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PUNDAÇAO PARA O DISINVOLVIMIINTO DA UNILSP ade

Pruldente do Comelho Cuador

(ur
d
Arthur Roqucte de Macedo
Dimlor-Preuhdente
Amilton Perreira GILLES GASTroy CkkNGEn*
Diriora de Fomento d Puquina
Hermlone Rlly Melara de Campos Bicudo
Dimior de Publionges wmaad
Jose Castilho Marques Neto

EDITORA UNESP
Diretor

A CIÊNCIA E
José Castilho Marques Neto

Comselbo Editorial Academico AS


Aguinaldo José Gonçalves
Anna Maria Martinez Corrêa
Antonio Carlos Massabni
CIENCIAS
Antonio Celso Wagner Zanin
Antonio Manoel dos Santos Silva
Carlos Erivany Fantinati
Fausto Foresti
José Ribeiro Júnior
Roberto Kraenkel
TRADUÇÃO
Editors Asistentes
ROBERTO LEAL FERREIRA
José Aluysio Reis de Andrade
Maria Apparecida F. M. Bussolotti
Tulio Y. Kawata

UNESP
Pundacão parao
Desemcvimento
da UNESP
84 id ade Católic
nive
descrição dos objetos, a que chamamos a "categoria" do .
eGrauagão
objeto.
Vemos, assim, o conhecimento científico dos fatos fisi-
cos e biológicos organizarem-se necessariamente em siste-
fós
rEDPaulo
mas teóricos, estruturados graças às formas possíveis cons-
5 'o
São
truídas pelas matemáticas, e fazerem frente aos controles
renovados da experiência.
CIÊNCIAS DA NaTUREZA
E CIÊNCIAS DO HOMEM

Num dos capítulos anteriores, partimos da oposição e


da complementaridade entre as matemáticas, ciências "for-
mais", e as ciências bascadas na experiência, para cxaminar-
mos a divcrsidade de seus objctos e de seus métodos. Parti-
remos agora de uma outra oposição, no interior das próprias
ciências da empiria: a oposição existente entre as ciências da
natureza e as ciências dos fatos humanos, para caracterizar-
mos estas últimas.

Aplicar o qualificativo de "ciências" ao conhecimento


dos fatos humanos será, aliás, considerado por alguns como
um abuso de linguagem. E bastante claro, realmente, que
os saberes sociológicos ou psicológicos, econômicos ou lin-
güísticos não podem pretender, em seu estado presente e
passado, ter a solidez e a fecundidade dos saberes fisico-quí-
micos, ou até biológicos. Em que sentido, porém, é lícito
atribuir-lhes o nome de ciências?
O obstáculo fundamental está, evidentemente, na na-
tureza dos fenômenos de comportamento humano, que
carregam uma carga de significasões que se opõcm a sua
transformação simples em objetos, ou seja, em esquemas
abstratos lógica e matematicamente manipuláveis. Vêm
dessa dificuldade todas as características cientificamente
negativas dos fatos humanos, e em especial seus clementos
de liberdade e de imprevisibilidade, assim como a estreita
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associação apresentada por eles entre o positivo c o norma- tão concretos quanto possível, mas também a inseri-los em
tivo, entreo realizadoeo desejável. Um sentimento, uma sistemas conceituais que poderiam dar, conforme a expres-
reação coletiva, um fato de língua parece que dificilmente são de Pascal, "a razão dos cfeitos". Daí decorre a dificuldade
podem reduzir-se a tais esquemas abstratos. Assim, a ques- de se traçar a fronteira entre um saber propriamente histó-

