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A medicalização do sofrimento psíquico:

considerações sobre o discurso psiquiátrico e seus efeitos


na Educação

Renata Guarido
Universidade de São Paulo

Resumo

Este estudo analisa criticamente as mudanças observadas no trata-


mento do sofrimento psíquico na história recente, apontando a
contribuição de fatores como: a padronização de sintomas trazida
pelas sucessivas edições da série DSM (Manual Diagnóstico e Esta-
tístico de Transtornos Mentais), os resultados de pesquisas na
neurociência – que tentam fundamentar o funcionamento psíquico
em bases orgânicas – e o grande desenvolvimento dos psico-
fármacos, fruto de maciços investimentos financeiros. A ação desse
conjunto de fatores teve por efeito a perda da noção de sentido/
significado dos sintomas e dos sofrimentos subjetivos, própria da
psiquiatria clássica, e a crescente medicalização dos indivíduos na
sociedade contemporânea.
O texto busca alinhavar como aconteceu a produção de uma nova
verdade acerca dos sofrimentos psíquicos e amplia essa análise, evi-
denciando que os procedimentos de medicalização surgidos no cui-
dado da população adulta foram estendidos também para as crianças.
Revê a evolução do tratamento da criança, marcando a interação da
pedagogia e da medicina na constituição da psiquiatria infantil. Além
disso, busca evidenciar os efeitos dessa verdade sobre os sujeitos,
identificando a forma como o discurso técnico (especialmente influ-
enciado pelo discurso médico-psicológico) tem tido lugar no mundo
contemporâneo e como este tem influenciado a Educação. Trata de
ressaltar, como produtos, a banalização da existência, a naturalização
do sofrimento e a culpabilização dos indivíduos pelas vicissitudes da
vida. Argumenta que a psicologização da escola pode ceder lugar hoje
à psiquiatrização do discurso escolar. A articulação saber/verdade/
poder é aqui tratada a partir dos textos de Michel Foucault.

Palavras-chave

Medicalização – Criança – Subjetividade – Educação.

Correspondência:
Renata Guarido
Av. Cerro Corá, 85 casa 24
05061-050 – São Paulo – SP
e-mail: reguarido@ig.com.br

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 151-161, jan./abr. 2007 151
The medicalization of the psychic suffering:
considerations about the psychiatric discourse and its
effects on Education

Renata Guarido
Universidade de São Paulo

Abstract

This study offers a critical analysis of the changes observed in the


treatment of psychiatric suffering in recent history, noting the
contribution from factors such as: the standardization of symptoms
brought by the successive editions of the DSM series (Diagnostic and
Statistical Manual of Mental Disorders), the results of researches in
neuroscience that attempt to establish the psychic functioning upon
organic bases, and the huge development of psychopharmaceuticals
as a result of massive financial investments. The combined action of
this group of factors had as its effect the loss of the notion of sense/
meaning of the symptoms and subjective sufferings, which belongs to
classical psychiatry, and the growing medicalization of the individuals
in contemporary society.
The text seeks to outline a picture of how a new truth about the
psychic sufferings was produced, and expands this analysis by
showing that the medicalization procedures developed for the
treatment of the adult population were extended also to children. It
reviews the evolution of the treatment of children, marking the
interaction between pedagogy and medicine in the constitution of
child psychiatry. In addition to that, the text tries to reveal the
effects of this truth upon the subjects, identifying the way in which
the technical discourse (particularly influenced by the medical-
psychological discourse) has been given a place in the contemporary
world, and how its has influenced education. It underlines, as
products of this process, the banalization of existence, the
naturalization of suffering, and the blaming of individuals for the
accidents of life, and argues that the psychologization of school may
nowadays be replaced by the psychiatrization of school discourse.
The articulation knowledge/truth/power is investigated here from the
texts of Michel Foucault.

Keywords

Contact: Medicalization – Child – Subjectivity – Education.


