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5 O que é aprender, afinal?

em pretender, em absoluto, exaurir unma questão tão complexa e desafiado-


ra, faço aqui apenas a tentativa de organizar algumas hipóteses convergen-
t e s . tendo como referencia a discussão feita até agora. Para começar de
modo mais palpável. iniciamos pela crítica à teoria da resolução de problemas,
feita magistralmente por Sfez, entre outros. Embora não se possa afirmar que
todas as teorias de resolução de problemas acreditem que todos os problemas
sejam solúveis, elas tendem a partir dessa premissa e ainda de outra: a educação
ganha em taxa de utilidade, se for percebida como uma ferramenta que ajuda as
pessoas no dia-a-dia. Esse dia-a-dia é geralmente definido como estoque de pro-
blemas, sobretudo de mercado, e a educação, desde que dotada de certas qualida-
des. poderia auxiliar a enfrentá-los. Entre essas qualidades podem aparecer: não
ficar apenas na teoria, não restringir-se a memorizar, saber relacionar um proble-
ma com o outro, planejar as ações, e assim por diante. Em certos paises, com

destaque absoluto Estados Unidos, essa teoria vincula-se facilmente à


para os
centralidade do mercado na vida das pessoas e da sociedade, por conta da doutri-
na liberal capitalista. E preciso saber enfrentar a vida, que não éfácil no contexto

arduamente competitivo. No fundo, a educação é importante, porque ajuda a com-


pEur. Esa marca é hoje ainda mais saliente, porque a economia tornou-se intensi-
va de conhecimento.
e, sobretudo, a boa von-
OdemoS certamente valorizar algumas indicações
tade de imaginar um anmbiente dinâmico para a educação. A escola ja e maçanto*
para ainda termos de aceitar que por lá nada ocorra de relevante para a
s muito em
pratica da vida. Em algumas disciplinas, como a matemática, insiste-se
ela serve
para
t da Vidadas pessoas; uma forma de fazer isso é mostrar que
resolver problemas,não só lógicos, mas igualmente históricos. Muitos chama-
Tas ideas sao re-
am tal fato de "etnomatemática" (D'Ambrosio, 1986; 1999).
Vantes, pelo menos como apclo à motivação, em particular quando se icrescenta
nda a noção de problematizaçäo. Para resolver problemas ë necessario.Pprme
Resolve
problematizar, o que sinalizaria a ecessidade de saber pensar.
acuidade, a analisá-los siste-
probiemas quem aprende a defini-los com
mati na idera seguinte:
a questioná-los severamente, o que eclodiria
resoD EC e
m os problemas é coisa de g e n t e inteligente". Pode comparecer a cena
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um misto de consciencia crítica e capacidade de intervençao, que, certamente


são
componentes fundamentais do que gostariamos de chamar de saber pensar
Entretanto. por trás dessa idéia está a problemática do conhecimento oder.
no, cartesiana, racionalista., atrelada à concepeão de conhecmento como arma de
dominação. Essa marca torna-se mais visível quando se percebe que a proposta
geralmente é individualista: trata-se de resolver os proprios problemas, mesmo
que às custas dos outros. o que é exatamente a perspectiva do mercado. Simplifi
cando muito as coisas, se a idéia funcionasse de verdade, poderíamos um dis
colher uma sociedade sem problemas. quando todos, bem-educados, saberiam
resolver todos os problemas. Ai transparece claramente o esquema lógico da ciên-
cia moderna: a realidade é ordem, e a ciência tem como tareta descobri-la; a de-
sordem é aparência superficial, pois, por baixo, é presidida por estruturas simples,
que representam sua essência, inclusive sua explicação. Acontece que a crítica
pós-moderna, ao lado de muitas diatribes irresponsåveis, tem mostrado que a rea-
lidade é o caos. ainda que sempre estruturado. Os problemas, pelo menos em
certo sentido, não são "problema", mas expressão mais viva de sua dinâmica.
Tomando um caso extremo: se alguém se puser a resolver a morte, pode morrer
antes, já cansado de não encontrar uma solução.
Assim, o que temos de aprender na e da vida não é propriamente a resolver
os problemas, mas a administrá-los com inteligência. Primeiro, deve-se reconhe
cer que, dialeticamente falando, toda realidade é problemática, não porque conte
nha defeito, mas porque é dinámica, precisamente dialética. Segundo, nem todos
Os problemas teriam solução, porque sequer saberiam0S apontar a todos e menos
ainda dar conta de todos. Terceiro, cada solução nova também inventa novos
pro-
blemas. Quarto, a realidade sem problemas não seria real. Quando nos coloca-
mos, por exemplo, o desafio da educação flexível e que sabe
aprender sempre,
temos em mente jamais uma realidade devassåvel, plana, linear, mas outra com-
plexa, dinamicamente problemática, maior que nossa cabeça, nossas teorias e pra*
ticas. Não há nenhuma inteligência na idéia de acabar com os
seria o modo de torná-los ainda mais problemas, porque
problemáticos. Isso representaria uma visao0
positivista, tipicamente reducionista de conhecimento que pretende dar conta
tudo, porque reduziuo todo a seu ac
mente solúveis,
próprio tamanho. Os problemas só são tota"
quando reduzidos àqueles que sabemos solucionar linearmene
dentro da "ditadura do método". E
exatamente assim que procede a cienca m
derna: reduz a realidade
te como irrelevante,
åquilo que seus métodos podem captar e declara o resta
secundário, quando não-inexistente.
No entanto,
surge ainda outra questão fundamental, lógica do
ligada a
log
questionamento, que seria a alma do saber pensar. Quando ressaltamos na resolu-
ção de problemas a habilidade de problematizar, não
seríamos coerentes se imag
nássemos que, problematizando, acabamos com
os problemas, assim como, ues
tionando, não é possivel acabar com as questões. Ao Ynar