é
tão não reduzi-los, e sim representá-los, ainda que parcial- rico e alguns saberes sociológicos, por exemplo. Em com-
pensação, os fatos estabelecidos, senão explicados, pela his-
mente, em sistemas de conceitos.
tória constituem, evidentemente, um dos principais mate-
riais das outras ciências humanas.
I. O caso limite da história
IL. Conceitualização e observação
1. Ora, este aspecto dos fatos humanos é assumido e
explorado pela disciplina muito particular que é a história.
Scria inaceitável recusar integrar a história sob suas diversas 1. Assim, é o estatuto dessas outras disciplinas quc
formas nas ciências humanas. Seus métodos de conhecimen- devemos examinar. Sua dclimitação, como, aliás, a das
ciências da naturcza, não é absolutamentc imutávcl, c a
to, que se rcferem ao estabelecimento, ao controle, à inter-
pretação dos vestígios e dos testemunhos, estão sujeitos a história dessas ciências nos mostra que a distribuição cntre
regras do mesmo tipo que aquelas a que se submetem as objeto político, objeto econômico e objeto psiquíco indivi-
observações e as experimentações nas ciências da natureza. dual, que correspondc aproximadamente às primciras cxpo-
sições filosófico-cicntificas de Aristóteles, por cxemplo, foi
Acontece que o objetivo último do conhecimento his-
tórico não é, como no caso das ciências da natureza, formar constantemente transgredida para dar lugar a redistribui-
çoes que criaram disciplinas intermediárias ou dissociatam
modelos abstratos dos fatos, fatos virtuais, como observa-
certas árcas: psicossociologia, sociolingüística, etnologia,
mos, cuja cstrutura matemática dá lugar à confrontação de
diversos possíveis c à sclegão das realizaçõcs previsívcis. O antropologia etc. Não vamos comentar essa evolução da
delimitação dos fatos humanos em objetos de ciência. No
historiador visa diretamente a fatos concretos que precisa
descrever, de sorte que o extremo limite de sua arte seria entanto, para fixar as idéias do leitor, proporei alguns
exemplos de enunciados relacionados a uma ou outra das
reproduzir tão exatamente quanto possível esses fatos con-
principais disciplinas assim divididas. Estas citações scrāo
cretos. E por isso que o objeto histórico ésempre, de alguma
aqui acompanhadas do nome de um autor: primciro sinal
maneira, um indivíduo, ou seja, tende a representar uma
do caráter ainda pouco generalizávcl dos resultados alcan-
realidade singular e naturalmente determinada, num con-
çados.
texto único de espaço e de tempo. O ideal absoluto da
história enquanto pura história seria finalmente o romance a) Freud: "O resultado mais importante a que chegamos
verdadeiro. num tal prosseguimento conseqücnte da análise ć o seguin-
te: seja qual for o sintoma de que partimos, sempre, infali-
2. Mas vê-se claramente que essa figura ideal do conhe- velmente, chegamos à área da experiência sexual" (Sobre a
cimento histórico "poiético", mesmo quando tão aprofun-
dada quanto em Michelet, está sempre recheada de explica-
etiologia da histeria, 1896, Oeuvres completes,
II,
p. 157).
b) Piaget: "Sabemos que, para unma criança com menos
cões. A história real visa não số a restituir objetos humanos de 7 anos (em média), o deslocamento de um bastão relati-
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vamente a outro modifica o seu comprimento, e que um sua carga de significações, ou seja, remetendo a situações
todo indiviso não é equivalente à soma das partes que nele complexas, em ampla medida presas a circunstâncias indi-
podemos introduzir" (Assimilação e conhecimento, em Eu- viduais e marcadas por juízos de valor. A primeira tarefa de
des d'epistemologie génétique, se possível, despojar disso os fatos
V, 1958, p. 98). uma ciência é, então,
c)Durkheim: "Assim, se as crises industriais ou finan- visados, conservando-lbhes, porém, sua originalidade de fatos
ceiras aumentam os suicídios, não é porque empobreçam, já humanos. No primeiro exemplo tomado de Freud, esse
que as crises de prosperidade têm o mesmo resultado; é despojamento é mínimo, já que a análise procura desvelar
porque são crises, ou seja, perturbações da ordem coletiva" sob suas expressões verbais uma intimidade de início estri-
(0 suichdio, 1897). tamente individual, para interpretá-la, é verdade, à luz de
d) Walras: "Não existe montante de despesas de produ- mecanismos supostamente universais, mas sem visar, ao que
ção que, ele próprio determinado, determine, por conse- parece, a transpor as configurações assim reveladas em
modelos abstratos destacáveis da realidade de histórias in-
guinte, o preço de venda dos produtos. O preço de venda
dos produtos determina-se no mercado dos produtos, em dividuais. Assim, a psicanálise, mais do quc uma ciência do
