentido pensar em vanguarda no pós-moderno, pois é este o espaço mesmo da coabitação,

onde tudo é possível. Não há mais como firmar o que é canônico, decidir o que é arte de fato. O

retorno da já cediça questão “o que é arte?” nos dá a impressão de que agora a arte é como

qualquer outro objeto utilitário a venda no mercado. Ela é a cultura do simulacro.

Como sugere Baudrillard, a importância da obra de arte é medida, hoje, pela


publicidade e notoriedade (quanto maior a platéia, maior a obra de arte). Não é o
poder da imagem ou o poder arrebatador da voz que decide a ‘grandeza’ da
criação, mas a eficiência das máquinas reprodutoras e copiadoras - fatores fora
do controle dos artistas (BAUMAN, 1998, p. 130).
27

Embora não tenha sido isso a que se propuseram os vanguardistas, eles deixaram como

legado a imagem de quem faz com que a história avance.

É Fredric Jameson, em Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio (2002),

quem aborda o movimento pós-moderno em todos os seus aspectos, desenvolvendo a dialética da

cultura do capital; sua teoria, que começou limitada à América do Norte, ampliou-se. Em uma

análise notadamente compartimentada, Jameson analisa as alterações da sociedade nas esferas

teóricas, culturais, artísticas, políticas e econômicas, sem se descuidar mesmo do que diz respeito

ao cinema, arquitetura ou vídeo.

Segundo ele, pós-modernismo é uma tentativa de pensar o presente, mesmo que esse

acabe não sendo mais do que uma teorização de sua própria condição. O modernismo já se

preocupava em captar o novo, enquanto o pós-modernismo busca as rupturas, os deslocamentos,

as alterações nas representações dos objetos. No primeiro movimento, ainda se pode divisar

alguma relação com o arcaico; no segundo, aquilo que pertencia à natureza pode ceder lugar à

cultura. Ainda para Jameson, a pós-modernidade abre espaço à estetização da realidade, como

dito antes, estabelecendo uma partida ao consumo da produção, em vez de crítica à mercadoria,

como nos tempos modernos. Transmuda-se a própria teoria, quando tendências de naturezas

diferentes convergem para dar conta da “teoria” do pós-modernismo.

[...] o pós-modernismo não é a dominante cultural de uma ordem social


totalmente nova (sob o nome de sociedade pós-industrial, esse boato alimentou a
mídia por algum tempo), mas é apenas reflexo e aspecto concomitante de mais
uma modificação sistêmica do próprio capitalismo (JAMESON, 2002, p. 16).

O pós-modernismo é uma aglutinação de fenômenos, alguns já existentes, mas sem

classificação até então; recatalogá-los faz com que esses fenômenos familiares sejam, de alguma

forma, “reembaralhados”, alterando, como afirma Jameson, o cânone. Se para Weber


28

(JAMESON, 2002, p. 18) os novos valores foram capazes de fazer florescer um “povo novo”, o

pós-moderno possibilitou o surgimento dos sujeitos “pós-modernos”, tornando impossível evitar

o uso da palavra. À medida que só percebemos o sistema que nos domina de forma gradual e a

posteriori, não é de se espantar que todos os argumentos já estivessem presentes, faltando apenas

organizá-los.

O pós-moderno, como categoria cultural, não é um estilo de época, é uma hipótese para

pensar a estética contemporânea. O pós-modernismo, por sua vez, é uma categoria estética

freqüentemente apontada como o estilo de época que se opõe ao modernismo dos anos 20,

representando, contudo, não só um estilo, mas uma dominante cultural, a qual engendra uma série

de características, que se subordinam, na mesma proporção em que diferem entre si; algumas

delas, cogita-se, já existiriam desde o Romantismo. Mas é o estilo modernista e seu movimento

de vanguarda que acaba, no entanto, se tornando o código pós-modernista. Na verdade,

independentemente do pós-modernismo representar continuidade ou ruptura, ainda que ele fosse

idêntico ao modernismo, seriam eles distintos devido ao papel que aquele representou para a

sociedade pós-industrial. Trata-se, portanto, do

[...] apagamento da antiga (característica do alto modernismo) fronteira entre


a alta cultura e a assim chamada cultura de massa ou comercial, e o
aparecimento de novos tipos de texto impregnados das formas, categorias e
conteúdos da mesma indústria cultural que tinha sido denunciada com tanta
veemência por todos os ideólogos do moderno, de Leavis ao New Criticism
americano até Adorno e a Escola de Frankfurt (JAMESON, 2002, p. 28).

A sociedade atual começa, então, a voltar-se incessantemente para o passado, pois o

futuro que há muito nos arrebatara e nos amedrontara, perdeu agora o encanto. Como teorizou
29

Andréas Huyssen em Seduzidos pela Memória (2000) 5, a partir dos anos 80, o foco deslocou-se

para o passado, houve um boom da memória e da nostalgia, até mesmo sobre passados fictícios.

O romance, já mencionado, de E. L. Doctorrow, Ragtime (1996), em que os Estados

Unidos são retratados antes da guerra, no início do século XX - mostrando o que era importante

naquela época e criando um país jovem, em formação, extremamente dinâmico, e pleno de

contrastes - figura como um dos melhores exemplos para se compreender essa questão, já que

nele se confundem real e ficcional: personagens ficcionais, históricas e intertextuais convivem e

integram-se de uma maneira inusitada.

Em Ragtime (o título por si só já nos dá pistas da pós-modernidade nele inserida) 6, todos

os personagens históricos (não-ficcionais) aparecem de forma alegórica, enquanto os personagens

do mundo ficcional, os quais sequer possuem um nome, além de serem protagonistas, são

construídos de forma a parecerem bem mais reais. Segundo Fredric Jameson, Doctorrow não se

propõe a simular o passado histórico, mas a representar nossas idéias e estereótipos a respeito

dele.

Pensava-se, até há pouco tempo, que para entender a cultura pós-moderna era necessário

deslocar os focos do tempo e da memória, vinculados ao alto modernismo, para a questão do

espaço. No entanto, as questões de tempo e de espaço não podem ser desvinculadas, assim como

também não se separam a memória e o esquecimento: “Freud já nos ensinou que a memória e o

esquecimento estão indissolúvel e mutuamente ligados; que a memória é apenas uma outra forma

de esquecimento e que o esquecimento é uma forma de memória escondida” (HUYSSEN, 2000,

p. 18). Assim, se o surgimento dos novos meios, como a imprensa, a televisão e a internet
5
A reunião de ensaios elaborados por Andréas Huyssen (2000) tem por objetivo compreender o fenômeno da
memória, a criação de museus e passados fictícios, nos dias atuais, a partir de considerações acerca, principalmente,
do revival do Holocausto.
6
“O ragtime era uma música do povo, do operário, particularmente daquele que no fim do século passado, construía
as grandes vias férreas no território americano e à noite se reunia em botecos para ouvi-la” (BERENDT, 1987, p. 22).
30

constituíram um avanço técnico e tecnológico, parecem representar, em contrapartida, uma

necessidade de alargamento da memória e, portanto, de esquecimento.

Há uma verdadeira obsessão pela reminiscência e é por isso que Huyssen (2000)

questiona se é o medo do esquecimento que dispara o desejo de lembrar ou vice-versa. Essa nova

sociedade nos guia à iminência de uma saturação da própria memória e nos mostra como estamos

cada vez mais distantes da possibilidade de uma memória consensual e coletiva. O ensaísta

aponta que essa eclosão do relembrar está, acima de tudo, vinculada ao problema da

temporalidade exposta pelos novos meios midiáticos; logo, há uma busca por um hemisfério

comum que sirva de abrigo à coletividade: “O enfoque sobre a memória é energizado

subliminarmente pelo desejo de nos ancorar em um mundo caracterizado por uma crescente

instabilidade do tempo e pelo fraturamento do espaço vivido” (HUYSSEN, 2000, p. 20).

Jameson vê a produção cultural como aquilo que não pode advir de outro lugar senão do

passado: “a imitação de estilos mortos, a fala através de todas as máscaras estocadas no museu

imaginário de uma cultura que agora se tornou global” (JAMESON, 2002, p. 45). Entretanto,

parece haver uma impossibilidade de unir presente, passado e futuro. Surge um tipo de

esquizofrenia não necessariamente mórbida, mas eufórica, que contribuirá para a ruptura na

cadeia de significantes, reduzindo a dimensão do tempo e gerando um sentimento de irrealidade.

O outro de nossa sociedade não mais é a natureza, como nas sociedades pré-capitalistas,

mas sim a tecnologia. Vivemos a terceira idade da máquina, a da produção de motores

eletrônicos. Nosso poder concentra-se agora no computador ou na televisão, isto é, em máquinas

de representação e não de produção.

Característica também apontada em Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo

tardio é a mudança, a transformação do espaço, embora não acompanhada pelo sujeito, inapto a

conviver no hiperespaço. Segundo Jameson, alguns edifícios são uma mini-cidade e não querem
31

fazer parte dela, mas substituí-la, fazendo lembrar o edifício excêntrico de Georges Perec em A

vida: modo de usar (1991) e seu complexo universo narrativo. Esse novo espaço tira do homem a

capacidade de perceber o mundo: perdemos a dimensão e não conseguimos mais nos localizar.

Assim, a capacidade de agir e de lutar também está inerte, estagnada.

Jameson, no intuito de distinguir pós-modernismo de alto modernismo e de modernismo

clássico evoca, ainda, os discursos do antimoderno/pró-pós-moderno ou do pró-moderno/anti-

pós-moderno, ressaltando que, em ambos os casos, assumimos a existência das facções modernas

e pós-modernas. Aponta também a possibilidade, em uma outra concepção, de jamais ter havido

uma ruptura lógica, histórica. É o pós-modernismo continuação do modernismo clássico, ou são

eles estágios do Romantismo? 7

O discurso pós-moderno faz proliferar o consumismo e a desilusão política. Assistimos ao

aburguesamento da classe operária nos anos 70 e à degradação das classes dominantes nos anos

90. Com a queda do mundo burguês, desaparece o contraste estético, fonte em que beberam

autores como Flaubert ou Balzac, uma vez que o modernismo já se declarara “anti-burguês” antes

de surgir o pós-modernismo.

O moderno, tempo dos gênios e da vanguarda, acaba quando as forças políticas perdem o

alento e o fordismo, posteriormente, entra em crise. O modernismo, tempo de grandes invenções,

se enfraquece com o período que sofisticou a tecnologia. O progresso assume, assim, um caráter

ameaçador.

7
Na visão de Lyotard, o pós-modernismo é parte integrante do alto modernismo.
32

2.2 - O Ciberespaço entre ritos e mitos

Diferente linha de raciocínio aponta o já citado Gillo Dorfles, em 1970, em Novos ritos,

novos mitos. Em sua “Introdução”, afirma que vivemos num momento já considerado histórico

em que o interesse se volta para o próprio presente. No entanto, ele também remete a nossa busca

incessante, nesta segunda metade de século, por “passados indefinidos”. Mas não podemos

contar, tal como nossas civilizações antepassadas, com um arcabouço de narrativas orais; se de

fato quisermos buscar tais passados, precisamos encontrar os novos ritos e mitos que se

escondem em nossa sociedade atual.

Termos como dessacralização, fetichização, alienação, utilizados pela antropologia, pela

filosofia e pela sociologia com enorme freqüência, considerados indispensáveis nesse momento

são, para tanto, reavivados. Por um lado, assistimos ao processo de desmistificação, entendido

como a crise do sagrado, por outro enfrentamos os rituais de inclusão de novos mitos.

A análise parte do fato de que os mitos são elementos elevados a tal categoria e os ritos,

operações e gestos aparentemente vazios de significação. Rituais de danças, por exemplo, outrora

imbuídos de caráter divino, hoje subsistem apenas com seus traços mundanos. Assim, são

tomados como objetos de estudo, temas que são banais ou mesmo colocados à margem por serem

considerados referentes à massa como a Pop art ou mesmo o Kitsch.

É necessário tomarmos por base o pensamento de Gillo Dorfles para melhor

compreendermos a definição de técnica e de tecnologia. Para o autor, a técnica é o domínio do

homem sobre a natureza, método encontrado ou inventado para realização de uma atividade, de

modo a facilitá-la e, de certa maneira, torná-la mais eficiente. Desde a pré-história, a técnica vem

sendo estudada, o que ajudou a colocar o homem no local exato em que ele se encontra. Ela
33

implica, portanto, certa criatividade, como na arte, pois os elementos técnicos têm algo de

artístico e vice-versa.

O tecnológico, por sua vez, é o que tem referência às estruturas mecânicas e, como nos diz

o autor, é a manipulação do “técnico”. Pode-se, contudo, falar de técnica, por abranger maior

campo, sem falar de tecnológico, embora seja o tecnológico que marque presença nos dias atuais,

impregnando os novos ritos e mitos que venham a surgir.

Existirão, portanto, técnicas autênticas, aquelas responsáveis pelas atividades artísticas e

não-artísticas e técnicas mecanizadas (banusia) 8, desinteressadas e alienantes.

A técnica pode, ainda, sofrer uma supervalorização se infiltrada por mitos, contribuindo

para a sua personificação. Ela leva a uma espécie de libertação, à proporção que conduz o

“natural” ao “pessoal”; sendo assim, a evolução do trabalho e da técnica pode levar à

estratificação social. A sua função é manter uma constante metamorfose de um “sistema natural”;

acontece que, uma vez distanciada do fator científico, artístico ou mecânico, pode-se tornar uma

perigosa ferramenta.

Já a tecnologia mostra-se como uma forma de preocupação do homem em dominar a

natureza. Assim é que a constatação de tais funções leva Pierre Lévy (1999) a tecer as seguintes

considerações: a primeira, de que a maioria das competências adquiridas estará obsoleta no final

de uma carreira; a segunda, de que trabalhar quer dizer transmitir saberes e produzir

conhecimentos; a terceira, de que o ciberespaço suporta tecnologias intelectuais que amplificam,

exteriorizam e modificam numerosas funções cognitivas humanas. Essas transformações

incrementam, em primeiro grau, o potencial de inteligência dos grupos.

8
Termo com que os gregos caracterizavam o trabalho servil dos escravos e que pode ser emprestado para referir-se
às técnicas mecanizadas ou “alienadas”, segundo Dorfles (1970, p. 19).
34

O ciberespaço é considerado por Hervé Fischer (2002, p. 162) um espaço de libertação,

em que, a salvo dos preconceitos de sexo, idade, cor, raça, e outros, é possível navegar como um

“cibercidadão anônimo”. No ciberespaço é possível esquecer sua história individual e criar

quantas identidades forem necessárias ou desejadas. A despeito disso, alerta-nos o autor para o

fato de que a comunicação pode desenvolver-se melhor, sob o aspecto humanista, solidário, na

linguagem oral de uma tribo africana do que em um grande centro ocidental com todos os seus

meios técnicos de comunicação: “El mito de la Torre de Babel es el primer mito de la

modernidad. Hace de Dios el iniciador de la sociedad de la información y es el mito fundador de

la diversidad lingüística y cultural” (FISCHER, 2002, p. 91).

Fischer acautela, ainda, sobre a derivação de “cibercompulsivos”, ávidos por

“ciberterapia”, gerados pelo aumento da dependência aguda do espaço da Internet. Essa situação

a que ele denominou “ciberdependência” está amplamente ligada à questão do desejo motivado

pelo ciberespaço, ou seja, o ensejo perigoso que pode fazer com que, em longo prazo,

valorizemos mais o virtual, uma vez convidados a evadir do espaço de decepções e frustrações

inerentes ao real.

A virtualização, portanto, é um modo de velocidade, que não faz com que o espaço

desapareça, e sim com que se metamorfoseie o sistema do espaço humano, garante Pierre Lévy;

quanto à discussão sobre o caráter determinante ou condicionante da técnica, ele acredita que a

técnica pode ter caráter condicionante sem, necessariamente, tê-lo determinante. Portanto,

Uma técnica não é nem boa, nem má (isto depende dos contextos, dos usos e dos
pontos de vista), tampouco neutra (já que é condicionante ou restritiva, já que de
um lado abre e de outro fecha o espectro de possibilidades). Não se trata de
avaliar seus ‘impactos‘, mas de situar as irreversibilidades às quais um de seus
usos nos levaria, de formular os projetos que explorariam as virtualidades que
ela transporta e de decidir o que fazer dela (LÉVY, 1999, p. 26).
35

O homem sofre uma tendência à “antropomorfização”, como dito anteriormente. Sua

relação com os objetos por ele possuídos passa a ser não de possuidor, mas também de possuído.

Um simples abridor de latas torna-se ícone de adoração; quanto mais complicadas as funções por

ele exercidas, quanto mais técnica exigida, maior o seu mistério, maior o mito. Latinhas de sopa,

garrafas, motocicletas tornam-se verdadeiros mitos lançados pela sociedade de consumo. As

obras de Andy Warhol constituem exemplos significativos de uma visão lúdica sobre as questões

da mercantilização e do fetiche das mercadorias como pode ser visto em seu “Diamond dust

shoes”. 9 (fig. 02)

(fig. 02) Obra de Warhol que resume o fetiche e a cultura de massa do pós-moderno.

9
Análise em JAMESON (2002), em contraposição à tela de Van Gogh “Os sapatos de camponês”.
36

No entanto, um mito pode desgastar-se e até mesmo morrer. Acontece que a morte de um

mito abre espaço para um novo; não idêntico, nem necessariamente de mesma espécie, mas outro

mito. O grande problema está, então, na obsessão do homem, na sua necessidade hiperbólica de

tornar tudo prolongamento de seu corpo físico ou psíquico. Por conseqüência, os objetos são

constantemente transformados em tabus. A discutível relação homem-máquina só se torna

crônica quando o homem permite essa posição, ou seja, o rito sin materia consente um gesto que

o faz tornar-se um psicopata. A máquina passa a ser então esse prolongamento físico e psíquico.

É maior a reificação (do homem) do que a tão temida personificação (da máquina), o que implica

a dificuldade de desenvolver alguma criatividade, diante do gesto já automatizado.

Do mesmo modo que os ritos e os mitos perdem os seus sentidos intencionais, assim

também acontece com a arte, que cada vez mais se aproxima do kitsch; a própria cultura passa a

ser industrializada. Junto a essa nova concepção, nasce o homem kitsch, de gosto duvidoso. Abre-

se caminho para uma cultura de massa, ou melhor, para uma cultura baseada nos próprios meios

de reprodutibilidade técnica, conforme vaticinado por Walter Benjamin (1982).

Contudo, a massa, para Gillo Dorfles (1970), existe mais para ser pensada do que para

pensar. Sua ânsia é por divertimento e não por cultura, numa busca de novos ritos e mitos que

satisfaçam o contato entre o real e o imaginário.

Surge uma sociedade acostumada a guardar imagens, que cultua a reprodução ao infinito.

Como dizer que a foto da foto não é arte? Embora haja uma saturação das informações

transmitidas, de fato o que se atrofia não é a obra de arte ela mesma, mas aquilo que constitui sua

aura. Assim, a literatura mitificada corre o risco de ser cópia infinita, sem liberdade de expressão,

bem próxima da angústia expressa por Jorge Luís Borges, em Pierre Menard (1998).

O homem poderá novamente recorrer, como fazia com a natureza, a elementos pré-

fabricados para transformá-los em arte.


37

Criar!, esse único verbo abrevia grande parte de nossos anseios e nos separa de maneira

apodítica das outras espécies. Ao homem, é permitido criar, articular a linguagem a ponto de

mentir, modificar os atos banais e os objetos simples em arte. A alteração de um tabu em um

totem permite-lhe a possibilidade de cunhar mitos e ritos para serem adorados.

É preciso manter os ritos e o ritmo, tornar estática qualquer ação é ir contra a ordem

natural de nosso “esquema dinâmico” (DORFLES, 1995, p. 110). Nosso olhar, que tanto se

alterou com a dinamização, fez surgir a TV e o cinema; nossa consciência do tempo nos faz

enxergar o passado de outra maneira e ora pensar o futuro de forma hipotética, ora romancear o

passado, tomando-o como forma inesgotável de memória.

O risco, no entanto, reside no fato de se imbuir todos os objetos úteis de técnica e

tecnologia, conferindo-lhes um caráter mecanicista, tornando o rito ainda mais banusia e cada

vez menos telos, uma vez que este se torna uma etapa mais distante para o homem

contemporâneo, o qual atua apenas como herdeiro vazio dos antigos ritos.

Também alteramos a nossa concepção sobre arte e demos novas dimensões àquilo que

reproduzimos. Ao condicioná-la a uma nova perspectiva - a do homem kitsch, do homem cinético

- partilhamos da chance de imprimir a ela todo automatismo possível. Não devemos nos

esquecer, no entanto, da intencionalidade que deve ser dada tanto à técnica quanto à arte. Aceitar

determinadas formas de perda significa, conforme Pierre Lévy (1999), a oportunidade de

reencontrar o real.

Assim, cabe ao homem pós-moderno estabelecer certa ordem no caos. Se o ciberespaço se

presta, pois, às múltiplas identidades, às diferentes máscaras, também ele intensifica a não-

identificação, ampliando ainda mais as angústias do sujeito. Em certo sentido, o ciberespaço

consolida a desintegração de um homem que naufraga entre bites e bytes, entre ritos e mitos pós-

modernos, conforme se verá a seguir.


38

2.3-A Questão da subjetividade e o pós-moderno

De acordo com Stuart Hall (2001), existem três concepções de sujeito. A primeira delas

aborda o sujeito do Iluminismo, baseado no conceito de humano; um sujeito extremamente

centrado, concebido como uma forma una, uma espécie de “contínuo”, assim pensado sob a

influência dos próprios ideais antropocêntricos vigentes entre os séculos XVI e XVIII.

A segunda concepção diz respeito ao sujeito sociológico, aquele formado a partir de

sentidos e valores da própria cultura. Ele não é mais visto como auto-suficiente e autônomo, ao

invés, sua formação advém da relação com o outro; o núcleo do sujeito passa a ser considerado o

“eu real”, mas este é constantemente modificado pelos contatos exteriores. Na verdade, à medida

que nos projetamos socialmente, internalizamos significados e valores culturais, os quais servirão

para nossa formação como sujeitos.

Por último, o sujeito pós-moderno, firmado a partir de 1950, quando o sujeito unificado e

estável cede lugar àquele fragmentado e contraditório; mesmo nossas projeções culturais vêm se

tornando, a partir desse momento, mais descartáveis e variáveis.

Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não tendo


uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma
‘celebração móvel’: formada e transformada continuamente em relação às
formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais
que nos rodeiam (HALL, 2001, p. 12-13).

Também o dito processo de globalização vem atuando de forma impactante nas

transformações da identidade cultural. Não há a falência do sujeito, brusco rompimento entre

modernidade e pós-modernidade, e sim sua transformação. Podemos dizer que estamos passando
39

por um processo de deslocamento, a partir do qual, para Ernest Laclau “desarticula as identidades

estáveis do passado, mas também abre a possibilidade de novas articulações: a criação de novas

identidades, a produção de novos sujeitos e o que ele chama de ‘recomposição da estrutura em

torno de pontos nodais particulares de articulação’” (apud HALL, 2001, p. 17-18). Para Laclau,

as sociedades modernas não têm nenhum centro ou princípio organizador, diferentemente do que

pensavam os sociólogos: “um todo unificado e bem delimitado”; elas estão constantemente sendo

“descentradas” ou deslocadas por forças externas.

As sociedades tardias são formadas pela diferença e se elas não se desintegram é porque

em algum momento estes elementos diferenciais articulam entre si. Laclau considera esta

articulação como parcial, embora seja ela que possibilite a História.

No século XIX, o homem aparece como um eu real, que interfere no exterior e também é

reflexo dele. Já na segunda metade do século XX, dá-se a fragmentação do sujeito e seu

deslocamento. Quando uma estrutura é deslocada, ainda na concepção de Laclau, não está sendo

substituída por outra, mas por uma pluralidade de centros de poder. Este descentramento pode ser

atribuído às novas influências do pensar e até da tecnologia possibilitando a interferência na

formação de um novo homem também múltiplo, estilhaçado.

Hoje, nossa marca é a tecnociência; vivemos a era da informática, na qual nos tornamos

mais familiarizados com os signos do que com as coisas por eles simbolizadas; entregamo-nos a

uma sociedade de consumo, somos todos uma infinidade de nomes e ícones; criamos a sociedade

fechada em símbolos, na qual passamos a preferir a imagem do objeto, ou a sua silhueta (na

parede da caverna), ao próprio objeto. Nossas escolhas partem do simulacro do simulacro.

O advento dos meios de simulação de realidades virtuais torna nosso ambiente mais

caótico ainda, nos encerrando em um mundo em que todas as ditas realidades, de facto e virtuais,

compreendem o chamado hiper real. Nossas referências icônicas são organizadas de tal forma
40

que se estabelece a necessidade de novos saberes semiológicos e informativos, que, por sua vez,

colaboram para a nossa fragilização e a anulação da nossa personalidade, no momento em que

nos deixamos ser tragados pela entropia semiótica.

A fragmentação das mensagens midiáticas vem, muito a propósito, para o uso da mídia

como instrumento de controle social: o sujeito recebe um excesso de informações, ou pseudo-

informações, ou ainda - e por que não dizê-lo? - de instruções advindas de diversos meios de

comunicação e, tendo sido responsável meramente pelo crivo final, a montagem de um quebra-

cabeça cujas peças lhe foram criadas e fornecidas de antemão por outrem, crê que esse esforço

basta por si só para legitimá-lo como alguém com alvedrio, "opinião própria" - a imagem mesma

do individualista, ou do sujeito individual.

E assim, a sociedade pós-moderna consegue conciliar, pela coerção, - ainda que mansa,

fato já antevisto por Huxley, no seu Admirável Mundo Novo (1980) - igualdade e liberdade.

Huxley, aliás, cuidou de fazer nascer um futuro caótico de homens cujos valores morais haviam

simplesmente se extinguido.

Talvez alguém possa sugerir que a única conciliação possível entre estes dois princípios

(igualdade e liberdade) seja mesmo aquela feita à força: igualdade forçada entre os homens-

massa, conjugada com o simultâneo incutir nestes homens a crença em sua própria singularidade

e o culto da auto-imagem.

É, então, a noção de sujeito concebida a partir do século XX que vai aqui, em particular,

nos interessar: a do sujeito estranho, composto não por uma identidade, concepção extremamente

utópica e até mesmo ingênua, mas por identidades contraditórias ou não-resolvidas. A saber, a

identidade una é uma falácia, a idéia do continuum firmada pela noção do sujeito Iluminista,

como já foi anteriormente comentado, cedeu lugar à multiplicidade característica das sociedades

da modernidade tardia.
41

Nosso estudo parte para uma leitura da obra Um Homem que dorme, de Georges Perec, no

intuito de apreciarmos um pouco mais este sujeito fragmentado e que busca reconhecer-se.

