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A Princesa Que Acreditava em Conto de Fadas
A Princesa Que Acreditava em Conto de Fadas
Marcia Grad
Tradução de
Gilson B. Soares
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Sumário
PARTE I
Capítulo Um
Algum dia meu príncipe chegará
Capítulo Dois
A princesinha e o Código Real
Capítulo Três
Além dos jardins do palácio
PARTE II
Capítulo Quatro
Um príncipe encantado para o resgate
Capítulo Cinco
Dr. Risinho e Sr. Oculto
Capítulo Seis
Você sempre esmaga a rosa mais perfumada
Capítulo Sete
Um encontro de mentes e corações
Capítulo Oito
Fazer ou não fazer...
Capítulo Nove
Um guia para se viver feliz para sempre
PARTE III
Capítulo Dez
A Trilha da Verdade
Capítulo Onze
O Mar da emoção
Capítulo Doze
A Terra da Ilusão
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Capítulo Treze
Acampamento para viajantes perdidos
Capítulo Quatorze
A Terra do É
Capítulo Quinze
Um passeio pela Alameda da Lembrança
Capítulo Dezesseis
O Vale da Perfeição
PARTE IV
Capítulo Dezessete
O Templo da Verdade
Capítulo Dezoito
O Pergaminho Sagrado
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PARTE I
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Capítulo Um
Timothy Vandenberg III saltou para cima e assumiu seu lugar habitual
ao lado dela. Ele não se parecia afinal com um Timothy Vandenberg III.
Farrapos seria um nome. Mas a princesinha gostava dele como se fosse o mais
nobre dos cachorros e abraçou-o, deliciada. Satisfeita, ambos caíram no sono.
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Com freqüência, a princesinha ia afagar as bochechas rosadas da rainha,
e pedia para trajar um de seus vestidos de baile, e calçar os sapatos de dança
de salto alto, que na sua imaginação se tornavam sapatinhos de
cristal. Erguendo do chão as volumosas saias, ela sapateava pelo seu quarto
batendo as pestanas pudicamente, suspirando com recato e dizendo: ―Eu
sempre soube que você viria, meu príncipe‖ e ―Sabe, eu me sentiria muito
honrada em ser sua noiva‖. A seguir, ela representava cenas de resgate de seus
contos de fada preferido, recitando as falas de cor.
A princesa praticava diligentemente, preparando-se para a chegada do
príncipe, jamais se cansando de representar seu papel. Já adquirira grande
perícia em bater as pestanas, suspirar e aceitar propostas de casamento.
Na ceia do seu 17º aniversário, depois de ter formulado seu desejo
secreto e ter assoprado as velas de seu bolo de aniversário cheio de chocolate,
a rainha se levantou e entregou-lhe um pacote embrulhado com todo o
cuidado.
– Eu e seu pai achamos que já está com idade para apreciar este
presente especial. Tem passado de mãe para filha por muitas gerações. Eu
tinha exatamente a sua idade quando o recebi de minha mãe no dia do meu
aniversário. E espero que um dia você possa também dar a sua filha.
A rainha colocou o pacote nas mãos de sua filha, que, com grande
expectativa, desatou a fita e a laçada sem pressa, porque assim ele poderia,
seguindo seu costume, adicioná-los intacta à sua coleção. Depois, abriu o
papel que o envolveu sem rasgá-lo e descobriu uma caixa de música antiga
com duas estatuetas na parte superior que representava um casal elegante em
uma posição de valsa.
– Oh, vejam só! – exclamou, tocando de leve as estatuetas com as
pontas dos dedos, – Uma donzela com seu príncipe!
– Coloque em movimento, princesa - disse o rei.
Cuidando para não dar muitas cordas, virou a chave pequena e,
instantaneamente, o toque da música: "Algum dia meu príncipe chegará" se
espalhou pela sala e o elegante casal começou a dançar.
– Minha música favorita – exclamou a princesinha.
A rainha ficou encantada:
– É uma promeça do seu futuro. Um lembrete do que vai acontecer.
– Adorei – respondeu a princesinha fascinada pela música e pelas figuras
dançantes – Obrigada! Muito obrigada!
Victoria mal podia esperar o momento de ir até o quarto dela naquela
noite para brincar sozinha com a caixa de música e, ao mesmo tempo, poder
conversar e compartilhar seus sonhos com Vicky, sua melhor amiga, embora o
rei e a rainha insistirem em dizer a ela que era coisa da imaginação.
– Depressa, Victoria! - Vicky disse a ela com grande excitação assim
que a porta foi fechada – Dê corda!
– Estou com pressa – Victoria respondeu, colocando a caixa de música
em sua mesa de cabeceira e girando a chave.
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Vicky começou a cantarolar "Algum dia meu príncipe chegará"
enquanto sua música enchia toda a sala.
– Vamos, Victoria, vamos dançar – disse ela.
– Eu não sei se devemos fazer isso, eu acho...
– Você pensa demais. Venha!
A princesinha colocou-se na frente do grande espelho de bronze
localizado em um canto de seu quarto rosa e branco e subiu. Sempre que ela
olhava para ele, seu reflexo a fazia se sentir tão bonita que dava vontade de
dançar. Naquele momento, com a música ao fundo, não pôde resistir. Ela
começou a girar com grande elegância de um lado para outro, curvando-se
para baixo e para cima em espiral, sendo levados por um sentimento que veio
das profundezas do seu ser. Timothy Vandenberg III também dançou, à sua
maneira, brincando e girando sem parar
A empregada veio para preparar a cama como era seu dever, mas,
estava tão entretida enquanto a observava dançando com tanta alegria, que
levou mais do que o habitual para terminar o dever de casa.
De repente, a rainha apareceu na porta. A serva não sabia como reagir
porque ela foi flagrada observando a princesinha em vez de cumprir às suas
obrigações.
Timothy, instantaneamente sentindo a presença da rainha, escondeu-se
debaixo da cama para ficar em segurança.
No entanto, tão concentrada ficou a princesa com sua dança que ela não
percebeu a presença da rainha até que ela o ouviu dizer para a empregada
sair. Ela estava paralisada no meio de uma das suas melhores voltas.
– Realmente, Victoria – disse a rainha! – como você poderia ter feito
algo tão impróprio?
A princesinha ficou mortificada. Como algo tão maravilhoso pode ser
tão ruim? ela se perguntou.
– Se você quer dançar – disse a rainha – você deve aprender a fazer
bem. O Estúdio Régio de Representação Artística tem instrutores de balé
magníficos, uma atividade muito mais digna do que se mover de um lugar
para outro agitando os braços como um plebeu humilde e na frente de um
deles, sem mais nem menos!
Naquele momento, a princesinha se prometeu a não dançar sua música
novamente na frente de qualquer outra pessoa em toda a sua vida, exceto na
presença de Timothy porque ele era diferente. Desde que o encontrara
vagando pelo palácio, faminto e abandonado, ela o havia adotado e confiado
seus segredos mais íntimos e ele sempre retribuiu com carinho, ao contrário
de outras pessoas que conhecia.
A rainha se acalmou e ficou na companhia da filha enquanto tomava
banho naquela noite. Ela ajudou a vestir sua camisola lilás com mangas
arregaladas, e depois se sentou ao lado dela na grande cama de dossel de
renda branca. Pegou o livro de conto de fadas sobre a mesa e começou a ler
em voz alta.
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Logo a pequena princesa estava novamente envolvida no mundo
mágico da felicidade eterna. Ela se acomodou, e o incidente anterior que tanto
a desconcertou foi completamente apagado de sua mente.
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Capítulo Dois
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Satisfeito, o rei virou-se e na hora ele estava prestes a desaparecer pela
mesma porta pela qual tinha chegado. Mas Timothy Vandenberg III apareceu,
latindo com grande fúria, cruzou o seu caminho e estava prestes a derrubá-lo.
– Guarda! – gritou o rei, "tire esse vira lata do palácio e certifique-se de
que ele não volte!"
– Não, não papai! Timothy, não! Não leve embora, por favor!
– É apenas um incômodo, Victoria – Ele se virou para o guarda e
apontou para a porta. – O cão deve ir.
O guarda seguiu Timothy Vandenberg III, que tentou fugir de um lugar
para outro, mas naquele momento, quando o guarda estava indo para alcançá-
lo, Timothy tropeçou em um pedestal de alabastro e jogou mármore e um vaso
de rosas vermelhas bonitas da haste longa.
A pequena princesa, agarrando a perna do guarda no momento em que
estava prestes a pegar o cachorro, e implorou: – Por favor, não o leve –
suplicou – Por favor!
A rainha, que ouvira a comoção e saíra rapidamente para descobrir a
causa, levou a princesinha pelo braço e separou-a do guarda.
– Victoria, ordeno que pare de se comportar de uma maneira tão
imprópria, agora mesmo! Seu pai tem razão. Um cachorro é um animal
indigno de uma princesa – Ela olhou em volta contrariada. – Olhe toda essa
bagunça!
A princesinha tentou esconder sua própria raiva e permaneceu em
silêncio, embora a expressão em seu rosto a tivesse traído.
– Você sabe muito bem como deve se comportar! – disse a rainha,
examinando cuidadosamente o gesto carrancudo da princesinha.
– Vá agora ao seu quarto e revise o Código Real, especialmente a parte
que lida com o comportamento distinto e a manifestação indecorosa das
emoções. E não saia até que haja um sorriso no seu rosto.
A princesinha lutou para não se deixar levar pelo impulso que a levou a
correr para fora do corredor. Em vez disso, um mar de lágrimas ameaçou
inundar seus olhos. No entanto, ela conseguiu contê-los, embora uma pequena
lágrima percorresse sua bochecha enquanto ela subia a grande escada em
espiral que dirigia para o seu quarto.
Uma vez no quarto, ela derramou muitas lágrimas enquanto relia o
"Código Real de Sentimentos de Sentimentos e Comportamento para
Princesas", pendurada em um lugar de destaque em cima de sua cômoda. Foi
feito com grande dedicação pelo calígrafo do palácio, enquadrado e colocado
com grande sucesso pelo decorador, seguindo as ordens da rainha. Decretou
não só como a princesa deve se apresentar, agir e falar em todos os momentos,
mas também o que tinha que pensar e sentir. Embora às vezes era assim que se
sentia e pensava. Em lugar nenhum explicava como parar. Por que tinha de ser
uma princesa, de qualquer modo?, ela se perguntava.
– Você acha que é minha culpa, como de costume, certo, Victoria? –
perguntou Vicky, aquela vozinha que veio da parte mais profunda do seu ser.
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– Sim! Eu já lhe disse mil vezes que teríamos problemas se você
continuasse a cantar e dançar, chorar e fazendo beicinho. Você não me escuta!
– Eu odeio quando você fala como o rei – respondeu Vicky.
– Sinto muito, mas não sei mais o que fazer.
– Eu posso cumprir o Código Real, na verdade. Eu vou te mostrar. –
Vicky levantou a mão direita, limpou a garganta e disse com grande
solenidade: "Eu prometo seguir fielmente o Código Real em todos os
momentos para ser boa, não, mais do que isso, ser perfeito. Juro por Deus e
quero cair mortinha e beijar um lagarto se eu não conseguir!
– Não vai funcionar – previu Victoria.
– Eu prometi, não é?
– Você já me prometeu centenas de vezes.
– Mas eu nunca disse antes ―juro‖.
– Eu desejo que o rei e a rainha possam entender que é você e não eu
que causa tantos problemas, – disse Victoria suspirando.
– Eu não posso fazer nada se eles pensam que eu sou uma invenção da
sua imaginação – respondeu Vicky, docilmente. – De qualquer forma, isso não
acontecerá novamente. Você vai ver.
A princesinha realmente não queria jantar naquela noite e não queria
descer, mas ela sabia muito bem o que aconteceria se ela não fizesse isso e se
aparecesse de cara amarrada. No entanto, sorrir para os outros enquanto por
dentro se sentia infeliz foi a lição mais difícil de aprender, mas desta vez
estava determinada a aprendê-la.
Ela se forçou a praticar sorrisos diferentes na frente do grande espelho
de bronze. O rei havia dito a ela que o sorriso dela era uma bênção para os
olhos dele, embora não parecesse isso. Finalmente, frustrada depois de várias
tentativas, ela se contentou com um sorriso fraco e desceu para a sala de jantar
real.
Durante o jantar, a princesinha estava brincando com a comida e ficou
mais quieta que o normal.
– Alguma coisa errada no seu jantar? – perguntou o rei.
A princesinha se mexeu um pouco nervosa na cadeira.
– Princesa, você me ouviu?
– Sim – ela disse suavemente.
– Sim o quê?
– Sim, eu ouvi – respondeu ela com respeito.
– E então!
– Não há nada de errado com o meu jantar, papai – ela respondeu,
movendo o garfo de um lado para o outro, espalhando o macarrão.
– Aparentemente há um problema – disse a rainha – e peço-lhe que me
diga o que é.
A princesa olhou para o prato.
– Não é nada – ela respondeu, deixando de lado o garfo e torcendo o
guardanapo de linho macio em seu colo.
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– Victoria, eu quero que você me dê uma explicação agora – ordenou o
rei. – E espero que não tenha nada a ver com aquele cachorro sarnento.
A princesinha começou a ficar nervosa e a limpar a garganta várias
vezes.
– Não me atrevo a dizer – ela finalmente disse entre os dentes.
O rei e a rainha continuaram a pressioná-la e, finalmente, incapazes de
tolerar o olhar inquisitivo por mais tempo, ela admitiu que seu coração estava
triste.
– Eu quero Timothy de volta.
– O seu pai deixou bem claro...
– Por favor! – o rei disse à sua esposa abruptamente – Vou cuidar disso.
– Ele levantou da mesa agitado e começou a andar de um lado para o outro
com as mãos atrás das costas.
– Por favor, papai – a pequena princesa disse sem pensar – Timothy não
tem culpa por você ter quase caído. Ele sempre perde o controle quando Vicky
fica nervosa. E quando você gritou por cantar ...
– Vicky de novo! Sua mãe e eu já lhe dissemos que você não pode
culpar nenhum amigo imaginário por você ser do jeito que é!
– Não é verdade – Victoria respondeu timidamente – Vicky não é
imaginária, é real.
– Você está crescida demais para essas coisas – disse a rainha. "Já é
tempo de você ter aprendido a distinguir entre o que é real e o que não é. As
pessoas começaram a falar!
Victoria disse com uma careta:
– Eu não me importo com o que as pessoas dizem. Vicky é real, ela
fala, ela ri, ela chora e sente. Ela ama dançar, sonhar, cantar e...
O rei ficou furioso.
– Então é ela quem atrai todos aqueles pássaros horríveis com ela,
cantando desafinada, e dá aquele espetáculo na frente dos servos! E é a única
responsável pelo cão atravessar meu caminho, e aquela que grita e protesta
quando as coisas não te agradam! É isso que você quer me dizer, Victoria?
– Mas... mas... o senhor não entende – disse Victoria em sua voz mais
fina – O senhor sempre fica furioso com ela, mas na verdade, ela é um ser
encantador. Ela é maravilhosa, doce, engraçada, legal e... ela é a melhor amiga
que eu já tive. Não poderia tentar...?
O rei reagiu como sempre fazia em tais situações, deu uma repreensão
severa ao apontar com o dedo e olhou para ela com o rosto vermelho de
raiva. Sua raiva terminou quando ele gritou:
– Você é muito delicada, Victoria! Sensível demais, Você tem medo da
sua própria sombra. E você é muito sonhadora! O que há de errado com você?
Por que você não pode ser como outras crianças da corte? – Depois, dando os
sinais de grande frustração disse: – O que eu fiz para merecer isso?
A rainha tentou acalmá-lo, mas, como de costume, só piorou a
situação. Os dois começaram a discutir sobre a princesinha como se ela não
estivesse presente. Desejando que pudesse desaparecer, ela abaixou a cabeça e
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olhou para a toalha de mesa a sua frente e evitou os olhos deles. Não
agüentava ver-se refletida neles – um reflexo que vezes sem conta mostrou o
que estava errado com ela.
Então, foi agredida mais uma vez pelos seus olhares gélidos e suas
vozes furiosas:
– Olhe para nós quando estivermos falando com você, Victoria! –
Ordenou o rei.
A princesinha ergueu seus grandes olhos cheios de medo, quase incapaz
de ouvir suas palavras enquanto Vicky gritava com toda a sua força para
silenciar suas vozes.
Depois de alguns minutos angustiantes, a rainha disse:
– Olha o que você fez, Victoria. Você desapontou seu pai
novamente. As princesas devem ser fortes, modelos de perfeição
aristocrática. Tenho certeza que você já sabe e também que existe a maneira
correta e incorreta de ser, a maneira correta e incorreta de agir e a maneira
correta e incorreta de sentir. Bem, você saberá qual é a diferença, mocinha, de
uma vez por todas! Vá para o seu quarto agora, fique lá e, pelo amor de Deus,
apague essa expressão do seu rosto!
Por um lado, Victoria estava abatida por tudo que havia acontecido e,
por outro, os gritos de Vicky causava-lhe uma terrível dor de cabeça. Para
dizer a verdade, era isso que Vicky se tornara: uma tremenda dor de cabeça.