Renata Guarido
Av. Cerro Corá, 85 casa 24
05061-050 – São Paulo – SP
e-mail: reguarido@ig.com.br

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Muitos têm sido os trabalhos que, percor- propostas no tratamento da loucura – empre-
rendo a história da psiquiatria, dedicam-se a endimentos pós-asilares e a constituição do
analisar as mudanças históricas verificadas nos campo de reflexão e intervenções em Saúde
tratamentos propostos aos sofrimentos psíqui- Mental na oferta de alternativas de acolhimento
cos. Entre as mudanças mais marcadamente e tratamento da loucura (efeito dos trabalhos
assinaladas por tais trabalhos, verificadas ao da antipsiquiatria e do Movimento de Luta
longo dos últimos 50 anos, estão os novos pro- Antimanicomial) –, atualmente a psicofarma-
cedimentos diagnósticos propostos a partir da cologia e a neuropsiquiatria ganham espaço
produção da série DSM (Manual Diagnóstico e hegemônico no tratamento de sofrimentos se-
Estatístico de Transtornos Mentais), bem como veros bem como de uma gama muito maior de
os avanços da medicalização como forma majo- sofrimentos cotidianos1 .
ritária de intervenção terapêutica na atualidade. Data também de 1952 a primeira versão
Na sua grande maioria, as análises focam da série DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico
a presença atual de diagnósticos psiquiátricos de Transtornos Mentais) produzida nos EUA. Até
que estabelecem bases biológicas para os sofri- 1980, quando se publica a versão DSM-III, os
mentos psíquicos, aproximando os fenômenos fundamentos do diagnóstico propostos por es-
mentais das doenças orgânicas, ou seja, vê-se ses manuais expressavam influências da psicaná-
um abandono crescente da descrição causal e de lise e da psiquiatria social comunitária, ainda que
sentido dos sintomas apresentados pelo sujeito pouco a pouco ganhasse ênfase a objetivação
em benefício de uma noção em que os sintomas dos critérios diagnósticos baseados em experi-
são reconhecidos como manifestações de desor- mentações científicas que afastavam cada vez
dens da bioquímica cerebral (Aguiar, 2004; Sil- mais a dimensão de sentido antes presente na
va Jr., 2004; Roudinesco, 2000; Birman, 1999). consideração dos quadros psicopatológicos
(Aguiar, 2004). Ainda segundo esse autor, cum-
A biologia é fundamento incontestável da priram importante papel nas modificações teó-
psicopatologia na atualidade. As neurociên- ricas do manual as questões econômicas envol-
cias fornecem os instrumentos teóricos que vidas no incentivo de pesquisas americanas na
orientam a construção da explicação psiquiá- área da psiquiatria. A falta de objetividade nos
trica. Por esse viés, a psicopatologia preten- procedimentos psiquiátricos, antes da mudança
de ter encontrado finalmente sua cientifici- estabelecida pelo DSM-III, bem como a falta de
dade, de fato e de direito. Além disso, a nova dados epidemiológicos acarretavam custos inad-
psicopatologia acredita ter encontrado enfim missíveis pelas companhias seguradoras de saúde
com sua vocação médica, em um processo bem como pelos órgãos governamentais de in-
iniciado no início do século XIX, na medida centivo à pesquisa em saúde mental.
em que se fundaria no discurso biológico.
(Birman, 1999, p. 180) O DSM-III promoveu uma reviravolta no
campo psiquiátrico, que se apresentou
Data de 1952 a primeira sintetização de como uma salvação da profissão. Não se
um psicofármaco utilizado em tratamentos psi- tratava apenas de disputas teóricas internas
quiátricos. Desde então, a indústria farmacêu- ou de progresso científico. Ele surge como
tica investe, ano após ano, mais e mais recur- efeito da presença cada vez maior de gran-
sos no estabelecimento de pesquisas na área da des corporações privadas no campo da psi-
psicofarmacologia e investe grande parcela de
recursos no marketing de novas drogas. 1. A saber, por exemplo, a ‘epidemia da depressão’ presente nas socie-
dades ocidentais contemporâneas; sobre isso, ver o fundamental trabalho
Se o uso dos psicofármacos pôde ter de Élizabeth Roudinesco (2000), bem como recente publicação de Maria
alguns efeitos positivos associado às mudanças Silvia Bolguese (2004).

