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JUAREZ TAVARES

E
RUBENS CASARA

JUAREZ TAVARES
RUBENS CASARA

PROVA E
PROVA EVERDADE
VERDADE

2020
Copyright© Tirant lo Blanch
Editor Responsável: Aline Gostinski
Capa e Diagramação: Renata Milan

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Impresso no Brasil / Printed in Brazil


JUAREZ TAVARES
E
RUBENS CASARA

PROVA E VERDADE

2020
Aos amigos e mestres incomparáveis:
Eugenio Rául Zaffaroni e Geraldo Prado

Às amigas e eminentes professoras humanistas:


Ana Elisa Liberatore Silva Bechara e Maud Chirio
SUMÁRIO

NOTA EXPLICATIVA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

1. O CONCEITO DE PROVA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

2.O OBJETO DA PROVA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

3. OS MEIOS DE PROVA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27

4.A EVOLUÇÃO DAS ESPÉCIES DE PROVA . . . . . . . . . . . . . . 39

5. DAS ORDÁLIAS À “RAZÃO” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45

6. MOMENTOS DA PROVA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49

7. A VALORAÇÃO DA PROVA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51

8. A PROVA ILÍCITA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61

9. A INTERCEPTAÇÃO AMBIENTAL E A QUESTÃO


PROBATÓRIA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69

10. O AGENTE INFILTRADO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75

11. A CADEIA DE CUSTÓDIA PROBATÓRIA . . . . . . . . . . . . . 81

12. PROPORCIONALIDADE E PRODUÇÃO PROBATÓRIA . . . 85

13. A PROVA EMPRESTADA OU PRODUZIDA FORA


DO PROCESSO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93

14. PROVA E CONTRADITÓRIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95

15. PROVA E PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA . . . . . . . . . . . . 101

16. OS SISTEMAS PROCESSUAIS E A QUESTÃO PRO-


BATÓRIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105

17. O CONCEITO DE VERDADE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113


8 PROVA E VERDADE

18. AS TEORIAS DA VERDADE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117

19. A DETERMINAÇÃO DA VERDADE . . . . . . . . . . . . . . . . . 141

20. OS LIMITES DA BUSCA DA VERDADE . . . . . . . . . . . . . 147

21. NEOLIBERALISMO E VERDADE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149

22. CONCLUSÕES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 159

ÍNDICE REMISSIVO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163

BIBLIOGRAFIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169
NOTA EXPLICATIVA

No imaginário democrático, o Sistema de Justiça ocupa posi-


ção de destaque. Espera-se dele a solução para os conflitos e os pro-
blemas que as pessoas não conseguem resolver sozinhas. Diante dos
conflitos intersubjetivos, de uma cultura narcísica e individualista
(que incentiva a concorrência e a rivalidade ao mesmo tempo em
que cria obstáculos ao diálogo), de sujeitos que se demitem de sua
posição de sujeito (que se submetem sem resistência ao sistema que o
comanda e não se autorizam a pensar e solucionar seus problemas),
da inércia do Executivo em assegurar o respeito aos direitos indi-
viduais, coletivos e difusos, o Sistema de Justiça apresenta-se como
um locus destinado a atender às promessas de respeito à legalidade
descumpridas tanto pelo demais agentes estatais quanto por particu-
lares. E, mais do que isso, espera-se que seus protagonistas, os atores
jurídicos, sejam os responsáveis por exercer a função de guardiões da
democracia e dos direitos.
A esperança depositada, porém, cede rapidamente diante do
indisfarçável fracasso do Sistema de Justiça em satisfazer aos interes-
ses daqueles que recorrem a ele. Torna-se gritante a separação entre
as expectativas geradas e os efeitos do Sistema de Justiça no ambiente
democrático. Ao longo da história do Brasil, não foram poucos os
episódios em que juízes, promotores, procuradores, desembargadores
e ministros das cortes superiores atuaram como elementos desestabi-
lizadores da democracia e contribuíram à violação de direitos, não só
por proferirem decisões contrárias às regras e aos princípios democrá-
ticos como também por omissões.
A compreensão da democracia como um horizonte que aponta
para uma sociedade autônoma construída a partir de deliberações
coletivas, com efetiva participação popular na tomada das decisões
políticas e ações voltadas à concretização dos direitos e garantias fun-
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damentais, permite identificar que, não raro, o Sistema de Justiça


reforça valores contrários à soberania popular e ao respeito aos direi-
tos e garantias fundamentais, que deveriam servir de obstáculos ao
arbítrio, à opressão e aos projetos políticos autoritários. Nos últimos
anos, para dar respostas (ainda que meramente formais ou simbóli-
cas) às crescentes demandas dos cidadãos (percebidos como meros
consumidores), controlar os indesejáveis aos olhos dos detentores do
poder econômico, satisfazer desejos incompatíveis com as “regras do
jogo democrático” ou mesmo atender a pactos entre os detentores
do poder político, o Poder Judiciário e o Ministério Público têm
recorrido a uma concepção política antidemocrática, forjada tanto a
partir da tradição autoritária em que a sociedade brasileira está lan-
çada quanto da racionalidade neoliberal, que faz com que ora se
utilize de expedientes “técnicos” para descontextualizar conflitos e
sonegar direitos, ora se recorra ao patrimônio gestado nos períodos
autoritários da história do Brasil na tentativa de atender aos objetivos
do projeto neoliberal. Impossível, portanto, ignorar a função do Sis-
tema de Justiça na crise da democracia liberal. Uma crise que passa
pela colonização da democracia e do direito pelo mercado, com a
erosão dos valores democráticos da soberania popular e do respeito
aos direitos fundamentais.
Nos últimos anos, os objetivos e o instrumental típico da de-
mocracia acabaram substituídos por ações que se realizam fora do
marco democrático. No Brasil, uma das características dessa mutação
antidemocrática foi o crescimento da atuação dos atores jurídicos
correlato à diminuição da ação política, naquilo que se convencio-
nou chamar de ativismo judicial, isso a indicar um aumento da in-
fluência dos juízes e tribunais nos rumos da vida brasileira. Hoje,
portanto, percebe-se claramente que o Sistema de Justiça se tornou
um locus privilegiado da luta política.
Por evidente, não se pode pensar o funcionamento do Poder
Judiciário desassociado da tradição em que os magistrados e mem-
bros do Ministério Público estão inseridos. Adere-se, portanto, à hi-
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pótese de que há uma relação histórica, teórica e ideológica entre o


processo de formação da sociedade brasileira (e dos atores jurídicos)
e as práticas observadas na Justiça brasileira. Em apertada síntese, po-
de-se apontar que há na sociedade brasileira uma tradição autoritária,
marcada pelo colonialismo e a escravidão, na qual o saber jurídico
e os cargos no Poder Judiciário sempre foram utilizados para que
os rebentos da classe dominante (aristocracia) pudessem se impor
perante a sociedade, sem submissão a qualquer forma de controle
democrático. Com isso, gerou-se um Sistema de Justiça marcado por
uma ideologia patriarcal, patrimonialista e escravocrata, constituída
de um conjunto de valores que se caracteriza por definir lugares so-
ciais e de poder, nos quais a exclusão do outro (não só no que toca
às relações homem-mulher ou étnicas) e a confusão entre o público
e o privado somam-se ao gosto pela ordem, ao apego às formas e ao
conservadorismo.
Pode-se, então, falar em um óbice hermenêutico para uma
atuação democrática no âmbito do sistema de justiça. Isso porque há
uma diferença ontológica entre o texto e a norma jurídica produzida
pelo intérprete: a norma é sempre o produto da ação do intérpre-
te condicionada por uma determinada tradição. A compreensão e o
modo de atuar no mundo dos atores jurídicos ficam comprometidos
em razão da tradição em que estão lançados. Intérpretes que carre-
gam uma pré-compreensão inadequada à democracia (em especial, a
crença no uso da força, o ódio de classes e o medo da liberdade) e,
com base nos valores em que acreditam, produzem normas autoritá-
rias, mesmo diante de textos tendencialmente democráticos. No Bra-
sil, os atores jurídicos estão lançados nessa tradição autoritária que
não sofreu solução de continuidade após a redemocratização formal
do país com a Constituição da República de 1988.
Os mesmos atores jurídicos que serviam aos governos autori-
tários continuaram, após a redemocratização formal do país, a atuar
no sistema de justiça com os mesmos valores, a mesma crença no
uso abusivo da força, que condicionavam a aplicação do direito no
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período de exceção. Nas estruturas hierarquizadas das agências que


atuam no sistema de justiça, os concursos de seleção e as promoções
nas carreiras ficam a cargo dos próprios membros dessas instituições,
o que também contribui para a reprodução de valores e práticas
comprometidos com o passado. O conservadorismo, porém, acabava
disfarçado através do discurso da neutralidade das agências do Siste-
ma de Justiça. Interpretações carregadas de valores autoritários eram
apresentadas como resultado da aplicação neutra do direito. Basta,
por exemplo, prestar atenção em decisões e declarações produzidas
por atores jurídicos brasileiros para perceber que essas característi-
cas se encontram presentes em significativa parcela dos juízes e dos
membros do Ministério Público.
Entre os atores jurídicos que protagonizam o Sistema de Jus-
tiça podem ser encontrados, dentre outros sintomas: a) o conven-
cionalismo, que se caracteriza por uma aderência rígida aos valores
da classe média, mesmo que em desconformidade com os direitos e
garantias fundamentais escritos na Constituição da República. As-
sim, se é possível encontrar na sociedade brasileira, notadamente na
classe média, apoio ao linchamento de supostos infratores ou à vio-
lência policial, o juiz autoritário tende a julgar de acordo com opi-
nião média e naturalizar esses fenômenos; b) a agressão autoritária,
que expressa a tendência a ser intolerante, estar alerta, condenar, re-
pudiar e castigar as pessoas que violam os valores “convencionais”. O
ator jurídico antidemocrático, da mesma forma que seria submisso às
pessoas que considera “superiores” (componente masoquista da per-
sonalidade autoritária), seria agressivo com aquelas que etiqueta de
inferiores ou diferentes (componente sádico). Como esse tipo de ator
jurídico se mostra incapaz de fazer qualquer crítica consistente aos
valores convencionais, tende a castigar severamente quem os viola; c)
a anti-intracepção, como oposição à mentalidade subjetiva, imagina-
tiva e sensível. O ator jurídico autoritário tende a ser impaciente e ter
uma atitude em oposição ao subjetivo e ao sensível, insistindo com
metáforas e preocupações bélicas e desprezando análises que bus-
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quem a compreensão das motivações e demais dados subjetivos do


caso. Por vezes, a anti-intracepção se manifesta pela explicitação da
recusa a qualquer compaixão ou empatia; d) o pensamento estereo-
tipado, com a tendência a recorrer a explicações hipersimplistas de
eventos humanos, o que faz com que sejam interditadas as pesquisas
e ideias necessárias para uma compreensão adequada dos fenômenos.
Correlata a essa “simplificação” da realidade, há a disposição a pensar
mediante categorias rígidas. O ator jurídico autoritário recorre ao
pensamento estereotipado, fundado com frequência em preconceitos
aceitos como premissas; e) a dureza, com a preocupação em reforçar
a dimensão domínio-submissão somada à identificação com figuras
de poder (“o poder sou Eu”). A personalidade autoritária afirma des-
proporcionalmente os valores “força” e “dureza”, razão pela qual opta
sempre por respostas de força em detrimento de respostas baseadas
na compreensão dos fenômenos e no conhecimento. Essa ênfase na
força e na dureza leva ao anti-intelectualismo e à desconsideração dos
valores atrelados à ideia de dignidade humana; f ) a confusão entre
acusador e juiz, que é uma característica historicamente ligada ao
fenômeno da inquisição e à epistemologia autoritária. No momento
em que o juiz protofascista se confunde com a figura do acusador e
passa a exercer funções como a de buscar confirmar a hipótese acusa-
tória, surge um julgamento preconceituoso, com o comprometimen-
to da imparcialidade. Tem-se, então, o primado da hipótese sobre o
fato. A verdade perde importância diante da “missão” do juiz, que
aderiu psicologicamente à versão acusatória.
De igual sorte, não se pode desconsiderar que o Poder Judiciá-
rio se tornou o que Eugenio Raúl Zaffaroni chama de uma máquina
de burocratizar. Esse processo, que se inicia na seleção e treinamento
dos atores jurídicos, pode ser explicado: em parte, porque assim os
juízes e os membros do Ministério Público dispensam a tarefa de pen-
sar (há em grande parcela dos juízes um pouco de Eichmann) e, ao
mesmo tempo, ao não contrariar o sistema (ainda que arcaico), evitam
a colisão com a opinião daqueles que podem definir sua ascensão e
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promoção na carreira; em parte, porque há uma normalização produ-


zida pelo senso comum e internalizada pelo ator jurídico, através da
qual ele passa a acreditar no papel de autoridade diferenciada, capaz
de atuar despido de ideologias e valores. Assume, enfim, a postura que
o processo de produção de subjetividades lhe outorgou, o que acaba
por condicioná-lo a adotar posturas conservadoras no exercício de suas
funções com o intuito de preservar a tradição. Mas não é só.
A transformação da tendência conservadora dos atores do sis-
tema de justiça em práticas explicitamente ligadas aos interesses dos
detentores do poder econômico se dá a partir da adesão do mundo
jurídico à racionalidade neoliberal. Com o empobrecimento subje-
tivo e a mutação do simbólico produzidos por essa racionalidade,
uma verdadeira normatividade que leva tudo e todos a serem tratados
como objetos negociáveis, os valores da jurisdição penal democrática
(“liberdade” e “verdade”) sofrerem profunda alteração para muitos
atores jurídicos. Basta pensar no alto número de prisões contrárias
à legislação (como as prisões decretadas para forçar “delações”), nas
negociações com acusados em que “informações” (por evidente, ape-
nas aquelas “eficazes” por confirmar a hipótese acusatória e que não
guardam relação necessária com o valor “verdade”) são trocadas pela
liberdade dos imputados, dentre outras distorções.
O neoliberalismo é, na verdade, um modo de ver e atuar no
mundo que se mostra adequado a qualquer ideologia conservadora e
tradicional. A propaganda neoliberal, de fórmulas mágicas e revolu-
cionárias, torna-se no imaginário da população a nova referência de
transformação e progresso. O neoliberalismo, porém, propõe mu-
danças e transformação com a finalidade de restaurar uma “situação
original” e mais “pura”, onde o capital possa circular e ser acumulado
sem limites1.
A racionalidade neoliberal altera também as expectativas acerca
do próprio Sistema de Justiça. Desaparece a crença em uma atuação
1 Nesse sentido: LAVAL, Christian. Foucault, Bordieu et la question neoliberal, Paris: La
Découverte, 2018, p. 226.
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comprometida com a realização dos direitos e garantias fundamen-


tais. O Poder Judiciário, por exemplo, à luz dessa racionalidade, que
condiciona instituições e pessoas, passa a ser procurado como um
mero homologador das expectativas do mercado ou como um instru-
mento de controle tanto dos pobres, que não dispõem de poder de
consumo, quanto das pessoas identificadas como inimigos políticos
do projeto neoliberal.
Na contramão dessa história, este livro surge como uma de-
claração de amor à liberdade e à verdade. Parte, portanto, da crença
de que o Sistema de Justiça ainda pode funcionar como um instru-
mento de contenção do arbítrio e da opressão. E mais do que isso.
Esse livro parte da premissa de que o Poder Judiciário e o Ministé-
rio Público podem ser transformados em atores fundamentais para a
concretização dos direitos e garantias fundamentais.
Na opinião dos autores deste livro, não há jurisdição democrá-
tica diante da relativização da verdade ou em um ambiente em que a
pós-verdade torna-se hegemônica. A verdade, portanto, não pode ser
substituída por consensos artificiais extorquidos autoritariamente. A
verdade é não só uma condição inegociável à justiça da decisão como
também um limite ao arbítrio estatal.
Esperamos, neste pequeno livro, apresentar soluções adequadas
à verdade e à liberdade, valores que devem condicionar o Sistema de
Justiça, bem como reafirmar nosso compromisso com a democracia,
mesmo em tempos de crescimento do pensamento autoritário. Que-
remos agradecer à Marcia Tiburi pelas relevantes sugestões nos temas
filosóficos e a Conrado Tavares, pela minuciosa correção do texto.
Rio de Janeiro/Paris, 25 de março de 2020
Juarez Tavares
Rubens Casara
1. O CONCEITO DE PROVA

Prova é uma palavra polissêmica. No campo jurídico, dentre


os principais sentidos conferidos ao significante “prova” há o de “ati-
vidade” destinada a demonstrar a ocorrência de um fato, o de “meio”
à demonstração do acerto de uma hipótese e o de “resultado” produ-
zido na convicção do julgador. Há, ainda, quem identifique a “prova
jurídica” com o elemento capaz de demonstrar o acontecimento de
um fato, enquanto outros a apontam como um ato discursivo dirigi-
do ao juiz com o objetivo de produzir a fixação judicial de um fato a
partir de um determinado procedimento.
As diferentes “tradições jurídicas” também reservam sentidos e
papéis distintos à “prova jurídica”: na tradição do Civil Law, a prova
se relaciona com a busca da “verdade” capaz de tornar justa uma
decisão judicial, enquanto que na cultura jurídica do Common Law,
a prova é um elemento produzido por uma parte, em meio ao con-
fronto entre duas versões, para fazer triunfar o relato mais verossímil.
Todavia, todas as acepções da palavra “prova” ligam-se, em
maior ou menor escala, ao valor “verdade”. Mesmo a ideia de que
a “prova jurídica”, diante da existência de limitações legais, pode se
distanciar desse valor, reconhece que a atividade probatória busca
tanto uma aproximação com a verdade sobre uma hipótese quanto
a produção de efeitos típicos da verdade a partir do respeito a um
determinado procedimento. A ideia de prova no direito é construída
a partir de uma relação dialética entre saber e verdade, em uma dinâ-
mica que envolve a possibilidade de saber e os efeitos que são confe-
ridos à verdade. Em certo sentido, pode-se definir “prova” como um
ato voltado à obtenção dos efeitos inerentes à verdade em relação a
uma proposição ou hipótese.
Ao longo da história, os “regimes de verdade” produzidos por
distintas racionalidades sempre condicionaram a prestação jurisdi-
18 PROVA E VERDADE

cional estatal. Em regimes autoritários, a verdade passa a se identifi-


car com os desejos dos detentores do poder ou com as certezas, ainda
que delirantes, dos julgadores. O “regime de verdade” naturalizado
por racionalidades2 autoritárias leva tanto à “colonização do processo
pela ideia obsessiva de verdade”3 quanto ao “primado da hipótese
sobre o fato”4. A crença de que é possível “voltar ao fato em si” e a
“certeza prévia” sobre a “essência verdadeira” da hipótese acusatória
já levaram (e ainda levam) a reiteradas violações a direitos funda-
mentais do cidadão, desde a tortura para obter confissões até prisões
ilegais com o objetivo de forçar delações. Por outro lado, em um “re-
gime de verdade” adequado à racionalidade democrática, a “verdade”
passa a ter uma dimensão normativa, ou seja, não é uma meta a ser
alcançada pelo juiz “custe o que custar”, mas um limite ao exercício
do poder penal.
No campo do direito, ainda se discute se existiria uma especi-
ficidade da “prova jurídica”. Em outras palavras, a “prova”, com que
trabalham os atores jurídicos, pode ser resumida a uma concepção
jurídico-processual? A presença de um significativo número de re-
gras jurídicas, que estabelecem limites à determinação da verdade
sobre um fato, geraria uma especificidade da “prova jurídica”? Ou,
ao contrário, a ideia de prova é metajurídica, o que faria da “prova”
um fenômeno próprio do conhecimento humano em todas as áreas
do saber? Não se trata de uma questão despida de interesse prático.
Reconhecer a natureza metajurídica da prova, ainda que produzida
“no” e “para” o ambiente processual, por exemplo, significa admitir
que a apreciação da prova é um sistema aberto a todas as formas de
conhecimento, o que justificaria uma abordagem transdisciplinar das
questões de fato.
Há quem negue a concepção metajurídica das provas produzi-
das em juízo a partir da afirmação de que a prova nas ciências exatas
2 Modos de ver e atuar no mundo.
3 Sobre o tema: PRADO, Geraldo. La cadena de custodia de la prueba en el proceso penal,
Madrid: Marcial Pons, 2019, p. 42.
4 CORDERO, Franco. Guida alla procedura penale, Torino: UTET, 1986, p. 51.
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 19

teria natureza demonstrativa enquanto a prova jurídica teria caráter


persuasivo. Na realidade, porém, toda prova, seja ela percebida como
científica ou não, é persuasiva e relativa. POPPER, por exemplo, afir-
ma que a possibilidade de uma teoria (ou de uma prova) ser refutada
constitui um dado essencial à própria natureza cientifica dessa teoria
ou atividade. Não há, nesse particular, uma diferença significativa
entre a “prova” no direito e a “prova” nas ciências duras, como a
matemática. A falibilidade ou a falseabilidade não retiram a natureza
cientifica da teoria, do procedimento, do meio ou do resultado. Em
outras palavras, a busca do conhecimento objetivo se caracteriza pela
possibilidade do erro,5 que deve ser reconhecida tanto pelo investi-
gador quanto pelo juiz. Toda prova, portanto, ainda que respeitados
rigorosamente os procedimentos científicos e os limites epistemoló-
gicos, pode ser falsa e se distanciar do valor “verdade”.
As provas, entendidas como meios direcionados à reprodu-
ção de fatos, existem independentemente do fenômeno jurídico. A
normatividade probatória, porém, é determinada por fatores históri-
cos e culturais. A natureza metajurídica do conceito de “prova” não
exclui a possibilidade de requisitos e limites à produção probatória
em juízo. A “prova ilícita”, por exemplo, é o efeito da violação dos
limites legais à obtenção da prova. A ilicitude ou a ilegitimidade são
consequências normativas da violação dos limites à produção e à ob-
tenção das provas. Assim, a exigência democrática de limites éticos,
jurídicos e epistemológicos à validade da produção e da valoração
probatória não altera a natureza, o conceito e a funcionalidade da
“prova” produzida em juízo.
No processo judicial, a funcionalidade do conceito de prova é
sempre o direcionamento à verdade, com respeito aos limites éticos,
epistemológicos e legais. Todavia, o sistema normativo que disciplina
o processo penal, que faz da “liberdade” um dos valores fundamentais
do processo penal brasileiro, impõe limites mais rígidos à prova penal

5 Sobre o tema: POPPER, Karl. La connaissance objective: une approche évolutionniste.


Paris: Flammarion, 2009.
20 PROVA E VERDADE

(e à atuação probatória do acusador) como forma de reduzir a opressão


estatal e o abuso do poder disfarçados de “busca da verdade”.
A prova no processo se destina a informar ao julgador acer-
ca da validade do enunciado proposto na acusação ou no pedido
de prestação jurisdicional. Como não se trata de uma investigação
com a pretensão de confirmar ou produzir uma certeza delirante e
inquestionável na mente do julgador, a condição de que seu obje-
tivo esteja subordinado tanto a valores democráticos quanto a uma
decisão final fundamentada faz com que a prova não possa se divor-
ciar dos preceitos constitucionais e legais que a disciplinam. Assim,
no processo penal a prova tem suas limitações no rol dos direitos
e garantias fundamentais previstos na Constituição da República,
com especial destaque para os princípios de presunção de inocên-
cia, do contraditório e o da vedação da licitude de sua aquisição.
Não há, portanto, um absoluto direito à prova. De igual sorte, não
há um “vale-tudo” probatório. Diante dos limites constitucionais
em matéria probatória, não há mais como se sustentar a ideologia
de “busca da verdade real” em matéria penal. No Estado Democrá-
tico de Direito, que se caracteriza pela existência de limites rígidos
ao exercício do poder, a prova vem sempre orientada por uma pre-
tensão de validade, ou seja, nem toda e qualquer prova é válida.
Válida será aquela juridicamente admitida em razão do respeito aos
limites democráticos postos pelo legislador.
Como a prova tem o escopo de fundamentar um processo de
cognição, pode ser compreendida sob dois patamares, um, empírico
e, outro, discursivo. O patamar empírico dá embasamento à existên-
cia do fato e suas relações dinâmicas; o patamar discursivo põe de
relevo todas as condições relacionadas à pretensão de validade.
Se a acusação afirma que X matou Y, a prova tem que se orien-
tar, no plano empírico, em face desse enunciado. Verifica-se, assim,
primeiramente, se realmente ocorreu a morte de Y; depois, se a morte
de Y foi causada pela ação de X; ainda, se a morte de Y poderia ter
ocorrido da mesma forma, sem a conduta de X; se a morte de Y foi
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 21

querida por X ou, finalmente, se ela se deu no âmbito da violação


do risco autorizado ou não. De outro lado, colocam-se em evidên-
cia as condições de validade da afirmação, ou seja, se os elementos
empíricos colhidos na investigação eram juridicamente autorizados.
Reunindo, portanto, elementos empíricos e discursivos, a prova irá
servir para fundamentar a conclusão de que a proposição inserida na
acusação ou na petição inicial da ação civil é verdadeira. A vinculação
essencial da prova não é propriamente com os fatos ou com o discur-
so, mas, sim, com a verdade.
Assim, destaca JULIO MAIER:6
“Em geral, chamamos prova a tudo aquilo que, no procedimento, re-
presenta o esforço para incorporar os rastros ou sinais que conduzem
ao conhecimento certo ou provável de seu objeto. Mas esse é só um dos
sentidos do conceito, pois também recorremos a ele quando pretendemos
indicar um resultado da atividade probatória (por exemplo, o conteúdo
desse documento prova tal circunstância ou fato). É certo, por isso, que o
conceito de prova é a síntese de diversos aspectos, pois a figura da prova é
poliédrica. Não obstante, no que agora nos interessa, é suficiente aceitar
o significado intuitivo, relacionado com o conhecer, comprovar, enfim,
nos aproximarmos da verdade.”
Há muito se tem discutido sobre o significado da busca dessa
verdade. No processo tradicional, sempre se disse que a prova se des-
tinava a alcançar a verdade material/real, o que servia de justificativa
para abusos e opressões. No Estado Democrático de Direito, como
a prova no âmbito judicial está submetida a limitações e, mesmo
no plano empírico, é sempre contingente, a busca dessa “verdade” é
um objetivo simbólico, serve como limite externo contra a opressão,
nada valendo como argumento de justificação para atos ilegais e abu-
sivos. Pode-se dizer, então, que a prova é o instrumento de busca da
verdade possível e juridicamente admissível no processo.
As limitações da prova não se restringem a servirem de parâ-
metros para sua definição, mas, sim, também para fundarem uma
6 MAIER, Julio. Derecho procesal penal, tomo 1, Fundamentos, 2ª edição, Buenos Aires,
1999, p. 859.
22 PROVA E VERDADE

interpretação coerente do enunciado jurídico. Se no processo penal,


a avaliação da prova deve ser invertida, ou seja, deve partir de sua
ausência, por imposição do princípio da presunção de inocência,
no processo civil está subordinada à demonstração de quem emite o
enunciado e, igualmente, a presunções de consistência consoante o
interesse ou o próprio desinteresse da parte. Essa dicotomia do pro-
cesso penal e do processo civil assinala a necessidade de se instituírem
conceitos e interpretações diversos. No processo civil, o princípio
de presunção de inocência não tem significado e não deve servir de
limitação à prova; no processo penal, a prova robusta ainda estará
sujeita à sua limitação.
2. O OBJETO DA PROVA

Em geral, costuma-se dizer que o objeto da prova são os fa-


tos. Todavia, “o juízo de verdadeiro ou falso não recai sobre o fato
em si, mas sobre a proposição/afirmação/enunciado relativo à exis-
tência do fato”7. Em outras palavras, o que se prova é a hipótese
acusatória descrita na denúncia (o acontecimento naturalístico) ou
“as alegações dos fatos”8 formuladas por uma das partes. Isto está
claro, porque se a prova busca fundar uma afirmação mais provável
acerca da verdade, ou seja, da relação entre enunciado e o dado em-
pírico, seu objeto não pode ser esse dado empírico, mas, principal-
mente, o enunciado que se faz sobre ele. É que todo dado empírico
só tem relevância quando se veja inserido em sua explicação. Um
dado empírico existe por si mesmo, mas seu significado não decor-
re dessa sua existência, senão da afirmação de que existe. Convém
observar, porém, que a existência do fato deve ser o pressuposto de
qualquer enunciado. Assim, na execução dos meios de prova sobre
a explicação acerca da afirmação sobre o objeto, o fato é também
relevante e será mais relevante quando tenha idoneidade para justi-
ficar a emissão de um enunciado sobre ele.
Partindo dessa assertiva, e tendo em vista a própria falibilidade
dos enunciados, tem-se que admitir que alguns dados não podem
ser objeto de prova. Em primeiro lugar, não são objeto de prova as
alegações sobre fatos impertinentes e irrelevantes. Embora o atual
Código de Processo Civil não tenha uma norma explícita sobre isso,
como havia na lei antiga, pode-se deduzir essa conclusão do próprio
sistema. Por exemplo, o juiz indeferirá quesitos impertinentes (art.
470, I) ou nem deve permitir perguntas impertinentes às testemu-
nhas (art. 459, § 2º). Igualmente, deverá excluir os fatos irrelevantes

7 PRADO, Geraldo. Nota 3, p. 31.


8 BADARÓ, Gustavo. Processo penal, Rio de Janeiro, 2012, p. 277.
24 PROVA E VERDADE

em face do princípio da razoabilidade (art. 8º). Os fatos impertinen-


tes não podem ser admitidos como objeto de prova porque violam
a seriedade do procedimento; os fatos irrelevantes ficam de fora da
investigação, em face do princípio da idoneidade, ou seja, só são sus-
cetíveis de prova as alegações que visem a demonstrar a verdade da
proposição e não, assim, qualquer alegação que nada possa trazer de
esclarecimento do fato. Igualmente, independem de prova os fatos
notórios, porque simplesmente se incluem entre aqueles objetos que
têm uma aceitação empírica universal (CPC, art. 374, I). Não será
preciso provar quem é presidente do Brasil ou presidente dos Estados
Unidos. Em segundo lugar, no que toca aos fatos incontroversos,
como a prova está vinculada aos pressupostos dos respectivos proce-
dimentos, tem-se que se fazer uma distinção: no processo civil, não
são objeto de prova (CPC, art. 374, III); no processo penal, porém,
precisam ser provados. Se o réu confessa o fato, isso é suficiente no
processo civil para tornar incontroversa a afirmação de que ele existe
na forma como alegada pela parte autora (CPC, art. 374, II). No
processo penal, se o réu confessa o fato, isso não é suficiente para
afirmar sua existência e, assim, fundar uma condenação, em face do
princípio da presunção de inocência, que tem que ser preservado
como interesse público pelo Estado. Ademais, no processo civil, a
confissão extrajudicial tem a mesma eficácia probatória da judicial
(CPC, art. 389); no processo penal, depois da reforma introduzida
pela Lei nº 10.792/2003, pela qual o réu tem assegurado seu direito
ao silêncio (CPP, art. 186), bem como ser assistido por advogado, o
qual poderá perguntá-lo acerca dos fatos e da acusação (art. 188), a
confissão só deve ser aceita se submetida ao crivo do contraditório.
No processo civil, além disso, não precisam ser provados os fatos
em cujo favor milita presunção legal de existência ou de veracidade
(CPC, art. 374, IV). Esta norma é inaplicável no processo penal, que
exige a investigação de veracidade e existência de qualquer fato. Em
matéria penal, a única “presunção” constitucionalmente adequada é
a de inocência. Nenhum fato pode ser presumido.
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 25

Reportando-se aos princípios que regem a prova no direito ale-


mão, assim se pronuncia ROXIN:9
“Enquanto no processo civil, apenas os fatos controversos necessitam ser
provados, vale no processo penal, como emanação da máxima instrutó-
ria, o princípio segundo o qual todos os fatos, de alguma forma relevan-
tes para a decisão judicial, devem ser provados.”
Procedendo ao exame dos fatos, distingue ROXIN entre fatos
relevantes, indícios e fatos acessórios. Fatos relevantes são as “circuns-
tâncias que, por si só, fundamentam ou afastam a punibilidade (...)
indícios são fatos que permitem uma conclusão acerca de um fato rele-
vante (...) fatos acessórios são os fatos que permitem uma conclusão sobre
a qualidade de um meio de prova.”10

9 ROXIN, Claus. Strafverfahrensrecht, 26ª edição, München, 2009, p. 150.


10 ROXIN, Claus. Nota 9, p. 151.
3. OS MEIOS DE PROVA

A prova é, assim, um ato ou procedimento que possui seus


elementos ou meios para demonstrar a verdade do enunciado. São
meios de prova, segundo o Código de Processo Penal, os exames de
corpo de delito e perícias (art. 158 a 184), a confissão (art. 197 a
200), as perguntas ao ofendido (art. 201), as testemunhas (art. 202
a 225), o reconhecimento de pessoas e coisas (art. 226 a 228), a aca-
reação (art. 229 e 230), os documentos (art. 231 a 238), os indícios
(art. 239) e a busca e apreensão (art. 240 a 250).
A relevância dos meios de prova reside precisamente na veri-
ficação das condições de sua legitimidade. Para que seja legítimo, o
meio de prova tem que obedecer aos preceitos instituídos nos res-
pectivos códigos de processo. Nenhum meio de prova é absoluto.
A prova deve resultar da coerência de sua apreensão no decorrer do
procedimento. Isso vale para todos os meios de prova. Uma vez não
observadas as condições de sua realização, violadas as normas proce-
dimentais, a prova será ilegítima.
A confissão, que já foi tida como prova definitiva, tem suas
próprias limitações, conforme a espécie do procedimento. No Pro-
cesso Penal, a confissão só vale se estiver de conformidade com as
demais provas; uma confissão isolada é inservível; uma confissão pro-
ferida fora dos autos não é válida, a não ser que confirmada em juí-
zo, em todos os seus termos; a confissão não precisa ser espontânea,
mas deve ser pronunciada por decisão exclusiva do declarante. Uma
confissão pronunciada no cumprimento de prisão preventiva ou sob
estado de coação ou mesmo de promessa de liberdade ou outros
benefícios é ilegítima e, portanto, não pode ser considerada como
meio de prova. Veja-se que a confissão sob essas condições de prisão,
coação ou promessas não é apenas inválida ou ineficaz, é ilegítima,
porque viola a ordem jurídica assentada na presunção de inocência e
28 PROVA E VERDADE

no princípio da confiança. O Estado não pode cooptar a confissão,


nem pode deixar o réu sem um mínimo de capacidade de decidir,
nem enganá-lo, nem situá-lo como simples objeto para atender aos
fins da pretensão acusatória. No Processo Civil, que não se rege pelo
princípio da presunção de inocência, em regra, a confissão da parte
implica a aceitação do fato.
Ainda que a prova testemunhal seja acolhida como um meio
aparentemente legítimo, sua validade e efetividade dependem das
condições da inquirição: a prévia constatação de sua idoneidade e o
distanciamento em relação aos interesses em jogo; a limitação do de-
poimento aos fatos, sem a emissão de juízo pessoal sobre as partes en-
volvidas ou mesmo opiniões sobre o ocorrido; a submissão ao crivo
do contraditório; a ausência de coação na inquirição; a observância
do dever ao sigilo sobre fatos relacionados ao exercício profissional
ou relativos a intimidade pessoal; a atenção ao princípio do nemo
tenetur; a ciência do imputado do direito de não se autoincriminar;
a inquirição pelas partes, com a intervenção do juiz apenas para di-
rimir dúvidas ou assegurar a lisura do depoimento. A prova teste-
munhal que viole a regra do art. 212 do Código de Processo Penal
é nula (STF, HC/SP 111815, Primeira Turma, Relator: Min. Marco
Aurélio, julgado em 17/10/2017).
Não se pode, ainda, esquecer que, mesmo nos casos em que
a prova testemunhal seja produzida em atenção aos requisitos legais
de validade, o seu conteúdo pode se afastar do valor “verdade”, ou
em razão da conduta da testemunha dirigida à mentira, ou em razão
do fenômeno das “falsas memórias”, uma distorção de natureza psi-
cológica, provocada por diversos fatores como o impacto emocional
gerado pelo evento a ser descrito, a transitoriedade (deterioração da
memória), a atribuição equivocada (mistura de lembranças distintas
que leva a um erro de imputação) e o procedimento de “sugestão”
de uma informação falsa. Assim, é possível se atribuir ao passado
tanto sensações e experiências do presente quanto dados que foram
adquiridos em oportunidades distintas daquela que se quer retratar.
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 29