contrário, saber quest


significa precisamente saber ver a realidade como sempre
o
próprio questionamento. Recairíamos na "contradição questionável, inc éa
contradição produzida no proprio discurso, "puxando seuperformativa", quc Por
próprio tapee
CONHECER & APRENDER 49

mnlo. não é possIvel questlonar sem ser questionado, avaliar sem ser avaliado.
inovar-se. uando
Qua questionamos, não
sentido. alimentá-las; assim,pretendemos
sem
inovar
acabar com as
ões, mas, em certo a idéia de
que. resolver
mas é correta em certa medida, mas paranóica e irreal em outra. Muitasosvezes,
pro-
ncontramos a crença de que o professor, uma vez
formado, é competente. Temos
ai a visão moderna de tormaçao como trajetória linear acabada. Na verdade, a
dia mais correta de aprendizagem e aquela coerente com sua própria
lógica, ou
seia, aquela que aprende sempre, ja que sua inteligência no está na
estocagem
reprodutiva, mas na reconstruçao constante. Aprender não pode aludir, nunca, a
uma tarefa completa, a um prcedimento acabado ou a uma pretensão totalmente
realizada: ao contrario, indica vivamente a dinâmica da realidade complexa, a
finitude das soluções ea incompletude do conhecimento.
O lado ainda mais incongruente da perspectiva de resolver problemas estaria
na tendência escolar comum de aplicar receitas. Perdemos o sentido da
problematização, para ficarmos apenas com a solução recebida pronta, como o
vestibular: então, só resolvemos problemas e nada fazemos de inteligente. Como
regra, entupimo-nos de memorizações, sem aprender nada ou quase nada. Os alu-
nos dos vestibulares buscam *macetes", esquemas simplificados, táticas
reducionistas facilitadoras. Seus professores também apostam nisso e. por isso, os
melhores são aqueles que mantêm a atenção, são divertidos e explicam com clare-
za. Diante de uma turma de mais de 100 alunos, seria impraticável fazer uma aula
reflexiva, na qual todos fossem levados a decodificar as questões por dentro. a
reconstruir possíveis caminhos de argumentação e contra-argumentação, a passar
pelo processo inteiro de construção e desconstrução da problemática. Provavel-
mente, o professor seria vaiado e logo demitido. Não se trata de aprender. porque
OS problemas são tratados pela via da desproblematizaço e da receita pronta.
Consuma-se a tática reprodutivista.
Em vez da visão positivista linear, seria mais educativo cultivar outra de
caráter dialético e histórico-estrutural. Os problemas não manifestanm apenas a
dureza da vida, as desigualdades sociais, o sofrimento, mas, na outra face da mes
ma moeda, assinalam a dinâmica da realidade sempre em polvorosa. Sinalizam o
nal dos tempos que em tudo deixa sua marca. Indicam o contexto espacial. onde
udo está de alguma forma embutido. Há estruturas, por certo, porque as coisas
do
acontecem de qualquer maneira e a história não pode ser simplesmente in-
Cntada. O ser humano faz sua história, mas dentro de condiçðes dadas, como diz
Onaterialismo histórico. Contudo, há história, que não é apenas um rito de passa-
a s uma referência explicativa, tanto quanto a estrutura. Há, assim, proble-
tod ao passam, porque mais propriamente passamos por eles. Por exemplo,
ni soCiedades têm mercado, cuja tendência inerente é excludente, pois orga-
4 Carëncia material e seleciona os acessos. O mercado capitalista e apenas
N Organizado no capitalismo, mas, como houve antes, haverá depois. porque
larste sociedade que não tenha esse problema. Seria possivel dizer algo simi-
lar a
respeito da desigualdade social, que faz parte da dialética contraditória de
toda
equalquer sociedade. Entretanto, os oroblemas estruturais, por estarem na
50 PEDRO DEMO