psiquismo, deve ser considerada como uma drte interprcta-
razão de sua utilidade e de sua quantidade; não há outras
condições a considerar; são condições necessárias e suficien- tiva e, eventualmente, curativa.
tes" (Elments d'économie pure, 1874, parágrafo 344). No outro extremo da séric, os cxcmplos cconômicos c
lingüísticos, e, fe h, subentendem um despojamento mais
e)Keynes: "O {nível] atual do emprego pode ser corre- deliberado c mais profundo dos aspectos concretos da vivên-
tamente descrito como sendo governado pelas previsões cia humana. O enunciado de Jakobson supõc uma dissocia-
feitas hoje em conjunção com a atual provisão de capital"
ção da matéria sonora de uma língua em elementos fonéti-
(Théorie générale de l'emploi, de l'intérêt et de la monnaie, 1936,
cos, fisica ou fisiologicamente definíveis, e em clemcntos
p. 50) fictícios, ou virtuais, os fonemas, que têm uma função num
f Saussure: "A línguaé umsistema cujas partes podem sistcma abstrato de representação dessa matéria sonora
e devem, todas, ser consideradas em sua solidariedade sin- lingüística, e realizáveis por meio de sons divcrsamente
crônica" (Cours de linguistique générale, 1916, p. 127). cmitidos e percebidos.
8) Jakobson, Fant, Halle: "Um eslovaco percebe a vogal
arredondada e relativamente aguda de jeu como é, pois 3. A observação dos fatos humanos, colctivos ou indi-
seu sistema só retém a oposição grave agudo; um russo a viduais, supõe, portanto, o abandono pelo menos parcial das
percebe como o, pois seu sistema retém apenas a oposição noções imediatamente reconhecidas e expressas nas línguas
arredondada- não arredondada" (Préliminaires à une analyse usuais. Essas noções imediatas sugerem, realmente, uma
de
laparole, comunicação técnica n° 13 no MIT, 1952). "compreensão" intuitiva, sem dúvida útil e não raro sufi-
ciente para a prática, mas que bloqueia a busca de uma
2. Constatamos logo de início que a maior parte desses representação mais abstrata, única capaz de se prestar a uma
enunciados utiliza conceitos aparentemente tomados à ex- visão menos particular eà deduçīo de fatos novos. O econo-
periência ordinária, sem grande elaboração específica, ao mista que se coloca no ponto de vista microcconômico, por
contrário do caso das ciências da natureza e das matcmáticas. exemplo, pode tomar como objeto conjuntos de atores,
E que os fatos em questão são inicialmente dados ao obser- compradores ou vendedores, considerados independente-
vador como pertencentes a essa vivência quotidiana, com mente de qualquer intenção, de qualquer projeto que não o
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de maximizar sua satisfação final, sendo suas decisöes de nacionais, e toma como variávcl estratégica a massa mone-
vender ou de comprar determinadas apenas pelo nível dos tária acumulada num país. V&-se quc, nesse caso, o conhe-
preços e dos estoques de bens que possuem. Na chamada cimento dos fatos é fundamentalmente orientado para a
perspectiva marginalista, a de Walras, por exemplo, supöe- prática, com vistas à potência de um Estado.
se que a satisfação proporcionada por uma unidade suple- c)O esquema "estrutural". O exemplo mais claro a este
mentar de um bem - sua "utilidade" - diminui com a respeito é dado, na lingüística, pela construção de sistemas
quantidade possuída ou adquirida. Entendc-se que uma de oposições e de correlações entre os representantes abstra-
simplificação tão radical do mercado só possa representar os tos e ideais de sons de uma língua, os fonemas. Tais sistemas
fenômenos concretos muito parcialmente, e sob condiçõcs são, em princípio, finitos c fechados, e as rclaçõcs de scus
pouco realizáveis. O que a justifica, porém, éa hipótese de elementos não são co-determinações causais. Por excmplo,
que revele mecanismos fundamentais. os foncmas vocálicos do francês formam um sistcma distri-
buído segundo várias dimensõcs, como a abertura (ê de /lle,
4. Mas essa revelação parcce depender muito do gênero aberto, é de blé, fechado), o arrcdondamento (i de iri, não
de explicação procurada. Para sublinhar a multiplicidade arredondado, ú de flhte, arrcdondado). As moclificações cde
desses "tipos de intcligibilidade", enumeraremos, como um tal quadro ocorridas ao longo da histór ia de uma língua
exemplo, os que o sociólogo filósofoJ. -M. Berthelot recen- podem, então, ser entendidas não como mudanças inlivi-
temente recenseou (L'intelligence du social, cap. I), c que duais, c sim como uma reestruturação global do sistcma. O
podemos aplicar também a todas as ciências humanas. cxemplo ctnológico célebre de uma descrição desse tipo é o
Trata-se de "esquemas" de explicação que podem, natural- dos sistemas de parentesco de Lévi-Strauss, apresentados