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quiatria, como a indústria farmacêutica e as nação do sujeito à bioquímica cerebral, somente
grandes seguradoras de saúde. O Congres- regulável pelo uso dos remédios.
so americano, que desacreditava o National Há aí uma inversão não pouco assustado-
Institute of Mental Health (NIMH) no co- ra, pois na lógica atual de construção diagnóstica,
meço dos anos 1970, justamente devido à o remédio participa da nomeação do transtorno.
baixa confiabilidade dos diagnósticos psi- Visto que não há mais uma etiologia e uma
quiátricos, passou a aumentar os recursos historicidade a serem consideradas, pois a verdade
financeiros destinados à pesquisa após o do sintoma/transtorno está no funcionamento
DSM-III. Em 1994, os fundos de pesquisa do bioquímico, e os efeitos da medicação dão vali-
NIMH chegaram a US$ 600 milhões, bem dade a um ou outro diagnóstico. O caráter expe-
mais que os US$ 90 milhões de 1976, e, sob rimental da administração de medicamentos pode
a influência do instituto, o congresso foi per- ser acompanhado nos procedimentos médicos
suadido a declarar os anos 1990 como ‘a atuais, bem como a mudança dos diagnósticos
década do cérebro’. (Aguiar, 2004, p. 42) pela variação dos sintomas apresentados em certo
espaço determinado de tempo.
A versão DSM-III rompe definitivamente
com a psiquiatria clássica. A partir desta, os qua- A medicalização da criança e
dros psicopatológicos serão apresentados como seus efeitos sobre a Educação
transtornos mentais que serão diagnosticados a
partir da presença de certo número de sintomas Se nos textos encontramos análises da clí-
(identificados a partir de uma lista presente no nica psiquiátrica atual com adultos, sabemos por
manual para cada transtorno) e que devem estar pesquisas recentes da crescente medicalização das
presentes na vida do sujeito por um intervalo crianças e da mesma lógica diagnóstica do DSM
definido de tempo. Além disso, a psiquiatria ame- aplicada a seus sofrimentos psíquicos. No entan-
ricana consolida-se como discurso hegemônico e to, poucas são as análises que centram foco nes-
o DSM-IV revisado (última versão do manual) é se fenômeno: a crescente medicalização da criança
atualmente referência mundial de diagnóstico dos e a utilização dos paradigmas da clínica com adul-
transtornos mentais, globalizando o modelo psiqui- tos para a clínica psiquiátrica com crianças.
átrico americano. Bercherie, ao caracterizar a formação do
Considerando que a medicação é atual- campo da psiquiatria infantil, divide sua histó-
mente indicação prioritária das intervenções mé- ria em três grandes períodos, marcados por in-
dico-psiquiátricas, associada a procedimentos fluências diversas e por formas distintas de
diagnósticos descritivos, objetivados pelo discur- apreensão dos fenômenos da infância. De for-
so científico, bem como levando em consideração ma resumida, apresenta: 1- a influência da pe-
a socialização do discurso médico estabelecida dagogia dos séculos XVIII e XIX; 2- os progres-
pela mídia e as campanhas de marketing financi- sos da psicologia do desenvolvimento; e 3- as
adas pela indústria farmacêutica, pode-se reco- contribuições psicanalíticas nas definições da
nhecer em relevo o paradigma do discurso médico clínica psiquiátrica da criança.
na produção de verdade acerca do sofrimento
psíquico e de sua natureza. Se a psiquiatria clás- O que determina as questões, procedimen-
sica, de forma geral, esteve às voltas com fenô- tos e observações dos clínicos, é o olhar
menos psíquicos não codificáveis em termos do que eles lançam sobre a infância, a concep-
funcionamento orgânico, guardando espaço à ção que têm de seu desenvolvimento e de
dimensão enigmática da subjetividade, a psi- seu papel na formação do adulto. Durante
quiatria contemporânea promove uma natura- os dois primeiros períodos [séc. XIX até
lização do fenômeno humano e uma subordi- primeiro terço do séc. XX], a criança é es-