estrutura, não são o problema, porque problema mesmo são os históricos, aquol.

que inventamos. Assim, se, por um lado, não conseguimos produz1r uma socieda
de sem desigualdade,. por outro, podemos mudar aquelas que são históricas.
aparecem grandes diferenças. mesmo no capitalismo: ha sociedades que mantem
seu indice de Gini' por volta de 0.3 ou 0,4. enquanto a bras1leira chega a 0,7, Por
que seriam tão diferentes? Não é por destino ou por historia. Podemos mudar isto
embora jamais pudéssemos instaurar uma sociedade sem problemas. Tal como na
democracia, não promete que possa exterminar o poder, mas pode democratizá-
lo. Eis o espaço das revoluções.
Nesse sentido, nada é mais simples na vida do que encontrar problemas.
São muito mais abundantes do que as soluções. Vale dizer certamente que é
necessário ir atrás das soluções, não só empilhar problemas. Em termos edu-
cacionais, será o caso encontrar um caminho intermediário, que saiba proble
matizar para também desproblematizar. Saber pensar, todav1a, começa sem-
pre pela capacidade de problematizar, porque é a forma inteligente de despro-
blematizar. Caso contrário, simplificamos, banalizamos, distorcemos em ex-
cesso. Basta que saibanmos colocar o intento de problematização no seu devi.
do lugar: é uma habilidade propedêutica, não o sentido da coisa. Problemati
zamos para melhor desproblematizar e, assim fazendo, não caímos na arma-
dilha de querer acabar com Os problemas. Com isso, chegamos também ao
nível fundamental do saber pensar, que é a importância dos erros.
Aprende-se
muito a partir dos desacertos, sobretudo porque nos damos conta de nossa
falibilidade. E preciso analisar melhor, olhar mais longe, apender mais. Só
não erra a máquina totalmente linear, reversivel, que faz para frente o mesmo
que faz para trás, que nada inventa.
O aperfeiçoamento
constante da
zagem permanente é diretamente proporcional aos erros cometidos e às suas
aprendi-
retomadas. Nesse sentido, a idéia apresada de resolver
diria
os
problemas coinci
com a
pretensão de acabar com os erros, cometendo o pior deles.
Portanto, uma parte essencial da aprendizagem
é o "desconfiômetro", aque-
le bom senso
que fica sempre com o pé atrás, que testa de
nho, que refaz as contas. Muitos novo, que diz mansi-
de aprender, professores não se
propõem mais a necessidade
pois jáensínam.
Deixam de estudar, não se atualizam,
no
tempo. Perderam o "desconfiometro". 0 sinal mais emboloram
direto disso é o mecdo da
avaliaçãoe da crítica. Toda crítica soa como ofensa,
ber que o novo vem da porque deixaram de perce
desconstrução, não dos
pedagogicamente adequados para a motivação doelogios, que, mesmo podendo sct
aluno, não levam a aprender.
que se elogia, fica como está. Para
mudar não há jeito é
-

geralmente, dói. Por isso, seria possível dizer que a preciso destazer,
-

é a condição fatal de sua falibilidade do conhecimento


ressurreição permanente. Algo similar ocorreria
professor: se não sabe escutar
uma critica, também não sabe mais com
pensa que járesolveu seus problemas. Se ainda aprende
uma situação comum: o existem, não provem dele. Esta c
professor
criticas, desde que não o atinjam. Elepode, muitas vezes, concordar com todas
está fora. Não a
alienado! está, ironicamente, fora,
es
CONIECER & APRENDER 51