Da mesma maneira é comum misturar detalhes de eventos parecidos


ocorridos em outros contextos.
É importante ter em mente que as lembranças são sempre
construídas e reconstruídas, muitas vezes a partir do conhecimen-
to genérico sobre eventos semelhantes ou de preconceitos. Nesse
processo de reconstrução das lembranças costumam ocorrer perdas
e acréscimos que podem levar à distorção dos relatos. Também é co-
mum, tanto no ambiente da investigação preliminar quanto em sede
judicial, que informações falsas tenham origem a partir de pergun-
tas, sugestões ou comentários de investigadores ou inquisidores. Para
reduzir a contaminação da memória pelo fenômeno da “sugestiona-
bilidade”, recomenda-se que a testemunha e o téu tenham liberdade
para falar livremente sobre os eventos, sem serem condicionados por
perguntas das partes ou do juiz.
Ao examinar as ilusões da mente em face da realidade obser-
va PINKER que “não percebemos infinitas possibilidades; miramos em
uma, geralmente próxima à correta. E aqui está uma chance para um
criador de ilusões. Disponha alguma matéria de modo que ela projete
uma imagem retiniana igual à de um objeto que o cérebro tem tendência
a reconhecer, e o cérebro não terá como perceber a diferença”.11
Há que se compreender que a memória, como diz a neuro-
cientista NORDENGEN, professora da Universidade de Oslo, não
é alguma coisa que podemos produzir e usar em todos os momen-
tos, sem qualquer alteração. Ao contrário, a mente humana registra
os fatos como se estivessem inseridos em um esqueleto, que, como
tal, somente conserva aquilo que seja relevante. Quando queremos
recordar o fato, será preciso que promovamos sua reconstrução por
meio de nosso conhecimento geral das coisas a fim de preencher as
lacunas da memória, inclusive com o uso da experiência. Nisso resi-
dem as fontes da falsidade e do erro, até porque esse preenchimento
das lacunas existentes no esqueleto não é propriamente reconstruído,

11 PINKER, Steven. Como a mente funciona, São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 231.
30 PROVA E VERDADE

senão construído por sugestões, induções e recomendações.12


Ainda nesse sentido, mostra LOFTUS, que trabalha exaustiva-
mente com falsas memórias, como a experiência e percepções anterio-
res se introduzem na lembrança. Assim, após um acidente, será possí-
vel verificar que a narrativa inclui fragmentos da própria experiência,
não é, portanto, uma simples reprodução de fatos. Uma informação
desse acidente depende, afinal, de como é feita a pergunta. Quando
um investigador chega e pergunta a que velocidade estavam os carros
quando se chocaram, a informação não se limita à velocidade, mas
inclui também de que os carros se chocaram. Se a pergunta é modi-
ficada e se acrescenta que os carros se destruíram, as informações irão
variar conforme esse novo dado. Quando essas peças de informação
são integradas no relato final, conforme a pergunta que lhe foi dirigi-
da, a pessoa tem na memória de que o acidente é mais grave do que
realmente ocorreu: não se tratava mais de um simples acidente, mas de
uma destruição dos carros. Já que, pela experiência comum, a existên-
cia de vidros quebrados é associada a acidentes graves, a pessoa, quan-
do for mais tarde inquirida, provavelmente recordará que havia vidros
quebrados, ainda que não houvesse. Situações como essas revelam que
“a falsa informação pode ser introduzida na lembrança”.13
Essas considerações têm sido ratificadas pelas pesquisas mais re-
centes. Assim, diz JULIA SHAW, professora e pesquisadora sênior do
Departamento de Direito e Ciências Sociais da Universidade College
London (UCL), que “a memória de uma pessoa pode ser influenciada
12 NORDENGEN, Kaja. Wer schneller denkt, ist früher klug: Alles über das Gehirn, Mün-
chen: Goldmann, 2018, Capítulo 3.
13 LOFTUS. Elizabeht F. Memory, New York: Ardsley, 1988, p. 47; sobre o tema: NEUFELD/
BRUST/STEIN. “Compreendendo o fenômeno das falsas memórias”, in Lilian M. Stein
(org) Falsas memórias: fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas, Por-
to Alegre: Artmed, 2010, p. 21 e ss.; GESU, Cristina. Prova penal e falsas memórias, Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 122; para evolução histórica: OLIVEIRA, Helena
Mendes; ALBUQUERQUE, Pedro B.; SARAIVA, Magda. “O Estudo das falsas memórias:
reflexão histórica.” Temas em psicologia,  Ribeirão Preto,  v. 26, n. 4, p. 1763-1773, dez.
2018; sobre os métodos de verificação: HUANG, Tin Po. A produção de falsas memórias e
sua relação com fatores emocionais e processamentos consciente e automático. Dissertação.
Brasília: UNB, 2009; sobre aplicação nos crimes sexuais: VIANA, Carolina Navas. “A fali-
bilidade da memória nos relatos testemunhais: implicações das falsas memórias no contexto
dos crimes contra a dignidade sexual”, in Revista de Brasileira de Políticas Públicas, v. 8,
nº 8, Brasília: Uniceub, 2018, p. 1036 e ss.
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 31

pelos erros de memória de outra”. E isso, segundo ela, se deve a dois


fatores: o primeiro “é a distorção básica da memória; se outra pessoa lhe
disser a sua versão de um evento, o seu cérebro pode fazer novas ligações
que subsequentemente interferem na sua própria memória original”; o
segundo resulta da “confusão de fontes”, em que a fonte originária
nem sempre é lembrada, o que conduz à assunção de que só “experi-
mentamos coisas que nos foram ditas”.14
É preciso acentuar ainda, no sentido da pesquisa desenvolvida
por JULIA SHAW, que as falsas memórias não constituem uma pato-
logia da pessoa, são expressão normal do processo de reconhecimento
e registro cerebral de dados e fatos. Justamente em face da distorção
que essas interpretações possam produzir na avaliação do depoimento,
diz ela: “O fator final que pode causar problemas em casos criminais é a
ignorância científica. Muitos dos profissionais envolvidos em tais casos não
têm conhecimento (ou formação) sobre o que diz a última pesquisa sobre
a memória. Por um lado, muitas vezes encontro o uso do termo síndrome
da memória falsa por advogados, terapeutas e pela polícia. Este termo é
simplesmente impreciso, a síndrome da falsa memória não existe. O uso
da palavra “síndrome” tem uma conotação inerentemente médica, quase
como se se pudesse contrair uma falsa memória, da mesma forma como
se pega um resfriado.” Por conseguinte, todos são capazes de elaborar
falsas recordações, que deverão ser avaliadas como “ilusões da memória,
correspondentes aos tipos normais do processo de memorização”. 15
A análise dos depoimentos não pode, portanto, simplesmente
ignorar os efeitos da falsa memória, como se fosse um instrumento
da defesa para evitar a punição dos culpados. Nesse sentido, pondera
JULIA SHAW que críticos “da pesquisa de memória falsa afirmam fre-
quentemente que estamos silenciando as vítimas e defendendo os culpa-
dos. Há, naturalmente, uma preocupação legítima aqui, até porque seria
uma coisa terrível para alguém, que teve qualquer tipo de experiência

14 SHAW, Julia. The Memory Illusion. Remembering, Forgetting and the Science of False
Memory, London: Random House Books, 2016, p. 199.
15 SHAW, Julia. Nota 14, p. 236.
32 PROVA E VERDADE

traumática, se ver desacreditado. Mas dado que há provas empíricas de


que existem - e podem ser criadas - falsas memórias, qualquer concepção
de justiça deve certamente preocupar-se também em tentar proteger os
inocentes de falsas condenações”.16
Em relação à prova técnica, o Código de Processo Penal insere
uma exigência importante: nos crimes que deixam vestígio é indis-
pensável o exame do corpo de delito, não o suprindo a confissão
do acusado (art. 158). Infração que deixa vestígio é a que contém
um elemento empírico cuja existência ou configuração só possa ser
atestada por um corpo técnico e não simplesmente por decisão ou
convicção do julgador ou mesmo por observação de terceiros. Uma
assinatura acoimada de falsa não pode ser assinalada como tal sem
antes se verificar sua concordância ou discordância com os padrões
coletados para seu confronto, tanto do suposto emitente, quanto do
suposto autor da falsificação. O código brasileiro admite, por sua vez,
o corpo de delito indireto, que será efetuado por meio de prova teste-
munhal (art. 167). Nesse caso, contudo, a afirmação do fato tem que
ser coerente no que toca a todos os depoimentos. Se as testemunhas
divergirem quanto ao fato, a dúvida impede o reconhecimento da
materialidade do delito.
Há alguns crimes que suscitam dúvidas a respeito da existên-
cia do vestígio, mas podem ser comprovados sem o exame do corpo
de delito. São crimes nos quais a alteração da realidade empírica é
meramente cognitiva, não é substancial, ou seja, não diz respeito à
existência ou inexistência de um elemento material/sensível do qual
ela depende. Assim, o crime de falsidade ideológica (art. 299) está as-
sentado na discrepância entre o que se afirma no texto do documento
e os fatos que quer retratar. Há, portanto, uma alteração cognitiva da
realidade empírica: afirma-se que tal fato ocorrera desse ou daquele
modo, quando isso não aconteceu. Pela teoria dos atos de fala, trata-
-se de um ato ilocucionário assertivo,17 pelo qual o emissor da afir-

16 SHAW, Julia. Nota 14, p. 237.


17 SEARLE, John. Expression and meaning, Cambridge: Cambridge University Press, 1979.
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 33

mação se compromete com sua falsidade. Para atestar a falsidade não


será preciso socorrer-se de uma perícia, basta a simples constatação
da discrepância entre o teor do documento e o fato.
No que toca à prova pericial das infrações que deixam vestí-
gios, o princípio geral que rege o processo penal é o do desinteresse
(e respeito à estrita legalidade) do perito quanto ao mérito ou sucesso
da perícia. Isso está implícito no art. 105, pelo qual se autoriza a
arguição de sua suspeição e decorre também dos termos do art. 159,
que consigna que o exame será feito por perito oficial ou, na sua
ausência, por dois peritos particulares (art. 159, § 1º), que assumam
o compromisso de bem desempenhar o encargo (art. 159, § 2º). Em-
bora importante, o desinteresse e o respeito à legalidade por parte do
perito não são suficientes para fundar a validade da perícia. O perito
pode atuar com desinteresse e mesmo assim confeccionar um laudo
absolutamente errôneo, por falta de preparo ou por deficiência na
análise dos elementos do fato. Em face dessa possível falibilidade da
perícia, o código, em seu art. 182, confere ao juiz o poder de “diver-
gir” do laudo, no todo ou em parte. O juiz, assim, não está vinculado
às premissas e às conclusões do perito, podendo, desde que de forma
fundamentada, afastar as conclusões do técnico. Embora o juiz possa
divergir do laudo, não poderá, porém, ignorar a realidade. A diver-
gência diz respeito à forma de interpretação que se fez da realidade,
mas da realidade em si mesma. Se, por exemplo, a perícia é feita sobre
um cadáver, o juiz não pode afirmar que não houve morte; se alguém
perde um braço, o juiz não pode dizer que não houve lesão. Há, por-
tanto, também para o juiz uma limitação à própria convicção, que
não pode estar em desacordo com os objetos da perícia.
A questão da falibilidade do laudo tem preocupado muitos ju-
ristas, principalmente em razão de uma das partes não ter, geralmente,
condições de o contestar, dadas as especificações técnicas que o acom-
panham e os custos para produzir a contraprova. No direito america-
no, a partir do caso Frye versus United States, firmou-se o entendimento
de que o laudo deve ser avaliado de conformidade com a “aceitação da
34 PROVA E VERDADE

comunidade científica relevante”. Uma vez que o consignado pelos pe-


ritos dela divirja, será possível rejeitar-se o laudo. Para dar executivida-
de a essa assertiva, desde o caso Daubert versus Merrell Dow Inc, tem-se
usado nos Estados Unidos o critério da “falibilidade probatória”. De
conformidade com esse critério, o laudo será cientificamente válido se:
a) puder ser submetido à prova; b) tiver sido submetido à discussão
pelos seus pares e publicado; c) for conhecida a taxa de erro; d) se há
modelos de controle científico para os enunciados; e) se o enunciado
tem um grau significativo de aceitação pela comunidade científica.18
Observe-se que, justamente para superar a questão da falibili-
dade do uso exclusivo do critério da imparcialidade, o perito no siste-
ma americano é também inquirido como testemunha, o que amplia
o âmbito do exame contraditório em plenário. Como testemunha,
o perito tanto pode ser contestado quanto avaliado, concretamen-
te, em face de seu comprometimento. Pode ser que um perito seja
imparcial no sentido formal, porque desconhecido das partes, mas
esteja ideologicamente comprometido com determinada forma de
desfecho do caso. Seu depoimento no plenário pode tornar explícito
esse compromisso e demonstrar a inidoneidade da perícia.
Relativamente à contribuição do caso Daubert para a seleção
de peritos, observa TARUFFO:19
“Adicionalmente, Daubert produz no ano 2000 uma mudança impor-
tante na regra 702 do Federal Rules of Evidence, de acordo com a qual
agora um perito deve ser qualificado como expert por seu conhecimento,
habilidade, experiência ou educação, e pode atestar: 1) se um testemu-
nho se baseia em fatos ou dados suficientes; 2) se o testemunho é produto
dos princípios e métodos confiáveis; 3) se a testemunha tem aplicado
de forma confiável os princípios e os métodos aos fatos em questão. É
claro, portanto, que a regra 702 se concentra na fiabilidade das provas
apresentadas pelo perito, enfatizando a necessidade já sublinhada em
Daubert de que a prova científica seja realmente científica.”

18 TARUFFO, Michele. “La aplicación de estándares científicos a las ciencias sociais”, in


Carmen Vázquez (ed.), Estándares de prueba y prueba científica, ensayos de epistemologia
jurídica, Madrid, Barcelona, Buenos Aires, São Paulo, 2013, p. 204.
19 TARUFFO, Michele, Nota 18, p. 204.
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 35

O caso Daubert pode revelar-se importante não apenas para a


determinação da validade da perícia, senão também para sua aprecia-
ção por um juiz imparcial. Isso exigiria em certa medida uma apre-
ciação prévia do laudo por um juiz diverso daquele que iria proferir
o julgamento. Apesar disso, as dificuldades ainda não foram de todo
superadas. Em um informe da National Academy of Science dos Esta-
dos Unidos, de 2009, ficou consignado que os juízes americanos, em
geral, são ineficientes no controle da falibilidade das provas, pois usam
em suas decisões dados e informações que nada têm de científicos.20
Ao comentar sobre essas dificuldades, faz ver TARUFFO a ne-
cessidade de se ajustarem as condições impostas no caso Daubert às
características próprias das ciências jurídicas. Embora importantes,
os modelos ou paradigmas do caso Daubert tendem a ter maior in-
fluência nas chamadas ciências duras. Tratava-se, na hipótese, de ve-
rificar se determinado medicamento causara certos efeitos. O direito,
como ciência ou saber social, está, por seu turno, submetido a condi-
cionantes que não ajustam à investigação das ciências duras, princi-
palmente, no caso da admissibilidade do critério do “erro zero”. Pelo
simples fato de o direito não admitir determinadas provas, como as
provas ilícitas, já não pode trabalhar com um critério de erro que
tem a pretensão de se aproximar da máxima certeza.21 Ainda que
se demonstre a coerência do laudo e sua submissão aos preceitos da
ciência, se os dados que ele analisa tiverem sido obtidos ilicitamente,
de nada valem as asserções corretas dos peritos. Especificamente, diz
TARUFFO:
“Um importante problema adicional é que essas ciências não formam
um conjunto homogêneo: cada uma delas tem seu próprio paradigma
(ou paradigmas). Dentro de semelhante variedade, alguns critérios de
validade científica devem ser definidos, simplesmente, tomando em con-
sideração as características específicas de cada ciência.”22

20 TARUFFO, Michele. Nota 18, p. 210.


21 A certeza é um juízo subjetivo que se alcança a partir do raciocínio lógico ou do sistema de
verificação empírica.
22 TARUFFO, Michele. Nota 18, p. 209.
36 PROVA E VERDADE

Isso não obsta, porém, a que se consignem exigências para os


laudos, deles se excluindo aquilo que for considerado como inserví-
vel. Nesse sentido, ainda TARUFFO:
“O que se necessita, pelo contrário, é uma análise independente da cons-
trução dos modelos que possam ser apropriados para cada paradigma
de formas válidas de conhecimento, e deveria ser capaz de detectar quê
práticas ou métodos sejam puro lixo por carecerem de qualquer controle
epistêmico.”23
O que se busca no direto é uma decisão racional, a qual não
pode prescindir também de conclusões científicas corretas.
Assim, conclui TARUFFO:
“Realmente, na administração da justiça moderna, que se baseia na cor-
reta aplicação do direito, não se necessitam decisões arbitrárias e infiéis
aos fatos do caso. Necessita-se de decisões racionais e verdadeiras. Isso
significa que, quando as decisões estejam baseadas na ciência, se deve
tratar de ciência válida e boa.”
Em face disso, ainda que atendendo à diversidade dos objetos,
deve a perícia aproximar-se daquilo que, provavelmente, estiver de
acordo com os mais recentes pronunciamentos da ciência. Para tanto,
observadas as devidas variações, são importantes os modelos ou crité-
rios do caso Daubert, os quais, no entanto, só podem servir à decisão
se os peritos puderem ser também submetidos ao controle do órgão
judicial que poderá atestar a própria validade de seus argumentos.
Uma questão relevante no processo penal, que está na depen-
dência da perícia, é o da determinação da causalidade. Como há inú-
meros critérios de aferição da causalidade, a perícia deve indicar, em
cada ponto, a qual desses critérios correspondem suas conclusões. Há
muitas perícias que partem, por exemplo, da ideia de uma lei geral
de causalidade. A assimilação, porém, de uma lei geral da causalidade
conduz a outros problemas, ainda não resolvidos suficientemente
pela ciência. O primeiro problema reside em se estabelecer um crité-

23 TARUFFO, Michele. Nota 18, p. 209.


JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 37

rio para distinguir entre processos causais e não-causais. O segundo


problema está em se saber se uma lei geral da causalidade pode sub-
sistir sem uma prévia conceituação de verdade.24 Diante dessas incer-
tezas, a perícia deve apresentar uma certa coerência na explicação dos
fatos, ainda que não se comprometa com nenhuma teoria prévia. A
falta de coerência das explicações ou das respostas aos quesitos apre-
sentados pelas partes acarreta a nulidade da perícia, não podendo o
juiz suprir sua deficiência.

24 TAVARES, Juarez. “Bemerkungen zu einer funktionalen Kausalität”, in Festschrift für Has-


semer, Heidelberg: Müller, 2010, p. 791 e ss.
4. A EVOLUÇÃO DAS ESPÉCIES DE PROVA

Geralmente, há uma disposição de se confundirem as espé-


cies de prova com sua própria valoração. Claro que as provas, por
sua natureza, só adquirem significado quando puderem ser valoradas
para o fim a que se destinam, especificamente, a demonstrar que as
declarações acerca dos fatos têm seriedade e, por suas qualidades e
elementos, podem respaldar que os fatos existiram e que certas pes-
soas deles participaram. Não há uma segura informação histórica de
que as espécies de prova corresponderam a diversas formas de sua
valoração. Quer-se afirmar, até por intuição, que as provas primeiras
eram livres, ou seja, poderiam admitir qualquer valoração. A julgar,
contudo, pela evolução das comunidades e pelos modos como se
decidiam os conflitos, parece que os métodos de sua aferição desde
sempre se aferraram a preceitos bastante formais e rígidos, até mesmo
de cunho religioso.
Pode-se dizer, a partir da análise da formação da família, que
as formas jurídicas, que só se manifestam com a criação do Estado, se
constituem por sobre a destruição das bases igualitárias da comuni-
dade primitiva e pela instituição de um poder independente de seus
laços iniciais de solidariedade. Pode parecer sem sentido a afirmação
de que o sistema de prova está na dependência da evolução da famí-
lia, mas o próprio Estado nasce da destruição das formas primitivas
de família. Na família primitiva, o vínculo de solidariedade só era
quebrado com a prática de algum ato que pusesse em perigo as con-
dições empíricas e simbólicas de sobrevivência. Como o vínculo de
solidariedade era meramente simbólico, a prova de sua quebra se da-
ria também de modo simbólico, geralmente, com um gesto ou ritual,
cuja observância era obrigatória para a validade do ato, ou seja, para
sua confirmação. Os rituais primitivos de busca da verdade represen-
tam, assim, as primeiras manifestações do sistema de prova legal. O
40 PROVA E VERDADE

sistema da prova livre só terá lugar mais tarde. Isso pode ser deduzido
da análise do próprio Código de Hamurabi, que, embora confira à
prova testemunhal o efeito de afirmar o direito sobre determinada
relação, não a condiciona a que seja prestada por uma ou por várias
pessoas, mas, de certa forma, ainda considera que essa prova só pode
ser feita por testemunhas. Caso não se possa encontrar uma testemu-
nha do fato, a alegação do autor carece de validade e poderá levá-lo a
responder pela falsa denunciação.25 Há, pois, uma conjugação entre
um sistema livre e um sistema legal de provas. A contar do Código
de Hamurabi pode-se dizer que, com a instituição do Estado e com
a quebra dos vínculos de solidariedade primitiva, o sistema de prova
livre coexistiu, juridicamente, com o sistema de provas legais.
O sistema de provas legais aparece de modo relevante na Idade
Média com a Ley de Siete Partidas, redigida entre 1252 a 1284, e a
Constitutio Criminalis Carolina de 1532. Ambas apresentam uma
relação de como deveriam valer as provas. Iniciavam com a proibição
das provas testemunhais em relação aos menores de 20 anos nos casos
criminais e de 14 anos nas causas cíveis, aos familiares nas causas que
lhe interessassem, aos inimigos, aos vendedores no que toca à coisa
vendida, aos juízes em processos que deveriam julgar ou tivessem
julgado. Também se proibia a prova apenas por presunção, salvo no
adultério, bem como a prova por referência.
Basicamente, além das vedações, que constituíam uma nega-
ção da prova, podem ser enumeradas as seguintes espécies de prova
legal: a confissão, o testemunho de duas pessoas e os documentos.
Essas provas eram quase incontestáveis, mas as leis admitiam algu-
mas exceções. No que toca à confissão, na Ley de Siete Partidas, essa
poderia ser declarada inválida quando a declaração não fosse certa ou
contra natura. Para que a confissão adquirisse um valor inexpugnável
deveria vir acompanhada do juramento.
Em face das próprias exceções ao valor das provas legais, po-
25 § 11. Se o proprietário da coisa perdida não apresenta testemunhas que prestem depoimento
sobre tal objeto é um farsante e porque denunciou falsamente será punido com a morte.
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 41

de-se dizer que o sistema preferente é o da livre apreciação. Nesse


sentido, diz FENOLL:26
“Em conclusão, o sistema de valoração legal tem conhecido tendências
verdadeiramente descontínuas, e nunca chegou a se impor por completo
nas leis, dado que as normas generalistas mais importantes nunca re-
nunciaram à valoração livre da prova. Talvez tenham sido as complexi-
dades deste último sistema, assim como seu perigo nas mãos de juízes in-
competentes, as razões pelas quais surgiram com maior ou menor força.”
Com a superação do sistema legal, as espécies de prova são,
hoje, expressas pelos meios de prova legalmente admitidos, cada qual
avaliado de conformidade em sua relação com os demais. Assim, ne-
nhuma espécie de prova é absoluta e tem prevalência sobre outras.
Sua relevância depende da especificidade de seu objeto. Nos delitos
que deixam vestígio, a prova pericial tem um peso maior do que a
prova testemunhal; os documentos provam os fatos que devam sua
existência ou relevância jurídica aos respectivos registros, como, por
exemplo, o nascimento, o óbito, o casamento, a tutela, a curatela,
as interdições, a propriedade imóvel, a fundação de sociedades, etc.
Questão de relevância constitui o valor probatório dos indí-
cios. Os indícios constituem meios indiretos de prova. O próprio
Código de Processo Penal, aos defini-los, dá-lhes essa conotação (art.
239). Há nos indícios dois elementos: um elemento comprovado e
um elemento induzido. O elemento comprovado tem relação direta
com o fato; o elemento induzido resulta de sua ligação com o ele-
mento comprovado. Aparentemente, segue-se uma equação lógica:
o fato X contém o elemento A, que por sua vez é semelhante ao
elemento B, o que faz com que B também esteja contido no fato
X. O problema do indício é que o grau de probabilidade de que o
elemento induzido também esteja contido no fato é, às vezes, muito
remoto. Há uma tendência atual de se utilizar o teorema de BAYES
para respaldar o valor dos indícios. Mas o emprego desse teorema

26 FENOLL, Jordi Nieva. La valoración de la prueba, Madrid, Barcelona, Buenos Aires, 2010,
p. 65.
42 PROVA E VERDADE

pode conduzir a resultados nitidamente subjetivos. O teorema pode


funcionar, como critério de probabilidade, nas ciências naturais. Por
exemplo, um sujeito apresenta, em exame de sangue, PSA elevado
(fato comprovado); ademais, no exame médico adicional se com-
prova que o paciente apresenta um nódulo na próstata (fato com-
provado); submetido à tomografia, constata-se a presença de células
cancerígenas (fato comprovado); segundo o conhecimento médico,
subsiste uma relação entre PSA elevado, o nódulo e a ocorrência de
câncer (fato semelhante); o fato de o sujeito apresentar PSA eleva-
do, combinado com a presença de nódulo e o atestado de que o
nódulo contém células cancerígenas, pode levar à conclusão de que
esteja acometido de câncer (fato induzido). O teorema de BAYES
não prescinde de um conhecimento inicial ou de vários fatos com-
provados, os quais devem ser confrontados com um conhecimento
decorrente de situações semelhantes. Ocorre, por outro lado, que
os fatos comprovados (a indicação de PSA elevado, a presença do
nódulo e o resultado da tomografia) também devem ser submetidos
a juízo de probabilidade no que toca ao erro ou ao acerto. Ninguém
pode dizer com segurança absoluta que os exames sejam incontesta-
velmente certos; mas pode-se dizer que os exames detêm índice de
acerto de 95%. Se o acerto é de 95%, restam 5% de probabilidade
de haver um falso positivo ou um falso negativo. Pelo teorema de
BAYES, o diagnóstico final seria derivado da multiplicação dos dados
dos exames, dividido pelo conhecimento médico multiplicado pela
probabilidade de acerto e erro. O objetivo é obter um índice para o
indício de acerto do diagnóstico.
O problema da aplicação do teorema de BAYES ao procedi-
mento jurídico está no método de avaliação subjetiva por que passa
a análise dos dados. O juiz não observa os dados de forma objetiva,
mas de conformidade com sua crença. A crença médica, no sentido
de admitir que, segundo os dados coletados, há uma probabilidade
de um determinado diagnóstico, está de certa forma vinculada aos
dados. Como no direito não se analisam apenas dados, mas con-
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 43

dutas, a crença do juiz se orientará, inevitavelmente, para fora dos


dados, porque irá se projetar sobre os antecedentes e a própria figura
física do imputado. Nesse caso, a probabilidade de que certo autor
praticara o fato e é por ele responsável não pode resultar de fórmulas
matemáticas, mas, sim, de valorações sobre a coleta da própria prova.
Nesse sentido, o pronunciamento de FENOLL:27
“Retornando ao teorema de Bayes, entendo que a crítica mais impor-
tante que se lhe deveria fazer, e talvez a única que resume todas as de-
mais, e descartar por completo seu emprego no âmbito judicial, porque
é um teorema de probabilidade. E a probabilidade é, por definição,
uma teoria matemática que regula fenômenos aleatórios. Pois bem, um
julgamento jurídico-penal não é um fenômeno aleatório. Aleatório é
aquele pressuposto no qual é possível conhecer todos os possíveis resulta-
dos, mas é impossível predizer qual desses resultados surgirá desse pressu-
posto concreto. E o julgamento jurídico-penal não é aleatório, mas, sim,
francamente imprevisível, ainda que se conheçam todas as variáveis em
jogo, quando sejam conhecidas, porque não se pode nunca determinar
praticamente, com exaustão, qual será o resultado final.”
Quando se chega a esse patamar, deve-se salientar a falibilida-
de dos indícios como meios únicos e idôneos de prova, só devendo
valer quando suas conclusões guardarem coerência com o resultado
de outros meios.

27 FENOLL, Jordi Nieva. Nota 26, p. 135.


5. DAS ORDÁLIAS À “RAZÃO”

Com as invasões bárbaras, tornou-se comum no Ocidente o


uso de um instrumento para resolver controvérsias de todo o tipo: o
ordálio. Pode-se, em certo sentido, afirmar que os ordálios constituí-
ram uma espécie de sistema probatório composto de uma variedade
de técnicas (duelo judicial, prova d`água, caldeirão fervente, etc.) que
poderiam ser utilizadas em cada situação, a depender das tradições
locais e, em alguns casos, da vontade das partes ou mesmo do juiz.
Alguns afirmam que os ordálios eram meios de prova irracio-
nais. Isso não parece estar correto. Os ordálios obedeciam a uma ló-
gica racional, funcional e amplamente aceita no contexto (dominado
pelo enchantment) em que eles eram utilizados: o “divino” podia e
diria a verdade para solucionar um conflito. Na realidade, pode-se
afirmar que o ordálio era tido como a liturgie d`um miracle judiciaire
(JACOB).
Em um contexto de profunda fé religiosa, os ordálios eram a
prova de que Deus estava presente nas disputas judiciais, sempre que
outros meios se revelavam insuficientes para pôr fim à controvérsia.
O ordálio caracterizava-se por ser decisivo, e seu resultado e as conse-
quências positivas ou negativas da prova (então, mais um desafio do
que um elemento de cognição) sempre claros e incontrastáveis (como
duvidar da resposta fornecida por Deus?). Após o órdálio, não havia
mais dúvida possível, Deus definia a parte vencedora (pensem na
semelhança com os julgamentos condicionados pelo Deus-Mercado
ou pela Deusa-Televisão).
O declínio do recurso aos ordálios, ao que parece, coincide
com profundas mudanças na sociedade, e em especial nas práticas
judiciárias. Passou-se a acreditar que a verdade dos fatos, a solução
justa para uma determinada controvérsia, podia e devia ser apresen-
tada a partir de condutas humanas e não mais por revelações divinas.
46 PROVA E VERDADE

Do ponto de vista teológico, aderiu-se à tese, já presente em TOMÁS


DE AQUINO, de que não se deveria desafiar Deus a resolver maté-
rias que a razão humana poderia dar conta.
TARUFFO aponta o surgimento de “caminhos divergentes”
após o declínio dos ordálios. Na Inglaterra e no Continente Euro-
peu, o fim dos ordálios produziu consequências diferentes. Na In-
glaterra, esse declínio guarda conexão com a consolidação do jury
trial. Enquanto isso, na Europa Continental, a probatio substituiu
a divinatio, com o aparecimento de novos meios de prova (apresen-
tados como “racionais”), voltados a descoberta da verdade dos fatos
(a principal técnica era a inquisitio), que passaram a ser geridos, no
mais das vezes, por juízes profissionais.
Na Inglaterra (e de lá para o mundo anglo-saxão), o Júri se
consolidou como o principal método à resolução dos conflitos pos-
tos à apreciação judicial. Os jurados, antes “testemunhas dos fatos”
e depois “juízes do fato”, tornam-se autores de um veredicto impers-
crutável (e nesse particular, se assemelha à solução alcançada pela
via dos ordálios). É importante lembrar que o juramento solene dos
jurados, que ainda hoje se faz presente, invoca a intervenção de Deus
no julgamento. Pode-se afirmar que o jury trial, construído como
uma garantia individual contra a opressão do poder, busca nas “vísce-
ras comunitárias” a legitimidade dos julgamentos (o que no sistema
dos ordálios era obtido mediante a evocação divina).
No modelo originado na Europa Continental, e em princí-
pio adotado no Brasil, procurou-se abandonar os ordálios em uma
tentativa de “racionalizar” a busca pela verdade como condição para
a realização do valor justiça. O “mito de Deus” acabou substituído
pelos mitos da “razão” e da “ciência”. Nesse modelo, os julgamentos
têm por base a reconstrução dos fatos através de meios probatórios
admitidos na legislação, razão pela qual tanto a “divindade” quanto
a “voz das ruas” ou as “vísceras comunitárias” mostram-se estranhas
à solução justa dos casos postos à apreciação do Sistema de Justiça.
A “verdade” é elevada à condição de legitimidade dos julgamentos,
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 47

e, ao mesmo tempo, as garantias processuais e demais direitos fun-


damentais, limites jurídicos e éticos ao exercício do poder, passam a
funcionar como condições de legitimidade da busca da verdade.
Em apertada síntese: enquanto no modelo europeu-continen-
tal (civil law) a verdade dos fatos é tida como um dos principais
escopos do processo, no modelo de common law a confiança na cor-
reção e na justiça do veredito dos jurados baseia-se no fato dele ser
formulado por pessoas que retratam a vox populi (nesse sentido, por
todos, TARUFFO28).
Hoje, tem-se o procedimento judicial como um método, re-
gulado juridicamente, de investigação histórica, isso porque, uma de
suas finalidades é a de averiguar a verdade de uma hipótese histórica,
a validade da afirmação de um acontecimento naturalístico. O pro-
cedimento, então, levará à certeza positiva, à certeza negativa ou à
dúvida acerca de uma hipótese histórica. Uma sentença condenató-
ria, por exemplo, exige “a certeza positiva sobre todos os elementos
da imputação que nela se afirmam para fundamentá-la”.29 Alcançar
a certeza passa a ser, não mais um dom divino, mas um êxito do
procedimento.

28 TARUFFO, Michele. Uma simples verdade. O juiz e a construção dos fatos. São Paulo:
Marcial Pons, 2012.
29 MAIER, Julio B. J. El proceso penal contemporáneo. Lima: Palestra Editores, 2008, p. 511.
6. MOMENTOS DA PROVA

Na tentativa de sistematizar o procedimento probatório (a


instrução), costuma-se apontar quatro fases, quatro momentos dis-
tintos: a proposição, a admissão, a produção e a valoração da prova.
Frise-se que, a rigor, a valoração da prova não é um momento do pro-
cedimento probatório, mas da elaboração da sentença (fase decisória,
posterior à fase de instrução).
Por proposição entende-se o requerimento da parte direciona-
do à Agência Judicial no qual se pugna pela realização de algum ato
probatório específico ou produção de determinada espécie de prova.
No sistema acusatório, opção do legislador constituinte, a proposição
da prova é ato das partes, pois a gestão das provas cabe a elas.
A admissão representa o juízo de valor (decisão) exercido pelo
agente jurisdicional no qual se reconhece a legalidade, a moralidade,
a pertinência e, para alguns, a necessidade da prova requerida pelas
partes. A admissão, portanto, é o momento em que a Agência Judi-
cial decide que a prova pretendida pode ser produzida pela parte que
a propôs. Trata-se do juízo de admissibilidade da prova.
A produção probatória representa a introdução material de
uma prova nos autos. A produção da prova pode significar a concre-
tização do desejo da parte de confirmar ou refutar o fato que é indis-
pensável à solução justa do caso penal. No sistema acusatório, mode-
lo ideal que preza pela imparcialidade do órgão julgador, a produção
das provas é ato das partes e, apenas em caráter substitutivo, cabe ao
órgão jurisdicional. A validade da prova produzida pela Agência Ju-
dicial, portanto, está condicionada à necessidade insuperável da atua-
ção judicial, isto é, só se justifica o abandono da inércia, que marca a
atividade jurisdicional, se as partes, por si sós, não forem capazes de
produzir a prova pretendida, o que se dá, por exemplo, nas hipóteses
em que se faz necessário afastar uma garantia individual para a pro-
50 PROVA E VERDADE

dução probatória (v.g., a determinação judicial para a interceptação


de conversas telefônicas). Note-se que essa interferência judicial só
deve ser admitida em caso de necessidade, quando não haja outro
recurso, e não porque pareça mais justo ao julgador coletar provas
contra o réu.
Por fim, a valoração é o momento em que a Agência Judicial
analisa o contexto probatório e forma o seu convencimento. Na rea-
lidade, as partes apresentam suas propostas de valoração probatória
em suas respectivas alegações finais, e o órgão judicial fundamenta e
decide o valor dado, ou negado, a cada prova introduzida nos autos.
Em regra, o procedimento probatório segue a ordem sugeri-
da (1.º -proposição; 2º- admissão; 3º- produção; e 4º- valoração) na
busca ética de instruir o juízo, fornecendo-lhe condições de chegar à
solução justa do caso penal. Porém, nada obsta que existam inversões
ou supressões de momentos probatórios. Assim, o juízo de admis-
sibilidade da prova documental, por exemplo, se dá em momento
posterior à produção. Registre-se que, no caso da emissão de um
juízo de admissibilidade negativo, o documento juntado aos autos
deve ser desentranhado.
7. A VALORAÇÃO DA PROVA

Um dos temas candentes da teoria da prova é o de sua valora-


ção. A valoração da prova envolve também a validade das espécies ou
meios de prova e ainda o próprio sistema de busca da verdade.
Depois de superado o sistema das provas legais, que limitava
sua análise à simples constatação da existência da prova previamente
tarifada, a valoração da prova passou a constituir tarefa do julgador,
o qual poderia exercê-la como ato de sua íntima convicção ou como
expressão de seu convencimento, mas motivado pelos elementos ob-
jetivos colhidos no decorrer do procedimento. A íntima convicção se
assenta exclusivamente num juízo subjetivo, sem qualquer necessidade
de justificação; a convicção motivada decorre de um juízo formulado
sobre elementos materiais. O direito processual moderno, com algu-
mas poucas exceções, se baseia no sistema da convicção motivada.
Na realidade, em que pese ao prestígio da expressão “princípio
do livre convencimento motivado”, não há uma verdadeira “liber-
dade” do juiz para analisar o conjunto probatório e formar sua con-
vicção, uma vez que o julgador está, em certa medida, condicionado
tanto pela tradição em que está inserido quanto por fatores ligados ao
inconsciente. O “livre convencimento” é, portanto, um mito.30 De
toda sorte, a necessidade de motivar o valor dado a cada prova per-
mite reforçar a natureza cognitiva e reduzir os espaços potestativos
e potencialmente arbitrários do juízo, “vinculando-o, em direito, à
estrita legalidade, e de fato, à prova das hipóteses acusatórias”.31
Como a convicção do julgador precisa ser justificada, mediante
uma fundamentação exercida sobre elementos dos autos, aflora a im-
portância de critérios para seu exercício. Aqui, impõe-se a consideração
30 Sobre o tema: CASARA, Rubens. Mitologia processual penal. São Paulo: Saraiva, 2015, p.
180-185.
31 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002, p. 497.
52 PROVA E VERDADE

da relação entre a “normatividade” e a “intencionalidade do julgador”.