mente, combinar-se e interferir numa mesma representação. como uma álgcbra muito abstrata quc se tracluzem relaçõcs
sociais concrctas.
a) O esquema causal. Supõc-se, então, uma dependência d) O csquema hermenêutico, cujo protótipo é tomado,
entre o fenômeno A que explicaria o fenômeno B, tal que desta vcz, da lingüística saussuriana, mas que aparecia nas
suas variações são concomitantes e que não se pode ter B formas mais primitivas da cxplicação dos fenômenos, tanto
sem A. A explicação dada por Durkheim ao suicídio é naturais como humanos. Consiste em postular quc às apa-
essencialmente deste tipo. O sociólogo empenhava-sc em rências correspondam realidades mais profundas, que cons-
afastar as causas aparentes (a hercditariedade, a imitação),
titucm seu sentido. No moderno pensamento dos fatos hu-
para mostrar a correlaçāo cfetiva do suicídio e do relaxamen-
manos, cste esquema consiste, mais sobriamente, em supor
to dos laços sociais do suicida. que os fatos signifiquem c quc a ciência deve cxplicitar essas
b) O csquema "funcional", cm que o adjetivo funcional significações. A psicanálise, cnquanto se pretende doutrina
remete à idéia do funcionamento de um organismo, ou até de de conhecimento, fundamenta-sc neste esquema. Como
uma máquina. As condiçõcs de funcionamento contribucm também certos aspectos das explicaçõcs marxistas dos fatos
para manter o estado co regime de marcha de um sistema. cconômicos e sociais.
A análise apega-se, cntão, às relaçõces entre o todo c as partes, e) O esquema "actancial". O fenômeno a cxplicar é,
descreve condições de estabilidade e descobrc clementos cntão, pensado como resultado do comportamento de atores
estratégicos que permitem modificar esses cquilíbrios. A individuais ou coletivos, considerados como tendo intcn-
teoria cconômica mercantilista, no início do século XVII, çõcs e se submetendo a regras. Talvez o protótipo disto seja
descreve ncsta perspectiva o funcionamento das economias a tcoria econômica marginalista indicada antcriormente.
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2. Definir grandezas mensuráveis que estejam
supõce
f) O esquema dialético, por fim, que proporia como
reunidas certas condições. Fazer corresponderem fatos hu-
explicação a resolução efetiva de contradições internas des-
manos e números só tem realmente sentido se puder ser
cobertas na realidade humana individual ou coletiva. Mas
estabelecido um sistema de operações referente a esses fatos,
uma tal "explicação" não raro reduziu-se a constatar depois do
com a mesma organização formal que o sistema de números
fato consumado o resultado de certos conflitos, sem de modo
considerado.
algum fornecer os meios de prever seus desenlaces.
E preciso dar um sentido experimental precisoà opera-
Desse inventário proposto por J. -M. Berthelot, que ção que corresponderáà soma algébrica das grandezas atribuí-
poderia, sem dúvida, ser estendido, tiraremos várias conclu- das aos dados empíricos, como as reações a cstímulos senso-
sões sumárias. Em primeiro lugar, constatamos o uso feito
riais. De modo mais elementar, será preciso dar um sentido
em vários esquemas de noções elementares tomadas das
empírico ao balizamento dos graus de intensidade de um
ciências da natureza, ou até de noções intuitivas tiradas de
dado e à comparação de suas diferenças. Na psicologia das
uma experiência imediata pouco analisada. Tiramos daí a
sensaçõcs, foi sob esta última forma que de início se colocou
impressão de uma conceitualizaçāo de nível bastante baixo.
explicitamente o problema da medida. Quando E. H. We-
Em segundo lugar, a pluralidade dos tipos de explicação ber, fisico, e G. T. Fechner, primeiro médico, depois filóso-
sugere uma falta de segurança e talvez até certa arbitraric-
fo, enunciaram sua famosa lei: "'a sensação varia como o
dade. Mas há que se reconhecer, por outro lado, que essa
logaritmo da excitação", foi preciso que Fechner introdu-
pluralidade de tipos de explicação deve, sem dúvida, ser zisse (1860) a noção de limiares de percepção e precisasse
accita como decorrente da própria natureza dos fatos huma-
várias técnicas que definissem seu balizamento na empiria.
nos; há que se admitir que oconhecimento científico desses Obscrvemos quc, como os valores absolutos raramente têm,
fatos só pode ter bom êxito pela conjunção de vários esque-
aqui, um sentido empírico, o problema geral é determinar
mas, cujo modo de superposição e de encadeamento deve ser de tal mancira uma correspondência com números, que cla
definido em cada caso especial.
conserve seu sentido para transformaçöes lineares e afins.*
Outro aspecto da dificuldade aparece nas ciências so-