Entretanto. tudo na vida tem limite. lambém a problematização. Os procedi-


men são ferramentas metodologicas, não o sentido da vida. E justo desejar-se
um estilo de vida menOs problematico. Certamente, vive melhor quem
desproblematiza as coisas. Em grande parte, a sabedoria é isto: ver as coisas com
simplicidade, não azedar as angustias, sublimar as dificuldades, muitas vezes fe-
char os olhos. O espirito critico e o modo que tenmos de olhar fundo, de ser impiedoso
na análise, de ver sobretudo o que não se quer ver, mas é método. Dele não
pro-
vém a felicidade. O saber pensar não pode escorregar para o lado mórbido da
critica, que jå se compraz em destruir. Educativamente falando, a desconstrução
só se completa e ganha signiticado na reconstrução. Contudo, engana-se menos
quem mant m o espirito critico. Aprende continuamente quem sabe equilibrar a
busca de soluçõöes com o reconhecinmento tranqüilo da complexidade das coisas e
da vida. Boa parte da aprendizagem inteligente é a busca desse meio-termo
regadio, reconhecendo-se que solucionar problemas é, principalmente, saber
escor
administrá-los bem.
A visão conexionista da nmente tende a acentuar outra
propriedade da apren-
dizagem, que é a de descobrir e atualizar padrões. A realidade - sendo dinâmica
ao extremo, complexa, não-linear - não deixa de funcionar padronizadamente, no
sentido de que toda mudança não se faz ao léu, de qualquer modo, por pura inven-
ção, mas dentro do que é possível mudar. Dinâmica é modo de ser, não sua falta;
por isso, dizemos caos estruturado, para evitar a idéia de que o caos seria algo
totalmente amorfo. Ora, toda realidade tem forma e formato, modos de acontecer
padrões dos movimentos. Dito de outra maneira, em todo movimento existe
a guma "lógica" do movimento, indicando o que se repete na mudança2. A ciên-
C1a aprecia muito a lógica das coisas, pois domina melhor o que se repete, sobre
udo o que se repete quantitativamente, do que o nmovimento como tal. Podemos
Chamar a isto de "algoritmo", expressão geralmente usada para padrões constan-
cs de mudanças constantes. Forçando para um lado, ficamos apenas com os
cgoritmos, as lógicas e tomamos as mudanças como superficiais ou mesmo
existentes-é o ponto de vista clássico estruturalista-positivista. Forçando para
uro extremo, ficamos somente com a dinâmica, como se a história fosse ape-
ds dissolvente. Na verdade, precisamos dos dois lados, como imagina a visão
histórico-estrutural.
ocalização de padrões na dinâmica não é senão outra forma de proceder
Pela
análise", como toda ciência prefere fazer: entendero todo pelas partes e, no
degero, reduzir o todo às partes. No entanto, parece quase óbvio que enten-
Cnos melhor o
que dividimos em Dartes, assim como entendemos melhor a natu-
XO chdo-a em suas particulas menores. Diante de um fenömeno comple-
de
de n t e põe-se a procurar modos de reduzi-lo a algum tipo de simplificação.
n enor e mais facilmente visível, uma vez que não compreendemos
a n e n t e a complexidade. mas alguns de seus padrões. Se descobrirmos es-
n
ad o S
Dad O caminho
ente. paramover-nos
podemos entrar o com
fenômeno e, tranqüilidade.
alguma mesmo sem nunca domina-lo
A descoberta de
OCS pode começar colocando iunto o que poderia estar juntoeseparado o que
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ainda que, por vezes, o que