Ao valorar a prova, o juiz deve se submeter tanto à normatividade que
se extrai da Constituição da República e das leis processuais quanto ao
uso normativo da lógica e da verdade. Assim, por exemplo, o juiz não
pode violar os princípios da lógica ao valorar o conjunto probatório,
nem abandonar a pretensão de descobrir a verdade, salvo diante de
limites legais à produção e à obtenção da prova.
A prova tem como objetivo a busca da verdade. A verdade,
no processo, para além da sua dimensão normativa (“deve-se buscar
a verdade, salvo a existência de limites normativos à prova”), fun-
ciona também como um indicador epistêmico,32 que direciona a
ação probatória de um estado de incerteza, que deriva da dimensão
probatória do princípio da presunção de inocência, a um potencial
estado de certeza que deve ser obtido a partir de um processo ba-
seado na investigação e na demonstração de acontecimentos natu-
ralísticos (fatos que sejam penalmente relevantes) em respeito aos
limites éticos e jurídicos e não de um processo arbitrário, fundado
no consenso, na violação de limites com finalidade política ou em ca-
prichos, “insondáveis mediante critérios de valoração adequados”.33
Portanto, em linhas gerais, os procedimentos ou critérios valorativos
devem ser aqueles que possam conduzir à elucidação dos fatos, ou
melhor, à afirmação de validade dos enunciados pronunciados sobre
os fatos. Todavia, é bom lembrar que o uso normativo da “verdade”
(o dever de buscar a verdade) não permite afastar a existência de
limites, igualmente normativos, à “descoberta da verdade”. Pode-se,
portanto, reconhecer a existência de um dever do juiz de decidir de
acordo com a verdade, respeitados os limites éticos e jurídicos à sua
obtenção. A busca da verdade, assim, não pode ser efetuada a qual-
quer preço, até porque nem todo fato ou nem toda alegação sobre
o fato pode ser objeto de prova. Além da questão das provas ilícitas,
que dizem respeito aos meios ou métodos de sua obtenção, as quais,

32 Sobre o tema, por todos: PRADO, Geraldo. Nota 3, p. 29-54.


33 PRADO, Geraldo. Nota 3, p. 44.
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 53

portanto, estão fora de qualquer avaliação, a busca da verdade está


também limitada pela proibição do thema probandum e da própria
valoração. Estão fora da produção da prova no processo penal todos
os temas que digam respeito exclusivamente a outros procedimentos
ou a outros ramos do direito ou que se incluam entre fatos sigilosos
de terceiros ou ainda pertencem ao núcleo duro da vida privada. Por
exemplo, o Ministério Público não pode requisitar a folha de ponto
de uma repartição pública, que só tem interesse para a relação funcio-
nal, a fim de comprovar a contumácia do réu, nem, assim, sua ficha
de atendimento hospitalar, para se inteirar de suas condições físicas,
ou de seu psicanalista, para identificar suas preferências sexuais, ou
tomar conhecimento de relações íntimas de casais. Mesmo quando
autorizada uma interceptação telefônica ou uma escuta ambiental,
são objetos proibidos de avaliação todos os dados pessoais do acusa-
do, que se refiram à sua vida íntima e estejam protegidos pelos direi-
tos de personalidade.34 Esses objetos não poderão ser submetidos a
uma valoração, porque escapam à necessária relação entre objeto de
prova e fato imputado e também porque violam a própria dignidade
humana. Como dizem MEYER-GOßNER/SCHMITT , “a proibi-
ção da valoração da prova significa que os fatos assim estabelecidos não
podem ser tomados como objetos de apreciação de prova e de julgamen-
to”.35 Como consequência, “caso o réu tenha sido prejudicado por uma
prova de valoração proibida, isso conduz, segundo a teoria dominante, à
sua absolvição ou, de acordo com JÄGER, ao arquivamento do respectivo
procedimento”.36
A proibição da prova ou de sua própria valoração é um tema
recente do processo penal e está em consonância com a estrutura da
ordem jurídica democrática, que tem como centro de sua proteção a
pessoa humana e seus direitos fundamentais.37
34 EDER, Florian. Beweisverbote und Beweislast im Strafprozess, München: Herbert Utz,
2015, p. 31.
35 MEYER-GOßNER/SCHMITT. Strafprozessordnung, Beck Kommentar, München: Beck,
2012, p. 11.
36 MEYER-GOßNER/SCHMITT. Nota 35, p. 11.
37 EDER, Florian. Nota 34, p. 61.
54 PROVA E VERDADE

É de se salientar, ademais, como assinala WEICHBRODT,


que a proibição da prova em relação a certos objetos está associada
às limitações na busca da verdade, no sentido de proporcionar uma
justa apreciação dos fatos em face de sua autoria e, essencialmente,
das condições que possam intervir na apreciação da culpabilidade.
Assim, a busca da verdade não constitui um fim em si mesmo do
processo penal. Ao contrário, a busca da verdade, dentro dos limi-
tes legais e constitucionais, deve ser levada em consideração sob a
perspectiva de um processo justo. A partir dessa assertiva, as absol-
vições resultantes da falta ou deficiência de prova (art. 386, V e VII,
CPP), ou mesmo de suas restrições, como ocorre com sua proibição,
não podem ser tidas como absolvições de segunda categoria. Essas
absolvições correspondem exatamente às condições de legitimidade
do processo penal, o qual só será válido quando possa proporcionar
elementos aptos à aferição da culpabilidade, centrada no poder agir
de outro modo. Caso esses elementos não estejam presentes, a absol-
vição não é apenas necessária, como obrigatória.38
A valoração depende, assim, dos limites legais e constitucionais
impostos à prova, mas também da qualidade dos meios de prova e de
suas características. Assim, por exemplo, a prova pericial ou a prova
indiciária está mais aproximada de um juízo de probabilidade; a pro-
va testemunhal, a um juízo de credibilidade. Para facilitar esse exame,
os códigos, como já ocorria desde a Idade Média, enumeram algumas
condições prévias acerca da validade das provas. O ponto principal
dessas condições reside na idoneidade do meio. Como consequên-
cia, o Código de Processo Penal em seus arts. 202 a 225 dispõe de
regras acerca das testemunhas, relativamente à qualidade para depor,
ao compromissivo de dizer a verdade, aos impedimentos, à incomu-
nicabilidade, à forma da inquirição e ao conteúdo das perguntas e do
próprio depoimento. O mesmo ocorre quanto ao reconhecimento
de pessoas ou coisas, que deve seguir um procedimento próprio que

38 WEICHBRODT, Johannes. Der verbotene Beweis im Straf- und Zivilprozess, Tübingen:


Mohr, 2012, p. 18.
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 55

assegure, ao mínimo, sua idoneidade (art. 226) e também quanto à


busca e apreensão, que devem observar as limitações constitucionais
(art. 245) e aos princípios da objetividade e restritividade (art. 243).
A declaração de invalidade da prova por violação da legalidade
democrática leva à exclusão do elemento probatório produzido me-
diante um procedimento ilegítimo. Incide o que no direito estaduni-
dense é chamado de exclusionary rule. Tem-se, então, tanto no direito
de tradição anglo-saxônica quanto no direito continental europeu, a
proibição da valoração dessa prova (ou, ao menos, limitações à valo-
ração do conjunto probatório). No direito brasileiro, por exemplo,
se uma prova é descoberta dentro de uma residência por policiais
que adentraram no imóvel sem ordem judicial ou autorização dos
moradores, o elemento probatório deve ser considerado excluído ou
suprimido do conjunto probatório. Em outras palavras, o elemento
probatório não pode ser valorado diante do efeito exclusão ou de
supressão da prova inerente à inobservância da lei.
Por oportuno, e sobre a “autorização dos moradores” para a
entrada em uma residência fora das hipóteses de cumprimento de
uma ordem judicial, cumpre destacar que a garantia da inviolabilida-
de dos domicílios exige a análise rigorosa da validade/autenticidade
dessas autorizações. Assim, não há autorização válida, apta a legiti-
mar o ingresso em uma moradia e a eventual descoberta de alguma
prova, se a pessoa que “autorizou” estava presa ou detida pela auto-
ridade policial. De igual sorte, não há autorização válida se, diante
das circunstâncias do caso, a pessoa que deveria autorizar o ingresso
se encontra em um contexto de ameaça/coação ou não foi informada
do direito de recusar a entrada de terceiros em sua residência. Têm-se,
nesses casos, situações que dificultam extremamente a recusa da au-
torização: a vontade do afetado está, portanto, viciada. Também de-
vem ser negados efeitos ao “consentimento tácito”, retratado em fra-
ses como “não opôs resistência” ou “gentilmente cedeu a entrada”. O
afirmado “consentimento tácito” é, na realidade, a ausência de uma
vontade autêntica do afetado que permita o ingresso na residência.
56 PROVA E VERDADE

Afora essas regras que disciplinam o modo de realização da


prova e constituem condições de sua validade, será relevante determi-
nar o procedimento de sua aferição. Há todo um sistema de controle
epistêmico, que exige, por exemplo, o respeito ao direito do impu-
tado de rastrear as fontes das provas utilizadas contra ele, bem como
demonstrar os equívocos e/ou ilegalidades ocorridos no momento da
produção probatória até sua aferição. Assume relevância, em especial
diante da necessidade de conter os abusos de poder e as distorções
no campo probatório, a disciplina da “cadeia de custódia das provas”
que busca assegurar o respeito ao princípio da legalidade estrita no
âmbito probatório.39
Há que se fazer, inicialmente, uma distinção entre valoração
da prova e motivação. A valoração da prova diz respeito ao procedi-
mento de percepção dos resultados dos atos probatórios; a motivação
assinala o momento de justificação da escolha dos critérios de per-
cepção. Enquanto a valoração depende, assim, dos meios de prova,
concretos, postos à disposição do julgador e de seus resultados, a
motivação, como ato final de desenvolvimento do processo de busca
da verdade, está atrelada aos fundamentos lógicos e jurídicos, que
delimitam essa busca.
O procedimento de avaliação da prova pode ser subdividido
em duas sequências: cognitiva e discursiva. Na sequência de cogni-
ção devem ser empregados os critérios para determinar a validade da
prova; no discurso, cabe ao julgador optar por um dos critérios pos-
tos em discussão e decidir se as alegações das partes correspondem,
de certa forma, aos fatos, emprestando a essa decisão uma preten-
são de validade. O procedimento de cognição não pode se afastar
dos cânones e indicações do respectivo ramo de conhecimento vin-
culado ao meio de prova. Assim, uma prova técnica tem que estar
amparada nos modelos científicos aceitáveis, valendo, nesse caso, as
indicações derivadas do caso Daubert; uma prova testemunhal tem
que corresponder a um mínimo de credibilidade. Por seu lado, o
39 Sobre o tema: PRADO, Geraldo. Nota 3.
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 57

procedimento discursivo, ainda que possa ser exercido com certa li-
berdade pelo julgador, não pode ser concluído de forma arbitrária,
sem estar relacionado ao que se demonstrou na fase cognitiva. A
avaliação da prova guarda, assim, uma correspondência, em ambas
as fases, com o próprio procedimento de interpretação das normas,
que fundamentam a decisão judicial. Assim, o procedimento dis-
cursivo deve estar ajustado à configuração típica do fato. Se o fato
disser respeito a um furto, por exemplo, a argumentação discursiva
não pode se orientar pelos elementos do estelionato, ou do uso de
documento falso.40
Quando se trata de procedimento de cognição entra em jogo
a oportunidade de escolha de um critério que possa aproximar as
alegações aos fatos. Nesse sentido, vários critérios foram propos-
tos, desde aqueles fundados empiricamente até os que se inferem
de proposições lógicas e valorativas. Os critérios empíricos são cri-
térios probabilísticos e estão associados, geralmente, à determinação
da suficiência ou insuficiência das afirmações; os critérios lógicos e
valorativos se referem mais à relevância da prova em face de sua re-
lação com as alegações. Os critérios da suficiência e insuficiência são
critérios de preponderância; os critérios de relevância são critérios de
admissão ou descarte da prova.
Demonstrando a diferenciação de ambos os enfoques, assim
diz PARDO, professor da Universidade do Alabama:
“Os dois princípios básicos do direito probatório moderno são: 1) que
a prova irrelevante deva ser excluída; 2) que a prova relevante deva ser
admitida, salvo se houver uma boa razão para excluí-la. Uma teoria
satisfatória sobre a prova deveria ser capaz de explicar se a prova é rele-
vante ou não, e por quê.”41
(...)

40 ANDROULAKIS, Nikolaos K. “Das Wesen des strafrechtlichen Beweises und seine Bes-
tandteile, unter Einschluss seiner revisionsrechtlichen Kontrolle – die Falzifizierung durch
den vernünftigen Zweifel”, in Festschrift für Roxin, Berlin; De Gruyter, 2011, p. 1359 e ss.
41 PARDO, Michael. Estándares de prueba y teoría de la prueba, in Estándares de prueba y
prueba científica, 2013, p. 101.
58 PROVA E VERDADE

“Um elemento de prova é relevante se possui uma tendência a tornar


mais ou menos provável a existência de qualquer fato, com consequên-
cias para a determinação da ação, em comparação com a ausência de
tal prova.”42
(...)
“Tipicamente, propõe-se ou se pressupõe que a preponderância da prova
equivale a uma probabilidade maior do que 0,5; que a prova clara e
convincente equivale a uma probabilidade maior que 0,75 aproxima-
damente; e que (a prova) além de toda dúvida razoável equivale a
uma de 0,9 ou mais. E as provas resultam suficientes para confirmar
um enunciado fático quando a probabilidade deste, dadas essas provas,
supera o umbral da decisão.”43
Uma vez superada a etapa da cognição, que está fundada es-
sencialmente na relevância da prova e na probabilidade do enunciado
diante dos fatos, caberá ao julgador emitir a conclusão final para di-
zer qual das alegações mais se aproxima da verdade.
A fase discursiva ou de justificação tem o objetivo de exami-
nar a validade das afirmações e, principalmente, superar os efeitos de
uma estrita observância dos critérios objetivos da probabilidade em
face de um princípio geral de justiça. Diversamente do que ocorre
nas ciências naturais, que trabalham com critérios neutros, a ciência
jurídica tem como seu pressuposto um sistema de valores ao qual está
subordinada. Assim, cada confirmação probabilística não vale por si
mesma, mas depende do tipo de procedimento de que se trate. Uma
prova com um grau de probabilidade acima de 0,5 poderá ser, assim,
suficiente para determinar a responsabilidade civil por um dano, mas
será insuficiente para fundar uma sentença condenatória criminal. É
que neste último caso, em face do princípio da presunção de inocên-
cia, não será relevante a afirmação probabilística, senão quando se
aproxime de um grau de certeza fundado em robusto conjunto pro-
batório produzido de acordo com a normatividade constitucional,
ou seja, de 0,9 ou mais. Em realidade, é no momento da fundamen-
42 PARDO, Michael. Nota 41, p. 105.
43 PARDO, Michael. Nota 41, p. 111.
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 59

tação que esse grau de “certeza” do julgador deve ser demonstrado


satisfatoriamente, tanto para confirmar a hipótese acusatória quanto
para afastar as teses defensivas a partir de elementos concretos e de-
monstráveis. Como a prova só tem significado em face do fato típico
e com vistas a fornecer elementos que possam embasar um juízo de
culpabilidade, afirma HERZOG que o grau de certeza constitui uma
exigência incontornável do Estado de Direito.44
Diante da necessidade de ajustar o emprego de critérios proba-
bilísticos ao tipo de procedimento e sujeitá-los aos princípios de va-
lor da ordem jurídica, propõe HAACK, professora da Universidade
de Miami e grande especialista no tema, sua subordinação, em pri-
meiro lugar, ao princípio do ônus da prova (na realidade, a dimensão
probatória do princípio constitucional da presunção de inocência);
em segundo lugar, aos critérios de racionalidade. A subordinação a
esse critério é essencial para tornar explicável a afirmação acerca dos
fatos e justificar a conclusão final.
Assim, diz HAACK:
“Alguma referência ao ônus da prova e aos modelos probatórios é neces-
sária para assegurar que se tenha alcançado um resultado. E a justifi-
cação que está subjacente no ônus e nos modelos específicos de prova se
funda também em considerações políticas: mais claramente, a exigência
de que um ônus penal deva ser provado pela acusação e que deva ser
provado mais além de toda dúvida razoável descansa na ideia de que
é muito pior condenar alguém por um crime que não cometeu do que
absolver alguém por um crime que efetivamente cometeu.”45
Nesse caso, levantado por HAACK, entra em consideração
um elemento novo: a ponderação em torno da justiça da decisão. É
mais justo absolver-se um culpado do que condenar um inocente.
A ponderação interfere na conclusão, liberando-a de uma aceitação
necessária e obrigatória dos índices de probabilidade. A subordinação
dos critérios probabilísticos aos princípios de valor da ordem jurí-
44 HERZOG, Felix. Strafrecht, Allgemeiner Teil, Weinheim: Wiley, 2017, Parte I, Capítulo 2.
45 HAACK, Susan. El probabilismo jurídico. Una disensión epistemológica, in Estándares de
prueba y prueba científica, 2013, p. 69.
60 PROVA E VERDADE

dica proporciona sua integração sistemática, que será desenvolvida


através dos graus de credibilidade, de segurança e de inclusão das
provas. Somente essa integração entre os critérios probabilísticos e os
preceitos de segurança da ordem jurídica possibilitará uma decisão
final racional. Portanto, o procedimento de valoração da prova não é
uma tarefa simplesmente matemática, mas, sim, de ordem axiológi-
ca, como, aliás, deve corresponder à estrutura das decisões jurídicas.
8. A PROVA ILÍCITA

A problemática da prova ilícita liga-se aos limites normati-


vos da atividade de produção probatória e ao exercício do poder
estatal. Como a prova deve estar submetida a um procedimento
axiológico e não se fundar, simplesmente, em mero cálculo mate-
mático, é relevante na avaliação da prova não apenas a suficiência
de seus elementos substanciais, mas, sim, também à lisura do pro-
cedimento de sua obtenção. No Estado Democrático de Direito,
os fins não justificam os meios, o que significa dizer que para
punir alguém que violou a lei, o Estado não pode igualmente
violar a lei e aceitar uma prova produzida ou obtida em violação
à legalidade estrita.
A Constituição brasileira de 1988 consignou em sua art. 5º,
LVI, a invalidade das provas ilícitas, seguindo, nesse passo, o que já
se havia consagrado em outros países. Regulamentando o preceito
constitucional, o Código de Processo Penal, em seu art. 157, dispõe
que “são inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo as
provas ilícitas, assim entendidas às obtidas em violação às normas
constitucionais ou legais”.
A discussão que se trava no âmbito das provas ilícitas diz res-
peito a duas questões: a) a definição de ilicitude; b) a extensão da
declaração de ilicitude.
Costuma-se fazer uma diferença entre prova ilícita e prova ile-
gítima. As provas ilegítimas seriam aquelas que violassem os preceitos
processuais; as provas ilícitas, as que se contrapusessem às normas de
direito material. Essa distinção não apresenta grande relevância se o
processo de avaliação da prova for compreendido, em sua totalidade,
também como um processo de justificação e, assim, sempre subordi-
nado ao critério de sua legitimidade.
62 PROVA E VERDADE

Pelo enunciado constitucional, diversamente do que ocor-


re em outros sistemas, o direito brasileiro adota o princípio da
ilicitude absoluta, pela qual a declaração de ilicitude contamina
não apenas as provas diretamente obtidas por meio ilícito, senão
também suas derivadas. O Código de Processo Penal, porém, tra-
ça uma limitação nessa extensão. Primeiramente, afirma (art. 157)
que são inadmissíveis as provas ilícitas; depois, considera também
inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas (art. 157, § 1º), mas
abre uma exceção: “quando não evidenciado o nexo de causalidade
entre umas e outras ou quando as derivadas puderem ser obtidas
por uma forma independente das primeiras.” A última das exce-
ções relativiza a proibição das provas ilícitas e deverá ser declarada
inconstitucional (ou, ao menos, objeto de uma interpretação con-
forme a Constituição). Isto porque se o procedimento foi ilícito
em relação à prova especificamente vinculada ao objeto a ser pro-
vado, também o será para outras provas que foram arrecadadas no
âmbito de sua execução. Não importa para o efeito de declaração
de ilicitude que a prova coletada no procedimento ilícito possa ser
obtida por outro meio lícito. Na realidade, se ela foi coletada por
meio de procedimento ilícito, deverá ser também declarada ilícita,
pelo menos, para os efeitos imediatos da investigação em curso. Se,
por exemplo, na busca e apreensão de cartões de crédito clonados,
efetuada sem mandado judicial, for apreendido outro documento
que comprove uma sonegação fiscal, a declaração de ilicitude da
primeira apreensão contamina também a segunda, ainda que a so-
negação possa ser comprovada por outros meios, como a ação fiscal
da Receita Federal. Essa ilação acerca da possibilidade alternativa
de obtenção de prova nem sempre é fácil de perceber. No exemplo
dado, caso o documento não for apresentado à Receita, pode ser
que a sonegação jamais seja descoberta.
O fenômeno da contaminação das provas, também conheci-
do como prova ilícita por derivação, refere-se a provas que seriam
lícitas se não tivessem sido descobertas em razão de uma prova ilí-
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 63

cita. A contaminação da prova é a resultante de sua gênese ilícita. A


teoria dos “frutos da árvore envenenada” tem origem na Suprema
Corte estadunidense e baseia-se na tese de que o vício da árvore,
ou de qualquer de seus frutos, transmite-se a todos os demais fru-
tos, mesmos àqueles aparentemente bons. A prova primária, ilícita,
torna ilícita também a prova derivada. Para que ocorra a contami-
nação da prova é indispensável que a prova ilícita seja determinante
à obtenção da prova derivada. A prova primária deve ser causa efi-
ciente da prova derivada.
Assim, é preciso cuidado para abordar os fenômenos do inde-
pendent source e da inevitable discovery, que podem demonstrar a
inexistência da ilicitude por contaminação: se a prova ilícita não deu
causa à descoberta da prova que se pretende utilizar, esta pode ser tida
como lícita; de igual sorte, se a prova seria descoberta de qualquer
modo, isto é, se era rigorosamente inevitável (não basta, aqui, a mera
probabilidade), isso produz um efeito jurídico diverso. A descoberta
da prova, nesse caso, ainda que derivada de prova obtida por meio
ilícito, não é contaminada por ela. O problema não está no resultado
que venha a ser obtido por meio lícitos, mas na oportunidade ilícita
que inaugurou o processo e a obtenção da prova. E nisso é que reside
a prova ilícita derivada. Por outro lado, em ocorrendo a ruptura do
nexo de causalidade entre a descoberta da prova e a ilicitude, o mate-
rial probatório pode ser utilizado.
A descoberta eventual de provas, obtida fora do objeto da bus-
ca e apreensão, tem despertado outras reflexões, entre as quais se si-
tua o fenômeno da chamada “serendipidade”. Tem-se entendido por
“serendipidade” uma formulação metodológica que busca justificar a
presença do acaso nas descobertas científicas. Ilustra-se essa formula-
ção com algumas descobertas científicas importantes e que, aparen-
temente, teriam resultado do acaso: os raios X, a penicilina, os raios
cósmicos, a supercola, os anéis de benzol e muitas outras.
Investigando-se melhor, todavia, esse fenômeno, pode-se
constatar que a “serendipidade” tem seu concreto aparecimento,
64 PROVA E VERDADE

como enunciado metodológico, com os projetos de financiamen-


to das pesquisas científicas a partir de 1945 nos Estados Unidos.
A fim de obter uma participação maior do Estado nesse financia-
mento, asseverou BUSH que a ciência não poderia ser encapsulada
em projetos pré-determinados, mas, sim, tratada dentro de uma
perspectiva de absoluta e indefinida liberdade. Designando essa ca-
racterística da livre pesquisa como “serendipidade”, argumentava
BUSH da seguinte forma:
“ (...) uma das peculiaridades da ciência básica é a variedade de ca-
minhos que levam ao avanço produtivo. Muitas das descobertas mais
importantes resultaram de experimentos levados a cabo em função de
propósitos muito diferentes. Estatisticamente, é certo que descobertas
importantes e extremamente úteis resultarão de alguma fração dos em-
preendimentos na ciência básica; porém, os resultados de qualquer in-
vestigação em particular não podem ser acuradamente previstos.46
O relatório da serendipidade teve alguma influência nos go-
vernos americanos, mas esbarrava, de qualquer modo, na validade do
próprio conhecimento. Embora a invocação de algumas descobertas
tivesse o efeito de justificar essa metodologia, ou melhor, essa ausên-
cia de uma metodologia pré-determinada, não poderia justificar a
utilidade dessas pesquisas sem fronteiras. Em oposição à serendipi-
dade, afirma-se a validade de pesquisas científicas pré-direcionadas,
cujos efeitos produtivos se fizeram sentir, em maior amplitude, em
todos os campos. Em relação a isso, observa MARCOS BARBOSA
DE OLIVEIRA:
“A negação da validade universal do princípio da serendipidade torna
possível que o Estado, em seu papel de financiador, leve em conta não
apenas o potencial genérico de aplicação da pesquisa científica consi-
derada em bloco, mas também o potencial específico de cada pesquisa,
ou linha de pesquisa, associado a aplicações determinadas, previamente
definidas.”47

46 BUSCH, Vannevar. Science, the endless frontier. Washington: National Science Founda-
tion, 1990, p. 18.
47 http://escoladeredes.net/group/openscience/page/formas-de-autonomia-da-ciencia.
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 65

Ao superar o princípio da serendipidade, pode ocorrer um es-


tado de anomia, no qual as pesquisas se vejam vinculadas a objetivos
políticos. Isso descaracteriza a seriedade do trabalho científico, o qual
começa a valer desde que apresente efeitos rentáveis. Sobre isso, no-
vamente MARCOS BARBOSA DE OLIVEIRA:
“Outra consequência nefasta da instrumentalização é a tensão que ela
introduz entre os órgãos financiadores da pesquisa e os pesquisadores, os
quais, apesar de toda a pressão inovacionista mercantilizadora, ainda
preservam a curiosidade, a paixão intelectual entre as motivações de seu
trabalho. Essa tensão é o motivo que leva os cientistas a mentirem, exa-
gerando o potencial tecnológico das pesquisas que propõem desenvolver,
motivadas de fato apenas pelo interesse intelectual. Tais falsas promessas
figuram tanto nos projetos de pesquisadores ou grupos de pesquisa, quan-
to em exercícios de relações públicas de setores da comunidade acadêmica
com o objetivo de angariar o apoio da população à destinação de recur-
sos para a realização de suas pesquisas. Como seres morais, os cientistas
devem dar boas vindas a mudanças na concepção pública da ciência que
restaurem seu valor intrínseco, podendo assim livrá-los da necessidade de
mentir para ter condições de realizar-se em sua vocação.48
À medida que essa tensão se desenvolve e põe em risco a se-
riedade das pesquisas, ressurge a necessidade de se vincular o proje-
to a, pelo menos, um mínimo de eticidade, que irá demarcar tanto
os interesses mercantilistas dos financiadores quanto a atividade dos
próprios cientistas. Há, pois, um limite ético que deve se sobrepor a
esses interesses. Os financiadores não podem subordinar as pesquisas
a seus exclusivos interesses, sem levar em conta os malefícios que isso
possa causar à própria humanidade, e os cientistas tampouco podem
se dedicar a atividades de investigação que impliquem uma violação
da dignidade humana.
Esse fenômeno da relação entre financiadores e pesquisa cien-
tífica tem seu correspondente também nas investigações policiais.
As investigações policiais (as chamadas operações) tem como obje-
to a coleta de material capaz de demonstrar que determinado crime

48 http://escoladeredes.net/group/openscience/page/formas-de-autonomia-da-ciencia.
66 PROVA E VERDADE

ocorreu e que isso se deu por obra de um determinado autor. Há,


portanto, na investigação criminal o mesmo propósito que anima os
pesquisadores científicos: buscar a verdade dos fatos. Ocorre, porém,
que essa verdade nem sempre é muito clara, tanto no seu próprio
conceito (o que é a verdade?), quanto no próprio âmbito da investi-
gação. Da mesma forma que a ciência moderna está subordinada a
princípios éticos, associados à subsistência da humanidade e à preser-
vação da pessoa, as investigações policiais estão também disciplinadas
por regras mais cogentes do que aqueles princípios éticos, que são as
regras legais e constitucionais, impostas pela comunidade democrá-
tica. A busca da verdade, portanto, não pode servir de instrumento
para violar direitos fundamentais dos cidadãos.
Nesse passo, a doutrina jurídica se tem deparado com uma
tentativa dos órgãos de persecução criminal de invocarem o princí-
pio da serendipidade para validar incursões extra legem no círculo
jurídico dos imputados. Um dos casos mais comuns dessa incursão
se configura nos procedimentos de busca e apreensão, nos quais se
pretende afirmar a correção na coleta de documentos ou outros da-
dos para além daqueles constantes do respectivo mandado judicial.
Assim, quando a polícia está a executar uma busca e apreen-
são em uma residência, com o fim específico de escolher, por exem-
plo, uma arma de fogo, mas ali também encontra documentos
que possam, em tese, configurar um crime de sonegação fiscal, a
apreensão desses documentos configuraria uma forma de serendi-
pidade, à qual os órgãos de persecução criminal querem emprestar
a qualificação de correção.
A mesma operação argumentativa é apresentada nos diversos
casos de validar a investigação de pessoas não investigadas na inter-
ceptação telefônica deferida judicialmente, com o agravante de que,
muitas vezes, as escutas telefônicas acabam por implicar uma ver-
dadeira investigação criminal de pessoa não sujeita à jurisdição do
magistrado que autoriza a interceptação.
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 67

Apesar dos argumentos em contrário, alguns tecidos nos tri-


bunais,49 que querem validar essa forma de serendipidade, é preciso
ressaltar que o procedimento de interceptação telefônica constitui
uma ruptura direta da garantia constitucional da inviolabilidade das
comunicações, a qual só poderá ser realizada, pelos termos da pró-
pria Constituição, mediante decisão judicial. Igualmente se dá com a
busca e apreensão que constitui uma forma de violar o princípio da
inviolabilidade do domicílio.
A doutrina costuma falar de serendipidade ou de desvio cau-
sal do procedimento quando aprecia o descobrimento fortuito de
provas. Na verdade, não se pode falar, nesse caso, de serendipidade
porque não se trata de uma investigação científica, cujos efeitos se-
jam aleatórios ou fortuitos, mas de um procedimento previamente
regrado. Assim, desde logo, o procedimento de busca e apreensão
está delimitado pelos elementos típicos, ou seja, de uma determinada
infração que se quer provar em sua existência e autoria. Diante desse
fato, os agentes que executam a busca não podem criar uma prova,
ou desviá-la, tal como ocorreria no processo de criação científica a
partir da descoberta de um dado que estivesse situado fora do objeto
previamente determinado.

49 Da jurisprudência do STJ, por exemplo, extrai-se o seguinte precedente: “HABEAS COR-


PUS SUBSTITUTIVO. FALTA DE CABIMENTO. INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNI-
CAS. DIÁLOGOS NÃO RELACIONADOS COM O OBJETO DA INVESTIGAÇÃO.
PRETENSÃO DE DECLARAÇÃO DE ILICITUDE, DE EXCLUSÃO E DE DESTRUI-
ÇÃO DE TAIS PROVAS. INEXISTÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. POS-
SIBILIDADE DE DESCOBERTA FORTUITA DE DELITOS (FENÔMENO DA SEREN-
DIPIDADE). PRECEDENTES. (… 2. O fato de elementos indiciários acerca da prática de
crime surgirem no decorrer da execução de medida de quebra de sigilo de dados e comu-
nicações telefônicas devidamente autorizada judicialmente, determinada para apuração de
outros crimes, não impede, por si só, que as provas daí advindas sejam utilizadas para a
averiguação da suposta prática daquele delito. 3. A comunicação entre advogado e cliente
eventualmente alcançada pela regular escuta telefônica não implica nulidade da colheita da
prova indiciária de crimes e serve para a instauração de outro procedimento apuratório. 4.
Não deve o Estado permanecer inerte ante o conhecimento da prática de outros delitos no
curso de interceptação telefônica legalmente autorizada. Conforme o art. 40 do Código de
Processo Penal, cumpre à autoridade judicial, em casos que tais, remeter ao Ministério Pú-
blico as cópias e os documentos necessários ao oferecimento da denúncia. 5. Habeas corpus
não conhecido” (STJ, HC 197.044/SP, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA
TURMA, julgado em 04/09/2014, DJ 23/09/2014).
9. A INTERCEPTAÇÃO AMBIENTAL E A QUESTÃO
PROBATÓRIA.

