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A Medicalização Do Sofrimento Psíquico
A Medicalização Do Sofrimento Psíquico
Renata Guarido
Universidade de São Paulo
Resumo
Palavras-chave
Correspondência:
Renata Guarido
Av. Cerro Corá, 85 casa 24
05061-050 – São Paulo – SP
e-mail: reguarido@ig.com.br
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 151-161, jan./abr. 2007 151
The medicalization of the psychic suffering:
considerations about the psychiatric discourse and its
effects on Education
Renata Guarido
Universidade de São Paulo
Abstract
Keywords
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Muitos têm sido os trabalhos que, percor- propostas no tratamento da loucura – empre-
rendo a história da psiquiatria, dedicam-se a endimentos pós-asilares e a constituição do
analisar as mudanças históricas verificadas nos campo de reflexão e intervenções em Saúde
tratamentos propostos aos sofrimentos psíqui- Mental na oferta de alternativas de acolhimento
cos. Entre as mudanças mais marcadamente e tratamento da loucura (efeito dos trabalhos
assinaladas por tais trabalhos, verificadas ao da antipsiquiatria e do Movimento de Luta
longo dos últimos 50 anos, estão os novos pro- Antimanicomial) –, atualmente a psicofarma-
cedimentos diagnósticos propostos a partir da cologia e a neuropsiquiatria ganham espaço
produção da série DSM (Manual Diagnóstico e hegemônico no tratamento de sofrimentos se-
Estatístico de Transtornos Mentais), bem como veros bem como de uma gama muito maior de
os avanços da medicalização como forma majo- sofrimentos cotidianos1 .
ritária de intervenção terapêutica na atualidade. Data também de 1952 a primeira versão
Na sua grande maioria, as análises focam da série DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico
a presença atual de diagnósticos psiquiátricos de Transtornos Mentais) produzida nos EUA. Até
que estabelecem bases biológicas para os sofri- 1980, quando se publica a versão DSM-III, os
mentos psíquicos, aproximando os fenômenos fundamentos do diagnóstico propostos por es-
mentais das doenças orgânicas, ou seja, vê-se ses manuais expressavam influências da psicaná-
um abandono crescente da descrição causal e de lise e da psiquiatria social comunitária, ainda que
sentido dos sintomas apresentados pelo sujeito pouco a pouco ganhasse ênfase a objetivação
em benefício de uma noção em que os sintomas dos critérios diagnósticos baseados em experi-
são reconhecidos como manifestações de desor- mentações científicas que afastavam cada vez
dens da bioquímica cerebral (Aguiar, 2004; Sil- mais a dimensão de sentido antes presente na
va Jr., 2004; Roudinesco, 2000; Birman, 1999). consideração dos quadros psicopatológicos
(Aguiar, 2004). Ainda segundo esse autor, cum-
A biologia é fundamento incontestável da priram importante papel nas modificações teó-
psicopatologia na atualidade. As neurociên- ricas do manual as questões econômicas envol-
cias fornecem os instrumentos teóricos que vidas no incentivo de pesquisas americanas na
orientam a construção da explicação psiquiá- área da psiquiatria. A falta de objetividade nos
trica. Por esse viés, a psicopatologia preten- procedimentos psiquiátricos, antes da mudança
de ter encontrado finalmente sua cientifici- estabelecida pelo DSM-III, bem como a falta de
dade, de fato e de direito. Além disso, a nova dados epidemiológicos acarretavam custos inad-
psicopatologia acredita ter encontrado enfim missíveis pelas companhias seguradoras de saúde
com sua vocação médica, em um processo bem como pelos órgãos governamentais de in-
iniciado no início do século XIX, na medida centivo à pesquisa em saúde mental.
em que se fundaria no discurso biológico.