separado.Olhando melhor, descobre-se
poderia estar
Para dar um exemplo, imagine-
melhor e vice-versa.
separado
estájunto ficaria ao tentar explicar para o
mos a maneira como um "comentarista
de futebol age,
ocorrendo no campo, dando
razóes para a vitória, a
telespectador o que estaria um fenömeno dinámico, dota-
derrota ou o empate do jogo. Ojogo apresenta-nos
aberto a modos muito
regras, mas
do de muitas opões, comandado por algumas aludimos no fundo
falamos de "tática" do jogo,
criativos de organização. Quando com o
dos jogadores objetivo
algoritmos que o "treinador" põe cabeça
na
a certos
em determinadas situações,
de vencer a partida. Digamos, atacar pelas pontas,
homem da defesa como elemento surpresa, o centro-avante buscar
subir um
O comentarista
liberar outro jogador.
bola mais atrás para atrair a marcaçâo
e

precisa descobrir tais padrôes, "lendo


o jogo. O treinador adversårio, por sua
vez, parte para jogo. Mes1mo o
contraler o jogador mais criativo tem modos cons-
tal fato não é destrinchado pelos
tantes dejogar, o que explica seu ëxito, enquanto
os padrões de jogo desse jogador (usa-
treinadores opostos. Uma vez dominados
torna-se relativamente previsível e pode-se
se muito o computador para isso),
variar os padrões, para que possa,
neutralizá-lo mais facilmente. Cabe-lhe, então,
criatiVIdade no aquela será totalmente
de surpreender e impor-se. A maior
novo,
reconstrói padrões constantemente, por
imprevisiível -é irreal-, mas aquela que
vezes inconscientemente, é o caso dos gênios, que sempre têm dificuldade
como
de explicar a razão de certa jogada genial, a qual definiu o jogo.
dizem muitos auto-
aqui a "maldição da dimensionalidade",
como
Funciona
em princípio, ser multiplicados indefinida
e
res, já que os padrões podem,
no fun-
exponencialmente, impedindo o dominio de todos. Essa complexidade é,
do, a razão maior da surpresa. Tomando um exemplo mais prosaico, toda criança
desenvolve essa
quando chega a um ambiente novo, estranho, para adaptar-se
habilidade com a maior velocidade possível, procurando descobrir os algoritmos
da nova condição: como normalmente se comportam as pessoas, o que esperam
dela, o que é mais e menos aceito, quais as regras da sociabilidade. Descobre
logo, por exemplo, que. se quiser tornar-se amigo de fulano, precisa adaptar-se a
certos modos e expectativas dele, para tanto, precisa "ler" o fülano. Aprendeme
Ihor quem descobre mais e mais profundos padrões, de tal modo que possa com-
por-se mais facilmente e sobretudo mais criativamente com a dinâmica dos pro-
cessos. Nesse sentido, a aprendizagem está principalmente na habilidade de esta
belecer conexões, reve-las, refazê-las. A adaptação deixa de ser algo passivo para
tornar-se uma obra de reconstrução permanente, dinâmica entre sujeitos que se
influenciam mutuamente.
Existem, com certeza, padrões diferenciados entre as culturas e as linguas
sobre o que é "piada". Esta funciona pelo elemento-supresa, quando se lança mao
de duplo sentido. proVOca-se uma situação inusitada ou assinala-se um contraste
inesperado. No início, o estrangeiro tem dificuldade de "sacar" os padrões de
cada lingua e pode tanto rir na hora errada quanto não rir quando esperado. En-
quanto não tiver descoberto Os padrões mais usuais da piada em determinada li
gua, não poderá participar em pé de igualdade. A capacidade de estabelecer cone
CONIECER & APRENDER 53