II
O emprego das matemáticas ciais, quando se trata de quantificar noções colctivas: nível
dos preços, nível de poder de compra num grupo social,
intensidade das opiniöes... A observação dos dados numéri-
1. Essa fraqueza de conceitualização e essa multiplici-
cos é imediata nos primeiros casos, por excmplo, mas cles
dade de pontos de vista de explicação distinguem visivel-
se relacionam a comportamentos individuais. Portanto, é
mente das ciências da natureza as tentativas de conhecimen-
preciso, a partir deles, construir grandezas "agregadas", ín-
to científico dos fatos humanos. Vimos que as estruturas dices. O economista propõc, então, propriedades formais a
matemáticas desempenham um papel determinante na for-
que julga que esses índices devem satisfazer. Por exemplo,
mação dos conceitos das ciências da natureza. Que papel
a forma das relações supostas por uma tcoria, ou constatadas
desempenham, então, as matemáticas nas ciências do ho-
empiricamente, entre grandezas individuais deve ser con-
mem? Três aspectos essenciais devem ser considerados: o
servada entre as grandezas agregadas. As médias complexas
problema da medida das grandezas nas ciências humanas,
de grandezas individuais retidas como representando os
que, evidentemente, condicionará certas aplicações das ma- índices serão inventadas de tal maneira que satisfaçam
temáticas; o papel desempenhado pela estatística; a cstru-
convenicntemente essas propriedades.
turação matemática dos modelos.
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3. Num caso como esse, o tratamento dos dados faz dades formais das relações que devem unir variáveis: sua
intervir a estatística. Não retomaremos o quc foi dito acerca continuidade ou seu crescimento, por exemplo; ou, em
das ciências da natureza. Acrescentarei apenas duas obscr- representações contemporâncas mais elaboradas, como a de
vações específicas. G. Debreu (Théorie de la valeur, trad. francesa, 2. ed., Dunod,
Em primeiro lugar, levar em consideração as médias e 1984), propriedades topológicas muito mais refinadas, que
as freqüências relativas corresponde, nas ciências do homem, não se traduzem diretamente na empiria. Ou ainda, em
à hipótese de que os comportamentos individuais sejam representações mais gerais de situações de formação de
variantes que oscilam em torno de tipos por assim dizer "normais" opiniöes coletivas, como a de Arrow (1951), a matcmática
de comportamento, que os tratamentos estatísticos pode- cs tabelece as condigões formais da impossibilidade de certas