Vicky estava falando sem parar enquanto a princesinha subia a escada
em espiral do palácio. – Se princesas são todas como dizem, é muito provável
que não sejamos princesas reais. Aposto que a cegonha trouxe para eles o
bebê errado. É isso mesmo, eu sei Victoria... Victoria – repetiu Vicky
levantando a voz mais e mais. – Você está me ouvindo?
– Você! – gritou Victoria acusando quando eles entraram no quarto –
Você é que é a sensível e com medo das coisas. Você é a que está sempre
sentindo coisas, mas não é você quem supostamente sonha com coisas que
talvez nem aconteçam. Você até me faz dizer o que eu não deveria! Você é a
que não se importa com o Código Real, e eu é que fico metida em toda a
encrenca!
– Eu sou assim – respondeu Vicky em uma voz tão baixa que Victoria
teve que fazer um grande esforço para ouvir –, e o que sou não é bom o
bastante, então você nunca se dará bem com eles enquanto eu ainda estiver ao
seu lado. O melhor que posso fazer é sair e nunca mais voltar.
– O que vou fazer? – Victoria protestou. – Você tem que ficar longe do
rei e da rainha. Talvez se você esconder-se debaixo da cama a partir de
agora...
– Oh, assim como Timothy, como um cachorro? Eu me recuso a me
esconder lá embaixo. É o esconderijo dele e eu quero que ele fique lá, como
sempre.
– Eu não posso fazer nada para recuperá-lo, mas posso fazer algo por
você", respondeu Victoria.
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Esconda-se em algum lugar e debaixo da cama é o único lugar em que posso
pensar.
Vicky aceitou, embora não estivesse muito feliz com a idéia. No
entanto, uma vez segura abaixo da cama, continuou a falar sobre o quão
injusto era o Código Real, o ódio e o comportamento mesquinho do rei e da
rainha, da solidão que ela sentia debaixo da cama o dia todo, que ela não era a
pessoa mais apropriada para ser a melhor amiga de ninguém e que ela ainda
queria ir embora para nunca mais voltar.
Naquela mesma noite, sentindo-se muito cansada para tomar seu banho
de espuma e para ouvir qualquer conto de fadas, Victoria rejeitou a companhia
do servo e da rainha e foi para a cama, enquanto Vicky não parava de falar.
Incapaz de dormir, ela finalmente pediu para ela calar a boca. Mas em
vez disso, guiado por sua impulsividade, ele rastejou de seu esconderijo e
pulou na cama de Victoria. Enterrou o rosto nos travesseiros e começou a
chorar. As lágrimas encharcaram a colcha de seda e gotejaram para o chão.
– Chega – insistiu Victoria em um tom autoritário – Eu não agüento
mais. Você vai molhar tudo. Além disso, eles vão ouvir você. O que há de
errado com você? Você sabe que há um jeito certo e errado de ser, agir e
sentir e você vai saber qual é a diferença, mocinha, de uma vez por todas!
– O que você vai fazer? – Perguntou Vicky com uma voz chorosa.
– O que eu deveria ter feito há muito tempo. Eu vou te esconder em um
lugar onde você não possa ficar agitada para não me causar mais problemas!
– Eu pensei que você fosse minha amiga, mas eu posso ver que não é
assim! – ela respondeu gritando – Você é tão má quanto o rei e a rainha.
– Não me culpe. Tudo isso é por sua culpa! Eu te disse para ficar longe
deles – respondeu Victoria, levantando-se da cama instantaneamente,
enquanto quase escorregava com os pés descalços no chão molhado com
lágrimas. Ela acendeu a lâmpada de cabeceira.
– Entre lá agora mesmo!- ela ordenou, apontando um dos guarda-roupas
do outro lado da sala. – E não quero ouvi-la gritar ou reclamar.
Então, ela puxou Vicky para fora da cama, gritando sem parar, arrastou-
a pelo chão, empurrou-a para o guarda-roupa e bateu a porta. Então, com o
mesmo tom de voz usado muitas vezes pela rainha, ela disse: – Estou fazendo
isso para o seu próprio bem, Vicky – Em seguida, ela colocou a chave de ouro
na fechadura e fechou com firmeza.
– Não feche! Eu prometo que não vou sair, Victoria. Eu juro e...
– Suas promessas não significam nada – Victoria jogou a chave dentro
de seu enxoval de noiva, feito de madeira branca, com buquês de rosas
entalhados à mão que decoravam os cantos. – Eu te conheço, você vai
começar a falar, a lamentar e abrir a porta do armário para me dizer isso ou
aquilo sempre que quiser...
– Você não pode me esconder – gritou Vicky através da porta. –
Pertencemos uma a outra. Nós prometemos ser melhores amigas aconteça o
que acontecer, você se lembra?
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– Isso foi antes de você se tornar meu pior inimigo – respondeu
Victoria.
– Victoria, por favor, deixe-me sair daqui! Vicky implorou, batendo
desesperadamente na porta. – Preciso de você. Nós devemos sempre estar
juntas. Não me deixe! Estou com medo, Victoria. Eu serei boazinha e farei
tudo que você me pede. Por favor, me deixe sair!
Victoria subiu de volta em sua grande cama de dossel e, sozinha, fraca e
exausta, ela cobriu as orelhas com travesseiros enormes para não ouvir os
soluços de Vicky, que passou pela porta do armário. Finalmente, os soluços se
tornaram gemidos e, depois, em silêncio. Victoria levantou uma ponta de seu
edredom e se moveu para o peito para sentir a suavidade dela. Então, exausta,
ela mergulhou em seu mundo particular de sonhos onde não há lugar para
tristeza.
Na manhã seguinte, antes de a princesa se levantar, o rei apareceu na
porta do seu quarto com uma rosa vermelha, um sorriso tímido e uma caixa de
brinquedos cheia de figuras de madeira de cores diferentes, cortado com muito
cuidado pelo fabricante do reino.
– Bom dia, princesa – disse ele, entrando no quarto e sentando ao lado
dela na cama – Parece que hoje vamos começar um pouco mais tarde para
construir nossa casa de bonecas.
– A casa de bonecas? Oh, hoje é domingo – respondeu ela, tão cansada
que mal conseguia levantar.
– Eu não sabia, papai.
– Venha, princesa. Aqui nós nunca perdemos um domingo, certo? – ele
respondeu colocando a rosa na frente de seus olhos. – Pensei que isso poderia
trazer de volta o sorriso encantador para aqueles lábios pequenos de botão de
rosa.
A princesa olhou para a rosa e depois para o rei, que lhe dirigia um
sorriso e um gesto agradável. Como em muitas outras ocasiões, ainda não
sabia o que deveria pensar, fazer ou sentir.
O rei a pegou e a puxou para seu colo. Ele passou os braços ao redor
dela, envolvendo-a nas mangas largas de seu roupão de veludo macio.
– Minha querida filha! Você é realmente linda - disse ele. A princesinha
sentiu o peito do rei inchar de orgulho enquanto a abraça.
– Eu amo você, papai – disse a princesinha
O rei olhou para baixo e viu aquele prêmio de cabelos dourados que
segurava em seus braços.
– Eu também te amo, princesa. – Victoria sabia que era verdade.
Seguindo com o ritual semanal, a princesa e o rei estavam construindo
uma casa de bonecas. Quando terminaram, a princesinha rastejou e sentou-se
de pernas cruzadas, enquanto o rei estava deitado no chão de barriga para
baixo, com grande dificuldade de entrar a cabeça e os ombros através da
entrada para o que eles chamavam de porta principal. Eles tomaram chocolate
quente em imensos canecos servidos pelo cozinheiro do palácio.
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O rei levou o copo à boca enquanto se apoiava nos cotovelos, o que não
era nada fácil. De tempos em tempos, uma gota de chocolate escorreu por seus
braços e entrando nas mangas de seu manto real, embora não tenha
mencionado isso.
Tudo estava indo tão bem que Victoria decidiu tentar fazer as pazes, de
uma vez por todas, com o tema de Vicky. Mas foi um verdadeiro desastre,
porque no mesmo momento em que ela mencionou seu nome, o rei se
levantou zangado, derrubando a casa de bonecas.
– Vicky não existe, está me ouvindo? - disse ele gritando – eu desisto!
Você é impossível!
A princesinha cobriu a cabeça com os braços, enquanto as pequenas e
coloridas peças caíam ao seu redor.
– Desculpe, papai – ela conseguiu dizer com uma voz trêmula.
Mas o rei saiu muito zangado do quarto, deixando a princesa aturdida, sentada
no chão ao lado de uma pilha de detritos.
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Capítulo Três
Tudo estava diferente desde que Vicky foi confinada, pensou Victoria
olhando pela janela de seu quarto num fim de tarde. Seus olhos pararam diante
de uma árvore fina e solitária que podia ser vista no alto de uma pequena
colina além dos jardins do palácio. Nunca havia prestado muita atenção até
então, mas naquele dia deu a impressão de que a árvore se sentia triste e
sozinha lá fora. Ela soltou uma lágrima esporádica que correu lentamente pela
sua bochecha. É tão triste sentir só, pensou ela. E ao mesmo tempo, é tão
solitário não poder contar a ninguém sobre isso. Enquanto ela lembrava que
ela não deveria se sentir de qualquer maneira, nem sozinho nem triste,
começou a ter dor de cabeça.
As coisas não tinham corrido tão bem como ela previra desde que
trancara Vicky. Era bem mais fácil seguir o Código Real sem a presença de
Vicky, mas ser perfeito em tudo ainda era uma tarefa árdua.
Por alguma razão, ela não conseguia tirar os olhos da árvore. Sentindo-
se atraída pra lá, desceu as escadas, decidindo dar um passeio nos jardins, cuja
beleza era tanta que a encheu de felicidade. Quando chegou ao topo do
moinho, sentou-se no chão duro sob a árvore solitária e apoiou-se sobre o seu
tronco, levando as mãos à cabeça dolorida.
– Eu nunca vou ser boa o suficiente... não importa o quanto eu tente –
Victoria suspirou.
– Boa o suficiente, para quê? – Perguntou uma voz.
Ela sentou-se imediatamente e começou a olhar em todas as direções.
– Quem disse isso? – ela perguntou.
– Quem? Quem? Fui eu – respondeu a voz, parecia que a voz vinha da
árvore.
– Quem é você? – perguntou a princesinha.
– Quem é você? – a voz repetiu. – Essa é a questão. – Ok, eu lhe direi
primeiro – disse Victoria, levantando-se devagar para que sua dor de cabeça
não piore, e fazendo sua melhor reverência. – Eu sou a princesa Vitória, filha
do rei e da rainha deste reino. Eu moro no palácio do outro lado dos jardins.
Sou a primeira da minha turma na Real Academia Elementar de Excelência.
Eu tento por todos os meios seguir sempre as regras do "Código Real de
Sentimentos e Comportamento para Princesas. Sou muito melhor no plantio
de rosas do que no jogo de bola. Antes eu tinha um cachorro chamado
Timothy Vandenberg III. E às vezes sofro terríveis dores de cabeça... como a
que tenho agora mesmo.
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– É muito interessante, princesa, mas você ainda não me contou quem
você é.
– Contei sim! Claro que sei quem sou eu! – Victoria respondeu com
indignação.
– Todos devem saber quem é, mas poucos realmente se conhecem.
– Está me confundindo.
– Saber que você está confusa é o primeiro passo para deixar de
confundir.
– Estou discutindo com uma árvore? – murmurou ela para si mesma. –
Talvez minha mãe e meu pai estejam certos e não sou capaz de distinguir o
que é real do que não é.
Ela olhou para os galhos que estavam ao seu redor.
– Por favor, me diga que você falou comigo, Sr. Árvore – implorou
Victoria – Falou, não é mesmo?
– A resposta para essa pergunta é sim... e não – respondeu a voz.
– Você fala, Sr. Árvore! Fala, sim!
– As coisas nem sempre são o que parecem princesa.
Naquele momento uma coruja desceu, flutuando para o chão como uma
folha ao vento. Batendo suas asas rapidamente, endireitou o estetoscópio que
pendia em seu pescoço e depositou cuidadosamente uma vasile preta a seus
pés.
– Deixe-me apresentar – disse ele com grande solenidade. – Sou Henry
Herbert Hoot, D.C. Mas meus amigos me chamam de Doc.
– Ah não, primeiro uma árvore falante e agora uma coruja que também
fala e que se chama Henry Herbert Hoot? Agora acredito que sou incapaz de
distinguir o que é real do que não é.
– Pelo contrário. Sou tão real quanto um conto de fadas para uma
princesa... Ah, isso me lembra uma canção – ele disse com grande prazer –
embora haja muitas coisas que me trazem à memória nas canções.
Dizendo isso, ele pegou sua vasile preta e tirou um chapéu de palha que
foi colocado em sua cabeça, e um banjo em miniatura. Então ele começou a
tocar e cantar:
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– Na verdade, muito – ele respondeu – Como explicado no meu título,
D.C., eu sou um médico do coração, especialista em corações partidos.
Victoria caiu para frente e inclinou a cabeça. Finalmente, perguntou
com uma voz doce:
– Como é que identifica um coração partido?
– Vendo a tristeza em seus olhos, eu suspeito que você já sabe a
resposta – respondeu Doc, tirando o chapéu e colocando-o na bolsa preta junto
com o banjo.
– Receio que meu coração esteja partido – disse a princesa com o olhar
abatido.
– O seu autodiagnóstico está correto.
– Pode consertar isso? Quero dizer meu coração.
– Não exatamente dar um jeito, mas posso ajudá-lo a fazer isso. Ainda
assim, será mais difícil de fazer que desapareça a tristeza dos seus olhos,
princesa.
– Mas o que você quer dizer?
– A cura
– Bem, então, você pode curar meu coração?
– Receio que não, princesa. Só você pode fazer isso.
Victoria franziu o cenho.
– Que tipo de médico você é se eu sou quem tem que curar meu próprio
coração?
– O mesmo que os outros. Podemos consertar muitas coisas e ajudar a
consertar outras... mas não podemos curar.
– Não entendo.
– Há muitas coisas que você ainda não entende, mas entenderá um
dia. E então? - disse Doc, mudando de assunto. – Você se sente melhor em
saber que fui eu e não a árvore que falou com você?
– Claro que não – respondeu Victoria, suas mãos descansando em seu
quadril. Se eu não consigo entender a existência de uma árvore falante, muito
menos de uma coruja médica que fala e que canta.
– Algumas coisas não precisam de explicação. Você apenas tem que
vivenciar.
– Tente explicar para minha mãe, se por acaso algum guarda do palácio
me ver aqui falando com ninguém... Oh, me desculpe. – gaguejou Ela – Eu
não quis dizer ―ninguém‖, realmente. Isto é... bem, você sabe...De qualquer
modo – Observando, como o sol desapareceu no horizonte. – Eu tenho que ir
agora. Quando posso te ver de novo?
– Sempre que seu espírito a guiar – respondeu a coruja.
– Um espírito que me guia? O que isso significa?
– Por agora, o importante é que você saiba que pode retornar quando
quiser.
– Você diz algumas coisas muito engraçadas – a princesa respondeu,
balançando a cabeça e percebendo que não estava doendo mais. Então, ele
21
começou a descer a colina na direção do palácio, enquanto se despedia
acenando.
Quando ela se aproximou da porta principal do palácio, a princesinha
viu a rainha observando-a de uma janela de sacada. Quando ela chegou à
porta, sua mãe estava à espera.
– É quase noite. Onde você esteve, Victoria?
– Naquela árvore – murmurou ela.
– Fazendo que?
Infelizmente, o Código Real proibiu estritamente todos os tipos de
mentiras, por mais insignificantes que fossem. Victoria não teve alternativa
senão responder a verdade.
– Conversando – ela disse hesitante.
– Com quem? – Perguntou a rainha.
– Com a árvore – ela respondeu, sabendo o que aconteceria em seguida.
– Suponho que o que você vai me dizer agora é que a árvore te
respondeu. – A pequena princesa sentiu um calafrio estremecendo todo o
corpo para ouvir o tom de voz da rainha.
– No começo eu pensei que o falante fosse a árvore, mas na realidade
era uma coruja.
– Realmente, Victoria, isso tem que acabar. Você não pode continuar
contando essas histórias extravagantes. É hora de você parar de estar nas
nuvens.
Victoria não tinha certeza do que "estar nas nuvens" significava, mas
ela pensou que deveria ser algo maravilhoso.
– Eu posso te mostrar que a coruja fala - disse ela num tom submisso.
– Nem mais uma palavra sobre o assunto, Victoria. E tanto quanto essa
árvore ou coruja,... eu te proíbo de voltar lá. Assunto encerrado. – Então, a
rainha se virou e saiu imediatamente.
– Por que ela nunca acredita em mim? Victoria perguntou a si mesma
em voz baixa. "Eu sei que a coruja está falando, eu o ouvi.
Mas naquela noite ele começou a pensar que talvez a rainha estivesse
certa. Afinal, quem tinha ouvido algum dia uma coruja falar? Além disso, a
rainha sempre parecia estar certa em tudo.
Cada vez que a princesa ficava mais velha, a cada ano, desejava que o
próximo ano fosse mais feliz. Houve danças magníficas requintadas, festas
campestres e noites de muita diversão, animadas com jogos de pólo no reino.