Levaremos em conta, direta ou indiretamente, as abordagens de alguns pensadores como

Nietzsche, Foucault, Lyotard e Derrida sobre o homem e seus valores morais e discursivos.

Voltar-nos-emos especificamente, para a questão do duplo ou até mesmo do múltiplo, no intuito

de compreender em que medida o efeito especular ou mesmo a automatização dos gestos guia ao

conhecimento do self. Portanto, basear-nos-emos na compreensão do outro como monstro, em

uma última instância, utilizando-nos da teoria elaborada em A cultura dos monstros: sete teses

por Jeffrey Cohen (2000). Não abandonaremos, no entanto, a análise da relação do homem e de

seu próprio corpo, cada vez mais modificado, cada vez mais inumano.

Assim, voltar-nos-emos para esse colapso vivenciado pelo sujeito na modernidade tardia

no intuito de pensar, de algum modo, a subjetividade pós-moderna, que se evapora em um jogo

de espelhos, em que não se tem mais certeza de nada. O homem, ora uma mescla com a máquina,

cuja natureza apática se esmaece, que se permite esvair, se desfaz enquanto parte em busca de si

mesmo.
42

3- A REINVENÇÃO DO CORPO

Brincava a criança
Com um carro de bois.
Sentiu-se brincado
E disse, eu sou dois!

Fernando Pessoa, Brincava a criança

O presente capítulo tem como proposta discutir o próprio homem e em que medida ainda

pode ele ser considerado humano. Trataremos do homem moderno/pós-moderno e das radicais

transformações sofridas através das novas acepções a ele atribuídas a partir da genética e da

clonagem. Ater-nos-emos às mudanças no corpo do homem - e o que é o corpo? - as quais

possibilitarão pensar sobre o homem-máquina, o homem-animal, o homem-monstro e, por

conseguinte, discutir o que seja de fato o humano e o inumano. Ser-nos-á possível pensar as

questões da subjetividade, as alterações no campo do material e do transcendental e suas

conseqüências para esse novo homem.

Melhor definindo, tentaremos refletir “como a alma, sendo simplesmente uma substância

pensante, pode iniciar os eventos relevantes no sistema nervoso de modo a produzir movimentos

voluntários dos membros?” (ELIZABETH apud SIBILIA, 2002, p. 106). A pergunta remete-nos

ao ano de 1642 e foi proferida pela então princesa, Elizabeth, filha do rei Frederico de Boêmia.

Segundo Sibilia, a indagação não foi esclarecida na época e não o teria sido até o presente
43

momento, não fosse pela afirmação de Kevin Warwick: trata-se de impulsos elétricos. A assertiva

do cientista, embora pareça saciar os anseios da jovem, sem resposta há mais de trezentos anos, é

extremamente reducionista; ela nos faz crer na constituição de meros impulsos elétricos passíveis

de serem copiados livremente, desde que se tenha acesso aos recursos tecnológicos adequados.

Na verdade, seria isso mesmo que provaria o cientista ao implantar um microchip no

braço e gravar os impulsos ligados a movimentos, sensações e emoções, desvendando o mistério

da interação corpo-mente e estreitando a relação corpo humano-computador.

No entanto, a questão vai mais além: traz consigo a dicotomia corpo-alma. Tanto a

formação do corpo, quanto a formação da alma obedecem a certas leis políticas e, por que não,

doutrinárias, as quais se modificam ao longo da história do homem e da própria necessidade de

adaptação dos seres vivos.

Mas quem é o homem que habita esse corpo, ou ainda, o que é o corpo habitado pelo

“sujeito pós-moderno”? Primeiramente, é importante notar que nos deparamos com o fato de

estarmos no momento (em todos os âmbitos) do pós - tanto quanto do des - ou ainda, como

coloca Jean-François Lyotard (1997), o momento do “re” - que alude à idéia de voltar a uma

condição zero. Portanto, coloquemos a alma um pouco em segundo plano enquanto falamos do

corpo, já que ela se fará aparecer por si mesma. Estamos diante do corpo “des-humano” ou “pós-

humano” ou ainda “inumano” ou “pós-orgânico”; o corpo que deixa de ser puramente biológico

para ser dotado de artificialismos e tecnologia.

O dualismo cartesiano, que tanto influenciou o pensamento ocidental, é marcado pela

oposição entre corpo e mente e tem seu paralelo hodierno no par hardware-software. René

Descartes dizia “Eu poderia supor não possuir um corpo [...] sou realmente distinto do meu corpo

e posso existir sem ele” (apud SIBILIA, 2002, p. 94), ou seja, a mente seria o fundamento do eu:

ela se manteria mesmo perante a inexistência do corpo físico ou de qualquer outro suporte. Não
44

temos, ainda, uma resposta sobre quanto um depende do outro; incomoda-nos, no entanto, o fato

de o corpo ser limitado e mortal e nossos projetos apontam para a imortalidade da mente, na sua

“hibridização com o software”, para usar uma expressão de Paula Sibilia.

Quando do surgimento da teoria de Charles Darwin e de seu pensamento sobre o mundo

dos vivos, regido pelas leis da natureza, a partir do século XIX, a vida passou a ser encarada

como um acidente e a morte como uma certeza. Se estivesse neste mundo do Projeto Genoma,

em que é mesmo possível planejar ou até clonar ou “mixar” seres de diferentes ordens ou ainda

fazer da morte nossa grande incerteza, Darwin se surpreenderia. As idéias dele, sem dúvida,

foram decisivas para a ciência atual, mas sua teoria foi adaptada aos novos tempos, à “evolução

artificial”:

Isto é, a possibilidade dos homens alterarem com eficácia o código da vida,


visando à provocação de determinados efeitos e prescindindo da dependência
histórica com relação à evolução natural, com suas pouco confiáveis mutações
aleatórias e seus lentos processos de seleção. Eis o que começa ser denominado
‘evolução pós-biológica’, ou de modo mais direto, pós-evolução (SIBILIA,
2002, p. 118).

Ainda que nossas ambições apontem, dentre outras alternativas, para o desejo de

reprodução humana permanente, ou seja, tal e qual aquela prevista pelos filmes de ficção

científica ou pela literatura, o corpo orgânico está, paradoxalmente, se tornando “obsoleto”. Há,

na verdade, o abalar das dualidades até aqui sedimentadas: o corpo e a alma; a vida e a morte; o

homem e a natureza.

A primeira grande alteração se dá no campo da tecnologia, que ganha um valor

digitalizado - em lugar das velhas informações mecânicas ou analógicas - na sociedade a qual

Deleuze denominou “sociedade de controle”. Aos poucos, os corpos destinados à sustentação

fabril, à produção, cedem lugar aos corpos adestrados para o consumo. Há uma substituição - a
45

que Paula Sibilia (2002) diz ser produto comprando o próprio consumidor - do “código civil”

pelo “código de direito do consumidor”.

Na obra As coisas (1969), Perec descreve, de forma a estabelecer uma crítica sociológica

e antropológica, a sociedade pós-industrial. O romance relata o cotidiano de um casal, Jérôme e

Sylvie, e seus conceitos de felicidade e harmonia submissos às coisas que eles consomem, ou

melhor, desejam consumir (criando-lhes frustração incessante) e suas conseqüentes fugas, muitas

vezes imbuídas de certo bovarismo - como aquele da heroína de Flaubert e de seus sonhos. A

história do jovem casal, cujo subtítulo é Uma história dos anos 60, adapta-se perfeitamente às

razões do mundo atual: “A tensão era forte demais naquele mundo que tanto prometia, que nada

dava” (PEREC, 1969, p. 101).

A segunda alteração é a da vida sem morte, possível conseqüência aventada a partir da

constatação de uma série de fatores tais como a leitura e a programação genética. A morte torna-

se não um ícone a ser desejado, mas, muitas vezes, algo a ser revertido. Embora seja protagonista

em diversos programas sensacionalistas do showbussiness, o foco real parece desviar-se para os

atos de violência e não para a morte em si. Hoje, ela é algo um pouco mais complexo: se alguém

morre, diferente do mistério que poderia ser impresso nesse sinal há quatro séculos, é uma

fraqueza, um garantia de que alguém permitiu que esse corpo se fosse; é nesse momento que se

constitui o tabu: não morrer se torna imperativo.

Quanto à dicotomia corpo-alma, Rodney Brooks coloca que “A distinção entre o que é um

robô e o que é uma pessoa irá desaparecer, e começará a verdadeira fusão entre o homem e a

máquina” (apud SIBILIA, 2002, p. 143). O homem, corpo-mente, no entanto, serve como

referência na formação da rede de computadores, na inteligência artificial, como nos mostra o

filme homônimo de Steven Spielberg (2001), na saga de seu “Pinóquio pós-moderno”. Mesmo

que possamos suspeitar que o pensamento do homem real jamais possa ser substituído, sendo
46

esse o ponto que permite a distinção, ao menos por enquanto, de nossos clones, a idéia, ainda

assim, é a de aproximar o computador cada vez mais da forma de operação humana. O realismo

midiático é tamanho que os sentidos humanos já estão sendo reproduzidos, seja através de

próteses auditivas, seja através de odores sintetizados e incorporados ao computador. Assim,

alguns cientistas acreditam que não haja diferença entre o computador e o computador-homem,

salvo pela capacidade quase infinita de memória do primeiro, se bem que já se cogite um

incremento da capacidade de armazenamento da memória humana, conseqüência de uma

hipertrofia do cérebro.

Em contrapartida, como dissemos anteriormente, houve uma invasão digital no corpo do

homem e, hoje, o corpo, e não mais a mente, está sendo cada vez mais representado da mesma

forma que chips ou bits. O sistema 0/1 dominou de vez o nosso corpo, haja vista o DNA que

funciona similarmente a um código de barras de qualquer produto em um supermercado. Aliás, a

comparação é ainda mais vibrante se nos lembrarmos que os produtos eles-mesmos são

desdenhados quando podemos simplesmente digitar seu número; do mesmo modo, o corpo torna-

se cada vez mais dispensável, basta uma simples molécula, um fio de cabelo, a íris, a unha, para

que “segredos” se façam revelados.

Sibilia (2002) nos mostra como extinção e criação crescem em igual proporção, ao que ela

chama de era “pós-natureza”, já que a natureza em si se torna obsoleta. Os seres humanos, alvos

da reprodutibilidade, são entendidos como um produto de si mesmos. Toda essa alteração passa,

antes de tudo, pelos desígnios nada singulares do homem em superar-se, controlar a si e ao

mundo e, de alguma maneira, partir para a hipótese de autoconhecimento.

O homem descobriu que pode ser seu próprio construtor e, quem sabe até, seu redentor.

Ele pode dignar-se a antever o surgimento de uma nova era: a pós-humana.


47

3.1-O Inumano

Nos séculos XV e XVI, um movimento, cuja origem remonta à Idade Média, marcou o

início dos Tempos Modernos: o Renascimento; conhecido por contestar “as trevas” da era feudal,

foi responsável por colocar em foco novamente a Antiguidade Clássica.

A grande inovação é incumbência do racionalismo, explícito nesses dois séculos, e do

ingresso definitivo do homem ao centro do universo 10, sobrepujando o modelo teocêntrico até

então vigente. Tal empreitada racionalista impulsiona a revolução científica e literária

denominada Humanismo.

No século XVIII, culmina verdadeira revolução intelectual já fomentada durante o

Renascimento. Indo de encontro ao Antigo Regime, o movimento, cujo escopo era o próprio

conhecimento, foi nomeado Iluminismo. Estabeleceu-se, a partir daí, novo paralelo: a sociedade,

e não mais o homem, fora agregada às discussões junto à natureza. Este período assiste ao

aparecimento de filósofos como Montesquieu, Voltaire, Rousseau e Diderot e dos economistas

Quesnay e Gournay.

Apesar de serem deístas, usavam de extremo racionalismo (até a crença deveria ser

racionalizada). Tanto em um caso quanto em outro, o que temos é a alteração dos pólos e, à

entrada do homem no lugar de Deus (se podemos fazer tal ousada afirmativa), pagou-se com

certo caos, alguma anarquia, o que é analisado por Roberto Romano em Moral e ciência: a

monstruosidade no século XVIII: “Sem Deus, o pesquisador só pode gerar monstros. Desse

modo, o século XVIII seria o tempo das trevas, ao contrário do que afirmavam seus orgulhosos

defensores” (ROMANO, 2003, p. 12).

10
É interessante assinalar que a idéia do homo universalis é atribuída à Revolução Francesa, no século XVIII.
48

Assim, tanto o Renascimento quanto o Iluminismo são responsáveis por fixar o homem no

cenário ocidental, embora o conceito de homem esteja cada vez mais próximo de um fim, ou pelo

menos de radical modificação, uma vez que a invasão, antes do “super-homem” nietzschiano,

agora do inumano de fato, está por acontecer: “Desde suas primeiras produções, tais pensadores,

Nietzsche antes de todos, tiveram que questionar um verdadeiro imperativo de nossa cultura

ocidental, qual seja, o homem como princípio e fim da existência” (NASCIMENTO, 2000, p.

41), principalmente se acreditarmos que o homem é criador tanto de Deus quanto dos demônios.

Em O inumano (1997), Lyotard entende que existem dois tipos de inumano: um que

responde pelo desenvolvimento, o outro que faz da alma refém. De um certo modo, embora não

devam ser confundidos, ambos se completam e se misturam. Ele nos mostra como uma criança é,

à medida em que se faz um joguete nas mãos do adulto, um humano em potencial, o que a torna

mais humana. Mas ele questiona “e se, por um lado, os humanos, no sentido do humanismo, estão

em vias de, constrangidos, se tornarem inumanos? E se, por outro lado, for ‘próprio’ do homem

ser habitado pelo inumano?” (LYOTARD, 1997, p. 10).

Esse questionamento só faz aumentar nossas ansiedades: não sabemos quem de fato

somos, nem mesmo para onde toda a humanidade caminha. Ser-nos-á difícil detectar até o que há

de humano em nós, ainda mais quando embebidos pelo artificialismo proposto pela tecnologia.

Lyotard acrescenta que talvez seja desnecessário continuar lançando filosóficas perguntas, pois,

quando da destruição do Sol, dentro de 4,5 milhões de anos, todas se tornarão inúteis: uma guerra

atômica as aniquilaria, mas deixaria atrás de si um mundo devastado, que, mesmo desumano,

guardaria vestígios do homem; já a destruição solar transformaria tudo em nada, não restaria

pensamento sequer sobre a raça humana: “a morte do Sol implica a morte do espírito, pois é a

morte da morte como a vida do espírito” (LYOTARD, 1997, p. 18).


49

Lyotard opõe-se ao pensamento cartesiano, que supunha uma possível separação do corpo

e do pensamento, argumentando que um é indispensável hardware do outro, o que tornaria

impossível uma existência dissociada, contrariando a utopia platônica. Então, podemos pensar

que as questões do humano e do inumano estão necessariamente ligadas às pendências do corpo e

da alma.

O corpo, na Grécia Arcaica, era entendido como um “corpo plural” - uma expressão de

Vernat - quando Platão introduz a noção de corpo e alma: “os que deram o nome de psique à

alma pretendiam indicar que quando ela está presente ao corpo é causa da vida, por conferir-lhe a

faculdade de respirar e de refrescar-se (anapsychon), e que no momento em que essa abandona o

corpo, ele perece e morre” (PLATÃO, 1988, p. 124). O corpo (sôma) é, assim, a sepultura (sêma)

da alma, por estar a alma, em vida, sepultada no corpo. Para o filósofo, a alma deveria encontrar-

se separada do corpo, resguardada para sempre se depurar; o corpo só é necessário à medida que

ele funciona como um receptáculo para a alma. Ele é o canal para os simulacros do mundo

transcendental e o mundo real: “O corpo nos enche a tal ponto de amores, de desejos, de temores,

de imaginações, de todo tipo de futilidades inúmeras, que, como se diz, todo pensamento sensato

por ele nos é impedido” (PLATÃO apud NETO, 2002, p. 19).

O corpo plural era dotado de um monismo, já que a idéia de alma ainda não lhe estava

impregnada. Esse corpo, associado freqüentemente ao corpo divino dos deuses, como nos

esclarece Aurélio Guerra Neto em seu artigo Corpo e sofrimento: Buda, Dionísio e Nietzsche, era

um corpo de pulsões vitais, de atividades físicas e psíquicas, de inspirações terrestres e divinas,

mas não a residência da alma;

A palavra soma, por exemplo, designa o cadáver, a palavra demas designa não o
corpo, mas a estatura, o gabarito físico do indivíduo. Khros também não é o
corpo, mas o invólucro externo, a pele, a superfície de contato, mas também a
50

tez, etc... Por tudo isso Vernant dirá que, enquanto o homem é vivo, quer dizer
cheio de força e de energia, atravessado por pulsões que o movem e comovem
seu corpo é plural (NETO, 2002, p. 20).

Há, no entanto, uma total divergência entre o corpo do homem e o corpo dos deuses. Estes

são dotados de brilho e vigor; são, antes de tudo, imortais, ainda que o caráter dos deuses seja

questionável, por demasiado humano. Contudo, não constitui isto o cerne da questão. Por outro

lado, o corpo do homem encontra-se em um nível inferior, atrelado, sobretudo, à morte. Assim,

fica notório que as atuais questões da clonagem e a probabilidade de “zerar” a morte ou de estar

próximo de tal marca, nos faz menos humanos, não desumanos, mas inumanos; um indivíduo

para além do humano e distante dos deuses. 11

3.2-Novas fórmulas para o corpo: o homem-animal, o homem-máquina

Há muito que o corpo deixou de ser definido pela tripartição cabeça, tronco e membros. O

tronco “super”, resultado de incessantes sessões de ginástica ou acoplado a uma barriga derivada

de uma vida confortável e sedentária, à base de junkie food, acomoda-se, ora frente à tela do

computador (mesmo quando a bordo de fabulosos automóveis), ora frente à tela da TV, tornando-

se obsoleto, salvo por ser sustentáculo de próteses e piercings e constante alvo dos aficionados

pela boa forma.

11
O verbete do Dicionário Eletrônico Houaiss (2001) traz como Inumano “superior à condição humana, divino ou
quase divino”, o que nos faz crer que o inumano está de algum modo para depois do humano e não em uma condição
inferior, necessariamente.
51

Os membros podem estar perdendo suas funções, se vistos apenas como canais,

mecanismos aos quais se podem encaixar outros mecanismos tecnológicos. Terão adquirido,

então, subfunções. Um grupo de cientistas brasileiros, por exemplo, descobriu recentemente,

através de pesquisa utilizando macacos, a possibilidade de ser implantado um comando

neurotransmissor que nos permita, em breve, acionar uma célula enviada para outro planeta e

sentir a temperatura de seu solo ou sua textura. Assim, os membros passam a funcionar apenas

como engrenagens, filamentos a que se agregam máquinas, ferramentas e outras “geringonças”

mais tecnológicas.

Já a cabeça, esta é responsável por suportar o cérebro, que, por sua vez, pauta-se em um

aumento de informações (o que não implica aumento do conhecimento) vertiginoso - do qual ele

não parece, grande parte das vezes, dar conta - fenômeno deflagrado pela world wide web. O

corpo parece, enfim, funcionar cada vez mais separado da cabeça. Aliás, tamanha é a aparente

evolução, que o corpo-sem-cabeça tornou-se uma “entidade autônoma”; a presença da cabeça

parece nem sequer fazer diferença, dada a grande atrofia do cérebro.

The Lord of the flies (1992), de William Golding, história que se destacou no meio

jurídico por mostrar questões como a da organização social, a da necessidade de ordem e de

liderança, versa, entre outros temas, sobre um crime hediondo. O romance conta a história de

meninos que se vêem perdidos em uma ilha após um acidente aéreo e que, sem nenhum adulto,

nem vestígios da civilização, tentam sobreviver; formam um grupo que, aos poucos, no entanto,

vai-se divergindo. Torna-se, então, patente o retorno à selvageria, principalmente por parte de

Jack, um dos meninos, líder do grupo dissidente, que começa a executar rituais primitivos e

retorna ao estágio de caça; o outro grupo, menos “adaptado”, luta para ser resgatado. Trata-se de

um embate análogo àquele entre o cru e o cozido, proposto na antropologia estrutural de Claude

Lévi-Strauss (1991), quando, valendo-se de metáforas e mitos, nos demonstra que o cru é a
52

representação da natureza e o cozido (o fogo) da cultura; com o domínio do fogo, os homens se

transformam em caçadores e os animais em caça.

Um dos meninos, Simon, depara-se com o “senhor das moscas”: uma cabeça de porco

putrefata, ofertada a um suposto monstro que habita a ilha para sua saciedade. Ao ver tal cena, o

frágil menino tem uma espécie de revelação similar àquela cantada por Camões, em Os Lusíadas,

quando Vasco da Gama, imbuído de excedente maneirismo, tem diante de si a máquina do

mundo. O menino morre, assassinado pelo grupo de meninos caçadores, durante um ritual,

confundido com a criatura, antes mesmo de poder revelar-lhes o que havia descoberto: a

identidade do “monstro”, um pára-quedista cuja missão era a de salvá-los. Permanece no leitor a

grotesca cena da matança executada por um grupo de crianças, e da violência gratuita que aos

poucos se majora.

Foi La Mettrie, pensador do século XVIII, cujas reflexões estiveram calcadas ora no

Humanismo, ora no Anti-Humanismo, o responsável por cunhar o termo homem-máquina. Na

visão de Descartes, os animais eram máquinas, por não possuírem alma; La Mettrie extremiza o

pensamento cartesiano e afirma que se os homens se assemelham em tudo aos animais, são

também eles máquinas: homens-máquinas.

O pensador foi considerado, também por outras razões, em sua época, um louco. Hoje, no

entanto, tornou-se concludente que há ínfimas diferenças entre o homem e o animal. Os símios,

por exemplo, têm menos de 10% de seu genoma diferente do humano - a única coisa que

distingue o homem do macaco é um movimento de “pinça”, que este não consegue realizar, e que

lhe permite modificar o meio em que vive. O mais inquietante não está, na verdade, na

semelhança entre os seres, mesmo porque as pesquisas sempre se voltaram a isso, mas na

conclusão a que se pode chegar: de que a alma não existe. E, sob essa ótica, se ela não existe, o

homem é animal e é máquina.


53

A alma, assim, seria tão material quanto o corpo, e localizar-se-ia no cérebro, não

possuindo a menor relação com o divino ou com qualquer outro mundo de igual abstração.

Portanto, o bem e o mal desaparecem, seguindo o nosso organismo somente ao que lhe é ditado.

Apaga-se, também, qualquer vestígio de Deus: o homem comanda, então, o seu próprio destino.

A conclusão nos deixa bem próximos do que sempre sonhamos: ser capazes de guiar

nosso curso; nem destino, nem carma, nem reencarnação, nem pagar por pecados; tampouco

estaríamos atrelados ao livre arbítrio. O homem, assim visto, é um mecanismo, um ser

independente e “ser autônomo significa libertar-se de todos os vínculos de subordinação,

sagrados ou humanos” (ROUANET, 2003, p. 41), como uma espécie de máquina auto-

programável.

Essa autonomia pode ser considerada o ponto positivo da questão, segundo o pensamento

de La Mettrie; mas o lado negativo é apontado por Rouanet nos traços anti-humanistas que

permitem algum reducionismo, um niilismo moral e um autoritarismo político. O reducionismo

do corpo retira-o do sagrado, contribuindo para uma banalização a qual pode cada vez mais ser

sentida; o niilismo condiciona-nos a agir conforme o que predispõe nosso gene: tudo está escrito

no corpo. Ainda que o corpo deixe de ser a morada do sagrado, ele será o lugar da inscrição. O

filme O livro de cabeceira (1995), um dos melhores trabalhos cinematográficos nesse sentido, faz

do corpo esse locus sacro, não em razão da alma, mas por tratá-lo como “corpo plural”, em que

pulsa vida, sentimentos, sensações e erotismo. A atitude dos amantes perante a beleza e a tradição

da escrita demonstra a rigidez daquilo que se fixa e se apaga simultaneamente; são textos, de

alguma maneira, insubstituíveis, “papiro de delícias” (referência feita por Ademir Assunção no

poema Escrito na pele, cujo mote é o filme em questão). Cada ser é seu próprio livro e sua razão,

no melhor sentido mallarmaico, é preparar este livro.


54

O último traço, o autoritarismo político, prega que o poder deveria ser exercido por

médicos-filósofos, para contribuir na reprogramação de homens mais dóceis e menos violentos.

O problema é que tal programação genética poderia criar uma nova ordem social, uma nova

geração de escravos: os clones. É propício, então, o alerta de Habermas:

A escravidão é uma relação jurídica, e significa que um homem dispõe sobre


outro como sua propriedade. Por isso é incompatível com os conceitos
constitucionais atualmente vigentes de direitos humanos e de dignidade humana
[...] O clone se assemelha ao escravo na medida em que pode transferir a outras
pessoas uma parte da responsabilidade com que de outro modo ele próprio
deveria arcar (HABERMAS apud ROUANET, 2003, p. 59).

Sendo assim, estariam realmente eles dispostos a nos servir? Ou estaríamos diante da

formação de uma geração de criaturas, como a do Dr. Frankenstein, prontas para se revoltarem

contra os seus criadores?

Ainda a respeito da questão corpo-alma, o monismo suscitado por La Mettrie traz como

conseqüência a inexistência do transcendental, como já mencionado, que faz do corpo um

qualquer lugar e facilita a banalização da qual ele tem sido alvo nos últimos tempos. O erotismo,

a sexualidade, tudo aquilo que envolve o corpo como lugar-comum, fica em destaque; sem

sombra de dúvida, este pode ser um traço distintivo do homem pós-moderno, muito embora sua

origem remonte à Antiguidade, quando o corpo já era explorado, ainda que como sinônimo de

fortaleza, beleza ou de mistério.

Esse efeito da banalização do corpo pode por vezes aproximá-lo de um devir-animal, em

que se torna impossível determinar onde começa um e termina outro. Um bom exemplo pode ser

visto em Animal Farm, de Georges Orwell, que faz intensa crítica ao stalinismo, criando uma

revolução chamada de Animalismo. Na concepção de um dos porcos, todo humano bom já nasceu

morto; mas, alguns deles - aqueles que renegam as idéias do Animalismo, propostas pelo porco
55

Old Major - começam a ganhar máculas humanas como as de beber e negociar, à proporção que

os homens, agora submissos aos animais, perdem o caráter humano. Contudo, é na produção

cinematográfica, inspirada em tal obra literária, que se evidencia o movimento de inversão de tais

valores; a cadela observa um jantar entre porcos e humanos, em que um faz o papel do outro: os

porcos falam em dinheiro, os homens, submissos aos primeiros, chafurdam e fuçam; o vidro da

janela ajuda a desfigurar a imagem dos humanos transformando-os em animais, como se em um

quadro de Francis Bacon. (fig. 03)

(fig. 03) Retrato de Michel Leiris,

1976; uma das intrigantes “desfiguras” de Francis Bacon.