e s ou de descobrir padroes tambem pode explicar, pelo menos até certo ponto,
que se aprende
melhor uma segunda lingua quando
Ppor criança. E esta possui
folha. capaz de multiplicar as conexões, de que
um
cerebro novo em guardá-las mais
facilmentee de retazë-las em cada nova situação com extrema maleabilidade, que
iá não se tem aos S0 ou 6U arnos de idade. Por isso, parece correto ver nisto um
fraco profundo da aprendizagem humana, porque aponta para uma marca extre-
namente criativa, porquanto descobrir padrðes supõe uma real descoberta, já que
OS padroes são implicCitos. E tundamental ler a realidade com acuidade para ver
como algo se relaciona mais ou menos, que relações estão escondidas, embora
determinantes. o que muda mais e menos, como se comporta a surpresa. Trata-se
deatividadetipica e profundamente reconstrutiva. A complexidade das coisas
desafia-nos a refazer permanentemente os padrões que imaginamos ver nela, ao
mesmo tempo que nos mostra algo no fundo completamente indevassável, signi-
ficando um desafio de abertura ilimitada para a criatividade. Esta, porém, não é
ilimitada. pois somos limitados, mas o desafio é.
Cada novo componente traz pelo menos dois novos problemas para a desco-
berta de padrões: se puder ser encaixado em padrões já reconhecidos, pode causar
apenas rearranjos internos: porém, se não puder ser encaixado, pode provocar a
indentificação de novos padrões. Nesse sentido, quando usanmos o termo"padro",
não estamos em primeiro lugar sinalizando que a estrutura predomina sobre a
história, mas apenas advertindo que toda dinâmica tem seus algoritmos. Todavia,
tais padrões não são padrões da estática, mas da dinâmica. As modernas teorias
admitem que os padrões nunca são totalmente padronizados, porque, se assim
fosse, perderíamos de vista a inoção de complexidade. Os padrões da dinâmica
nunca se repetem da mesma forma, porque não são lineares por definição; assim,
tais padrões revelam modos de mudar, não modos de resistir.
Outra idéia decisiva da aprendizagem é a sua tessitura reconstrutiva de teor
politico, refletindo sobretudo construção da autonomia do sujeito, sinalizada
a

hoje não só pelas ciências humanas, mas principalmente pelas ciências naturais.
ora lembrar a obra
em penetrar mais profundamente nessa perspectiva, basta por
ae Kaskin e Bernstein (1987), no fim da década de 80, sobre o "conhecimento
livro aparece a
Teconstrutivo", Suas posições provocaram grande polêmica (no
extrema força a vertente
polemica com Chomsky), porque já sinalizavam com ao lado da marca
POs-moderna de crítica ao colonialismo da ciência moderna,
qualidade política inequivoca. No
texto
strutiva, que entendem como
do conhec-
nrodutório, Bernstein aponta explicitamente para a tessitura politica
conhecida ligaço com o
reconstrutivo, indicando principalmente a
falando, todo conhe-
ronialismo (1987, p. 1-7). Todavia, epistemologicamente
atividade do sujeito, processo de inter-
ereconstrutivo, porque é sempre de motivar a
PCldçao participativa e referência culturalmente plantada, capaz
(1998), ao perguntar-
ancipação e sobretudo a subalternidade, como diria Harding
diria Collins (1998), ao descobrir que,
O Conhecimento é multicultural, ou como da ocidental, o móvel prin-
s varias propostas cientificas da humanidade para além
desentendimento conflito entre posiçoes.
P Sempre teria sido o
eo
54 PEDRO DEMO
muitas análises biolo
reconstrutiva é
hoje cm
acentuada ogica-
A perspectiva
Maturana (1997),
seguida da de Varela (2000 que
como a de
mente plantadas, a qual a atividade lingüisttica
hermeneutica segundo
comcidem com a expectativa ser mais deterministas
interpretativa. As posiçðes podem
humana è sempre a realidade pratica
se magna que
conhecido de Maturana). quando
caso mais
humana, ou mais
equilibradas. quando se aceita
para a marca metafórica d
mente não intlui na pereepçåo
intluencia mútua (é o caso
de Varela), ou se aponta
1999). Por outro lado, sempre surgem
voze
atividade mental (Lokoff e Johson. c o m o se a percepcãai
reconstrucionista.

exeessos da perspectiva
que rejeitam os tambem entre os defensores da
criasse a realidade. algo que aparece
Costum0 usar a terminologia da
e Searle ( 1998).
reconstrutivismo, como Harding evitar tais excessos
da realidade. para
reconstrução". enm vez da *construço
dela, e a aprendizagem reconstrutiva é
Reconstruir a realidade significa partir
aquela que parte do que já aprendemos. retoma a agenda de Paulo Feire, e não a
Além disso. a visão reconstrut1va
da educação e da apren-
da Escola-Nova, porque aposta na "politicidade
agenda de gestar sujeitOs capazes de história própria.
dizagem (Torres. 1998). Trata-se formal e politica, buscando no conhe-
individual e coletiva. Combina a qualidade
cimento o instrumento, e na educação, o fundamento ético-politico. A primeira
antes de qualquer inserção n0
perspectiva da educação é a emancipatória, muito
mercado, por mais que isto tambem seja importante. A problemátiea mais dura de
fundo é a pobreza politica, a condição de ignorante que sequer consegue saber
que é pobre e que não atina com a necessidade de tornar-se sujeito das próprias