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sencialmente concebida como um adulto historiadores da psiquiatria afirmam que nesse
‘em potência’, no sentido aristotélico: o período a patologia fundamental recortada no
adulto não é somente o fim de seu desen- campo médico para a criança fosse a idiotia –
volvimento, mas também seu único con- retardo mental –, sendo que esta não tinha
teúdo e seu sentido último. A psicologia da estatuto de doença mental.
criança só começa realmente a existir como As formas de tratamento presentes nesse
campo autônomo no final do séc. XIX [...]. período são descritas como médico-pedagógicas
Antes dessa época, é nas doutrinas pedagó- e se realizavam em serviços anexos aos asilos para
gicas que é preciso procurar as concepções loucos adultos. Ali estavam, segundo os autores,
clássicas sobre a infância. (Bercherie apud enormes contingentes de crianças idiotas.
Cirino, 2001, p.139) 2 O trabalho desenvolvido por Itard com
Victor de Aveyron é tomado como marco des-
Se até o início do século XX a criança é sas abordagens de tratamento.
basicamente objeto da pedagogia, é nesta que
os primeiros médicos dedicados a enfrentar os La importancia de la historia de Victor se
problemas graves do desenvolvimento infantil mide por el doble deslizamiento de la práctica
vão encontrar parceria fértil para propor formas y de la reflexion científicas de las que es la
de tratamento a essas crianças. Pode-se dizer ocasión y el punto de apoyo: con él, el salvaje
que o campo de tratamento da criança se ins- y el idiota desaparecen detrás de su condición
tala imbricado a certo ideal de educação do humana; y por su humanidad se convierte en
início do séc. XIX. motivo de tratamiento moral – hoy diríamos
psicoterapeutico – continuado durante largo
O ideal educativo, no início do século XIX, tiempo. (Postel; Quetel, 1987, p. 510)
já estava instalado na forma como hoje o
conhecemos. Vinha, desde o século XVII, O marco empreendido por Itard é então
atribuindo contorno, a existência e o senti- de conjugar medicina e pedagogia, dando lu-
do que o discurso social designa para a gar à constituição de um saber médico sobre a
criança, como nos mostra Philippe Ariès. criança considerada idiota, saber esse que se
Ariès demonstra que o novo sentimento de nomeará pouco depois como psiquiatria da
infância gestado a partir do século XVII é criança ou psiquiatria infantil e que, além dis-
totalmente solidário com um novo ideal so, influenciará a formação da Educação Espe-
educativo, construído de modo a atender cial. Vale dizer que o domínio do saber sobre
às exigências político-sociais de uma bur- a criança passa cada vez mais do universo
guesia nascente. O discurso social moderno pedagógico ao universo médico-psicológico.
cria uma criança cuja consistência está no As escalas de inteligência desenvolvidas
fato de ela ser submetida a uma educação por Binet e Simon contribuem para a instalação
nova, que implica vigilância, disciplina, se- definitiva da psiquiatria infantil como ramo
gregação. Que implica o surgimento da es- separado da psiquiatria geral. Os conceitos
cola. Nossa criança é, por definição, escolar. educável ou ineducável aplicáveis às crianças,
(Kupfer, 2001, p. 42) frutos dos testes de inteligência e das determi-
nações dos graus de deficiência mental consi-
Interessava aos médicos de então tratar derados naquele momento, reafirmam a forte
o que se configurava como desordens das con-
dições das crianças em se tornarem adultos 2. Bercherie, P. A clínica psiquiátrica da criança : estudo histórico. Tradu-
ção Oscar Cirino. Artigo publicado originalmente em Ornicar? n. 26-27.
plenos no exercício de suas funções intelectu- Paris: Navarin, 1983. Em português, a primeira versão nos Fascículos
ais e morais. Não é por acaso, então, que os Fhemig , n. 7. BH: Fhemig, 1992. A atual versão está em Cirino, 2001.