(Birman, 1999, p. 180) O DSM-III promoveu uma reviravolta no
campo psiquiátrico, que se apresentou
Data de 1952 a primeira sintetização de como uma salvação da profissão. Não se
um psicofármaco utilizado em tratamentos psi- tratava apenas de disputas teóricas internas
quiátricos. Desde então, a indústria farmacêu- ou de progresso científico. Ele surge como
tica investe, ano após ano, mais e mais recur- efeito da presença cada vez maior de gran-
sos no estabelecimento de pesquisas na área da des corporações privadas no campo da psi-
psicofarmacologia e investe grande parcela de
recursos no marketing de novas drogas. 1. A saber, por exemplo, a ‘epidemia da depressão’ presente nas socie-
dades ocidentais contemporâneas; sobre isso, ver o fundamental trabalho
Se o uso dos psicofármacos pôde ter de Élizabeth Roudinesco (2000), bem como recente publicação de Maria
alguns efeitos positivos associado às mudanças Silvia Bolguese (2004).
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quiatria, como a indústria farmacêutica e as nação do sujeito à bioquímica cerebral, somente
grandes seguradoras de saúde. O Congres- regulável pelo uso dos remédios.
so americano, que desacreditava o National Há aí uma inversão não pouco assustado-
Institute of Mental Health (NIMH) no co- ra, pois na lógica atual de construção diagnóstica,
meço dos anos 1970, justamente devido à o remédio participa da nomeação do transtorno.
baixa confiabilidade dos diagnósticos psi- Visto que não há mais uma etiologia e uma
quiátricos, passou a aumentar os recursos historicidade a serem consideradas, pois a verdade
financeiros destinados à pesquisa após o do sintoma/transtorno está no funcionamento
DSM-III. Em 1994, os fundos de pesquisa do bioquímico, e os efeitos da medicação dão vali-
NIMH chegaram a US$ 600 milhões, bem dade a um ou outro diagnóstico. O caráter expe-
mais que os US$ 90 milhões de 1976, e, sob rimental da administração de medicamentos pode
a influência do instituto, o congresso foi per- ser acompanhado nos procedimentos médicos
suadido a declarar os anos 1990 como ‘a atuais, bem como a mudança dos diagnósticos
década do cérebro’. (Aguiar, 2004, p. 42) pela variação dos sintomas apresentados em certo
espaço determinado de tempo.
A versão DSM-III rompe definitivamente
com a psiquiatria clássica. A partir desta, os qua- A medicalização da criança e
dros psicopatológicos serão apresentados como seus efeitos sobre a Educação
transtornos mentais que serão diagnosticados a
partir da presença de certo número de sintomas Se nos textos encontramos análises da clí-
(identificados a partir de uma lista presente no nica psiquiátrica atual com adultos, sabemos por
manual para cada transtorno) e que devem estar pesquisas recentes da crescente medicalização das
presentes na vida do sujeito por um intervalo crianças e da mesma lógica diagnóstica do DSM
definido de tempo. Além disso, a psiquiatria ame- aplicada a seus sofrimentos psíquicos. No entan-
ricana consolida-se como discurso hegemônico e to, poucas são as análises que centram foco nes-
o DSM-IV revisado (última versão do manual) é se fenômeno: a crescente medicalização da criança
atualmente referência mundial de diagnóstico dos e a utilização dos paradigmas da clínica com adul-
transtornos mentais, globalizando o modelo psiqui- tos para a clínica psiquiátrica com crianças.
átrico americano. Bercherie, ao caracterizar a formação do
Considerando que a medicação é atual- campo da psiquiatria infantil, divide sua histó-
mente indicação prioritária das intervenções mé- ria em três grandes períodos, marcados por in-
dico-psiquiátricas, associada a procedimentos fluências diversas e por formas distintas de
diagnósticos descritivos, objetivados pelo discur- apreensão dos fenômenos da infância. De for-
so científico, bem como levando em consideração ma resumida, apresenta: 1- a influência da pe-
a socialização do discurso médico estabelecida dagogia dos séculos XVIII e XIX; 2- os progres-
pela mídia e as campanhas de marketing financi- sos da psicologia do desenvolvimento; e 3- as
adas pela indústria farmacêutica, pode-se reco- contribuições psicanalíticas nas definições da
nhecer em relevo o paradigma do discurso médico clínica psiquiátrica da criança.