No entanto, parecia que sempre faltava alguma coisa. Muitas vezes, a princesa
observava tristemente da janela do seu quarto vendo como os pássaros voam
de árvore em árvore, como eles cantavam e gostavam da liberdade. Ela
imaginou como seria ser um deles. Não sentir-se diferente e solitária mesmo
no meio de amigos.
À medida que a primavera seguiu-se ao inverno e o verão deu lugar ao
outono, Victoria floresceu para transformar-se numa jovem mulher adorável,
graciosa e encantadora e tudo que uma princesa deveria ser.
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Formou-se com honras na Real Academia Superior de Excelência. Mas
talvez sua maior conquista tenha sido tornar-se perfeita em falar, agir, pensar e
sentir exatamente como prescrevia o Código Real.
Na tarde de sua formatura, o rei e a rainha deram uma grande festa no
salão de baile do palácio, com tocadores líricos de alaúde e bufões coloridos
da corte. Um mar de convidados notáveis presenciou o orgulhoso rei dar à
filha um presente especial.
– Nesta ocasião importante – começou ele – orgulhosamente presenteio
com a Árvore Genealógica da Família Real, um tesouro da valor imensurável
que foi responsável pelo bom rumo das vidas nobres de nossos ancestrais,
desde o ponto em que nossa linhagem foi traçada. Na nobre tradição da
família real desse reino, você deverá trilhar o caminho aqui estabelecido.
Ele entregou à princesa o rolo de pergaminho acinzentado. Tinha uma
cinta prateada reluzente em volta, afixada com o sinete real. Suas beiradas
rasgadas revelavam seu uso leal por muitas gerações de famílias reais.
O rei ergueu seu caneco de cerveja e gritou:
– Vida longa para o legado real!
– Bravo, bravo!- ecoou a multidão de simpatizantes, erguendo seus
canecos para a princesa. – Vida longa para o legado real! Vida longa para a
princesa! Vida longa para o rei e a rainha!
Quando o último dos convidados partiu, Victoria voltou para seu
quarto, tirou os sapatos e caiu na cama, pensando onde guardaria sua Árvore
Genealógica da Família Real em segurança. Embora não tivesse dúvidas
quanto a sua autenticidade e utilidade, esperava jamais ter necessidade dela,
pois já sabia exatamente para onde estava indo. Primeiro para a Universidade
Imperial, a fim de receber uma educação condizente com uma princesa e um
diploma em MRS, e depois para o próprio palácio com seu Príncipe
Encantado, onde viveriam felizes para sempre.
Ela enfiou o pergaminho em seu baú e foi até a penteadeira,
impregnada pelo forte perfume das rosas que o jardineiro-chefe colhera bem
frescas naquela manhã, como sempre fazia. Formavam um arranjo perfeito
com hera e flores brancas no vaso lapidado a mão que a princesa pegara da
coleção de cristais do palácio.
Seus olhos se demoraram nas aveludadas pétalas vermelhas e ela
suspirou – como as donzelas sempre falassem – e imaginou seu dramático
resgate das muletas do Código Real, do sacudir do dedo todo-poderoso do rei
e dos vigilantes olhos da rainha. Um dia o verdadeiro amor seria dela, e tudo
estaria de acordo com o mundo.
Ela estendeu o braço e girou a chave de sua caixa de música. ―Algum
dia meu príncipe chegará‖ começou a tocar. Ela pegou uma rosa na mão,
tirou-a do buquê e tocou sua face suavemente com ela. Se ao menos ele se
apressasse, pensou.
23
PARTE II
24
Capítulo Quatro
25
Por todo o caminho de volta para casa, Victoria teve a sensação de que
algo mágico havia acontecido. Enquanto recordava cada palavra, cada olhar
que ela e o príncipe tinham trocado, uma sensação de excitamento espiralava
dentro dela. Era tudo que podia fazer para se impedir de rir alto.
De repente, foi dominada por lembranças de Vicky – a pobre e há muito
esquecida Vicky. Victoria desejou que algum dia pudesse contar sobre o
príncipe à sua primeira e verdadeira melhor amiga. Pensou sobre como ela
ririam juntas e se abraçariam, dançando e cantando, como sempre faziam
tempos atrás quando algo de maravilhoso acontecia. Mas ousaria deixar Vicky
sair do armário? Inúmeras perguntas rodopiavam em sua mente. Como seria
Vicky daqui a muitos anos? E o rei e a rainha? E quanto a isto ou aquilo?
Usando sua técnica habitual para ordenar tais coisas, Victoria começou
a compilar uma lista mental de prós e contras. Na hora em que chegou ao
quarto e depositou seus livros, já havia decidido. Um segundo grande evento
teria lugar naquele dia.
Ela abriu a tampa de seu baú e remexeu entre os finos trajes de linho e
renda, tomando cuidado para não amassar a Árvore Genealógica da Família
Real que estava em cima. Ela chegou lá no fundo. Seus dedos longos sentiram
o metal frio da chave do armário onde aprisionara Vicky.
Seguiu lentamente até o armário e ouviu a porta.
– Vicky... olá... sou eu, Victoria. – Ela bateu de leve. – Vicky, vou abrir
a porta. Tenho algo maravilhoso para lhe contar... Vicky, responda.
Ela pôs a chave dourada no buraco na fechadura, girou-a e entreabriu a
porta. Só viu escuridão, e não ouve qualquer som.
– Vicky, onde está você? – perguntou ela, escancarando a porta.
Lá dentro, agachada no chão com os braços firmemente enrolados sobre
a cabeça baixa, estava a pequena Vicky.
– Você está bem? Não tenha medo. Sou eu... Victoria.
– Vá embora e deixe-me em paz – gritou a garotinha, se enfiando mais
fundo nos recessos do armário.
- O que há, Vicky? Vim para tirar você daí – disse Victoria, adentrando
o armário.
– Não, dê o fora daqui. Não quero sair!
– O que quer dizer? Você não pode ficar aí para sempre.
– Posso sim. E quero ficar. Já me acostumei. Vá embora.
– Tenho muito para lhe contar. Por favor, não fique com medo. Não vou
magoá-la.
– Já o fez. Diversas vezes.
– Não tive intenção. Sinto muito, realmente.De qualquer modo, tudo
está diferente agora. Não vai mais acontecer.
Vicky choramingou.
– Não acredito em você.
– Acredite, Vicky, prometo. Te juro, e quero cair mortinha e beijar um
lagarto se não cumprir... lembra?
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– Ainda não acredito em você, e não vou sair. – Ela lançou um olhar
furtivo para Victoria. – Mas acho que você pode ficar aqui por um minuto, de
realmente quiser.
– Isso é bobagem. Vamos lá. Sentaremos na cama, como costumávamos
fazer e...
– Não, não posso.
Victoria ajoelhou-se ao lado de Vicky e a enlaçou com o braço para
consolá-la. A princípio elas se abraçaram em silêncio no chão. Logo, já
estavam conversando, relembrando e chorando. Finalmente, Victoria
conseguiu retirar sua amiguinha do armário.
Sentaram-se na grande cama de dossel e continuaram a conversar,
relembrar e a chorar, ensopando as cobertas sedosas até as lagrimas pingarem
o chão, como as lágrimas de Vicky tinham feito tantos anos antes. E à medida
que a madrugada se arrastava, elas exultaram por estarem de novo unidas e
por terem encontrado o príncipe tão esperado.
27
Nos meses que se seguiram, Victoria permitiu que o príncipe
conhecesse Vicky gradualmente. Foi um suplício nervoso no início, sem saber
como ele reagiria. Mas as preocupações de Victoria e Vicky revelaram-se
infundadas. Quanto mais via Vicky, mais o príncipe gostava dela. De fato, ele
revelou sua sensibilidade a todos e a tudo que a cercava. Partilhava dos sonhos
dela e apreciava o seu canto.
O príncipe e a princesa brincavam, riam, conversavam e amavam. E
eles estudavam com afinco. Os dias demoraram a passar quando estavam
afastados. Quando estavam juntos, os dias nunca eram longos o suficiente. Na
própria tarde de junho em que a princesa se formou, o príncipe conquistou seu
coração para sempre. Ela aceitou tornar-se sua esposa.
Uns poucos dias antes das bodas, a princesa começou excitadamente a
embalar suas coisas. Claro que levaria seu baú para o novo palácio que em
breve partilharia com seu príncipe. Foi uma decisão fácil. O baú aguardara
anos por esse evento.
Ela procurou entre as roupas penduradas no armário, decidindo o que
levar e o que doar para os carentes.
Enquanto sentava-se a penteadeira, vasculhando as gavetas, ela
ponderou sobre o Código Real pendurado na parede a sua frente. Não tinha
mais necessidade dele, pensou. Ela se transformara nele.
– Eu não preciso – disse Vicky, borbulhando de alegria.
– Não precisa o quê?
– Não preciso me transformar no Código Real...como você. Mas isso
não importa, de qualquer modo, porque o príncipe me ama do jeito que sou.
– Sim, e que alívio que isso é. Mas lembre-se, Vicky, você ainda precisa
se esforçar nisso... em caso de necessidade.
Após embrulhar cuidadosamente seus frascos de perfume, um por um,
em papel de seda, a princesa pegou sua pequena caixa de música encimada
pelo elegante casal e deu corda. Enquanto os sons ―Algum dia meu príncipe
chegará‖ tilintavam, ela se olhou no espelho de corpo inteiro com moldura de
latão, que ainda permanecia no canto de seu quarto, e recordou o quanto se
sentia linda ao se mirar nele – tão linda, que com freqüência era impelida a
dançar. Mas isso tinha sido quando era muito. Após um momento, o espelho
havia refletido a mesma imagem que ela via nos olhos dos pais, de modo que
nunca mais quis mirar-se no espelho.
Ela olhou fixamente para o seu reflexo. Era tão linda quanto aquela
refletida nos olhos do seu adorado príncipe. Começou a oscilar com música,
girando e sacudindo-se numa dança animada que vinha de algum lugar dentro
de si. Vicky guinchava de prazer. Estavam cumprimentando o seu príncipe
chegara. O verdadeiro amor seria dela para sempre.
O casamento foi glorioso, e depois de uma lua-de-mel encantada, o
casal feliz se estabeleceu para uma nova vida em comum num lindo palácio a
curta distância dos pais da princesa. Os terrenos eram bordejados por árvores
frutíferas e ervilha-de-cheiro rosa e lavada. Havia um amplo jardim de rosas
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com um banco de pedra pintada de branco no meio, onde o príncipe e a
princesa costumavam se sentar para reafirmar seus votos de amor eterno.
O príncipe revelou-se bem mais do que encantado e bonito. Era também
esperto, forte e muito habilidoso. Sabia consertar quase tudo, só que se tornou
tão atarefado que às vezes passavam semanas até que arranjasse algum tempo.
Mas sempre encontrava tempo de levar a princesa aos jardins para colher
rosas vermelhas, as quais arrumava em vasos de cristal lapidados a mão e
espalhava pelo palácio.
O príncipe era a luz na vida da princesa, sua razão de ser. Ela o
cumulava de atenção e afeto. Toda manhã ela se levantava cedo para
acompanhá-lo no desjejum de mingau de aveia com canela e passas ou
panquecas de leitelho com xarope de amora recém-prensado. Depois, quando
achava que ele não estava olhando, ela secretamente escrevia ―eu te amo‖ com
tinta vermelha num guardanapo e o enfiava na marmita que o cozinheiro real
preparava para ele todos os dias. Com um abraço e um beijo, se despedia
quando ele partia para trabalhar na Embaixada Real.
A vida com o príncipe era tudo com que a princesa sempre sonhara, e
mais. Ela adorava acompanhá-lo nas funções diplomáticas, onde usava os
trajes mais na moda. Em reuniões de amigos ele era sempre a alma da festa.
Todos se entusiasmavam com a sua famosa série ―Vida de Criança no
Palácio‖, e com freqüência pediam bis.
– Sempre imaginei que meus pais me queriam – contava ele, – mesmo
quando estavam muito ocupados reinando. Isto é, até que um dia cheguei da
escola e descobri que tinham se mudado!
Isso provocava uma sucessão de risinhos. Então, no exato momento, ele
acrescentava:- E não tinham sequer deixado o novo endereço!
Com isso, o salão explodia em gargalhadas que estimulavam o príncipe
à sua próxima, e mais engraçada, revelação d infância. Ele era tão engraçado
que, em particular, a princesa começou a chamá-lo provocadoramente de Dr.
Risinho.
Donzelas do reino e do exterior, outras princesas, e até ocasionalmente
uma duquesa, perguntavam: ―O príncipe é assim o tempo todo?‖ E diriam
coisas como: ―Como ele é alegre. Que sorte você tem em ser esposa dele.‖
Quando o casal real retornava para casa, o Dr. Risinho envolvia a
esposa em seus braços, como um cobertor de amor.
– Oh, minha querida princesa, você é realmente uma beleza – dizia e ela
sentia o peito dele inflar de orgulho enquanto a estreitava de encontro a si.
Aos domingos, o príncipe e a princesa costumavam jantar com o rei e a
rainha, que logo começaram a amar o príncipe como o filho que nunca
tiveram. O príncipe discutia questões de Estado com o rei, enquanto a princesa
e a rainha supervisionavam o preparo da ceia. Os quatro ouviam concertos
juntos e iam aos Jogos Olímpicos Oficiais do Reino, no Estádio da Nobreza. E
tiravam férias juntos no Lago Relaxação.
Eram muitas as responsabilidades da princesa, que as desempenhava
com precisão e graça e ainda tinha tempo para encher o palácio de canção e
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riso, e planejar novas atividades interessantes, como tomar lições de arco e
flecha.
Mas na sua primeira lição, na manhã de domingo, tornou-se evidente
que havia um problema. Embora a princesa empregasse cada reserva de sua
força, ela simplesmente não conseguia retesar a corda do arco o suficiente
para disparar a flecha além de uns poucos metros. Vicky estava mortificada.
– Nunca mais voltarei àquele estande de arco e flecha – anunciou a
princesa ao príncipe na carruagem de volta a casa.
– Você não se saiu tão mal para a primeira vez, princesa. – Ele apertou
o bíceps dela prazerosamente. – Se continuar tentando, talvez possa fortalecer
os músculos desses lindos bracinhos.
Lembranças vividas de fracassos no jogo de bola passaram por sua
mente.
– Eles costumavam a me chamar de Bola Fora – disse ela, sentindo-se
tão humilhada quanto ficara nos tempos de escola. – Acho melhor eu me
dedicar às coisas em que sou boa.
– Felizmente, você é boa em muitas coisas mais importantes do que
jogo de bola ou arco e flecha – replicou o príncipe, erguendo alegremente as
sobrancelhas e dando-lhe um sorriso malicioso.
A princesa sorriu sem entusiasmo e tentou não pensar no que já tinha
sido uma vez, mas a primeira lembrança detonou outra.
– Eles me chamavam de Princesa Metida a Besta e Srta. Perfeita –
disse, baixando a cabeça.
Ele pegou-a pelo queixo e erguer o rosto dela para o dele.
– Esse tempo acabou. Amo você exatamente como é.
Ela sabia que era verdade, pois podia ver seu reflexo nos olhos dele, e
continuava linda.
Quando voltaram para o palácio, a princesa enrolou-se no sofá e
começou a ler as histórias em quadrinhos do Notícias do Reino. O rei as tinha
lido para ela quando era pequena, e a princesa apreciava histórias em
quadrinhos desde aquela época.
O príncipe folheava a seção de espetáculos.
– Tem uma coisa aqui que é boa para você, princesa – disse ele. – Uma
trupe teatral local está realizando testes para Cinderela. Vamos ver... hã... a
ser encenada nas escolas reais e nos mais antigos centros de vassalagem de
reino.
– Hum, bem, não sei.
– Acho que deveria fazê-lo, princesa. Vai ser uma barbada, percebe? –
insistiu ele, seu sorriso cálido e familiar ampliando e realçando as covinhas no
rosto.
– Acha mesmo que obterei um papel, se tentar?
– Sua voz atrai os pássaros das árvores para se reunirem em volta e
cantarem com você. E certamente não existe ninguém mais bela que você. Isso
responde a pergunta? Ora, Dr. Risinho - disse a princesa, batendo as pestanas
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com recato – Creio que você confundiu os contos de fadas. É a Branca de
Neve e não Cinderela que é a mais bela de todo reino.
– Não, princesa. Você é a mais bela de todas.
A princesa passou no teste e ganhou o papel principal. Na noite de
estréia, o auditório de sua primeira alma mater. – a Real Academia Elementar
de Excelência ficou lotada. O príncipe sentou-se na fileira do meio, entre o rei
e a rainha.
Embora Vicky estivesse tão nervosa a ponto de os joelhos da princesa
chocalharem ao entrar em cena, ela representou uma Cinderela soberba e
recebeu uma ovação estrondosa. Quando ela fez uma mesura final de
agradecimento, o príncipe entregou-lhe um buquê das mais lindas rosas
vermelhas de caule longo que ela já vira. Mais tarde, nos bastidores, o crítico
teatral do Notícias do Reino disse a princesa que ela possuía uma voz de anjo
e que deveria considerar fazer um teste para um papel profissional no Grande
Teatro Régio.