56

Em O inumano hoje, a partir de um texto de Clarice Lispector, Evando Nascimento

(2000) nos alerta sobre a possibilidade de, frente a um elemento enigmático, sermos obrigados a

pensar ao mesmo tempo no animal tanto quanto no humano, já que os limites que os distinguem

são extremamente frágeis; seus traços distintivos tornam-se apenas uma questão de espaço, mas

que afetam de algum modo o pensar. Essa zona limítrofe é justamente onde o homem se

compreende animal em potencial e vice-versa.

Deleuze, em sua obra, vê o homem como contaminado por tudo aquilo que o circunda,

sendo, portanto, possível falar de um devir-humano animal ou máquina, como se partisse de um

acoplamento, ou ainda, de uma mescla ou transformação.

O caso clássico é a Metamorfose (s/d), obra em que Franz Kafka narra a transformação de

um jovem em um inseto repugnante. Colocado assim, poderíamos nos equivocar ao supor que os

anseios de Gregor, o personagem central, se limitassem simplesmente ao que uma narrativa de

ficção se propusesse a relatar: mera experiência científica. Sem sombra de dúvida, não se trata

disso, principalmente, porque não há na obra qualquer atividade científica empírica descrita. O

viajante kafkiano é na verdade um jovem rejeitado e seu devir-animal representa o modo como

ele acaba por se ver, levando em conta o suposto olhar de sua família, ou seja, do outro. Como

coloca José Ortega y Gasset “O corpo do outro, quieto ou em movimento, é um abundantíssimo

semáforo, que nos envia os mais variados sinais, indicações daquilo que se passa no ‘dentro’ que

é o outro homem” (1973, p. 129).

Jacques Derrida, em O animal que logo sou (2002), propõe uma discussão sobre o homem

e sua prerrogativa de entender-se diferente do animal, ou melhor, do que ele. O próprio verbo

“suis”, no título - L’animal que donc je suis - aponta para a contradição já que é ao mesmo tempo

ser (être) e seguir (suivre).


57

Motivado pela nudez do animal (um gato), que também olha o filósofo nu, ele dispara a

sua teoria. Em primeiro lugar há a questão de sentirmo-nos ameaçados, envergonhados diante do

animal que observa o nosso corpo. O curioso é que não deveríamos ficar constrangidos, afinal,

não é a roupa invenção do homem, esse ser racional? O que o animal sabe a respeito do nosso

corpo que não sabemos, ou não queremos saber? Será, simplesmente por que, assim expostos,

entendemos que não somos diferentes deles?

Por que, se o homem sucede ao animal, crê aquele ser mais importante? Analogamente,

deveria também ser o homem mais importante que Deus, seu predecessor. E se Deus, conforme

Nietzsche, há muito tenha morrido, quiçá jamais existido? E o homem, teria ele, em algum

instante, como questiona Drummond, existido? Será que nunca existimos? Então, quem somos?

Que coisa é essa chamada Homem? Algo entre o ser e o não ser; super-homens. Somos nós os

monstros, criaturas de Frankeinstein? Homem: um patchwork mal-costurado.

3.3-A Propósito do herói cotidiano

As características do local - ainda que se fale em valorização das minorias - estão cada

vez mais diluídas mediante o movimento que transforma o mundo em uma grande rede de

comunicação, regra seguida, aliás, pelos mitos que são difundidos no mercado. Sabe-se que hoje

é a mídia a principal responsável pela confecção de mitos e heróis, globais ou locais; ao mesmo

tempo, é ela mesma a responsável por seu apagamento; assim, deve-se notar que a popularidade

pouco tem a ver com competência.


58

Mas, afinal, o que é um herói? Os heróis são nossos espelhos. Representantes de nossa

fortaleza, eles são imortais e indestrutíveis; são eles que resolvem nossas questões - não sem a

ajuda dos deuses, oráculos e magos, é claro - e salvam a humanidade.

O conceito de herói nos chega através da epopéia: trata-se daquele que cumpre os

objetivos do grupo, que restabelece a ordem coletiva. Seja na Ilíada de Homero ou na Eneida de

Virgílio, o herói sempre cumpre esse papel - atenuado durante o Romantismo e o Modernismo,

quando aquele passa a ser o fio condutor da história (na epopéia, ele não deixa de ser esse fio,

uma vez que possibilita a construção das glórias e triunfos cantados na poesia narrativa). Na

Eneida, por exemplo, tudo é engendrado de forma que o herói possa satisfazer o seu objetivo;

Enéas, ainda que abatido, chega a seu destino. Dido se mata de paixão, ato este que não interfere

nos feitos do herói.

No que tange as grandes narrativas clássicas, os heróis são sempre dotados de magníficos

poderes, de alta sensibilidade e percepção, astúcia e essência guerreira, podendo ser encarados
12
como antecessores dos super-homens dos filmes de ação. Os dons heróicos normalmente

advêm dos deuses e os tornam mais do que simples mortais, podendo, assim, defini-los como:

[...] produto do conúbio de um deus ou de uma deusa com um ser humano, o


herói simboliza a união de forças celestes e terrestres. Mas não goza
naturalmente da imortalidade divina, se bem que conserve até a morte um poder
sobrenatural; deus decaído ou homem divinizado (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 1997, p. 488).

Isso nos remete ao conceito de inumano: nem divino, nem humano, algo além do

humano. Tanto quanto os heróis, os super-heróis imortalizados nas telas do cinema e nos

12
A diferença está, de fato, nos efeitos especiais e no volume excessivo de massa corpórea que algumas vezes acaba
por roubar a cena; isto é, o corpo, ainda que pouco humano, torna-se o destaque principal. Todavia, não se
distanciam muito das epopéias, uma vez que também cantam os feitos de uma nação (a norte-americana).
59

quadrinhos, figuram como bons exemplos para o inumano. Longe de serem desumanos, ao menos

em sua grande maioria, embora alguns denotem um lado sombrio, os super-heróis (os quais a

priori nos interessarão em detrimento àqueles) apresentam traços que os fazem se aproximar do

inumano, uma vez que vão além de simples humanos.

Os super-heróis são, na verdade, a versão moderna dos heróis clássicos, embora para

Diamantino da Silva (1976) a idéia dos quadrinhos remonte às pinturas de nossos ancestrais nas

cavernas, aos hieróglifos egípcios ou à representação da “Paixão de Cristo” em xilogravuras de

1370. Mas o sucesso daqueles em nossa cultura deve-se à França e aos EUA com La famille

ferrouillard (1889) e Yellow kid (1896), respectivamente, caindo nas graças dos artistas nos anos

60, o que facilitou em definitivo a entrada no mundo artístico e literário.

Aquaman 13, Homem-Aranha 14, Capitão América 15, Hulk 16, Demolidor 17, Super-Homem
18 19
, Batman são alguns dos heróis que enfrentam aquilo de que falamos: o compromisso com a

nação, o dever de transpor os obstáculos, tão vital para estes quanto para os protagonistas da

Ilíada ou da Eneida. Ambas as categorias, a de herói e a de super-herói, têm algo em comum: o

inumano. O potencial heróico, ou ainda, os poderes de super-heróis também são em alguns casos

dados por deuses, embora nem todos sejam frutos de relações entre homens e deuses. A Mulher

Maravilha 20, por exemplo, filha de Hipólita, rainha das Amazonas, recebeu seus dons dos antigos
13
Mort Weisinger e Paul Norris, 1941.
14
Stan Lee, 1962.
15
Joe Simon, Jack Kirby, 1962.
16
Stan Lee e Jack Kirby, 1962.
17
Stan Lee e Bill Everett, circa 1964.
18
Joseph Shuster, Jerry Siegel, 1933.
19
Bob Kane, 1939.
20
William Moulton Marston, 1941.
60

21
deuses gregos, assim como Shazam , cuja “materialização” é feita através da evocação das

forças contidas no nome da plêiade formada por suas iniciais (Salomão, Hércules, Atlas, Zeus,

Aquiles e Mercúrio, representando a sabedoria, a força, a agilidade, a potência, a coragem e a

velocidade, respectivamente), ou Aquaman, filho do feiticeiro Atlan e da rainha de Atlanna.

Outros heróis, no entanto, resultaram de experiências genéticas ou acidentes científicos,

tendo alcançado seu status quo justamente por usarem seus poderes para praticarem o “bem”, ou

seja, devolver a ordem ao caos sempre que a mesma estiver sob a égide dos vilões (heróis às

avessas, se bem que o antagonismo esteja no caráter e não nos atributos). Nessa situação

encaixam-se o Demolidor, que ficou cego ao socorrer um menino em um acidente com um

caminhão contendo ácido, tendo, a partir de então, desenvolvido seus outros sentidos; o Homem-

Aranha, picado por um aracnídeo no laboratório da escola, ou o Capitão-América 22, que ao lado

do Super-Homem, figura como um dos melhores arquétipos deste novo homem em fase

embrionária, uma vez que é efeito de um teste para um supersoro cuja finalidade era criar homens

super-potentes combatentes da guerra.

Entretanto, os super-heróis, em sua maioria, não aceitam o jogo duplo que têm de

vivenciar. Peter Park, o Homem-Aranha, por exemplo, é um rapaz normal que gostaria de

concluir seu curso, como qualquer universitário, mas se vê obrigado a agir, a lutar contra o mal e

a conviver com o que seu destino lhe impõe, como uma danação.

Portanto, o que faz de um homem um herói é a perfeição de seus atos, a idoneidade; o que

faz de um personagem um herói clássico é a sua capacidade de desbravar grandes feitos, sua

21
C. C. Beck, 1939.
22
O Capitão América serviu de símbolo para convocar os jovens para o alistamento nos EUA, o que mais uma vez
justifica o uso do uniforme com as cores da bandeira norte-americana, comum a uma série de outros personagens do
cinema e das histórias em quadrinhos.
61

intacta moral, ainda que todos tenham um ponto fraco, um “calcanhar de Aquiles”, uma

“criptonita”, que os deixem diminuídos, menos imortais, diante de seus arquiinimigos.

Se o herói faz gestos como tropeçar, cair ou ainda atos mais escatológicos, ele suscitará o

riso e passará a fazer parte do rol dos personagens cômicos. Ressalvamos, no entanto, que alguns

heróis têm como appeal incrível senso de humor, segredo para seu sucesso e, até mesmo, para a

sedução de mulheres, sejam elas heroínas ou simples mortais (o humor cáustico e autocrítico do

Homem-Aranha é bom exemplo disto).

Os heróis passam a ocupar uma situação limítrofe e a não serem compreendidos à luz dos

cânones sociais; muitas vezes - como é o caso do Justiceiro - transitam entre a lei e a verdade, ou

se descobrem em uma não-aceitação pessoal, como já mencionado. Eles passam a viver nessa

condição limítrofe, nem divinos o suficiente para compreender, nem humanos o bastante para se

redimirem à ignorância sábia da racionalidade. Tornam-se verdadeiros monstros ou a eles fazem

companhia nesse espaço periférico do ser e do não-ser, de onde, talvez, nos observem melhor do

que imaginamos.

Em suma, as histórias em quadrinhos são

[...] modernas versões de antigos mitos que outrora encontravam sua expressão
nas fábulas e nos contos de fadas. Seu enorme êxito no mundo racional dos
adultos talvez se deva ao fato de conseguirem arrancar o homem contemporâneo
de sua tensa e feia realidade cotidiana e transportá-lo para uma outra espécie de
realidade (SILVA, 1976, p. 83).

O estudante descrito em O homem que dorme não tem nenhum herói em que se apoiar

para afastar-se da cruel realidade, mas para nós, leitores, ele se torna um herói no momento em

que observa esse mundo pós-moderno em que vive, no momento em que ele é você. É preciso

passar, solitário, por essa esta experiência niilista, duplicar-se para alcançar o autoconhecimento.
62

Sobre as nuances que divergem o trágico do cômico, um dos clássicos da dramaturgia,

Romeu e Julieta, de Shakespeare, pode ser compreendido como diferente da tragédia tradicional,

apesar de toda profundidade de acontecimentos que o norteia; glorificado por um final coletivo e

de certo modo “feliz”, de paz entre as famílias, Harold Bloom o denominou tragédia de

aprendizado (2000); também o texto de Georges Perec pode assim ser considerado, mesmo em

meio a tanta densidade, um final positivo e coletivo para você (o herói e o leitor).

Assim é que o herói tradicional tem sempre uma trajetória a cumprir, seguindo um ritual

de passagem: separação, iniciação e retorno, conforme CAMPBELL (s/d, p. 36). A peripécia

começa quando o herói sai de casa e se dirige ao limiar da aventura, onde encontra a sombra que

guarda a passagem; após superá-la, ele penetra o espaço das trevas, iniciando uma luta com

forças desconhecidas ou estranhamente íntimas. O trabalho final é marcado pelo retorno a casa,

quando finalmente o herói traz alguma benção para restaurar o mundo. É o que faz o herói de

Perec; seus deslocamentos, contudo, são mais psicológicos do que físicos; seus inimigos estão,

proporcionados pelo mundo externo, em seu mundo interior, e seu retorno é a centelha que

auxilia na recuperação do universal.

Na definição de Campbell, a aventura do herói é uma abertura do caminho para além dos

sombrios limites da nossa morte em vida, o que permite a Deus estar dentro e fora de nós,

despertar a nossa alma. “A vida é o seu sono; a morte, o despertar. O herói, aquele que desperta a

própria alma, não é mais do que o meio conveniente de sua própria dissolução” (s/d, p. 256).

Deus desce, então, dos céus atravessando o mesmo portal de que o homem se utiliza para

subir, fazendo com que se alimentem mutuamente, ou seja, intensificando ainda mais a

probabilidade de existência da categoria inumana.

3.4-O Grotesco
63

Nossos valores estéticos têm sido guiados pelos conceitos de “belo” e de “feio”,

constantemente associados ao “bom” e ao “mau”, respectivamente, ainda que essa associação não

pareça proceder de tudo. A Gioconda de Leonardo da Vinci, por exemplo, não parece ser

necessariamente uma questão de “bom” ou “mau”; por conseguinte, nem de “belo” ou “feio”,

como vértices distintos. O obscuro da obra reside, na verdade, numa tensão criada entre ambos

(belo e feio e/ou bom e mau). Nesse ponto, ao pensarmos no enigmático sorriso da Mona Lisa,

então, podemos ser apanhados pelos ideais de bom, no olhar triste da figura retratada, e de mau,

ao mesmo tempo, no sorriso sarcástico captado pelo autor, do mesmo modo que não podemos

entender se há o feio ou o belo na obra. O que há é uma simultaneidade de tais valores.

O mencionado choque entre conceitos, comum na arte clássica, instaura um outro valor: o

do grotesco; aquilo que de alguma maneira nos faz rir e/ou causa-nos horror e nojo. O grotesco é

analisado e definido por Muniz Sodré e Raquel Paiva como “um tipo de criação que às vezes se

confunde com as manifestações fantasiosas da imaginação e quase sempre nos faz rir” (SODRÉ;

PAIVA, 2002, p. 19).

Na concepção aristotélica, esta é a minúcia que distingue o trágico do cômico: sentimo-

nos tensos diante de alguém que tem intensidade vital maior do que a nossa e o movimento de

catarse vem como conseqüência de tal sentimento; faz-se, então, a tragédia. Rimos, no entanto,

daquele que tem menos intensidade vital do que nós; daquele que apresenta, em geral, uma

deformidade, um defeito oculto que se mostra de forma repentina, possibilitando a comédia: “O

riso ocorre em presença de duas grandezas: de um objeto ridículo e de um sujeito que ri - ou seja,

do homem” (PROPP, 1992, p. 31), ainda que rir não seja obrigatório mesmo quando comparecem

os dois elementos. Nesse delicado momento pode entrar em vacância o grotesco: o misto de

horror e riso.
64

O riso, fruto do cômico, está ligado ao social e, supondo um contato entre inteligências, é

uma espécie de arma forjada pela sociedade. Para Bergson (1984), é sempre um riso grupal, com

função social útil, que por isso necessita sempre de um eco. Contudo, há três outras funções

básicas nele: a higiênica, a moral e a estética. Ele é, portanto, derivado de um mecanismo

montado em nós por uma longa prática social que fere, na concepção bergsoniana, tanto justos

quanto culpados.

Assim, podemos dizer que a hilaridade está no efeito de rigidez que mecaniza o corpo: “A

instalação do mecânico na ordem humana implica o deslocamento dos movimentos métricos e

cíclicos que caracterizam o ser humano” (SODRÉ, 1974, p. 32). Desta forma, a rigidez é cômica

e sua conseqüência é o riso. O maquinismo do corpo, ou seja, a repetição de movimentos ou a

quebra da aspereza dos atos têm, portanto, efeito chistoso. Uma lei fundamental da vida é que os

pensamentos jamais se repetem, mas os gestos, sim, ecoam com freqüência e tornam-se

automatismos - o que facilitaria a possibilidade do homem-máquina ser alvo de graça em alguma

instância - deixando de ser vida para ser comicidade. No entanto, só somos risíveis quando

deixamos de ser nós mesmos. E acaso não é isso o que vimos fazendo?

O grotesco, cujo habitat é por excelência o Barroco, muitas vezes funciona como uma

mutação, ou mutilação do cânone. Mas é o maneirismo o responsável pelo monstruoso (conceito

que analisaremos mais adiante).

A propósito da figura do bufão, Muniz Sodré e Raquel Paiva afirmam que ele representa a

inversão da figura do rei e, se entendermos o grotesco como se fosse o belo de “cabeça para

baixo”, ele nos suscitará ao riso, à escatologia e aos ditos provocantes. A figura que mais se

assemelha a do bufão é a de Dionísio. Ele é a divindade a quem se atribui a criação do vinho e do

seu conseqüente prazer; é tão conhecido quanto Zeus em algumas culturas e é também a quem se

atribui a fertilidade e o Carnaval. Uma das razões para a rejeição do deus pelos demais deuses do
65

Olimpo é justamente seu caráter satírico, uma vez que, apesar de oferecer-lhes o “néctar”,

possibilitando algum humor divino, acabava por revelar as verdades ocultas sobre as máscaras. 23

Freqüentemente representado com chifres, símbolo do poder, ele era acompanhado por centauros

(cabeça humana, corpo de cavalo), ninfas (as belas entidades as quais assombravam os bosques e

florestas) e musas (ligadas às artes e às ciências), o que nos faz pensar ainda mais nessa entidade

como símbolo do grotesco; além disso, sua costumeira associação tanto com os céus quanto com

a terra remete a sua situação fronteiriça - morada comum ao monstro.

O grotesco, assim, pode ser entendido como aquilo que surge de uma criação onírica,

assumindo formas horríficas ou fantásticas, de algum modo, absurdas, criando muitas vezes o

satírico e a crítica. Constitui o monstruoso, que, de efeito risível, aponta unicamente para o

estranho, ainda que familiar.

Um outro exemplo do estranho pode ser encontrado nos seres híbridos. Eles são seres

disformes e ricos de significações nas mais diversas lendas. Pode-se dizer que há uma hierarquia

entre esses seres que são, em parte, humanos, em parte, animais. Os que possuem cabeça humana,

como é o caso da esfinge, são considerados superiores àqueles de constituição inversa, o que

torna a parte animalesca predominante, já que seu pensamento reside numa cabeça bestial. Os

híbridos têm significados diversos, de acordo com os animais que os constituem. O leão,

associado à águia, por exemplo, simboliza o corpo e a alma do homem:

E, se, por vezes, eles se mordem um ao outro, a primeira idéia não é a de


combate, mas de dois animais que se enfrentam, que se co-penetram, que se
tornam um só devorado-se mutuamente, que passam sem cessar de um ao outro.
O tema fica ainda mais claro quando o homem em pessoa é associado a esses
dois componentes simbólicos. Às vezes eles simbolizam o antagonismo que

23
“Passam (os deuses) as horas sóbrias da manhã, acolhendo as contestações e esperando as súplicas. Logo,
empaturrados de néctar e incapazes de qualquer ocupação séria, vão para a parte mais elevada do Céu, de onde se
inclinam para espiar as ações humanas. Não existe espetáculo mais divertido para eles. Meu deus! Que comédia!”
(ROTTERDAM, 2001, p. 58).
66

divide interiormente o homem das tentações do mal e sua aspiração ao bem


(CHEVALIER; GHEERBRANT, 1997, p. 492).

O grotesco e o monstruoso, todavia, limitam-se por uma linha tênue. O primeiro, de modo

geral, associa-se àquilo que causa um “riso nervoso” e que pode advir de diferentes fontes. As

manifestações do grotesco aparecem, sobretudo, nos atos de comer e de beber, concentrando-se

em grande parte no corpo e em suas alterações ou aberrações: um nariz adunco, um anão, um

gordo, um gigante são formas que fogem do canônico e podem gerar o estranhamento e o riso. As

formas do grotesco destacam-se, então, neste corpo que mescla o biológico e o tecnológico: o

corpo pós-orgânico.

O monstruoso, por sua vez, nem sempre causa o riso e em sua grande parte aciona os

nossos medos e anseios; é capaz mesmo de ser um monstro social, aproximando-se daquilo a que

Freud conceituou como unheimlich.

O termo heimlich tem sentido duplo ou ambíguo, que se desenvolve até encontrar o seu

oposto (unheimlich). Pode significar aquilo que pertence a casa ou à família, domesticado ou

capaz de fazer companhia ao homem ou, também, confortável, seguro. O monstro é esse estranho

familiar, porque sinistro consegue guardar tão facilmente suas características de doméstico e

identifica-nos, ao mesmo tempo em que nos faz com ele identificar; por isso, nosso lar é também

o habitat do monstro.

O bizarro, separação frágil entre o grotesco e o monstruoso, também pode ser entendido

como o duplo; um clone, que ainda que idêntico em aparência ao original, é distinto em sua

essência ou, ainda, antagônico a este. Aliás, nem sempre, nesse caso, será possível pensar em um

“original” e sua “cópia”. Nas histórias em quadrinhos da DC (Detective Comics), por exemplo, o

Super-Homem (a quem todos conhecemos; “do bem”, por assim dizer) possui seu oposto,

“bizarro”, uma espécie de sósia (“do mal”) oriundo de um universo paralelo. Tendemos a crer
67

que o primeiro é o original, mas não podemos afirmar de todo, fazemos isso porque agimos como

nossos antepassados: Super-Homem, herói, é um romano e seu bizarro é o outro - aqui um


24
bárbaro a ser temido. O grande problema está na desconcertante possibilidade de ambos se

encontrarem e se confrontarem de igual para igual. Será assim com nossos clones?

3.5-Clonagem: o outro que é o mesmo sendo outro

A questão do duplo sempre nos foi tormentosa, principalmente por que, apesar da

isomorfia, há uma dura diversidade de caráter entre eles. Essas situações já existiam desde a

Antiguidade e em geral faziam parte dos textos que, pela confusão dos semelhantes, causavam o

riso. É o caso das comédias de Plauto as quais trabalham esta temática, recorrente na literatura.

Os Menecmos e Anfitrião são exemplos disso. A primeira é a historia dos gêmeos separados na

infância e que até se reencontrarem criam situações de equívocos; a outra narra a metamorfose de

Zeus que, para enganar a fiel Alcmena na intenção de com ela deitar-se, se dissimula como

general Anfitrião, marido dela e que saíra para a guerra. O deus é auxiliado pelo filho, Hermes,

que se faz passar por Sósia, escravo de Anfitrião e como duplo brinca à vontade com o real Sósia,

rindo dele e de sua estupefação frente ao “outro eu”.

Hoje, a ciência se encarrega de possibilitar a criação de um duplo virtual, quer

reproduzido in vitro, quer geneticamente copiado. Mas, como definir se aquele novo ser é o

24
O comentário tem como referência a conclusão de Luiz Alberto Oliveira “Na Roma Antiga o patrício era romano,
todos os estrangeiros eram bárbaros” (OLIVEIRA, 2003, p. 139).
68

mesmo ou um outro? O efeito especular nos faz pensar em desdobramento, mas não

necessariamente em igualdade, ou melhor, em repetição perfeita:

Se fossem postos juntos dois objetos diferentes: Crátilo e a imagem de Crátilo, e


uma divindade não imitasse apenas a tua figura e tua cor, como fazem os
pintores, mas formasse todas as entranhas iguais às tuas, emprestando-lhes o
mesmo grau de ductilidade e calor, além de movimento, alma e raciocínio, tal
como há em ti; em uma palavra; tudo exatamente como és, e colocasse ao teu
lado essa duplicata de ti mesmo: tratar-se ia de Crátilo e uma imagem de Crátilo,
ou de dois Crátilos? (PLATÃO, 1988, p. 165-166).

Essa possibilidade nos faz pensar em algo ainda mais atormentador. Se as primeiras

criaturas da natureza eram imortais, mas se tornaram condenadas à mortalidade, agora, é chegada

a hora de nos tornarmos novamente imortais através de nossos clones.


25
Em recente exposição, o artista mexicano Cézar Martinez armou uma pirâmide

constituída por bonecos de látex que, de quando em quando, eram inflados, em série, por enormes

secadores de cabelos, esvaziando-se em seguida; o processo nos dava a falsa sensação de que se

tratava de bebês reais. Além, de remeterem à clonagem, os pretensos “bonecos de carne”

argumentavam igualmente sobre o aumento da natalidade, sobre o artificialismo ou mesmo o

mistério que poderia ser a vida.

A questão da clonagem remete principalmente à ânsia de livrar-nos da extinção, da

probabilidade, cada vez mais concreta, de estarmos diante da tão sonhada eternidade. A

clonagem, dentre outras técnicas, é que nos possibilitará tal graça (ou, deve-se dizer, tal danação).

Ao criar essa seleção artificial talvez estejamos mais perto do nosso fim (em ambos os

sentidos: objetivo e extermínio); a imortalidade facilitando a criação daquilo que está um pouco

além do humano.

25
A exposição esteve no Museo de Arte Moderno de Buenos Aires e a instalação do artista tem como título
“Clonácion y viceversa” (2001).
69

As duas grandes revoluções assistidas pelo homem moderno, e que acarretaram uma série

de transformações no âmbito social, comportamental e econômico foram a Revolução Industrial

com sua conseqüente revolução Pós-industrial, e a Revolução Sexual. Se o sexo foi pouco a

pouco se libertando do encargo da reprodução, a reprodução está libertando-se do sexo a partir da

mesma receita através da qual nos livraremos da morte. O assunto é abordado por Jean

Baudrillard - ele que não é exatamente um entusiasta da pós-modernidade e das atuais

transformações do homem - em A ilusão vital, que entende como se estivéssemos “trabalhando na

‘des-informação’ de nossa espécie por meio da nulificação das diferenças” (2001, p. 14).