na produção de verdade acerca do sofrimento
psíquico e de sua natureza. Se a psiquiatria clás- O que determina as questões, procedimen-
sica, de forma geral, esteve às voltas com fenô- tos e observações dos clínicos, é o olhar
menos psíquicos não codificáveis em termos do que eles lançam sobre a infância, a concep-
funcionamento orgânico, guardando espaço à ção que têm de seu desenvolvimento e de
dimensão enigmática da subjetividade, a psi- seu papel na formação do adulto. Durante
quiatria contemporânea promove uma natura- os dois primeiros períodos [séc. XIX até
lização do fenômeno humano e uma subordi- primeiro terço do séc. XX], a criança é es-
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ligação das propostas de tratamento da crian- e as propostas terapêuticas disciplinadoras man-
ça aos procedimentos pedagógicos, ou melhor: têm-se ainda vigentes, especialmente no caso
diagnóstico e tratamento das crianças são es- das crianças. A medicalização e os diagnósticos
tabelecidos a partir das condições destas para descritivos são agora amplamente utilizados com
o aprendizado, o que é fruto da difícil sepa- as crianças. A diferença entre adultos e crianças
ração do sofrimento psíquico da criança de aparece nublada com a aplicação do paradigma
seu desenvolvimento psicológico e da expres- da psiquiatria biológica. No campo do orgânico,
são deste na apreensão pela criança dos códi- as diferenças entre adultos e crianças pratica-
gos de moralidade vigentes, bem como de mente inexistem, já que neste a dimensão histó-
suas aquisições cognitivas. Vale dizer que esse rica está ausente.
tipo de diferenciação continua sendo objeto Do ponto de vista do tratamento e da
de discussão atual. escolarização das crianças, as críticas de Maud
Apesar da constituição da psiquiatria Mannoni são ponto de partida fundamental. Suas
infantil como ramo independente, conceitos da críticas à pedagogia e seus efeitos excludentes,
psiquiatria dos adultos começaram a ser utili- bem como ao poder técnico sobre o tratamento
zados para definir outras patologias que passa- das crianças, institucionalizados nos centro mé-
ram a ser descritas na criança como, por exem- dico-pedagógicos franceses, têm ainda hoje efei-
plo, a demência precoce de Kraepelin e a de- to sobre a lógica contemporânea das interven-
mência precocíssima, definida por Sancte de ções destinadas às crianças, sejam elas educativas
Sanctis, que constituíram quadros de referência ou terapêuticas.
para pensar a loucura nas crianças (Postel;
Quetel, 1987). Em vez de revolucionar o ensino e sua es-
Bercherie, no entanto, ressalta que a par- trutura, o Ocidente prefere, pelo contrário,
tir da década de 1930 a psicanálise influencia remediar os efeitos das anomalias geradas
fortemente o campo de investigação clínica da por um ensino inadequado à nossa época.
criança e essa influência se mantém presente até Remediar os efeitos significa, neste caso,
os anos 1980. De fato, isso contribuiu em mui- encarregar a medicina de responder onde o
to para a diferenciação do campo de interven- ensino fracassou. (Mannoni, 1988, p. 62)
ções terapêuticas sobre a criança, separadas da
clínica dos adultos. Entretanto, esta não parece Em termos terapêuticos, as terapias
ser mais a realidade da clínica com crianças. cognitivas, de tradição behaviorista, são as úni-
Ao longo dos séculos XIX e XX, diversas cas atualmente aceitas como válidas pelo saber
instituições médico-pedagógicas para crianças médico. Assim, vemos as crianças e suas famí-
surgiram na Europa bem como nos Estados Uni- lias submetidas ao poder exercido pela consti-
dos. De suas histórias, recolhem-se tentativas de tuição de um domínio de saber médico-psico-
tratamento, mas os empreendimentos médico-pe- lógico sem que o contexto de seus sofrimentos,
dagógicos fracassaram em restituir às crianças sua bem como sua possibilidade de tratamento, se-
condição de aprendizado e pertencimento social. jam orientados para outras formas de conside-
Os desenvolvimentos da psiquiatria da ração da subjetividade que não a normalizante
criança são marcados, como na psiquiatria dos e de ‘treinamento’.