A interceptação ambiental pode ser definida como o proce-


dimento probatório consistente na captação e gravação de sons e/
ou imagens, feita por terceira pessoa, da comunicação entre duas ou
mais pessoas, sem que essas tenham conhecimento de que estão a
ser monitoradas e/ou vigiadas. No direito brasileiro, a interceptação
ambiental está prevista tanto no inciso IV do artigo 2º da Lei nº
9.034/95, acrescentado pela Lei nº 10.217/01, quanto no artigo 8º-A
da Lei nº 9.296/96, com a redação dada pela Lei nº 13.964/2019.
De acordo com esses diplomas legais, em qualquer fase da persecução
penal, mediante decisão judicial fundamentada (reserva de jurisdi-
ção), podem ser determinadas a captação e a gravação ambiental de
sinais eletromagnéticos, óticos ou acústicos, e o seu registro e análise.
A Lei nº 13.964/2019 estabelece que a captação de sinais ele-
tromagnéticos, ópticos ou acústicos depende, necessariamente, de
autorização judicial após provocação dos órgãos legitimados à inves-
tigação preliminar. Ademais, o legislador elencou como requisitos
a “imprescindibilidade” da medida, em que se exige à autorização
judicial que a prova não possa ser feita por outros meios disponíveis e
igualmente eficazes (inciso I do artigo 8º-A da Lei n. 9.296/96). Fri-
se-se que é importante respeitar os limites semânticos do texto legal.
Eficaz é, por definição, aquilo hábil à produção dos efeitos desejados.
O significante “eficaz”, portanto, não pode ser tido como sinônimo
de maior comodidade ou facilidade para os órgãos encarregados da
persecução penal.
A legislação brasileira também estabeleceu como requisito à
validade da prova obtida a partir da “captação ambiental”, que a au-
torização judicial seja precedida de elementos de convicção “razoá-
veis” da autoria e participação de crimes. Mas, não só. Restringiu
70 PROVA E VERDADE

a licitude da autorização tão somente em relação à investigação pre-


liminar de infrações em que as “penas máximas sejam superiores a
quatro anos ou em infrações penais conexas” (inciso II do artigo 8º-A
da Lei nº 9.296/96). A decisão judicial, devidamente fundamentada,
deve circunscrever o local e a forma de instalação do dispositivo de
captação ambiental. Ademais, a captação pode ser renovada, nos ca-
sos de atividade criminosa permanente, habitual ou continuada, des-
de que comprovada a indispensabilidade do meio de prova. Tem-se
aqui uma questão de natureza constitucional: medidas de exceção,
que afastam direitos fundamentais, admitem sucessivas renovações
por tempo indefinido? A resposta tende a ser negativa, posto que a
ausência de limites à renovação violaria o dever estatal de respeitar a
duração razoável da persecução penal. Vale lembrar, ainda, que in-
vestigações criminais de longa duração (o que revela, por si só, que a
investigação pode ser declarada como ineficaz) violam o princípio da
dignidade humana do investigado.
Diante da autorização do legislador infraconstitucional, os
agentes encarregados da investigação preliminar, após decisão judi-
cial fundamentada, poderiam instalar aparelhos de gravação de ima-
gens e de sons tanto em ambientes abertos quanto em ambientes
fechados, com o objetivo de gravar sinais acústicos (diálogos entre
um ou mais investigados) e sinais ópticos (imagens das condutas des-
sas pessoas). A autorização judicial autorizaria, ainda, a captação e o
registro de sinais emitidos por aparelhos de comunicação, como os
de radio-transmissão.
A captação sub-reptícia da conversa entre presentes, por tercei-
ro, em meio ao ambiente em que se encontram os interlocutores, sem
o conhecimento destes, tem gerado controvérsia. A Corte Constitu-
cional da Alemanha, ao examinar a inconstitucionalidade da própria
Emenda Constitucional ao art. 13 da Lei Fundamental, que previu
essa forma de investigação criminal, estabeleceu o mote das discus-
sões em torno do tema. Embora tenha, por maioria, admitido a cons-
titucionalidade da Emenda, caracterizou como inconstitucionais di-
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 71

versos artigos do Código de Processo Penal. Isto porque, conforme


manifestação daquele Tribunal, “a inviolabilidade do lar está intima-
mente relacionada à dignidade humana e à exigência constitucional
do respeito incondicional a uma esfera de desenvolvimento exclusi-
vamente privada - “estritamente pessoal”. A comunicação confiden-
cial requer uma proteção espacial em que os cidadãos possam confiar.
Ao indivíduo deve ser garantido o direito de ser deixado sozinho, es-
pecialmente no seu espaço privado, sem medo de que as autoridades
estatais monitorem o desenvolvimento da sua personalidade na área
central da vida privada” (Decisão de 03/03/2004).
O debate sobre o tema, contudo, divide a doutrina. De um
lado, postam-se aqueles que defendem esse procedimento, apontan-
do-o como eficaz à produção de provas de fatos penalmente relevan-
tes. Por isso, nota-se na jurisprudência brasileira uma mudança no
sentido de vulgarizar o uso da escuta ambiental. De outro, estão os
que resistem ao procedimento, uma vez que este amplia a invasão es-
tatal na esfera intima e, ao mesmo tempo, mina a ideia de confiança
inerente às trocas intersubjetivas.
Parcela da doutrina costuma distinguir entre os fenômenos da
interceptação ambiental, da escuta ambiental e da gravação ambien-
tal. Enquanto na interceptação ambiental, terceira pessoa captaria
sons e/ou imagens produzidas por outras pessoas, sem que os inter-
locutores saibam desse procedimento, na escuta ambiental, terceira
pessoa captaria sons e/ou imagens de outras pessoas, mas pelo menos
um dos interlocutores tem conhecimento do procedimento, enquan-
to os demais ignoram a escuta. Por fim, na gravação ambiental, a cap-
tação de sons ou imagens é feita por um dos interlocutores, sem que
os outros envolvidos no ato de comunicação saibam disso. Enquanto
na “interceptação ambiental”, o dialogo e a conduta de todos os en-
volvidos são naturais e espontâneas, nas hipótese de escuta e gravação
ambiental existem interlocutores que atuam de forma artificial e con-
dicionada pelo conhecimento dos que estão a ser gravados. Trata-se
de uma “prova de ensaio”, que retrata uma experiência artificial, com
72 PROVA E VERDADE

imagens e diálogos condicionados e dirigidos por um dos interlocu-


tores. Tem-se, pois, que nos casos de “experiências artificiais” a prova
mostra-se inválida à demonstração de qualquer delito.
A ação de “interceptar”, por sua vez, refere-se ao ato de inter-
romper, de se introduzir, em um curso. Há uma dinâmica externa,
comunicacional, que teria um curso e destinatários específicos, mas
que sofre uma interferência. A situação de intimidade sofre uma que-
bra, uma interrupção, promovida por um agente, sem que os prota-
gonistas do ato de comunicação saibam.
A interceptação ambiental, em princípio, destinava-se à inves-
tigação preliminar relacionada a crimes praticados por quadrilha ou
outras associações criminosas (artigo 1º. da Lei nº 9.034/95). Assim,
conversas em ambientes abertos ou fechados, como uma residência,
um gabinete ou uma praça, poderiam ser interceptadas e gravadas
para servir de prova relacionada a crimes praticados por associações
criminosas de todo tipo. Deu-se, porém, a ampliação do rol de cri-
mes com a Lei nº 13.964/2019, para permitir a captação ambiental
dos delitos com pena máxima superior a quatro anos e os que em
relação a eles forem conexos.
Os textos de lei que tratam da interceptação ambiental, por
originarem normas que afastam direitos fundamentais, devem ser in-
terpretados de forma restritiva. Essa é, inclusive a conclusão da Corte
Constitucional da Alemanha de que os “requisitos para a legalidade da
vigilância da habitação são tanto mais rigorosos quanto maior o risco de
que as conversas a serem gravadas tenham conteúdo estritamente pessoal.
Assim, a vigilância deve ser omitida desde o início em situações em que
haja indícios de que a dignidade humana seja violada pela medida. Se a
vigilância conduzir inesperadamente à coleta de informações altamente
sensíveis, esta deve ser interrompida e os registros devem ser apagados,
sendo excluída qualquer utilização desses dados altamente sensíveis co-
lhidos no decurso da aplicação da lei”(Decisão de 03/03/204). Não se
pode olvidar, ademais, como adverte BARONA VILAR, que essas
interceptações vêm afetar também a terceiros que não são nem sus-
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 73

peitos, nada têm a ver com a investigação e, o que é pior, por não
saberem que estão sendo gravados, não têm instrumentos adequados
à defesa de seus direitos.50
Nos termos da legislação brasileira, admite-se, ademais, a apli-
cação analógica da legislação que regula a interceptação telefônica
e telemática (artigo 8-A, SS 5., da Lei nº 9.296/96). Assim, dian-
te da realidade normativa brasileira, descabe acolher a tese de que
a captação ambiental em local aberto ou público pode ser dar sem
autorização judicial, isso porque o caput do artigo 8º-A da Lei nº
9.296/96 tem for finalidade permitir o controle judicial não só dos
requisitos legais como também da existência e da legitimidade de
atos de investigação que coloquem em risco algum dos direitos e
garantias fundamentais.
Impõe-se, então, analisar a validade da prova que se origina
da interceptação ambiental. De início, pode-se afirmar que o arti-
go 5º, inciso XII, da Constituição da República, apenas admitiu o
afastamento dos direitos constitucionais à intimidade e à vida priva-
da nas hipóteses de comunicações telefônicas, mediante autorização
judicial, para fins de investigação criminal ou instrução processual
penal. Portanto, uma lei infraconstitucional não poderia criar outras
exceções ao sigilo das comunicações, em especial porque, quando
da promulgação da Constituição da República em 1988, já existiam
tecnologias de “interceptação ambiental”. Ao admitir a ampliação
das hipóteses de afastamento do sigilo das comunicações, o intérpre-
te afasta-se do princípio da legalidade estrita que regula a persecução
penal democrática.

50 BARONA VILAR, Silvia. Proceso penal des la historia, Valencia: Tirant lo Blanch, 2017,
p. 592.
10. O AGENTE INFILTRADO

O tratamento legal dado à figura do “agente infiltrado” (ou


“encoberto”) deve-se à importação acrítica de institutos processuais
pensados para realidades, inclusive normativas, distintas da brasilei-
ra. No Brasil, país lançado em forte tradição autoritária, em que os
abusos de poder frequentemente são naturalizados, a introdução des-
se instituto, sem o estabelecimento de limites legais e epistemológi-
cos adequados, choca-se com o princípio da legalidade estrita.
A infiltração de agentes foi introduzida no Brasil a partir do ar-
tigo 53, inciso I, da Lei nº 11.343/2006 (Lei de “combate” às drogas
etiquetadas de ilícitas), do artigo 10 da Lei nº 12.850/2013 (Lei das
Organizações Criminosas) e da Seção V-A da Lei nº 8.069/90 (Esta-
tuto da Criança e do Adolescente), acrescida pela Lei nº 13.441/2017.
Com a Lei nº 13.964/2019, que alterou a Lei nº 12.850/2013 e
acrescentou outros dispositivos à Lei n 9.613/98, ampliou-se a disci-
plina normativa desse instrumento de investigação, criando a figura
do “agente de polícia infiltrado virtual”.
Para MOSCATO DE SANTAMARÍA, o “agente infiltrado”
(ou “encoberto”) deve ser entendido como o “funcionário policial ou
das forças de segurança que faz uma investigação dentro de uma organi-
zação criminosa, muitas vezes sob uma identidade modificada, a fim de
tomar conhecimento da pratica de delitos, sua preparação, e informar so-
bre ditas circunstâncias para assim proceder a sua descoberta, em alguns
casos autorizado também a participar da atividade ilícita”.51
Pode-se, pois, concluir que o agente infiltrado não se confunde
com outras figuras que podem se envolver no contexto da investi-
gação preliminar, tais como os informantes (que não são agentes da
persecução penal ou das forças de segurança pública), arrependidos

51 MOSCATO DE SANTAMARÍA, Claudia B. El Agente Encubierto”, Buenos Aires: La


Ley, 2000, p. 1.
76 PROVA E VERDADE

(outros criminosos dispostos a ajudar na persecução, tais como os


“delatores”) e os agentes provocadores (agentes estatais que instigam
pessoas a praticar um delito).
A depender da legislação de cada país que adota a figura do
“agente encoberto”, a atuação da pessoa infiltrada, em especial no
campo probatório, estaria acobertada por uma hipótese de exclusão
da ilicitude ou da culpabilidade. Em linhas gerais, os doutrinadores
costumam apontar que o agente infiltrado, em seus atos, estaria dian-
te de uma situação de inexigibilidade de conduta diversa. Todavia,
essa tese não se mostra correta diante de um contexto em que a auto-
rização para atuar se revela anterior à conduta que se quer exculpar.
Não é possível, ademais, admitir uma causa prévia de exclusão da
ilicitude ou de exculpação. Tanto nas causas de justificação quanto de
exculpação deve haver uma situação de conflito que deve ser resolvi-
da de conformidade com os limites legais relacionados à necessidade,
à moderação e ao poder agir de outro modo. Em todos esses casos,
por evidente, há uma conduta diversa que poderia ser adotada: não
realizar a infiltração diante do risco de um agente público ser coloca-
do em condição de praticar um injusto. Essa evitabilidade prévia do
fato exclui qualquer fundamento relativo à necessidade, à moderação
e à exigibilidade do comportamento.
Registre-se, por oportuno, que a autorização legal brasileira
para a “infiltração de agentes da polícia para a investigação de crimes
contra a dignidade sexual de crianças e de adolescentes”, por exem-
plo, não exige a circunstância da investigação envolver uma organi-
zação criminosa.
Diante da legislação brasileira, a validade da atuação probató-
ria do agente infiltrado está condicionada à existência de autorização
judicial (princípio da reserva de jurisdição) e à imprescindibilidade
da medida à investigação (princípio da necessidade). Em outras legis-
lações, como a de Portugal, há expressa menção ao uso do princípio
da proporcionalidade. Vale, ainda, mencionar que no Brasil ganhou
corpo, em clara violação à legalidade democrática, a tendência não
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 77

só de reduzir a carga semântica do significante “imprescindível”, para


interpretá-lo como sinônimo de maior facilidade e/ou comodidade
do órgão encarregado da investigação, como também de recorrer ao
princípio da proporcionalidade para restringir direitos fundamentais
e ampliar a ingerência estatal na esfera privada. Essas distorções ju-
risprudenciais, típicas de pré-compreensões autoritárias, não encon-
tram amparo na normatividade constitucional.
Assim, a prova produzida em razão da intervenção de um
“agente infiltrado” só poderia ser considerada válida pelo juiz da cau-
sa na hipótese em que se demonstrasse existirem outros meios de
prova para determinado fato. Há aqui a necessidade de um duplo
controle do requisito da “imprescindibilidade”: tanto no momento
da autorização da operação de infiltração (controle prévio sobre a
imprescindibilidade da operação) quanto no momento da admissão
da prova pelo juiz da causa (controle posterior sobre a imprescindibi-
lidade da prova). O recurso retórico às ideias de “interesse público”,
de “ponderação de interesses” ou de “luta contra a impunidade” não
serve para afastar a necessária analise do requisito da imprescindibi-
lidade da medida e a correlata decisão fundamentada em que o juiz
demonstre a inexistência de outros meios à comprovação de um fato
penalmente relevante. Ainda no que toca ao condicionamento cons-
titucional da “operação de infiltração”, a opção constitucional pelo
modelo acusatório impede que o juiz autorize a “infiltração” sem a
provocação de um dos legitimados à investigação.
Registre-se que, de acordo com a legislação brasileira, o Mi-
nistério Público, a quem cabe a função constitucional de controle
externo da atividade policial, e a autoridade judicial podem requisitar
relatórios parciais do andamento da operação de infiltração, mesmo
antes do término do prazo fixado para a investigação. Diante da na-
tureza sigilosa da investigação promovida pelo agente, as informações
obtidas com a operação de infiltração serão encaminhadas direta-
mente ao juiz responsável pela autorização da medida, que exercerá
o controle da legalidade da medida e zelará pelo seu sigilo. O acesso
78 PROVA E VERDADE

ao conteúdo da investigação ficará, pois, restrito, até o encerramen-


to do procedimento de infiltração, à Agência Judicial, ao Ministério
Público e, se for o caso, ao Delegado de Polícia responsável pela in-
vestigação preliminar.
A legislação brasileira, ainda, permite que os órgãos de registro
e cadastro público incluam “nos bancos de dados próprios, mediante
procedimento sigiloso e requisição da autoridade judicial, as infor-
mações necessárias à efetividade da identidade fictícia criada” (art.
190-D, da Lei nº 8.069/90, ECA).
Atenção especial requer o material probatório “descoberto”
pelo “agente infiltrado”, após a autorização judicial, mas que não
se refere ao objeto ou ao crime analisados pelo juiz que autorizou
a infiltração. Trata-se de uma hipótese de “encontro fortuito” de
material probatório. Importante, aqui, lembrar que a “infiltração”
é medida probatória excepcional e, como tal, a autorização judicial
deve ser interpretada de maneira estrita. Todavia, em razão do prin-
cípio da legalidade, que rege a atuação dos funcionários públicos,
se o agente estatal tiver notícia da ocorrência de um outro crime
ou de outras provas, deverá comunicar o fato à autoridade judicial
que, então, analisará se, em relação a essas novas provas, também se
faria presente o requisito da imprescindibilidade capaz de legitimar
o material probatório.
Mas, não é só. A própria legitimidade da atuação do “agente
infiltrado” precisa ser objeto de verificação. Em outras palavras, os
diversos dispositivos legais que autorizam a atuação do “agente infil-
trado” precisam ser submetidos ao controle de constitucionalidade.
Em face do exposto, reflui sempre a seguinte pergunta: a
Constituição da República autoriza que um agente público se omita
diante da prática de um crime ou, ainda mais grave, que participe
ativamente de sua prática, sob a justificativa de que o método da
“infiltração” é indispensável à demonstração de um fato pretérito? A
reposta parece ser negativa. E isso porque a discricionariedade confe-
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 79

rida ao agente infiltrado e a impossibilidade de controle de todas as


suas atividades enquanto estiver “encoberto”, inerentes à atuação de
um “espião”, são incompatíveis com o princípio da legalidade estrita.
Não há atividade persecutória constitucionalmente adequada
que não encontre limites rígidos impostos pelo legislador. Os espa-
ços discricionários, como os encontrados na legislação brasileira que
regula a figura do agente infiltrado, mostram-se incompatíveis com
uma perspectiva democrática da persecução penal. Em matéria pe-
nal, a discricionariedade tende ao arbítrio. Ademais, viola a razoa-
bilidade exigida de todos os atos estatais, que uma pessoa pratique
crimes a pretexto de investigar outros.
11. A CADEIA DE CUSTÓDIA PROBATÓRIA

Por cadeia de custódia entende-se, nos termos do artigo 158-A


do CPP, introduzido pela Lei nº 13.964/2019, “o conjunto de todos os
procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronoló-
gica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear
sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o seu descarte”,
como forma de controle e afirmação da legitimidade e validade da
produção probatória.
A disciplina da cadeia de custódia probatória é uma conse-
quência necessária dos princípios da legalidade estrita e do contradi-
tório. Todos os momentos da prova e mesmo o procedimento pro-
batório devem respeitar a legalidade democrática, evitando arbítrios,
distorções ou fraudes. Ademais, devem poder ser fiscalizados e con-
trastados pelas partes. Cada parte, portanto, tem o direito de exercer
o controle e se opor às provas produzidas pela outra.
Antes da valoração probatória, é preciso haver certeza sobre
a fiabilidade de cada prova. Cabe ao Estado proteger a prova de in-
terferências capazes de falsificar o resultado da atividade probatória.
Uma prova pode ser tida como “séria”, “crível” e “verdadeira” sempre
que produzida e introduzida no processo de forma transparente e em
atenção à normatividade. Em razão dos princípios da legalidade, da
publicidade e do contraditório, uma prova para ser hábil a formar o
convencimento e ser valorada pelo juiz deve poder ser submetida a
controles legais, éticos e epistemológicos.
A análise da integridade da “cadeia de custódia” permite afir-
mar a legitimidade da produção da prova e de sua admissão/entrada
em um determinado processo. Dá-se, com ela, uma espécie de aná-
lise probatória sobre a prova, uma “prova sobre a prova”52 necessária

52 PRADO, Geraldo. Nota 3, p. 120.


82 PROVA E VERDADE

ao controle sobre a legalidade da persecução penal. A importância


dessa verificação, como um dispositivo de controle da legitimidade
e da legalidade dos atos de investigação e da prova, alcança a fase de
investigação preliminar, na medida em que tanto a atuação da polícia
quanto a do Ministério Público também estão adstritas ao princípio
da legalidade.
A autenticidade da prova é, por evidente, um dos pressupostos
para que possa ser reconhecida a sua fiabilidade. E isso só é possí-
vel com o conhecimento dos meios, das fontes, do procedimento
que levou à descoberta e do caminho percorrido desde a produção
de uma determinada prova. Assim, por exemplo, se um material é
encontrado no local de um crime e precisa ser submetido à perícia,
para que a prova possa ser tida como “séria” e capaz de influenciar
o convencimento do juiz é necessário a demonstração de que esse
material esteve protegido de qualquer manipulação ou interferência
capaz de influenciar o resultado da perícia ou de colocar em dúvida
a fiabilidade da prova. Não se pode esquecer que a prova, mesmo a
pericial, pode ser contaminada tanto pela falta de formação quanto
por má-fé de quem a maneja.
A legitimidade da cadeia de custódia assume ainda maior re-
levância em se tratando de provas numéricas (“provas digitais”) e
de elementos de convicção obtidos após o emprego de “métodos
ocultos” de investigação. Isso se dá, não só diante da facilidade de
adulteração dessas provas, mas sobretudo pela necessidade tanto de
reafirmar o controle e dar a publicidade possível ao ato de investi-
gação quanto de assegurar o contraditório na formação da prova,
ainda que diferido.
Em apertada síntese, uma vez que em matéria penal não é pos-
sível presumir a legitimidade dos atos de investigação, para demons-
trar a seriedade da prova, é preciso que a formação e a conservação do
elemento de convicção ocorram em atenção a determinadas precau-
ções inerentes à própria seriedade e transparência exigidas dos órgãos
encarregados da investigação. A preservação da cadeia de custódia
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 83

serve, por exemplo, para demonstrar ao juízo que a prova apresenta-


da para ser valorada é a mesma que diz respeito ao caso penal ou que
não sofreu manipulação indevida.
A quebra da cadeia de custódia, ou a incapacidade da demons-
tração da cadeia de custódia, levam à invalidade da prova. Trata-se,
portanto, de uma hipótese de prova ilícita.
12. PROPORCIONALIDADE E PRODUÇÃO
PROBATÓRIA

Proporcionalidade deriva do latim proportionalis, que por sua


vez se origina do termo proportio. Traz a ideia de correspondência
entre meios e fins, entre as partes e o todo. No plano normativo,
sugere o dever de compatibilidade entre o meio empregado e os fins
visados, bem como exige a aferição da legitimidade dos fins. A in-
cidência do princípio da proporcionalidade conforma todos os atos
estatais, ou seja, também os atos administrativos e judiciais são passí-
veis de censura por violação ao princípio em análise.
A atuação das diversas Agências Estatais deve se dar dentro
dos limites da normatividade constitucional. Há relativa liberdade de
conformação, mas sempre dentro de certos limites, por vezes, muito
restritos. O legislador, bem como o administrador e o julgador, não
tem um “cheque em branco” que lhe permita atuar da maneira que
bem entender. Os agentes estatais estão adstritos sempre ao princípio
da legalidade, mas não à legalidade rasteira (paleopositivista) e sim à
legalidade constitucionalmente adequada (em matéria penal, à lega-
lidade estrita).
Legalidade e proporcionalidade estão intimamente ligadas. Na
atual quadra, já se fala em princípio da reserva legal proporcional
(Vorbehalt des verhältnismässigen Gesetzes). O princípio da pro-
porcionalidade, nesse quadro, aparece como parte do instrumental
destinado à conformação da atuação dos agentes públicos ao projeto
constitucional.
O princípio da proporcionalidade (Verhältnnismässigkeit-
sgrundsatz), decorrência lógica do Estado Democrático de Direito
(artigo 1.º, da CRFB), deriva do artigo 5.º, caput, da Constituição
da República e, igualmente, é uma das manifestações do princípio do
devido processo legal substancial. Aliás, o princípio surge e se desen-
86 PROVA E VERDADE

volve ligado à garantia do devido processo legal. No direito alemão


diz-se que se trata de uma norma constitucional não escrita. Uma das
marcas do Estado Democrático de Direito é justamente a racionali-
dade (razoabilidade/proporcionalidade) de seus atos.
Registre-se que o princípio da proporcionalidade costuma ser
apontado como um super-princípio, ou seja, um princípio que con-
diciona os demais princípios e é usado, inclusive, na superação do
conflito entre princípios.
Com SUZANE DE TOLEDO BARROS pode-se afirmar que
“o princípio da proporcionalidade, como uma das várias ideias jurídicas
fundantes da Constituição, tem assento justamente aí, nesse contexto
normativo no qual estão introduzidos os direitos fundamentais e os me-
canismos de respectiva proteção. Sua aparição se dá a título de garantia
especial, traduzida na exigência de que toda a intervenção estatal nessa
esfera se dê por necessidade, de forma adequada e na justa medida,
objetivando a máxima eficácia e otimização dos vários direitos funda-
mentais concorrentes”.53
FERRAJOLI aponta que o princípio da proporcionalidade é
“o meio correto de solucionar problemas de antinomias”54, de sope-
sar (balancing) os valores, princípios e direitos fundamentais em jogo
diante de um quadro de incerteza. No Estado Democrático de Direi-
to, qualquer medida estatal que afete direitos fundamentais deve ser
objeto de um juízo de compatibilidade com o princípio da propor-
cionalidade. Hoje, portanto, todo ato estatal (jurisdicional, legislati-
vo ou administrativo), em especial aqueles cuja generalidade e abs-
tração podem facilitar o arbítrio, deve se submeter a um duplo juízo
de proporcionalidade: a) primeiro, o ato deve se verificado, à luz da
proporcionalidade, em abstrato; b) depois, o juízo de proporciona-
lidade deve recair sobre o ato em concreto. Cabe à Agência Judicial
esse duplo controle de proporcionalidade (em abstrato e diante do

53 BARROS, Suzane de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle da constitucio-


nalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 1996, p. 85.
54 FERRAJOLI, Luigi. “O direito como sistema de garantias”, In O novo em direito e política,
org. José Alcebíades Oliveira Júnior. Porto Alegre: Editora do Advogado, 1997, p. 97.
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 87

caso concreto), sempre que um ato estatal for posto à sua apreciação.
Busca-se, dessa forma, atender à “essência e destinação do princípio
da proporcionalidade: preservar os direitos fundamentais”.55
A Corte Constitucional da Alemanha enfrentou a discussão
em torno das limitações à intervenção punitiva do Estado, delibe-
rando que o princípio da proporcionalidade é constituído por três
princípios parciais: o princípio da adequação ou idoneidade (Geeig-
netheit), o princípio da necessidade (Erforderlichkeit) e o princípio
da proporcionalidade em sentido estrito, também chamado de prin-
cípio da avaliação (Abwägungsgebote)56. Tratando-se de uma única
exigência (proporcionalidade), a aplicação, portanto, desses princí-
pios parciais (subprincípios) se dará de forma sucessiva e cumulativa.
No campo estritamente penal, porém, é preciso “observar que
o princípio da proporcionalidade não deve ser confundido com os
princípios da idoneidade e necessidade, como se costuma fazer, prin-
cipalmente no âmbito do direito constitucional. O princípio da ido-
neidade diz respeito aos efeitos de política criminal perseguidos com
a incriminação, enquanto o da necessidade se refere à intervenção
estatal no sentido de proteção da própria pessoa em seus direitos
fundamentais”.57
Portanto, os princípios da idoneidade e da necessidade fun-
cionam como uma etapa prévia ao exame da proporcionalidade.
Caso a proposta de incriminação não possa alcançar o fim per-
seguido, ou a intervenção estatal se mostre desnecessária porque
uma solução menos gravosa sobre a pessoa é capaz de solucionar
o conflito, carece de legitimidade a norma incriminadora. Nesse
aspecto, mesclam-se também a proporcionalidade e a intervenção
mínima, as quais operam empírica e juridicamente no sentido de

55 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais, São


Paulo: RCS, 2005, p. 84.
56 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral, Curitiba: ICPC; Lumen Juris,
2006, p. 26.
57 TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito, 2ª edição, São Paulo: Tirant lo Blanch,
2020, p. 92.
88 PROVA E VERDADE

pôr à prova o processo criminalizador em face da relação entre a


consequência penal e o fato praticado.
No campo do processo penal, a adequação consiste na neces-
sidade, dentro do faticamente possível, do instrumento processual
ser adequado aos fins a que se destina (relação meio-fim). O meio é
adequado se, em razão dele, se pode chegar ao resultado desejado.
Em resumo, o meio escolhido para o ato estatal deve se prestar ao
fim desejado. A adequação (Geeignetheit) exige que o ato ou as
medidas adotadas mostrem-se capazes a atingir os objetivos a que
se destinam. Por exemplo: a prisão do réu (meio), determinada em
razão dele ter apresentado versão tida por inverídica, mostra-se ina-
dequada ao processo de reconstrução histórica do fato imputado
na denúncia.
A necessidade (ou exigibilidade), por sua vez, consiste na im-
prescindibilidade do instrumento processual revelar-se indispensável
aos fins a que se destina, tendo em vista a posição da pessoa que
irá sentir a intervenção penal. Viola-se o princípio da necessidade/
exigibilidade sempre que se possa contar com outra medida menos
lesiva aos interesses das pessoas envolvidas. Nesse quadro, não deve
existir a possibilidade de adoção de medida menos gravosa do que a
adotada em concreto (relação custo-benefício); trata-se do princípio
da “menor ingerência possível”. O princípio da necessidade (Not-
wendigkeit oder Erforderlichkeit) enuncia que nenhum meio menos
gravoso para o indivíduo pode ser tido como igualmente eficaz para
alcançar os objetivos pretendidos. Assim, é desnecessária a decretação
da prisão preventiva do réu para assegurar a aplicação da lei penal se
existe outro meio, menos gravoso à liberdade do individuo, de garan-
tir a incidência das normas penais.
Na verdade, todos esses princípios contribuem para vincular
o processo penal ao contexto de realidade. Isto quer dizer que o ne-
cessário controle judicial da medida processual se dará com vistas e
limitado à realidade sensível.
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 89

O princípio da proporcionalidade, por sua vez, quando opere


no plano jurídico, busca “a otimização das possibilidades jurídicas”.58
Trata-se de um controle de “sintonia fina” (Stimmigkeitskontrolle)
que busca assegurar a correção do ato ou a necessidade de revisão do
mesmo. A proporcionalidade consiste na ponderação dos interesses
em jogo sob o aspecto jurídico. Dito de outra forma: os meios e os
fins da medida processual devem mostrar-se harmônicos com as dire-
trizes jurídicas, com as regras e com os princípios. Dá-se, nesse con-
trole de sintonia fina, a ponderação entre os danos e os resultados.
Mostra-se, por exemplo, proporcional o afastamento da garantia da
privacidade sempre que a interceptação das comunicações telefônicas
for o único meio à descoberta da autoria e/ou à cessação da prática de
um crime investigado.
Vê-se, então, que aqui a proporcionalidade irá medir até que
ponto será legítima a intervenção penal em face da relação entre dano
e proveito. De qualquer modo, a medida da proporcionalidade não
pode ultrapassar os limites que a ordem jurídica assinala para asse-
gurar os direitos fundamentais da pessoa humana. Por isso mesmo, a
decretação da prisão preventiva não pode implicar uma antecipação
de pena. Como dizem ZAFFARONI e DIAS DOS SANTOS: “É
óbvio que as prisões preventivas prolongadas são penas antecipadas, com
o que se inverte o processo penal: a submissão à prisão preventiva é na
realidade a sentença condenatória e esta, uma espécie de revisão”.59
Em apertada síntese, o ato processual só estará de conformi-
dade com a Constituição, quando, do exame de todos os princípios,
se possa dizer que atendeu às exigências de idoneidade, necessidade
e proporcionalidade.
Costuma-se apontar a Carta Magna de 1215 (mais precisa-
mente em seus itens 20 e 21) como a origem normativa do princípio
da proporcionalidade. O princípio da necessidade acabou consagra-

58 SANTOS, Juarez Cirino dos. Nota 56, p. 27.


59 ZAFFARONI, E. Raúl/DIAS DOS SANTOS, Ilison. La nueva crítica criminológica, Bue-
nos Aires: Ediar, 2019, p. 137.
90 PROVA E VERDADE

do no artigo 8.º, da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão


de 1789 (“a lei não deve estabelecer outras penas que não as estrita
e evidentemente necessárias”). Segundo GONZALES-CUELLAR
SERRANO, a primeira vez que o princípio da proporcionalidade
foi aplicado no campo do processo penal foi na Alemanha, em 1875,
em um caso penal no qual figuravam como réus jornalistas que ha-
viam se recusado a servir de testemunhas em processo criminal e,
por essa razão, se pretendia a aplicação a eles das mesmas penas dos
crimes objetos dos processos em que os jornalistas não desejaram
depor.60Antes dessa decisão da Corte Alemã, o juízo de proporcio-
nalidade só era exercido na esfera do Direito Administrativo, como
forma de controlar o poder de polícia.
A proibição de excesso e a proibição de proteção deficiente são
, geralmente, justificadas à luz do princípio da proporcionalidade.
Nesse particular, tanto a proporcionalidade quanto a dignidade da
pessoa humana geram o dever do Estado de atender (diga-se: satisfa-
toriamente) aos fins a que se destina, sem excessos, mas também sem
deficiências. Deve-se atentar, contudo, que o princípio da proibição
da proteção deficiente foi levado à consideração penal por força de
uma interpretação estrita da decisão proferida pela Corte Constitu-
cional da Alemanha acerca da descriminalização do aborto. Em 1992,
o Parlamento alemão procedeu a uma modificação do § 218a do Có-
digo Penal, pela qual considerou não ser antijurídica a interrupção
da gravidez, efetuada por médico durante as primeiras 12 semanas a
contar da nidação, sob pedido da gestante e mediante a apresentação
de certificado de aconselhamento, emitido, pelo menos, 3 dias antes
da intervenção. A Corte considerou que o Parlamento não poderia
considerar como lícita a conduta da gestante, quando o próprio feto
seria portador de dignidade e, por isso, deveria ser protegido.61 A
decisão foi objeto de muitas críticas, algumas delas proferidas pelos vo-
tos vencidos de MAHRENHOLZ, SOMMER e BÖCKENFÖRDE,
60 Cf. GONZALES-CUELLAR SERRANO Nicolas. Proporcionalidad y derechos fundamen-
tales en el proceso penal. Madrid: Colex, 1987.
61 BVfGE 88, 203, de 28/05/1993.
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 91

os quais a caracterizaram como contrária à própria Lei Fundamental,


até mesmo porque não reconheceu que o ato de gestação não pode
ser visto unicamente a partir do nascituro, mas sim da própria ges-
tante e seu contexto, e a proteção não poderia ser unilateral, já que
também a gestante é portadora de dignidade. Também FISCHER
entende contraditória a decisão, porque ao mesmo tempo em que
declara a proibição de o legislador caracterizar como lícita a conduta
da gestante, igualmente a autoriza quando se demonstre a inexigi-
bilidade de continuar a gravidez, o que implica uma justificação.62
Mais tarde, o Parlamento alemão manteve a descriminalização do
aborto nas mesmas condições, mas alterou sua configuração jurídica,
de causa de antijuridicidade para causa de atipicidade. Enfrentando
novamente a questão, a Corte Constitucional declarou adequada aos
termos da Lei Fundamental a legislação da Baviera que incorporava
em seu texto o novo enunciado do Parlamento.63 Portanto, a proi-
bição da proteção deficiente não implica necessariamente que o fato
deva ser incriminado e protegido sempre pela norma penal, mas sim
que o Estado não elimine outros meios de proteção.
Com pequenas variações e sem mutações substanciais, o prin-
cípio da proporcionalidade, desenvolvido na dogmática alemã, é no-
meado de Princípio da Razoabilidade no direito estadunidense. Por
evidente, a adoção de uma medida processual desarrazoada afronta
a finalidade do processo penal e do próprio Estado, reserva de razão.
Vale insistir: qualquer medida processual penal só pode ser valida-
mente adotada na extensão e profundidade necessárias ao fim legal a
que se destina. Ao contrário, qualquer ato processual que ultrapasse
o necessário para atingir o objetivo legal configura abuso/excesso e,
portanto, é ilegítimo.
Evoca-se o princípio da proporcionalidade também na tenta-
tiva de mitigar o rigor constitucional dado à disciplina das provas
ilícitas. Através da incidência deste princípio buscar-se-ia corrigir

62 FISCHER, Thomas. StGB Kommentar, München: Beck, 2016, p. 1519.


63 BVerfGE 98, 265, de 27/10/1998.
92 PROVA E VERDADE

eventuais distorções que a rigidez poderia gerar, bem como resgatar


valores fundamentais do sistema. A matéria, contudo, não é pacífica.
Na Alemanha, em caráter excepcional, e para casos de elevada gravi-
dade, os tribunais têm permitido valorar a prova ilícita, como forma
de tentar o equilíbrio possível entre valores contrastantes. Adota-se a
teoria do sacrifício, “segundo a qual, no caso concreto, deve prevalecer
aquele princípio que parecer o mais importante”.64
No Brasil, reconhece-se, sem maiores divergências, a possi-
bilidade de utilização da prova ilícita favorável ao acusado (prova
ilícita pro reo). Trata-se de evidente manifestação do princípio da
proporcionalidade, em que, no caso concreto, o princípio da ampla
defesa contrasta e prevalece sobre o princípio da vedação das provas
ilícitas (trata-se de uma incidência do favor rei). Infelizmente, razões
utilitaristas têm servido de fundamento à utilização de provas ilícitas
pro societate com base no princípio da proporcionalidade. Em nome
da “defesa social”, afasta-se a proibição constitucional da utilização
de provas ilícitas e, assim, acaba-se por retirar a efetividade (eficácia
social) dessa garantia constitucional.
É importante, portanto, atentar para os limites à aplicação do
princípio da proporcionalidade em matéria probatória. A pondera-
ção entre interesses/valores só é admitida entre interesses/valores de
densidade e abrangência comparável. Dito de outra forma, não se
pode ponderar uma garantia concreta (vedação da utilização em pro-
cessos criminais de prova ilícita) com interesses abstratos (defesa da
sociedade, combate à criminalidade, fim da impunidade, etc.), para
se afastar a primeira, sob pena de se negar, em concreto, a própria
normatividade constitucional.