O rei e a rainha a adejavam de um cumprimento para outro,
respondendo com comentários do tipo: "Obrigado. Mesmo ainda criancinha,
ela demonstrava muito talento para o canto e a dança."E:"Ela é muito esperta
e espirituosa."E:" Ela teve a quem puxar eu mesmo fui bastante talentoso
quando criança, você sabe"
O produtor estava exultante.
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Capítulo Cinco
32
– Mas não pode! Não é justo. Você sabe como adoro cantar e dançar.
Talvez realmente pudéssemos ser famosas.
– Oh, Vicky. Você ouviu o que o príncipe disse. E você prometeu parar
de sonhar com coisas que talvez nunca aconteçam.
– Mas poderiam acontecer! Lembro de que o rei dizia que nosso canto
era para os passarinhos, e a rainha dizia que a nossa dança era um vexame.
Mas agora, depois de Cinderela... todo mundo nos ama!
– Eu sei, Vicky – disse Victoria com simpatia. – Mas o príncipe nos
ama. E nós o amamos. Você não iria fazer qualquer coisa para deixá-lo infeliz
ou para que o perdêssemos, iria?
– Bem...acho que seria bem pior do que não nos tornarmos uma estrela
famosa – resmungou Vicky e não tornou a mencionar o assunto.
– Quanto mais pensava em ter um bebê, mais Victoria apreciava a idéia.
E assim o príncipe e a princesa tentaram, cheios de esperança, mas, mês após
mês, nada de bebê.
Vários inversos em sequência foram especialmente frios e houve um
surto virulento de gripe que se espalhou por todo o reino. A princesa
freqüentemente adoecia.
– O príncipe traia-lhe canja de galinha do reembolsável da embaixada e
a servia na cama. Depois sentava-se com ela para contar-lhe as últimas
novidades da Colina do Reino.
À medida que o tempo passava, o príncipe começou a queixar-se de que
seu trabalho na embaixada era por demais estressantes e seus colegas
diplomatas muito formais e tediosos. Ele dizia que às vezes lamentava ter
nascido príncipe, que seria muito mais feliz sendo um ferreiro. A princesa
estava tão preocupada quanto desapontada. Sempre imaginava que, com todo
o seu potencial e charme, ele certamente chegaria ao topo na carreira
diplomática.
Após um tempo, a quantidade de reclamações do príncipe cresceu tanto
que ele foi nomeado presidente do Comitê Real de Reclamações – que não era
exatamente o que a princesa tivera em mente para ele -, mas ele logo se
cansou dessa nova responsabilidade. Na verdade, estava farto de
responsabilidades de qualquer espécie. Nem mesmo queria que a princesa lhe
pedisse mais para consertar coisas no palácio. Ainda assim, ele continuava
adorável e encantador como sempre, e muito mais divertido. Passava cada vez
mais tempo contando seu repertório de piadas – inclusive sua série ―Vida de
Criança no Palácio‖ – para qualquer um que estivesse ao alcance de sua voz.
O Dr. Risinho estava em grande forma.
A princesa amava o Dr. Risinho de corpo e alma. Tentou mais do que
nunca mostrar-lhe o quanto, mas o príncipe dizia que não era o suficiente.
Acusava-a de não amá-lo tanto quanto ele a amava. Ela tentava a cada dia
provar seu amor – inclusive buscando aconselhamento na Clínica Real da
Fertilidade -, porém quanto mais amor ela lhe dava, mais ele parecia precisar.
No final de uma tarde, a princesa dispensou o cozinheiro mais cedo.
Adorava preparar ela mesma o jantar, especialmente quando tinham algum
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convidado. Enquanto preparava uma das suas especialidades – fettuccine aos
brócolis com molho de pistache, – ela dançava pela cozinha, cantarolando:
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A princesa construiu uma sólida reputação como excelente cozinheira
de pratos naturais para gourmets. Amigos e convidados para jantar
disputavam suas receitas, deixando o príncipe muito orgulhoso.
Uma noite, após jantar no palácio, a esposa do diretor da Companhia de
Transportes Inter-Reinos elogiou a comida e sugeriu que a princesa
compilasse suas receitas para publicação em livro. O príncipe achou que era
uma excelente idéia.
– Não sei como escrever um livro – disse a princesa mais tarde, depois
da partida dos convidados. – E se ao menos eu pudesse imaginar como fazê-
lo, provavelmente não seria publicado, de qualquer modo.
– Oh, princesa, você sempre duvidou que pudesse fazer coisas que
nunca fez antes. Claro que pode fazê-lo.
E assim a encorajou. Comprou para ela novas penas de escrever e
pergaminho para registrar suas criações culinárias. Ele provou classificou
novas receitas e elogiou seus esforços.
Após vários meses de trabalho no livro, a princesa estava sentada na
mesa da cozinha numa tarde ensolarada, sua pena deslizando pelo pergaminho
enquanto registrava instruções para o preparo do seu Suflê Vegetal Cremoso
de Limão e Ervas. De repente, sentiu um calafrio percorrer toda a extensão do
seu corpo como se uma brisa soturna rodopiasse pelo cômodo. Ela ergueu a
vista e viu o príncipe. Seu olhar gélido e penetrante a perfurou.
– Você se preocupa mais com esse maldito livro do que comigo – disse
ele, seu rosto se contorcendo numa careta de fúria. – Nem mesmo olhou
quando entrei!
A princesa sentou-se por um momento, atônita.
– E-eu estava trabalhando nisso. Acho que não o ouvi
– Não é nenhuma novidade. Você nunca mais me deu atenção. Toda
vez que olho para você, ou está cozinhando ou escrevendo alguma coisa.
– De-desculpe. Pensei que quisesse que eu escrevesse este livro – disse
a princesa, começando a tremer por dentro.
– O que faz pensar que será bom o bastante para que alguém queira
publicá-lo, afinal?
– Você me convenceu disso. Achei qu estivesse orgulhoso de mim.
– Orgulhoso de quê? – replicou o príncipe. – De uma esposa que está
sempre sonhando com coisas que provavelmente nunca irão acontecer? De
uma esposa que não ama o marido o suficiente para estar com ele quando
necessita dela?– Estou presente quando precisa de mim. E amo você. Amo de
corpo e alma, e sempre amarei. Você sabe disso. Não fui eu que mandei o
cozinheiro real preparar maravilhosos desjejuns para você? Mingau de aveia
com canela e passas, ou panquecas de leitelho com xarope de amora recém-
prensado? E não me levantei cedo todo dia para sentar-me e comer com você?
– replicou ela, sua voz começando a se alterar. – Não coloquei sempre bilhetes
de amor nas suas marmitas, e não massageei seu pescoço e ombros quando
chegou estressado depois de um dia terrível na embaixada? Não lhe disse
repetidas vezes o quanto você é encantador, bonito e maravilhoso? Não sou a
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melhor platéia que já teve para suas piadas e histórias? Não entretenho seus
amigos, não mantenho o palácio impecável e espalho rosas vermelhas por toda
parte para nos lembrar do nosso amor especial? Não sento com você no banco
de pedra do jardim e...
– Já basta, Victoria! Detesto quando você entra nessas explicações sem
fim. – Ele virou-se abruptamente e saiu.
A princesa sentiu-se como se no seu estômago houvesse uma batedeira
de manteiga na velocidade máxima. Seu peito parecia apertado por um torno,
e a cabeça começou a doer enquanto o som da voz histérica de Vicky berrava
em seus ouvidos:
– Ele nos odeia! Ele nos odeia!
Mais tarde, enquanto a princesa chorava sobre o travesseiro, o príncipe
entrou e sentou-se ao lado dela. Repetiu-lhe exaustivamente o quanto
lamentava o acontecido, o quanto não tivera a intenção de lhe dizer aquelas
palavras e que magoá-la era a última coisa que desejaria no mundo. Disse a
ela o quanto a amava e prometeu que nada daquilo se repetiria.
– Foi o que disse da última vez – replicou ela, sua voz abafada pelo
travesseiro. – O que está havendo com você?
– Não sei, princesa. Essa força se apossa de mim, e ouço-me dizendo
coisas terríveis. Não consigo crer que estejam saindo da minha boca.
– Bem, certamente não é o meu Dr. Risinho quem as está dizendo, com
toda a certeza – disse ela, fungando.
– Não, ele se oculta. – Oculta... hum... isso me faz lembrar de uma
história que ouvi de um terrível monstro – disse ela, sentando-se e tentando
clarear a mente. – Deixe-me ver... como é que foi mesmo? Ah, sim, lembrei.
Às vezes esse monstro se apossava de um médico e o fazia praticar coisas
terríveis. Ora, é exatamente o que acontece com você! – disse ela, de olhos
arregalados. – O Dr. Risinho se transforma no Sr. Oculto.
– Acha que realmente é isso? Como poderia ser? – perguntou o
príncipe.
– Não sei. Deve ser um feitiço ou coisa parecida.
– É isso! É isso! Alguém lançou um feitiço maligno contra mim.
– Bem, eu notei uma brisa sinistra rodopiando pelo quarto pouco antes
do piscar de seus olhos se transformarem num olhar gélido.
– Princesa, tem de me ajudar, por favor – suplicou o príncipe, apoiando-
se em desespero nos ombros da princesa.
– Oh, meu querido, claro que irei ajudá-lo – disse ela, lançando os
braços em volta do príncipe e puxando-o contra si. – Não jurei amá-lo e cuidar
de você nas fases boas e ruins, na doença e na saúde, até que a morte nos
separe? Procure não se preocupar. Haveremos de superar isso... de alguma
forma.
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Capítulo Seis
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princesa confidenciava ao príncipe – todos os seus pensamentos secretos,
medos e sonhos – e ele tornou-se especialista em usá-los para feri-la.
Sabendo que o príncipe era bom e que não tinha consciência do que
dizia e fazia quando sob a influência do feitiço maligno, a princesa tentava
com mais empenho do que nunca encontrar um meio de libertá-lo. Recortava
artigos de números atrasados do Jornal de Misticismo do Reino, que ordenara
fossem enviados ao palácio. Sublinhava em vermelho as partes importantes
para que o príncipe não desperdiçasse seu tempo precioso para lê-los. Deixava
os artigos na mesa da cozinha, onde certamente o príncipe não deixaria de
notá-los. Ainda assim, a informação era incompleta, na melhor das hipóteses.
A princesa decidiu que precisava de um plano cuidadosamente
esquematizado. Sentou-se com a pena na mão e fez uma lista de tudo em que
pôde pensar que fosse útil para afastar o feitiço do príncipe. Afinal, pensava,
cada problema tinha sua solução. Ela simplesmente precisava encontrá-lo, e
ponto final. A seguir, decidiu tentar cada item de sua lista, um de cada vez.
Primeiro sugeriu ao príncipe buscar aconselhamento profissional.
Talvez com o diretor real da prece, que era eminentemente qualificado para
lidar com ações maléficas. Ou com o mago da corte, especialista em fazer
coisas desaparecerem. O príncipe recusou as sugestões. Achando que ele
poderia se sentir mais à vontade com alguém que não conhecesse, ela sugeriu
o astrólogo do outro lado do reino, do qual ouvira excelentes referências. O
príncipe replicou que não pretendia discutir o problema com qualquer
estranho que talvez nem fosse capaz de ajudá-lo.
– Então você vai ter de se esforçar ainda mais para impedir que o feitiço
o domine – disse a princesa resoluta.
– Eu tenho me esforçado, me esforçado, princesa, demais. Mas o feitiço
é muito poderoso. Justamente quando penso que estou melhorando, o Sr.
Oculto reaparece... e aí nada posso fazer para neutralizá-lo. – O príncipe
parecia desesperado.
– Você sempre foi tão corajoso, meu príncipe. Certamente não vai se
deixar vencer por um feitiço lançado sobre você.
– Nada posso fazer sem sua ajuda. Você é muito melhor nessas coisas
do que eu. Se me ama realmente, você descobrirá um meio de afastar o feitiço.
Na próxima vez em que o Sr. Oculto apareceu a princesa tentou o
segundo item da sua lista – apelar a ele para que parasse de atormentá-la, Mas
não funcionou. Assim, ela passou para o terceiro item – ameaçar fugir se ele
continuasse a voltar. Também não funcionou.
A princesa não tinha a menor intenção de desistir, independente do que
o príncipe fizesse ou não. Ela seria forte e valente o bastante para lutar pelos
dois, se necessário. Tinha de ser.
Na próxima vez em que o Sr. Oculto apareceu, ela ficou frente a frente
com ele.
– Lutarei com você até a morte para trazer meu Dr. Risinho de volta
para sempre – disse ela, na voz mais decidida que pôde reunir.
O Sr. Oculto lançou a cabeça para trás e riu.
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– Você? Lutar comigo até a morte? Essa coisinha frágil que você é, que
tem medo da própria sombra? Que não consegue sequer puxar a corda de um
arco? Que adoece ao sopro de uma brisa mais forte? Estou tremendo medo,
princesa – zombou.
Ele talvez não estivesse tremendo, mas ela certamente estava. E seu
estômago se revolvia, o peito estava tão rígido que mal conseguia respirar.
Suas têmporas começaram a latejar quando os gritos angustiados de Vicky
explodiram em sua cabeça.
A princesa começava a se cansar e não tinha mais nada na lista a que
recorrer. Assim, na próxima vez em que o Sr. Oculto apareceu, ela disse a
Vicky para não ouvir, que o príncipe não sabia o que estava dizendo, que não
podia impedir as coisas que o Sr. Oculto dizia e fazia.
A princesa costumava se sentar e olhar esperançosa para o seu baú de
madeira, com os feixes de rosas entalhados a mão nas beiradas, e formulou o
desejo o mais ardentemente que podia... e lembrou... e esperou. Após um certo
tempo, ela passava mais tempo esperando pelo seu Príncipe Encantado do
que estando com ele.
Tornou-se um esforço para ela enfrentar cada novo dia. Havia tanta
confusão – com as idas e vindas de Victoria e Vicky, do Dr. Risinho e do Sr.
Oculto, cada qual dizendo que os outros estavam confusos acerca do que
estava acontecendo – que a princesa não podia mais ter certeza do que estava
vendo, ouvindo, pensando e sentindo. E ela estava cansada de toda a
preocupação, tremor, azia, peito apertado, dor de cabeça e gritos, bem como
das dolorosas discussões com o Dr. Risinho, dos apavorantes encontros com o
Sr. Oculto e dos contínuos esforços para acalmar Vicky.
Ela também não estava dormindo bem – em especial nas noites em que
o Sr. Oculto estava presente. Noite após noite, ele dizia alguma coisa má ou a
acusava de algo perturbador pouco antes de ela cair no sono. Depois ele se
virava e caía imediatamente num sono profundo, de modo que ela não tivesse
qualquer chance de replicar. Por que ele dizia aquilo, se sabia o que fazia, se
era verdade, o que ela poderia ter dito, teria dito, queria dizer – tudo isso
ficava martelando na sua cabeça por horas.
Quanto mais ela ficava deitada ali, mais intensos se tornavam a dor de
cabeça, o tremor e o aperto no peito. Para piorar as coisas, ela receava se
mexer – mesmo para se coçar – porque o Sr. Oculto poderia despertar
abruptamente e gritar coisas terríveis para ela, acusando-a de tentar aborrecê-
lo de propósito. Finalmente ela escaparia para um sono intermitente,
esperando e rezando para que fosse o Dr. Risinho quem acordasse ao lado dela
de manhã.
Quando o Sr. Oculto estava com ela, a princesa se preocupava com
quanto tempo ele ia levar para ir embora. Quando o Dr. Risinho estava com
ela, se preocupava com o tempo que ele ficaria. E quando estava sozinha, sua
preocupação era qual deles aparecia da próxima vez. E imaginava um jeito de
parar o tremor, a azia, o aperto no peito e a dor de cabeça. Após algum tempo,
desistia de tentar, enquanto esquecia o que era sentir-se calma.
39
Quando ela achava que não suportaria a loucura por um minuto mais, o
Dr. Risinho chegava em casa como sempre, derramando torrentes de lágrimas
e dizendo que sentia muito. E diria a ela que o Sr. Oculto falava aquelas coisas
para ferí-la, muito embora não fosse verdade. Que ela era doce, boa e especial,
e que tinha sorte em tê-la como esposa. Diria que ele estava melhorando – que
ela só estava imaginando que as coisas haviam piorado. E acrescentaria que se
empenharia mais e tudo seria em breve tão maravilhoso como costumava ser.
Ela saboreava cada palavra e acreditava de todo o coração. A cintilação
nos olhos dele faria o seu coração disparar e os joelhos fraquejarem. Ela se
derreteria nos braços dele, dizendo: ―Meu querido Príncipe Encantado, meu
precioso Dr. Risinho, graças a Deus está de volta.‖ E a lembrança do olhar
gélido do Sr. Oculto se desvaneceria de sua mente como se nunca houvesse
existido.