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ligação das propostas de tratamento da crian- e as propostas terapêuticas disciplinadoras man-
ça aos procedimentos pedagógicos, ou melhor: têm-se ainda vigentes, especialmente no caso
diagnóstico e tratamento das crianças são es- das crianças. A medicalização e os diagnósticos
tabelecidos a partir das condições destas para descritivos são agora amplamente utilizados com
o aprendizado, o que é fruto da difícil sepa- as crianças. A diferença entre adultos e crianças
ração do sofrimento psíquico da criança de aparece nublada com a aplicação do paradigma
seu desenvolvimento psicológico e da expres- da psiquiatria biológica. No campo do orgânico,
são deste na apreensão pela criança dos códi- as diferenças entre adultos e crianças pratica-
gos de moralidade vigentes, bem como de mente inexistem, já que neste a dimensão histó-
suas aquisições cognitivas. Vale dizer que esse rica está ausente.
tipo de diferenciação continua sendo objeto Do ponto de vista do tratamento e da
de discussão atual. escolarização das crianças, as críticas de Maud
Apesar da constituição da psiquiatria Mannoni são ponto de partida fundamental. Suas
infantil como ramo independente, conceitos da críticas à pedagogia e seus efeitos excludentes,
psiquiatria dos adultos começaram a ser utili- bem como ao poder técnico sobre o tratamento
zados para definir outras patologias que passa- das crianças, institucionalizados nos centro mé-
ram a ser descritas na criança como, por exem- dico-pedagógicos franceses, têm ainda hoje efei-
plo, a demência precoce de Kraepelin e a de- to sobre a lógica contemporânea das interven-
mência precocíssima, definida por Sancte de ções destinadas às crianças, sejam elas educativas
Sanctis, que constituíram quadros de referência ou terapêuticas.
para pensar a loucura nas crianças (Postel;
Quetel, 1987). Em vez de revolucionar o ensino e sua es-
Bercherie, no entanto, ressalta que a par- trutura, o Ocidente prefere, pelo contrário,
tir da década de 1930 a psicanálise influencia remediar os efeitos das anomalias geradas
fortemente o campo de investigação clínica da por um ensino inadequado à nossa época.
criança e essa influência se mantém presente até Remediar os efeitos significa, neste caso,
os anos 1980. De fato, isso contribuiu em mui- encarregar a medicina de responder onde o
to para a diferenciação do campo de interven- ensino fracassou. (Mannoni, 1988, p. 62)
ções terapêuticas sobre a criança, separadas da
clínica dos adultos. Entretanto, esta não parece Em termos terapêuticos, as terapias
ser mais a realidade da clínica com crianças. cognitivas, de tradição behaviorista, são as úni-
Ao longo dos séculos XIX e XX, diversas cas atualmente aceitas como válidas pelo saber
instituições médico-pedagógicas para crianças médico. Assim, vemos as crianças e suas famí-
surgiram na Europa bem como nos Estados Uni- lias submetidas ao poder exercido pela consti-
dos. De suas histórias, recolhem-se tentativas de tuição de um domínio de saber médico-psico-
tratamento, mas os empreendimentos médico-pe- lógico sem que o contexto de seus sofrimentos,
dagógicos fracassaram em restituir às crianças sua bem como sua possibilidade de tratamento, se-
condição de aprendizado e pertencimento social. jam orientados para outras formas de conside-
Os desenvolvimentos da psiquiatria da ração da subjetividade que não a normalizante
criança são marcados, como na psiquiatria dos e de ‘treinamento’.
adultos, pela institucionalização e segregação. O Que o campo educativo esteja invadido
movimento antipsiquiátrico cumpriu importante pelos discursos técnicos, não é novidade. A
papel ao questionar a institucionalização da cientificização dos discursos sobre a criança des-
loucura, o poder do discurso médico sobre a de o início do século XX contribuiu não somente
doença e o sujeito, denunciando o fracasso dos para a construção de um discurso pedagógico
tratamentos. No entanto, os efeitos de exclusão normalizador, mas também para a validação de um