adultos, pela institucionalização e segregação. O Que o campo educativo esteja invadido
movimento antipsiquiátrico cumpriu importante pelos discursos técnicos, não é novidade. A
papel ao questionar a institucionalização da cientificização dos discursos sobre a criança des-
loucura, o poder do discurso médico sobre a de o início do século XX contribuiu não somente
doença e o sujeito, denunciando o fracasso dos para a construção de um discurso pedagógico
tratamentos. No entanto, os efeitos de exclusão normalizador, mas também para a validação de um
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se ela foi corretamente medicada naquele dia. cerebral – são os objetos a partir dos quais a
Tais procedimentos nos permitem entrever que medicina estabelece seu saber e seu poder so-
estão crentes de que a variação no uso do re- bre os sujeitos na contemporaneidade. Antes
médio é responsável pela variação dos compor- disso, Foucault (1987), em Vigiar e punir, já de-
tamentos e estados psíquicos da crianças, e que monstrava como o poder da Norma operava, a
esta não teria nenhuma relação com variações, partir dos exames diagnósticos, a produção de
mudanças ou experiências no interior do cotidi- um saber sobre os indivíduos e sua sujeição aos
ano escolar. domínios da ciência/das psicociências. O desen-
Vemos que o fenômeno da psicologização volvimento do saber psiquiátrico esteve, de
da escola cede lugar a psiquiatrização do discur- maneira geral, constantemente filiado às aplica-
so escolar. ções dessa técnica – o exame.
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ao próprio ato educativo e à constituição dos que no, entonces la escuela está condenada
sujeitos: sua imprevisibilidade e o fato de que a desaparecer. La chance de sobrevivir no
ambos se dão no encontro com a alteridade. radica en las buenas intenciones sino en el
Evitar a imprevisibilidade e o outro, esse estra- ejercicio perseverante de la libertad que, si
nho outro, acaba por, de certa forma, desfazer he sido claro, consiste en términos educa-
a implicação do ato educativo como um ato tivos en ofertar (enseñar) más alla o a pesar
constitutivo do sujeito. de todo cálculo, contexto, realidad, deman-
da o entrevista. (Trechos de entrevista com
Si educar es operar sobre el outro com el Estalislao Antelo, 2004)
propósito de hacer del outro um semejante,
em realidad se podría decir que nadie está O recurso à técnica, seja ela a dos ma-
preparado. [...] nuais de psicologia seja a do discurso médico
En toda relación humana existe uma mutua hegemônico, tem tido efeitos não pouco nefas-
intervención. Este es um debate interesante. tos sobre o discurso pedagógico nos tempos
No hay educación sin intervención. Enseñar contemporâneos. A medicalização em larga es-
ya es intervenir, hay que introducirse en un cala das crianças nos tempos atuais pode ser
espacio que le pertenece al otro; existe una lida também como apelo ao silêncio dos con-
especie de violencia dada por la ocupación flitos, negando-os como inerentes à subjetivi-
del territorio que es del otro. [...] Pero si dade e ao encontro humano. Que o discurso
creo de entrada que el otro no va a poder, pedagógico contribua para a manutenção desse
si esta-belezco un juicio a priori de lo que tipo de recurso deve ser objeto constante de
va o no va a poder o si le dejo a la crítica em direção à possibilidade de que o
psicología decir qué es lo que puede y lo lugar do ato educativo seja redefinido.
Referências bibliográficas
ANTELO, E. Que quiere usted de mi? Lo incalculable en el oficio de enseñar. Revista La Educación en Nuestras Manos
Manos. n. 72,
Octubre de 2004. (versão on-line)
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psiquiatria crianças:
desenvolvimento ou estrutura. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p. 127-144.
FOUCAULT, M. História da sexualidade II: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1977.
SILVA Jr., N. Sobre a re-codificação mercantil do sofrimento. In: BOLGUESE, M. S. Depressão & Doença ner vosa moderna
nervosa moderna. São
Paulo: Via Lettera; Fapesp, 2004. p. 9-14.
Recebido em 26.09.05
Aprovado em 17.04.06
Renata Guarido é graduada pelo IPUSP em 1993, atuou como psicóloga na Creche Central da USP durante sete anos,
atualmente faz parte da Equipe Clínica da Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida – IPUSP –, que atende, para tratamento e
acompanhamento da escolarização, crianças em graves sofrimentos psíquicos. Psicóloga, mestranda em Psicologia da
Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.
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