A princesa estava apreciando um raro momento de felicidade, enquanto
a luz do sol filtrava-se através da janela da cozinha e bailava sobre os vasos de
cristal, que ela esvaziava em preparação para as flores frescas que o príncipe
tinha ido colher no jardim. Ela deu uma olhada no bilhete do príncipe que ela
prepara na parede naquela mesma manhã, após encontrá-lo sobre a bancada da
cozinha.
Vicky começou a fazer tantos ruídos altos para ocultar a voz que a
cabeça da princesa começou a bater. Ela virou-se e correu de volta ao palácio,
entrou pela sala de estar e bateu a porta.
– O que vamos fazer agora? – fungou Vicky.
– Não sei – Respondeu Victoria, afundando no sofá forrado de dourado.
– Deixe me pensar.
– Mas você tem de saber!
– Vicky, por favor. Fique quieta por alguns minutos para que eu possa
pensar.
Vicky esperou. Depois, quando não conseguia mais ouvir sequer o
tique-taque rítmico do relógio sobre a cornija da lareira, ela deixou escapar o
que estivera por longo tempo em sua mente.
– Talvez... talvez o feitiço maligno seja nossa culpa. Talvez tudo seja
nossa culpa.
– Você também?! Como pode dizer uma coisa dessas?
– Eu apenas sinto. De qualquer modo, o príncipe não mentiria para nós.
Ele é Príncipe Encantado. Todo mundo diz.
– Você não pode acreditar sempre no que todo mundo diz, Vicky. E não
estou tão certa acerca de o príncipe não mentir para nós.
– Mas e se ele estiver certo? – perguntou Vicky. – E se ele for alérgico a
nós ou coisa parecida? Ou se as coisas que nós dizemos e fazemos é que
realmente lançam o feitiço sobre ele, como ele diz?
– Oh, Vicky, pelo amor de Deus!
– Só cai sobre ele quando está conosco. Ninguém jamais conheceu o Sr.
Oculto. Exceto o cocheiro, ainda há pouco.
Parecia ser bem verdade, portanto Victoria tentou desesperadamente
pensar no que poderiam ter feito para lançar o feitiço maligno sobre o
príncipe, mas não conseguiu chegar a qualquer conclusão. Especulou que
deveriam estar fazendo montes de coisas erradas para causar tantas coisas
ruins, mas sentia grande dificuldade em imaginar o quê.
– Não sei mais em que pensar, Vicky – disse Victoria. – Estou tão
cansada. Muito cansada.
– Você é que é boa para imaginar coisas. Tem de pensar em algo.
Vicky esperou nervosamente enquanto Victoria se agoniava com o
problema.
– Talvez exista alguma verdade no que você diz, Vicky. Claro que não
podemos nos permitir correr riscos. Acho que teremos de tentar com mais
empenho não fazer, dizer ou pensar qualquer coisa que possa trazer o feitiço
maligno.
– Mas como podemos tentar com mais empenho?
– Teremos de ser boas. Mais do que isso. Perfeitas, de fato.
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– Não posso fazer isso. Tentei com o rei e a rainha, lembra? Não posso
fazer nada melhor do que já sou.
– Bem, acho que você teve uma tentativa melhor. E desta vez espero
que possa fazê-lo, ou o príncipe pode nos abandonar.
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– Sei que está aí, meu precioso príncipe – disse ela, com um bolo tão
grande na garganta que sua voz mal se filtrava por ela. Ela olhou bem fundo
nos olhos dele, além do brilho gélido, além do reflexo dela, e lá, bem onde ela
sabia que estaria, havia uma débil piscadela. A piscadela que sabia ser dirigida
a ela.
Um oceano de lágrimas elevou-se da alma da princesa e quase a afogou
em pesar. Ela soluçou, recordando todos aqueles anos com que tanto sonhara
por uma vida de contos de fadas com seu Príncipe Encantado. E tinha dado
nisso.
Soluçou mais forte ainda quando o príncipe saiu. De súbito, sentiu falta
do conforto de seu antigo quarto, de sua colcha felpuda cor-de-rosa e das
pilhas de travesseiros macios. Talvez, se voltasse a casa para uma visita,
pudesse decidir em paz o que fazer.
Mas Vicky detestou a idéia.
– Não vou para lugar nenhum – lamuriou-se, enquanto Victoria
empacotava algumas coisas em sua maleta de lã axadrezada. – Prefiro morrer
a abandonar o príncipe. Ele precisa de mim, e preciso dele.
– Só vamos até lá para descansar e pensar no que fazer. Ninguém falou
em abandonar o príncipe.
– Bem... não posso ficar aqui sozinha com o Sr. Oculto, isso é certo.
Suponho que terei de ir com você. Mas prometa que voltaremos. Diga: ―Juro
por Deus e quero cair mortinha, beijar...‖
– Juro por Deus e quero cair mortinha. Agora vamos, Vicky. Pé na
estrada.
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Capítulo Sete
46
que o rei e a rainha adoravam o príncipe como a um filho e não queria magoá-
los mais do que o necessário.
– Mal posso crer que isso seja verdade! – exclamou o rei.
– Não admira que você pareça tão doente e cansada – disse a rainha,
sacudindo a cabeça em descrença.
– Eu estou doente e cansada, mãe. Estou doente de o príncipe viver
furioso comigo. De me culpar por tudo que dá errado. De me retorcer de
queimação no estômago, de meu peito estar apertado e de minha cabeça doer.
De desejar e ansiar, de chorar e esperar... e de colher minhas próprias rosas...
E estou doente e cansada de viver doente e cansada.
– O nosso Príncipe Encantado? Como pode ser isso? - questionou a
rainha. – Por que nunca vimos qualquer manifestação do seu comportamento
esquisito, Victoria?
– Porque só acontece na minha frente – respondeu a princesa, retendo as
lágrimas.
– Bem, então – disse o rei -, você considerou que talvez o príncipe
estivesse certo em achar que você teve algo a ver com o feitiço maligno.
Porque mais isso aconteceria só com você? Certamente uma coisa dessas não
ia acontecer à toa. Você deve ter feito alguma coisa.
A voz de Vicky reverberou na cabeça de Victoria: - Eu sabia que ele
diria isso. Eu sabia! Isso é o que ele sempre disse.
– Victoria?... Victoria! – disse a rainha, alterando a voz para chamar a
atenção da princesa. – Tem certeza absoluta de que a situação é tão ruim
quanto pensa? Perdoe-me por dizer isso, querida, mas houve uma ocasião em
que você andou confundindo a fantasia com a realidade.
– Não estou muito certa de não estar confundindo neste exato momento,
mãe.
O rei se levantou e ficou andando de um lado a outro, as mãos
entrelaçadas às costas.
– Não entendo isso. O príncipe tem se mantido um tanto reservado
ultimamente... mas isso!
– Lamento por tudo, Victoria – disse a rainha. – Talvez ajudasse se o
seu pai e eu falássemos com o príncipe.
– Duvido que alguém consiga se entender com ele. Mas como ele
sempre estimou vocês dois, talvez... – Ela buscou o conforto do colo da mãe.
– Não sei mais o que fazer. Não sei mesmo.
Naquela noite os três tiveram uma ceia silenciosa, e a princesa
recolheu-se cedo para seu velho quarto rosa e branco com a enorme cama de
dossel. Tudo parecia exatamente como era quando ela saiu para casar com o
príncipe. A rainha ordenara que a criadagem do palácio mantivesse tudo do
mesmo jeito.
A princesa passou a mão pelo tampo de sua penteadeira e olhou direto
para o Código Real de Sentimentos e Comportamento para Princesas que
ainda pendia da parede acima. Ela relanceou para o espelho de corpo inteiro,
emoldurado em latão, no canto do quarto e pensou sobre o belo reflexo de
47
uma princesinha que costumava ver nele. Também recordou o reflexo que lhe
tinha mostrado exatamente o que estava errado com ela. Não queria perturbar
a calma que caía sobre ela, e manteve-se distante do espelho.
Estava tão cansada que foi um verdadeiro esforço se despir. Ela pegou
sua camisola azul de seda na maleta e a vestiu por cima da cabeça, notando
que a cor combinava com seu estado de espírito. Enfiou-se na cama e
aninhou-se debaixo das cobertas felpudas cor-de-rosa, puxando a ponta de
uma e esfregando aquela maciez contra sua face. Sentiu-se de alguma forma
reconfortada e cansadamente deslizou para o sono.
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Capítulo Oito
51
Um momento depois, começou a música de banjo, e a voz que desejara
ouvir estava cantando:
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– Isso não é uma coisa muito agradável de se dizer! – replicou a
princesa, indignada. – Como é que estou no caminho dele? Estou apenas
tentando ajudá-lo.
– Perdoe-me, princesa. Não tive a intenção de ofendê-la. Mas o príncipe
anda empenhado demais procurando o que há de errado com você para ver o
que está errado com ele próprio. Se você não estiver fazendo nada, ele ficará
mais propenso a ver que ele está fazendo alguma coisa.
– Não posso parar de tentar ajudar o príncipe. O que seria dele?
– O que seria dele com você dizendo e fazendo tudo que tem dito e
feito? E o que seria de você?
– Mas ele pediu minha ajuda.
– Só porque alguém pede ajuda, isso não é razão suficiente para dá-la.
Muitas vezes, a ajuda termina magoando.
A princesa apertou as mãos nas têmporas quando sua cabeça começou a
latejar. Vicky estava ficando mais agitada a cada minuto.
– Mas nós temos de ajudar o príncipe – disse Vicky sem pensar. – Se
Victoria ao menos pudesse imaginar o que estamos fazendo de errado,
poderíamos começar a fazer direito, e aí tudo ficaria bem.
– Ora, ora, se não é a pequena Vicky – disse Doc. – Olá, querida.
– Como é que você sabe sobre Vicky? – perguntou Victoria – Os
pássaros não poderiam ter lhe contado isso.
– Corujas sabem muitas coisas. São muito sábias.
– Ela geralmente fala só comigo, mas às vezes fala alto de modo que as
pessoas possam ouvi-la. Claro que pensam que sou eu. Às vezes sou eu
realmente, também. Bem, ela é eu... quero dizer... ela mistura tudo comigo, e
aí mal posso dizer quem é quem. De qualquer modo, é difícil explicar.
– Não precisa, princesa – replicou Doc. – Todo mundo tem
companheiros como Vicky. O Jornal de Medicina do Novo Reino para
Doutores do Coração tem publicado numerosos artigos explicando o
fenômeno.
– É mesmo? Pensei que eu fosse a única a...
– Podemos discutir isso em outra ocasião. Neste exato momento temos
de voltar ao problema principal. Você e Vicky precisam ouvir
cuidadosamente.
– Eu ouvirei, mas não creio que Vicky o fará – disse Victoria. – Ela não
é muito boa ouvinte, especialmente quando está perturbada.
– Veremos. Venha cá e sente-se – disse Doc, chamando a princesa com
um aceno de asa. – O que você tem feito de errado? – disse – é acreditar que
poderia ter lançado o feitiço sobre o príncipe e que, se conseguisse conjurar
exatamente o elixir mágico certo, poderia afastar o feitiço.
– Sim, sim, é isso! – gritou Vicky. – Precisamos de um elixir mágico!
Mas Victoria não consegue imaginar o que seja, embora ela seja muito, muito
boa em imaginar coisas.
– Isso é porque a única pessoa que pode fazer magia funcionar sobre o
príncipe é o príncipe – explicou Doc.
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– Então não há menor esperança. Ele não pode fazê-lo – disse Victoria.
– Ele já tentou.
– Sim, ele pode – insistiu Doc. – Mas a sua felicidade não depende de
se ele poderá ou não.
– Sim, depende. – replicou Vicky.
– Não tem de depender.
– O que faremos? – perguntou Victoria.
– Como sugeri antes, nada. Pelo menos nada que tenha a ver com o
príncipe e o feitiço. Você, porém, pode fazer algo por si mesma. Aliás, há
muita coisa que pode fazer por si.
A princesa olhou suplicante para Doc, seus olhos banhados em
lágrimas.
– Não posso fazer outra coisa. Estou tão doente e tão cansada. Você é
médico. Não pode me ajudar?
– Claro que sim – replicou a coruja, abrindo sua valise preta e tirando
um bloco de receitas. Rabiscou alguma coisa com sua pena de escrever
flexível, destacou a folha e entregou à princesa.
Ela franziu os olhos em meio à lágrimas, tentando ler o que estava
escrito.
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Henry Herbert Hoot, D.C.
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Rosas são vermelhas
Violetas são azuis.
Volte cedo para casa,
Para contemplá-las ainda na luz.
Ela correu até seu quarto e rapidamente juntou suas coisas. Depois se
enfiou na mochila axadrezada, pondo o livro por último. Em seguida, desceu
às pressas e disse ao rei à rainha que estava voltando para casa e que não se
preocupassem. Por um momento ela pensou em contar a eles que estava
recebendo ajuda de um especialista em assuntos do coração, mas desistiu ao
se lembrar de como a rainha reagira da última vez em que tentara explicar a
ela sobre Doc.
Enquanto a carruagem se afastava do palácio dos seus pais, a princesa
abriu a mochila e puxou Um guia para se viver feliz para sempre.
Ansiosamente, abriu na primeira página.
―Quando foi a última vez que se olhou num espelho e sentiu-se
impelida a dançar?‖, começava. ―A última vez que cantou uma canção que
atraía pássaros das árvores para se reunir e cantar com você? A última vez que
um vaso de rosas vermelhas a inundou de felicidades?‖
As palavras começaram a se borrar enquanto os olhos da princesa
ficavam marejadas de lágrimas. A última vez...?
Ela não conseguia lembrar.
56
Capítulo Nove
Nos dias que se seguiram, a princesa carregou o livro de Doc com ela,
lendo uma página aqui e um parágrafo ali em cada oportunidade. Era como se
Um guia para se viver feliz para sempre tivesse sido escrito de encomenda
para ela. Victoria sublinhou as partes importantes em vermelho. Tão
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acostumada estava a fazer isso para o príncipe que tinha de ficar se
recordando de que desta vez o fazia por si mesma. Voltava vezes sem conta às
passagens marcadas, especialmente quando o Sr. Oculto estava tendo um dos
seus discursos críticos.
―Palavras podem atingir tão duramente quanto um soco. Você deve
tentar se manter afastada‖, dizia o Capítulo Três, ―Discussões quentes e
silêncios gélidos‖. Era certamente mais do que verdade. Embora não fossem
visíveis, a princesa tinha as contusões que provavam isso.
Ler o livro não era tarefa fácil. Á vezes a príncipe tinha de ler a mesma
frase quatro ou cinco vezes antes, até que as palavras fizessem sentido para
ela. E algumas partes, misteriosamente, continuavam à deriva por sua mente.
Ela tinha de retê-las vezes sem conta. Mesmo então, com freqüência não
conseguia se lembrar delas um minuto após virar a página. Nada disso jamais
tinha acontecido com ela, nem quando ficava estudando longas horas para as
provas finais quando aluna da Universidade Imperial. Mas claro que, à época,
Vicky não vivia tentando distraí-la.
Vicky vacilava entre fazer beicinho e ter acessos de fúria, num esforço
para convencer Victoria e descartar o conselho de Doc.
– Não acredito bulhufas nesse livro idiota e não ligo a mínima para o
que diz! – gritou Vicky um dia. – Não me interessa se ele diz para parar de
disputar jogos com o príncipe e de realizar a nossa dança juntas. Adoro os
jogos e a dança... você sabe disso! Jamais vou parar!
– Você não entende, Vicky. Não se trata desse tipo de jogos de dança.
É...
– E toda essa baboseira sobre como não podemos corrigir o príncipe,
como todos os cavalos e todos os homens do rei não conseguiram corrigir o
pobre Humpty-Dumpty, e sobre como ele tem de se corrigir sozinho. E sobre
como vamos deixar o rei e a rainha, e magoar e amar, tudo misturado. Todo
esse blábláblá. Está me deixando realmente louca!
– Bem, alguma coisa também está me deixando realmente louca,
Vicky... você! Estou quebrando a cabeça, tentando imaginar o que de fato
aconteceu aqui e por que, e o que fazer a respeito, e isso já é difícil o bastante
sem você brigando comigo o tempo todo – disse Victoria, voltando a olhar
para o livro. Mas era difícil se concentrar depois de discutir com Vicky.
Nada fazer em relação ao príncipe revelava-se muito mais difícil do que
tinha sido fazer alguma coisa. A princesa cuidava de manter as mãos bem
enfiadas nos bolsos da saia de modo a se recordar da sua nova política de
mãos-fora. E imaginava sua boca amordaçada nas vezes em que precisava se
lembrar de não dizer nada.
Com freqüência repetia para si as palavras de Doc: Para que as coisas
mudem, você deve mudar. Dedicou todo seu esforço em fazer exatamente
isso. Após certo tempo, não estava mais gastando cada momento de vigília
tentando ajudar o príncipe a livrar-se do feitiço, nem tentando explicar e
dialogar com ele.
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Ela tentou com mais empenho ainda parar de se preocupar a respeito de
como estaria o príncipe ao voltar para casa no final do dia, planejando o que
dizer e fazer se ele dissesse isto ou aquilo, e tomando cuidado extra para não
dizer, fazer, pensar ou sentir qualquer coisa que o enfurecesse. Mas ela
descobriu que nada fazer e nada dizer – por mais difícil que fosse – era ainda
bem mais fácil do que nada pensar e nada sentir. Assim, apesar dos seus
melhores esforços para interrompê-los, os pensamentos perturbadores
continuaram a disparar implacavelmente em sua cabeça.