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saber sobre a criança no campo das especialidades: comportamentais e cognitivas das crianças,
psicologia, fonoaudiologia, psicopedagogia, psiqui- vemos que a Educação encontra-se mais uma
atria etc. Os encaminhamentos para especialistas vez, ou mais intensamente, atravessada pelo
feitos pelas equipes escolares e a psicologização discurso especialista.
do ensino têm sido bastante discutidos por diver- Seria preciso resgatar e exercer algo do
sos autores. domínio do ato educativo nas escolas sem que
Os trabalhos de Maria Helena Souza Patto, este tivesse antes que estar vinculado à obser-
além disso, discutiram amplamente a produção do vação de especialistas ou à orientação destes,
fracasso escolar, como fruto dos efeitos de discri- permitindo que as crianças tivessem ao menos
minação das classes trabalhadoras, justificada um pertencimento social não atravessado por
pelo discurso científico psicologizante: suas denominações ou rotulações diagnósticas.
Esta talvez seja uma das grandes possibilidades
Como regra, o exame psicológico conclui que a Educação Inclusiva permite às crianças
pela presença de deficiências ou distúrbios que estiveram até então fora da escola: estar na
mentais [leia-se hoje transtornos mentais] escola resgata um lugar social não conferido
nos alunos encaminhados, prática que terá até pouco tempo atrás às crianças em grave
resultados diferentes de acordo com a clas- sofrimento psíquico.
se social a que pertencem: em se tratando Se, por um lado, os profissionais da Edu-
de crianças da média e da alta burguesia, cação se vêem destituídos de sua possibilidade
os procedimentos diagnósticos levarão a de ação junto às crianças pela hegemonia do
psicoterapias, terapias pedagógicas e orien- discurso das especialidades; por outro, ao assu-
tações de pais que visam a adaptá-las a mir e validar os discursos médico-psicológicos,
uma escola que realiza os seus interesses a pedagogia não deixa de fazer a manutenção
de classe; no caso de crianças das classes dessa mesma prática, desresponsabilizando a
subalternas, ela termina com um laudo que escola e culpabilizando as crianças e suas famí-
mais cedo ou mais tarde, justificará sua ex- lias por seus fracassos.
clusão da escola. Nesse caso, a desigualda- O discurso médico difundido na mídia
de e a exclusão são justificadas cientifica- leiga, em forma de artigos simplistas que natu-
mente (ou seja, com pretensa isenção e ralizam o sofrimento da criança e seus ‘proble-
objetividade) através de explicações que mas de aprendizado’, apresenta-se atualmente na
ignoram a sua dimensão política e se esgo- escola de forma marcante. É comum que profes-
tam no plano das diferenças individuais de sores e coordenadores professem diagnósticos
capacidade. (Patto apud Patto, 2000 p. 65) diante da observação de certos comportamentos
das crianças, especialmente de Transtorno de
Algumas mudanças significativas na Edu- Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), e as
cação têm ocorrido depois do início da defesa encaminhem para avaliação psiquiátrica, neuro-
da Educação Inclusiva, algo que deve ser ano- lógica e/ou psicológica. É comum também que
tado, mas que não será discutido aqui. No agentes das equipes escolares insistam em per-
entanto, também a partir daí, a escola tem guntar aos pais, quando se encontram diante de
convivido muito mais de perto com o discurso alguma manifestação não conhecida (ou não de-
psiquiátrico, já que tem recebido crianças que sejada) de uma criança que está em tratamento,
estavam excluídas da escola antes mesmo de
nela ingressarem, por terem sido consideradas, 3. Persiste no discurso de muitos psiquiatras infantis no país a avaliação
a partir de seus diagnósticos, ineducáveis3 . de que as crianças com deficiência mental e com diversos diagnósticos de
psicose não devem, de forma alguma, frequentar a escola regular, sendo
Com a hegemonia do discurso psiquiá- que suas matriculas, defendem, deveriam ser feitas em escolas especiais
trico sobre os sofrimentos e as disfunções ou nas extintas (ou pelo menos deveriam ter sido) classes especiais.

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se ela foi corretamente medicada naquele dia. cerebral – são os objetos a partir dos quais a
Tais procedimentos nos permitem entrever que medicina estabelece seu saber e seu poder so-
estão crentes de que a variação no uso do re- bre os sujeitos na contemporaneidade. Antes
médio é responsável pela variação dos compor- disso, Foucault (1987), em Vigiar e punir, já de-
tamentos e estados psíquicos da crianças, e que monstrava como o poder da Norma operava, a
esta não teria nenhuma relação com variações, partir dos exames diagnósticos, a produção de
mudanças ou experiências no interior do cotidi- um saber sobre os indivíduos e sua sujeição aos
ano escolar. domínios da ciência/das psicociências. O desen-
Vemos que o fenômeno da psicologização volvimento do saber psiquiátrico esteve, de
da escola cede lugar a psiquiatrização do discur- maneira geral, constantemente filiado às aplica-
so escolar. ções dessa técnica – o exame.