Baudrillard acredita que, apesar de a nossa morte estar oculta em nós, o esquecimento

dela nos aguarda em cada uma de nossas células. O autor coloca, então, a clonagem como um

teste heróico em que observaremos até que ponto é possível sobreviver a esse “processo de

artificialização” dos seres humanos.

Segundo Elias Canetti, o problema está no caráter megalomaníaco do homem, que faria o

mesmo deslizar rumo ao vazio:

Todos os desígnios do homem sobre a imortalidade contêm algo de seu desejo


pela sobrevivência. Ele não quer apenas existir para sempre, mas existir quando
os outros já não estiverem lá. Ele quer viver mais do que qualquer outro, e saber
disso; e quando ele próprio não mais estiver lá seu nome deve continuar (apud
BAUDRILLARD, 2001, p. 25).

Assim, há que se acreditar que os limites entre o humano e o inumano estão se

desfazendo, embora para Baudrillard estejamos mais próximos do subumano e não do super-

humano proposto por Nietzsche.

É possível falar da alma ou da consciência ou mesmo do inconsciente do ponto


de vista dos autômatos, das quimeras e dos clones que irão substituir a raça
70

humana? Tanto o capital individual quanto o capital da espécie estão ameaçados


pela erosão dos limites do humano, pela descida rumo não somente ao inumano,
mas rumo a algo que não é nem humano nem inumano: isto é, a simulação
genética da vida (BAUDRILLARD, 2001, p. 29).

Ele nos explica, ainda, que a diferença entre o humano e o inumano só existe para nós,

ocidentais, herdeiros do Iluminismo, e que tal apagamento não representa uma conciliação, mas

uma indiferenciação tecnológica.

3.6-Os Monstros

A figura do monstro ingressou de vez em nossas vidas a partir do Renascimento, ainda

que suas aparições em nosso imaginário sejam bem mais antigas. Em países cujas estações do

ano são mais bem definidas, os rituais de nascimento-morte-ressurreição eram freqüentemente

realizados - o que, por se tratar de uma simulação, teria sido causa para as origens do drama - e

pelo pouco conhecimento que se tinha sobre o trâmite verão-inverno-verão, de algum modo, o

aspecto monstruoso já nesse “mistério” se infiltrava.

A mitologia, por sua vez - e aqui nos referimos à universal mitologia greco-romana - se

encarregou de facilitar a difusão de tais monstros, senão de criaturas no mínimo grotescas, se bem

que nem sempre nos suscitassem o riso. Como exemplo, podemos citar os centauros, os ciclopes,

a quimera (misto de cabra, leão e dragão, que soltava fogo pela boca e pelas narinas), os grifos,

os gigantes e os pigmeus, que influenciariam o folclore de outros países, sem mencionar o

Minotauro, todos eles seres híbridos - a exceção é feita aos pigmeus e aos gigantes, guardados ao
71

campo do grotesco, e aos Titãs, presentes na formação do universo, estes de caráter bastante

dúbio.

Segundo testemunhos posteriores, Dioniso foi instituído pelo pai, já em criança,


como quarto rei, mas os Titãs - aqui num papel diferente do de Hesíodo -
seduziram-no, derrubaram-no e esquartejaram-no e preparam-no para comer;
Zeus castigou-os com o raio, e da fuligem originaram-se assim os homens,
rebeldes, opostos aos deuses, que, contudo, trazem em si algo de divino [...] Ao
lado do oral-genital e do modelo tecno-mórfico, entra assim finalmente o
sacrifício, para explicar a singular conditio humana (BURKERT, 1991, p. 51).

De acordo com Burkert, um dos mitos de formação da raça humana pode ser atribuído aos

Titãs e, como percebemos no fragmento acima, desde então os homens já se encontravam entre o

humano e o divino: o inumano ou ainda, o monstruoso; o permanente habitante da fronteira.

Antes de tudo, o monstro advém de uma má-formação corpórea, de um hibridismo, da

junção de pedaços de corpos e partes de cadáveres - como o clássico monstro do Dr.

Frankeinstein, aliás, concepção encontradiça no Renascimento, quando os monstros eram

compreendidos como sinal ou revelação da ira de Deus sobre os homens. A etimologia dada por

Célia Magalhães (2003) de monstro, derivação de monstrare (mostrar) ajuda a entender tal

relação; a autora elucida que o monstro pode ser aquele que é morfológica ou culturalmente

diferente, enquadrando-se às figuras dos bárbaros e dos selvagens.

Para Célia Magalhães o monstro é uma forma de reapropriação ensejada pelo

Romantismo em se criar algo inquietante e único, o que faz da relação criador e criatura uma

hipótese idêntica, tanto na bilateralidade monstro e gerador, quanto naquela entre autor e obra.

Ela explica, assim, em uma leitura de Halberstam, que o monstro é uma espécie de “máquina

textual”, representando, através de Frankeinstein, a produção que rebela e, através da inquietante

figura do Drácula, a vampirização do leitor.


72

O monstro abarca o maravilhoso, o fantástico e, por conceber muito do que é o corpóreo e

o incorpóreo, nos faz vislumbrar a hipótese da questão teratológica como o estranho-familiar.

Um notável exemplar na literatura é encontrado em o Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde

(1980). Nele, o jovem Dorian, pintado por Basil, encontra-se completamente enlouquecido após

suas conversas com Lorde Wotton, alegando ser capaz de qualquer coisa para manter-se jovem e

belo. O rapaz de fato consegue o que quer, mas em troca é a pintura de Basil quem começa

envelhecer. Podemos dizer que o quadro é o reflexo da alma de Gray, uma alma gananciosa e

monstruosa depois dos assassínios por ele cometidos, após o tormento de perceber que seu corpo

jamais envelhecia. O precoce, ou melhor, bizarro envelhecimento do retrato é a morte (da alma)

em vida (do corpo); ao esfaquear o quadro, portanto, ele acaba por tirar sua própria existência.

Há uma identificação extrema, no mesmo grau em que as sombrias criaturas atuam em

nós com um senso de repúdio ao outro, a nós mesmos. Essa relação antropofágica assemelha-se

àquela vivida pelos atormentados personagens do Clube da Luta (1999) ou de Coração Satânico

(1987) - conforme veremos mais adiante - ou mesmo de Um homem que dorme: confundir, como

explica Célia Magalhães, o eu e o outro para, em um segundo momento, transformar o outro em

um ser a se destruir ou incorporar; o que ela também reconhece como passar de alteridade radical

a um autoconhecimento: “não existe mais o outro, ou seja, ‘o eu é o outro e o outro é o eu’”

(GREENBLADTT apud MAGALHÃES, 2003, p. 26).

Dessa concepção, o vampiro se torna o melhor correlato, ao que completa Magalhães,

sendo ele - como uma espécie de negativo de fotografia (fig. 04), uma sombra que só pode ser

revelada através de processos de reversão – uma transparência do mesmo.

Temos aqui idéias contemporâneas, provavelmente introduzidas por Stoker, que


nos remetem, curiosamente, à possibilidade de reprodução do outro apenas
através da “mímica”, bem exemplificada pelo efeito negativo da fotografia.
73

Basta lembrar que a função da mímica é tornar estranhamente invisível a


presença do outro, para confundir ou enganar a própria noção do mesmo
(MAGALHÃES, 2003, p. 95).

(fig. 04) “Auto-retrato”: desenhos de Georges Perec

O monstro simboliza, acima de tudo, uma intensa necessidade de superação de obstáculos,

uma vez que é o guardião de um tesouro, seja ele físico, material ou psicológico. Ele tanto pode

simbolizar as forças irracionais quanto ser símbolo da ressurreição, já que freqüentemente

poderemos aludir a ele como representante de um ritual antropofágico a que o homem se vê

forçado a exercer. Assim, “Todo ser atravessa o seu próprio caos antes de poder estruturar-se, a

passagem pelas trevas precede a entrada na luz” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1997, p. 615).

Funciona, portanto, como símbolo para um rito de passagem que pode ser a superação de um

assombro externo ou interno, a que nos vemos forçados a combater, se de fato desejarmos atingir

aquilo que ele se dispõe a proteger.

Esse ritual sugere a possibilidade do velho dar espaço ao novo. Desde o momento em que

se devora um homem para nascer o outro - mais ou menos como faz o Homem que dorme ao

tentar vencer um monstro introspectivo - abre-se a hipótese de fazer com que tal criatura aflore;

assim, ele deve enfrentá-la, mas com a intenção de estar mais próximo de seu eu.
74

4-A DESSUBSTANCIALIZAÇÃO DO SUJEITO EM UM HOMEM QUE DORME

Num instante, ergue-te do tempo e do espaço. Coloca


o mundo de lado, e sê um mundo dentro de ti mesmo.

Shabistari, Jardim Secreto

Consideramos até aqui as questões pertinentes à pós-modernidade e as transformações por

ela estimuladas, principalmente aquelas que recaíram diretamente sobre o homem; alterações

ocorreram no corpo e nas atitudes, ora entendidas como monstruosas, pelo caráter desumano, ora

porque fizeram do homem um habitante da fronteira, alguém estranho a si mesmo (unheimlich,

aproveitando, novamente, termo de Freud).

Respeitando o fato de que o texto de Georges Perec segue o caminho aberto pelo nouveau

roman e de que o autor, bem inserido em sua contemporaneidade, através, principalmente, do

movimento conhecido como Oulipo, costuma ser categorizado sob a égide do Modernismo,

tentamos deslocá-lo para o tempo que julgamos ser ainda mais apropriado à análise da

complexidade de sua obra: o do dito pós-moderno.

O nouveau roman, que teve como principal figura a de Alain Robbe-Grillet,

responsabilizou-se por subverter os modos de narrar tradicionais, colocando em xeque uma série

de elementos tão bem sedimentados. Sua empreitada foi em direção à execução de inovações, as

quais a crítica e o pensamento filosófico, de um modo geral, já se propunham tais como a

eliminação das personagens, do enredo, do sujeito do autor.


75

A morte do autor, proposta por Roland Barthes, por exemplo, não sugere o

desaparecimento total deste, e sim a entrada de uma nova figura. “O nascimento do leitor paga-se

com a morte do autor”, afirma Barthes (1988, p. 70), observando que, para se constituir um autor

é preciso que este seja, antes de tudo, um leitor. No caso de Perec, a hipótese parece harmonizar-

se com sua obra de forma primorosa; os seus textos delatam leituras árduas, não apenas da

literatura francesa, mas da universal, fosse ela canônica ou não em sua época: Melville, Kafka,

Sartre, Conrad, Proust, Joyce, Queneau, são apenas alguns dos vultos que contribuíram para a

dupla função do autor-leitor Georges Perec. Não há dúvidas quanto a seu êxito, e os textos

produzidos mediante as regras sugeridas pelo Oulipo o comprovam bravamente. Faz-se

necessário assinalar que a leitura dos textos do autor francês nos dá gana de ler tanto os seus

outros textos (e nisso incluem-se não só as obras publicadas, mas seus rascunhos, manuscritos,

rabiscos, desenhos, tudo aquilo que somou para a formação “mágica” desses) quanto os de seus

precursores (para usar o sentimento borgiano em Kafka y sus precursores, s/d).

Roland Barthes, em Introdução à análise estrutural da narrativa (1973), expõe três

níveis: o das funções, o das ações e o da narração. O primeiro é onde se passa a história

propriamente dita, o segundo onde se situam os personagens e o terceiro integra os outros dois.

Contudo, no que concerne à pessoa verbal, esta pode não ser suficiente para mostrar a verdade,

com quem está de fato a palavra; é a esse jogo estrutural que se permite o narrador de Um homem

que dorme. O local de sua narrativa é construído pelo olho do personagem, uma descrição

extremamente minuciosa, em que os objetos constituem o espaço tipicamente perecquiano.

Georges Perec, nos anos 60, criou, entre outras, essa narrativa inusitada - Um homem que

dorme - na qual restringiu e subordinou as regras do romance para atender à descrição de uma

situação de inação. Nossa proposta é analisar a obra, aplicando a teoria indicada em A cultura

dos monstros: sete teses, de Jeffrey Cohen (2000), numa vertente de certo modo autobiográfica. É
76

também nosso propósito recortar o texto de Perec do momento em que o mesmo foi escrito para

repensá-lo em nosso tempo, ou seja, ao estabelecer uma transposição, ser-nos-á possível

compreender o Homem de Perec e, conseqüentemente, um pouco mais sobre nós mesmos, seres

do século XXI.

4.1-A Possibilidade autobiográfica

Por texto autobiográfico entende-se aquele em que o autor se dispõe a narrar os

acontecimentos e fatos de sua própria vida. Esbarra-se, no entanto, em uma “ilusão

autobiográfica”. Tal atitude - a de desenvolver a autobiografia - a princípio deveria permanecer a

mais fiel possível aos fato pois, como sabemos tratar-se de um discurso “não-ficcional”, não

questionamos a verdade de seu conteúdo. É justamente quando começamos a suspeitar de sua

veracidade, uma vez que elementos diversos como os sentimentos, a ação do tempo e a própria

memória, agora uma “construtora” de fatos anteriores, atuarão na elaboração do texto, fazendo

dele algo mais ou menos “artificial” e portanto, questionável. Não deixa no entanto de ser

autobiografia.

Georges Perec não se dispõe - menos ainda em Um homem que dorme - a elaborar uma

narrativa autobiográfica em sentido estrito, mas seu texto é pura autobiografia reinventada.

Phillipe Lejeune (1991) diz que, se o gênero autobiográfico não é central em Perec, Perec é

central no gênero autobiográfico; é em W ou le souvenir d’enfance (1975) que esta proposta se

mostra mais evidente (a começar pelo título: souvenir). O livro teria sido desenvolvido a partir do

projeto de escrita de L’arbre - narrativa de reconstituição da árvore genealógica de Perec:


77

C’est la description, la plus précise, de l’arbre génélogique de mes familles


paternelle, maternelle et adoptive(s). Comme son nom l’indique, c’est un livre
en arbre, à developpement non linéaire, un peu conçu comme les manuels
d’enseinegmenets programmé, difficile à lire à la suite, mais au travers duquel
il sera posible de retrouver [...] plusieurs histories se recoupant sans cesse
(PEREC apud LEJEUNE, 1991, p. 20).

Para Philippe Lejeune, é possível que a idéia de uma “fiction flamboyante” tenha sido a

transformação de L’arbre em W, ou seja, a criativa escrita não-linear incitou a possibilidade de

elaboração de outro romance não menos inovador, no qual Perec mistura autobiografia e ficção (o

crítico francês aponta inclusive para esta como a grande descoberta de Perec). No entanto,

ressaltamos que processo parecido já havia sido realizado por outros autores como James Joyce e

Virgina Woolf. Ambos se organizaram em torno de um sentimento de decadência que se seguiu à

Belle Époque e participaram daquele momento histórico, instaurando discussões sobre a própria

Arte.

Tanto em A portrait of an artist as a Young man, de Joyce (1998), quanto em To the

Lighthouse, de Woolf (1982), podemos perceber que essa discussão toma conta do enredo; nos

dois textos, os protagonistas são artistas e se envolvem com a representação de suas próprias

emoções. A existência de tais personagens possibilita uma situação narrativa particular na qual

podemos vislumbrar uma reflexão sobre a ligação entre o escritor e seu personagem e entre vida e

arte.

Virginia Woolf inovou, com seu stream of consciouness, o modo de falar sobre a vida;

Joyce criou uma linguagem que realmente desenvolveu-se com seus personagens. Mas a despeito

de sua modernidade, as duas narrativas guardam em comum o fato de serem discursos sobre o

passado, memórias, como o é Le souvenir d’enfance. A tentativa de estabelecer alguma ligação

entre passado e presente é - ainda que de forma não declarada, como faz Joyce, embora haja
78

suficiente número de evidências para pensarmos que Stephen Dedalus (o personagem) seja uma

alusão ao autor - um artifício para conhecermos um pouco mais sobre o futuro.

Perec não se prende à temática e à coincidência entre autor e personagem e não parece

preocupar-se em criar um leitor crédulo frente a suas palavras; ao contrário, ao se propor a fazer

um discurso que se denomina autobiográfico, acaba por ser ficcional. A inovação do francês,

contudo, ocorre porque seu texto é uma dupla narrativa de memória: há duas obras traçadas ao

mesmo tempo, uma a respeito de suas memórias de infância e outra de ficção. 26

O enigma está no fato de que os livros, da vida e literário, podem e/ou não ser lidos de

modo independente. Na verdade, este é o grande elemento perecquiano: a dúvida se instaura no

momento em que não nos é possível distinguir qual é a narrativa de ficção e qual é a de memória,

uma vez que elas são, simultaneamente, uma e outra. A questão é que talvez não se possa cair na

tentação de recriar um passado através de nossa memória voluntária, tampouco pela involuntária,

de restituí-lo tal e qual ele aconteceu, mas através da própria arte - como sugerido por Marcel

Proust, em A la recherche du temps perdu (1954).

A narrativa de W, por exemplo, é uma tentativa de reconstituir a infância, mas acima de

tudo, atua como um texto de réquiem. A intenção é principalmente dignar-se a enterrar a mãe,

morta no campo de Auschwitz. Mesmo Um homem que dorme é metáfora desse luto,

compreendido pela psicanálise como uma tentativa de recondução ao estado anorgânico, no qual

o ser volta-se para o interior e pode tender à autodestruição, enquanto voltar-se para o exterior

pode transformar-se em atos de agressão. A pulsão de morte é intensa – embora nem mesmo ela

resista à indiferença de você – e corrobora a idéia de que o ser não-vivo antecede ao ser vivo e, se
26
O laboratório do escritor teoriza a respeito da escrita do conto dizendo que este sempre conta duas histórias: a
história 2 é a que nos é aparente, a história 1, a que permanece encoberta. Assim, todo conto tem, também, um final
surpreendente; o que vemos de fato é o desfecho daquela narrativa que esteve nos interstícios. W parece tomar para si
esse modo de relatar pertinente ao conto sem, no entanto, escamotear as histórias. Seu final, no entanto, não é menos
admirável.
79

a libido encontra essa pulsão, pode ser o momento de voltar-se para o exterior, percurso este

seguido pelo narrador.

Ao homem pós-moderno, cabe reconhecer sua própria trajetória, analisar os caminhos

percorridos e, percorrendo-os, reconhecer-se. Ao verdadeiro homem pós-moderno - inumano não

somente porque automatizado, feito boneco e degenerado de seus valores morais, mas também

potencializado por aquilo que a condição pós-moderna lhe oferece - a esse, sim, cabe partir em

busca desse nada significativo, entregar-se ao niilismo que permite a compreensão do eu.

Ao homem, ainda que inumano, resta, ao menos, a chance de usufruir de seu pecado

original, continuar a desobedecer ao que lhe é imposto e evoluir. A arte, essa peça inútil - na

irônica concepção de Oscar Wilde (1980) - talvez seja a única capaz de nos manter distantes. É

esse o traço cultural que irá nos assegurar, não a soberania sobre os demais seres - longe de

atitude de extremo antropocentrismo - mas a garantia de que não sejamos artificiais ante as

nossas máquinas.

Não é estranho, portanto, identificar por que os personagens de Joyce, Woolf e Perec

“sobrevivem” ao final de seus textos. Talvez eles sejam de fato capazes, através de suas

epifanias, de perceber o real significado da vida e da existência, pois possuem o único elemento

apto a realmente recriar o passado e fazer da vida algo menos efêmero: a arte. A questão talvez

pudesse ser como decidir se um texto é autobiográfico no sentido estrito; como definir onde

começa a arte e termina a vida ou se, afinal, arte imita vida ou vida imita arte. Ocuparíamos no

entanto de encontrar resposta alguma; a arte pode ser simplesmente entendida como um raro

caminho capaz de nos fazer apreender a respeito da vida e vice-versa. No caso de Perec, de forma

ainda mais latente, é a arte quem preenche as lacunas de sua existência e suscita uma

possibilidade de mitigar sua orfandade, de reconstruir o “eu” tão fragmentado, desde os cruéis

acontecimentos de sua infância. Suspeitamos, no entanto, que, em Perec, essa busca seja em vão.
80

4.1.1- O Jogo: o laboratório dos textos e suas influências

Alguns textos são montados a partir de estruturas pré-fixadas, como os elaborados pelos

surrealistas e dadaístas. Do mesmo modo, criado em 1960, na França - pelo escritor Raymond

Queaneau e pelo matemático François Lionnais - o Oulipo (Ouvroir de Littérature Pontentielle)

formado por um grupo de matemáticos e escritores, ocupou-se de desenvolver narrativas a partir

de “fórmulas” e “restrições”. Para eles:

Os textos literários não são canais passivos simplesmente. Eles modelam


ativamente o que as tecnologias significam e o que as teorias científicas
expressam nos contextos culturais. Eles também encarnam suposições similares
àquelas que permeiam as teorias científicas nos seus pontos críticos (HAYLES,
1999).

Georges Perec entrou para o grupo em 1966. Os textos por ele construídos tiveram a

intervenção dos outros membros do grupo, uma vez que o Oulipo era uma espécie de laboratório.

Os recursos mais utilizados por Perec foram os palíndromos, os textos em abismo, a reduplicação

e os lipogramas, além do constante uso dos puzzles, cujas pistas de leitura, através de regras

claramente fixadas, são sempre fornecidas pelo escritor.

Na composição de A vida modo de usar (1991), Perec criou 42 listas com 10 elementos

narrativos. Colocou uma lista em cada eixo gerando 21 tabuleiros diferentes, cada casa do

tabuleiro representando um capítulo; então, elaborou um gráfico com o número de páginas que

teria cada capítulo. Pode ser considerado, desse modo, o precursor da arte digital, pois seu texto

segue um diagrama similar àquele dos programas de computador. Além disso, sua narrativa,
81

nessa obra, é uma narrativa em abismo, um “hiper-romance” - para usar um termo de Ítalo

Calvino, também membro do grupo - entendido como “romances”.

A estrutura desse romance múltiplo faz dele um livro-jogo, que pode ser interrelacionado

com seu oposto o jogo-livro, ou melhor, as narrativas criadas a partir do RPG (Role Playing

Game). O mecanismo do RPG é muito similar àquele que move as seitas; na definição irretocável

de Olavo de Carvalho (1986), seita é o culto sem religião. Todas as grandes tradições religiosas

originam-se de uma revelação,

[...] o meio pelo qual a Verdade total, universal e definitiva se manifesta e se


evidencia aos homens. [...] Em seguida, a verdade revelada recobre-se de formas
(lingüísticas, artísticas, religiosas, etc.), que constituem então como que um
cofre ou um estojo lavrado em ouro, onde aquele instante privilegiado [o do
desvelar da Verdade, a revelação] será conservado, por assim dizer, ‘fora do
tempo’. O nome deste cofre é ‘religião’ (CARVALHO, 1986, p. 67).

Vivemos numa época em que, como vimos, não há lugar para a tragédia; os praticantes do

RPG não passam, no fundo, de uma caricatura do tipo de artista e de arte (seja ela narrativa ou

não) que a nossa era enseja; como tal, os traços exagerados tornam mais evidente uma verdade

mais sutil e mais diáfana nos seus pares das artes mais “elevadas” (romancistas, dramaturgos,

artistas plásticos, etc.). Abandonada a tragédia, a “utilidade” da arte que as civilizações

tradicionais e os filósofos gregos tinham por pressuposto (não a utilidade no sentido que damos a

essa palavra ao falar da serventia da “arte aplicada”, mas uma utilidade no atender

simultaneamente às exigências do corpo e da alma do homem), restam aos jogadores - não

somente aos de RPG - apenas as convenções.

Voltando à descrição de seita:


82

[...] é a atitude subjetiva de obediência e devoção (viabilizada por uma estrutura


de poderio ou influência social), sem a contrapartida objetiva de uma revelação
cristalizada num corpo de cultura sacra. É um corpo feito de gordura e pele, sem
vida nem sangue. [...] O culto, não tendo objeto real onde se polarizar, se fecha
em si mesmo, enrosca-se num labirinto autolátrico, e se dirige enfim à estrutura
mesma de poder que o sustenta, ou àqueles que nela ocupam os mais altos
postos hierárquicos. [...] Este poderio pode cristalizar-se simbolicamente na
pessoa de um ‘mestre’ ou projetar-se impessoalmente na organização como um
todo. O ponto essencial é que o objeto de culto não transcende jamais as
estruturas da própria organização (CARVALHO, 1986, p. 67).

Daí já é possível, por um lado, intuir o papel do “mestre” nos RPGs, e, por outro,

compreender as polêmicas que ocasionalmente cercam o assunto, com as partes querelantes

divididas em apaixonadamente contra e apaixonadamente pró-RPG. No vazio espiritual do

mundo moderno, que deu ocasião a formas de culto similares, embora infinitamente mais

perigosas, como o totalitarismo nazista, e onde a arte adquiriu, como lembra Ananda

Coomaraswamy, o caráter de mera superstição, é apenas normal que o homem, perdido, se

refugie no ludismo puro e simples.

Foi justamente a inépcia do homem moderno, no lidar com o símbolo, que deu ocasião

para o surgimento de tantas ciências modernas, tal como a semiologia; quem queira articular as

referências do RPG com a tradição oral e fenômenos como os contos de fada (ambas as

referências encontram-se em Tolkien, o inspirador dos jogos, e ele, diferente dos autores de RPG

e dos estudiosos acadêmicos que se incumbiram de tratar o assunto, estava bem equipado para

isso) não pode fiar-se apenas nos misteres e cacoetes metodológicos da academia, sob pena de,

como advertia já Julius Evola aos que tentassem compreender o significado dos Ciclos do Santo

Graal, cair já no preconceito literário, já no etnológico, quando

[...] a ambos os métodos de consideração escapa completamente a essência do


Graal. O Graal nada tem a ver com as divagações místicas de uns, nem
tampouco com as anatomias eruditas de outros. O Graal tem um conteúdo vivo,
um ‘mistério’ que ainda em nossos dias pode ser considerado amplamente
desconhecido. Somente do ponto de vista de uma disciplina que saiba colher a
83

realidade daquilo que se oculta por trás de símbolos e mitos primordiais e, em


seguida, do de uma metafísica da história, ele pode ser colhido de acordo com
seu significado mais verdadeiro e profundo (EVOLA, s/d, p. 67).

O livro de Perec contou ainda com grande procedimento de interatividade: como teve seu

processo de feitura publicado, o autor permitiu que os leitores entrassem também na criação, o

que o aproximou ainda mais dos métodos atuais de escrita via rede virtual: “se as características

de uma determinada tecnologia existiam antes do seu surgimento material, então elas não são

características dessa tecnologia, mas de um ambiente cultural que os criou”. 27

A proposta de Perec era transitar por todas as hipóteses de texto e fazer da escrita esse

Graal, um mistério a ser explorado.

4.1.2-Perec e o Judaísmo

Condenado a alguma errância, ainda que cidadão parisiense, Perec promove seu exílio; ele

mesmo tem dificuldade em se encontrar e se coloca como que na periferia parisiense, a banlieue.