Embora sua cabeça estivesse dolorosamente cheia, o resto do corpo se
encontrava dolorosamente vazio. Havia um enorme vácuo em sua vida – e
nela – que nada parecia capaz de preencher. À medida que o tempo passava,
cada momento vazio pesava mais e mais em suas mãos... e na sua mente... e
no seu coração.
Ela voltou a Um guia para se viver feliz para sempre em busca de
aconselhamento. O livro dizia que era comum para uma pessoa que estava
trocando de tarefas sentir-se tão pleno quanto vazio. Sugeria substituir sua
tarefa antiga de concentrar-se no príncipe por novas atividades que se
concentrassem nela.
A princesa recordou o quanto suas mãos e mentes estiveram ocupadas
quando testava receitas para seu livro, e decidiu voltar a cozinhar.
Galvanizou-se em atividade da manhã à noite, mas, exceto por alguns breves
intervalos, a rajada de pensamentos persistia, e ela sentia-se tão vazia como
antes.
Achou que estar entre as rosas poderia fazê-las se sentir melhor,
portanto tentou trabalhar no jardim do nascer ao pôr-do-sol. Mas isso só a
deixava mais deprimida. As rosas continuavam a recordar-lhe o príncipe.
Ela permaneceu vários dias na cama, tomando o tranqüilizante prescrito
pelo médico do palácio, mas isso tampouco ajudou.
A princesa decidiu que tinha de tentar alguma coisa nova. Pensou
longamente até resultar numa lista de coisas a fazer que poderia funcionar
melhor do que tudo que já havia tentado. A idéia mais promissora da lista era
fazer compras. Ouvira dizer que isso operava milagres no espírito da pessoa, e
era especialmente bom para preencher horas vazias e esvaziar mentes
sobrecarregadas.
Na manhã seguinte a princesa estava esperando a abertura das portas do
Empório do Velho Reino. Dirigiu-se ao setor de vestuário e escolheu vários
rolos de tecidos dos quais mandou tirar cortes. Planejava levá-los ao
costureiro real, mas ficou tão envolvida com suas compras que não deu tempo.
Quando a loja fechou, ela tinha sacolas de chapéus, com e sem flores,
de luvas – de seda, de couro e lã – várias cores de cada. Havia bugigangas de
cada tamanho e formas, e sapatos combinando com bolsas. Eram tantas as
sacolas que foram necessários três funcionários da loja, e seu cocheiro para
embarcá-las na carruagem.
Depois disso, passou a ir às compras diariamente, da abertura ao
fechamento do comércio, e trazia tantas coisas para casa que seus guarda-
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roupas ficaram abarrotados. Dois deles nem fechavam as portas. Por fim ela
transformou um dos quartos de hóspedes em closet, que por sua vez ficou
também quase abarrotado.
– Vai viajar Victoria? – perguntou a rainha um dia, ao passar para uma
breve visita. – Você tem mais roupas aqui do que o Empório do Velho Reino!
Porque cargas d’água, já que nunca vai usar tudo isso?
Mas saber que nunca usaria aquilo tudo não impediria a princesa de
voltar a comprar mais, à medida que o lugar vazio dentro dela estivesse maior
do que nunca. Dia após dia, ela foi comprando até que caiu. Uma noite, ela foi
trancada por acidente quando a loja fechava – e não se importou muito. Foi
então que percebeu o quão sem sentido sua vida se tornara e a quão
desesperançada e desamparada ela se tornara.
No dia seguinte ela folheou desesperadamente as páginas de Um guia
para se viver feliz para sempre, procurando por algo que lhe dissesse o que
fazer. E logo achou: ―Ponha para fora seus pensamentos e sentimentos
dolorosos escrevendo-os.‖
A princesa pegou sua pena e um pedaço de pergaminho. Depois sentou-
se à penteadeira para escrever, mas deu um branco na sua mente. Sua dor
estava tão entranhada que criara raízes e não conseguia sair. Ela estendeu o
braço e puxou para mais perto sua pequena caixa de música, lembrando as
muitas horas que passara ouvindo-a e sonhando. Ela girou a chave. O elegante
casal no topo começou a sua dança ao som de ―Algum dia meu príncipe
chegará‖.
Enquanto ouviu as notas tilintantes de sua canção favorita, a dor
profunda dentro dela começou a se elevar. A princesa agarrou sua pena e,
enquanto sua agonia se libertava e irrompia para fora, ela a despejava sobre o
pergaminho e depois sobre outro e mais outro – chorando o tempo todo e
derramando tantas lágrimas que a tinta formou pequenos córregos que corriam
pelas beiradas das páginas.
A cada dia que se seguiu, a princesa leu e releu e pensou e repensou
várias seções de Um guia para se viver feliz para sempre. Com
freqüência, ela descobriu, podia abrir o livro ao acaso e perceber que a
informação exata de que precisava muito naquele momento estava bem ali,
como se tivesse dado um passo à frente, prontificando se a vir em sua ajuda.
―Felicidade e uma escolha‖, dizia uma dessas mensagens. Ela revirou a
frase vezes sem conta na mente, recordando que Doc lhe dissera a mesma
coisa, mas a felicidade parecia tão distante, tão inalcançável...
Ela continuou a ler: ―Uma vez feita a escolha, você deveria praticar ser
feliz o melhor que puder, mesmo se tiver de simular isso até conseguir.‖ A
seguir, vinha uma explicação de como a pensamentos sucediam ações e
sentimentos seguiam pensamentos.
A princesa avaliou cuidadosamente o que tinha lido. De repente, teve
uma idéia. Rasgou sua antiga lista de coisas a fazer e escreveu uma nova. A
primeira coisa nela foi resumir as responsabilidades reais que havia
abandonado durante todo aquele tempo dedicado a ajudar o príncipe.
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Prontificou-se a dirigir a peça infantil anual no Orfanato de Soberania e
matriculou-e num curso de desenho floral na Universidade Imperial. Na maior
parte do tempo ela precisava forçar-se a ir, mas acabava indo apesar de tudo,
fazendo bom uso da sua capacidade de sorrir por fora e chorar por dentro, e
repetir para si mesmo: ―Simule até conseguir. Simule até conseguir. Simule
até conseguir.‖
Em breve, a princesa começou a preparar algumas de suas receitas
preferidas e tentou esforçar-se ao máximo para comê-las, embora o Sr. Oculto
costumasse aparecer na ceia determinado a estragar tudo.
Gradualmente, ela começou a passar menos tempo pisando em ovos e ir
até o fim no que se propusera fazer. E passava mais tempo pensando sobre
coisas, em vez de em si mesma e no quanto se sentia mal.
Numa tarde, enquanto reunia os ingredientes para seu fettuccine de
brócolis ao molho de pistache, percebeu um som agradável que há muito não
ouvia – o som de sua própria voz cantarolando.
Mais tarde, ocupada em picar nozes de pistache, deixou-se cair na
cantoria, para sua grande surpresa, De repente, um azulão roliço voou através
de uma das janelas da cozinha e, calculando mal o seu pouso, caiu direto no
meio do monte de pistache picado.
– Você de novo não! – disse ela com um risinho, pegando o pássaro que
se contorcia e limpando as migalhas de pistache das patinhas dele, como tinha
feito da outra vez. – Pistaches estão sempre no seu caminho, não é, meu alegre
amiguinho? – Ela examinou a face do azulão. – Veio para cantar comigo? –
perguntou. – Está bem, vamos cantar.
Ela recomeçou sua canção, e em breve os outros amigos emplumados se
juntaram a eles. A cozinha ganhou vida com seu melodioso gorjeio. Enquanto
o doce som de sua harmonia pairava através da cozinha, ela percebeu o quanto
andara perdendo.
Depois disso, a princesa passou a cuidar melhor de si. Porém, quanto
mais cuidava de si e menos dava ouvido ás arengas do príncipe, mais furioso
ele ficava.
– Você não me ama mais – gritou ele um dia da porta da sala de estar,
enquanto ela recortava receitas da seção de culinária do Notícias do Reino.
A princesa lembrou a si mesma para permanecer calma. Não ia se
deixar arrastar para uma peleja verbal que a deixaria ferida durante dias, como
se tivesse sido atropelada por uma carruagem.
– Oh, lamento que se sinta assim – replicou ela no tom
descompromissado sugerido por Um guia para viver feliz para sempre.
– Oh, oh – zombou ele, se aproximando e parando diante dela. – Isso é
tudo o que tem a dizer? Você, que falava pelos cotovelos?
– Não quero brigar com você – ela arriscou-se a replicar.
– Por que não, Srta. Perfeita? Tem medo de perder?
Como a coisa podia ter chegado a tal ponto? Embora não estivesse de
acordo, ela não pôde se impedir de perguntar mais uma vez:
– Desde quando me tornei o inimigo?
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– Não sei. Talvez tenha sido no dia em que começou a me ajudar.
– Mas você pediu minha ajuda. Suplicou por...
– Não, eu não! Nunca pedi sua ajuda. E nunca a desejei.
A habitual confusão perturbadora a dominou.
– Chama de ajuda aquilo que esteve fazendo? Obrigando-me a fazer o
quê? A mudar, porque não sou bom o bastante para você?
– Isso não é justo – a abalada princesa se ouviu dizendo. – Eu amo
você. Perdi você e o quero de volta. Quero nós dois de volta, não faço a menor
idéia do que está havendo. O que preciso fazer para me dar bem com você?
– Você não me ama. Provavelmente nunca amou. O príncipe que você
queria é aquele com o qual sonhou, não o que você tem.
– Mas eu o tinha. Você era ele. Você era tudo que eu queria que meu
príncipe fosse, até que o feitiço maligno caiu sobre você.
– Você simplesmente não ouve! Já lhe disse antes: aquele príncipe
morreu! Mas você se recusa a acreditar.
– Não posso evitar. Sei que ele permanece aqui. De vez em quando eu o
vejo, o sinto.
– Você sempre teve dificuldade em acreditar na verdade, mesmo
quando pode vê-la com os próprios olhos. Olhe para mim – disse ele, pegando
rudemente seu queixo na mão e virando-o na direção dele. – Olhe firme –
exigiu. – O que está vendo é o que você tem. E obviamente não o quer. Você
não me ama. Não consegue me suportar. Bem, tenho boas notícias para você.
Também não consigo suportá-la, de modo que, seja lá o que ache disse, Srta.
Metida a Besta, Srta. Chata Real...
– Pare com isso! Pare! – gritou Vicky.
A mente de Victoria girava... Doc. Ela precisava ver Doc.
A princesa agarrou o braço do sofá para se firmar enquanto se
levantava. Aturdida, caminhou em direção à porta da sala de estar, mas o
príncipe chegou primeiro e bloqueou a passagem.
– Aonde pensa que vai? – trovejou.
O coração dela disparava.
– E-eu não sei... a algum outro lugar... quero dizer...
– Ainda não terminei com você.
– Já ouvi o suficiente. E-eu não posso ficar mais.
– Eu decidirei quando você já tiver ouvido o suficiente – disse ele,
agarrando-a pelo braço.
– Solte-me, está me machucando... Solte-me!
Ele apertou os dentes, olhou penetrantemente para ela e apertou com
mais firmeza.
– Por favor, solte-me – gritou ela, tentando livrar-se da mão de ferro.
De súbito, ele soltou-lhe o braço, arremessando-a no chão.
– Você quer ir? Então, vá!
A princesa lutou com suas saias emaranhadas enquanto tentava se
levantar. Uma vez de pé, disparou para fora dali e correu pelo comprido
corredor que conduzia às portas do palácio, o príncipe gritando atrás dela:
62
– Você e seus grandes sonhos. Você não merece viver feliz para
sempre! Está me ouvindo? Você não merece!
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PARTE III
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Capítulo Dez
A Trilha da Verdade
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– É o que venho tentando fazer desde que você me contou a respeito de
nada fazer, e me deu o Guia para se viver feliz para sempre. Mas nem sempre
posso fazê-lo, muito embora, mantenho as mãos enfiadas nos bolsos da saia a
fim de me lembrar da minha nova política de mãos-fora com o príncipe e
imaginar que estou amordaçada de modo a me lembrar de nada dizer. Há uma
gigantesca nuvem negra pairando sobre mim o tempo todo... mesmo quando
estou cumprindo minhas responsabilidades reais, dirigindo a peça infantil no
orfanato ou arranjando flores no curso da universidade ou fazendo uma de
minha receitas preferidas. – A princesa suspirou. – Por tanto, que outras
escolhas tenho?
– Você pode escolher não estar no mesmo lugar que o príncipe.
– Está sugerindo que eu deveria abandoná-lo?
– Não estou sugerindo nada, mas esta é uma de suas escolhas.
Vicky não agüentou ficar quieta nem por mais um segundo. Sua voz
ribombou na cabeça de Victoria.
– Eu nunca deixaria o príncipe ou desistirei dele, ou cederei, ou seja lá
como você chame! Nunca, está me ouvindo? Nunca, jamais!
– Vicky, por favor! Não agüento mais – gritou Victoria, lançando as
mãos pelo ar. – Gostaria de poder fugir daqui.
– Não existe mais esperança de fugir dos problemas de alguém do que
existe de fugir da sombra de alguém. Fugir nunca funciona. Só ir de encontro
– disse Doc.
– Tudo está uma bagunça. Nada é do jeito que eu pensava que era. Toda
a minha vida está desmoronando. E não tenho a força para impedir. – A
princesa baixou a cabeça e caiu em silêncio.
– Você demonstrou grande força em tudo que vem enfrentando.
– Não me sinto muito forte. Estou esgotada, e ainda tremo, me agito e...
– E continuará se sentindo assim até que decida se vai ficar ou partir, e
ficar em paz com seja o que for que escolher.
Victoria avaliou as palavras dele.
– Toda vez que tenho uma grande decisão a tomar, eu sempre...
– Sim, eu sei – disse Doc, entregando a ela sua pena flexível e um
pedaço de pergaminho extraído de sua valise.
No topo à esquerda do pergaminho ela escreveu: ―Prós – a favor de
ficar‖. No lado direito anotou: ―Contras – contra ficar‖. Olhou pensativamente
a distância por um momento. A seguir, a pena começou a fluir pelo
pergaminho.
– Escreva aí que ele trabalha muito na embaixada – instou Vicky – e
que toda noite vem direto para casa e para nós e que é belo, vivaz, alegre e
com muito jeito para consertar coisas. E escreva aí que sempre trouxe canja de
galinha para nós quando estávamos doentes, e nos dizia que éramos as mais
belas do reino e colhia lindas rosas para nós. Oh, e não esqueça de pôr aí que
ele...
– Vicky, por favor! Não posso escrever com você tagarelando.
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– Então pare de exagerar nos defeitos dele. Aposto que montes de
príncipes são muito piores do que ele. Ele não é tão mau assim. Posso
agüentar isso, se você pode.
– É verdade. Ele possui um monte de boas qualidades – admitiu
Victoria, movendo a pena para a coluna de motivos para ficar. Mas logo a lista
de contras recomeçou a crescer. Quanto mais crescia, mais Vicky entrava em
pânico.
– Esta cometendo um grande erro, Victoria. Como sabe que será um
pouquinho melhor com algum outro príncipe? Poderíamos procurar a vida
inteira e jamais encontrar outro príncipe que nos ame. Ficaremos sozinhas
para sempre e será tudo culpa sua! – acusou Vicky.
Alguns minutos depois, Victoria ergueu os olhos da sua lista e lágrimas
escorreram por suas faces.
– Mas eu ainda o amo, Doc – disse ela –, muito embora a coluna de
Contras seja muito mais extensa que a de Prós. E sei que ele me ama, pelo
menos o príncipe verdadeiro... o Dr. Risinho. Como é que eu poderia ir
embora?
– O amor faz bem – disse Doc. – Se não fizer bem, não é amor.
– Mas faz bem como amor.
– Se você sente dor com mais freqüência do que se sente feliz, então
não é amor. É outra coisa. Algo que mantém você encarcerada numa prisão
medíocre, incapaz de ver que a porta da liberdade está escancarada a sua
frente.
Quanto mais a princesa pensava em abandonar o príncipe, mais
poderoso se tornava o aperto que a puxava de volta para ele. Mas ela sabia
qualquer que fosse o sentimento – amor ou não –, se ela o deixasse vencer
estaria de fato retornando para uma prisão, uma prisão de dor que se tornara
insuportável. Ela sentou-se mordendo o lábio e lutando para evitar ser
consumida pelo sentimento esmagador, que estava a ponto de deixar murchar
e morrer no ato.
Finalmente, ela voltou-se para Doc, que estava sentado em silêncio,
esperando a decisão dela. Com voz trêmula, ela disse:
– Sei que devo ir embora, mas para onde irei?
– Você continuará na Trilha da Verdade.
– Está querendo dizer que já estive nela?
– Sim, Desde o dia em que lhe dei a receita e você a seguiu começando
a ler o livro.
– Por que não percebi a trilha?