64 SOUZA NETTO, José Laurindo. Processo penal: sistemas e princípios; nota 163. Curitiba:
Juruá, 2006, p. 71.
13. A PROVA EMPRESTADA OU PRODUZIDA
FORA DO PROCESSO

De conformidade com os princípios decorrentes do devido pro-


cesso legal, a prova para produzir efeito deve ser submetida ao crivo
do contraditório. No entanto, nem sempre será possível sua produção
dentro do mesmo processo, ou porque os dados se perderam ou porque
as pessoas desapareceram. Nesse caso, surge a discussão se será possível
carrear ao processo prova produzida em outro processo ou fora dele.
Quando se tratar de prova produzida em outro processo e que
não possa ser renovada no processo em curso, sua validade depende
de algumas condições: envolva as mesmas partes, diga respeito ao
mesmo conjunto de fatos, bem como tenha sido submetida, no pro-
cesso de origem, ao contraditório. Igualmente, deve-se exigir que o
processo de origem tenha também preenchido os pressupostos de um
processo válido: existência de jurisdição natural, juiz competente,
partes capacitadas, demanda, observação de prazos e de ampla defe-
sa, desenvolvimento regular. O processo civil brasileiro, filiando-se a
correntes do direito italiano, contempla ainda, a par dos pressupostos
processuais, outras condições de validade do processo a que deno-
mina de condições da ação: legitimação para agir, interesse de agir e
possibilidade jurídica do pedido (CPC, art. 8º, art. 17, art. 330, II
e III). Faltando esses pressupostos ou essas condições no processo de
origem, a prova nele produzida não pode produzir efeito no processo
em curso, por carecer de legitimidade.
Deve-se advertir que a prova testemunhal, salvo quando resultar
de procedimento de sua produção antecipada, não pode ser emprestada
de outro processo. Nesse sentido, a lição de AURY LOPES JÚNIOR:
“Quanto à prova testemunhal ou técnica tomada emprestada de processo
diverso, a limitação é insuperável”.65
65 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal, 10ª edição, São Paulo, 2013, p. 584.
94 PROVA E VERDADE

Há também provas que são obtidas fora do processo, como


os documentos, objetos, declarações ou confissões extrajudiciais. Em
relação aos documentos, uma vez que sejam públicos gozam da pre-
sunção de autenticidade e não precisam ser reproduzidos no proces-
so; se forem particulares, valem como informações. Em ambos os
casos, devem ser submetidos à análise da parte contrária, que poderá
contestá-los. O fato de os documentos públicos gozarem da presun-
ção de autenticidade não atesta a veracidade dos fatos que contêm,
os quais podem ter ocorrido de modo diverso. Por exemplo, uma
declaração prestada em cartório é um documento público, mas seu
teor pode ser inverídico. No que toca aos objetos, que forem carrea-
dos aos autos, é preciso verificar também o modo de sua aquisição.
Não podem ser levados aos autos objetos ou documentos obtidos por
meios ilícitos, em face da vedação da prova ilícita. Já com respeito a
declarações ou confissões, valem elas, inicialmente, como meras in-
formações, que podem ser ratificadas em juízo e, daí, passam a valer
como documentos.
A questão da confissão é mais delicada. O Código de Processo
Penal só admite sua relevância quando em consonância com as de-
mais provas (art. 197), e quando pronunciada fora do interrogatório
deverá ser tomada por termo nos autos (art. 199). Depois da Cons-
tituição de 1988 que assegura direito ao silêncio (art. 5º, LXIII), não
mais vigora o disposto no art. 198 do CPP, que advertia ser possível
interpretá-lo em desfavor do acusado. O próprio código assegura,
agora, esse direito ao silêncio (art. 186). Ademais, pelas novas regras
do interrogatório, que admitem a participação das partes em sua rea-
lização (art. 188), e ainda pela própria norma do art. 199, a confissão
pronunciada extrajudicialmente só terá validade se corroborada em
juízo. Isso vale não apenas para a confissão contida em documento
público ou particular, assinado pelo declarante, como também para
aquela feita no decorrer de inquérito ou investigação policial.
14. PROVA E CONTRADITÓRIO

A doutrina costuma apontar que a natureza jurídica da prova


é a de um direito subjetivo público, que deriva da própria norma-
tividade constitucional, uma vez que o direito à prova nada mais é
do que um desdobramento do direito de ação e de defesa. A prova,
em qualquer de suas acepções, destina-se a um julgamento sobre um
fato. Portanto, o destinatário da prova é um julgador; o destinatário
da prova produzido em juízo, sob o crivo do contraditório, é o juiz.
O princípio do contraditório erige o método dialético como
essencial à solução justa do caso penal, isso porque o confronto de
teses antagônicas permite a superação do conflito posto à apreciação
da Agência Judicial. Para a resolução adequada do dilema abstrato
entre o dever de punir estatal (ius puniendi) e a esperança de ma-
nutenção da liberdade (status libertatis) impõe-se o auditur et altera
pars: nemo poteste inauditus damnari.
PICARDI noticia que o contraditório teve origem na Grécia
Antiga, mencionado que foi por EURÍPEDES, ARISTÓFANES e
SÊNECA66. Prevaleceu durante muito tempo a ideia de que o funda-
mento do contraditório encontrava-se no direito natural.
O contraditório encontra sua positivação no artigo X da De-
claração Universal dos Direitos do Homem (1948). Entre rupturas,
como a perda da densidade desse princípio com as monarquias abso-
lutistas e a ascensão do positivismo criminológico, e permanências, é
no segundo pós-guerra que ocorre uma verdadeira virada axiológica
do contraditório, que passa a ser visto como uma exigência da demo-
cracia (participativa) processual. Previsto no artigo 5.º, inciso LV, da
Constituição da República, o princípio do contraditório só pode ser
limitado por outra norma (regra ou princípio) com sede na própria

66 PICARDI, Nicola. Il principio del contraddittorio. In Rivista di diritto processuale, Ano III.
Padova: Cedam, 1998, p. 674.
96 PROVA E VERDADE

Constituição. Trata-se de uma garantia de eficácia imediata. Na hipó-


tese de ser impossível compatibilizar os valores constitucionais (por
exemplo, por negar-se efetividade ao direito à intimidade) o conflito
deverá ser solucionado através do princípio da proporcionalidade,
com a ponderação dos interesses em jogo.
Na lição de JACINTO NELSON DE MIRANDA COUTI-
NHO, o princípio do contraditório “é típico de um processo de partes,
no qual o julgador mantém-se equidistante delas no exercício da ati-
vidade jurisdicional (conforme determina o princípio da imparcialida-
de), embora presentando o Estado na relação processual, é o detentor
do Poder e, por conta disto, funciona como órgão mediador, através do
qual passam os pleitos”.67 Em resumo, “por tal princípio, reflete-se um
dever-ser que reclama (exige) a dialética de um processo de partes, ou
seja, o diálogo entre a acusação e a defesa, perante um juiz imparcial”.68
LEONARDO GRECO esclarece que o contraditório “impõe
ao juiz a prévia audiência de ambas as partes antes de adotar qual-
quer decisão (audiatur et altera pars) e o oferecimento a ambas das
mesmas oportunidades de acesso à Justiça e de exercício do direito de
defesa”.69 Percebe-se, portanto, que o efetivo contraditório é indis-
pensável à concretização da igualdade no processo.
Em resumo, pode-se afirmar que, no Estado Democrático de
Direito, o contraditório enuncia: a) a necessidade de informação (co-
nhecimento da acusação e acesso às provas já produzidas); b) a possi-
bilidade de reação. É indispensável, portanto, à validade do processo
penal que cada sujeito parcial (autor e réu) possua efetiva ciência dos
atos/termos processuais que constam dos autos, em especial daque-
les que interessam à satisfação da pretensão da parte contrária. Uma
vez ciente, devidamente informada, a parte tem a possibilidade (na

67 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do direito pro-
cessual penal brasileiro. Revista de Estudos Criminais do ITEC n.º 1. Sapucaí do Sul: No-
tadez Informações, 2001, p. 43.
68 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Nota 67, p. 44.
69 GRECO, Leonardo. O princípio do contraditório. In Estudos de direito processual. Campos
dos Goytacazes: Editora Faculdade de Direito de Campos, 541-556.
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 97

verdade, o ônus) de reagir. Essa potencial reação deve, inclusive, ser


estimulada pela Agência Judicial, como forma de equilibrar as con-
dutas processuais de partes estruturalmente desiguais. A parte pode
contra-argumentar e, se entender necessário, fazer uma contraprova.
Em suma, sob pena de nulidade, as partes devem ter as condições
objetivas de influir efetivamente na valoração judicial de cada ato ou
fato que possa ser tido como importante para o julgamento.
Essa participação ativa das partes, sujeitos de direitos, vai ao
encontro do princípio dispositivo, na exata medida que contraria
frontalmente o princípio unificador do modelo inquisitorial. CA-
LAMANDREI é definitivo: “a vontade do juiz deixou de ser soberana
para se tornar súdita do comportamento e da vontade das partes”.70
Não se pode esquecer que a razoabilidade dos prazos (e, se for
o caso, a flexibilidade desses prazos) para a prática dos atos proces-
suais é indispensável à concretização do contraditório, por definição,
participativo. Isso porque, como já se disse, é necessário que as partes
tenham condições objetivas de influir na solução justa do caso penal,
através de prazos suficientes para tanto, o que impõe considerações
da Agência Judicial sobre as circunstâncias de cada caso concreto.
A construção da solução justa do caso penal, através do mode-
lo dialógico, com origem na tradição retórica (disputatio), gera um
processo de reconstrução histórica dos fatos, baseado no conflito e na
contribuição das partes em condições de igualdade substancial (o que
implica a necessidade de tratamento diferenciado às partes desiguais,
mirando na eliminação dessa desigualdade). A paridade de armas,
aliás, é a condição de efetividade do contraditório, assim como o
respeito à dignidade do imputado e aos demais valores democráti-
cos. Dito de outra forma: de nada adianta a positivação do princípio
contraditório se a atitude dos atores jurídicos não apontar na direção
democrática de admitir a participação igualitária das partes na cons-
trução da prova e do convencimento do órgão judicial.

70 CALAMANDREI, Piero. Processo e democrazia. Vol. I. Napoli: Morano, 1965, p.678.


98 PROVA E VERDADE

Na lição de FIGUEIREDO DIAS, a paridade de armas “não


pode, sob pena de erro crasso, ser entendida como obrigando ao esta-
belecimento de uma igualdade matemática ou até lógica”.71 Se assim
não fosse, todas as normas que visam a minorar a desigualdade estru-
tural entre o Ministério Público, órgão acusador, e a defesa, tais como
a inviolabilidade do direito de defesa, a presunção de inocência e o
in dubio pro reo, dentre outras, feririam a “igualdade de armas”. Na
verdade, a igualdade de armas é instrumental (diga-se: instrumental
em favor da parte mais débil da relação processual penal) e deve ser
compreendida “no contexto mais amplo da estrutura lógico-material
global da acusação e da defesa e da sua dialética”.72
Constata-se que o modelo de processo penal centrípeto, que
tem a vontade do Estado como única fonte legítima de poder, está
superado. Hoje, revela-se a existência de vários centros de poder (com
relevo para os poderes processuais do imputado, que deve ter todas as
condições para colaborar na construção da decisão justa). Há, pois,
um processo centrífugo que se assenta no ideal da democracia parti-
cipativa. Desse quadro, surgem as partes como sujeitos democráticos
pertinentes e protagonistas da decisão penal.73
A praxe (teoria e prática) do contraditório pressupõe fatos con-
trastáveis, dados concretos que permitam verificação ou refutação.
Por essa razão, meras assertivas desassociadas de dados empíricos ou
juízos de valores (por exemplo, a assertiva de que o acusado “tem a
personalidade voltada para o crime” ou a declaração de que o réu é
“pervertido”) são inábeis a influenciar no convencimento judicial,
por não ser possível submetê-los ao crivo do contraditório. Uma vez
que essas afirmações sejam insuscetíveis de serem contestadas, por
faltar-lhes qualquer substrato empírico e resultarem de puro senti-
mento do julgador, são igualmente inaptas para fundar um juízo de

71 DIAS, Jorge de Figueiredo. Sobre os sujeitos processuais no novo código de processo pe-
nal, in O novo código de processo penal. Coimbra: Almedina, 1991, p. 29.
72 DIAS, Jorge de Figueiredo. Nota 71.
73 Cf. SANCHEZ SUÁREZ, Alberto. El debido proceso penal. Bogotá: Universidad Externa-
do de Colombia, 1998, pp.62-63.
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 99

culpabilidade ou influir na dosimetria da pena. No direito penal mo-


derno, a culpabilidade deve resultar de um juízo sobre o fato e não
sobre o autor, única forma de atender ao princípio do contraditório.
No campo probatório, o mencionado princípio condiciona
a validade da prova à impossibilidade das versões antagônicas e da
contraprova acaso produzida, isso porque a acusação, em especial o
conjunto de fatos atribuídos ao acusado, deve se sujeitar à prova e à
refutação.
Ademais, à concretização do princípio contraditório faz-se ne-
cessária uma filtragem constitucional das normas jurídicas que estabe-
lecem óbices à potencialidade dialética do processo penal (como, por
exemplo, os artigos 222 e 501 do Código de Processo Penal de 1941).
São, ainda, consequências do contraditório, em razão da pró-
pria essência da estrutura dialética ou como forma de controle do
princípio: a) a inexistência de poderes da uma parte sobre a outra (e,
por evidente, a inexistência de subordinação de uma parte à outra);
b) o direito de provar o alegado; e c) o direito à valoração de cada tese
exposta e de cada prova produzida nos autos.
15. PROVA E PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

As primeiras notícias do princípio da presunção de inocência


remontam ao direito romano, contudo, encontrou ele seu período de
mais baixa concretude durante a Idade Média, no qual vigoravam pro-
cedimentos inquisitoriais, juízos de semi-culpabilidade e fogueiras.
Correlato ao princípio da necessidade de jurisdição (não há
declaração de culpabilidade sem juízo), a “presunção de inocência”
revela que “a culpa, e não a inocência, deve ser demonstrada”.74 Tra-
ta-se, como quer FERRAJOLI, de um princípio fundamental de civi-
lidade, “o fruto de uma opção garantista a favor da tutela da imunidade
dos inocentes, ainda que ao custo da impunidade de algum culpado”.75
Mais do que uma opção “garantista”, o princípio da presunção de
inocência representa uma proposta de segurança para o corpo social,
posto que o arbítrio estatal, corporificado na condenação de inocen-
tes, representa uma forma de violência igual, ou mesmo pior (por
se tratar de violência estatal ilegítima), que a cometida pelo sujeito
criminalizado.
O princípio da presunção de inocência encontra-se elencado
no artigo 5.º, inciso LVII, da Constituição de República e em grande
número de diplomas de direito internacional, inclusive na Conven-
ção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa
Rica), do qual o Brasil é signatário, em que se lê: “Toda pessoa acu-
sada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto
não se comprove legalmente sua culpa”.
A redação (diga-se: tímida e dúbia) dada ao artigo 5.º, inciso
LVII, da Constituição Federal não utiliza os significantes “presunção”
e “inocência”, reproduzindo, em linhas gerais, a solução conciliatória
adotada pela Constituição Italiana de 1947. Como se percebe, a dis-
74 FERRAJOLI, Luigi, Nota 31, p. 441.
75 FERRAJOLI, Luigi. Nota 31, p. 441.
102 PROVA E VERDADE

puta entre liberais e antiliberais reproduz, na compreensão do princí-


pio em comento, o conflito entre o interesse repressivo (e os desejos
de punição típicos do populismo penal) e o interesse de manutenção
da liberdade do cidadão. Todavia, ao acompanhar a lição de VEGAS
TORRES, “não é possível distinguir ‘presunção de não culpabilidade’
e ‘presunção de inocência’”76. Até porque a neutralidade (conceitual-
mente, ausência de valores) é impossível: a pessoa não pode ser consi-
derada culpada, e será tida como inocente, até o trânsito em julgado
(até a impossibilidade de impugnar a condenação pela via recursal)
de sentença penal condenatória.
A presunção de inocência constitui direito fundamental de
dimensão constitucional. Não se trata de uma presunção em sen-
tido técnico, mas de uma norma que se origina de uma valoração
constitucional que condiciona a atuação de todos os agentes esta-
tais em diversos momentos. O princípio da presunção de inocên-
cia, revela-se estrutural e busca dar concretude jurídica ao estado de
inocência, entendido como “posição do sujeito diante das normas
da ordenação, resultando também direitos subjetivos públicos a se-
rem exercidos em face do Estado, que haverá de justificar sempre
ou em lei ou/e motivadamente – quando judicial a decisão – quais-
quer restrições àqueles direitos”77.
Na lição de AMILTON BUENO DE CARVALHO78, a rea-
lização desse princípio exige a adoção de uma postura ativa (e não
de mera passividade) da Agência Judicial, a saber: deve o juiz entrar
no feito convencido de que o cidadão é inocente e só prova forte em
contrário, destruidora da convicção inicial, é que levará ao resultado
condenação.
A concretização do princípio da presunção de inocência se dá
em duas dimensões: a) a dimensão do tratamento conferido ao indicia-

76 VEGA TORRES, Jaime. Presunción de inocência y prueba en el proceso penal – Madrid,


La Ley, 1993, p.31.
77 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Processo e hermenêutica na tutela penal dos direitos fun-
damentais – Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 174.
78 CARVALHO, Amilton Bueno. Direito alternativo em movimento, p. 104-105.
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 103

do ou réu (regra de tratamento); e b) a dimensão probatória (regra de


juízo). A presunção de inocência revela, em primeiro lugar, uma regra
de tratamento, que favorece do indiciado ao réu, desde a investigação
preliminar até, e inclusive, o julgamento do caso penal nos tribunais
superiores.79 Todos os imputados (indiciados ou acusados) devem ser
tratados como se inocentes fossem, até que advenha a certeza jurídica
da culpabilidade oriunda de uma sentença penal irrecorrida.
Nessa dimensão, o princípio constitucional impõe a isonomia
entre o cidadão que não figura no polo passivo da relação processual
penal e aquele a quem se atribui a prática de um delito. O tratamento
diferenciado entre o réu e qualquer outro indivíduo só se justifica dian-
te do reconhecimento estatal, devidamente fundamentado, da necessi-
dade de se afastar o tratamento isonômico. Assim, por exemplo, tanto
o uso de algemas quanto a decretação da prisão cautelar são medidas de
exceção que só podem ser adotadas em situações excepcionais.
Todavia, a presunção de inocência representa também uma
regra probatória que se exprime através da máxima latina que orien-
ta a apreciação da prova penal: in dubio pro reo. Em plena sintonia
com o sistema acusatório, enuncia que o monopólio estatal da ti-
tularidade da ação penal acarreta, como consequência inafastável, o
ônus do Estado-parte provar todos os fatos que compõe a acusação.
No processo penal, o ônus da prova (para alguns, a “carga probató-
ria”) é todo da acusação. A defesa tem o direito à inércia, desde que
o Estado não seja capaz de demonstrar a autoria, a materialidade e
a culpabilidade do delito.
Se no momento da propositura da ação penal, o acusador (em
regra, o Ministério Público) tem que demonstrar a materialidade e
os indícios pré-processuais de autoria (em suma, o suporte mínimo
à comprovação da seriedade da acusação, isto é, a “justa causa”), na
fase processual, caberá a ele construir, sob o crivo do contraditório,
um contexto probatório que autorize a condenação.
79 Por “tribunal superior” entende-se o órgão judicial com competência sobre todo o território
nacional.
104 PROVA E VERDADE

Ainda sobre a dimensão probatória do princípio da presunção


de inocência, nada obsta que o réu deseje contradizer a acusação e
provar o desacerto da hipótese acusatória. Trata-se, porém, de mera
faculdade. A inércia do réu em matéria probatória não inviabiliza o
reconhecimento de suas teses. Se o órgão acusador, para o exercício
legítimo da ação penal condenatória, tem o dever de imputar um
fato criminoso (leia-se: um fato típico, ilícito e culpável), a ele tam-
bém cabe o ônus de demonstrar a tipicidade, a ilicitude e a culpabili-
dade afirmadas. Com razão, portanto, AFRÂNIO SILVA JARDIM80
e MARQUES DA SILVA,81 ao aduzirem que não compete ao réu
provar as circunstâncias justificantes e exculpantes por si alegadas.
É também a dimensão probatória do princípio da presunção
de inocência que torna inconstitucional qualquer ato (legislativo, ad-
ministrativo ou judicial) que implique a inversão do ônus da prova
no processo penal. Há, portanto, um claro limite material à liberda-
de de conformação da prova pelo legislador ordinário “constituído
pela especial dignidade e importância atribuídas a determinados bens
constitucionais (vida, liberdade e integridade física)”.82 Na lição de
CANOTILHO, “isso significa que quando alguns direitos inviolá-
veis estejam sujeitos a restrições e essas restrições pressuponham a
existência de determinados fatos acoplados a juízos de prognose, o
ônus da prova pertence não a quem invoca o direito”83. No mais, in
dubio pro libertate.

80 Nesse sentido: JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal – Estudos e pareceres. Rio
de Janeiro: Forense, 2001.
81 SILVA, Germano Marques da. Curso de processo penal, Volume II, Lisboa: Editorial Ver-
bo, 2000, p. 107.
82 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. O ônus da prova na jurisdição de liberdades. In Estu-
dos sobre direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 174.
83 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Nota 82, p. 174.
16. OS SISTEMAS PROCESSUAIS E A QUESTÃO
PROBATÓRIA

A palavra sistema deriva do latim tardio e do grego systema,


que por sua vez é oriunda de synistanai, literalmente: juntar. Em
sentido amplo, um sistema significa um conjunto de elementos in-
terdependentes, um conjunto de elementos relacionados entre si
(juntados), que formam uma unidade, um todo orgânico, a partir
de determinados princípios (o princípio funciona, portanto, como
elemento unificador). Por sistema, entende-se também todo con-
junto de pensamento, articulado e que forme uma unidade teórica.
As diversas acepções de sistema têm em comum a ideia de um con-
junto de elementos entrelaçados, orquestrados e direcionados a um
fim. Com JACINTO NELSON DE MIRANDA COUTINHO,
pode-se, satisfatoriamente, definir sistema como o “conjunto de
temas colocados em relação por um princípio unificador, que for-
mam um todo pretensamente orgânico, destinado a uma determi-
nada finalidade”84.
Examinando os métodos de investigação, demonstra BALZER
que esses métodos se encontram inseridos no que ele denomina de
sistema científico, o qual é desenvolvido em dois diversos planos: o
plano estrutural, que se desenvolve e se altera no decorrer do tempo
como parte de um conhecimento técnico, e o plano humano, que diz
respeito às suas ações, finalidades e valores, os quais constituem o te-
cido social. Sobre esses dois planos o procedimento científico confor-
ma um quadro vivo e multifacético, em que, de um lado, são expos-
tas estruturas complexas de teorias e modelos e, de outro, contextos
e fenômenos instáveis e de difícil acesso, que darão lugar ao sistema
social. O grande problema reside em que, diante de contextos instá-
veis, como é o mundo da vida, o investigador não atua isoladamen-

84 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Nota 82, p. 28.


106 PROVA E VERDADE

te, até porque ele mesmo faz parte do grupo daquelas pessoas, que
integram os objetos analisados e que serão submetidas aos mesmos
juízos e valores.85 Da mesma forma, argumenta FRANKFURTER
que os juízos axiológicos são sempre fortemente influenciados pelas
relações pessoais e concepções humanas que lhe correspondem, de
tal modo a não se poder esperar dos valores sociais e históricos uma
extrema objetividade e imparcialidade.86
Dessa forma, os sistemas não são neutros. Se por um lado,
um sistema serve à simplificação dos fenômenos, à simplificação da
linguagem, por outro, revela as opções políticas adotadas no momen-
to de sua formação. Um sistema, para ser tido como democrático,
exige a existência de “regras do jogo” claras, equitativas e racionais.
O sistema processual penal, por sua vez, pode ser encarado como
um subsistema do sistema penal, que, por sua vez, deriva do sistema
constitucional. Ou, como leciona GERALDO PRADO, “o sistema
processual está contido no sistema judiciário, por sua vez espécie do siste-
ma constitucional, derivado do sistema político, implementando-se deste
modo um complexo de relações sistêmicas que metaforicamente pode ser
desenhado como de círculos concêntricos”.87
Em resumo, por sistema processual penal entende-se o con-
junto de normas (regras e princípios), agências estatais e práticas rela-
cionadas ao poder punitivo estatal, que forma um todo coerente (ou
propositalmente não incoerente), em razão de um princípio unifica-
dor, de um mandamento nuclear do qual emanam os efeitos sobre o
todo. Este princípio pode ser o inquisitivo ou o acusatório e, em con-
sequência, o sistema processual pode ser inquisitivo ou acusatório.
Com FERRAJOLI, atenta-se para o fato de que tanto as garantias
orgânicas (relacionadas com a definição do papel exercido pelos ato-
res processuais e, em especial, com a colocação institucional do juiz)

85 BALZER, Wolfgang. Die Wissenschaft und ihre Methoden, Freiburg-München: Karl Alber,
1997, p. 11 e ss.
86 FRANKFURTER, Harry. Über die Wahrheit, München: DTV, 2009, p. 28.
87 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais
penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 54.
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 107

quanto as garantias procedimentais (ligadas à exteriorização dos atos


processuais) sofrem profundas mudanças de acordo com o caráter
acusatório ou inquisitorial do sistema processual a que pertencem.88
A opção por um dado sistema processual em detrimento do
outro implica uma série de outras opções, dentre as quais, por exem-
plo: a) opção pelo poder de um só ou por uma decisão construída a
partir da contenda entre sujeitos de direitos; e b) opção pela relação
vertical entre inquisidor e inquirido (objeto da investigação) ou por
uma relação angular e democrática entre os diversos sujeitos proces-
suais (as partes e o juiz, sujeito imparcial e distanciado dos interesses
envolvidos no caso penal).89
Impossível negar, contudo, diante das características mais co-
mumente observadas ao longo da história dos sistemas processuais,
que o sistema acusatório é o que mais se identifica com o projeto po-
lítico-constitucional de contenção do arbítrio e de redução do poder
estatal. Não se pode, contudo, afirmar que um sistema processual
represente um avanço em relação ao outro. Na realidade, cada siste-
ma surge e se impõe em razão das necessidades político-ideológicas
de cada momento histórico. Por isso, há quem diga que os sistemas
processuais são cíclicos ou mutantes, pois se adaptam à realidade so-
cial e aos objetivos políticos a que servem.
No estudo dos sistemas processuais é importante notar que
as diferenças apontadas no plano da teoria entre o sistema acusató-
rio e o sistema inquisitorial (vale dizer, entre a adoção do princípio
dispositivo/acusatório ou do princípio inquisitivo) não coincidem
necessariamente com as percebidas ao longo dos diversos momen-
tos históricos. Ou seja, existem características que fazem parte da
tradição do sistema acusatório que não estão presentes em todos os
ordenamentos que aderiram a esse sistema, como, por exemplo, a
discricionariedade da ação penal e a elegibilidade do juiz. Da mesma
maneira, algumas características historicamente vinculadas ao siste-
88 Cf. FERRAJOLI, Luigi. Nota 31, p. 451.
89 Cf. FERRAJOLI, Luigi. Nota 31, p. 483.
108 PROVA E VERDADE

ma inquisitorial não são indispensáveis ao reconhecimento da ado-


ção desse sistema processual penal (v.g., a iniciativa probatória do
órgão julgador).
Em cada sistema processual, os princípios inquisitivo e acu-
satório disputam a posição de elemento normativo unificador dos
elementos que o compõe. É o princípio unificador que dá coerência
interna ao sistema. Pode-se dizer que o princípio entrelaça os diversos
elementos do sistema. Outrossim, é a adoção dos princípios inquisi-
tivo e acusatório que diferencia os sistemas processuais. Sabe-se que
a opção por cada um desses princípios não é arbitrária ou aleatória,
mas, ao contrário, retrata a adoção consciente de um projeto po-
lítico-ideológico de controle social, que possui e necessita de uma
funcionalidade própria. Com razão, ADAUTO SUANNES esclarece
que “a distinção entre processo penal inquisitório e processo penal
acusatório não se limita a mera diferença de procedimentos. É uma
questão ideológica”.90
De igual sorte, a opção por um princípio em detrimento do
outro implica o reconhecimento de limites distintos, formas de atua-
ção distintas, ao poder punitivo estatal. Por isso, a Constituição Fe-
deral é a sede própria à explicitação da escolha normativa. Cumpre,
desde já, frisar uma advertência: o desconhecimento do princípio
unificador do sistema processual, dos condicionamentos históricos,
bem como da natureza ideológica da opção legislativa, é uma das
causas da alienação que toma conta e condiciona a atuação dos atores
jurídicos.
O princípio inquisitivo, que rege e fornece unidade ao siste-
ma inquisitório, enunciando a concentração de poderes nas mãos
do órgão julgador, que passa a deter a gestão da prova (ou seja, é o
órgão julgador que decide a oportunidade e a conveniência de pro-
duzir uma determinada prova), considera o réu como mero objeto
de investigação da verdade buscada no processo. O princípio inqui-
90 SUANNES, Adauto. Provas eticamente inadmissíveis no processo penal. Revista Brasilei-
ra de Ciências Criminais, v.31. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 80.
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 109

sitivo surgiu da necessidade histórica de concentração de poder, de


fortalecimento do Estado. Por isso, ainda hoje, identifica-se com a
ideia de uma justiça de força em oposição às tentativas dialogais de
construção da decisão justa.
O princípio acusatório enuncia a necessidade de repartição de-
mocrática de poderes entre os sujeitos processuais (parciais ou não),
com a gestão das provas nas mãos das partes, que democraticamente
e através do método dialético irão construir a decisão justa e o reco-
nhecimento de que o réu é um sujeito processual, portanto, titular de
direitos, deveres, faculdades e ônus processuais. Busca-se, assim, um
processo de partes, sem privilégios, com sujeitos parciais em iguais
condições de fazer valer em juízo suas pretensões.
Desde a entrada em vigor do Code d’Instruction Criminelle
de 1808, o chamado sistema misto (também conhecido como na-
poleônico ou reformado) assumiu ares hegemônicos na doutrina
europeia ocidental e passou a ser adotado em diversas legislações.
Entre nós, HÉLIO TORNAGHI assevera que o sistema misto não
só reúne as vantagens como também “elimina os inconvenientes dos
outros dois”.91 Na verdade, o “sistema misto” foi uma solução de
compromisso entre as mudanças exigidas pelo pensamento ilumi-
nista e a filosofia inquisitiva própria do antigo regime. Criou-se o
que PAGANO chamou de “monstruosa mistura dos processos in-
quisitivo e acusatório”. Em suma, manteve-se a estrutura inquisitiva
para a fase preparatória, confiada a um juiz de instrução (parcial,
que sem a mediação dos sujeitos processuais buscava a verdade) e as
características do modelo acusatório em um segundo momento, com
a repartição de funções, julgamento público, oral e contraditório.
Ainda hoje, grande parcela da doutrina brasileira, após constatar que
não existem sistemas processuais puros, opta por definir o sistema
processual brasileiro como misto. Afinal, o sistema processual penal
brasileiro apresenta características típicas tanto do sistema acusatório
quanto do sistema inquisitorial. Trata-se de um modelo predomi-
91 TORNAGHI, Hélio. Curso de Processo Penal, vol. I. São Paulo: Saraiva, 1990, pp. 17-18.
110 PROVA E VERDADE

nantemente escrito e no qual a gestão da prova está, na prática, con-


fiada ao órgão julgador (características do sistema inquisitorial), ao
mesmo tempo em que é contraditório e apresenta a necessária divisão
de funções processuais entre os órgãos encarregados da acusação e do
julgamento (características do sistema acusatório).
Não obstante, se cada sistema processual supõe um princípio
unificador, conforme se depreende do próprio conceito de “sistema”,
então, diante da impossibilidade de um princípio misto, é fácil per-
ceber a inconsistência teórica do chamado “sistema misto”.
Como percebeu JACINTO NELSON DE MIRANDA COU-
TINHO, “faz-se mister observar o fato de que ser misto significa ser, na
essência, inquisitório ou acusatório, recebendo a referida adjetivação por
conta dos elementos (todos secundários) que de um sistema são empresta-
dos ao outro”.92 Ainda segundo o eminente professor, apenas formal-
mente é possível considerar a existência de um sistema misto como
um terceiro sistema, ao lado dos sistemas acusatório e inquisitivo.
Em resumo, trata-se de sistema processual regido pelo princí-
pio inquisitório, no qual a análise de seus diversos elementos aponta
para a concentração de poderes na Agência Judicial, a despersonifica-
ção do réu e a gestão da prova nas mãos do juiz. Esse modelo atende,
portanto, às ideias de fortalecimento do Estado e de prevalência dos
interesses abstratos da coletividade em detrimento dos interesses con-
cretos individuais. No modelo ideal de sistema inquisitorial, o órgão
julgador: a) age de ofício, sem necessidade de provocação das partes,
ou seja, sem que exista uma acusação promovida por um sujeito que
não se identifique com o Estado-juiz; b) investiga oficiosamente com
plena liberdade na escolha e produção das provas; c) julga de acordo
com as provas escolhidas e produzidas por ele; d) ostenta a condição
de dominus do processo; e) atribui ao imputado a figura de mero
objeto de investigação, sem maiores direitos e, em especial, sem a
possibilidade de influir na produção da prova. Percebe-se, pois, que

92 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Nota 67, p. 29.


JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 111

o sistema inquisitorial tende a se afastar do método dialético na ten-


tativa de construção de uma sentença justa. Em nome da busca tanto
da “verdade” quanto do fim da impunidade, nega-se a possibilidade
de um processo de partes. Assim, no modelo inquisitorial, o réu fica
submetido ao poder da Agência Judicial.
Diante da incidência do princípio inquisitório, que irradia
consequências para todos os elementos/instituições que compõem o
sistema, o juiz, ao gerir a prova, afasta-se, consciente ou inconscien-
temente, do ideal de imparcialidade. Ao aderir, mesmo que proviso-
riamente, à tese acusatória (apenas uma dentre as possíveis hipóteses
explicativas para o fato), o juiz se insere em um quadro mental que
tende à confirmação da hipótese assumida. O órgão julgador, ao gerir
a prova, tende a atuar no sentido de confirmar a hipótese acusatória.
Nas palavras de FOUCAULT, nos momentos históricos em que se
manifestou o sistema inquisitorial, o juiz “constituía, sozinho, e com
pleno poder, uma verdade com a qual investia o acusado”.93
O sistema acusatório, por sua vez, representa o conjunto orde-
nado de elementos (normas, agências estatais e práticas) unificados
pelo princípio dispositivo (ou acusatório). Nas palavras de GUER-
RERO PALOMARES, “o acusatório significa, em essência, um pro-
cesso que se configura como uma contenda entre partes que será
dirimida por um terceiro que se mantém equidistante delas”.94
Ao contrário do sistema inquisitorial, o sistema acusatório ca-
racteriza-se por gerar um processo de partes, no qual o autor e o réu,
percebidos como sujeitos de direitos, constroem através do método
dialético (e, portanto, de forma crítica) a solução justa do caso pe-
nal. Nesse modelo, cabe a cada um dos sujeitos processuais exercer
funções e poderes distintos e indispensáveis ao devido processo legal.
Com razão, MARQUES DA SILVA atesta que o sistema acusatório

93 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir, trad. Lígia M. Ponde Vassalo. Petrópolis: Vozes, 1988,
p.36.
94 GUERRERO PALOMARES, Salvador. El princípio acusatório. Navarra: Editorial Aran-
zandi, 2005, p. 81.
112 PROVA E VERDADE

agrada “por ser uma disputa entre duas partes, uma espécie de due-
lo judiciário entre acusação e defesa, disciplinado por um terceiro,
o juiz ou o tribunal, que, ocupando uma situação de supremacia e
de independência relativamente ao acusador e ao acusado, não pode
promover o processo (ne procedat judex ex officio), nem condenar
para além da acusação (sententia debet esse conformis libello)”.95 Ex-
plica-se: a “situação de supremacia” (supra partes) retrata, na verdade,
o afastamento da Agência Judicial em relação aos interesses sustenta-
dos pelas partes.
A distribuição/separação das funções processuais (acusar, de-
fender e julgar) entre os sujeitos processuais (as três funções entre-
gues a três atores processuais distintos), o reconhecimento de di-
reitos fundamentais ao réu (frise-se que o réu, nesse modelo, passa
a ser percebido como sujeito processual e não como mero objeto
de investigação) e a construção dialética da solução do caso penal
pelas partes, em igualdade de condições (gestão da prova nas mãos
das partes; a prova dos fatos cabe às partes) são as principais carac-
terísticas desse modelo. A oralidade, identidade física do juiz e a
publicidade também costumam ser apontadas como características
típicas do sistema acusatório.
A ideia de “disputa entre as partes” acompanha o modelo acu-
satório desde a antiguidade: no Estado de Direito, as regras dessa dis-
puta parcial e da atuação do juiz do confronto (em suma: a disciplina
da relação processual, o estatuto das partes e o do juiz) encontram-se
previamente estabelecidas. Diz-se acusatório o sistema porque a acu-
sação é a pedra de toque dessa construção teórica. Assim, nemo in
iudicium tradetur sine accusatione.