riam isolar e pôr à prova. Trata-se, com certeza, de uma coalizöes de opiniões ou de intcrcsses.
hipótese ousada, mas essencial para um conhecimcnto cien- Vamos deter-nos por mais tempo na scgunda função,
tífico possível dos fatos humanos. Ela diz respeito a uma c nos perguntaremos a seu respeito quais matemáticas
concepção do sentido e da amplitude do que sentimos são, então, utilizadas. Distinguircmos três cspécies delas,
individualmente como fantasia c livre-arbítrio. Mas não significativamente distintas. Enmbora muitas vezes pre-
dispomos de razõcs decisivas para estendê-lo indiferente- sentes num mesmo modelo, clas ofcrecem às diversas
mente a toda espécie de comportamentos, cm particular no ciências do homem formas conccituais difercntes c com-
caso em que o contexto é, na prática, infinitamente com- plementares.
plexo, ou seja, cm quc os fatos são apreendidos afinal como a) A análise infinitesimal, introduzida sobrctudo, no
históricos. começo, pela Economia Política marginalista,
com St. Je-
Nossa scgunda observação prolonga a primeira. Ela diz vons (1871), L. Walras (1873), e cxplorada com mestria por
respcito à rclação cntrc as ciências humanas e as situaçõcs Parcto (1896), A. Marshall (1890) e pela maior parte dos
individuais. Enquanto um conhecimento cicntífico dos fa- scus sucessores cconomistas. Sobre este ponto, as ciências do
tos humanos não é de natureza clinica c, por conscguinte, homem fazem pouco mais do quc herdar a cxperiência
próximo de uma arte, não podemos lhe exigir que se aplique adquirida desde o século XVII nas ciências da naturcza; a
ao individual, nem argumentar com scus insucessos na dificuldade nova, porém, para cada situação empírica, está
matéria para duvidarmos de seu valor. na identificação dos conceitos, como o de diferencial c de
derivada parcial...
4. Mas o emprego mais significativo das matemáticas b) Matemáticas "qualitativas", que não utilizam medi-
nas ciências do homem é a sua contribuição para a constru- das de grandezas. As relaçõcs entre as variávcis são, ncste
ção de modelos. Nos modelos quc subjazem às verdadeiras caso, relaçõcs múltiplas, cujo conjunto forma uma estrutura
teorias explicativas, como os grandes modelos da economia que o matcmático investiga, demonstrando suas propricda-
matemática ou certos modelos de comportamento indivi- des formais. Um dos casos mais freqüentemente utilizados,
dual ou social, os conceitos matemáticos servem cssencial- em tempos recentes, por certas ciências humanas é a estru-
mente para dois fins: formular de mancira precisa axiomas tura de grafo. Um grafo, geralmente representável por meio
ou hipóteses fundamentais, ou rcpresentar adequadamente de um desenho plano ou tridimensional, éum conjunto de
a suposta cstrutura dos fenômenos. objetos (os "vértices") postos, parcial ou completamente,
Exemplos claros da primeira função ocorrem na econo- em correspondência dois a dois. Os pares de vértices assim
mia política marginalista, quando são postuladas proprie- unidos são os "arcos" do grafo. Compreende-se que tais
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figurações abstratas possam representar fenômenos huma- No que se refere à estrutura de "programa linear",
nos, como, por exemplo, relações de parentesco, relações limitar-me-ei a observar que ela é dual da do jogo e utiliza
hierárquicas e os eventuais estados sucessivos de um siste- as mesmas matemáticas.
ma. O recenseamento das espécies de matemáticas aqui
cMatemáticas da probabilidade, esta tomada, porém, proposto não pretende, evidentemente, ser exaustivo. Ele
num sentido diferente do empregado nos métodos estatís- apenas mostra, no que concerne às duas últimas espécies,
ticos. Trata-se da teoria dos jogos e dos "programas linea- que as ciências humanas parecem ter tendido para formas
res". A teoria dos "jogos de estratégia", introduzida (1942) originais de matematização e podem ser, como as ciências
por um matemático (J. von Neumann) e um economista da natureza, uma fonte de sugestões para as matemáticas,
(O. Morgenstern), propõe modelos abstratos de comporta- que em seguida desenvolvem para si mesmas, como formas
mento de jogo ou de conflito, nos quais cada um dos abstratas, suas próprias teorias.
protagonistas tem várias táticas conhecidas, sendo os ga-
nhos de cada um, resultantes da conjunçīo das táticas dos
adversários, também conhecidos por todos, apesar de cada
IV. A validação dos enunciados
jogador ignorar, cvidentemente, a cada lance, a tática que
vai ser adotada por seu adversário.
1. Na medida em que as ciências humanas têm real-
Uma solução, ou ponto de equilíbrio do jogo, alcan-
é
mentc, ainda que num sentido muito fraco, a mesma visão
çada quando as táticas dos protagonistas garantem a cada que as ciências da naturcza, clas se deparam com os mesmos
umo que ele pode esperar de melhor, com certeza: o máximo problemas de validação de seus enunciados. Limitar-nos-
de seu ganho mínimo possível (c para o adversário, dual- cmos, portanto, a examinar brevemente apenas os aspectos
mente, o mínimo de sua perda máxima possível). Um tal especificos desses problemas. Ora, o aspecto radicalmente
ponto de cquilíbrio nem sempre existe, se os protagonistas original de um conhecimento dos fatos humanos que se
escolherem definitivamente uma tática em resposta à tática pretenda científico está vinculado a sua relaçăão privilegiada
adversária. Mas a propriedade matemática fundamental é com a história. Que dizer, portanto, do caso limite da
que um tal ponto de equilíbrio pode sempre ser alcançado validação de um conhecimento histórico?