Sofrimento psíquico Todas as ciências, análises ou práticas com


recodificado: estratégia do radical ‘psico’, têm seu lugar nessa troca
biopoder histórica dos processos de individualização.
O momento em que passamos de mecanis-
O discurso contemporâneo da psiquia- mos histórico-rituais de formação da indivi-
tria biológica ou neuropsiquiatria descreve es- dualidade do homem memorável pela do
sencialmente os fenômenos humanos em termos homem calculável, esse momento em que as
de um funcionamento orgânico manipulável: ciências do homem se tornaram possíveis, é
retradução da fundação da clínica médica que aquele em que foram postas em funciona-
buscava na anatomia o lócus dos fenômenos mento uma nova tecnologia do poder e uma
propriamente humanos. nova anatomia política do corpo. (p. 161)
A psiquiatria biológica, na medida em
que se utiliza também dos estudos estatísticos A ampla gama de sintomas presentes nos
e epidemiológicos, cumpre papel disciplinar manuais bem como a forma diagnóstica propos-
sobre a população. O programa diagnóstico dos ta por eles permitem que muitos acontecimentos
manuais constitui uma operação de classifica- cotidianos, sofrimentos passageiros ou outros
ção e distribuição dos sintomas em quadros comportamentos, possam ser registrados como
regulares de transtornos e é a aplicação do sintomas próprios de transtornos mentais. A so-
conjunto sobre o relato pontual do indivíduo cialização do DSM-IV na formação médica geral
que determina sua nomeação e seu tratamen- permite que clínicos de outras especialidades, que
to. Não é incomum observar, nas unidades de não a psiquiátrica, possam medicar com facilidade
saúde ou mesmo nas escolas, que o nome do seus pacientes. Não se trata de sugerir a manu-
paciente ou do aluno seja substituído por sua tenção do domínio psiquiátrico nesse caso, mas
classificação diagnóstica – estranha nomeação de revelar a banalização do diagnóstico e o uso
dos indivíduos que põe em relevo o lugar que irrestrito de medicações como intervenção dian-
ocupam na escala normal. te da vida. Alguns psiquiatras têm demonstrado
Da era clássica à pós-modernidade, ve- sua preocupação em relação a esses efeitos:
mos como, tomando os estudos de Foucault, a
alma tornou-se pouco a pouco objeto de con- Há uma psiquiatrização ocorrendo na socie-
trole e disciplina apoderada pelos diversos dis- dade. Já existem 500 tipos descritos de trans-
cursos (religioso, militar, pedagógico, psiquiátri- torno mental e do comportamento. Com tan-
co, psicológico etc). No campo do discurso tas descrições, quase ninguém escaparia a um
médico, os elementos mínimos do orgânico – os diagnóstico de problemas mentais. [...] Se a
neurotransmissores e as funções da bioquímica criança está agitada na escola, podem achar

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que está tendo um transtorno de atenção e o crescimento exponencial da indústria farma-
hiperatividade. Coisas normais da vida estão cêutica tornam-se elementos indissociáveis do
sendo encaradas como patologias. [...] Houve exercício do poder médico apoiado em um
um excesso de diagnósticos psiquiátricos. Essa saber consolidado ao longo do século XX.
variedade atende mais aos interesses e à saúde
financeira da indústria que à saúde dos paci- Alheios à estrutura social e à sua historici-
entes. (Costa e Silva apud Aguiar, 2004, p. 85) dade, o biologismo e o psicologismo man-
têm-se à custa de uma análise a-histórica,
Estamos atualmente, então, convivendo quando não anti-histórica, das relações soci-
com sofrimentos codificados em termos de uma ais antagônicas nas sociedades industriais
nomeação própria do discurso médico, que se capitalistas, análise na qual se enfatizam os
socializa amplamente e passa a ordenar a relação elementos integrativos e normativos da vida
do indivíduo com sua subjetividade e seus sofri- social. (Patto apud Patto, 2000, p. 172)
mentos. Diante disso, as dimensões conflitiva,
imprevisível, irredutível e inapreensível da subje- Não se trata de rejeitar todo e qualquer
tividade vêm sendo negadas e tratadas como uso dos psicofármacos, pois são inegáveis al-
meras abstrações psicanalítico-filosóficas. guns de seus efeitos positivos tanto na vida de
Em História da sexualidade, Foucault alguns como na possibilidade de transformação
(1977) analisa a passagem do poder soberano do sistema de cuidados e tratamento da loucu-
sobre a morte ao poder político de ‘gerir a ra no século XX, mas de evidenciar os efeitos
vida’, da era clássica à modernidade. Enfatiza a de um discurso que banaliza a existência, na-
presença de dois mecanismos: o desenvolvimen- turaliza os sofrimentos e culpabiliza os indiví-
to das disciplinas do corpo no século XVII e as duos por seus problemas e pelo cuidado de si
regulações da população no século XVIII. A ar- (racionalização própria da economia neoliberal).
ticulação desses dois mecanismos de poder ao Trata-se também de encontrar na Educa-
longo do século XIX, nas regulações da vida, ção uma possibilidade de não sujeição ao dis-
configurará uma nova forma de poder definida curso psiquiátrico, libertando as crianças dos
por ele como biopoder. destinos previstos nos prognósticos médicos.
As formas de viver, o exercício das possi- A permeabilidade do discurso pedagógi-
bilidades da vida, o cultivo da saúde, os domíni- co à cientificidade médico-psicológica parece
os sobre a sexualidade, assim como os sofrimen- também cumprir a função de dar consistência a
tos existenciais serão objeto de saber e poder. certa metodologia capaz de dar conta daquilo
A normalização da vida expressa no cam- que passou a ser considerado ponto fundamen-
po médico pela possibilidade de classificação dos tal no desenvolvimento cognitivo das crianças:
indivíduos em termos diagnósticos, baseados tam- as chamadas competências. Por outro lado, esse
bém em estudos populacionais epidemiológicos, recurso permite um discurso que, baseado na
que definem atualmente algumas das políticas em noção de déficit, explicaria os fracassos experi-
saúde mental (tanto nas propostas de tratamen- mentados no interior das escolas, estando estes
to como em seu aspecto preventivo), pode ser ora do lado da criança, que não seria capaz de
inserida naquilo que Foucault nomeia como desenvolver as famosas competências em função
microfísica do poder sobre os corpos. de falhas presentes em seu organismo, ora do
A produção de saber sobre o sofrimen- lado da metodologia pedagógica, não realizada
to psíquico encontra-se associada à produção ou construída de forma a estar adequada às
da indústria farmacêutica de remédios que pro- mesmas competências das crianças.
metem aliviar os sofrimentos existenciais. O Em um ou outro caso, o que se parece
consumo em larga escala dos medicamentos e tentar evitar diz respeito àquilo que é inerente