95 SILVA, Germano Marques. Curso de processo penal, vol. I. Lisboa: Editorial Verbo, 2000,
p. 59.
17. O CONCEITO DE VERDADE

Ao buscar-se uma apreensão do conceito de verdade, impõe-


-se, em primeiro plano, decidir acerca das espécies de coisas que po-
dem ser seu objeto. Dada a confusão que se manifesta entre as di-
versas espécies de coisas, como materiais ou imateriais, empíricas ou
simbólicas, reais ou imaginárias, objetivas ou subjetivas, descritivas
ou normativas, o enunciado de um conceito de verdade, tomado em
um sentido que possa abranger todas essas coisas, não pode derivar
simplesmente de uma proposição descritiva, que se ocupe, de forma
exclusiva, a relatar elementos sensíveis da realidade. Mais do que isso,
o conceito de verdade implica a formulação de um juízo, que deve
incidir sobre os objetos em face de seus elementos extensivos (de-
notativos) e intensivos (conotativos). Essa é a velha e sempre atual
indicação de FREGE, que só admite falar de verdade de um objeto
quando se lhe atribua um significado.96
O conceito de verdade pertence, assim, ao setor da reflexão,
ao qual estão subordinados objetos empíricos e transcendentais. A
verdade, portanto, diz respeito a um juízo de relação, que assinala um
predicado a determinados objetos, proposições ou enunciados, quer
sejam entidades empíricas, quer se refiram a princípios elaborados
fora da experiência. Podem ser, assim, classificados como verdadeiros
os objetos sensíveis do mundo real e também os objetos simbólicos
que o representem. Sob esse aspecto, a verdade pode ser extraída das
coisas existentes em sua relação com o pensamento, não importa que
essas coisas possam ser apreendidas materialmente ou refletidas em
um processo imaterial de consciência de si ou dos demais. Há, as-
sim, verdade na produção material de bens e verdade na produção
artística, desde que o enunciado esteja associado a uma pretensão

96 FREGE, Friedrich Ludwig Gottlob. Über Sinn und Bedeutung, in Zeitschrift für Philoso-
phie und philosophische Kritik, Tübingen, 1892, p. 100.
114 PROVA E VERDADE

de validade. O que caracteriza, dessa forma, a verdade é sua imposi-


ção como pretensão válida. Com isso se descarta da ideia de verdade
aquilo que possa ser referido apenas como objeto fictício. Convém,
no entanto, não confundir objetos fictícios com descrição fictícia. A
descrição fictícia, tomada como arte, pode estar perfeitamente refe-
renciada a um juízo de validade; os objetos fictícios, como produtos
de uma simples proposição imaginária, não podem corresponder a
uma realidade e estão, assim, fora do conceito de verdade, até porque
não podem gerar uma pretensão de que devam ser observados por
todos. Um centauro é um objeto fictício e, portanto, não pode ser
objeto de um juízo de verdade, mas sua reprodução em um quadro,
pintado por um artista, pode ser apreciada em face de sua técnica, de
suas cores, de seus efeitos, de sua luminosidade e da sensibilidade que
pode gerar no espectador.
Atendendo a que o conceito de verdade deriva de uma reflexão
acerca de objetos, e não simplesmente de uma simples descrição de
seus elementos, tem-se que esse conceito está também condicionado
à forma como se procede, historicamente, à análise ou a investiga-
ção desses objetos. O conceito de verdade está, por isso, vinculado,
desde o início, a determinados projetos investigativos, que devem
variar conforme as diversas expressões e significados dos respectivos
objetos. Se se pode dizer que os processos investigativos dependem
de uma evolução, de uma tradição experimental, que lhes forneça
subsídios a se apresentarem como adequados ou válidos, da mesma
forma se pode dizer que o conceito de verdade não pode se dissociar
dessa mesma tradição.
Não esvazia o conceito de verdade o fato de que a própria tra-
dição investigativa seja contingente. Pelo contrário, o conceito de
verdade se fortalece com isso, porque poderá se firmar como necessá-
rio, à medida que forneça à experiência os dados e critérios para pô-la
à prova. E é justamente a tradição experimental que torna também
possível estender o conceito de verdade à obra de arte, que em si
mesma carece de um significado.
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 115

Opondo-se àquelas teorias que buscam excluir a obra de arte


do conceito de verdade, afirma GADAMER, relativamente à expe-
riência artística, ser ela suficiente para indicar o que nela tenha que
ser investigado. Dessa forma, embora a obra de arte, como objeto de
uma investigação, possa ser verdadeira ou falsa, o que a caracteriza
dentro da verdade é o fato de poder se impor como válida.97
É preciso ressaltar que o conceito de verdade, ainda que decor-
ra de uma reflexão, de um juízo, está associado ao conhecimento dos
objetos e não ao seu valor ou à sua correção, normativa ou existen-
cial. Fazer um objeto ou uma proposição depender de um juízo com
pretensão de validade não tem o mesmo sentido de se lhe atribuir um
valor. A pretensão de validade diz respeito à sua imposição a todos
em face do que se pode elencar como atributos empíricos, lógicos ou
necessários desse objeto, mas não à sua correção ética ou moral.
Uma conduta pode ser, assim, objeto de um juízo de verdade,
em seu aspecto de se desenvolver dentro de um mundo causal. Po-
de-se dizer, sob esse ângulo, que uma conduta X causou o resultado
Y e essa afirmação será verdadeira, à medida que corresponda aos
elementos que possam indicar essa relação de causalidade. A mesma
conduta pode ser também objeto de um juízo de valor, ou seja, se
está ou não de conformidade com as regras ou normas que a discipli-
nem social ou juridicamente. No primeiro caso, a afirmação de que
X causou Y, caso contenha todos os elementos fundamentadores da
causalidade, pode se impor com pretensão de validade, ou seja, com
a pretensão de que seja acatada por todos os que se propuserem ou
se propuseram a investigar o mesmo fato. Essa pretensão de validade
não interfere, porém, sobre o juízo de valor que se possa emitir sobre
a correção ética ou jurídica da conduta.
É de ressaltar, ainda, que o processo de aquisição do conhe-
cimento acerca da verdade de um objeto ou de uma proposição
pressupõe, de qualquer forma, uma intencionalidade, quer dizer,

97 GADAMER, Hans-Georg. Hermeneutik, I, Tübingen, 1990, p. 3.


116 PROVA E VERDADE

o objeto ou a proposição a serem examinadas devem estar fora da


consciência, não podem ser assimilados como elementos imanentes
ao ato de pensar.
Constituídos fora da consciência, podem gerar o conhecimen-
to a partir de um determinado objetivo. Justamente o objetivo a ser
perseguido pelo conhecimento é que fornece ao enunciado da verda-
de acerca de um objeto seu significado. HUSSERL havia consignado
essa assertiva. Por um lado, aduzia, de início, que todo conhecimento
não pode prescindir de uma experiência. O que se consigna como
objeto teórico não passa do horizonte global daquilo que pretende-
mos conhecer, ou seja, o próprio mundo que experimentamos. Por
outro lado, asseverava que uma coisa, a ser conhecida, não pode ser
concebida dentro da consciência como um imanente real. 98 Há,
pois, para a concepção de verdade uma delimitação essencial, que é
dada pelo próprio objeto ou enunciado postos em análise.
Mesmo em relação a um objeto imaginário, que seja produto
de mera construção mental, o conceito de verdade ou falsidade que
dele se pode extrair pressupõe seu conhecimento a partir de sua ob-
jetivação no mundo real, empírico ou simbólico. A configuração do
conceito de verdade, a partir dos elementos de um objeto, não pode
estar distanciada do mundo nem pode ser engendrada como um pro-
duto imanente da consciência. Sua objetivação constitui, então, uma
condição essencial para o juízo de verdade.

98 HUSSERL, Edmund. Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Phi-


losophie, Tübingen, 2002, p. 10 e 76.
18. AS TEORIAS DA VERDADE

Inicialmente, cumpre proceder a uma observação, bem situada


por SCHÖNDORF, de que, em geral, quando se fala de teorias da
verdade, está-se buscando um conceito de verdade ou um critério
para se alcançar a verdade, ou seja, confunde-se teoria com enuncia-
dos ou proposições.99 Uma teoria da verdade deve ser, contudo, uma
explicação convincente dos objetos e das proposições.
Não faltam tentativas de explicar “o que é”, “para que serve”
ou “a quem serve a verdade”. Desde a teoria da verdade como ade-
quação/correspondência forjada pelos gregos até as recentes (e pe-
rigosas) relativizações pós-modernas do valor verdade, não faltam
considerações teóricas sobre a verdade e o regime dessa “verdade”. A
importância, inclusive politica, da “verdade” pode ser percebida em
HANNAH ARENDT ao escrever que o “súdito ideal de um governo
totalitário não é o nazista convicto e nem o comunista convicto, mas
aquele para quem já não existe a diferença entre o fato e a ficção (isto é,
a realidade da experiência) e a diferença entre o verdadeiro e o falso (isto
é, os critérios do pensamento)”100.
A importância das reflexões sobre a verdade é perceptível, para
além da política e do direito, na filosofia do conhecimento, na me-
tafísica, na ontologia, na filosofia da linguagem, na lógica, nas ciên-
cias, na sociologia, na ética, etc. Nem todos os teóricos que têm se
ocupado do tema da “verdade” abordam todos os aspectos que cons-
tituem uma “teoria da verdade”. Aliás, poucos foram os autores que
se preocuparam em desenvolver de maneira sistemática e coerente
uma verdadeira (e inovadora) teoria da verdade. Em apertada síntese,
e com todos os riscos de omissão inerentes às tentativas de resumir
e classificar fenômenos, pode-se falar em “teorias pragmáticas da

99 SCHÖNDORF, Harald. Erkenntnistheorie, Stuttgart: Kohlhammer, 2014, p. 244.


100 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
118 PROVA E VERDADE

verdade” (como as teorias “pragmático-semiótica” de PEIRCE e a


“hermenêutico-relativista” de RORTY), “teorias semânticas”(como
as teorias “semântico-formal” de TUGENDHAT, “semântica do rea-
lismo interno” de PUTNAM e a “semântico-naturalista” de QUI-
NE), “teorias não-semânticas” (como a das “condições da correlação”
de AUSTIN, as “lógico-empíricas” de RUSSEL, WITTGENSTEIN
e CARNAP e as “dialético-materialistas” de MARX e HORKHEI-
MER), “teorias fenomenológicas” (como as de HUSSERL), “teorias
hermenêuticas” (como as de HEIDEGGER, JASPERS, GARDA-
MER e FOUCAULT), “teorias intersubjetivas” (como as de APEL e
HABERMAS), dentre outras.101
Como a verdade de uma proposição ou de um enunciado é pro-
duto de um juízo, corresponde também a uma certa forma de explica-
ção da realidade. Importante, neste particular, lembrar que a realidade
é sempre uma trama entre o simbólico (o locus da linguagem e dos
limites) e o imaginário (a imagem que se faz das coisas). A própria
causalidade, em si mesma, nada vale, salvo quando puder ser equacio-
nada numa explicação convincente através da linguagem e do recurso
tanto a imagens quanto a ideias, de modo a se impor com pretensão de
validade. Da mesma forma como se dá com a causalidade, também o
conceito de verdade está sempre vinculado a critérios que possam ex-
plicar o enunciado sob o domínio de uma explicação convincente. O
conceito de verdade, então, não é um conceito que se imponha por si
mesmo, mas aquele que se infere de uma forma de explicação, ou seja,
de critérios ou teorias que busquem seu melhor denominador.
É necessário, então, fazer-se uma distinção entre critérios e teo-
rias da verdade. Entende-se por critérios de verdades os diversos refe-
renciais das características que devem ser agregadas ao discurso para
que possa dizer se um objeto é verdadeiro ou falso. Por teorias da ver-
dade deve-se compreender as formas de esclarecimento acerca do valor

101 Segue-se, em linhas gerais, a classificação proposta por Nicolás e Frápolli: NICOLÁS, Juan
Antonio; FRÁPOLLI, Maria José. Teorías de la verdad em el siglo XX. Madrid: Tecnos,
1997, p. 15.
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 119

“verdade” e das circunstâncias, que devem ser preenchidas, para que o


conceito e o critério de verdade possam ser compreendidos e, em con-
sequência, aplicados em concreto. O critério de verdade teria, assim,
um conteúdo normativo, enquanto a teoria da verdade, um conteúdo
descritivo. O primeiro diria respeito a elementos desprovidos de qual-
quer relação fática (em relação ao evento em análise), senão unicamen-
te semântica. A segunda estaria já associada a componentes empíricos.
A distinção é muito sutil e talvez não produza maiores efeitos práticos,
porque muitas teorias que se apresentam como “teorias da verdade”
estão igualmente vinculadas a postulações normativas prévias.
A explicação acerca de objetos ou proposições pode passar por
diversas fases e situar-se sob distintos enfoques. Sendo consequência
de um projeto acerca de como deve ser analisada a realidade, com-
porta, pelo menos, três planos: de substancialidade, de justificação e
de atos de fala. O plano da substancialidade diz respeito à definição
da verdade; o de justificação encerra a determinação das característi-
cas do objeto verdadeiro; o de atos de fala se manifesta nas perspec-
tivas das proposições escritas ou orais, que incluam uma conclusão.
Embora cada plano possa ser analisado separadamente, a ex-
plicação da verdade se articula, porém, sob o influxo de todos eles,
porque envolve tanto os aspectos substanciais de seu juízo, quanto as
características dos objetos e uma decisão que incorpore, por fim, um
resultado positivo ou negativo.
O projeto substancialista pode se destacar em três setores dis-
tintos: da extensão (ou denotação), da naturalidade e da essenciali-
dade, pelos quais, respectivamente, não analisados os elementos ne-
cessários de um objeto de modo a poder determinar se é verdadeiro
ou falso, as condições que sejam necessárias e suficientes para uma
afirmação verdadeira em um mundo possível e as condições que se-
jam necessárias, em qualquer mundo, para expressar uma afirmação
verdadeira.102

102 KIRKHAM, Richard L. Teorias da verdade, São Leopoldo: Unisinos, 2003, p. 39.
120 PROVA E VERDADE

O projeto de justificação examina as características possuídas


pela maior parte dos objetos ou proposições em contraste com ou-
tras, de tal forma que possam embasar um juízo acerca de sua verda-
de ou falsidade.103
Por seu turno, o projeto dos atos de fala, que decorre da filo-
sofia analítica e do giro linguístico produzido na ciência, destina-se
a descrever os propósitos locucionários ou ilocucionários de certos
enunciados, que possam afirmá-los como verdadeiros.104
Como o projeto dos atos de fala é mais complexo, convém
esclarecê-lo melhor. Deve-se, inicialmente, a AUSTIN e, depois, a
SEARLE a configuração dos atos de fala, como formas de expressão
de sentenças ou declarações. Segundo AUSTIN, toda manifestação
humana é uma ação, que se expressa, primeiramente, como uma de-
claração (ato locucionário) e, depois, traz em si mesma um fazer (ato
ilocucionário), que pode constituir uma pergunta, uma advertência
ou uma promessa. A execução de um ato ilocucionário se vincula,
geralmente, a determinados efeitos sobre seus destinatários. Quando
isso ocorre, diz-se que se trata de um ato perlocucionário. Como o
ato locucionário carrega, em si mesmo, um significado, o que impor-
ta mesmo na determinação do projeto de verdade é o ato ilocucio-
nário. Divergindo de AUSTIN, compreende SEARLE, inicialmente,
como ilocucionários os atos assertivos, diretivos, compromissivos e
expressivos, mas a esses incorpora, em um segundo momento, os atos
declarativos ou performativos.105 Para a definição da verdade, impor-
tantes serão os atos assertivos e declarativos, os quais se destinam,
respectivamente, a fixar os elementos conotativos do enunciado ou
sedimentar sua correspondência à realidade.
A teoria dos atos de fala tem, como propósito, se contrapor à
teoria semântica de verdade, formulada por TARSKI, segundo a qual
uma sentença será verdadeira quando seja expressão de uma meta-

103 KIRKHAM, Richard L. Nota 102, p. 40.


104 KIRKHAM, Richard L. Nota 102, p. 40.
105 SEARLE, John R. Expression and Meaning, New York, 1999, p. 16.
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 121

linguagem, capaz de conter todos seus elementos extensivos. Para al-


cançar a verdade, vale-se TARSKI de uma construção lógica, baseada
na matemática e no fisicalismo. De qualquer modo, o que importa
não é a condição do objeto, mas, sim, as relevâncias gramaticais da
própria sentença, segundo um idioma formal e artificial.
Diz TARSKI:
“Agora, podemos finalmente colocar de uma forma precisa as condições
sob as quais consideraremos o uso e a definição do termo ‘verdadeiro’
como adequados do ponto de vista material: queremos usar o termo ‘ver-
dadeiro’ de tal maneira que todas as equivalências da forma (T) possam
ser afirmadas, e diremos que uma definição de verdade é ‘adequada’ se
todas essas equivalências dela se seguem.”
Mais adiante, acrescenta:
“Devemos enfatizar que nem a própria expressão (T) (que não é uma
sentença, mas apenas um esquema de sentença) pode ser compreendi-
da como uma definição de verdade. Podemos apenas dizer que toda
equivalência de forma (T), obtida ao se substituir ‘p’ por uma sentença
particular, e ‘X’ por um nome dessa sentença, pode ser considerada uma
definição parcial de verdade, que explica em que consiste a verdade dessa
sentença individual. A definição geral tem de ser, em certo sentido, uma
conjunção lógica de todas as definições parciais.”106
Fazendo uma análise da teoria semântica da verdade, asseve-
ra TUGENHADT que ela apresenta duas limitações: a proposição
verdadeira só vale para determinado setor de interesses, em primeiro
lugar, e, em segundo lugar, sempre regressa à própria veracidade do
juízo, isto é, um enunciado é sempre verdadeiro quando expresse um
juízo verdadeiro. Como, então, a formulação da verdade do juízo se
vincula a duas relações, uma relativa aos fatos reais e outra de que
esses fatos reais sejam verdadeiros, a direta relação do enunciado aos
fatos reais, sob uma desconsideração dos fatos selecionados, se torna
impossível, porque “o enunciado, então, não teria qualquer significa-

106 TARSKI, Alfred. A concepção semântica da verdade, tradução de Cezar Augusto Mortari e
Luiz Henrique de Araújo Dutra, São Paulo, 2007, p. 163.
122 PROVA E VERDADE

do e não se poderia saber a quais fatos estar-se-ia referindo”.107


A proposta de TARSKI, portanto, era no sentido de só admitir
como verdadeira uma proposição se o fato fosse mesmo verdadeiro.
Assim, o enunciado “a neve é branca” só será verdadeiro se “a neve for
branca”. Com isso, a teoria da verdade deixa de ser produto de uma
formulação contingente e passa a constituir uma formulação redun-
dante. A afirmação da verdade nada mais faz do que reafirmar o que
se constatou com a análise do objeto, daí a relevância do enunciado
gramaticalmente perfeito, pelo qual essa redundância se manifesta.
Há, ademais, certa confusão entre a formulação redundante e a teo-
ria da redundância. Uma formulação redundante será aquela que se
repete, como confirmação do enunciado.
A teoria da redundância, que tem em RAMSEY seu expoente
mais significativo, procura esclarecer os atos de fala e toma o enun-
ciado verdadeiro como aquele que poderia ser também expresso de
outro modo. Assim, a expressão “é verdade que X matou Y” poderia
também ser dita simplesmente: “X matou Y”. 108 Nesse caso, o ad-
jetivo verdadeiro nada mais é do que uma redundância que nada
acrescenta à expressão dita, que poderia ficar de fora do enunciado.
Coloca-se, assim, o adjetivo verdadeiro entre parêntesis, como se fora
algo secundário no enunciado. Diz RAMSEY que o problema da
verdade pode ser resolvido, “se for analisado o conceito de juízo”, de
modo que se tenha em vista seu lado espiritual, ou seja, o próprio
juízo. Então, sua verdade ou falsidade decorre da proposição à qual
o juízo se refere. Assim, em uma relação “R” de “a” para com “b”, o
juízo será verdadeiro, quando apenas seja um circunlóquio de que “a”
está em uma relação “R” para com “b”.109 Como a teoria da redun-
dância pretende, no fundo, desqualificar a busca pela verdade, pode
ser resumida num puro ato de fala. Em relação a TARSKI, contudo,
107 TUGENHADT, Ernst. “Tarkis semanthische Definition der Wahrheit und ihre Stellung
innerhalb der Geschichte des Wahrheitsproblems im logischen Positivismus”, in Gunnar
Skirbeckk (org.) Wahrheitstheorien, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1977, p. 194.
108 RAMSEY, Frank. "Facts and Propositions", in Aristotelian Society Supplementary Volume
7, 153–70.
109 RAMSEY, Frank. Nota 108.
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 123

a redundância tem outro significado: reafirmar uma condição neces-


sária, daí ser classificada como uma teoria não epistêmica da verdade.
Em sentido contrário a TARSKI, argumenta AUSTIN que a
verdade não precisa ser encontrada em definições formais ou resul-
tar de enunciados gramaticalmente perfeitos. Uma única sentença,
ainda que expressa em linguagem rudimentar, pode ser verdadeira
ou qualificar um objeto de verdadeiro. A questão não está, assim, no
rigorismo do enunciado, mas nos elementos do objeto que possam
ser abarcados por ele, ou melhor, nos atos performativos, no modo
como esses elementos podem produzir efeito dentro de determinadas
circunstâncias.110
A concepção mais antiga e usual de verdade advém da Metafí-
sica de ARISTÓTELES, assim consignada:111
“Dizer do que é que não é, ou do que não é e é, é falso, enquanto
dizer do que é que é, ou do que não é que não é, é verdadeiro.”
Essa fórmula foi traduzida, depois, em seu enunciado latino
como adaequatio intellectus ad rem e passou a constituir a base da
teoria da correspondência. Um enunciado será, assim, verdadeiro
quando corresponder ao objeto que pretende exprimir, ou, dito de
outra maneira, uma expressão, uma crença ou uma proposição se-
rão verdadeiras quando corresponderem ao fato. Essa teoria, por sua
simplicidade, ganhou a preferência da ciência em geral até meados
do século XX, quando começou a entrar em crise em face de algumas
dificuldades linguísticas e também empíricas.
O próprio ARISTÓTELES já havia afirmado a falibilidade
dessa correspondência, ao dizer que:
“A busca da verdade é, em certos casos, difícil, em outros, fácil. Isso
mostra que ninguém pode alcançá-la de modo suficiente, mas também
não pode deixar de encontrá-la, ao dizer alguma coisa correta sobre a
natureza; quando, tomada singularmente, nada se lhe pode acrescentar

110 AUSTIN John. How to do things with words, Boston, 1975, p. 145.
111 ARISTOTELES. Metaphysik, tradução para o alemão de Hermann Bonitz, Hamburg, 1999,
p. 284.
124 PROVA E VERDADE

ou somente o pouco que lhe pertence, da coordenação de tudo isso resulta


uma certa grandeza. (...) que do todo se pode adquirir alguma coisa,
mas se pode falhar em suas partes, isso comprova sua dificuldade.”112
As objeções à teoria da correspondência se fundam em dois
grandes pilares: quanto ao termo “correspondência” e quanto ao “fato”.
A objeção quanto à correspondência está vinculada à própria
natureza dos enunciados. Conforme o enunciado se constitua em uma
afirmação, em uma proposição ou em uma crença, tem-se que adaptar
o sentido de correspondência. Tratando-se de afirmações ou sentenças,
tem-se como correspondência um significado. No enunciado X causou
a morte de Y, tem-se que a ação de X tem o significado de haver produ-
zido a morte de Y. Se fosse uma crença, ter-se-ia que dizer: acredito que
X causou a morte de Y, o que implica a enfocar a realidade conforme
um juízo individual e não universal. Nesse ponto, cai-se naquela adver-
tência de ARISTÓTELES de que a visão parcial pode não correspon-
der aos fatos, quando tomados em sentido geral.
Por seu turno, a objeção quanto ao fato tem por base a própria
noção de fato, que, segundo DAVIDSON, deve ser rejeitada por não
ter apoio linguístico.113
As objeções quanto ao termo correspondência, que poderia ser
traduzido também como adequação e não simplesmente no sentido
de identidade, podem ser contornadas se se proceder a uma prévia
análise dos enunciados. Daí a importância da teoria dos atos de fala,
que irá demonstrar a força desses enunciados em face dos efeitos que
podem produzir.
Por sua vez, as objeções sobre os fatos, ainda que relevantes
no âmbito linguístico, podem ser também superadas se se partir do
conceito de existência. Um fato será aquilo que existe na realidade
independentemente da consciência. De qualquer modo, as objeções
ofertadas por DAVIDSON são de considerável importância quando
112 ARISTOTELES. Nota 111, p. 70.
113 DAVIDSON, Donald. The Structure and Content of Truth, in Journal of Philosophy, 1990,
n. 87, p. 302.
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 125

se busca a prova da relação entre enunciado e fato. Nesse caso, a exis-


tência do fato não depende mais de sua integridade empírica, mas,
principalmente, como deve ser explicado de uma forma suficiente.
Diz DAVIDSON:
“Penso na verdade, da mesma forma de Frank Ramsey, como uma espé-
cie de probabilidade”.
Acolhendo-se essa tese, tem-se que, efetivamente, mudar o en-
tendimento acerca do fato. Se a verdade se resume na probabilidade,
então, o fato deixa de ter maior significado como dado existente fora
da consciência, já que sua verificação pode corresponder não apenas
a um juízo objetivo, como, também, a um prognóstico subjetivo.
Ao analisar a teoria da correspondência, é relevante atentar
para a proposta de BERTRAND RUSSELL, segundo a qual o ponto
de gravidade de uma afirmação acerca do fato não decorre propria-
mente do enunciado, mas está sempre na dependência dos elementos
que caracterizam o objeto. Nesse ponto, a verdade não depende da
escolha de quem formula o enunciado, depende do próprio objeto.
O objeto condiciona também a forma como a linguagem se lhe deve
referir. Há, porém, um pressuposto que deve preceder necessaria-
mente esse enunciado. Nesse sentido assinala RUSSELL que para se
emitir um enunciado verdadeiro acerca de um fato será preciso que
o fato efetivamente exista.114 Assim, para se dizer que a ação de X
provocou a morte de Y, será preciso que se comprove a morte de Y.
Não havendo a morte de Y (o acontecimento) não se poderá cogitar
acerca da causa que o provocou.
Seguindo a proposta de RUSSELL, diz FERRAJOLI:115
“O problema da verificabilidade e da falseabilidade são evidentemente
prejudiciais a todos os demais. Em que condições podemos usar sensata-
mente os termos ‘verdadeiro’ e ‘falso’, como predicados de afirmações do
tipo ‘Tício cometeu o fato F’ e ‘o fato F cometido por Tício configura o
delito G’? Em termos gerais, numa concepção empirista do conhecimen-
114 RUSSELL, Bertrand. An inquiry into Meaning and Truth, New York, 1995, p. 227.
115 FERRAJOLI, Luigi. Nota 31, p. 114.
126 PROVA E VERDADE

to são verificáveis e falseáveis, no sentido de ‘verdade’, como elucidado no


parágrafo 3, apenas as afirmações dotadas de significado ou de referência
empírica, quer dizer, que descrevem fatos ou situações determinadas a
partir do ponto de vista da observação (...) Não o são, ao contrário, os
juízos de valor e as afirmações de fatos ou situações a partir do ponto
de vista da observação: por exemplo, ‘Mevio é socialmente perigoso’ ou
‘a terra e o sol foram criados por Deus e se movem segundo as regras por
ele estabelecidas’.”
A teoria da correspondência também entrou em crise devido à
multiplicidade de enunciados ou explicações sobre o fato. Se a afir-
mação de um fato como verdadeiro depende da forma como é expli-
cado e não mais segundo um juízo a priori, ou melhor, se depende
também de uma verificação empírica, centrada na probabilidade de
sua verificação, torna-se problemático admitir, desde o início, a cor-
reção lógica de um enunciado ou de vários enunciados que explorem
de modo diverso sua explicação.
Apesar disso, AUSTIN pretendeu salvar a teoria, alterando o
significado da expressão correspondência, ressaltando que essa cor-
respondência entre o enunciado e o mundo é apenas convencional.
Assim, uma afirmação será verdadeira quando o estado ao qual o
objeto está relacionado por meio da demonstração convencional (ou
critérios de verificação empírica) possa se correlacionar com uma
convenção descritiva.116 Isso quer dizer que a afirmação de verdade
pode variar conforme as convenções assinaladas entre a verificação
empírica e os respectivos enunciados que a expressem.
Também mediante uma alteração de significado, BERTRAND
RUSSELL já havia se manifestado de que a verdade não pode resultar
de pura relação entre pensamento e coisa, porque o próprio enun-
ciado está acoplado a quatro coisas diferentes: a) ao sujeito que o

116 AUSTIN, John L. Truth, in Philosophical Papers, Oxford, 1961, p. 90: “A statement is said
to be true when the historic state of affairs to which it is correlated by the demonstrative
conventions the one to which it is of a with which the sentence 'refers' type
used in making
it is correlated by the descriptive conventions.” (Diz-se que uma afirmação é verdadeira
quando o estado histórico a que está correlacionada pelas convenções demonstrativas é
aquele ao qual se refere a sentença do tipo "referencial", utilizada para a sua elaboração em
face das convenções descritivas).
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 127

enuncia; b) às características do objeto segundo o observador; c) aos


elementos próprios do objeto; d) à relação entre os objetos, que cor-
responde ao verbo do enunciado.
Portanto, o conceito de verdadeiro se desenvolve entre relações
complexas. A verdade, dessa forma, só pode ser extraída de uma afir-
mação congruente entre relações complexas. Isso, contudo, não cria
a verdade, apenas a exprime.117 Justamente nesse sentido, de fazer de-
pender o enunciado do fato, pode-se dizer que RUSSELL é também
um defensor da teoria da correspondência. A questão da congruência
da afirmação com as relações do fato não implica a edição de uma
teoria da coerência.
A discussão em torno da teoria da coerência leva, também, a
proceder-se a uma diferenciação entre teorias epistêmicas e não-epis-
têmicas da verdade. As teorias epistêmicas englobam todas aquelas
que pretendem conferir o qualificativo de verdadeiro a um enuncia-
do em face das características que lhe são assinaladas e não em sua
relação com o fato. Assim, seriam epistêmicas as teorias da coerência
e do discurso. As teorias não-epistêmicas centram sua tese na relação
entre enunciado e fato, como ocorre com a teoria da correspondência
e a teoria semântica da verdade.
Como crítico da correspondência, pretende BLANSHARD
formular uma pura teoria da coerência. O ponto de partida para a
criação da teoria da coerência decorre das variedades dos objetos e da
dificuldade de se obter um conhecimento da realidade sem que tenha
que ser submetido a uma prova de verificação. A prova da verifica-

117 RUSSELL, Bertrand. The problems of Philosophy, 1912, reeditado pelo Projeto Gutenberg,
2013, p. 184 e ss; p. 200: “It will be seen that minds do not create truth or falsehood. They
create beliefs, but when once the beliefs are created, the mind cannot make them true or fal-
se, except in the special case where they concern future things which are within the power
of the person believing, such as catching trains. What makes a belief true is a fact, and this
fact does not (except in exceptional cases) in any way involve the mind of the person who
has the belief.” (Deve-se ver que as mentes não criam verdade ou falsidade. Elas criam
crenças, mas quando as crenças são criadas, a mente não as pode tornar verdadeiras ou
falsas, exceto no caso especial em que digam respeito a coisas futuras que estão dentro do
poder da pessoa que acredita, tais como pegar trens. O que torna uma crença verdadeira é
um fato, e este fato não envolve (exceto em casos excepcionais) de forma alguma a mente
da pessoa que detém a crença).
128 PROVA E VERDADE

ção tem como pressuposto admitir-se que os objetos têm existência


inteiramente fora da consciência. Para superar a necessidade dessa
prova, que sempre tende a fracassar, entende BLANSHARD que o
pensamento não está tão distante das coisas que representam. Nesse
sentido, sob o pressuposto de que o mundo é coerente, poder-se-ia
admitir que os pensamentos ou crenças também o seriam, se guarda-
rem entre si uma coerência.118
Assim, uma afirmação será verdadeira se corresponder, em al-
gum ponto, com outra afirmação considerada verdadeira. O desta-
que da teoria da coerência reside, precisamente, na ausência de con-
tradição entre as afirmações. Não havendo contradição, pode-se dizer
que há, então, um enunciado verdadeiro. O problema da teoria está,
porém, em que um enunciado pode estar de acordo com outro e não
ser verdadeiro, simplesmente porque ambos sejam falsos, segundo
uma visão de conjunto da realidade que querem exprimir. Ainda que
se acolha a proposta de BLANSHARD de admitir uma relativida-
de das afirmações em face do mesmo objeto, quando os enunciados
sejam parcialmente coerentes, é inadequada porque está em contra-
dição com suas próprias premissas: se a verdade dos enunciados é
meramente relativa, então, o fato de guardarem coerência não pode
servir de critério de verdade, mas apenas de indícios de verdade.
Para contornar o problema, recorre BLANSHARD à assertiva
de que a coerência das proposições só indica a verdade, se efetiva-
mente essas vierem a ser confirmadas em face dos fatos, ou seja, no
fundo a coerência constitui unicamente um instrumento de verifica-
ção epistêmica das proposições.
A teoria da coerência tem em BRADLEY um de seus mais
eminentes defensores, o qual toma por base a formulação hegeliana
de verdade como o todo. Nesse sentido, assinala, ademais, HEGEL:
“O verdadeiro e o falso pertencem a um determinado pensamento, que
vale, estaticamente, para aquelas coisas que se situem, aqui e acolá, de

118 BLANSHARD, Brand. Reason and Analysis, London-N. York: Routledge, 1962, p. 189 e
ss.
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 129

forma isolada e sem comunhão. Em contrapartida, deve-se afirmar que


a verdade não é uma moeda já cunhada, que esteja pronta e possa,
assim, ser apropriada. Há ainda um falso, assim como um mal. Mas o
falso e o mal não são piores do que demônio, pois, diversamente desse,
podem ser produzidos por um sujeito; como falso e como mal são apenas
generalidades, embora, um e outro tenham sua própria essência. O falso,
nesse sentido, seria o outro, o negativo da substância, a qual constitui-
ria, como conteúdo do conhecimento, o verdadeiro. Mas a substância
é, ela mesma, essencialmente o negativo, em parte, como diferença e
determinação do conteúdo, em parte, como simples diferença, ou seja,
como si mesma e como conhecimento. Pode-se, sim, conhecer falsamente.
Se alguma coisa for falsamente conhecida, significa que o conhecimento
está em desacordo com sua substância. Esta discordância é a própria
diferença, um momento essencial. Dessa diferença decorre sua unidade e
dessa unidade, sua verdade.119
Embora o trecho de HEGEL possa gerar incompreensão, pela
linguagem hermética, o que ele expressa, em última análise, é a pos-
sibilidade de que em um enunciado falso subsista alguma coisa de
verdadeiro, o que explicaria a evolução científica acerca da apreensão
de objetos e fenômenos. O próprio HEGEL é bem expressivo quanto
a isso:120
“Não se pode dizer, assim, que o falso constitua uma parte ou um momen-
to do verdadeiro, mas, sim, que em todo falso subsiste algo verdadeiro.”
Em atenção a isso, BRADLEY pretende salientar que uma
proposição ou um enunciado seria verdadeiro quando constituísse
membro de um conjunto coerente. Com isso, a tese de BRADLEY
se insere não apenas entre os relativistas, mas também entre aqueles
que entendem tratar a verdade como uma forma de justificação dos
enunciados. Como a verdade advém do todo e não das partes, na
esteira do pensamento idealista alemão, um enunciado estaria justi-
ficado, como verdadeiro, quando se harmonizasse com um conjunto
de outros enunciados ou crenças, de modo consistente e compreen-