soluções. deixando de depender dos outros. A situação mais indigna do ser huma-
no não é passar fome, mas ser massa de manobra. A aprendizagem reconstrutiva
significa. então, saber desconstruir a inconsciência, para saber ler a realidade e
nela intervir com autonomia. A "epistemologia da curiosidade" aponta para a
habilidade de despadronizar padrões, enquanto a descoberta de padrões poderia
estabelecer a expectativa de fixá-los, de manté-los e de coagulá-los. A aprendza
gem permanente é cultivada pela disposição também de "desaprender"., de
desconstruir e de desfarer. própria da curiosidade que não påra diante denada,a
tudo quer decompor para ver suas partes, em tudo mete a mão para apalpar, setn.
manusear, a tudo quer para que nada
ver
fique
escondido. A curiosidade e a ma
gem viva do paradigma "desparadigmatizante", por mais recer
que isto possa pauc
dialeticamente contraditório. Do ponto de vista do
oprimido, trata-se sobretudo u
despadronizar um tipo de história construída sobre sua ruina. E claro que despadroina"
padrões também é padrão, mas mais flexivel, maleável, aberto e de apre der.
Por fim, podemos destacar na capaz
Os limites como aprendizagem
desafios e os desafios como
a marca da
tomar

sabedoria a aber e
empreitadas limitadas. a"
potencializar incompletude,
a
enfrentar
falibilidade e querer nmais
a ue
Se

podeé aspecto fundamental da


um
aprendizageme aparece sempre cO a n0
conhecimento
desconstrutivo que tudo quer saber, deslindar,
essa tarefa só é feita
pela metade, se tanto. O outro lado devassa-ss aponta para" di
pequenez, para a
complexidade da realidade, para o cOna

contexto do erro cOn


CONHECER & APRENDER 35

Za normal. Chamamos a isto de saberpensar, com qualidade formale politica. A


ualidade formal aparece no manejo inteligente do conhecimento, na pesquisa
m o principio cientifico e na habilidade de análise, questionamento e
desconstrução. enquanto a qualidade politica emerge na história que se almeja, na
Desquisa como principio educativo e na solidariedade possível.
Essa maneira de ver acentua a caracteristica profundamente dialética do co-
nhecimento, como unidade tipica de contrarios. Se é sábio reconhecer limites, não
é sábio conformar-se. A ciencia não aceitaria a existência de nenhum fenômeno
que a priori escapasse de seu alcance. Pode reconhecer que nunca poderá saber
tudo. mas tudo quer saber. Nada e mais ridiculo em ciència do que falar do fim da
ciência, a não ser para provOcar estardalhaço mercantil (Horgan, 1997). A expec-
tativa ambigua de limites superáveis é claramente alimentada pela tessitura com-
plexa da realidade. jå que a verdade que mais atrai é aquela que ainda não vimos.
A aprendizagem é parceira da incerteza, da dúvidae do questionamento. A escola
geralmente desconhece esse desafio, porque a pedagogia dos professores está
inserida na modernidade cartesiana das certezas. Tamanha é essa confiança que a
aula se destina a repassar algo que os alunos devem aceitar. Tanto devem aceitar
que a prova é o truque fatal dessa aceitação. Seria dificil explicar ao professor que
a missão da escola é conseguir que 0 aluno duvide de tudo, sobretudo do próprio
professor. que o conhecimento mais interessante é aquele que não dura e que as
teorias são feitas para serenm superadas. O professor iria ver-se jogado na torrente
da inutilidade profissional, porque imaginaria não ter mais nada para ensinar. Ao
mesmo tempo, não suportaria ser questionado sistematicamente pelo aluno, como
não suporta ser avaliado. E dificil aceitar que saber pensar é profundamente saber
errar e que. por simples coerência. a primeira figura a ser questionada é a do
questionador. Assim, o aluno deixa a escola com algumas certezas também por-
que aprende muito pouco - e elas são, a rigor, inúteis para a vida marcada pela
complexidade e pela incerteza. Ele não aprende a criar, a argumentar, a duvidar,
mas a engolir certezas no contexto da reprodução funcionalista.
A aprendizagem como sabedoria também recomenda preferir a maleabilidade
a rigidez, a abertura ao fechamento, o pluralismo ao monolitismo. A importância
aesse desafio pode ser vista na dificuldade que ideologias e compromissos políti-