se, pelo contrário, os adversários repartirem as escolhas de Dois aspectos devem, então, ser considerados. Por um
suas táticas conforme probabilidades que a teoria permita lado, o estabelecimento dos fatos pelo controle dos vestígios
calcular; vemos que a probabilidade, então, já não é inter- materiais c dos testemunhos. Tem-se lembrado que algu-
pretada como uma estatística enquanto propriedade estáti- mas técnicas, chamadas ciências auxiliares da história, dão
ca do objeto a descrever, e sim enquanto propricdade dinâ- a essa verificação um aspecto científico. Todavia, não podem
mica de um comportamento dos sujeitos. Partindo do caso passar cm silêncio as dificuldades particulares levantadas
simples do duelo de soma zero (o que um dos dois jogadores pelos lestemunbos, sejam elcs de pessoas ainda vivas ou de
ganha, o outro perde), o matemático enriqueceu considera- documentos escritos ou figurados. Nada disso aparece no
velmente a sua teoria, que, tornado-se muito complexa e caso das ciências da natureza. Por outro lado, a validação das
compreendendo, por exemplo, os efeitos de coalizão entre explicações históricas, ou seja, do sistema de conceitos pro-
jogadores, permite representar situações cada vez mais con- posto para revelar o encadeamento dos acontecimentos
cretas em diversas áreas da economia e da sociologia. considerados. Não é evidentemente possível recorrer, neste
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caso, à observação repetida de fenômenos idênticos (ou idcologia, substituindo os conceitos pelos mitos e as descri-
mesmo simplesmente idênticos modulo das condições preci- ções pelas prescriçöes.
sas de observação). No máximo, poder-se-á tentar aplicar a Ea capacidade de previsão uma condição necessária (e
explicação em questão à explicação dos acontecimentos suficiente) da validação de uma teoria? Dissemos que, de
considerados comparáveis, encarados, portanto, como re- um modo geral, um conhecimento científico trata de fatos
presentativos de uma classe de acontecimentos, apesar da virtuais, incompletamente determinados na empiria, e que
singularidade irredutível que 6, justamente, própria de sua a previsão, que trata de fatos atuais, podia comportar, em
historicidade. Além disso, essa validação fraca sóó conserva graus diversos, alguma incerteza, sem porém invalidar uma
seu sentido se tivermos o cuidado de distinguira explicação teoria. No caso dos fatos humanos, o contexto histórico em que
histórica de uma interpretação ideolégica oufilosdfica, já que se encontra necessariamente mergulhado todo fato virtual
a primeira se furta de fato, dogmaticamente, a toda valida- que os represente torna ainda mais indeterminada a sua
gão, e a segunda não propõe uma explicação de fatos, c sim previsão. Prever, com base em uma teoria do câmbio, que a
busca-lhes uma significação, situando-os numa totalidade cotação do dólar vai baixar em uma certa proporção em
imaginada. detcrminada data muito próxima já é um êxito bastante
raro. Prever uma crise econômica (definida, por exemplo,
2. Quanto aos enunciados das ciências humanas que como derrocada dos preços, quccda da produção e dos lucrOs,
não a história, rencontramos, porém, os dois aspectos desemprego) com antecipação de alguns meses, valendo-se
indicados, com um predomínio mais ou menos acentuado de uma teoria geral macroeconômica do investimento, dos
de um ou de outro. No caso de enunciados que acentucm preços, da mocda ou, mais empiricamente, de uma simula-
principalmente o cstabelecimento de fatos (como o cxemplo são com modelos econométricos, é uma façanha fora do
b de Piagct, p. 87), o modo de valicdação mais convincente alcance dos economistas, como eles próprios repetidamente
parece ser, como para as ciências da natureza, a validação demonstratam. Sem dúvida, podemos censurar os cientistas
cstatística, com as mesmas exigências e as mesmas limita- das diversas áreas dos fatos humanos por se calarem sobre
çoes. Todavia, o próprio Piaget aqui citado raramente re seus fracassos de previsão e por preferirem explicar, depois
correu a verdadeiras validaçöcs estatísticas. do fato consumado, o qne poderiam ter sido as suas previsões.
Em compensação, é justo sublinhar o obstáculo intrínseco
3.Quando predomina o conteúdo teórico (como nos que, nessas áreas, sempre opöe a uma predição do singular
enunciados a, d, e, f, g do parágrafo II.1), a questão da o desvio, por assim dizer, institucional, irredutível, entre os
validação apresenta as mesmas dificuldades e as mesmas fatos virtuais da ciência e os fatos atuais historicamente
limitações que no caso das ciências da natureza, mas consi- realizados. É licito, também, esperar que, como aconteceu
deravelmente maiores, em razão de uma dupla circunstân- com as ciências da natureza, apesar desse obstáculo radical,
cia, já indicada várias vezes. Bm primeiro lugar, a formação a representação dos fatos virtuais se torne cada vez menos
dos conceitos cujo sistema constitui a teoria se depara com inadequada.
a tentação do puro e simples decalque das noções ingênuas,
imediatas, por meio das quais nós fixamos nossa apreensão 4. Resta ao filósofo perguntar-se o que significá esse
dos fatos na prática da vida. Em segundo lugar, uma teoria desvio, esse acaso histórico. Duas concepções parecem-me
acerca dos fatos humanos está constantemente ameaçada, se possíveis. Uma o considera como expressão pura e simples
não tomarmos cuidado com isso, de se transformar numa da imprevisibilidade dos livres-arbstrios individuais. Trata
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se, do ponto de vista epistemológico, de uma recusa cate-