Desse modo, a figura do judeu errante é uma referência constante.

Os judeus não constituem propriamente uma raça, disseminam-se entre os russos, eslavos,

americanos. Também não possuem um território; são, na verdade, unidos por sua cultura e

religião, isso sim seus verdadeiros traços de identidade. Eles acreditam que todos os seres

humanos foram criados com capacidade de fazer o bem e o mal, e julgam que a inclinação para o

bem (Yetzer ha-tow) pode suplantar a inclinação para o mal (Yetzer ha-ra).

27
Disponível em: www.cidade.usp.br/educar 2002/mod11arq/oulipo.ppt
84

A árvore da vida consiste em dez sefirot sagrados, os quais são dispostos em um padrão e

unidos por linhas, “os atributos de Deus que emanam de um centro infinito em direção a todas as

circunferências finitas possíveis” (BLOOM, 1991, p. 35). A árvore, do mundo está ligada a

diferentes pontos de vista, quer de princípio, quer de manifestação, que, na verdade, se

complementam. Uma representação bastante comum é o da árvore invertida, estando suas raízes

voltadas para cima, ou das árvores sobrepostas, ou ainda daquela cujas raízes crescem para baixo.

Ela pode representar o macro ou o microcosmos, sendo, nesse último caso, o próprio homem -

vale lembrar mais uma vez a narrativa de W, inspirada no projeto do “livro-árvore”.

Segundo a tradição judaica, os hebreus possuem três escrituras: o Velho Testamento, o

Talmud e a Kabala. O primeiro representa o corpo da tradição, o segundo sua alma racional e o

terceiro o espírito imortal; tal como na tradição islâmica, somente os sábios são capazes de

meditar a Kabala.

A propósito da meditação, em O Golem (MEYRINK, s/d), diz-se que tarot significa o

mesmo que a palavra Torá, ou seja, a Lei, ambas derivadas de torisk, “eu exijo uma resposta”.

Mas é preciso, aos sábios, interpretar o tarot e a figura do “louco”. A carta do “louco”

corresponde à do curinga e é representado por um homem similar ao bufão, que, desprendido de

tudo, segura sua trouxa em uma vara e espera para iniciar sua viagem, embora desconheça que
28
caminho seguir. Ele é o homem que não sabe muito bem de onde vem, para onde vai ou por

que; é “[...] a primeira figura do jogo, assim, o Homem é a primeira figura em seu próprio livro

de imagens, seu segundo eu...” (MEYRINK, s/d, p. 101). A carta mostra a dificuldade do ser de

encontrar-se com seu próprio eu e retornar ileso dessa empreitada - raros são os homens que não

se tornam insanos. O “louco” é a carta zero ou vinte e dois, por isso mesmo é o contraditório, a

28
O tarot metaforiza uma viagem que se inicia com a carta do “louco” e vai até a carta do “mundo”, retornando ao
“louco”, fechando, então, o ciclo, à espera de uma nova busca introspectiva.
85

carta do Homem, mas também do duplo: o rei e o mendigo, o sábio e o ignorante, aquele que

anda por toda parte, mas nada retém.

O narrador d’O Golem (s/d) termina citando as antigas avós que diziam: “ele [o Golem]

mora bem no alto, acima da terra, num quarto sem portas e com uma única janela de onde é

impossível comunicar-se com os homens. Aquele que souber dominá-lo e instruí-lo ficará em paz

consigo mesmo” (MEYRINK, s/d, p. 101); daí, mais uma razão para se entender que naquele

momento em que se encarcera em seu quarto, em seu mundo, o Homem que dorme é um Golem e

a única forma de sair indene é dominar a si mesmo, às suas intensidades, às suas pulsões de vida

e de morte.

O narrador-personagem do livro de Meyrink, Mestre Pernath, no capítulo intitulado

“Medo”, vê-se diante de homens possivelmente imaginários, que lhe oferecem grãos, e mais uma

vez o sentimento de impotência o invade e ele consegue reconhecer que a vida de milhares de

homens não pesa mais do que uma pena. Ele, então, necessita escolher entre pegar os grãos ou

simplesmente ignorá-los; descobre uma terceira alternativa: derrubá-los no chão, permitindo que

os grãos, até ali guardados pelos antepassados, agora abrolhem.

A abertura dos grãos é a mesma vivida tanto por Pernath, quanto por você, aquela que

possibilita o autoconhecimento. Por isso, quando o lendário Ali Babá, diante da gruta, ordena:

“Abre-te, sésamo!” essa é a senha de acesso ao reino do imaginário, àquilo que está distante do

homem (aqui entendido como aquele pertencente à raça humana, ao homem comum). Está para

além-do-humano, não para o homem automatizado pelos subsídios do mundo pós-moderno, mas

para os que se permitiram, como o “louco” do tarot, partir em busca de si, sem se perder nesse

bravo caminho.

Segundo o Zohar (comentário rabínico dos textos sagrados da Torá), Eva não é a primeira

mulher de Adão; quando Deus o criou, Ele fê-lo macho e fêmea, depois o cortou ao meio,
86

chamou a esta nova metade Lilith e deu-a em casamento a Adão. Mas Lilith, não querendo se

tornar submissa a Adão, fugiu e foi para perto dos demônios, onde procriou em abundância,

ajudando a disseminar o mal. Deus, aproveitando-se do sono profundo de seu primeiro homem,

tirou dele uma costela e criou Eva, uma mulher doce e obediente.

A Inquisição, principalmente, passou a considerar verdadeira somente a figura de Eva,

como a primeira mulher, e não Lilith, que vive somente nos textos apócrifos, sendo esta última

colocada no espaço reservado às chamadas “minorias” - as quais permaneceram por tanto tempo

recalcadas - ajudando a manter a situação de desequilíbrio em que vive o mundo hoje. No

cabalístico livro de Meyrink (s/d), a solução para se alcançar a verdade está em compreender a

chave: o hermafrodita; uma figura enigmática que simboliza o comedimento entre o masculino e

o feminino.

A cultura judaico-cristã cuidou, portanto, de amalgamar conceitos conforme sua

conveniência, contribuindo com o aprisionamento das apreciações - como o feminino - opostas

àquelas que a ela interessava. Acontece que todos esses elementos que, por razões distintas,

foram recalcados, parecem, nesse espaço pós-moderno, querer retornar. O problema, então, se dá

quando o retorno daquilo que Maffesoli (2004) denominou “a parte que cabe ao diabo” vem de

um modo bastante violento e nos surpreende ainda despreparados para vivenciá-los.

Adão, que até então não era exatamente um ser humano, mas uma figura espiritual, ao ser

expulso do Paraíso, levou consigo todas as outras almas que nele residiam, já que ele seria o

responsável por povoar o mundo. Ele possibilitou, então, que tomássemos consciência de nossos

pecados. O corpo dele foi fragmentado em milhares de centelhas que descem dos céus a todo

instante. Se Adão é o primeiro homem, é também o primeiro a esfacelar-se, o que pode fazer dele

o primeiro “pós-moderno”, ou do homem pós-moderno, quem sabe, apenas um proveniente de

Adão.
87

Após o assassinato de Abel por Caim, segundo o Talmud, Adão e Eva estiveram

separados por mais de um século, tempo durante o qual Adão procriou com outros seres, que não

Eva. Afirma-se que esses filhos eram de fato crianças; faltava-lhes, no entanto, a neshamá, (a

alma), para se tornarem seres humanos. Com base no Zohar, elas são descritas como seres

humanos em forma e inteligência, mas nada humanos em espiritualidade.

Para a Cabala, a “alma-raiz” é aquela que, derivada de Adão após sua expulsão do

Paraíso, é representada por Caim (o lado esquerdo de Adão) e Abel (o lado direito), e dela se

originarão todas as outras almas do mundo. A alma-raiz que cada ente carrega advém de uma ou

de outra metade, podendo possuir aspectos positivos ou negativos; ressalvamos, no entanto, que

não há necessariamente correlação entre a carga da alma (positiva ou negativa) e sua origem (em

Abel ou em Caim), cabendo a cada um de nós a livre escolha. 29

É preciso que o homem esteja apto a compreender um mundo em que as dualidades

estiveram ausentes por muito tempo. A pós-modernidade tem sido, portanto, a responsável pela

abertura dessa caixa de Pandora.

4.1.3- A Escrita simbólica em W

Perec declara no início de W “Je n’ai pas de souvenir d’enfance”, e diz fazer essa afirmação

com segurança e desafio, ao mesmo tempo em que se contradiz ao fazer exatamente recordar suas

memórias.

29
“Ah race d’Abel, ta charogne/Engrassera le sol fumant!// Race de Caïn, ta besogne/ N’ Est pas fait
suffisamment;// Race d’Abel, voici ta honte:/ le fer est vaincu par l’épieu!// Race de Caïn, au ciel monte/ Et sur la
terre jette Dieu” (BAUDELAIRE, Les fleurs du mal, 1857). Nesses versos, Baudelaire faz alusão à história bíblica,
mostrando como Caim e seus descendentes são condenados à perpétua errância.
88

Na primeira parte, capítulo X, ele constrói, a partir de duas fotos, textos com títulos curtos -

“O êxodo” e “A partida” - e temas como fragmentos que se unem em sua recordação. Três

lembranças lhe assaltam ao falar da escola: o porão, o desenho de um urso e uma medalha (tão

logo dada, tão logo arrancada pela professora). Esta, a que “permanece gravada em meu corpo de

forma tão intensa que me pergunto se essa lembrança não encobre, na verdade, seu exato

contrário: não a lembrança de uma medalha arrancada, mas a de uma estrela pregada com

alfinete” (PEREC, 1995, p. 68). Aqui, assinalamos um relato encobridor: a carga de ser laureado

pode ter sido maior do que a de estar simplesmente à margem. Também não podemos deixar de

pensar na estrela de David, como se, ao ser fincada no peito, tivesse ele se autocondenado; ao

assumir o seu judaísmo, colocasse a si mesmo sob a insígnia da perseguição, fadado a ser

diferente.

O narrador diz também que ao redigir essas três recordações uma outra lhe vem à tona: a das

toalhinhas de papel feitas ao se dispor tiras estreitas de papelão:

Foi praticamente ao redigir essas três lembranças que uma quarta me veio: a das
toalhinhas de papel que fazíamos na escola: dispúnhamos paralelamente tiras
estreitas de papelão fino coloridas de diversas cores e as cruzávamos com tiras
idênticas, passando uma vez por cima, uma vez por baixo. Lembro que esse
exercício me encantou, que depressa entendi seu princípio e que o fazia com
perfeição (PEREC, 1995, p. 68).

Não duvidamos, em momento algum, de que o exercício de fabricação das toalhinhas, e o

fato de saber que “o fazia com perfeição”, tenha tido seu princípio tão aplicado na tessitura de

seus escritos. Os urdimentos e as tramas, em um tecido, são entrelaçados tal e qual na construção

de W. Se anteriormente dissemos ser o texto dividido em duas narrativas, ratificamos, na verdade,

tratar-se de um texto múltiplo, como mostra Burgelin (1988): a infância de antes da separação da

mãe; a infância após a separação; a história de Gaspard Winckler e a narração da ilha.


89

Ainda na primeira parte, a passagem, nomeada “A partida” em que a mãe o leva à estação

ferroviária de Lyon para o embarque na Cruz Vermelha, dando-lhe uma revista em cuja capa

havia uma fotografia de Carlitos com um suspensório e um pára-quedas nele preso, suscita, como

nos explica o narrador, a idéia de “coisas relacionadas à sustentação, quase prótese. Para existir é

preciso suporte”. Quando, mais tarde, de fato ele pode dar um salto como pára-quedista, ele

completa: “fui precipitado no vazio; todos os fios se romperam; caí sozinho e sem sustentação”,

como se não ser boneco, não estar atado, fosse pior do que ser livre, significasse não ter um

destino como dos homens comuns, não poder caminhar como um homem comum, ainda que ele

possa desconfiar que isso represente ser um homem-máquina.

A escrita em Perec terá, portanto, a função de fixá-lo, de fazê-lo atado, servirá como

elemento compensador para os cabos até então desprendidos: “Cela parce que les signes peuvent

tout dire, et tout dire em même temps: la vie et la mort, l’oppression et la libération, la perte et la

retrouvaille. Ils peuvent représenter l’irreprésentable sans pourtant le représenter, dire le non-

dit sans pourtant le dire” (BURGELIN, 1988, p. 8).

Em W, Perec deduz que seu sobrenome poderia ter vindo de Peretz, do hebraico “buraco”.

A etimologia seria no mínimo banal não fosse o fato de associarmos sua significação ao vazio, a

uma ausência temática que permeia não só a obra de Georges Perec, como sua própria vida.

Busca compensar o fato de que “por muito tempo tentei afastar ou mascarar as evidências,

encerrando-me na condição inofensiva do órfão, do não gerado, do filho de ninguém” (PEREC,

1995, p. 20), uma condição de homem-monstro.

Assim, a metáfora da ilha torna-se uma constante. A recorrência da temática em Perec

denota, não só a influência de suas leituras, Verne, Defoe, Melville, mas da similaridade do

próprio autor com a ilha. É interessante notar que seu conceito não é, como se define usualmente,

no saber popular “uma porção de terra cercada de água por todos os lados”. Trata-se de um
90

pedaço de terra imerso, cuja base, embora se saiba de sua existência encontra-se escondida;

bastante parecido, portanto, com o passado de Perec, sua trajetória de vida, em que algo parece

faltar, estar sempre ausente. O que se situa acima do nível das águas não é de todo visível ou

identificável, apenas está lá, tentando não submergir; dificilmente o topo verá a base e vice-versa;

porém, nem sempre é fácil assinalar qual a parte a que realmente se conhece.

Nas línguas semíticas, há uma importância muito grande na relação entre os números e as

letras, como se cada uma fosse uma cifra. Tanto em árabe quanto em hebraico, o alfabeto e os

algarismos surgem juntos e se correlacionam, havendo para cada letra um número

correspondente. Se o alif representa a origem, pois a partir dele se formam todas as outras letras,

a letra w é uma sorte de síntese do alfabeto, representada pelo 6, o número do “homem perfeito”

(1+2+3). A unidade, por sua vez, não simboliza um corpo ( • ), nem mesmo quando se têm dois

pólos (  ), é só a partir dos três pontos que se obtém uma forma ( Δ ) e, por conseguinte, um

conteúdo. Os seis traços (duas vezes os três pontos) que compõem o w também formam a marca

da suástica e, antagonicamente, a estrela de David.

Burgelin acredita que no caso de Perec “Les lettres-signes vont lui permettre de sortir du

statut passif d’orphelin-victime pour devenir artisan de sa vie (écrivan) et constructeur de vies

(romancier)” (BURGELIN, 1988, p. 10). Ele compara sua escrita com a de um agricultor. Ela

possui quatro distintos campos: o sociológico (em sua visão sobre o cotidiano), o autobiográfico,

o lúdico e o romanesco. Contudo, o funcionamento pleno só se dá à proporção que tais áreas são

entendidas de forma entrelaçada, o que remete mais uma vez à idéia da escrita como tecido, como

elaboração metódica.

Na verdade, o projeto de compor sua história é concomitante ao projeto de escrita do

romance, como ele mesmo afirma em W, embora, seja, também, nessa obra que ele assegure não
91

ter memória: “Uma vez mais, as armadilhas da escrita se instalaram. Uma vez mais, fui como

uma criança que brinca de esconde-esconde e não sabe o que mais teme ou deseja: permanecer

escondida, ser descoberta” (PEREC, 1995, p. 14).

Todas as lembranças estão, de algum modo, ligadas ao genocídio dos judeus. De fato, é

curioso o modo como Perec, ainda que ele pouco possa relatar de sua própria história, como uma

espécie de testemunha surda, consegue fazer de W uma autobiografia. Ele é o garoto Gaspard

Winckler, desaparecido no naufrágio do Sylvandre e que, surdo-mudo, precisa falar. Seu sumiço

não é morte, mas nascimento de uma narrativa duplamente monstruosa: por um lado a do

Holocausto (disfarçada sob a égide de um Estado-Esporte) e por outro, a de Perec lui-même.

C’est la façon même dont on peut concevoir le préfixe auto d’autobiographie


qu’ il a essayé de modifier. Ses textes vont proposer une démultiplication
foisonnante du ‘je’, qui pourtant n’est ni une dispersion ni une métamorphose
(je n’est pas un autre). Les miroirs qu’il explore sont des miroirs brisés, offrant
des réfractions obliques qui permettent à toutes ces virtualités d’exister
(BURGELIN, 1988, p. 20).

Em todos os casos, Perec pode sempre ser uma boa referência a seus personagens, seja nas

histórias de errância ou nas de reclusão. Ele é um puzzle formado pelo fragmento de cada um de

seus personagens:

Je sens confusément que les livres que j’ai écrits s’inscrivent, prennent leur sens
dans une image globale que je me fais de la littérature, mais il me semble que je
ne purrai jamais saisir précisément cette image, qu’elle est pour moi un au-delà
de l’écriture, un ‘pourquoi j’écris’ auquel je ne peux répondre qu’en écrivant,
différant sans cesse l’instant même où, cessant d’écrire, cette image deviendrait
visible, comme un puzzle inexorablement achevé (PEREC, 1985, p. 9).

Por trás do prazer do jogo, esconde-se a obsessão por descobrir sua verdadeira face, e é a

partir desse acúmulo de textos que surge a autobiografia, como numa espécie de palimpsexto. A

vida de Perec é um de seus palíndromos, mas onde encontrar a extremidade?


92

4.2-O Dúplice

A figura do duplo sempre foi uma constante nos textos literários, quer sob a égide dos

gêmeos, quer sob algum aspecto mais maravilhoso ou fantástico, estando marcada por um

desdobramento de diferentes ordens, que possibilitam mesmo um devir-animal, monstro ou

máquina. Esse devir é, em qualquer situação, um devir-outro, tema a que recorrem Perec, Kafka

ou Stevenson.

Em O médico e o monstro (s/d), Robert Stevenson narra a dupla natureza do homem, bom

e mau, evidenciada pela poção que faz com que o Dr. Jekill seja tomado por sua metade

animalesca e monstruosa, fazendo-o perder o controle sobre si mesmo; “eles” passam a lutar

pelos mesmos ideais de sobrevivência, com igual ódio, e compartilham também a idéia de morte:

Não é como o homem se sentiria no lugar do animal, mas sim de que forma
ocorre a travessia inevitável pelo devir-animal. A radicalidade dessa experiência
está no estranhamento de si mesmo que acontece de maneira não calculada. [...]
Ainda quando existe o cálculo, o devir-animal do homem, ou o devir-homem do
animal, se dá por um encontro totalmente inesperado, através do pensar sentir
(NASCIMENTO, 2000, p. 47).

Na Metamorfose, de Franz Kafka (s/d), a duplicação acontece à medida que Gregor se

transforma, tornando-se uma espécie de parasita. A explicação de Célia Magalhães é a de que o

parasita é aquele que “come e é comido, contendo, portanto, dentro de si, a fenda que o divide em

hospedeiro e hóspede, ‘hóspede no sentido duplo de presença amigável e invasor estranho’”

(2003, p. 50), ou seja, o rapaz se faz estranho e familiar até ser arrastado por uma vassoura,

meramente resumido a nada.


93

Em Um homem que dorme (1988), não há um devir-monstro ou animal, mas o

desdobramento do ego em alter ego, o que, na verdade, podemos considerar como mote das três

obras mencionadas. Não se trata, portanto da hipótese de teratologia explícita, e sim de considerar

esse fenômeno na ordem do psicológico ou da investigação filosófica, acima de tudo. Na obra de

Perec, o duplo é alusão ao judaico uma vez que “para os judeus, pelo contrário, a aparição do

duplo não era presságio de morte próxima. Era a certeza de haver alcançado o estado profético.

Assim o explica Gershom Scholem. Uma lenda recolhida pelo Talmude narra o caso de um

homem em busca de Deus, que se encontrou consigo mesmo”, conforme Borges, em O livro dos

seres Imaginários, e termina dizendo a respeito da poesia de Yeats, “o duplo é nosso anverso,

nosso contrário, o que nos complementa, o que não somos nem seremos” (BORGES, 1985, p.

153).

Já a respeito dos animais dos espelhos, que devem ser entendidos como derivações, outro

tipo de duplo, Borges afirma que o mundo dos homens e dos espelhos era comunicável, até que a

gente do espelho invadiu a Terra; os invasores foram encerrados do outro lado por um legendário

Imperador Amarelo: “encarcerou-os no espelho e lhes impôs a tarefa de repetir, como numa

espécie de sonho, todos os atos dos homens. Privou-os de sua força e de sua figura e reduziu-os a

meros reflexos servis. Um dia, entretanto, livrar-se-ão dessa mágica letargia” (BORGES, 1985, p.

7). Não é por outra razão que o espelho tem significação crucial na obra perecquiana a ser aqui

analisada.

Uma das mais belas referências em relação ao conceito especular está no texto d’ O

Golem, em que Perec parece ter se calcado ao escrever seu homem em permanente estado de

vigília: “Um espelho de prata - se ele tivesse a capacidade de sentir alguma coisa - sofreria

somente na hora do polimento. Mas depois de ficar liso e brilhante, ele reflete todas as imagens
94

sem sentir dor e nem emoção. [...] Feliz do homem que pode dizer eu fui polido” (MEYRINK,

s/d, p. 66).

O efeito da duplicação, seja por meio de reflexos ou de qualquer outro tipo de reprodução,

nos faz elucubrar a respeito de o duplo ser um “outro” e não o “mesmo”. Michel Maffesoli

(2004) acredita que aquilo que é considerado indivisível, o indivíduo, é, antes de tudo,

fragmentado. Isso gera uma constante tensão entre o que se é e o que se gostaria de ser, é essa

dificuldade que não permite ao ser entender-se nessa rigidez social. A função do duplo seria,

então, a de apontar a existência de “dobras” no homem, fazendo delas suas ambivalências e

verdades.

4.2.1- Os Pés inchados do homem que dorme

Uma leitura de Um homem que dorme também pode ser feita em analogia ao clássico

Édipo Rei. A tragédia criada por Sófocles narra a dolorosa trajetória do rei Édipo, que busca o

assassino de seu antecessor, Laios, na tentativa de salvar seu reino das desgraças que o assolam.

Aos poucos, ele começa a tomar conhecimento dos fatos e profecias que acabariam por condená-

lo. Execrado pelos deuses, descobre que aquele assassinado na encruzilhada era seu pai, e que a

esposa lhe dada em presente pela esfinge era sua própria mãe, o que o faz querer ver somente as

trevas. Fez-se noite quando em busca de um melhor destino para o reino (coletivo) encontrou o

seu destino (individual).


95

Na concepção aristotélica, a palavra mimesis significa reprodução, representação ou

recriação. Ela supõe mesmo uma intervenção de um fazer artesanal, que pode mesmo ser

‘criado’. E não seria esta a própria narrativa e a arte de narrar? Como num processo artesanal, o

autor tece fios, passando contas, compondo, e, assim, aos poucos, até aparecer, seu mais belo

desenho: a trama, como o faz o Perec, de W, de Um homem que dorme. E se autor e deuses têm

atitudes semelhantes, é redundante observar que o mesmo poder de criar têm estes sobre os seus

“mortais”.

No entanto, o que temos não é uma história que se limita à simples imitação do real: matar

o pai e desposar a mãe, de uma maneira cruel. Isso não garantiria a grandeza da peça,

fundamental nas análises psicanalíticas, à luz de Freud, e considerada, por Aristóteles, como

modelo de perfeição estética. O destino trágico do qual Édipo não conseguiu fugir não é o que

mantém a história acesa, e sim a forma intrigante como este destino é delineado pelos deuses e o

modo como suas investigações, no intuito de salvar o reino, levam-no a se descobrir.

Parece-nos então, que desde cedo o homem tentava buscar, de forma alucinada, conhecer

seu próprio destino e, de certa forma, ser co-autor deste. É o que acontece com Édipo na tentativa

de um livre arbítrio, embora acabe por não conseguir fugir do que já lhe fora traçado; a peça,

aliás, acaba por delinear a impotência humana mediante esse destino.

A fuga desse destino tão inquisidor e o inquérito do assassinato no caminho de Delfos é o

que leva, em verdade, o personagem a descobrir e a vivenciar o destino a ele fatalmente traçado.

A grande chave da história está em desvendar que o homem tão procurado é ele mesmo, Édipo; o

terrível final dado ao personagem e também à tragédia está em deparar-se consigo. De forma

irônica, aguçada pela incansável curiosidade “edipiana”, revela-se a fraqueza humana, tantas

vezes repetida nas páginas da literatura, desde a criação de Sófocles; razão pela qual o coro, ajuda

a aumentar, assim, os possíveis laços entre Um homem que dorme e Édipo rei, entoando “Ai
96

gerações humanas, como descubro que a vossa vida e o nada são o mesmo!” (SÓFOCLES, s/d, p.

165).

A quebra do processo de mimesis acontece no momento em que a tênue linha que separa a

verdade e a verossimilhança parece querer ceder. Abre-se uma gama de outras possibilidades e

que revelam a Édipo - e a todos os outros mortais - uma cruel identidade, em que se passa de rei a

assassino, quando ego e alter ego se encontram. Por sua vez, o personagem de Perec também

parte em busca de si mesmo. Em sua trajetória pelas ruas de Paris quer ser o homem invisível.

Talvez, contudo, ele não saiba de fato o que precisa encontrar.

No filme noir de Alan Parker, Angel Heart (1986), que envolve mistério, magia-negra e

sangrentos rituais satânicos, o detetive Harry Angel é contratado para encontrar o músico que

sofre de amnésia, Jonhy Favorite. O cliente de Angel é o estranho milionário Louis Cypher

(óbvia representação de Lúcifer):

Todas as religiões estão mescladas no coração do filme, do catolicismo ao


satanismo. Eu tentei exprimir o fato de que nossas vidas são influenciadas pelo
irracional. Todos nós temos uma exigência espiritual, mesmo que às vezes seja
difícil de acreditar. Eu quero convencer o espectador da existência de um outro
grau de consciência enquanto exponho uma situação extremamente realista.
(PARKER apud ESCOBAR, revista Set, p. 22).

Mas quem é o demônio em Um homem que dorme? Talvez seja ele mesmo [você], ou seu

duplo, ou seu inconsciente, ou, quiçá, o mundo. Pouco importa; sua grande questão está prestes a

ser descoberta: ele esteve todo o tempo, como Harry Angel, como Édipo, em busca de si mesmo.