Os extremados têm de inovar-se. Toda ideologia tende a entender-se como unica-


ente válida, no sentido clássico de que ela é realista e todas as outras míopes. A
O g i a procede assim. porque não tem como referência principal a argumenta-
do questionadora. mas a justificação de posicionamentos políticos. Pode usar
P d tal justificação todos os questionamentos imagináveis, também cientifica-
b e m conduzidos, mas estes estão em função do posicionamento, em pri-
TO ugar. Assinm, a ideologia facilmente se torna um corpo rígido de verdades
d e l s , Impedindo a aprendizagem ulterior. Daí não segue que a ideologia seja
g Condenável; muito pelo contrário. Como não existe neutralidade cientifica,
nic Smplesmente outro tipo de engajamento, é bem mais inteligente admi
r sabiamente a ideologia do que transitar pelos extremos de pretender não
teru m a ou de viver apenas dela. A contra-ideologia é fundamental para mo-
56 PEDRO DEMO

vimentos revolucionários, embora, se chegar ao poder, não sera mais "contra"


mas a favor de lá permanecer. Isto revela que o fenönmeno do poder tem a cara de
monolitico, por razðes ideológicas, mas é profundamente dialético dentro de si
mesmo: por isso, precisa de ideologia - porque é frágil, quebradiço, provisório.
Desse modo, o compromisso politico faz parte da ética do ser humano, em
particular da educação reconstrutiva de estilo politico, mas näo pode ter como
resultadoo embotamento da habilidade de aprender. Emboratoda decisão seja
escolha e por isso também seja fatal. é necessário ter consciência critica disso e saber
introduzir alguma maleabilidade no processo, uma vez que posicionamentos politi
cos que não sabem mais aprender evoluem para propostas ditatoriais, nas quais so-
mente um lado tem razão. Saber expressar sua ideologia politica com clareza, firmeza
e presença plena, mas ao mesmo tempo saber mudá-la com o tempo, é algo fácil de
dizer e dificil de fazer. A ideologia que não faz mal é aquela que sabe escutar a crítica
e, sobretudo, autoquestionar-se. Neste ponto diferem os líderes: uns escutam os sinais
dos tempos, outros acham que os tempos devem escutá-los. Chamamos por vezes de
"chiitas" aqueles políticos intransigentes, capazes de colocarem questões de princípio
acima do bem comum. Outros aprendem a negociar, sem com isso perder a alma.
Dentro desse tópico, surge sempre o temor frente ao ecletismo. Na pedago-
gia, os alunos são doutrinados a adotar certas teorias, em parte pela boa razão de
que não se argumenta sem teoria e desprezar teorias é fazer a pior de todas, mas
em parte por filiação subalterna. A menteaberta sabe aprender, virtualmente, a partir
de todas as teorias, porque a nenhuma se filia e a todas reconstrói; sobretudo constrói
a própria. Assim, engajamento político não significa necessariamente posição "tapa-
da", como se fora dela não houvesse salvação. O compromisso político não pode ser
drenado para a defesa de teorias, mas para a defesa da aprendizagem dos alunos. As
são
teorias apenas instrumentos analiticos
e,
portanto, merecem dedicaço maior, a
não ser como ferramentas cientificas. Se os alunos não conseguem aprender melhor,
não adianta teoria, muito menos o apego a elas. Contudo, a razão principal, na verda
de, é que, perante o desiderato da educação emancipatória, filiação jamaisinteressa
a
porque obstaculiza a autonomia. E nesse sentido que dizemos não poder a ideologia
suprimir essa maleabilidade, porque, no final das contas, produz o contrário do que
estávamos buscando. Teorias e ideologias precisam abrir caminhos, questionar todas
as outras e sobretudo a si mesnmas, olhar
para o outro lado isto é aprender.
-

Notas
Medida de desigualdade de 0 al, sendo que 0 é total igualdade, e 1, total
2Brincando com as palavras, podemos dizer que o estruturalismo
desigualdade.
positivista assim
ex
pressa: só entendemos a variação, quando descobrimos como invariavelmente Varia
Se

(DEMO, P. 1995).

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