– Ela estava lá, mas freqüentemente só se vê a trilha após ter viajado
nela por uma boa distância. Ninguém vê o que não está pronto para ver.
– Bem, já aprendi alguma coisa a respeito da verdade – replicou a
princesa, baixinho. – A verdade é que contos de fadas não se tornam
realidade e viver feliz para sempre não é mais que um sonho infantil.
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– Pelo contrário, princesa. Contos de fadas se tornam realidade – disse
Doc. – Mas são com freqüência diferentes daquilo que fantasiamos de início.
O final feliz espera por você na trilha.
– É mesmo? – disse ela, seu rosto se iluminando. – Um conto de fadas
diferente? – A princesa nunca pensara na possibilidade de que poderia viver
feliz para sempre sem ser resgatado por um corajoso, encantador e belo
príncipe, chegando montado num robusto cavalo branco, arrebatando-a e
fugindo com ela ao pôr-do-sol. Victoria suspirou. – Mas antes eu achava que a
felicidade estava me aguardando, e olhe onde vim parar.
– Veio parar onde está agora.
– O que há de tão bom acerca de onde estou agora? – perguntou
Victoria.
– Você descobrirá quando estiver na trilha.
Ela hesitou.
– Não quero ir sozinha. Pode me indicar o caminho?
– Gostaria de fazê-lo, princesa – replicou Doc gentilmente. – Mas cada
um deve encontrar o seu próprio caminho.
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Sua mente apaziguada, Victoria caminhou rapidamente até a carruagem
à espera e retornou ao seu palácio. Subiu a escadaria e seguiu para o quarto
principal. Jogou alguns itens necessários na mochila, depois enfiou um
exemplar do Livro de receitas naturais para gourmets da família real. Como
poderia vir a precisar de Um guia para se viver feliz para sempre, ela o enfiou
também mochila. Embrulhou o precioso par de sapatinhos de cristal com suas
iniciais gravadas em uma de suas echarpes macias de lã e amarrou com uma
fita de cabelo, depois os colocou com o maior cuidado dentro da mochila.
Pensou em não levar sua caixa de música porque a mochila já estava ficando
pesada – e, de qualquer modo, ultimamente a música estava deixando triste
demais –, mas não poderia deixá-la para trás.
Depois, achando que Árvore Genealógica da Família Real poderia ser
útil na sua jornada, a princesa abriu seu baú de noiva e procurou lá dentro.
Remexeu até que seus dedos sentiram as beiradas rotas do velho pergaminho.
Enfiou-o na mochila. Quase como que num pensamento tardio, colocou a
receita de Doc e fechou a mochila, lembrando a si mesma de passar na
cozinha antes de partir a fim de levar alimentos para a jornada. Todo aquele
tempo ouvindo a gritaria de Vicky estava causando uma terrível dor de cabeça
em Victoria.
A princesa foi até o grande leito de latão e sentiu-se compelida a passar
a mão sobre a colcha de cetim que, vezes sem conta, havia ensopado com
suas lágrimas. Mas recordava principalmente a época em que o príncipe a
tomava nos braços e sussurrava palavras de amor. Inspirou profundamente,
saboreando o aroma da colônia preferida do príncipe, que ainda impregnava
no ar. Tão repleta estava com suas próprias lágrimas que receava que, se as
liberasse todas de uma vez, certamente se afogaria.
A dúvida chegou subitamente como o chorão de um relâmpago , e
durou quase o mesmo tempo.
– Eu preciso fazer isso. Preciso – Victoria lembrou a si mesma, sua voz
soando como se pertencesse a outra pessoa. Nada parecia real. Ela meio que
esperava que alguém a acordasse do pesadelo.
Foi até a penteadeira, abriu a gaveta do meio e olhou para a pequena
pilha de bilhetes de agradecimento em pergaminho branco, deixados depois da
festa de seu casamento. Tirou um bilhete da gaveta, abriu-o e nele escreveu:
De violetas e rosas
Nosso jardim viceja,
Mas devo abandonar você
Por mais triste que seja.
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– Certamente não parece – disse a princesa. – Não quero fazer isso.
Preferia não ter de fazer.
– A capacidade de fazer o que é melhor, quando é diferente do que se
quer, é um sinal de maturidade – disse Doc, caindo levemente para o chão. –
Claro que isso não tornaria a coisa menos difícil.
– Acho melhor começar antes que eu mude de idéia outra vez. Mas
como posso seguir uma trilha que nem mesmo posso ver?
– Olhe de novo, princesa – sugeriu Doc.
A princesa arfou.
– De onde surgiu isso? – perguntou ela, apontando para uma trilha que
subitamente apareceu bem diante dela, sua superfície pedregosa serpenteando
e se tornando uma íngreme subida que se perdia na distância. – Por que nunca
a vi antes?
– Algum dia você realmente se dispôs a olhar antes?
– Não, acho que não – replicou ela, olhando para a trilha. – Não consigo
ver onde termina.
– Ela não termina.
– Não termina? Mas como saberei se vou na direção certa se não posso
manter a vista para onde supostamente terminaria?
– Há letreiros indicativos. Infelizmente, as pessoas nem sempre os lêem.
Ás vezes são difíceis de ver. Você deve observar atentamente para vê-los.
– Parece muito difícil – disse a princesa. – Eu poderia me ferir. Ou me
perder. Ou as duas coisas.
– Você já passou pelas duas coisas e sobreviveu. Sobreviverá também a
isso.
– Não creio que eu seja forte o bastante para enfrentar tudo isso. Ficarei
fraca demais para prosseguir – disse ela, ficando mais assustada a cada
momento que passava.
– Pelo contrário – replicou Doc. – Quanto mais você prosseguir, mais
oportunidade terá para ficar mais forte. Lembre-se do que eu disse sobre a dor
e a oportunidade.
– Não estou muito certa sobre isso. Eu não fazia idéia de onde estava
me metendo quando disse que iria.
– Ninguém jamais disse que seria fácil ir em busca da verdade. Você
precisará ser muitas coisas, exploradora, navegante, desbravadora... pois a
trilha serpenteia através de terreno acidentado. É conhecida por ter muitos
obstáculos. Buracos à espera de viajantes incautos. Cobertores de seixos que
oscilam e rolam debaixo dos pés. E penedos que bloqueiam o caminho, alguns
que parecem do tamanho de montanhas e são irremovíveis.
Pois muitas coisas entram no caminho da verdade, umas grandes, outras
pequenas.
– Parece o lugar perfeito para ser resgatada. – A seguir, ela se lembrou.
– Será que meu príncipe virá me resgatar na hora H?
Doc sorriu.
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– Vê? Você já está aprendendo. Agora preciso lhe dar umas instruções
de última hora. Está pronta?
– Acho que sim.
– Você deve seguir a trilha, aconteça o que acontecer, e procurar a
verdade que a espera. Não permita que nada a desvie de sua busca da verdade
que irá curá-la.
– Como conhecerei a verdade quando a encontrar?
– A verdade se torna cada vez mais clara à medida que se percorre a
trilha. É só segui-la fielmente e, por fim, alcançará o Templo da Verdade,
Casa do Pergaminho Sagrado.
– O Templo da Verdade? Nunca ouvi falar. O que é? E o que é o
Pergaminho Sagrado
– O templo é um dos lugares mais lindos o universo, de mais maneiras
do que se pode imaginar. Uma vez transpostos os seus portais, você mudará
para sempre. O Pergaminho Sagrado despertará sua mente e libertará seu
coração. Você encontrará paz e serenidade, e aprenderá o segredo do
verdadeiro amor – do tipo com que sonhou por toda a vida. Você estará no
caminho certo para tornar seu conto de fadas realidade.
– Oh, Doc, é a coisa que mais desejo no mundo! A coruja bateu suas
asas e elevou-se no ar.
– Então a terá. Vá em frente, cara princesa, e plante as sementes da
verdade das quais brotarão paz, amor e felicidade.
– Espero que eu possa imaginar como – disse ela. – Até hoje só plantei
rosas.
Ela pegou sua mochila. Depois, procurando por buracos, seixos,
penedos, e coisas tais, ela foi dando passos tímidos ao longo da Trilha da
Verdade, sacudindo a cabeça e murmurando para si:
– Não posso crer que esteja realmente fazendo isso.
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Capítulo Onze
O Mar da Emoção
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– Não pode, e ponto final.
– Mas os dedos dela irão alisar o cabelo preto retinto dele... o cabelo do
nosso príncipe... e o rosto dele se iluminará quando ela entrar no quarto, E os
olhos dele cintilarão... só por ela. – Vicky choramingou. – Não posso suportar
isso, não posso! Por favor, por favor, temos de voltar imediatamente!
Victoria tapou os ouvidos com as mãos, lutando para não ouvir as
palavras de Vicky. Mas ela as ouviu, altas e claras. E essas palavras
invocaram um vívido retrato mental de outra princesa abraçando e amando o
seu príncipe. O seu príncipe maravilhoso, encantador e bonito.
– Não sei o que fazer, Vicky. Não posso sequer imaginar o que deu
errado ou de quem foi a culpa. Mas sei que não podemos ir para casa. Você
sabe que não podemos, não sabe?
– Mas eu não posso viver sem ele. Não posso! – gritou Vicky. – É como
se alguém tivesse cortado nossos braços e pernas.
– Que coisa horrível de se dizer! – replicou Victoria, e depois
acrescentou suavemente: - Horrível, mas verdadeira. Doc nunca nos disse que
seria assim.
Naquele momento, uma massa de nuvens pesadas e escuras passou na
frente do sol, e o mundo de Victoria ficou mais ofuscado de dúvida. Ela se
arrepiou quando uma brisa fria começou a soprar. Ela não estava preparada
para uma tempestade.
– É melhor procurarmos abrigo – disse Victoria e enfiou
apressadamente o pergaminho na mochila quando pingos de chuva
começaram a cair.
– Veja – disse Vicky, desatando a chorar. – O mundo inteiro está triste
como nós.
Isso fez Victoria começar a chorar também. Quanto mais aumentava a
chuva, mais elas choravam. Quanto mais choravam, mais chovia. Parecia
como se o mundo inteiro chorasse com elas.
Havia tanta chuva e tantas lágrimas que poças se formaram – primeiro
pequenas, depois maiores. A chuva e as lágrimas continuaram a cair,
transformando as poças numa corrente constante de água encrespada que
viajava cada vez mais rápido até que inchou, para transformar num aguaceiro
de tamanha força que arrastava tudo no caminho que não estivesse bem
fincado no solo.
A princesa estava tão perturbada que só notou o que estava acontecendo
quando uma torrente de água em disparada a arrebatou e arrastou-a trilha
abaixo aos trancos e barrancos, sacudindo-a e retorcendo-a no caminho.
– Tenho medo de água! – gritou Vicky.
– Eu sei – gritou Victoria de volta. - É por isso que não tomamos lições
de natação.
– Você não devia ter me criado!
– Não é hora de falar sobre isso! – gritou Victoria, agarrando-se
desesperadamente aos galhos de arbustos enraizados. Mas, apesar dos seus
melhores esforços, a princesa foi varrida incontrolavelmente trilha abaixo.
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– Victoria. Veja! – Mas já era tarde demais. Uma gigantesca massa de
água assomou diante delas. – Caramba! Vamos ser levadas para as
profundezas!
A princesa foi arremessada, sem fôlego e aterrorizada, no Mar da
Emoção. Rochas pontiagudas e pedaços de galhos quebrados rodopiavam na
água gelada a sua volta, enquanto ela lutava ferozmente para permanecer à
tona. Uma forte corrente puxava seus pés, enquanto pelotas de chuva batiam
implacavelmente no seu rosto e cabeça.
– Vamos nos afogar, com certeza! – gritou Vicky entre golfadas de água
salgada. – Gostaria que o príncipe estivesse aqui para nos ajudar.
A princesa continuava dando braçadas e chutando, gritando por socorro.
Enquanto estava sendo de novo sugada para o fundo do mar, vislumbrou
alguma coisa ao longe. Se ao menos pudesse alcançá-la...
Quando voltou à superfície, a coisa ainda estava lá. Parecia ser um
navio, balançando e arfando na sua direção.
– Socorro! Salvem-me! – gritou o mais alto que pôde, esperando que
quem quer que estivesse no navio possuísse alguma experiência em resgatar
pessoas. Talvez fosse um belo príncipe encantado e corajoso, apanhado
inesperadamente na tempestade enquanto saía para um cruzeiro. Ou talvez
fosse uma das belonaves da Marinha Real.
Continuou gritando, mas não houve resposta. Quando a embarcação se
aproximou, ela soube por quê. Não havia ninguém a bordo. E o navio era
muito menor do que julgara de início – era um bote a remos.
Quando o bote a alcançou, ela agarrou-se à borda e tentou com todas as
forças impulsionar-se para a segurança do casco, mas estava enfraquecida
demais. Se ao menos pudesse descansar por um minuto, pensou, talvez
conseguisse reunir forças. Portanto, agarrou-se com firmeza, primeiro com
umas das mãos, depois com a outra. Finalmente, com um forte impulso, ela
passou por cima da borda e caiu dentro do bote. Exausta, permaneceu bem ali
onde tinha caído, esparramada no fundo da frágil embarcação, bem em cima
de dois velhos remos de madeira.
– Uau! Pensei que íamos mesmo nos afogar – disse Vicky – O que
vamos fazer agora?
– Tão logo eu recupere as energias, vamos usar estes remos para voltar
à terra. Tudo que tenho a fazer é imaginar de que lado ela fica.
A princesa ergueu-se com grande esforço e olhou para o norte – ou seria
o sul? – Especulou. Ou... bem, isso não tinha importância, desde que avistasse
terra. Mas, até onde podia ver em cada direção, não havia nada senão o mar
escuro e turbulento.
– É tremendamente assustador – disse Vicky em voz trêmula.
– Não tenha medo. Tudo vai correr bem tão logo eu imagine para que
lado seguir.
– Essa sua mania de imaginar coisas é que nos botou nesse apuro, para
começar. Quero ir para casa!
– Se não ficar calada e me deixar pensar, podemos morrer aqui.
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– Eu lhe disse que íamos morrer se deixássemos o príncipe. – disse
Vicky acusadoramente. – Você não acreditou. Devia ter acreditado em mim,
Victoria.
– Vicky, por favor! Não tenho tempo para isso agora.
– Não é justo! De todos os príncipes do reino, por que justamente o
nosso tinha de pegar o feitiço maligno?
– Só posso imaginar uma coisa de cada vez, Vicky.
– Ele prometeu nos amar e cuidar de nós para sempre. Eu devia tê-lo
feito dizer: ―Juro por Deus e quero cair mortinho, beijar um lagarto.‖ Porque
ele quebrou sua promessa! Ele é pior do que mau. É tudo culpa dele termos
tido que partir. Eu o odeio! Ele estragou tudo. Toda a nossa vida. Não posso
suportar isso. Não mesmo! – gritou Vicky, lançando-se ao fundo do bote e
batendo com os pés e socando com os punhos até que ficaram machucados e
latejando. – Está tudo errado. Tudo está errado. Não é justo! E agora nós
vamos morrer!
– Pare com isso! Pare! Está me ouvindo? – gritou Victoria. – Você
precisa se acalmar. Não consigo pensar com você gritando e esmurrando o
bote!
O céu escureceu ainda mais. Pouco depois, os céus pareceram se fender
e gigantescos pingos de chuva tamborilavam sobre o mar. O bote jogava
violentamente enquanto o mar descarregava sua raiva. A princesa aferrou-se à
borda, mas ela e o pequeno barco não eram páreo para a fúria da tempestade.
Ela era arremessada impiedosamente de um lado para outro do bote. Por duas
vezes, quase passou por cima da borda.
– Quero ir para casa! – gritava Vicky em meio ao vento uivante. –
Alguém nos ajude, por favor, por favor! Doc! Alguém! Qualquer um! Tirem-
nos da tempestade e desse barco e façam o príncipe voltar a ser gentil como
costumava ser e nos leva para casa. Prometo ser melhor do que nunca fui
antes, de todas as maneiras. Se-serei perfeita. Farei tudo... qualquer coisa que
você quiser. Prometo, realmente prometo. Juro por Deus e quero cair motinha,
mas, como você provavelmente vê, meus braços estão ocupados. E, de
qualquer modo, este não parece ser o melhor momento para esperar a morte!
O fundo do bote começou a se encher de água. A princesa pôs as mãos
em concha freneticamente e começou a despejá-la por sobre a borda. Mas a
água continuava a subir.
– Pelo menos como salva-vidas este bote deve servir – disse Victoria.
– É tudo minha culpa – gritou Vicky. – Sei disso. Provavelmente abri
um buraco no fundo do barco com meus socos naquela hora em que fiquei
desesperada.
– Duvido , Vicky. Este bote é simplesmente velho e pequeno demais
para agüentar toda essa chuva e ondas em arrebentação. – Victoria arrebatou
os remos da água que se elevava. – Vamos cair fora daqui imediatamente.
– Mas não sabemos que caminho seguir!
– Qualquer lugar é melhor do que aqui – replicou Victoria, começando
a remar loucamente. Mas a correnteza puxava o bote para trás.
77
– Depressa! Temos de tirar este bote daqui antes que afunde.