Embora o eu seja nossa primeira referência (a primeira pessoa do discurso), ele não

aparece como singular. Primeiro, pensamos a “nostridade”, o nosso viver com o outro (eu e ele),

o conviver e que abre ao altruísmo, aliás, já próprio do homem: “o sentido do termo homem

implica uma existência recíproca de um para outro; portanto, uma comunidade de homens, uma
97

sociedade” (HUSSERL apud ORTEGA Y GASSET, 1973, p. 140). O outro é meu igual, mas em

condição diferente, uma vez que a vida dele jamais será a mesma que a minha, ela é apenas um

espetáculo, uma realidade presumida.

A vida humana é, segundo Gasset, i) minha, ii) intransferível, iii) consiste em achar-se o

homem sempre obrigado a sucumbir às circunstâncias, iv) a obrigação de sermos livres à força.

Se encontramos vida, seja nossa ou de outro e que não siga tais atributos, não é vida humana,

caracterizando outra classe de existência, mas não humana: “Só é humano aquilo que, ao fazê-lo,

faço porque tem para mim um sentido, isto é, aquilo que entendo. Em toda ação humana há, pois,

um sujeito de quem ele emana, sujeito que, de igual modo, é agente, autor ou responsável por

aquilo” (ORTEGA Y GASSET, 1973, p. 97).

A realidade radical é a realidade primária, o que faz com que a vida do ser humano seja a

de cada um, assim, todas as outras realidades estarão a elas interligadas. À medida que há uma

intimidade, esse outro passa a ser o tu: “Mas agora falta descrever o meu forcejar com o TU, em

choque com o qual faço o mais estupendo e dramático descobrimento: descubro-me a mim como

sendo eu e...nada mais do que eu. Contra o que se poderia crer, a primeira pessoa é a última que

aparece” (ORTEGA Y GASSET, 1973, p. 147).

O ego é aquele que aparece somente após essa longa trajetória. A interpenetração se faz

necessária: dar a nossa vida para receber a do outro. Em Perec, o protagonista é o tu do

desdobramento que faz com que se chegue ao objetivo da busca. É preciso viver sozinho, só

assim somos verdade; somente desse modo deparamo-nos com o eu, esse familiar que nos é cada

vez mais estranho.

Segundo a mitologia, Momo, o filho da Noite, que personifica o sarcasmo, era deus da

zombaria, da crítica e censor dos costumes divinos. Freqüentemente representado levantando a

máscara, isto é, mostrando-se como realmente era. Revelava aos deuses as suas verdades e por
98

isso tornou-se alvo da ira divina, sendo precipitado na terra. Desde então, os deuses levam uma

vida fácil, como se pode ler na Ilíada, pois não são mais censurados.

Reza a crença popular que o “Jogo da Mascarada” é feito de um tirar e retirar de máscaras

estranhas e quase caricaturais, e quando se chega ao rosto, parece ser este o mais bizarro e

enigmático de todos os disfarces.

4.3- Um Homem que dorme

Em Um homem que dorme, temos você, ou tu, como protagonista da história: o romance é

uma narrativa em segunda pessoa, semelhante àquela elaborada por Butor em La Modication

(1957), daí o tom "vocativo", digamos, próprio da comunicação interpessoal, e também dos

imperativos transcendentais do homem; “Enfin, tu es en principe le pronom de’alterité. Ici, il est

plutôt celui du dédublement. De fait, qui parle - et à qui?” (BURGELIN, 1988, p. 59).

No Corão, tanto quanto na Torá, por exemplo, há a marca do bi, da dualidade (opondo-se

ao alif, símbolo do infinito), que sugere simultaneamente a letra “B” - ba, em árabe, ou bêt, para

o alfabeto hebraico - e o número “2”, uma analogia ao binário Deus/homem. Há, no entanto, não

a alternância, mas a concomitância de tais funções: se Deus fala ao homem, o homem também

fala a Ele, configurando, portanto, algo de humano em Deus e de divino no homem.

Assim, se, de algum modo, as duas figuras coincidem é porque o homem é,

simultaneamente, emissor e receptor, o que, para o Islamismo, tanto quanto para outras crenças
99

orientais, justifica-se na necessidade de entoar a fatiha 30 em voz alta de modo que essa ecoe por

todo o corpo. Nessa mesma medida, em Um homem que dorme, você é a espécie de mantra que

ressoa até esvaziar-se de tanto se repetir ou que, ainda mais pleno de sentido, traz à tona o seu

objetivo: o eu.

O homem no sonho tem mesmo algo da onisciência de Deus no mundo, cada despertar

correspondendo a um pequeno apocalipse, válido até a próxima noite de sono, quando a Criação

se dará mais uma vez. A discrepância entre a onisciência do homem no sonho e o homem da

vigília, inerte, a princípio, ante aos influxos do mundo pós-moderno, é o mote do romance.

Este é o delírio prometeico dos que se encerram no mundo dos sonhos, e isto vale talvez

mais ainda para os que sonham acordados, onde a prisão dourada é a dos próprios signos. Perec

percebeu acuradamente a semelhança de um estado de espírito tal como o do sonho propriamente

durante o sono: este é o homem que dorme.

Dorme para si. Dizíamos anteriormente como a narrativa em segunda pessoa tipificava o

discurso dos preceitos, dos comandos, da linguagem, em suma, de Deus falando ao homem. A

noção de "arte pela arte", essencialmente moderna, inédita (porque inconcebível) no fazer

artístico ocidental até o final da Idade Média, converge necessariamente para a idéia da

inutilidade da arte. A literatura como instrumento de elevação moral ou espiritual, como a queria

um Tolstói, portanto, parece não fazer sentido para a mentalidade moderna e pós-moderna.

No entanto, a idéia de que aquele que deseja salvar sua alma deve primeiro perdê-la não é

diferente da lição dada a você no romance de Perec: para acordar para si, o homem deve dormir

para o mundo. O perigo é a tentação de, dormindo para o mundo, dormir também para si e tomar

30
Al-fatiha, cuja definição é “a abertura”, é a primeira sura do Corão; encontra-se na forma de súplica e contém o
significado das Quatro Escrituras (As Escrituras de Moisés, os Salmos de Davi, o Evangelho de Cristo e o Corão).
100

o sonho pelo real. Terá ele resistido a essa tentação ou por ela passado incólume? Constitui-se um

labirinto borgiano.

Édipo, Perseu, Teseu eram heróis a realizar o que lhes era reservado, a literatura grega

consistindo da paráfrase em verso ou drama das aventuras destas personagens, cujo objetivo final

era, vencendo obstáculos, distâncias, ouvindo ou desdenhando oráculos, cumprir um destino. No

entanto, você, o herói de Perec, não tem nada a descobrir, destino algum a cumprir, menos ainda

um sentido da vida a realizar. Esse herói pós-moderno tem como "grande feito" o simplesmente

não fazê-lo, negar-se mesmo a fazê-lo, mas não com muita convicção, caso contrário, o herói e o

autor cairiam em uma contradição análoga àquela que consiste na refutação do ceticismo: o de

que é este a negação de toda a certeza; uma negação, porém, já consiste em uma certeza.

Para Burgelin, Perec é o herói que consegue vencer seu grande obstáculo, a morte

psíquica. Afeiçoa-se ao herói da Odisséia; contudo, sua Penélope é o tempo histórico, seu tempo

pessoal.

Mas “por que subiria até o cume das mais altas colinas, já que em seguida ser-lhe-ia

necessário descer?" (PEREC, 1988, p. 34). Ora, ninguém que suba ao cume de uma colina o faz

com a única intenção de, atingido o auge, retroceder ao sopé. Nosso alpinista hipotético pode

subir a colina e, fincando ou não uma bandeira no topo, descê-la imediatamente depois. Contudo,

ninguém diria que o motivo por que subiu em primeiro lugar foi descer. Prazer, lazer, hybris,

qualquer destes motivos poderia ter-lhe suscitado a vontade de escalar a colina, e não, claro, a de

descer de volta.

Se alguém, descrevendo o itinerário de você, caracterizasse-o como sendo o de um

homem guiado pela indiferença, precipitar-se-ia em uma contradição comparável à da

exeqüibilidade do ceticismo. Um homem, por assim dizer, "guiado pela indiferença" é guiado por

qualquer coisa que calhe guiá-lo, com a cumplicidade da sua indiferença, mas não pela sua
101

própria indiferença: ele pode vagar pelas ruas de Paris, como você, ou ler os livros de Georges

Perec, mas não será sua indiferença que o levará a fazê-lo; ela antes garantirá sua condição inerte,

não oferecendo resistência a uma influência exterior no sentido de fazer uma coisa ou outra.

Você, protagonista do romance, em qualquer de suas personae, está enclausurado em um

universo obscuro, um lugar de movimento caótico e sem sentido, onde os seres, para completar,

não dispõem de vontade própria a não ser para desesperarem-se de todo o sentido que possa

haver em uma existência e um lugar desses.

O autor brinca com uma reminiscência platônica, evocando a passagem talvez mais

conhecida de Platão (a narração a respeito dos habitantes da caverna em A República) quando

você, deitado sobre a tábua dura que lhe faz as vezes de cama, procura por rostos humanos nas

manchas da parede do seu quarto. A interpretação do episódio em Platão que nos dá um escritor

tradicional como Martin Lings (1998) é a de que a caverna - que na paráfrase perecquiana seria,

na nossa visão, o quarto de você - é o nosso mundo, e os prisioneiros são mortais em sua vida

terrena:

Devido à falta de objetividade, causada pela inércia, embotamento e preconceito,


os prisioneiros não podem ver claramente nem mesmo os bonecos [na fábula
platônica, as sombras na parede da caverna são as sombras de bonecos, ou seja,
são meras projeções, ou representações, de objetos que já são, eles mesmos,
representações de homens, imagens de imagens], isto é, as coisas deste mundo;
podem ter apenas uma vaga e obscura imagem deles (LINGS, 1998, p. 77).

E termina citando l Coríntios, 13: 12, “pois agora vemos como em um espelho,

obscuramente, mas depois veremos face a face”. Esta é a prisão em que o niilismo de você o

encerrou.
102

4.3.1-O Homem de Perec e o oxímoro niilista

O momento contemporâneo é aquele (como mostrado no capítulo 2) da ausência de

valores, resultante principalmente do niilismo.

O termo niilismo, posto em destaque a partir dos séculos XVIII e XIX com o idealismo

alemão, ganha resíduos “patológicos” somente na contemporaneidade. Do latim nihil (nada), é o

pensamento obcecado pelo nada, muito embora, em uma concepção heideggeriana, seja

necessário passar pela experiência desse nada para se atingir o real pensar.

Ivan Turgueniev é um dos responsáveis pela popularização do termo e assim nos mostra

uma das definições: “O niilista é o homem que não se curva perante nenhuma autoridade e que

não admite como artigo de fé nenhum princípio, por maior respeito que mereça” (TURGUENIEV

apud VOLPI, 1999, p. 13). Mas é Pascal quem verdadeiramente antecipa a idéia de homem

moderno ao afirmar que “quando falta um sentido, quando o ‘porquê’ não obtém resposta, o

niilismo certamente aparece. Esse hóspede perturbador, conforme a expressão de Nietzsche, já

penetrou furtivamente, em nossa casa. Ninguém poderá mais desalojá-lo” (VOLPI, 1999, p. 16-

17).

De um certo modo, o universo se torna estranho e propicia ao homem o sentimento de

estar só consigo mesmo, como o faz o homem descrito por Perec.

Para os mais conservadores como Juan Donoso Cortes (in VOLPI, 1999), o niilismo pode

também ser um modo de diluir o sagrado. Ele compreendia que o niilismo era uma das formas de

se negar o divino e o humano. Ora, se não existe Deus ou não existe o homem, o que existe é o

nada. Ora, e não seria isso o homem, esse oxímoro, um nada significativo?
103

Se nada existe, eis a impossibilidade: coisa alguma se pode afirmar, como bem o notou

Tragoutt Krug ao declarar que, “em francês, chama-se nihiliste também àquele que na sociedade,

particularmente na burguesa, não tem nenhuma importância (é apenas um número, não tem

nenhum peso, nenhum valor)” (KRUG apud VOLPI, 1999, p. 29-30). Esse é o sentimento do

homem pós-moderno: quando não há generalizações, afinal, para notar-se que nada se vale, é

necessário alto poder de percepção. É como se sente o homem descrito no romance de Georges

Perec: uma ausência, sem peso e sem valor, menor do que os mais insignificantes seres que ele

consegue imaginar. 31

O esvaziar dos valores é implicação do aforismo de Nietzsche: Deus está morto! E, com

ele a Verdade e o Bem. Faz-se perdido o fio de Ariadne, embora o filósofo alemão entenda que o

homem moderno tenha se acostumado a acreditar apenas em um valor de cada vez, para depois

esquecê-lo. É o niilismo que lhe permitirá compreender o valor dos valores. Este é uma espécie

de sombra que ronda a literatura, as religiões, a cultura, o próprio homem e não se trata de tentar

superar tal sombra, ou de esquecê-la, mas de vivenciá-la. O niilismo representa a compreensão do

ser através, primeiramente, de sua anulação. É necessário compreender o nada para se chegar ao

tudo.

Assim, para se falar em niilismo, é preciso pensar na decadência da qual ele não é a causa,

mas a conseqüência; perda dos valores, vontade de poder e eterno retorno. Somente o homem de

Zaratustra pode sobreviver a tudo isso: o além-do-homem (Übermensch), aquele que cria seus

próprios valores e supera o niilismo.

Uma vez que o niilismo já se tornou parte integrante de nossa realidade, a discussão da

questão da existência nos leva a refletir sobre o absurdo do mundo e da sociedade na qual

31
“[...] é tão difícil imaginar o nada! Agora eu sabia: as coisas são inteiramente o que parecem – e por trás delas não
existe nada” (SARTRE, 1983, p. 145).
104

vivemos, em uma espécie de “spleen niilista”, com o qual muitos autores em toda a literatura

ocidental certamente partilham.

Em O homem que dorme, o niilismo vem desse spleen sugerido pelo estranho mundo em

que viver é cultuar nossas solidões. A obra nos revela uma experiência necessária, transcendental,

tal qual aquela vivida por Sidarta, em romance de mesmo nome, do escritor Herman Hesse.

Sidarta perguntou a si mesmo: ‘Mas que desejaste aprender dos teus mestres e
extrair dos teus preceitos? Que será aquilo que eles, que tanto te ensinaram, não
conseguiram propiciar-te?’ E ele encontrou uma resposta: ‘era meu desejo
conhecer o sentido e a essência do eu, para desprender-me dele e para superá-lo.
Porém não pude superá-lo. [...] Realmente nada nesse mundo preocupou-me
tanto quanto esse eu, esse mistério de estar vivo, de ser um indivíduo, de achar-
me separado e isolado de todos os demais (HESSE, 2003, p. 89).

Sidarta (560 a. C.), o Iluminado, personifica o Buda indiano que vivera em um palácio

até os 29 anos e, em um passeio, teria tido quatro visões: a de um velho encurvado, a de um

homem agonizando, a de um cadáver em linho branco e a de um eremita em paz profunda; tais

visões corresponderiam, respectivamente, à doença, à velhice, à morte e à busca da verdade. É

nessa última imagem, a da busca pela verdade, que ele se baseia na sua atitude de renuncia a

todas as riquezas, em um entrave introspectivo que depende de algo que o desperte como a nossa

própria condição nesse mundo que pouco tem a nos oferecer, mas cuja resposta depende de uma

atitude solitária, de um autoconhecimento.

Essa busca está expressa na epígrafe utilizada por Perec, ao tomar para si as palavras de

Meditações sobre o pecado, o sofrimento, a esperança e o verdadeiro caminho, de Franz Kafka:

Não é necessário que você saia de casa. Permaneça e escute. Nem mesmo
escute, espere apenas. Nem mesmo espere, esteja absolutamente silencioso e só.
O mundo virá apresentar-se para que você lhe tire a máscara, ele não pode fazer
de outra forma, extasiado, curvar-se-á diante de você (KAFKA apud PEREC,
1988, p. 7).
105

Se, como nos diz Cioran, “não somos nós a não ser quando, pondo-nos diante de nós

mesmos, não coincidimos com nada, nem sequer com nossa singularidade” (apud VOLPI, 1999,

p. 23) eis o espaço que nos abre à possibilidade de existência do duplo. É preciso que nos

coloquemos diante de nós mesmos para que possamos compreender quem é esse ente dentro do

qual habitamos; Um homem que dorme, segue esse caminho.

Os autores que se filiam à linha de interpretação de Lings, alicerçada nas religiões

comparadas, ressaltam, sem exceção, estar presente em todas as grandes tradições, ou, em todo

caso, em toda tradição autêntica - como a dos índios norte-americanos - a idéia do centro, o

centro do mundo, o local sagrado, na Terra, de onde parte uma reta perpendicular ao chão,

ascendente, em direção ao outro mundo, de realidades espirituais de que as coisas terrenas são

meros símbolos. Este centro, ao mesmo tempo projeção terrestre de realidades celestes e ponto de

partida para a via ascendente, encontra-se mesmo no microcosmo da casa, onde o centro era

tradicionalmente a lareira, a chaminé representando a linha vertical ascendente.

Mas vale ressaltar que a “pós-modernidade” é, por excelência, o “anti-centro”, para onde

estamos trazendo o romance de Perec. Em Um homem que dorme, centro, portanto, se é que ele

existe, é o próprio quarto de você, muito a propósito, já que se trata - você - de alguém encerrado

em seu mundo, um pesadelo, em que seus poderes demiúrgicos, como o de, fornecendo

biografias hipotéticas aos fantasmas que contempla na parede, dar-lhes um simulacro de vida.

Neste episódio, você de fato é um demiurgo satânico - Satanás é a macaqueação de Deus,

diz a sabedoria tradicional - dando vida a massas informes, como o fez Deus no relato da criação.

É significativo que, se neste relato, fomos criados a partir do barro, na paródia perecquiana da

criação passamos das três dimensões deste barro para o que podemos chamar de "imagem plana”

do barro; perdemos a corporalidade do barro, tendo, a nós, restado apenas uma sua projeção no

plano (as manchas na parede). Aí voltamos ao tema da caverna platônica.


106

A possível solução do problema, apresentada por Perec, é tipicamente pós-moderna, e,

portanto, insuficiente: substitui o sonho do individualismo exacerbado e do solipsismo que é sua

conseqüência pela adesão de você à massa dos homens-massa. Trocou um tipo de alienação por

outra: se antes você era o demiurgo de um mundo de manchas na parede, tornou-se, ao longo do

romance, uma destas manchas ele mesmo.

Talvez, por fim, ele não tenha se saído tão mal assim na troca, se nos ativermos à

analogia platônica; se antes ele era um prisioneiro na caverna, adquiriu, no fecho do romance, o

status de boneco, com a relativa liberdade franqueada aos bonecos, que, embora manipulados,

ao menos não estão imobilizados por grilhões. Continua, porém, um boneco.

4.3.2 - Golem: homem de barro, homem que dorme

A lenda do Golem é referida na Gênese bíblica como o modo de criação através de uma

porção de barro vermelho amassado; para dar vida ao Golem é preciso conhecer o “alfabeto de
32
221 portas”, ou seja, as 221 combinações diferentes com tais letras e repeti-las sobre cada

órgão da criatura, a fim de animá-la: “Sobre a testa terá a palavra Emet que significa verdade.

Para destruir a criatura, se apagará a letra inicial, porque assim resulta a palavra met, que quer

dizer morto” (BORGES, 1985, p. 79).

Se de fato o Homem que dorme é análogo ao Golem, estamos diante da criatura já

destruída, morta, que, mesmo possuindo algum resquício de vida, “vegetativa e nula”, está

32
“Deu-se o nome de Golem ao homem criado por combinações de letras; a palavra significa, literalmente, uma
matéria amorfa ou sem vida” (BORGES, 1985, p. 77).
107

psiquicamente extenuada. Após o seu aniquilamento é que se dá o aparecimento da emet; num

processo inverso ao narrado por Borges, a verdade não aparece antes da morte.

O texto de Gustav Meyrink, que ajudou a disseminar o mito do Golem no Ocidente,

começa com o narrador deitado, após ler algumas palavras de Buda Gautama: “Sem estar

acordado e sem estar realmente dormindo, começo a mergulhar numa espécie de sonho, e tudo o

que eu vivi se mistura às coisas que li e ouvi, como se misturam correntezas de cores e

transparências diferentes” (MEYRINK, s/d, p. 11). Uma voz interna o invade, junto a uma

sensação de impotência diante de si mesmo. “Meu corpo está estirado sobre a cama, dormindo, e

meus sentidos não mais estão ligados a ele. É tudo que eu sei.” - o que o impossibilita de

perguntar “quem é agora ‘eu’?” (MEYRINK, s/d, p. 13).

As descrições do narrador prosseguem e suas apresentações dos personagens judaicos são

sempre seguidas de comparações a animais (sapos, cavalos, aranhas, lobos) o que ajuda a

robustecer a idéia do judeu como uma raça à parte, segregá-la à sua porção animal e à falta de

vida humana: “Não há uma só pessoa que consiga rir alegremente em todo gueto” (MEYRINK,

s/d, p. 19).

Analogias ao texto de Perec (ou seria o inverso?) podem ser assinaladas desde o momento

em que Athanasius Pernath, assim como o Homem que dorme, perde domínio sobre o próprio

corpo, permite um corpo sem órgãos, fraqueja ante um estado de onirismo, torna-se estranho a ele

mesmo (unheimlich), duplica-se.

A lenda do Golem contada por Meyrink diz que a criatura retorna, com seus olhos

oblíquos e os passos cambaleantes, a cada 33 anos. Seria plausível julgar a isso coincidência, já

que é 33 a idade de Cristo ao morrer, que para a cabala o número 3 é o número da criação ou que

você, embora tenha 25 anos, é personagem das obras de Perec conhecidas por “trentaine”?
108

Gustav Meyrink explica que o ente de barro, ao ser visto, não podia ser entendido por

aquele que o visse, como outra coisa, senão um fragmento arrancado do mais íntimo ser. O

Golem é a representação da morte por meio da vida espiritual, pois “na terra as coisas são só

simplesmente símbolos cobertos de pó” (s/d, p. 67). Explica ele que aquele que foi desperto não

pode morrer, já que o sono e a morte são a mesma coisa; assim, o Homem de Perec (embora ele
33
diga que o sono é uma morte lenta) não está morto, nem aniquilado: ele leu o livro de Ibbur ,

ele escolheu entre as sendas paralelas da vida e da morte para que seu espírito fosse fecundado

por aquela, o que o leva mais adiante, à vida eterna, a uma concepção de não-humano ou além-

do-humano.

A figura do Golem aparece também em Récit d’ Ellis Island; na verdade, o discurso de

Perec remete não só ao homem de barro, mas ao judaísmo mesmo: “Quelque part, je suis

étranger par rapport à quelque chose de moi-même; quelque part, je suis ‘différent’, mais non

pas différent des autres, différent des ‘miens’” (PEREC apud BÉNABOU, 1985, p. 22).

O Golem não é exatamente um texto de terror, assim como não é simplesmente um conto

fantástico; também não o é o texto de Perec, ele não narra diretamente a criação de nenhum

monstro, mas, em ambos, a situação golêmica dos personagens figura uma forma de compreender

a vida. O monstro é uma representação do homem desorientado que como uma marionete se

deixa levar em todas as direções até que um dos fios se rompa...

33
Ibbur, do hebraico gravidez ou impregnação, refere-se a uma das formas de transmigração da alma, que acontece
quando uma alma positiva decide ocupar, temporariamente, o corpo de uma pessoa, em um sentido de plenitude
mental e emocional.
109

4.3.3 – Périplos: o discurso do silêncio

“É num dia como este, um pouco mais tarde, um pouco mais cedo, que você descobre sem

surpresa que alguma coisa não vai bem, que pra falar a verdade, você não sabe viver, que nunca

saberá” (PEREC, 1988, p. 16); é o que conclui você ao mergulhar em sua experiência radical

frente ao mundo.

Ao percorrer os caminhos já milhões de vezes trilhados, você percebe as dimensões, as

formas, em um forte jogo de claro e escuro. Deitado sobre a tábua dura, ou ao lado dela, você se

apóia sobre o corpo mole. É possível perceber três espaços: o corpo, a tábua e a barra das

sobrancelhas. O corpo é algo mole que se opõe à rigidez e à imobilidade da câmera do

personagem, o que possibilita a ligação entre o “dentro” e o “fora”. Se a tábua é o sono, para

dormir é preciso fazer também do corpo uma tábua, enrijecê-lo e concentrá-lo em um só ponto.

Mas o corpo já não é o singular, unitário, e torna-se impossível fazê-lo de novo “corpo”. Uma dor

o ataca de súbito e é cabível reconhecê-la como uma dor de cabeça. Essa é uma forma de

certificar-se de que em alguma instância ainda se existe, que ainda se está vivo.

É justamente por ser esse “corpo sem órgãos” que você se entrega à falta de gestos:

A princípio, é apenas uma espécie de lassidão, de fadiga, como se você


percebesse de repente que há muito tempo, há várias horas, é vítima de um mal-
estar traiçoeiro, entorpecedor, pouco doloroso e no entanto insuportável, a
impressão adocicada e sufocante de estar sem músculos, e sem ossos, de ser um
saco de gesso no meio de sacos de gesso (PEREC, 1988, p. 13).

34
Por essa entrega fica simples compreender o corpo sem órgãos (CsO) de Deleuze e
Guattari:

34
O termo é recuperado a partir do poema de Atonin Artaud, Post-Scriptum, em carta endereçada a Pierre Loeb em
1947.
110

Diz-se: que é isto - o CsO - mas já se está sobre ele - arrastando-se como um
verme, tateando como um cego ou correndo como um louco, viajante do deserto
e nômade da estepe. É sobre ele que dormimos, velamos, que lutamos, lutamos e
somos vencidos, que procuramos nosso lugar, que descobrimos nossas
felicidades inauditas e nossas quedas fabulosas, que penetramos e somos
penetrados, que amamos (DELEUZE; GUATTARI, 1999, p. 9-10).

Esse CsO o faz mais tarde acreditar que “três quartos de seu corpo estão refugiados na sua cabeça;

seu coração instalou-se na sobrancelha [...] você se felicita por ter salvo o máximo, pois todo o resto está

perdido” (PEREC, 1988, p.81- 82); é uma luta, mas você cede de bom grado todos os órgãos que “eles”

querem. (fig.05)

(fig. 05) O jardim das delícias, de Hieronymus Bosch (1500), abriga alegorias sexuais e
distorções como o CsO.

Você já não se move mais, entrega-se à inércia, a uma espécie de suspensão do tempo;

suspeita de que um outro, “um doublé fantasmagórico e meticuloso”, execute os gestos que se

recusa a realizar, contentando a existência de um sósia, de um duplo. Assim, ao desdobrar-se, o

personagem de Perec passa a ser o tu, mas para isso é preciso deixar de ser eu. Para enxergar as

“manchas na parede” há que se deixar de ver a parede, criar uma aproximação com o objeto. Para

ver o eu na vida é preciso não estar nela, o que implica não ser humano em alguma instância.
111

Todavia o que é então o eu? Gasset (1973) o define como uma solidão radical, consistindo em

simplesmente estar no universo. Solidão não é, portanto, isolamento, mas busca de si mesmo.