119 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Phänomenologie des Geistes, Projeto Gutenberg, 2004,
p. 60.
120 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Nota 119, p. 61.
130 PROVA E VERDADE

sivo. Partindo dessa justificação, faz ver que o enunciado de verdade


serve como paradigma para determinar os dados da realidade. Assim,
expressa-se BRADLEY:
“A verdade, então, nos capacita a ordenar, de modo coerente e com-
preensivo, os dados fornecidos pela experiência imediata e pelos juízos
intuitivos da percepção.”121
Nesse ponto, portanto, a teoria da coerência não tem o ob-
jetivo de definir a verdade, mas proporcionar um critério para de-
terminá-la. Tecendo uma crítica rigorosa, porém, a esse critério de
determinação, afirma KIRKHAM que:122
“Infelizmente, Bradley não dá nenhuma explicação positiva do signifi-
cado do termo ‘compreensivo’ nesse contexto. (...) Talvez o que Bradley
queira dizer com ‘compreensivo’ seja que, para cada proposição já encon-
trada por alguma pessoa, a pessoa deve acreditar ou na proposição ou na
sua negação. Mas isso faria da indecisão algo inadequado, e há casos em
que a indecisão é adequada, quando a evidência se distribui por ambos
os lados de uma questão.”
A teoria da coerência, como observa SCHÖNDORF, não im-
plica que todos os dados sejam harmônicos e isentos de contradição.
Também são levados em conta os dados contraditórios. Importante
é que todos esses dados sejam integrados em um todo coerente, de
modo que possam estar em relação uns com outros e, nessa relação,
não apresentem contradições. Os sonhos, por exemplo, não podem
ser coerentes com outros sonhos, estão, por isso mesmo fora do con-
texto da verdade.123 No fundo, a teoria da coerência não é própria
para propor uma definição de verdade. Não é uma teoria, senão um
critério de verdade, o qual não é decisivo para indicar que o resultado
advindo dos diversos enunciados coerentes seja verdadeiro.124
Diante das críticas, forma-se ainda outra corrente da teoria da
coerência, representada pelos filósofos do Círculo de Viena, principal-

121 BRADLEY, Francis Herbert. Essays on Truth and Reality, 1914, Projeto Gutenberg, p. 470.
122 KIRKHAM, Richard L. Nota 102, p. 305.
123 SCHÖNDORF, Harald. Nota 99, p. 263.
124 SCHÖNDORF, Harald. Nota 99, p. 264.
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 131

mente por SCHLICK, o qual reaviva a questão por meio de um pro-


jeto que visa a superar o idealismo formulado exclusivamente sobre
enunciados e proposições. Em lugar de elaborar, portanto, um crité-
rio de determinação de verdade a partir da coerência das proposições,
busca SCHLICK trabalhar com aquilo que chama de “sentenças de
observação”. Para ele, a verdade deveria decorrer não apenas dos enun-
ciados coerentes, mas, sim, de duas formas: a primeira, de uma cons-
tatação de que os enunciados a serem analisados correspondem aos
objetos empíricos; a segunda, de que os enunciados sejam consistentes
no sentido de exprimir a constatação do objeto. Uma proposição será,
então, verdadeira se efetivamente tiver uma constatação empírica e,
depois, quando estiver de conformidade com outras proposições ou
enunciados derivados da constatação do objeto.125 Com essa pondera-
ção, SCHLICK abre o caminho para a construção de outras teorias:
uma teoria do consenso e a uma teoria da correspondência revificada.
Pode-se dizer que a teoria do consenso apresenta três variantes:
da Escola de Erlangen, da teoria dialógica e da teoria do discurso.
Alguns predicados são comuns a todas essas teorias: a pretensão de
validade, a pretensão de necessidade, a pretensão de fundamentação
e a pretensão dialógica ou discursiva.
A pretensão de validade corresponde à proposta de emprestar
à expressão “verdade” um sentido de impossibilitar ou não admitir
uma contrapartida. Assim, se digo: a cidade do Rio de Janeiro fica no
Brasil, isso só será verdadeiro se não admitir outra hipótese, se não se
puder provar o contrário, daí o sentido de apresentar uma pretensão
de validade, ou seja, de que seja acatada por todos.
A pretensão de necessidade indica que a proposição não de-
corre de mero acaso, de tal modo que a prova do contrário é simples-
mente absurda, daí confirmar-se a pretensão de validade.
A pretensão de fundamentação expressa que a pretensão da
validade inicial deve poder ser resgatada, ou seja, que a expressão será

125 SCHLICK, Moritz. Tatsachen und Aussagen, Frankfurt am Main, 1986, p. 223 e ss.
132 PROVA E VERDADE

verdadeira quando possa negar, per absurdum, a prova contrária; a


negativa dessa prova indica, então, que a pretensão de validade tem
seu fundamento.
A pretensão dialógica ou discursiva remete a que a confirma-
ção da pretensão de validade percorre um caminho amplo, desde
uma convicção intuitiva até uma concepção sistemática, tanto no
plano racional quanto empírico, o que conduz a uma fundamenta-
ção argumentativa daquilo que se quer seja acolhido por todos.
Diversas são as formas de condução desses predicados.
A ESCOLA DE ERLANGEN desenvolve, aqui, uma teoria
intersubjetiva ou interpessoal, que poderia ser chamada de teoria
construtivista. Os dois teóricos da escola, KAMLAH e LOREN-
ZEN, afirmam que o processo de verificação da verdade deve provir
de um enunciado da lógica formal, da matemática e da física, que
deverá ser aceito apenas quando seu resultado possa ser alcançado
por qualquer pessoa, da mesma forma, sob as mesmas condições de
neutralidade e distanciamento do objeto. Assim, poder-se-ia dizer
que o juízo de verdadeiro decorre de um procedimento de constru-
ção. Nesse procedimento, os objetos não são previamente dados ou
capazes de serem receptivos ao seu conhecimento, quer na forma de
“genus proximum”, quer como “differentiam specificam”; ao contrá-
rio, os objetos só adquirem qualidade quando possam ser produzidos
por meio de atributos que lhe são conferidos por prescrições consis-
tentes e dispostas em uma proposição de regras destinadas à constru-
ção dessas qualidades.126
Por seu turno, KUNO LORENZ pretende construir sua teo-
ria dialógica a partir de uma superação da teoria da correspondência,
que ele denomina de teoria semântica da verdade, e da teoria prag-
mática em seus variados modelos. Entende que a teoria da correspon-
dência, por um lado, deixa de fora as relações entre os enunciados

126 KAMLAH, Wilhelm/LORENZEN, Paul. “Wahrheit und Wirklichkeit”, in Gunnar Skirbe-


ckk (org.) Wahrheitstheorien, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1977, p. 483; GLOY, Karen.
Wahrheitstheorien, Tübingen, 2004, 195.
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 133

e seus portadores em benefício da caracterização dos elementos do


mundo, e a teoria pragmática, por outro, deixa também de fora as
relações entre os enunciados e a realidade, para se centrar, apenas, no
consenso ou no discurso. Em lugar disso, quer compreender, inicial-
mente, a verdade como produto de um enunciado consensual, mas
subordinado à compreensão e ao aprendizado acerca das regras de
sua execução. Depois, quer identificar verdade e pretensão de vali-
dade, com base no que os elementos idiomáticos possam indicar na
linguagem comum e também na práxis científica. Com isso, entende
poder problematizar o próprio consenso em face da realidade em-
pírica, tomada essa problematização no sentido de uma explicação
linguística empírico-psicológica. Apesar de se esforçar para evitar a
circularidade de uma proposição, que acolhe o consenso como enun-
ciado, ao identificar verdade e pretensão de validade, e depois querer
comprovar a validade do consenso pelo próprio enunciado, como ex-
plicação linguística, chega aos mesmos problemas que havia criticado
em relação à teoria pragmática. Com efeito, de um lado, a situação
de ensinar, que está na base do consenso, é caracterizada pela preten-
são dos aprendizes a um conhecimento aceitável; de outro lado, se
legitima pela mesma pretensão dos aprendizes.127
Em sequência a uma teoria consensual, situa-se a teoria do
discurso, elaborada por HABERMAS. Há muito desencontro diante
dessa teoria, em parte pela dificuldade da superação de um projeto
metafísico, próprio da tradição escolástica e que perdura até hoje, em
parte pelas características da própria teoria de mesclar conceitos da
teoria da correspondência com a teoria semântica, o que dá lugar ao
que se denominada de pragmática discursiva. Isso implica extrair o
conceito de verdade de uma expressão linguística, ou seja, trabalhar
a questão da verdade sob o ângulo dos atos de fala e desenvolvê-la
dentro de um processo argumentativo.
A ideia central é ter em vista o poder ilocucionário dos atos de
fala, que se irá refletir em determinados resultados, mas com a par-
127 GLOY, Karen. Nota 126, p. 203.
134 PROVA E VERDADE

ticipação tanto dos autores, quanto dos receptores dos enunciados.


Com isso, a teoria se afasta, em princípio, de um projeto metafísico,
pois não busca um conceito de verdade absoluto e infalível. A verda-
de será o resultado de um consenso e não da necessária relação entre
o enunciado e os fatos.
Essa teoria tem suas teses resumidas no seguinte:128
a. A verdade se identifica com a pretensão de validade, associa-
da a um ato ilocucionário da forma constatativa. Assim um
enunciado será verdadeiro quando a pretensão de validade
do ato ilocucionário for legítima;
b. Uma questão acerca da verdade apenas floresce quando a
pretensão de validade situada no contexto da ação for pro-
blematizada. As expressões acerca da verdade, que são postas
à prova no discurso, não são redundantes;
c. No contexto da ação, estão presentes informações acerca dos
objetos da experiência; no discurso, são postos em discussão
enunciados sobre fatos;
d. As questões acerca da verdade não dizem respeito, assim,
à cognição correlacionada ao mundo interno, nem a fatos,
que são ordenados pelos discursos suprimidos de dados da
experiência ou de ações;
e. A relevância ou irrelevância dos fatos não é decidida pela
evidência da experiência, mas, sim, por meio da argumen-
tação. Isso não significa, porém, que a verdade se confunde
com o argumento. Mas, a ideia da verdade só pode resultar
da relação com o preenchimento discursivo das pretensões
de validade.
Essas teses conduzem, todas, a fundamentar uma teoria da
verdade conexa com a teoria da argumentação. Trazendo mais luz à
matéria, diz HABERMAS o seguinte:129
“Mesmo na compreensão das proposições mais elementares sobre subs-
tância ou acontecimentos no mundo, a linguagem e a realidade inter-

128 GLOY, Karen. Nota 126, p. 20; HABERMAS, Jürgen, Wahrheitstheorien, in Philosophis-
che Texte, tomo 2, Frankfurt am Main, 2009, p. 217.
129 HABERMAS, Jürgen. Nota 128, p. 288.
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 135

penetram-se de uma forma indissolúvel. Não há qualquer possibilidade


natural de isolar a limitação da realidade, que uma proposição quer tor-
nar verdadeira, das regras semânticas que instituem as condições dessa
verdade. Só podemos explicar o que é um fato com o auxílio da verdade
de uma proposição acerca desse fato; só podemos explicar o que é realida-
de na conceituação daquilo que seja verdadeiro.”
Apesar de fazer depender a verdade das regras semânticas, no
sentido de TARSKI, HABERMAS sustenta uma aproximação com a
teoria da correspondência, ao dizer, claramente, que:
“Isso não significa, certamente, que a coerência de nossos pen-
samentos seja suficiente para esclarecer o significado do conceito
de verdade, colocado em evidência. Por certo, no âmbito do pa-
radigma linguístico, a verdade de uma proposição não pode ser
conceituada, senão como correspondência a alguma coisa no mun-
do, pois do contrário deveríamos poder dissociar a linguagem da
própria linguagem.”
Uma questão importante será determinar uma pretensão de
validade.
Examinando o tema, leciona GLOY que o significado da ver-
dade só pode ser suficientemente esclarecido mediante o aporte ao
significado de “preenchimento” discursivo da pretensão de validade
fundada na experiência.
Esses dois conceitos – pretensão de validade e preenchimento
discursivo – são, assim, fundamentais para esclarecer a teoria consen-
sual da verdade. Ambos estão correlacionados. Em relação à preten-
são de validade, HABERMAS quer ajustá-la ao modelo da pretensão
jurídica, a qual comporta dois aspectos: um aspecto relacionado aos
fundamentos fáticos e outro subordinado ao título jurídico, o qual
pode ser legitimado perante um tribunal, caso seja contestado o di-
reito sobre o qual ele se apoia.130 Assim, a pretensão de validade está,
de um lado, relacionada ao fato e, de outro, à argumentação discursi-
va, que fundamenta o consenso em torno do enunciado e o legitima.

130 GLOY, Karen. Nota 126, p. 207.


136 PROVA E VERDADE

Embora HABERMAS resolva a questão entre conhecimento e


elementos da experiência por meio da cláusula da correspondência, a
concepção de verdade está preferencialmente centrada na constitui-
ção argumentativa da pretensão de validade, calcada na experiência e
expressa no discurso. Para conferir racionalidade ao discurso e possi-
bilitar que possa alcançar o consenso, propõe HABERMAS algumas
regras, relativamente a uma situação ideal de fala, as quais podem ser
resumidas no seguinte:
a. Todos os participantes do discurso devem ter as mesmas
chances de, por meio de um ato de comunicação, inaugurar
o discurso e mantê-lo;
b. Todos os participantes do discurso devem ter as mesmas
chances de apresentar afirmações, esclarecimentos, recomen-
dações e justificativas, e de problematizar, fundamentar e
contradizer suas pretensões de validade, de tal modo que não
deixe de lado qualquer outra argumentação;
c. Só devem ser admitidos ao discurso aqueles que possam ex-
pressar, com as mesmas chances, suas posições, sentimentos
e intenções, de tal modo que somente as relações recíprocas
podem garantir-lhes sua veracidade e transparência;
d. Só podem ser admitidos ao discurso aqueles que tenham as
mesmas chances de dar ordens, de recusá-las, de permiti-las
ou de proibi-las, e de se comprometerem, pois só dessa forma
podem garantir uma comunicação livre.131
Deve-se assinalar que essa situação ideal de fala não constitui
um fenômeno empírico nem uma construção fictícia, apenas se inse-
re em um discurso racional, ao qual os participantes se submetem a
fim de se dirigirem a determinado objetivo, conscientemente anteci-
pado e sob parâmetros críticos.132
Apesar de representar uma refinada elaboração intelectual sob
o pressuposto de que todo o processo de conhecimento da verdade
só pode ser expresso pela linguagem, portanto, na forma de uma

131 HABERMAS, Jürgen. Nota 128, p. 263.


132 GLOY, Karen. Nota 126, p. 214.
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 137

concepção semântica, o que corresponde, de certo modo, ao sucesso


da ciência contemporânea, a teoria não está isenta de críticas, que se
dirigem a duas ordens de fatores: ao problema da determinação do
consenso e da pretensão de validade.
A crítica em relação ao consenso afirma que este falece quando
é imposto como critério para a definição de verdade, pois essa impo-
sição desconsidera as condições reais de sua obtenção. Nesse ponto,
parece que a teoria do consenso cede lugar à teoria da coerência, que
se satisfaz com opiniões consistentes, nem sempre determinantes da
verdade. Igualmente, outra crítica que se faz é que a teoria do consen-
so submete-o a um discurso, cujo sucesso se deve à força do melhor
argumento, mas que, muitas vezes, não é suficiente para explicar a
relação empírica entre o enunciado e os fatos. Por fim, afirma-se que
a teoria do consenso o conduz no sentido de uma decisão, que irá
determinar se o enunciado é ou não verdadeiro. Como a decisão
pode ser também falsa, tudo depende da forma e do modo como
encara os fatos.
No que toca à pretensão de validade, ou seja, na proposta de
que os enunciados advindos do consenso devam ser tomados como
de aceitação obrigatória por todos, no sentido de uma universalida-
de, a teoria do consenso não esclarece, exatamente, se essa pretensão
de validade decorre do consenso ou se o consenso só se constitui com
base no preenchimento discursivo dessa pretensão, dando lugar, en-
tão a uma circularidade: haverá consenso quando decorrer do aten-
dimento discursivo de uma pretensão de validade, e haverá pretensão
de validade quando corresponder ao consenso. Na linha das indaga-
ções de GLOY:133 o discurso formal é equivalente ao preenchimento
das pretensões discursivas de validade, ou constitui sua relação con-
dicional ou implicativa?
Não obstante a relevância das críticas, a teoria do discurso
pode representar um avanço significativo por sobre a teoria da coe-

133 GLOY, Karen. Nota 128, p. 219.


138 PROVA E VERDADE

rência e pode, também, produzir uma nova interpretação da teo-


ria da correspondência. Ao subsidiar o conceito de verdade com os
conceitos dos atos ilocucionários, induz a que a busca da verdade
seja instituída dentro de um processo com a participação de todos.
Com isso, cria também um ambiente democrático, do qual poderão
resultar as superações das teses científicas, à medida que surjam e se
desenvolvam novas descobertas e formulações. Não ficaria estranha,
assim, à teoria do discurso qualquer modificação que se processasse
na interpretação dos fenômenos naturais, nem aquela que pudesse
surgir da análise dos fatos sociais ou jurídicos. Se a análise jurídica
de um conceito de verdade não está divorciada de uma pretensão de
validade, que só adquire legitimidade com a participação de, pelo
menos, três atores (autor, réu e juiz), como ocorre com as postula-
ções judiciais, está claro que, nesse campo, vigora um procedimento
discursivo e não, simplesmente, um silogismo prático. A teoria do
discurso, com seus postulados delimitadores, constituirá, assim, um
método de argumentação capaz de, pelo menos teoricamente, con-
duzir a uma decisão formalmente imparcial.
Ainda fica sem solução, todavia, a questão mais crucial do con-
ceito de verdade: se será possível conceber-se um conceito de verdade
fora da relação com os fatos (teoria da correspondência) e como é pos-
sível produzir a prova dessa relação. Nesse aspecto, vem à baila, nova-
mente, o embate entre o projeto metafísico e o projeto deflacionário.
O projeto metafísico quer fundar o conceito de verdade numa
relação necessária entre enunciado e fato, daí orientar sua busca no sen-
tido da demonstração de uma verdade real. Já o projeto deflacionário
pretende se conduzir de conformidade com os critérios de falibilidade
e contingência, estipulando o conceito de verdade sob o influxo de um
processo argumentativo. O projeto metafísico pressupõe, desde logo,
que a verdade é alcançável por um método, ao mesmo tempo, empíri-
co e demonstrativo. O projeto deflacionário entende que a verdade é
aquilo que resultar da melhor explicação do fato a partir da coerência e
consistência externa e interna dos enunciados.
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 139

Está claro que uma verdade absoluta e irretocável é impossí-


vel de ser alcançada. Por outro lado, a coerência e consistência dos
enunciados não são suficientes para estabelecer sua relação para com
o fato. Pode-se, então, creditar validade ao projeto deflacionário, mas
com as limitações de que deva se submeter aos argumentos de refu-
tação. Assim, a coerência dos enunciados deve estar disposta a ser
contestada, a todo momento, em face de novas descobertas ou de
novas formulações.
Ademais, na busca da verdade não se deve olvidar que a verdade
da parte nem sempre corresponde à verdade do todo. Os argumentos
racistas ofertados na época do nazismo eram todos perfeitamente coe-
rentes e consistentes com um projeto total discriminatório, mas não
eram verdadeiros se confrontados com a necessidade de preservação
da liberdade e da igualdade, como condição global da existência de
cada um. O fato de um enunciado ser coerente não induz à afirmação
de que seja verdadeiro. Nesse ponto, pode-se retornar à velha fórmula
platônica da relação entre uno e múltiplo: a multiplicidade só poderá
se integrar como uno, quando estiver em condições de continuar a se
multiplicar, ou seja, quando se mantiver dentro de sua diferença.
19. A DETERMINAÇÃO DA VERDADE

Quando se chega ao ponto de pôr em dúvida todas as teorias e


todos os critérios de verdade, deve-se tomar uma decisão acerca de como
proceder para afirmar que determinado enunciado é verdadeiro ou falso.
Nesse sentido é o pronunciamento de SCHNÄDELBACH:134
“Simplesmente porque não interessam para a questão da verdade os
fundamentos teóricos de significado, mas sim as perspectivas teóricas de
cognição – por certo, no contexto do discurso normativo de uma teoria
do conhecimento – importante será tratar de um critério de verdade
pelo qual se possa decidir se de fato o que pensamos com a afirmação ‘p
é verdadeiro’ é real ou não.”
Depois de assinalar as vantagens e desvantagens das teorias da
verdade, SCHNÄDELBACH entende ser adequado proceder-se à
determinação da verdade segundo a teoria da correspondência, agre-
gada à teoria da coerência, de tal modo que se possa dizer que, por
exemplo, o enunciado “X matou Y” é verdadeiro porque corresponde
ao fato de que, efetivamente, a morte de Y foi provocada pelo com-
portamento de X e isso está de acordo com outros pronunciamentos
coerentes e consistentes sobre o mesmo fato.135
A conjugação da teoria da correspondência com a teoria da
coerência faz com que a determinação da verdade acolha tanto os
postulados das teorias epistêmicas (teoria da coerência), quando das
teorias não epistêmicas (teoria da correspondência). A adoção da
teoria da correspondência vincula o enunciado ao fato empírico, a
fim de não permitir devaneios ou ficções. E a remissão à teoria da
coerência faz com que o enunciado ganhe legitimidade e possa ser
justificado. Assim, perde significado o projeto metafísico, pelo qual a
busca da verdade pode ser inteiramente satisfeita mediante a simples

134 SCHNÄDELBACH, Herbert. Erkenntnistheorie, Hamburg, 2008, p. 182.


135 SCHNÄDELBACH, Herbert. Nota 134, p. 184.
142 PROVA E VERDADE

análise do fato. Deve-se dizer que a simples análise do fato é incapaz


de afirmar ou negar que um enunciado é verdadeiro.
Voltando ao exemplo do homicídio, a simples constatação de
um comportamento de X e a morte de Y está sempre sujeita a inter-
pretações, conforme o contexto do fato. Muitas vezes, o fato é muito
claro, porque todas as evidências conduzem no sentido de afirmar
que X matou Y, mas, outras vezes, o fato é de difícil solução.
É conhecido no Brasil o episódio da morte de um político
e empresário brasileiro e de sua namorada, em 1996, na cidade de
Maceió, no qual até hoje há dúvidas se ocorrera suicídio simul-
tâneo, ou se homicídio do empresário pela namorada e, depois,
suicídio dessa, ou ainda homicídio de ambos por terceira pessoa. A
determinação da verdade não pode depender, nesse caso, da simples
análise do fato; será preciso verificar também a opinião e pareceres
de outros observadores, para, então, concluir por uma das hipóte-
ses, que poderia ser a mais provável.
Na determinação da verdade, portanto, a conclusão final é jus-
tificada mediante o aporte de vários conjuntos de análise: primeiro,
sobre o fato; segundo, sobre a coerência e consistência dos pareceres
dos peritos ou observadores; por fim, pela opção mais provável.
Há, assim, alguns elementos da análise do fato que delimi-
tam o âmbito da busca da verdade. À medida que a análise do fato
não venha embasada em outras opiniões coerentes e consistentes,
pode-se pôr em dúvida a conclusão acerca do enunciado, se é ver-
dadeiro ou falso. Ademais, ainda que a análise inicial do fato venha
corroborada por outras opiniões coerentes e consistentes, o enun-
ciado pode não ser verdadeiro por dois outros motivos: porque não
preenche os requisitos objetivos e subjetivos de um juízo de proba-
bilidade e porque está em desacordo com o contexto global. Essas
limitações da decisão acerca da verdade do enunciado são, inclusi-
ve, manuseadas pela ciência e, até mesmo, compõem regras legais
de atendimento obrigatório.
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 143

A ciência não confia em enunciados pelo simples fato de que


sejam coerentes e consistentes. Será preciso levar adiante essa coerên-
cia e consistência e verificar se as afirmações são adequadas. Pode-se
invocar, aqui, para determinar a adequação de enunciados a velha
fórmula da LEIBNIZ:136 será adequado quando conduzir a análise
dos objetos até as últimas consequências; será inadequado quando
não se puder dispor das características dos objetos para levar sua aná-
lise até as últimas consequências. Com essa assertiva, queria LEIB-
NIZ se afastar do conhecimento simbólico das coisas, que se man-
tém apenas na ideia e não na realidade.
Por seu turno, no âmbito jurídico, a regra legal é de que, em se
tratando de perícia complexa, que abranja mais de uma área de co-
nhecimento, pode-se designar mais de um perito, e as partes poderão
indicar mais de um assistente técnico (CPP, art. 159, § 17; CPC, art.
475). Ademais, como a afirmação da verdade está também subordi-
nada ao contexto global, a própria regra legal adverte que o juiz não
ficará restrito ao laudo e poderá tomar sua convicção de outros ele-
mentos provados nos autos (CPP, art. 182; CPC, art. 479). Embora
a lei não esclareça, é preciso consignar que, ao rejeitar o laudo, o juiz
deve fazê-lo fundamentadamente (CF, art. 93, IX). Tanto os peritos
quanto os juízes devem valer-se de todas as regras disponíveis para
afirmar a verdade do fato. O problema está, porém, em decidir acerca
dos critérios que devam nortear essas regras.
Ao fazer-se a opção por uma conjugação entre a teoria da cor-
respondência e da coerência, parece que a regra possível é aquela for-
necida, primeiramente, pela experiência e, depois, pelas condições que
possam justificar o enunciado, como ato ilocucionário. Procedendo-se
a uma inversão dessa análise, pode-se iniciar pelas condições que em-
basem um ato ilocucionário, entre as quais, a pretensão de validade.
Aqui, pode-se acolher a proposta de HABERMAS acerca das
regras triviais e não triviais. O ato ilocucionário com pretensão de va-
136 LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. Fünfe Schriften für Logik und Metaphysik, Stuttgart, 1996,
p. 9 e ss.
144 PROVA E VERDADE

lidade será o que se submeter a essas regras. Por regras triviais devem
ser compreendidas as que se dirigem diretamente à participação dos
sujeitos do ato: que todos os autores dos enunciados ou das opiniões
tenham as mesmas chances de exercer participação no discurso e
também chances iguais de formular críticas a esse discurso. Por regras
não triviais devem ser tidas as que se referem ao poder de expressão:
que todos os falantes devam ter chances iguais para exprimir suas
atitudes, sentimentos e intenções e, finalmente, que só possam ser
admitidos ao discurso aqueles que tenham as mesmas chances como
atores para dar ordens e contestar, permitir e proibir.
Essas regras servem de elementos para legitimar o ato de todos
os que emitiram suas opiniões, pareceres ou decisões. Um perito que
tenha que obedecer às ordens do juiz não poderá emitir um laudo
legítimo, porque violada a regra de livre manifestação crítica. Um
laudo elaborado com a vedação de seu controle pelas partes ou de
participação de assistentes técnicos não será legítimo porque violada
a regra trivial da liberdade de participação e de crítica ao próprio
discurso nele contido.
Uma vez legitimado o discurso, cumpre estabelecer um critério
que possa orientar a elaboração de seu conteúdo, ou seja, o critério
que possa indicar, por exemplo, que o enunciado de que X matou
Y é verdadeiro porque corresponde aos fatos. A escolha desse critério
sempre foi uma pedra de toque da ciência, porque nenhum critério
é totalmente capaz de afirmar, de modo absoluto, a verdade de um
enunciado. A afirmação de verdade será sempre relativa,137 mas, como
dizia ARISTÓTELES, é necessário determiná-la. Isso como condição
da própria existência social, que deve se pautar por atos ilocucionários
legítimos, e da responsabilidade individual, que dela não prescinde.
Nesse sentido, coordena RUSSELL a busca da verdade em re-
lação a duas séries de ocorrência: de fatos simples e de fatos comple-

137 RUSSELL, Bertrand. Problems of Philosophy, p. 239: “all our knowledge of truths is in-
fected with some degree of doubt, and a theory which ignored this fact would be plainly
wrong.”
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 145

xos. Para os fatos simples, entende bastar a autoevidência. Pode-se


dizer, pela autoevidência, que o Sol nasce e se põe em determinada
hora, conforme as estações do ano. Para concluir que essa afirmação é
verdadeira não há necessidade de laudo pericial, será suficiente a sim-
ples percepção. Em relação aos fatos complexos, no entanto, fornece
dois critérios: do julgamento acerca da relação entre todas as partes
do acontecimento e a decisão derivada dos graus de percepção dos
objetos daquele julgamento. Com a conjugação desses dois critérios
pode chegar à conclusão de que as partes anunciadas são próprias da-
quele julgamento e que, conforme os graus de percepção, se poderá
concluir que a afirmação, provavelmente, corresponde aos fatos.138
Como em relação aos fatos complexos, os enunciados não po-
dem ser efetuados mediante uma incursão direta, mas por análise
global, propõe que a questão da probabilidade seja resolvida com o
auxílio da teoria da coerência. Essas são suas palavras:139
“No que diz respeito à opinião provável, podemos fazê-la derivar da
coerência, que rejeitamos como definição da verdade, mas que, muitas
vezes, pode ser usada como um critério. Um corpo de opiniões indivi-
dualmente prováveis ​​, se são coerentes entre si, torna-se mais provável
do que qualquer delas tomada isoladamente. É dessa forma que muitas
hipóteses científicas adquirem sua probabilidade.”
Se a opinião que se mostra de acordo com outras opiniões
coerentes no mesmo sentido é a mais provável em termos de verdade,
pode-se dizer também que essa opinião é a que mais força transmite
à autoevidência de segunda ordem, ou seja, aquela que justifica a
explicação do fato. Se, por exemplo, os laudos e os depoimentos das
testemunhas, submetidos ao contraditório, são coerentes quanto a
que a conduta de X provocou a morte de Y, pode-se concluir que essa
é uma hipótese provável de sua ocorrência. Por outro lado, como as

138 RUSSELL, Bertrand. Nota 137, p. 240 e ss.


139 RUSSELL, Bertrand. Nota 137, p. 248: “In regard to probable opinion, we can derive great
assistance from coherence, which we rejected as the definition of truth, but may often use
as a criterion. A body of individually probable opinions, if they are mutually coherent, be-
come more probable than any one of them would be individually. It is in this way that many
scientific hypotheses acquire their probability”.
146 PROVA E VERDADE

partes devem estar relacionadas entre si e como a percepção relatada


nos laudos e nos depoimentos está subordinada a graus e não é, por-
tanto, uma percepção direta, a decisão final acerca da verdade não
pode ser tomada apenas sobre um elemento de prova. Deve-se tam-
bém proceder a uma análise do fato em seu conjunto. Só dessa forma
se poderá concluir que X matou Y com probabilidade nos limites da
certeza, ou seja, com um grau de probabilidade que alguns diriam
ser entre 96% e 99%.140 Caso essas manifestações não guardem coe-
rência, ainda que o fato exista, já estará comprometida a afirmação
de que X matou Y, o que conduzirá à absolvição do suposto autor.

140 DUBBE/BECK-BORNHOLDT. Mit an Wahrscheinlichkeit grenzender Sicherheit, Ham-


burg, 2006, p. 67.
20. OS LIMITES DA BUSCA DA VERDADE

Tomando em consideração que a busca da verdade em relação


a fatos complexos, que são aqueles que dizem respeito à conduta hu-
mana e não a fenômenos naturais, deve ser equacionada por meio de
um discurso de justificação, será importante verificar os limites dessa
investigação.
Inicialmente, pode-se partir de que a busca da verdade não
pode violar aquelas regras propostas por HABERMAS acerca do dis-
curso ideal. Essa é uma limitação vinculada aos sujeitos emissores da
verdade e fundamenta todo o processo de comunicação entre pessoa
e Estado. Depois, pode-se ver que essas regras, apesar de terem sido
construídas no âmbito filosófico, estão igualmente ratificadas por
prescrições legais, que se foram estratificando nos códigos de proce-
dimento dos diversos países.
Assim, no Brasil, os códigos processuais, civil e penal, dispõem
justamente acerca da validade da prova da verdade, que deverá seguir
um trâmite que não cause surpresa às partes (livre acesso), que amplie
sua participação no discurso relacionado ao seu enunciado (contra-
ditório), que seja adequada e idônea ao fato que se quer provar e que
não seja obtida por meios ilícitos. A busca da verdade não é, assim,
orientada para a obtenção da verdade substancial, mas apenas da ver-
dade provavelmente admitida. Não vigora mais, assim, no processo
a busca da verdade real. Até porque, como já se disse, não existe essa
suposta verdade real. Seria uma pretensão audaciosa do direito en-
tender que o juiz possa fazê-lo unicamente pelos instrumentos legais.
Com base, assim, nesses parâmetros, que constituem os funda-
mentos para a pretensão de validade do discurso no âmbito jurídico,
tem-se, em primeiro lugar, que atender à exigência de que a prova
não cause surpresa aos participantes. Para tanto, o código de proces-
so civil dispõe que de todo documento juntado aos autos por uma
148 PROVA E VERDADE

parte deve ser dada vista à parte contrária (CPC, art. 437, § 1º). Isso
implica que a produção da prova da verdade deve ser aberta a todos
os interessados. Uma prova produzida sem o conhecimento da parte
contrária será ilegítima por violar a regra trivial de que a todos deve
ser assegurada a participação no discurso, sem qualquer forma de
induzimento ou de obtenção fraudulenta do consenso. Em segundo
lugar, como consequência dessa forma de publicidade, tem-se que
admitir a contestação à prova (contraditório). É condição essencial
da pretensão de validade que todos os participantes possam criticar
o discurso e não apenas tomar dele conhecimento. O contraditório,
por isso mesmo, constitui um princípio fundamental do processo
democrático (CF, art. 5º, LV; CPP, art. 155). Em terceiro lugar, a
prova deve ser adequada e idônea ao que se pretende provar. Nos
crimes que deixam vestígio, o Código de Processo Penal exige a reali-
zação de perícia, não a suprindo a confissão do acusado e só em casos
excepcionais admite sua substituição por outro meio, como a pro-
va testemunhal (CPP, art. 158, 67). Nesse ponto, será importante a
análise da coerência e consistência dos depoimentos. Ademais, se um
fato só puder ser provado com determinado meio, qualquer outro
será ilegítimo para fazê-lo. Do mesmo modo, se o fato puder ser pro-
vado, de igual modo, por vários meios, todos serão idôneos. A análise
da idoneidade da prova, por sua vez, não pode ficar restrita aos seus
componentes empíricos ou funcionais. Deverá submeter-se também
aos preceitos globais da ordem jurídica. Embora idônea, uma prova
só deve ser admitida quando, em face de outras de mesma categoria,
implicar menor intervenção no círculo jurídico da pessoa que irá
recepcioná-la. Assim, será ilegítima a prova que determine compul-
soriamente a extração de sangue do acusado para a comprovação de
embriaguez ao volante. Finalmente, a prova não pode ser obtida por
meios ilícitos (CF, art. 5º, LVI; CPP, art. 157).
Uma vez atendidas essas exigências relacionadas à pretensão
de validade, a prova da verdade será admitida no procedimento
investigatório.
21. NEOLIBERALISMO E VERDADE

O Estado Democrático de Direito, entendido como o mode-


lo estatal marcado por limites ao exercício do poder,141 de qualquer
poder (político, econômico, judicial etc.) encontra-se em crise (ou,
mesmo, superado). A ideia de que os direitos e garantias funda-
mentais, as regras e princípios constitucionais e os tratados e con-
venções internacionais funcionariam como limites ao arbítrio e à
opressão, aos poucos foi substituída pela construção de uma ima-
gem desses “direitos” como entraves, dessas conquistas civilizatórias
como meros obstáculos tanto à eficiência econômica ou repressiva
do Estado quanto aos interesses dos detentores do poder político e
do poder econômico. Aos poucos, inicialmente de maneira tímida,
e em seguida sem pudor, os direitos e garantias fundamentais pas-
saram a ser relativizados. O próprio valor “verdade” foi relativizado,
dando origem ao que hoje se chama “pós-verdade”, um discurso
que produz efeitos típicos da verdade, sem guardar relação com os
fatos ou a história.
Os direitos e garantias, que ao longo da história foram con-
quistados e construídos como o conteúdo material da democracia,142
passaram a ser afastados, muitas vezes com a aquiescência do Poder
Judiciário, que deveria exercer a função de garantidor da democracia.
Não por acaso, alguns chegam a falar em “Estado Pós-Democrático”
para dar conta desse modelo de atuação estatal que não encontra

141 Não existe, em concreto, um exemplo histórico “puro” de Estado Democrático de Direito.
Trata-se de um modelo ideal que se caracteriza pela justificação do poder a partir do respei-
to a limites. No Brasil, o Estado Democrático de Direito sempre foi precário, com os direi-
tos e garantias fundamentais respeitados de forma seletiva, mas até pouco tempo os agentes
estatais ainda tentavam justificar suas atuações a partir do respeito aos limites democráticos.
Hoje, naturalizou-se a violação dos limites éticos e legais, como se observa, por exemplo,
das recentes decisões do Supremo Tribunal Federal que relativizaram o princípio da presun-
ção de inocência e os direitos sociais titularizados pelos trabalhadores e respeitados desde a
criação da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho).
142 Democracia em sentido material é, para além da participação popular na tomada das deci-
sões políticas, a concretização dos direitos e garantias fundamentais.
150 PROVA E VERDADE

limite na Constituição da República, na legislação internacional, nas


leis infraconstitucionais ou mesmo na ética.
Dado significativo dessa derrocada dos direitos fundamentais
é a criação da chamada sociedade de segurança, cujas origens remon-
tam à segunda metade do século XIX e que, segundo MÜMKEN,
rompe com dois elementos constitutivos da sociedade liberal resul-
tante da Revolução Francesa: a separação entre direito e moral e a res-
ponsabilidade individual. Esse rompimento é também incrementado
pelo paternalismo liberal, que é estendido às classes trabalhadoras e
aos pobres. Nesse processo, produz-se uma transformação do direito,
que em lugar de ter em vista as características da responsabilidade
individual, com todas as dificuldades que essa possa oferecer em face
da complexa vida de cada um, vem a tomá-la exclusivamente como
um princípio social regulativo. Nesse ponto, o indivíduo deixa de
existir como pessoa e é oferecido ao Estado como um objeto de suas
políticas. A desgraça do indivíduo funciona, então, da mesma forma
que a pobreza, como um mal que se intercala no sistema.143
Isso se deve ao neoliberalismo, entendido como uma raciona-
lidade, um modo de ver e atuar no mundo que percebe tudo e todos
como objetos negociáveis e que se caracteriza tanto pela ilimitação
quanto por adotar o modelo do “mercado” (e a “ideologia da con-
corrência”) como modelo de todas as relações sociais. É o que ocorre,
por exemplo, no neoliberalismo, em que a ausência de limites rígidos
ao exercício do poder, com a relativização dos direitos e garantias
fundamentais que dificultam a livre circulação de mercadorias, so-
ma-se à confusão entre o poder político e o poder econômico.
O Poder Judiciário, na pós-democracia, ao abandonar a fun-
ção de efetuar julgamentos direcionados à concretização dos direitos
e garantias fundamentais, torna-se mero homologador de interesses
políticos e/ou econômicos. Juízos acerca da legalidade ou ilegalidade
de atos, bem como decisões que antes eram pautadas pela adequação
143 MÜMKEN, Jürgen. Freiheit, Individualität und Subjektivität, Frankfurt am Main: Verlag
Edition AV, 2003, p. 126.
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 151

à Constituição da República, foram substituídos por juízos voltados


à satisfação de determinados grupos ou sujeitos, mesmo que em de-
trimento da maioria, em atenção aos interesses dos detentores do po-
der econômico. Passou-se a “julgar” sem os limites típicos do Estado
Democrático de Direito, sem a observância das “regras do jogo” que
distinguem as democracias dos regimes totalitários.
A própria ideia de “verdade” passa a ser vista como um obstá-
culo à ilimitação neoliberal. Instaura-se uma espécie de “vale-tudo”
probatório, uma vez que a certeza do julgador nasce junto com o
conhecimento da hipótese acusatória (“primado da hipótese sobre o
fato”). Nos julgamentos, a imparcialidade, entendida como equidis-
tância dos interesses em jogo, torna-se cada vez mais problemática,
isso porque o julgador não parte de uma “posição de não-saber”, mas
de uma certeza prévia à instrução. As figuras do acusador e do julga-
dor, não raro, passam a se confundir. Não há dialética, isso porque
o julgador já carrega uma certeza. Cria-se uma fantasia em torno do
“acusado”, sem qualquer compromisso com a faticidade. Fatos são
distorcidos, potencializados ou mesmo inventados: o importante é
chegar ao resultado desejado pelo julgador. O acontecimento, o fato
que se afirma querer julgar, e a análise racional da prova perdem
importância para a hipótese, carregada de certeza, previamente for-
mulada pelo acusador/julgador144 a partir de preconceitos, ressenti-
mento, inveja e, sobretudo, ódio.
Outro exemplo, tipicamente neoliberal, do afastamento do va-
lor “verdade” no ambiente do Sistema de Justiça é o dos deals, acordos
envolvendo as partes em um caso penal, nos quais a ideia de “consen-
so” substitui a de “verdade” à entrega da prestação jurisdicional.145 No
Brasil, os institutos da “colaboração premiada” e do “acordo de não-
-persecução” são exemplos de novos dispositivos estatais em que valo-
res como a “liberdade” e “verdade” são reduzidos a objetos negociáveis.