górica, que nos remete à questāo metafísica do sentido
mesmo do livre-arbítrio, que não nos cabe debater agora. O
outro, situando-se aquém do plano metafísico, sem neces-
sariamente desconhecer a sua importância final, gostaria de 6
propor uma resposta situada no próprio plano do conheci-
mento objetivo do mundo. Ela atribuiria a imprevisibilida-
de à complexidade dos fatores em jogo. Poderíamos, então,
A EvOLUÇÃO DAS VERDADES CIENTÍEICAS
encontrar situações análogas no próprio universo físico, por
exemplo, na meteorologia. O conhecimento teórico suposto
das principais determinações acerodinâmicas e termodinâ-
micas dos estados da atmosfera não permitc que deles se
deduzam conscqüências atuais, num sistema em que as
rclaçõcs são matematicamente complcxas demais, e as con-
diçõcs iniciais, numerosas e desconhecidas demais. A difi- A ciência propõc-nos cnunciados verificávcis, mas não
culdade é, então, superada praticamentc, cm certa medida, verdades imutáveis, já que existe uma história das ciências
pela simulação, que se tornou possível graças à potência de ao longo da qual boa parte desses cnunciados se modificou
cálculo das máquinas atuais; cla é abordada tcoricamente, e ou foi substituída. Como se deve interpretar essa evolução
talvez possa ver-se parcialmente dominada, pelo conceito das ciências, e que sentido dar ao caráter de verdade provi-
matemático de situações "caóticas", de que uma das carac- sória e relativa dos conhecimentos por ela formulados?
terísticas essenciais é que uma perturbação muito pequena Existe aí um aparente paradoxo, já que teorias científicas
das condiçöes iniciais produz regimes de cvolução que se que permaneceram por muito tempo satisfatórias e férteis
afastam grosseiramente do regime inicialmente previsível. são substituídas por outras novas. E estas teorias novas são
Sem que possamos garantir qualquer coisa, é lícito melhores em quê? Como escrevia antigamente um filósofo
c historiador das ciências: "As teorias científicas morrem
perguntar-nos se o desenvolvimento matemático de tais
teorias, por um lado, e progressos decisivos de uma concei- assassinadas". Para terminarmos, portanto, devemos tentar
tualização dos fatos, que tornem mais eficazes as simulaçõcs compreender o significado do progresso científico.
eos cálculos, por outro, não poderiam contribuir para tornar
as ciências humanas mais capazes de explicar e de prever.
I. Continuidade e descontinuidade
da história das ciências

1. Começaremos discutindo brevemente uma tese pro-


vocadora, recentemente aventada por Feyerabend (Contrao
método, 1979), de quem já apresentamos e combatemos o
"anarquismo metodológico" acerca da multiplicidade dos
métodos (apítulo terceiro, parágrafo I.1). Paul Feyerabend
afirma que as teorias que se sucedem são "incomensuráveis",

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