Contudo, o personagem não se considera nem um metafísico, nem um existencialista:

“não é daqueles sujeitos que passam suas horas de vigília a se questionar se existem, e por que,

de onde vêm, o que são, aonde vão” (PEREC, 1988, p. 17). Parece-nos que, de forma persuasiva,

ele tenta justificar o porquê de sua falta de ação, porém a razão simplesmente inexiste, não é fruto

da necessidade de entender a existência, e sim, mais uma vez, apenas o vazio, o peso dos

membros. Não há distinção entre passado, presente e futuro.

Você não diz muita coisa, assim como parece em nada pensar. Não pensa, portanto não

fala, portanto não mente. Cria um pseudo-anti-sujeito cartesiano: não pensa, logo não existe.

Você já nada deseja, porque você já não é.

Gasset (1973) diz que o homem não é hommo sapiens, mas hommo insipiens, assim, seu

carma é o de buscar conhecimento. Mesmo o contato com o outro não é de todo possível, pois a

vida do outro é sempre algo que podemos pressupor, mas nunca viver plenamente.

“Esta é sua vida”: você tem 25 anos, e nada trouxe, nada quer recordar sobre o seu

passado. Ao contrário do casal de As coisas (1969), ele pouco tem, pouco quer; é possível contar

cada um de seus objetos: oito meias, três camisas, livros que não lê, discos que não ouve.

Você “vê na vitrina minúscula de um armarinho, um trilho para cortina no qual seus olhos

de súbito se fixam: você segue o seu caminho: você é inatingível” (PEREC, 1988, p. 77),

enquanto para os desvairados Jérome e Sylvie, “era necessário que as coisas de todos os tempos

lhes pertencessem, eles com isso teriam multiplicado os indícios de sua posse. Mas estavam

condenados à conquista [...] o que amavam naquilo que chamavam de luxo era o dinheiro que

estava por trás” (PEREC, 1969, p. 22); o dinheiro parece de fato personificado nessa narrativa de
112

perdulários, fazendo-os transformar a imagem que tinham de seus próprios corpos e de tudo mais.

É possível que também eles estivessem, em alguma instância, se tornando monstruosos.

Aos poucos, a dispersão que havia se transformado a vida do casal os faz perceber que “o

inimigo era invisível. Ou antes, estava dentro deles, tornara-se uma gangrena, tinha-os

apodrecido, saqueado” (PEREC, 1969, p. 76). Esse inimigo pode, sem suspeição, ser

compreendido como uma espécie de criatura inventada e alimentada pela necessidade patológica

de consumo dos dois jovens. O álcool, que ao inebriá-los cumpre sua função de subterfúgio,

também assombra ao projetá-los de volta ao mundo legítimo, tornando-os “vazios e idiotas”. De

repente, aquela sensação de estar à vontade no mundo vai se dissipando.

Não há nada que diferencie Jérôme de Sylvie. Eles são uma reduplicação, como se, tal e

qual os bens que tantos desejavam, fossem também eles frutos da reprodução técnica. Apesar do

caráter autobiográfico - assumido pelo próprio Perec, um pouco descontente por ter dito em

algum momento que os personagens centrais poderiam ser ele e Paulette (que de fato fizeram

uma viagem a Sfax e eram sociólogos) - é o romance do desejo e da inveja que bem caracterizou

a juventude dos anos 60, origem, por assim dizer, da atual sociedade corrompida pelo consumo.

“Ce roman du désir (ou de la jalousie?) tourne à la quête narcissique. Le livre nous offre l’image

d’une societé où l’on ne peut s’aimer que dans le miroir des vitrines des magasins. L’imaginaire

serait voué à ne s’exciter qu’autour de reflets ou de figures du double” (BURGELIN, 1988, p.

44).

Ao mergulhar em sonhos coletivos, sem querer despertar, os protagonistas de As coisas,

assim como o de Um homem que dorme, embora por diferentes motivos, perdiam o contato com a

realidade. Razões, em verdade, díspares apenas para os personagens, pois, sob a ótica de Perec,

trata-se de uma mesma lei: uma fuga da realidade; o que em um falta, no outro excede, ainda que

o sentimento de insatisfação seja o mesmo, em ambas narrativas.


113

Se a dupla que tudo queria sofre uma pseudo-metamorfose, um possível amadurecimento

psicológico e social, ao personagem, recluso em seu quarto, nada acontece; o que o abate é o

sentimento vago de que não há novidade, de que nada mudou. Ao contrário de Gregor, o

personagem de Kafka, nada lhe aconteceu, você não se transformou, “[...] você sempre foi assim,

mesmo que saiba disso somente hoje: aquilo, no espelho trincado, não é o seu novo semblante,

são as máscaras que caíram, o calor do seu quarto as derreteu, o torpor as descolou. As máscaras

do caminho certo, das belas certezas” (PEREC, 1989, p. 21).

Não lhe resta mais nada a esperar, nem mesmo o Godot beckettiano; de fato, só lhe resta

“esperar, esperar apenas até que não haja mais nada a esperar”. Você não precisa mais querer,

nem falar. Tudo se fará por si só, pois o mundo não depende de você.

Vive como em uma bolha transparente (explicada como a forma habitual do sono),

hermeticamente fechada, que o torna intocável e incapaz de tocar o mundo. Todavia, quem é esse

homem aprisionado; seu isolamento é voluntário ou os acontecimentos de sua vida, a força do

mundo, o fizeram enclausurar-se? Os muros, sempre uma constante - como aqueles que cercam a

ilha da Terra do Fogo, em W, e, ao mesmo tempo, a mantém au dehors do mundo real - incitam

uma busca da saída secreta, a um duplo sentimento de isolar-se, não menor perante aquele desejo

de transpor tais barreiras.

Assim, igualmente o labirinto tem um papel extremamente significativo na narrativa de

Perec, representando esse anseio de reclusão e de busca: “Como um prisioneiro, como um louco

em sua cela. Como um rato no labirinto procurando a saída. Você percorre Paris em todos os

sentidos. Como um faminto, como um mensageiro portador de uma carta sem endereço”

(PEREC, 1989, p. 95).

Em O livro dos seres imaginários, Jorge Luis Borges esclarece que a idéia de uma casa

em que as pessoas se percam é mais extravagante do que pensar em um homem com cabeça de
114

touro, mas uma imagem serve à outra. Nesse jogo mitológico, no entanto, você executa os três

papéis: isola-se no labirinto, faz as vezes de monstro a ser vencido e, ainda, somente ele (você)

mesmo é capaz de salvar a si.

A natureza, por sua vez, nem salva, nem pacifica, tampouco o deprime, apenas lhe é

indiferente. A árvore, contemplada durante a viagem a Auxerre, é um dos signos mais reais do

texto. Ele deixa bem claro que não consegue mais fazer tolas associações, velhas metáforas;

ainda assim, a sua relação com a árvore parece mais do que natural: raiz, tronco, galhos, folhas;

diz não haver propósito moral nela, no entanto, esse símbolo é a vida, a árvore judaica, a

genealogia (novamente como o projeto do livro-árvore, que deu origem a obra W). Ela tem um

poder de fascinação - embora você não a compreenda - diferente do cão: “Não pode viver na

presença de um cão porque o cão, a cada instante, exigir-lhe-á fazê-lo viver, alimentá-lo, acariciá-

lo, ser homem para ele, ser seu dono, o seu deus vociferando esse nome de cão que o fará

imediatamente encolher-se. Mas a árvore não lhe pede nada” (PEREC, 1989, p. 33).

O cachorro causa inquietação ao espírito; faz um papel similar àquele assinalado por

Jacques Derrida, em O animal que logo sou (2002), pelo gato que o observa e o faz sentir-se um

tolo, tornando-o (ao homem observado) a besta domesticada. Por isso o anseio de você por ser

árvore, ainda que o sonâmbulo de Perec não deteste, de fato, os homens: “Por que haveria de

detestá-los? Por que haveria de detestar-se?” (Perec, 1988, p. 33).

No campo, ele ao mesmo tempo descobre que nada viveu e que não há nada a dizer.

Todos os rótulos já estão fixados, os caminhos já estão previamente traçados: “do urinol da

primeira infância à cadeira de rodas da velhice”; o sentimento de não-atuação o invade. É

possível entender e escolher a personalidade que melhor lhe cabe, mas você prefere ser a peça

que falta no quebra-cabeça.


115

Você, porém, não é a peça, é o próprio quebra-cabeça. Ao retornar a Paris, ao seu quarto,

centro de seu mundo, percebe que o relógio parou durante sua ausência, como se o tempo não

penetrasse seu mundo; você já não sabe mais que horas são. Minuto após minuto, algo que não

terá fim irá começar: sua vida vegetativa e nula.

Reencontra o espelho partido que compõe seu rosto: “esse espelho trincado que jamais

refletiu outra imagem além da sua fragmentada em três porções desiguais, que podem sobrepor-

se ligeiramente, [...] o esboço de um olho frontal, o nariz partido, a boca perpetuamente torta”

(PEREC, 1989, p. 41). Sua imagem reflete-se no Y (agora, três traços que tendem ao infinito, em

lugar dos três vértices de W) formado no espelho e fragmentado, nada mais do que o verdadeiro

homem de Perec, o próprio Perec, se entendermos sua obra como uma tentativa de reconstrução

ou construção de sua identidade.

Há como que uma gradação em uma série de parágrafos encadeados: “Você tem tudo a

aprender, tudo aquilo que não se aprende”; “você está só”; “você deve esquecer-se de ter

esperanças, de empreender”; “você se entrega”; “você se esquece de que aprendeu a esquecer, de

que um dia forçou-se ao esquecimento”; “você está só”. O desforço de tal processo é o fato de

estar só, o que significa aprender a se comportar como um homem só. Ele vagueia, então, pela

rua e uma sorte de spleen o acompanha; sem seu halo, já há muito arrancado, é permitido flanar

(como fazia Baudelaire em seus poemas de Flores do mal).

Aos poucos, no entanto, ele perde o poder sobre ele mesmo. É o discurso da melancolia

que o invade e que se intensifica. Segundo Ernildo Stein (1997), é Heidegger quem introduz a

questão da melancolia Schermut (Schwer = pesado; Mut = ânimo), e a própria filosofia trabalha

nesse estado de ânimo. Não se deve, no entanto, confundir o termo com um distúrbio, uma

psicopatologia, porém entendê-lo como um elemento natural:


116

A melancolia seria, pois, uma espécie de estado de tensão formal no qual o


filósofo desenvolve a sua atividade. E Heidegger remete, ao falar disto, a
Aristóteles. E, já em Aristóteles, fala-se de que os grandes na filosofia, na arte e
na política, de alguma maneira, foram melancólicos. E, nesse sentido, a filosofia
viveria sob o signo da melancolia (STEIN, 1997, p. 78).

O ser melancólico apresenta como características oscilações de humor, perturbações

típicas no ritmo da vigília e do sono, modificações do caráter de estar jogando no mundo,

sensação de culpa e um certo pessimismo ante o futuro. Há uma alteração do modo de ser-no-

mundo (Dansein); essas alterações da afetividade, do estado anímico, em alguma instância fazem

com que o homem seja determinado de fora e sua subjetividade fique condicionada ao mundo em

que ele se insere.

A esquizofrenia, por sua vez, apresenta três fases: a da extravagância, a da excentricidade

e, por último, a do amaneiramento. O sujeito começa a exagerar subitamente sua própria história,

até um momento em que há uma ruptura na totalidade dessa e ele perde o fio de sua existência. O

personagem de Um homem que dorme parece seguir essa trajetória: volta-se para sua narrativa

pessoal (eu), rompe, no instante em que se duplica, e cria o seu interlocutor (você); ao final

consegue retomar-se. De fato, cumpre com sua trajetória e consegue reconhecer-se, descobrir-se.

O personagem central de Bartleby (2003), a impressionante narrativa em que Perec se

inspira para criar o homem que dorme, é também um tipo de esquizofrênico, só não se sabe se

cumpre com a última etapa há pouco citada. O texto, de Herman Melville, conta a estranha

história do homem que diz apenas “I would prefer not to do”, limitando-se a nada fazer, a pouco

ou nada falar e, simplesmente, passar suas horas a olhar um muro. Em Perec, há a referência

expressa:

Ele era escriba junto a um homem da lei. Escondido atrás de um biombo,


permanecia sentado à sua escrivaninha e nunca saia dali. Alimentava-se de
117

biscoitos de gengibre. Contemplava pela janela um muro de tijolos escurecidos


que quase podia alcançar. Era inútil pedir-lhe qualquer coisa que fosse. [...]
Prenderam-no, mas ele sentou-se no pátio da prisão e recusou-se a alimentar
(PEREC, 1989, p. 110-111).

Não existe razão aparente para a atitude tomada pelo personagem melvilliano. Tal entrega

pode, de fato, estar relacionada à sua permanência enclausurada entre o muro e o biombo,

estabelecendo, por essa atitude de absurdo, uma forte crítica à vida nonsense dos homens do

capitalismo. O texto perecquiano, ao ser lido antes de se descobrir Melville, suscita-nos a

presunção de acreditar que esse teria se apoiado naquele e não o inverso, obedecendo à análise

feita por Borges em Kafka y sus precursores. Sem dúvida, o escriturário, sendo narrado por um

observador, não nos responde de imediato o mistério que envolve o protagonista; e parece ser

essa a intenção: deixar sem resolução o enigma. No entanto, o narrador, ao final, conta sem muita

fidedignidade o boato de que Bartleby teria sido um funcionário responsável pela seção de cartas

extraviadas e comenta: “com mensagens de vida, essas cartas corriam para a morte. Ah, Bartleby!

Ah, humanidade!” (Melville, 2003, p. 96).

A semelhança entre o homem da errância pelas ruas de Paris e o homem de Wall Street é

tamanha, que seria mesmo admissível pensar no primeiro, ainda que camuflado pela narrativa em

segunda pessoa, como o acesso ao psicológico do segundo, funcionando como uma espécie de

resposta aos leitores, ao texto norte-americano.

O final guardado ao homem que dorme soa um pouco mais ameno. Após sugerir o que

teria acontecido a Bartleby, ele inicia um capítulo dizendo: “Você não está morto”. Embora esse

fato possa parecer doloroso - afinal, sequer você está morto - o remate dado por Georges Perec é

mais ameno: o personagem consegue recobrar seus sentidos, afastar-se dos muros, reais ou

imaginários, e voltar a viver.


118

O discurso do silêncio, a indiferença, anula a linguagem. A proposta é zerar todo o senso

de uma palavra como se assim fosse possível chegar à verdade. O sentimento de ausência, de

vazio de si mesmo, de angústia e de lassidão se agrava a cada parágrafo, a cada linha, a cada

gesto, a cada não-gesto realizado. Tudo é falso e você está só; o silêncio torna-se seu

companheiro, sua atitude de terror, “você parou de falar e só o silêncio lhe tem respondido. Mas

essas palavras, esses milhares, esses milhões de palavras que estão retidos em sua garganta, as

palavras sem nexo, os gritos de alegria, as palavras de amor, os risos idiotas, quando então os

reencontrará?” (PEREC, 1989, p. 91).

A experiência do silêncio, comum na mística, pressupõe a entrada de um discurso adverso

àquele mecânico do homem em seu cotidiano, e requer percepção. O silêncio de Deus, por

exemplo, não é ateísmo, mas cifra da transcendência. Ele funciona como uma revelação, uma vez

que a linguagem do intelecto é sempre linguagem, ainda quando não articulada: “no princípio era

o verbo”, e não o silêncio (em sentido de ausência). Significa uma hipótese de falsos extremos;

pensar em silêncio poderia significar o mesmo que tentar anular o ser; ao contrário, é exatamente

nesse momento que se faz a plena contemplação da comunicação. O ser é, por si só, vibração, não

havendo nunca o silêncio absoluto.

Em Perec, o que surge no momento de sua decisão pela não-comunicação é uma outra

forma de manifestação; sua prosa é, então, realizada a partir de musicalidade. Seu discurso é um

réquiem interminável, farto de pausas e elipses, mas sempre significativas: “Você não precisa

falar” (PEREC, 1988, p. 20).

Ele decide parar de falar como um homem que dorme. O homem perecquiano é um

homem para ser pensado e para pensarmos. Não é um homem que deva ser compreendido como

angustiante e esquizofrênico. Mesmo seu niilismo permite entrever que o espaço em branco, é

esvaziar-se para permitir a entrada de algo novo “o tudo que é o nada”.


119

Seguir as três fases apontadas por Ortega Y Gasset, é o que faz o personagem. Após

“ensimesmar-se”, ele recobre o seu “eu”, retorna à vida cotidiana, embora agora repleto de

transformações, movido por alguma incitação em agir.

A noite já não o protege mais, tudo o que ela escondeu o dia revela. Você descobre que o

mundo não mudou; sua ausência em nada interferiu e você, no entanto, não está morto. Conclui

ele que o homem é uma invenção maravilhosa, embora somente os imbecis falem ainda sem rir

do Homem.

4.4-Teorias bizarras ou clonadas sobre o estranho, ainda que familiar

O Homem que dorme parece, através da sua falta de ação, escavar, procurar, nos

materiais acumulados, verdades não-aparentes. Por meio da genealogia, você busca os valores

sedimentados, transitando entre o avalista e o intérprete da filosofia moderna.

Você não está dentro de você, ou melhor, o conhecimento do self só é feito a partir do

alter, passando a questão a ser não como você se constitui, mas como o outro o articula. Perec

permite este reconhecimento.

Retomemos a tríade “eu minto”, “eu falo”, “eu penso”, do pensamento grego, levantada

por Foucault em Arqueologia do saber (2001), seu texto germinal para a discussão das questões

do “dentro” e do “fora”. A primeira encerra o paradoxo de ser também verdade, já que ao

enunciá-la deixa de ser mentira, para ser justamente seu antônimo; a segunda é um enunciado

auto-referencial que acaba por anular o vazio que o antecede e a última é a transformação do

pensamento em enunciação.
120

Para Sócrates, a verdade nunca está com os homens, ela sempre remete ao interior. Se o

que garante o reencontro com o “uno” é a interioridade, é no interior que você busca a verdade. A

verdade só pode ser encontrada na origem. A origem (Ursprung) é perfeita e essencial; chegar a

esta verdade única é tão impossível quanto encontrar a língua pura.

Mas o que faz você? Você não mente, não fala, corta qualquer comunicação com o

mundo; apenas pensa, sem transformar o pensamento em enunciação, ou talvez simplesmente

faça se duplicar e se há duplicação, há alteridade. O que assistimos é o embate do próprio

personagem, seu desfazer. Engana-se enormemente, no entanto, aquele que reconhece o processo

de “desconstrução” como destruição. O niilismo do personagem leva-o a descobrir que ele não é

o “dono anônimo do mundo”, como ele supunha, mas que pertence a ele (mundo) e terá que

seguir seu curso; é o que faz ao final.

A verdade é, portanto, um erro nunca refutado. Na pós-modernidade, não falamos em

verdade, mas em verdades. Assim, ao genealogista não cabe a tarefa de encontrar a origem, pelo

contrário, as escavações devem considerar todos os acasos. É o corpo quem carrega a sanção da

verdade e do erro, trazendo, ao mesmo tempo, a origem e o apagamento. É ele o lugar sagrado no

qual o “eu” dissocia-se; é marcado pela história e a história o arruína - salientemos, novamente,

aqui, o filme O livro de cabeceira, de Greenway (1995), cuja definição se faz à medida em que os

livros são pintados, seguindo a milenar tradição oriental, na pele dos personagens; ao mesmo

tempo, eles representam a perpetuação da narrativa e a morte.

O personagem de Perec, ao contrário, busca sua não-história, através de seus não-atos.

Não há a intenção de narrar um ou vários episódios, amarrados por um clímax, mas o desígnio de

colar uma atitude inerte, refutar-se em uma inaudível questão existencial. Retornemos à

problemática da duplicação ou da formação de sua alteridade. O duplo é uma espécie de

desdobramento que, na maior parte das vezes, vem para assegurar a própria existência. A
121

duplicação funciona como um espelho, mas o risco é de que tais imagens apareçam invertidas -

como já nos apontara Lewis Carroll através da representação de um mundo nonsense, em Alice

através do espelho (CARROLL, 2001).

Em outras situações, o duplo vem como uma repetição de atos e acaba por causar

confusão e riso, à maneira bergsoniana. Lembremo-nos de clássicos como os Menecmos ou

Anfitrião, os quais são comédia justamente pelo desdobramento e automatização; os efeitos de

presença e de ausência vivenciados apenas pelo espectador/leitor criam as lacunas risíveis das

peças em questão, uma vez que tal dimensão não é obtida pelos demais personagens. Também

Ulisses, o herói clássico, tenta se passar por mendigo, criando uma espécie de alteridade ao voltar

de seus vinte anos de périplo, quando é reconhecido por uma velha criada por possuir, desde

menino, uma cicatriz na perna.

O ápice, porém, é quando esta repetição, esta duplicação, leva à morte, como ocorre no

poema simbolista, Ismália, de Alphonsus Guimaraens 35 : a loucura da mulher, cuja conseqüência

é a divisão em corpo e em alma, a faz ansiar a lua no céu e seu reflexo no mar.

A imagem de Ismália remete-nos ao quadro Ângelus Novus - mencionado no capítulo 2 - e

ao anjo que enseja ambigüamente mover-se e estar parado, ir para frente e olhar o passado, de

modo simultâneo, como se fosse possível desdobrar-se.

Mas é na era dos universos paralelos, dos bizarros e clones, que abrimos nossos olhos ao

assunto. O colosso de Merry Shelley é uma assustadora visão de como o homem sempre

pretendeu elaborar suas criações ou criaturas. Estes autômatos infinitas vezes acabam por ganhar

uma bizarra independência, causando medo a seus criadores. Na verdade, o medo pode advir de

nossos anseios, a partir do momento em que os monstros nos recriam, como a cópia capaz de
35
[...] E como um anjo pendeu/ As asas para voar.../ Queria a lua do céu / Queria a lua do mar...// As asas que Deus
lhe deu/ Ruflaram de par em par... / Sua alma subiu ao céu,/ Seu corpo desceu ao mar...(GUIMARAENS, 1976, p.
70-71).
122

interferir no seu original. Os monstros são, sem dúvida, nossas hipérboles, como veremos a

seguir.

Do mesmo modo, em uma atitude extremista, o homem é ao mesmo tempo criatura e

criador de Deus. Em um narcisismo exacerbado, Deus se faz à nossa imagem e semelhança,

assegura-nos a possibilidade de sermos perfeitos. Nosso receio, porém, sempre foi o de que tais

criaturas se rebelassem. Já nos séculos anteriores, as criações autômatas, maximizadas a partir do

Iluminismo, adelgaçaram a possibilidade de um desses mecanismos, aperfeiçoado ao extremo,

conseguir dominar-nos. Tal temor em nada se difere daquele hoje vivenciado pela geração dos

clones, da inteligência artificial, da automação (O super-herói Superman tem sua pacificidade

ameaçada pela existência de um seu bizzarro, como vimos no capítulo anterior, em um universo

paralelo).

Muitas vezes, no caso da ficção, o “fantástico” é quem determina o fenômeno da

duplicação. Ao agregarmos às questões psicológicas, o real e o próprio fantástico, chegamos ao

nível de perda máximo, necessário para acreditar nas aberrações e fazer com que os autômatos

criem vida. É o que faz o personagem de E. T. A Hoffman, Natanael, em O Homem da areia

(1986). O menino, já imbuído de traumas causados pelas castrações oferecidas pela relação com

o pai, fica obcecado pela boneca Olímpia e não mais enxerga a realidade expressa em Clara, sua

noiva e - como no poema de Alphonsus Guimaraens - mais uma vez a saída é o abandono da

vida, como uma impossibilidade de vislumbrar a verdade.

De acordo com Jentsch, um dos recursos para se criar a estranheza no texto é “[...] deixar

no leitor a incerteza de que uma determinada figura na história é um ser humano ou um autômato,

e fazê-lo de tal modo que a sua atenção não se concentre diretamente nessa certeza” (JENTSCH

apud FREUD, 1976, p. 284).

Jentsch refere-se aos acessos de insanidade ou de epilepsia, tanto quanto aos bonecos e
123

engenhocas construídas. Impossível nos seria falar dos acessos epilépticos sem lembrar de

Edgard Allan Poe, cujas histórias extraordinárias, dotadas de fantástico e efeitos do sobrenatural
36
abrigavam o estranho. Madeline Usher ou Berenice sustentaram os desvios catalépticos que

causam surpresas ao leitor; sem mencionar o fato de que, neste último conto (Berenice), o

narrador, como Natanael, sofre de uma terrível idéia fixa e o horror ou a estranheza da história

parece estar mais no autor-narrador do que em Berenice, o autômato da vez, assim como no texto

de Hoffman, avaliado por Freud.

O estranho para Freud é o que, mesmo assustador, traz à baila tudo o que é familiar, “O

estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito

familiar” (FREUD, 1976, p. 277), como em uma folha de papel, na qual nos é impossível separar

o verso do anverso. No caso do duplo, pensemos nos gêmeos - como os já antes mencionados

Menecmos de Plauto - por exemplo, freqüentemente representados na literatura ou no cinema,

parece haver uma dicotomia, como se os valores do bem e do mal, atribuídos a um ou a outro

irmão, se articulassem. O problema é delimitar as fronteira de tais valores, como expõe Nietzsche

em sua Genealogia da Moral:

Tomava-se o valor desses ‘valores’ como dado, como efetivo, como além de
qualquer questionamento; até hoje não houve dúvida ou hesitação em atribuir ao
‘bom’ valor mais elevado que ao ‘mau’, mais elevado no sentido da promoção,
utilidade, influência fecunda para o homem (não esquecendo o futuro do
homem). E se o contrário fosse a verdade? E se no ‘bom’ houvesse um sintoma
regressivo, como perigo, uma sedução, um veneno, um narcótico, através do
qual o presente vivesse como que as expensas do futuro? Talvez de maneira
mais cômoda, menos perigosa, mas também num estilo menor, mais baixo?
(NIETZSCHE, 1987, p. 14).

O problema é que simultaneamente um dos gêmeos é alteridade para o outro irmão, o que

torna as concepções ainda menos singulares. Os limites entre bem e mal tornam- se mais tênues e
36
Personagens dos contos, respectivamente, “A queda da casa de Usher” e “Berenice” (POE, 198).
124

relativizados.