144 A essa figura, que funde as funções de acusar e julgar pode-se chamar “inquisidor”.
145 Sobre o tema: GARAPON, Antoine/ SERVAN-SCHREIBER, Pierre. Deals de justice. Pa-
ris: Puf, 2020.
152 PROVA E VERDADE

Diante das modificações observadas na sociedade, com clara


repercussão nos julgamentos, tanto profissionais quanto leigos, surge
uma hipótese: a função de julgar modificou-se nas últimas décadas a
partir da transformação do sujeito-julgador. De um julgador, típico
sujeito da modernidade, que mirava (ou, ao menos, se preocupava
em afirmar que buscava) a concretização de direitos a partir do res-
peito aos limites legais e éticos ao exercício do poder, a um sujeito
que exerce poder sem limites rígidos, o que acaba por ser instrumen-
tal aos interesses dos detentores do poder político e/ou econômico.
Pode-se, portanto, perceber a substituição do julgador marcado pelo
simbólico, pelo limite inscrito na subjetividade, pelo julgador em que
o imaginário procura dar conta do laço social. No lugar do respeito
a uma lei externa, a criação de uma “norma” a partir das imagens
do julgador acerca do que deve ser “justo”. Há, portanto, uma nova
economia psíquica que gera um novo mal-estar, que, como o antigo
mal-estar denunciado por FREUD, também diz respeito à relação
entre as pessoas, aos discursos e modos-de-ser no mundo da vida.
Há, apenas para citar um exemplo dessa mudança, um distan-
ciamento inédito entre o funcionamento social e o funcionamen-
to da pequena família.146 Os componentes da pequena família (pai,
mães e irmãos) fecham-se e desconfiam daqueles que não integram
esse núcleo familiar. Gera-se um antagonismo em relação ao social,
antagonismo potencializado por questões de classes, de gênero, ori-
gem, raça, cor da pele, dentre outras, a ponto de se transformar, em
determinadas circunstâncias, em ódio. Esse antagonismo vai produ-
zir efeitos nos julgamentos penais. Conforme as demais pessoas se
distanciam do “ideal de eu”, dessa construção imaginária que marca
o sujeito, aumenta a desconfiança de que esses outros (em última
análise, o restante da civilização) são os responsáveis pelo gozo a me-
nos, pelas restrições e pelo que falta a cada um. As frustrações de
cada um passam a ser de responsabilidade do outro, um outro mui-

146 Nesse sentido: FLEIG, Mario. Apresentação, in LEBRUN, Jean-Pierre. O mal-estar na sub-
jetivação. Porto Alegre: CMC, 2010, p. 6.
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 153

tas vezes indefinido. O ódio, que nasce da presença do outro, se faz


presente até quando o outro se ausenta, isso porque o que conta é
o imaginário, mais precisamente a imagem de um outro que atin-
giu, atinge ou pode atingir o sujeito. Existe o ódio porque existe a
linguagem, existe a linguagem porque existe um terceiro. O ódio é,
antes mesmo de atingir qualquer objeto, direcionado ao simbólico,
ao espaço da alteridade. Liga-se ao que a psicanálise identifica com
o “furo no imaginário”, mais precisamente a furo que se localiza na
consciência narcísica.
O que teria produzido essa transformação do sujeito-julgador?
A resposta mais crível, a partir de LACAN, é a de que foi o sucesso
do capitalismo. O capitalismo consumiu o sujeito da modernidade, o
sujeito anunciado por DESCARTES e descrito por KANT, FREUD
e MARX. O sujeito moderno, e com ele o antigo sujeito-julgador,
começou a desaparecer no momento em que a lógica capitalista subs-
tituiu, sem enfrentar resistência, o antigo escravo por pessoas redu-
zidas ao estado de mercadorias, pessoas tratadas como produtos147 e,
portanto, “consumíveis tanto como os outros”.148 Os julgamentos
podem ser tidos como verdadeiros sintomas e, como todo sintoma,
mudam de acordo com o discurso dominante na civilização. O capi-
talismo, com a hegemonia do discurso do capitalista, produziu um
novo tipo de julgamento, um julgamento sem Lei, um julgamento “a
céu aberto”, no qual o imaginário do julgador substitui a lei e a preo-
cupação com a valoração adequada das provas. Diante da ausência de
“lei”, não internalizada, o novo sujeito-julgador cria uma “lei”, que
ele mesmo encarna, voltado a dominar o outro, tratado como objeto/
mercadoria. DUFOUR aponta que o capitalismo, após consumir os
corpos (a noção de “corpos produtivos” é, nesse sentido, exemplar),
passou a consumir os espíritos. Como se o pleno desenvolvimen-
to da razão instrumental (a técnica), permitido pelo capitalismo, se
consolidasse por um déficit da razão pura (a faculdade de julgar a
147 Nesse sentido: DUFOUR, Dany-Robert. A arte de reduzir cabeças: sobre a nova servidão na
sociedade ultraliberal, Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005, p. 9.
148 LACAN, Jacques. O avesso da psicanálise, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.
154 PROVA E VERDADE

priori quanto ao que se é verdadeiro ou falso, inclusive bem ou mal).


É precisamente esse traço que nos parece propriamente caracterizar
a virada dita ‘pós-moderna’: o momento em que uma parte da inte-
ligência do capitalismo se pôs a serviço da ‘redução de cabeças’. 149
A partir da diminuição de importância tanto da pessoa, que
cada vez mais desaparece diante do valor “mercadoria”, quanto da
“verdade”, as explicações forjadas na modernidade, que procuravam
dar conta de um mundo em que o ser humano não mais seria ins-
trumentalizado, de um mundo em que a pessoa seria o centro de
referência para todos os fenômenos, se tornaram obsoletas. Na atual
quadra histórica, em que as pessoas são tratadas como objetos e a
verdade acaba cada vez mais relativizada, as formas filosóficas pen-
sadas na modernidade para explicar o sujeito, se ainda não foram
abandonadas, são utilizadas de forma cínica. Só o cinismo e a per-
versão se mostram compatíveis com a forma como o outro é tratado
na pós-modernidade, na pós-democracia. O sujeito crítico kantia-
no (que surge nos anos 1800), o sujeito revolucionário marxiano (o
Manifesto Comunista foi publicado em 1848) e o sujeito neurótico
freudiano (nascido nos anos 1900) não explicam o sujeito egoísta,
despreocupado com o laço social, que se caracteriza por consumir
acriticamente e agir sem limites. Da mesma forma, o sujeito-julga-
dor, que refletia, tinha dúvidas e procurava a verdade para decidir de
modo a criar um mundo melhor para todos, caminha para a extinção,
substituído que foi por um juiz narcisista, tendente ao ódio, acríti-
co, repleto de certezas e sem limites (um sujeito-julgador narcisista,
acrítico e, na melhor das hipóteses, perverso, quando não psicótico).
Pode-se afirmar que as garantias absolutas e metassociais das
relações humanas, em especial das trocas, tornaram-se desnecessá-
rias.150 Valores transcendentais ou morais, os grandes Sujeitos (Deus,
Revolução, Verdade etc.) e as grandes narrativas, por dificultarem a
livre circulação de mercadorias, precisaram ser reelaborados, abando-

149 DUFOUR, Dany-Robert. Nota 147, p. 10.


150 DUFOUR, Dany-Robert. Nota 147, p. 10.
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 155

nados ou destruídos. Na lição de GAUCHET, os atores sociais “se


querem desligados e sem nada acima deles que impeça a maximiza-
ção de seus empreendimentos”.151
Um mundo em que as pessoas não têm limites e em que, ao
contrário do que poderia se imaginar, os indivíduos não são livres,
ou melhor, são levados a acreditar que a liberdade se resume à pos-
sibilidade de consumir qualquer coisa, sem limites, inclusive a eles
próprios. Ao se perder a perspectiva crítica, não se sabe mais o que
é o “bem”152 ou o “verdadeiro”. Por um lado, um esvaziamento do
simbólico, com a progressiva perda dos limites e dos valores com-
partilhados que davam sentido e permitiam a vida em sociedade, já
que hoje todos esses valores acabaram substituídos ou são tratados
como se fossem objetos descartáveis, do outro, uma modificação do
imaginário, da imagem que se tem de si e dos outros, no qual a
imagem-de-si passa a se identificar com a única lei a ser reconheci-
da. Identificação que só é possível em um ambiente de esvaziamento
da linguagem, no qual se dá tanto a rejeição categórica, embora in-
consciente, da tradição e dos valores construídos ao longo do tempo,
quanto uma percepção afetivamente insensível do outro.
A lógica neoliberal, de sempre buscar o lucro custe o que cus-
tar, fez com que todo valor atribuído às figuras transcendentes, fora
do comércio, desaparecesse. Só tem valor o que pode ser negociado,
o que pode gerar lucro. O valor simbólico, com toda a sua comple-
xidade, é substituído pelo mero valor monetário atribuído às mer-
cadorias, “de tal forma que nada mais, nenhuma outra consideração
(moral, tradicional, transcendente, transcendental...) possa entravar
sua livre circulação. Daí resulta uma dessimbolização do mundo”,153
na qual as pessoas deixam de estar de acordo sobre os valores simbó-
licos transcendentes ao mesmo tempo em que aderem, sem reflexão,
ao projeto de ampliação infinita da circulação das mercadorias.
151 GAUCHET, Marcel. La démocratie contre elle-même. Paris: Gallimard, p. XXV.
152 Nesse sentido: ROGOZINSKI, Jacob. Le don de la loi, Kant et le’énigme de l’éthique.
Paris: PUF, 1999.
153 DUFOUR, Dany-Robert. Nota 147, p. 13.
156 PROVA E VERDADE

Essa dessimbolização, que alguns preferem chamar de muta-


ção do simbólico, traz modificações sensíveis na posição do julgador.
Quanto menos limites tiver e mais “livre” (e acrítico) for o julgador,
quanto mais esvaziada a linguagem, maior a possibilidade de que as
decisões produzam arbítrios. O esvaziamento da linguagem leva a
distorções nos julgamentos. Ao desaparecer o justo a priori, quando
sequer os limites semânticos da Constituição da República, que de-
veria simbolizar o fundamento de validade de todos os atos estatais,
são respeitados pelos membros do Poder Judiciário, o acerto/justi-
ça do julgamento passa a depender do imaginário do julgador. Um
imaginário autoritário produz decisões autoritárias, fundada na mera
autoridade e em descompasso com os direitos e garantias fundamen-
tais. O imaginário democrático, por sua vez, exige limites que cada
vez mais estão ausentes do mundo. 154
No plano da aplicação do direito, a Constituição da República
deixou de ser cumprida, ou mesmo violada em um caso concreto,
para ser simplesmente “relativizada”, eufemismo utilizado para signi-
ficar que se tornou recusável, sempre podendo ser afastada a depen-
der do julgador. Como toda figura transcendente, a Constituição da
República tornou-se negociável, segundo a lógica das mercadorias,
que são trocadas ou se tornam inúteis de acordo com o seu estrito
valor de mercadoria. O esvaziamento da linguagem, consequência
necessária da dessimbolização, afeta a qualquer discurso e a qualquer
julgamento. O discurso do capitalista, vislumbrado por LACAN e
que se tornou hegemônico, não faz laço social, uma vez que é dirigi-
do não às pessoas, mas a objetos: tanto a objetos tratados como mer-
cadorias, quanto a pessoas tratadas como objetos. Diante do impera-
tivo “consuma!”, o sujeito, que ocupa uma posição de dominado, faz
nexo com objetos e não com pessoas.
Nasce, portanto, em razão do excesso de capitalismo, do suces-
so do capitalismo na sua forma neoliberal, uma nova subjetividade,

154 Por todos: LEBRUN, Jean-Pierre. Um mundo sem limites, Rio de Janeiro: Companhia de
Freud, 1995.
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 157

uma nova economia psíquica. Um sujeito forjado a partir da merca-


doria, que existe e só se justifica em razão da mercadoria. Um sujeito
que é lançado no mundo para consumir e ser consumido pelo mer-
cado. Esse novo sujeito, essa nova economia psíquica construída para
atender ao projeto neoliberal de criar o desejo de consumo ilimitado
do indivíduo como forma de aumentar os lucros dos detentores do
poder econômico, impôs-se da constatação da inconveniência do su-
jeito crítico, para o qual nem tudo é negociável (vale lembrar que na
Metafísica dos costumes, KANT já esclarecia que existe o que não
tem preço ou equivalente, o que é pura dignidade). Um sujeito que
não se deixa levar pelas promessas de felicidade do mercado não serve
ao projeto neoliberal. De igual sorte, o sujeito revolucionário marxia-
no, marcado pela solidariedade, pela formação dialética e portador de
um projeto de transformação social, não interessa ao neoliberalismo.
Na ideologia neoliberal se defende a busca da satisfação individual
mesmo que as custas da felicidade da maioria. Não há espaço para
projetos coletivos ou para sujeitos preocupados com a construção de
um outro mundo possível. Se para o sujeito marxiano, a felicidade
estava ligada à libertação de todas as formas de dominação, no neoli-
beralismo se dá a redução tanto da ideia de felicidade à dimensão de
apropriação de mercadorias quanto da ideia de liberdade à de con-
sumo. Por fim, com MELMAN e LEBRUN, pode-se constatar que
se deu a passagem de uma economia psíquica fundada no recalque
e, portanto, na neurose (que gerava o homem neurótico freudiano)
para uma economia psíquica fundada em uma cultura que desconsi-
dera limites e, portanto, produz sujeitos perversos (que “desmentem”
os limites), quando não psicóticos (que não possuem limites).155Essa
mesma economia psíquica, avessa à crítica, às preocupações sociais e
aos limites, leva a uma nova espécie de sujeito-julgador. Um julgador
adequado à racionalidade neoliberal e ao Estado pós-democrático.

155 Nesse sentido: MELMAN, Charles; LEBRUN, Jean-Pierre. O homem sem gravidade: go-
zar a qualquer preço, Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004.
22. CONCLUSÕES

1. A prova no processo se destina a informar o julgador acerca


da validade do enunciado proposto na acusação ou no pedido de
prestação jurisdicional.
2. A prova se destina a evidenciar as alegações sobre fatos.
Constituem, assim, objeto de prova, os enunciados e os fatos que lhe
correspondem.
3. Não são objeto de prova os fatos impertinentes, irrelevantes
e notórios e os que se inserem no âmbito da proibição da prova e na
proibição de sua apreciação.
4. São meios de prova, segundo o Código Penal de Processo
Penal, os exames de corpo de delito e perícias (art. 158 a 184), a
confissão (art. 197 a 200), as perguntas ao ofendido (art. 201), as tes-
temunhas (art. 202 a 225), o reconhecimento de pessoas e coisas (art.
226 a 228), a acareação (art. 229 e 230), os documentos (art. 231 a
238), os indícios (art. 239) e a busca e apreensão (art. 240 a 250).
5. A relevância dos meios de prova reside precisamente na verifi-
cação das condições de sua legitimidade. Para que seja legítimo, o meio
de prova tem que obedecer aos preceitos instituídos nos respectivos
códigos de processo. Nenhum meio de prova é absoluto. A prova deve
resultar da coerência de sua apreensão no decorrer do procedimento.
Isso vale para todos os meios de prova. Uma vez não observadas as
condições de sua realização, a prova será ilegítima. São ademais incons-
titucionais os dispositivos legais que autorizam a escuta ambiental, sem
o consentimento dos afetados, bem como os que regulam a infiltração
de agentes em organizações criminosas, por violação, respectivamente,
dos arts. 5º, X, XI e XII e 37, da Constituição da República.
6. O Código de Processo Penal insere a exigência de que nos
crimes que deixam vestígio é indispensável o exame do corpo de de-
160 PROVA E VERDADE

lito, não o suprindo a confissão do acusado (art. 158). Infração que


deixa vestígio é aquela que contém um elemento empírico cuja exis-
tência ou configuração só possa ser atestada por um corpo técnico e
não simplesmente por decisão ou convicção do julgador ou mesmo
da observação de terceiros.
7. Há alguns crimes que suscitam dúvidas a respeito da existên-
cia do vestígio, mas podem ser comprovados sem o exame do corpo
de delito. São crimes nos quais a alteração da realidade empírica é me-
ramente cognitiva, não é substancial, ou seja, não diz respeito à exis-
tência ou inexistência de um elemento material do qual ela depende.
8. Em relação à prova pericial, pode-se seguir a regra do direi-
to americano, que a partir do caso Frye versus United States firmou
o entendimento de que o laudo deve ser avaliado de conformidade
com a “aceitação da comunidade científica relevante”.
9. Em face da falibilidade probatória, pode-se aceitar as con-
clusões assentadas no caso Daubert versus Merrell Dow Inc. De con-
formidade com esses critérios, o laudo será cientificamente válido
se: a) puder ser submetido à prova; b) tiver sido submetido à dis-
cussão pelos seus pares e publicado; c) for conhecida a taxa de erro;
d) há modelos de controle científico para os enunciados; e) o enun-
ciado deve ter um grau significativo de aceitação pela comunidade
científica.
10. Com a superação do sistema legal, as espécies de prova
são, hoje, expressas pelos meios de prova legalmente admitidos, cada
qual avaliado de conformidade em sua relação com os demais. Assim,
nenhuma espécie de prova é absoluta e tem prevalência sobre outras.
Sua relevância depende da especificidade de seu objeto.
11. Há uma tendência atual de se utilizar o teorema de BAYES
para respaldar o valor dos indícios. O emprego desse teorema, po-
rém, pode conduzir a resultados nitidamente subjetivos, o que impli-
ca sua rejeição nos sistemas jurídicos que, como o brasileiro, exigem
uma fundamentação objetiva dos resultados.
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 161

12. A valoração da prova depende também da qualidade dos


meios de prova e de suas características. A prova pericial ou a prova
indiciária está mais aproximada de um juízo de probabilidade; a pro-
va testemunhal, a um juízo de credibilidade.
13. O procedimento de valoração da prova se desenvolve em
duas fases: uma fase cognitiva e uma fase discursiva. A fase cogniti-
va está fundada nos critérios de probabilidade; a fase discursiva tem
como objetivo subordinar os critérios probabilísticos aos princípios
de valor da ordem jurídica, de tal modo que se possa emprestar à
conclusão uma pretensão de validade, ou seja, de que possa ser aco-
lhida por todos, que adquira, portanto, um grau de universalidade.
14. No processo civil, é aceitável um índice de probabilidade
acima de 0,5. No processo penal, por força do princípio da presunção
de inocência, o índice deve ser de alta probabilidade, ou seja, de 0,9.
15. O processo, ao contrário da opinião tradicional, não se
destina a alcançar a verdade real. Como a prova no âmbito judicial
está submetida a limitações e, mesmo no plano empírico, é sempre
contingente, a busca dessa verdade real é meramente simbólica, nada
valendo como argumentação jurídica. Pode-se dizer, então, que a
prova é o instrumento de busca da verdade possível e juridicamente
admissível no processo.
16. São inadmissíveis no processo as provas ilícitas, inclusive
as provas daí derivadas, não se podendo admitir, em face da norma
constitucional, a exceção contida no Código de Processo Penal (art.
157, § 1º).
17. A verdade, geralmente, é compreendida como o resultado
da correspondência entre enunciado e fato (teoria da correspondên-
cia). Em face das dificuldades da teoria da correspondência, a ciência
moderna, ainda que a tenha como ponto de apoio de suas proposi-
ções, complementa-se com as teorias da relevância e da coerência.
18. Na atualidade, pode-se dizer que a verdade deve ser deter-
minada mediante um processo de ajuste entre as teorias da corres-
162 PROVA E VERDADE

pondência, da relevância e da coerência, traduzido em um discurso


no qual se possam estabelecer cláusulas que atestem sua validade.
19. A adoção da teoria da correspondência vincula o enuncia-
do ao fato empírico, a fim de não permitir devaneios ou ficções. A
remissão à teoria da coerência, por seu turno, faz com que o enuncia-
do ganhe legitimidade e possa ser justificado.
20. A conclusão final acerca da verdade resulta de um ato
discursivo, que deverá ser submetido a regras de validade. Nesse sen-
tido, a busca da verdade, em um Estado democrático de direito, tem
suas limitações no próprio ordenamento jurídico. Assim, no Brasil,
os códigos processuais, civil e penal, dispõem justamente acerca da
validade da prova da verdade, que deverá seguir um trâmite que não
cause surpresa às partes (livre acesso), que amplie sua participação
no discurso relacionado ao seu enunciado (contraditório), que seja
adequada e idônea ao fato que se quer provar e que não seja obtida
por meios ilícitos. A busca da verdade não é, assim, orientada para
a obtenção da verdade substancial, mas apenas da verdade admitida
pela normatividade constitucional.
ÍNDICE REMISSIVO

A CALAMANDREI 97, 169


CANOTILHO 104, 169
Acordo de não-persecução 151 Capitalismo 153, 154, 156
adequatio intellectus ad rem 123 Captação ambiental 69, 70, 72, 73
Admissibilidade da prova documental 50 CARVALHO 102, 169
Agente de polícia 75 Caso Daubert 34, 35, 36, 56, 160
Agente encoberto 75, 76, 79 Causalidade 36
Agente infiltrado 75, 76, 77, 78, 79 Causas de exculpação 76
Agentes provocadores 76 Centauro 114
ANDROULAKIS 57, 169 Certeza 18, 20, 35, 52, 58, 59, 81, 103,
ARISTÓTELES 123, 124, 144 146, 151
Art. 5º, LVI, da Constituição 61 Code dInstruction Criminelle de 1808 109
Art. 157, do CPP 62 Código de Hamurabi 40
Art. 212 do CPP 28 Colaboração premiada 151
Art. 386, V e VII, CPP 54 Conceito de verdade 113, 114, 115,
Arts. 202 a 225 do CPP 54 116, 117, 118, 133, 134, 135,
Ato ilocucionário assertivo 32 138
Atos performáticos 123 Confissão 24, 27, 28, 32, 40, 94, 148,
AURY LOPES JÚNIOR 93 159, 160
AUSTIN 120, 123, 126, 169 confissão extrajudicial 24
Avaliação da prova 22, 56, 57, 61 Confissão extrajudicial 24
Constituição da República 20, 52, 73,
B 78, 85, 95, 150, 151, 156, 159
Constitutio Criminalis Carolina 40
Bancos de dados 78
Controle epistêmico 36, 56
BECK 146, 170
Convenção Americana de Direitos Hu-
BLANSHARD 127, 128, 169
manos 101
BÖCKENFÖRDE 90
Corpo de delito 32
BORNHOLDT 146, 170
Corte Constitucional da Alemanha 70,
BRADLEY 128, 129, 130, 169
72, 87, 90
BUENO DE CARVALHO 102
COUTINHO 96, 105, 110, 169
Busca da verdade 20, 21, 39, 47, 51, 52,
Critérios de verdades 118
53, 54, 56, 66, 123, 138, 139,
Critérios empíricos 57
141, 142, 144, 147, 161, 162
Critérios lógicos 57
Busca e apreensão 27, 55, 62, 63, 66,
Culpabilidade 54, 59, 76, 99, 101, 102,
67, 159
103, 104
C D
Cadeia de custódia 56, 81, 82, 83
DAVIDSON 124, 125, 169
164 PROVA E VERDADE

Declaração de Direitos do Homem e do FIGUEIREDO DIAS 98


Cidadão de 1789 90 FISCHER 91
Declaração Universal dos Direitos do FLEIG 152, 170
Homem 95 FOUCAULT 111, 170
Defesa social 92 FREGE 113, 170
Deficiência de prova 54 FREUD 152, 153
DESCARTES 153 Frutos da árvore envenenada 63
Descoberta eventual de provas 63
Determinação da verdade 141 G
Devido processo legal substancial 85
DIAS DOS SANTOS 89, 173 GADAMER 115, 170
Dignidade humana 53, 65, 70, 71, 72 Garantias procedimentais 107
Dignidade sexual 76 GARAPON 151, 170
Dimensão probatória 52, 59, 103, 104 GAUCHET 155, 170
disputatio 97 Gestão da prova 108, 110, 112
DUBBE 146, 170 GLOY 132, 133, 134, 135, 136, 137,
DUFOUR 153, 154, 155, 170 170
GONZALES-CUELLAR SERRANO
E 90, 170
Grau de probabilidade 41, 58, 146
EDER 53, 170 Gravação ambiental 69, 71
Erro zero 35 GRECO 96, 170
Escola de Erlangen 131, 132 GUERRERO PALOMARES 111, 170
Escuta ambiental 53, 71, 159
Espécies de prova 39, 40, 41, 160 H
Estado Democrático de Direito 20, 21,
61, 85, 86, 96, 149, 151 HAACK 59, 170
Evidência da experiência 134 HABERMAS 133, 134, 135, 136, 143,
Evolução da família 147, 170
HEGEL 128, 129, 170
e prova 39
HERZOG 59
Experiências artificiais 72
HUSSERL 116, 171
F I
Falibilidade probatória 34, 160
Ilicitude 19, 61, 62, 63, 76, 104
Fato presumido 24
imparcialidade do perito 34
Fato pretérito 78
Indícios 25, 27, 41, 43, 72, 103, 128,
fatos impertinentes 23
159, 160
Fatos impertinentes 23
Infração que deixa vestígio 32, 160
Fatos irrelevantes 23
Inquisidor 107, 151
fatos notórios 24
Interceptação ambiental 69, 71, 72, 73
Fatos notórios 24
Interrupção da gravidez 90
FERRAJOLI 51, 86, 101, 106, 107,
Investigações policiais 65, 66
125, 170
irrelevantes 23
FERROLL 41, 43, 170
Fiabilidade da prova. 82
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 165

J MEYER-GOßNER/SCHMITT 53, 171


Ministério Público 53, 67, 77, 82, 98,
JÄGER 53 103
Juiz imparcial 96 MIRANDA COUTINHO 96, 105, 110
JULIO MAIER 21 Modelo do mercado 150
Júri 46 Momentos da prova 49, 50, 81, 102,
107, 111
K MOSCATO DE SANTAMARIA 75
MÜMKEN 150, 171
KAMLAH 132
KANT 153, 157
KIRKHAM 119, 120, 130, 171
N
KUNO LORENZ 132 Natureza jurídica da prova 95
nemo tenetur 28
L Neoliberalismo 150, 157
Neoliberalismo e verdade 149
LACAN 153, 156, 171
Laudo 33, 34, 35, 143, 144, 145, 160
LEBRUN 152, 156, 157, 170, 171
O
LEIBNIZ 143, 171 objeto da prova 23
Lei geral da causalidade 36, 37 Objeto da prova 23
Lei nº 8.069/90 75, 78 Objeto imaginário 116
Lei nº 9.034/95 69, 72 Objetos da experiência 134
Lei nº 9.296/96, 69 Objetos empíricos 113, 131
Lei nº 13.964/2019 69, 72, 75, 81 OLIVEIRA 65, 102, 171
Ley de Siete Partidas 40 Operação de infiltração 77
limitações da prova 21 Ordálias 45
Limitações da prova
significado 21 P
Limites da busca da verdade 147
Linguagem 106, 123, 125, 129, 133, PAGANO 109
134, 135, 136, 153, 155, 156 PARDO 57, 58, 172
LORENZEN 132 Paridade de armas 97, 98
Pesquisa científica 64, 65
M PICARDI 95, 172
Poder ilocucionário 133
MAHRENHOLZ 90 Poder Judiciário 149, 150, 156
MARCOS BARBOSA DE OLIVEIRA Pós-democracia 150, 154
64 PRADO 18, 23, 52, 56, 81, 106, 172
MARQUES DA SILVA, 104 presumido 24
MARX 153 Presunção de inocência 20, 22, 24, 27,
meios de prova 23, 27, 41, 45, 46, 51, 28, 52, 58, 59, 98, 101, 102,
54, 56, 77, 159, 160, 161 103, 104, 149, 161
Meios de prova 27 Pretensão de fundamentação 131
MELMAN 157, 171 Pretensão de necessidade 131
Métodos ocultos de investigação 82 Pretensão de validade 20, 56, 114, 115,
166 PROVA E VERDADE

118, 131, 132, 133, 134, 135, R


136, 137, 138, 143, 144, 147,
148, 161 RAMSAY 122, 172
Pretensão dialógica 131, 132 Receita Federal 62
Princípio acusatório 109, 111, 170 Relações complexas 127
Princípio da avaliação 87 Requisito da imprescindibilidade 77
Princípio da idoneidade 24, 87 Reserva de jurisdição 69, 76
Princípio da necessidade 76, 87, 88, 89, Reserva legal proporcional 85
101 Revolução Francesa 150
Princípio da proporcionalidade 76, 77, 85, ROGOZINSKI 155, 172
86, 87, 89, 90, 91, 92, 96, 169 ROXIN 25
Princípio da Razoabilidade 91 RUSSELL 125, 126, 127, 144, 145, 172
Princípio do contraditório 95, 96, 99,
170 S
Princípio do livre convencimento moti-
SANCHEZ 98, 172
vado 51
SANTOS 87, 89, 172
Princípio inquisitivo 107, 108, 109
SCHLICK 131, 172
Princípio inquisitório 110, 111
SCHNÄDELBACH 141, 172
Procedimento probatório 49, 50, 69, 81
SCHÖNDORF 117, 130, 172
Processo prova produzida em outro
SEARLE 32, 120, 172
processo 93
Serendipidade 63, 64, 65, 66, 67
Processos causais e não-causais 37
SERVAN-SCHREIBER 151, 170
Produção probatória 49
SHAW 30, 31, 32, 172
Proibição da prova 53, 54, 159
SILVA JARDIM 104
Proibição de excesso 90
Sinais acústicos 69, 70
Proibição de proteção deficiente 90
Sinais eletromagnéticos 69
Projeto deflacionário 138, 139
Sinais ópticos 69, 70
Projeto de justificação 120
Sistema acusatório 49, 103, 107, 109,
Projeto dos atos de fala 120
110, 111, 112
Projeto metafísico 133, 134, 138, 141
Sistema inquisitorial 107, 108, 109,
Projeto substancialista 119
110, 111
Proporcionalidade probatória 85
Sistema legal de prova 41
Prova de ensaio 71
Sistema misto 109, 110
Prova derivada 63
Sistemas processuais 105
Prova e contraditório 95
SOMMER 90
Prova emprestada 93
SOUZA NETTO 92
Prova e presunção de inocência 101
SUANNES 108, 172
Prova ilícita 19, 61, 62, 63, 83, 92, 94
Prova irrelevante 57
Prova jurídica
T
conceito 17 TARSKI 120, 121, 122, 123, 135
prova pericial 33, 41, 54, 160, 161 TARUFFO 34, 35, 36, 46, 47, 173
Prova tarifada 51 Teorema de BAYES 41, 42, 160
Prova testemunhal 28, 32, 40, 41, 54, Teoria da correspondência 123, 124,
56, 93, 148, 161 125, 126, 127, 131, 132, 133,
JUAREZ TAVARES & RUBENS CASARA 167

135, 138, 141, 143, 161, 162


Teoria dialógica 131, 132
Teoria do discurso 131, 133, 137, 138
Teorias da verdade 117, 118, 119, 141
Teoria semântica de verdade 120
Teorias epistêmicas 127, 141
TOLEDO BARROS 86
TOMÁS DE AQUINO 46
TORNAGHI 109, 173

V
Valoração da prova 49, 51, 53, 56, 60,
161
VANNEVAR BUSH 64
VEGAS TORRES 102
Voz das ruas 46

W
WEICHBRODT 54, 173

Z
ZAFFARONI 89, 173
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A compreensão da democracia como um horizonte que
aponta para uma sociedade autônoma construída a partir de
deliberações coletivas, com efetiva participação popular na
tomada das decisões políticas e ações voltadas à concretiza-
ção dos direitos e garantias fundamentais, permite identificar
que, não raro, o Sistema de Justiça reforça valores contrários
à soberania popular e ao respeito aos direitos e garantias
fundamentais, que deveriam servir de obstáculos ao arbítrio,
à opressão e aos projetos políticos autoritários. Nos últimos
anos, para dar respostas (ainda que meramente formais ou
simbólicas) às crescentes demandas dos cidadãos (perce-
bidos como meros consumidores), controlar os indesejáveis
aos olhos dos detentores do poder econômico, satisfazer
desejos incompatíveis com as “regras do jogo democrático”
ou mesmo atender a pactos entre os detentores do poder
político, o Poder Judiciário e o Ministério Público têm recor-
rido a uma concepção política antidemocrática, forjada tanto
a partir da tradição autoritária em que a sociedade brasilei-
ra está lançada quanto da racionalidade neoliberal, que faz
com que ora se utilize de expedientes “técnicos” para des-
contextualizar conflitos e sonegar direitos, ora se recorra ao
patrimônio gestado nos períodos autoritários da história do
Brasil na tentativa de atender aos objetivos do projeto neo-
liberal. Impossível, portanto, ignorar a função do Sistema de
Justiça na crise da democracia liberal. Uma crise que passa
pela colonização da democracia e do direito pelo mercado,
com a erosão dos valores democráticos da soberania popu-
lar e do respeito aos direitos fundamentais.

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