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ao próprio ato educativo e à constituição dos que no, entonces la escuela está condenada
sujeitos: sua imprevisibilidade e o fato de que a desaparecer. La chance de sobrevivir no
ambos se dão no encontro com a alteridade. radica en las buenas intenciones sino en el
Evitar a imprevisibilidade e o outro, esse estra- ejercicio perseverante de la libertad que, si
nho outro, acaba por, de certa forma, desfazer he sido claro, consiste en términos educa-
a implicação do ato educativo como um ato tivos en ofertar (enseñar) más alla o a pesar
constitutivo do sujeito. de todo cálculo, contexto, realidad, deman-
da o entrevista. (Trechos de entrevista com
Si educar es operar sobre el outro com el Estalislao Antelo, 2004)
propósito de hacer del outro um semejante,
em realidad se podría decir que nadie está O recurso à técnica, seja ela a dos ma-
preparado. [...] nuais de psicologia seja a do discurso médico
En toda relación humana existe uma mutua hegemônico, tem tido efeitos não pouco nefas-
intervención. Este es um debate interesante. tos sobre o discurso pedagógico nos tempos
No hay educación sin intervención. Enseñar contemporâneos. A medicalização em larga es-
ya es intervenir, hay que introducirse en un cala das crianças nos tempos atuais pode ser
espacio que le pertenece al otro; existe una lida também como apelo ao silêncio dos con-
especie de violencia dada por la ocupación flitos, negando-os como inerentes à subjetivi-
del territorio que es del otro. [...] Pero si dade e ao encontro humano. Que o discurso
creo de entrada que el otro no va a poder, pedagógico contribua para a manutenção desse
si esta-belezco un juicio a priori de lo que tipo de recurso deve ser objeto constante de
va o no va a poder o si le dejo a la crítica em direção à possibilidade de que o
psicología decir qué es lo que puede y lo lugar do ato educativo seja redefinido.

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Recebido em 26.09.05
Aprovado em 17.04.06

Renata Guarido é graduada pelo IPUSP em 1993, atuou como psicóloga na Creche Central da USP durante sete anos,
atualmente faz parte da Equipe Clínica da Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida – IPUSP –, que atende, para tratamento e
acompanhamento da escolarização, crianças em graves sofrimentos psíquicos. Psicóloga, mestranda em Psicologia da
Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

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