Na narrativa de Perec, o que parece surgir a partir da sensação de duplicação do

personagem é mesmo uma imagem assustadora de um homem que abandona a si mesmo e se

descobre pior do que um rato, cujo rosto se deforma como o de uma vaca. Há um processo

similar àquele discutido no filme Clube da luta, de David Fincher (1999), em que o personagem

Jack, um homem bem-sucedido, em crise, conhece Tyler Durden, o exótico vendedor de

sabonetes, seu antípoda, (como o 0 e o 1 do binarismo digital que parece guiar a vida pós-

moderna). Ao final, a surpresa: trata-se de um efeito de duplicação. Durden é o desdobramento de

Jack, desprovido de qualquer escrúpulo ou valor moral; ele é tudo aquilo que Jack gostaria de ser,

se não fosse vexado pelos valores da sociedade. Há um embate entre o eu e o outro, e o retorno,

por fim, ao mesmo; acontece que a volta nunca é idêntica - o centro já está de alguma forma

alterado pela luta entre interior e exterior.

“Segundo Schelling, unheimlich é tudo que deveria ter permanecido secreto e oculto, mas

veio à luz” (FREUD, 1987, p. 282). Aí se encontra o grande problema do duplo: ao criar a

oposição com a alteridade, faz nascer valores e pensamentos ocultos com os quais, muitas das

vezes, não se está preparado para lidar. Assim, a possibilidade de criar um caminho sem volta e,

de uma certa forma, ser tragado por este outro monstruoso e desfigurado, existe.

4.5- De como nascem os monstros ou sete teses sobre o homem que dorme

O sujeito da teoria cultural e racial, o sujeito crítico, livre e consciente, que habitava uma

sociedade transparente, onde havia unidade e uniformidade, entrou em crise. A concepção


125

unívoca passou a estar em questão e o novo espaço foi tomado pela existência de um sujeito

complexo e pouco transparente.

A teoria do sujeito, a qual propunha a soberania dos atos do ser, seus pensamentos e

reflexões racionais e conscientes, ou seja, o sujeito cartesiano, desfez-se. Freud, e sua proposição

a respeito da questão do consciente e do inconsciente, e Lacan, ao afirmar que ninguém é o que

pensa e não faz o que pensa fazer, foram os principais responsáveis por tal transformação. É,

entretanto, com o pós-estruturalismo e com as perspectivas pós-modernas que a teoria do sujeito

de fato se desfaz. Para Foucault, o sujeito é produto da história, derivado de suas práticas

discursivas; “Se, para a psicanálise, o sujeito não é quem pensa que é, para Foucault, o sujeito

não é nada mais do que aquilo que dele se diz” (SILVA, 2000, p. 15).

Mas é com Deleuze e Guattari, em Mil Platôs, que o lugar do sujeito será preenchido,

ainda que não por um elemento que se assemelhe ao humano, já que para eles o mundo é

constituído por “máquinas”. Eles rejeitam qualquer distinção entre cultura e natureza, interior e

exterior; os sujeitos são tidos, então, como corpos sem órgão. A simbiose entre o homem e as

máquinas se torna tão grande que, hoje, talvez seja quase impossível diferenciar o que é

organismo daquilo que é máquina.

A subjetividade é, portanto, uma questão de fronteiras, e a existência dos monstros nos

ajuda a confirmar que não existe um sujeito plenamente seguro. Igualmente, o “outro” faz a vez

deste monstro que nos revela vicissitudes e nos amedronta, ao passo que nos é extremamente

familiar.

Em Pedagogia dos monstros, Jeffrey Jerome Cohen se propõe a “ler as culturas a partir

dos monstros que elas engendram”, desenvolvendo sete teses sobre os monstros. Nós nos

propomos a fazer uma leitura de Um Homem que dorme a partir dessas sete teses: “compreender

a cultura por meio dos monstros que elas geram”.


126

TESE 1- o corpo do monstro é um corpo cultural:

As formas de se exterminar vampiros, monstros, lobisomens e outras figuras míticas,

durante os duelos entre o bem e o mal, sempre nos foram conhecidas: estacas cravadas no

coração e balas de prata, são alguns desses recursos; mas, como garantir que eles não retornarão,

mesmo depois de mortos? Ao enterrar a criatura malograda nas bifurcações das encruzilhadas,

precisamos ter certeza de que elas não saibam qual caminho tomar, caso voltem de seus túmulos,

isto é, “decapite o cadáver de forma que acéfalo, ele não se reconheça como sujeito, mas apenas

como corpo” (COHEN, 2000, p. 26).

Você é um personagem que tenta se decapitar, quer ser o homem que dormita, pois assim

em nada tem que pensar; os sonhos não são pensamentos voluntários, embora discutidos como

fruto do inconsciente na teoria freudiana, e, às vezes, capazes de trazerem respostas aos enigmas

vividos ou por se viver durante o dia. Mas você jamais consegue parar de pensar. Em meio a uma

desmaterialização ou a uma animalização, ainda seu lado humano é latente e é o final do romance

que comprova a possibilidade de retomá-lo.

O corpo do monstro não é algo desprezível, e sim, pura cultura. Transita em uma área de

fronteira e não tem um nascimento natural. Porém, ao encerrar em si medo e fantasia, parte para a

“encruzilhada”. Ele nasce nas fronteiras metafóricas, como no romance de Perec, que parece

corporificar um momento cultural específico, o das transformações sofridas pelo sujeito

moderno; assim, o conveniente corpo do monstro é cultural.

Etimologicamente, monstrum, é aquele que revela, cumprindo, portanto, as funções do

bobo da corte ou de Baco de fazer-nos ver nossos valores morais ou a falta deles. O monstro é, de

algum modo, hipérbole de nós mesmos.

O monstro é esse corpo sem cabeça (embora no caso do Homem que dorme, a
127

decapitação ainda não tenha sido feita, afinal, como vimos ele pode mesmo sentir sua cabeça),

mas extremante cultural e que, mesmo irracional, nos faz pensar. Nossas sensações de medo

podem perfeitamente advir da possibilidade de nos vermos nestes monstros e sermos descobertos

também em nossas monstruosidades pessoais e sociais.

TESE 2- O monstro sempre escapa:

O monstro sempre desaparece para nascer em outro lugar. Quando pensamos nas séries

cinematográficas de terror, lembramos com freqüência de seu eterno retorno, mesmo quando

modificado e convencionado à época e à cultura que o lê. O caso mais patente é o do Conde

Drácula, cuja lenda foi tantas vezes reinterpretada e reavivada.

Também a criatura perecquiana (ele mesmo?) freqüentemente desaparece para reaparecer

em seus outros inscritos; além da possibilidade de coincidência autobiográfica, um mesmo

personagem de Perec figura em mais de uma obra, sendo esse desdobrar, não só interessante, mas

também de algum modo monstruoso. Ele possibilita ao leitor mais atento estabelecer paralelos

entre tais homônimos e, simultaneamente, contribuir para a restituição da face do próprio autor.

Se Cohen afirma que “nenhum monstro prova a morte mais de uma vez” (2000, p. 28),

ao(s) personagem(s) de Perec, essa façanha já lhe(s) será possível. A morte em um texto pode

significar nascimento em outro, pois se colocará o autor como responsável por tal manifestação

de depauperamento ou de seu revés. Assim, reduplicação - e aqui pensamos nos duplos do

próprio autor em relação a sua obra - significa aumentar a probabilidade de sobrevivência. Não é,

portanto, de se espantar que a mais divulgada foto de Perec (fig.05) seja aquela em que ele

alegremente posa com um gato negro em seu ombro.


128

(fig.05) Georges Perec e o gato preto: partilha do gauche.

Não pensar no gato preto 37 de Poe seria tarefa difícil; sem dúvida, porém, diferentemente

do gato do conto norte-americano, ele não se parece com uma feiticeira disfarçada, mas sugere

total identidade com o autor francês, quiçá pela probabilidade de ressurreição, ou mesmo pela

situação marginal em que ambos - homem e animal - se encontram.

Aliás, esse é o monstro: o habitante das margens e fronteiras, um ser ao mesmo tempo

corpóreo e incorpóreo. Por isso você quer desmaterializar-se, ser rato, ser ostra, ser nada e, de

repente, voltar a circular entre os marginais:

[...] ex-professores primários, que gostariam de reformar a ortografia, os


aposentados que acreditam ter aperfeiçoado um sistema infalível para recuperar
documentos velhos, os estrategistas, os astrólogos, os pesquisadores de
nascentes, os curandeiros, as testemunhas, todos aqueles que convivem com suas
idéias fixas; os resíduos, os detritos, os monstros inofensivos e senis que
divertem os patrões [...] (PEREC, 1989, p. 93).

37
O gato preto, em um conto homônimo, é um dos personagens mais famosos de Edgar Allan Poe.
129

Em alguns momentos, você vai em busca do outro (você); em outros, você foge da

alteridade. Tenta fazer os deslocamentos, mas suas mudanças são menos físicas e mais

psicológicas; transporta-se para outros lugares através dos pensamentos.

Conforme explica Cohen (2000), Susan Stewart fala todo o tempo da desejada queda ou

morte, a paralisação, e essa foi desejada pelo personagem de Perec. Ele morre, mas sua morte não

é extenuação, é vida. Ao descobrir que não vale a pena morrer, volta a ser um cidadão comum. É

a extinção do monstro, que surge desta morte para a vida cotidiana; mesmo que morra, nasce em

outra pessoa, em outro lugar. Qualquer um que esteja em busca do eu, do outro, deixará nascer o

monstro a fim de conhecer sobre a existência, e não sobre a morte. A cultura, talvez, seja esse

monstro que atormenta o deus do desconhecimento.

TESE 3 – O monstro é o arauto das crises de categoria

Os monstros sempre escapam porque eles não se prestam à categoria do fácil, eles não são

classificáveis, não estão na ordem do comum. Eles são como você, um “errante minucioso,

noctâmbulo perfeito, ectoplasma”. Assim, não é difícil compreender com quem você se parece,

mas enquadrá-lo em qualquer grupo.

Os monstros são também estes híbridos, cujos corpos não se incluem em nenhuma

sistematização, porém habitam um locus conceitual. Você é um desses híbridos que resiste fazer

parte de qualquer estrutura sistemática: nem dormindo nem acordado, nem humano, nem

inumano, “e assim o monstro é perigoso, uma forma suspensa entre formas - que ameaça explodir

toda e qualquer distinção” (COHEN, 2000, p. 30). Eles exigem pensar sobre a fronteira da

normalidade, pois habitam a margem do círculo perfeitamente fechado: “o monstro oferece uma

fuga de seu hermético caminho, um convite a explorar novas espirais, novos e interconectados

modos de perceber o mundo” (idem, p. 31).


130

O personagem de Perec vive à margem do mundo; aos poucos percebe o seu

polimorfismo - é rato, homem, vaca, ostra, árvore; nunca se enquadra totalmente - a sua diferença

no mesmo é a sua repulsa na atração. Ao mesmo tempo em que o personagem estreita os laços

consigo e com o mundo, ao sentir cada sombra, cada forma de seu corpo, ele se deixa perder.

A solução é fugir e tentar perceber o mundo e, então, os monstros entram em sua vida,

tornam-se seus semelhantes, seus irmãos.

TESE 4- O monstro mora nos portões da diferença:

O monstro é a real corporificação do fora, do além “de todos aqueles loci que são

retoricamente colocados como distantes e distintos, que se originam no Dentro” (COHEN, 2000,

p. 33); é o outro dialético.

Na verdade, qualquer tipo de alteridade pode ser inscrito no corpo do monstro. O fluído

que percorre entre homem e monstro pode dar a entender que este ser incorpóreo somos nós. Ele

pode abrigar nossas ambigüidades e muitas vezes ser identificado com as minorias (de sexo, de

raça, de cultura), por ser a representação daquilo que de algum modo foi banido, tido como

menor diante de um modelo estabecido. A grande questão é que as diferenças que existem fora do

sistema podem apontar suas verdades. Baco, por exemplo, é o monstro clássico, expulso do

Olimpo por detonar as verdades implícitas nos deuses, ou seja, mostrar como é possível

transformá-los em demônios; como no pensamento nietzschiano, possibilitava a análise do que

está nas máscaras finais e por isso foi castigado. Mas a última máscara, ou melhor, o próprio

rosto é sempre o mais misterioso.

Você desdobra-se em milhares, esconde-se dentro de casa, desvencilha-se das ações

comuns. Recusa-se mesmo a fazer, a agir, retirando-se em seu silêncio e esquecendo-se do

mundo. À medida que quer apagar sua existência é que se faz sentir pessoa. O “eu” que executa
131

os atos cotidianos abre espaço para aquele que pensa. Desta forma, o monstro ameaça destruir

não só o indivíduo, mas toda uma cultura, através da qual a subjetividade é constituída. O

monstro é você.

TESE 5- O monstro policia as fronteiras do possível

O monstro regula as fronteiras, os tabus - aqueles descritos por Claude Lévi-Strauss como

base da sociedade patriarcal - e as diferenças. A própria destrutividade do monstro é um processo

complicado e de alta periculosidade. Ele ajuda a manter o sistema a que denominamos cultura. As

culturas ditas “menores”, condicionadas a uma posição periférica, se tornam outros monstruosos,

por analogia.

O monstro policia as fronteiras do possível, é aquele que se arrisca a ultrapassá-las. Corre

o risco de ser abatido por um de seus habitantes ou, pior, vir a ser um deles. Assim, as fronteiras

jamais devem ser cruzadas, e a ficção sempre nos mostrou o quanto uma tentativa, nesse sentido,

pode ser perigosa.

O Homem que dorme foge da esfera doméstica e é atacado por uma dessas criaturas: o

próprio protagonista, o monstro da indiferença, da letargia, mas não o da ignorância. Trata-se do

choque entre o sujeito e sua alteridade; algo sobre como a sociedade e a vida banal exigem que

você seja. Este conflito é deveras semelhante ao vivenciado pelos protagonistas do referido Clube

da Luta em que o desdobramento cria o “monstro” Tyler Durden, mas Jack (o eu) busca moradia

do outro lado da fronteira e o clube por eles fundado denuncia o caos do mundo pós-moderno,

inconsistente, e de valores insólitos.

O monstro encerra em si a dupla narrativa: uma descreve o monstro, outra fornece seu uso

cultural. Você é esse monstro terrível que mostra como é doloroso descobrir, descobrir sobre o

mundo e sobre si mesmo, ao mesmo tempo em que certas fronteiras proibidas, muitas vezes,
132

devem ser cruzadas.

TESE 6- O medo do monstro é realmente uma espécie de desejo.

O monstro é repulsa e atração; se por um lado temos medo do monstro, de sua condição

fronteiriça e deformada, por outro nos identificamos e nos sentimos atraídos por sua situação

proibida.

O monstro é repulsa; mas, desesperado e livre, nós o invejamos. Existe um elemento de

sedução pelos monstros que nos habitam e pelos monstros do outro. Se o buscamos é porque ele

nos permite a formação de nossa subjetividade: “O monstro é o fragmento abjeto que permite a

formação de todos os tipos de identidade” (COHEN, 2000, p. 53); eles nos ajudam a atribuir

significado para “nós” e para “eles”.

Para Freud, Eros é a manifestação da existência e da sensualidade. Já Tanatos, cujo

domínio é o Reino dos Mortos, é o instinto da morte e da autodestruição, e embora passíveis de

aproximação, são inconciliáveis; representam a pulsão de vida e de morte e assim, o desejo e a

repulsa também se opõem e se associam.

Parece-nos, então, compreensível a empreitada do herói perecquiano ao encontro de seu

self-knowledge e o seu medo de ter a verdade revelada. A figura mostruosa pode funcionar como

o “alter ego” essencial na produção do eu (de um outro eu), representando não raras vezes um

caminho sem volta

TESE 7- O monstro está situado no limiar... do tornar-se:

Você se esconde, mas em breve retorna à vida normal e o regresso constroi-se em um

conhecimento talvez pleno, um conhecimento quase humano. O grande choque é entre aquele que

permanece e o que vai em busca do autoconhecimento: este interpela àquele sobre sua maneira de
133

perceber o mundo, pedindo uma nova avaliação.

Somos os genitores dos monstros e se os expulsamos para as margens geográficas da

mente, eles sempre retornam. Na concepção freudiana, o recalcado parece sempre retornar; aquilo

que foi reprimido é ponto crucial para o retorno e isso se dá nas mais diferentes formas. A

castração abordada por Freud incide nessa questão da volta e é o texto de Hoffman que será

usado por ele como meio de exemplificação. A patológica atitude do menino Natanael e sua

difícil relação com as figuras duplas (encenadas ora por sua noiva Clara e por Olímpia, ora por

Copélio e Spalanzani), advém do problema - incitado através da babá - em relação aos olhos e à

mítica figura do Homem da Areia. Para a psicanálise, o medo de perder os olhos ou feri-los, tão

comum na infância, nada mais é do que o temor da castração.

O Homem da Areia, de Hoffman, leva os olhos dos meninos e meninas desobedientes

como alimento para seus filhotes de bicos curvos, próprios para mordiscar os alimentos; em O

Golem, de Meyrink, as atrocidades do Dr. Wassory estão em realizar iridectomias em pacientes

doentes e sãos, criando a possibilidade de cegueira - “Perder a visão é tudo”, como diz Mestre

Pernath (MEYRINK, s/d, p. 33). Em Perec, essa força é ainda mais cruel; os olhos do Homem

que dorme não são machucados, tampouco são arrancados. Estes, ao invés de sinônimo de

cegueira, embora não permitam mais enxergar, são ampliados ao máximo e, dando voltas na

órbita, condenam-no a ver cada vez mais, a avistar a si e a seu interior.

A volta de você à chuva e à normalidade, descritos no final do texto, quando ele passa a

ser novamente um homem comum, é um retorno do monstro, pois ele dorme para acordar em

outro corpo, em outro momento, em outra mente disposta a entender o próprio homem, embora

eles (os monstros) sempre nos questionem. Tais litígios aproximam-se daqueles emitidos por

nossa maior criação: Deus. Não é Ele nosso maior inquisidor? Nossas criaturas, como já

mencionado anteriormente, fazem-nos pensar subjetivamente de modo unheimlich: com


134

familiaridade e estranheza; é o mesmo desfigurado em quase outro. Afinal, essas criaturas

suscitam seus criadores a serem monstros ou deuses?

A figura do monstro que nos chega atualmente já perdeu seu caráter assustador. Esses

monstros já não nos causam medo; pelo contrário, são sinônimos de riso e de alegoria, estando

muito mais próximos do Carnavalesco ou de rituais de Halloween; são apenas atrativos

cinematográficos, frutos mais dos efeitos tecnológicos do que do monstruoso em si.

O espaço reinvindicado por Perec - nessa leitura em que ousamos resgatá-lo do moderno e

transpô-lo ao pós-moderno - abarca o monstro, mas em sentido psicológico, dos transtornos

conhecidos pelo homem quando se engaja em um vetor de introspecção e se está bem mais

próximo das sensações e anseios que essa era exige. O autor no entanto, ainda que se possa

pensar, pelos demais elementos presentes na obra, em melancolia generalizada, mostra-nos uma

hipótese de ser o contrário. Seu olhar nos guia a uma sensação de busca maior que o cômodo

spleen niilista, através de sua linguagem tão permeada por poesia. Os jogos também têm

importância fundamental e o que nos fica é essa maneira perecquiana de resolver as questões com

muito ludismo; o exercício de contemplar o outro e, através de espelhos difusos, alcançar esse

mistério que é o eu.

O romance de Perec, então, seria a narração da recuperação de um homem alienado ou a

descrição de uma pseudo-iniciação? Aqui nós temos claramente um sintoma da “enfermidade” do

pós-moderno, pois o autor, pretendendo que em seu livro estivesse a primeira das hipóteses,

acabou, pela exigüidade dos seus horizontes e perspectivas, fazendo com que a segunda delas

correspondesse à verdade.

Assim, a narrativa é uma forma de reconhecer o inumano, principalmente ao identificar e


135

enfrentar os monstros interiores através do caminho da duplicação; é um modo de evitar que o

inumano, com ares negativos, impere:

Nenhuma maldição pesa sobre seus ombros. Você é um monstro, talvez, mas
não um monstro dos Infernos. Não tem necessidade de se contorcer, de uivar.
Nenhuma provação o espera, nenhuma rocha de Sísifo, nenhum cálice lhe será
apresentado para ser negado em seguida, nenhum corvo deseja os seus globos
oculares, nenhum abutre se viu obrigado a cumprir o indigesto castigo de vir
comer-lhe o fígado [...] ninguém o condena e você não cometeu erros (PEREC,
1988, p. 115).

Aquele fruto da pós-modernidade é, portanto, a maneira suave encontrada por Perec de,

ao brincar com a linguagem, criando uma sonora prosa poética, indicar o modo de compreender o

que é ou quanto pesa o Homem.

E assim conclui: “É num dia como este, um pouco mais tarde, um pouco mais cedo, que

tudo recomeça, que tudo começa, que tudo continua” (PEREC, 1988, p. 116).
136

5- CONCLUSÃO

O homem enrola a rede em torno de si mesmo. Um


leão (um homem do Caminho) despedaça a jaula.

Sanai, O Jardim Murado da Verdade

Na contemporaneidade, ocorre o deslocamento de todo e qualquer centro; o único

permitido é o centro urbano, que serve de santuário para este indivíduo quase nulo. Os

deslocamentos interior-exterior levam à anulação do centro para que este volte a existir, mas

como um novo núcleo, conforme sugerido por Michel Foucault. Em contrapartida, vemos um

homem narcisista que necessita deixar seu valioso nome gravado em muros efêmeros.

A morte de Deus, a morte do homem, implica um niilismo absurdo. De outra feita,

assistimos ao renascer da religiosidade, de crenças, mitos e ritos no intuito de colar os minúsculos

cacos humanos que davam sentido ao indivíduo. O drama do “pós-moderno” é justamente, depois

de se ter colocado em vacância a figura de Deus, lidar com o trauma deste espaço vazio e/ou

arranjar-Lhe sucedâneos.

No início, e na maior parte do romance de Georges Perec, Um homem que dorme, você

está entretido em fazer de si esse sucedâneo; no final, tenta avir-se com a possibilidade de que o

lugar de Deus está mesmo vazio, e o conceito de “Deus" é como as manchas na parede do seu
137

quarto, apenas isso - uma idéia, ou a projeção de uma idéia. Se o autor parece aderir a esse juízo

(não a de Deus, mas a de que não há um Deus) alegremente, antevendo na resignação filosófica

de você a esta triste alternativa, mais um passo em direção ao ajustamento no mundo, ele não está

errado: decerto você se ajustará, talvez ao custo do perder-se na multidão dos homens-massa,

perdendo também sua humanidade no processo, tornando-se um autômato.

Se a pós-modernidade é o momento do “des” ou do “pós” nada mais inequívoco do que

instaurar aí o desumano e o pós-humano (aqui tratado como inumano). Assim é que os conceitos

de inumano, desumano e monstruoso (não como lúdico) limitam-se, enquanto as concepções de

inumano e monstruoso (na acepção daquele que revela) conjugam-se. O humano, por sua vez,

não deixa de ser o ponto de convergência entre ambos os grupos.

O grande desmazelo é que depois de tantas justificadas batalhas e selvagerias para fazer

desse “ser”, existente desde a Antigüidade, o “Homem” - idéia tão bem explorada pelas razões

iluministas - tal conceito de humano está em vias de acabar. A fronteira entre o humano e o

inumano está desaparecendo, cedendo espaço, entre outras, à simulação genética da vida. Assim,

abrir-se-á espaço tanto para o que é pós-humano quanto para o desumano.

Cabe à literatura ajudar a sugerir respostas para, de alguma forma, realizar leituras sobre

os conhecimentos, o cruzamento de saberes, ganhando, assim, algum aspecto empírico e talvez

menos questionável para a sociedade atual, ainda tão ávida por ciência e exatidão. Afinal, “Que

relação há entre a linguagem e o ser [...]? Que é, pois, essa linguagem que nada diz, jamais se

cala e se chama ‘literatura’?”, como articula Michel Foucault, em As Palavras e as coisas (p.

421).

O texto de Perec, em vez de pessimista, convida-nos a explodir o sésamo e penetrar no

mundo do imaginário e, ao contrário do que se poderia pensar, o realiza de modo extremamente

positivo, por assim dizer. Na verdade, o que Um homem que dorme faz é, aproveitando-se de
138

linguagem universal, mostrar de que maneira cada indivíduo pode agir para lidar em atitude mais

amena com a dominação de seus monstros gerados pela Pós-modernidade. A esse homem

dessubstancializado caberá atuar em seu próprio proveito e escapar ileso, embora nunca o

mesmo.

Se o Ocidente desespera-se em busca de alguma ordem para o caos, talvez o Oriente –

uma vez liberto da condição periférica onde aquele o reprimiu – possa mostrar o caminho para a

transformação através de suas iniciações, quiçá restaurar algum equilíbrio.

Para nós fica, portanto, a incumbência de, mediante as hipóteses, compreender o

monstruoso, o inumano em seu sentido filosófico. O problema é que essa passagem para aquele

que está à procura de si mesmo pode permanecer, por demasiado, aberta e, uma vez elevada a

nossa condição à categoria de inumano, ainda que os dois conceitos se articulem (humano e

inumano), será bastante improvável que restabeleçamos aquilo que, até então, fora chamado de

Homem.

Como já entrevia Antonin Artaud, é chegada a hora de os homens voltarem ao tempo em

que eram árvores, árvores de vontade. Então, sejamos inumanos, docemente inumanos.
139

Essa vida que estás vivendo e já viveste, deverás


vivê-la ainda de novo e muitas outras vezes, e
jamais haverá nela nada de novo, mas cada
pensamento e suspiro e tudo o que há de
indizivelmente pequeno e grande em tua vida há
de te retornar e tudo na mesma ordem e
seqüência - e do mesmo modo esta aranha e este
luar por entre as árvores e do mesmo modo este
instante e eu próprio. A eterna ampulheta da
existência será virada de novo e tu com ela,
partícula de pó da poeira nascido.

Nietzsche, A Gaia ciência


140

6- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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6.2-Filmografia

CLUBE da luta. Título original: Fight Club. Direção: David Fincher. E.U.A: Fox, 1999. (135
min.).

CORAÇÃO satânico. Título original: Angel Heart. Direção: Alan Parker. E.U.A: Warner
Bros, 1987. (112 min.).

INTELIGÊNCIA artificial. Título original: A.I. artificial intelligence. Direção: Steven


Spielberg. E.U.A.: Warner Home Video, 2001. (143 min.).

LIVRO de cabeceira, O. Título original: Pillow book. Direção: GREENWAY, Peter.


Fança/Inglaterra, 1995. (126 min.).

REVOLUÇÃO dos bichos, A. Título original: Animal farm. Direção: John Stepherson.
E.U.A.: WGA, 1999. TV. (91min.).
148

TEMPOS modernos. Título original: Modern Times. Direção: Charles Chaplin. EUA:
Continental Home Vídeo, 1936. (88 min.)
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