– Estou tentando! – gritou Victoria.
À medida que a noite caía, a princesa continuava metodicamente
empurrando e puxando os remos com a maior firmeza que podia, seus braços
doendo. A água já subira até o meio do barco e o pânico de Vicky crescia.
– E se estivermos seguindo o caminho errado, ou se não houver terra
em lugar nenhum, ou se a gente estiver viajando em círculos sem sequer saber
ou se...
Victoria continuou a remar em silêncio. Pela manhã, seus braços tinham
ficado tão fracos que não podiam mais continuar e largou os remos.
– Acho que vamos afundar com o bote.
– Não importa – disse Vicky. – De que adianta viver, de qualquer
modo? Até nossa mochila se foi.
Enquanto o barco ficava cada vez mais baixo na água, Victoria
continuava tentando formular um novo plano.
Se ao menos ela tivesse algo com que sinalizar para outro barco!
– Parece que você está em apuros até o pescoço – disse uma voz.
– Sim, e do jeito como estão indo as coisas, esses apuros vão chegar ao
topo de minha cabeça – replicou Victoria sem hesitação.
– Hum. Muito inteligente – disse a voz. – Também muito verdadeiro,
acho, a menos que você faça algo para se salvar.
– Me salvar? É o que estive tentando fazer para... Ei, quem é você? –
perguntou a princesa, olhando em volta. – Socorro! Por favor, me ajude!
– De repente, uma reluzente cabeça cinzenta surgiu à superfície da
água.
– Olá – disse, batendo os cílios de um jeito que fez a princesa lembrar
do príncipe. – Sou Dolly. Dolly, o Golfinho. E eu deveria perguntar como é
que vai você. Mas posso ver claramente que não vai nada bem no momento.
Pelo menos você tem ambos os remos na água, o que é consideravelmente
mais do que posso dizer de outros que tenho encontrado por aqui.
– Um golfinho! Um golfinho falante! Sei de golfinhos que falam uns
com os outros, mas não imaginava... E agora você veio nos resgatar. E bem na
hora H! Engraçado, de alguma forma sempre pensei que seria resgatada por
um príncipe.
– Ninguém pode resgatá-la, minha cara. Nem eu, nem um príncipe, nem
qualquer outro. Um fato freqüentemente impalpável, mesmo para alguém que
é boa para imaginar coisas.
– Está querendo dizer que vai deixar eu me afogar? – perguntou ela
atônita.
– Não quero dizer que você vai se deixar afogar... quer seja agora ou na
próxima vez...isto , a menos que aprenda a nadar.
– Da próxima vez? O que quer dizer com ―da próxima vez‖?
– Mesmo que eu a carregasse nas costas para livrá-la dessa tempestade
e a depositasse a salvo em terra firme, seria apenas uma questão de tempo até
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que a próxima tempestade a alcance e aí, inevitavelmente, estará em apuros
outra vez, pois há muitas tempestades prestes a desabar sobre a trilha.
– Ainda estou imaginando um meio para não me afogar nesta aqui –
disse Victoria.
– Como já lhe disse, o meio de evitar o afogamento é aprender a nadar.
– Mas a Vicky sempre se recusou.
– Então você passará sua vida inteira tentando evitar se afogar... como
agora... observando e esperando por um barco salva-vidas perfeito para salvá-
la, de uma vez por todas.
– Sim! Sim! É exatamente disso que precisamos! – deixou escapar
Vicky. – Acha que poderia nos arranjar rapidinho um de verdade?
– Mesmo que pudesse, provavelmente não seria muito bom para vocês.
É comum barcos salva-vidas afundarem – disse Dolly.
– Barcos salva-vidas não são feitos para afundar – replicou Vicky,
indignada. – São feitos para salvar pessoas!
– Muitas coisas não fazem aquilo que supostamente deveriam fazer.
Barcos salva-vidas, por exemplo, com freqüência afogam as próprias pessoas
que deveriam estar salvando.
– É mesmo? – disse Victoria.
– Sim. Quando avistou seu barco pela primeira vez, não achou que ele
ia salvá-la? E não resultou ser pequeno e velho, e tão frágil que se encheu de
água?
– Acho que sim – murmurou Vicky.
– E não estão se agarrando nele desesperadamente, muito embora esteja
afundando e ameaçando levar vocês junto?
– Acho que sim – disse Vicky, amuada. Depois, subitamente, ela se
iluminou. – Já sei! Você poderia nos dar uma carona para fora daqui. Você
atravessou a tempestade, é um golfinho, e golfinhos são realmente bons
nadadores. E são espertos também. Aposto que você sabe exatamente onde
encontrar terra.
– Eu poderia fazer isso, mas não vou.
– Por que não?
– Porque quando você dá um peixe a um homem, você o alimenta hoje.
Quando você o ensina a pescar, você o alimenta para a vida. Eis por quê.
– E o que me interessa saber sobre um homem idiota e seu peixe! –
disse Victoria, mais frustrada ainda. – Você tem de nos ajudar a sair daqui
antes que a água suba mais!
– Só posso ajudar ensinando vocês a se ajudarem a si mesmas.
– Ajudarmos a nós mesmas? Como faremos isso? – perguntou Victoria.
– Evacuando a embarcação, como se diz – respondeu o golfinho.
– O que significa isso, Victoria?
– Quer dizer que devemos pular fora do bote.
– Você não entende! – gritou Vicky para o golfinho. – Já lhe disse, não
sabemos nadar!
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– É você que não entende. Você sabe nadar. Simplesmente escolheu não
saber. Posso lhe ensinar como.
– Estamos congelando e cansadas e, de qualquer modo, a água está
agitada demais – disse Vicky, decidida. – Iremos nos afogar se tentarmos
aprender agora.
– Irão com certeza se afogar se não tentarem aprender agora.
– Vicky começou a gritar e a se agarrar na borda do barco.
– Não e não! Não quero sair do bote!
– Uma pessoa pode sentir como se estivesse se afogando e ainda assim
sobreviver. É importante lembrar disso – replicou Dolly.
– Não vamos ficar por aí para ―lembrar de alguma coisa‖ – gritou
Vicky.
– Algumas pessoas têm de tocar o fundo antes que se disponham a
aprender a se salvar. E, mesmo então, algumas ainda não se arriscam a tentar.
Você veio nesta jornada para evitar ir para o fundo com um barco que está
indo a pique – disse Dolly. – Tem certeza de que quer se deixar levar para o
fundo por esse aí?
– Não entendo – replicou Vicky. – Não estávamos tampouco sobre
outro barco.
– Dolly se refere ao príncipe – explicou Victoria. – Ele era o outro
barco, de certa maneira. Aquela foi a primeira vez que tivemos de decidir se
ficávamos e afundávamos, ou se partíamos e tentávamos nadar. Se tivéssemos
ficado com ele, em breve nos afogaríamos em nossas próprias lágrimas. E se
ficarmos aqui no bote, nos afogaremos no mar. Entende?
Dolly agitou a barbatana.
– Sim, às vezes você precisa parar de se agarrar e começar a se mover
– disse ela. – Desculpe por apressá-las, mas o tempo está correndo. Sugiro que
decidam rapidamente.
– Vejamos – disse Victoria,, compilando uma rápida lista mental de
prós e contras. Ela certamente se sentiria melhor se pudesse escrever seus
pensamentos. Por fim, tentando soar convincente para si mesma, bem como
para Vicky e Dolly, ela anunciou:
– Escolhemos nadar, então. E escolhemos nadar agora.
– Muito bem – disse Dolly, posicionando-se junto ao bote e erguendo o
corpo levemente para criar uma pequena ilha cinzenta. – Subam a bordo e
segurem-se em minha barbatana.
– Se nos soltarmos da borda do bote nos afogaremos. Sei disso – disse
Vicky.
– Há anos que vocês vêm se agogando, e nem sequer foi na água –
replicou Dolly. – Você está com tento medo que nem notou que a chuvarada
diminuiu. A vida não chega com garantias. Você pode arriscar uma chance ou
não ter nenhuma chance.
Enquanto a princesa meio que rastejava meio que flutuava no dorso
escorregadio do golfinho, Vicky começou a barrar:
– Veja lá, Victoria! Estamos nos arriscando!
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– Está tudo bem – assegurou-lhe Dolly. – Arrisca-se é uma
conseqüência natural de se soltar e se pôr em movimento.
Vicky agarrou-se à barbatana do golfinho.
– Pensava que não nos daria uma carona para fora daqui por causa
daquele homem e seu peixe – disse ela indignada, tentando manter-se montada
no golfinho de modo a não escorregar.
– Vou simplesmente demonstrar a técnica correta da natação – disse
Dolly, deslizando sem esforço através da água agitada. – A vez de vocês logo
chegará
– Não se apresse – murmurou Vicky.
– Nos sentimos inteiramente seguras montadas na suas costas, Dolly.
– A única segurança permanece é a segurança de saber que cada um
pode tomar conta de si mesmo – disse Dolly. – Agora entendem por que
devem aprender a nadar?
– Sim – disse Victoria. – Eu entendo.
– Ótimo. Quem viaja pela trilha tem muito a aprender com as lições do
mar. Sugiro que prestem bastante atenção.
Dolly diminuiu a velocidade, quase parando.
– Vocês serão bem-sucedidas se trabalharem em conjunto com as forças
naturais. Isso significa trabalhar de comum acordo com a correnteza, ao invés
de lutar contra ela. Vamos. Sigam com a correnteza. Tornem-se unas com ela.
Entreguem-se ao mar.
– Praticamente já fizemos isso – disse Vicky.
– Fico contente ao ver que tem senso de humor, Vicky – disse Dolly,
bastante satisfeita. – Com senso de humor fica mais fácil aprender as lições.
Agora, antes de aprender a nadar, vocês devem aprender como flutuar. É
como aprender a andar antes de correr. Reparem no quanto estou agora
relaxada, quão parada, no quanto a água me dá apoio sem qualquer esforço da
minha parte. Agora deitem retas sobre suas costas e me deixem segurá-las.
Vou baixar mais na água, de modo que o corpo de vocês mal toque a
superfície. Ficarei bem debaixo de vocês para que não afundem.
– Nas suas costas? Não somos capazes de fazer isso – antecipou Vivky.
– Duvidar de sua capacidade irá refreá-la e provocar seu fracasso –
disse Dolly.
Lentamente, o golfinho foi baixando na água. A princesa tentou seguir
as instruções ao pé da letra, mas Vicky entrou em pânico. Dolly teve de se
elevar várias vezes para manter a princesa à tona, dar-lhe confiança e repetir
as instruções. Mas Victoria estava tão determinada quanto Vicky estava
assustada. Seguia as instruções de Dolly, embora Vicky continuasse a
enfrentar dificuldades.
– Não consigo relaxar. Não consigo – insistia ela.
– Inspire fundo e solte o ar lentamente. Sinta suavemente o corpo
baixando devagar, relaxando. Seguindo cm a correnteza.
– Mas como é que vou relaxar com o mar todo encapelado, me
empurrando e me puxando para lá e para cá?
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– Tranqüilizar a mente de alguém diante da turbulência é uma lição
difícil de aprender, mas importante. Alguém raramente se sentirá apaziguado
se a paz depende de se descobrir em mares tranqüilos. É inútil se concentrar
no que pode fazer, ao invés de no que não pode fazer. Agora comece a
respirar lenta e profundamente – instruiu Dolly numa voz calma. – Sinta sua
mente e seu corpo se abrandando.
Apesar da orientação perita de Dolly, a cada vez que ela deslizava mais
baixo na água, a fim de permitir que a princesa adquirisse um senso de
flutuação, Vicky se apavorava, agitava os braços desesperadamente e tentava
se levantar. Repetidamente Dolly teve de recordar-lhe para respirar lenta e
profundamente, induzir corpo e mente a relaxar e se concentrar no que podia
fazer ao invés de no que não podia.
Após um momento, Vicky gritou:
– Não sou forte o bastante para continuar fazendo isso!
– Há uma grande força em se entregar. Continue tentando.
Mas de novo e mais uma vez, Vicky se apavorava, agitava os braços e
tentava se levantar.
– É sempre mais fácil continuar o que está fazendo, mesmo se não
funciona – disse Dolly pacientemente. – Lembre-se de respirar.
– Você está parecendo alguém que conheço – disse Victoria. – Já ouviu
falar de Henry Herbert Hoot, Doutor em Coração?
– Sim, claro. Aliás, eu e o doutor com freqüência trabalhamos juntos e
nos tornamos bons amigos. Já que o mencionou, faz algum tempo que ele não
aparece por aqui.
– Você quer dizer que Doc vem aqui? Fico imaginando por que ele não
aparece quando necessitamos dele. Ele sempre parece saber tudo que está
acontecendo.
– Ele deixa os assuntos do mar por minha conta, tal como eu deixo os
assuntos do coração para ele. Bem, agora devemos voltar para a oportunidade
à mão.
– Oportunidade? Alguma oportunidade – murmurou Vicky, achando
que Dolly soava como se tivesse passado tempo demais em torno de Doc.
– O mar e a vida têm muito em comum – continuou Dolly. – Relaxe,
deixe-se levar. Acredite que isso irá mantê-la à tona... e irá. Mas se resistir,
acreditar que irá sugá-la para baixo... irá mesmo. A escolha é sua.
Após várias tentativas e repetidos incentivos de Dolly, a princesa por
fim flutuou triunfantemente à superfície.
– Excelente! Você agora está pronta para virar ao contrário e boiar de
rosto para baixo – disse Dolly.
A princípio, Vicky se inquietou com a idéia de pôr a rosto na água, mas
logo a princesa estava flutuando sem esforço sobre seu estômago, tal como
fizera de costas.
Dolly estava deliciada.
– Agora você deve aprender a se impulsionar através da água – disse
ela, demonstrando seu melhor estilo. – Repare na fluidez de meus
82
movimentos. Nada de lutar, de resistir, de golpear com minhas barbatanas ou
cauda. É um esforço regular, suave e consistente.
Vicky recusou-se a se mover.
– Desejo acreditar que a água nos manterá à tona, como você diz, mas
toda vez, só de pensar em me mover, sinto-me como se fosse afundar.
– Você não acredita que pode fazer isso até que o faça – disse Dolly. –
Irá descobrir que muitas coisas são assim.
A princesa ergueu cautelosamente o braço no ar enquanto Dolly
instruía, mas ela perdeu sua flutuabilidade e Vicky começou a bater as mãos
contra a superfície e a chutar cascatas de água no ar.
– É isso! – disse Vicky. – Já aprendemos tudo que podemos. Vamos
parar, Victoria?
Embora esgotada e frustrada, Victoria não tencionava desistir. Ela ouviu
a voz de Doc em sua cabeça como se estivesse ali do seu lado.
– Lembre-se do que Doc nos disse, Vicky: ―Desiste-se da desesperança,
mas cede-se à aceitação. ― Nunca devemos desistir, apenas ceder. Devemos
aceitar nosso medo e fazer isso de qualquer modo, ou nunca aprenderemos a
nadar. Vamos, Vicky. É o único meio de voltarmos para terra firme.
No momento em que Vicky finalmente concordou, a tensão foi drenada
do corpo da princesa. Lentamente, ela ergueu um braço, depois o outro,
girando-os em arcos que cortavam a água graciosamente. O mar ficou liso
como vidro debaixo dela. A princesa ficou una com o mar.
– A natureza é muito dadivosa com aqueles que cumprem suas regras
simples – disse Dolly, observando a princesa deslizar através da água. – Mas
não tem piedade para com aqueles que as violam. A natureza exige pouco,
mas seu castigo para a desobediência é duro. Quando se vive em harmonia
com a natureza , a vida flui. Pode senti-la?
– Sim, sim. Eu a sinto! – gritou Vicky.
A garota parou, as nuvens escuras se abriram e o sol surgiu brilhando
através delas.
– Veja! Um arco-íris! – guinchou, Vicky, espiando para o céu claro por
entre suas braçadas. – Estou feliz por aquelas nuvens escuras e aquela chuva
medonha terem isso embora.
– É preciso juntar o sol e a chuva para formar um arco-íris, Vicky –
disse Dolly. – Um fato que vale bem a pena lembrar.
A princesa parou, levantou a cabeça e bateu as mãos levemente na água.
Em toda aquela empolgação, ela havia esquecido que ainda não fazia idéia do
caminho a seguir. Olhou numa direção, depois em outra.
– Não consigo ver terra para a água – disse Victoria , sentindo que sua
calma ia se desvanecendo com rapidez.
– É como não ser capaz de ver a floresta para as árvores? – perguntou
Vicky.
Victoria sorriu.
– Ora, Vicky, você está falando como eu! – exclamou ela, seus olhos
atraídos de volta para o arco-íris, que parecia estar chamando-a. Ela tentou
83
imaginar de onde vinha aquela sensação e por que a tinha, mas não conseguiu.
A seguir, concluiu que era ridículo ter tal sensação acerca de um arco-íris.
Mas a sensação persistia. Finalmente, disse para si mesma que devia estar
imaginando coisas. Mas a sensação persistia.
– Poderia me dizer se, por alguma razão, espera-se que eu nade na
direção do arco-íris? – perguntou a Dolly, hesitante.
– Por que buscar com os outros as respostas que estão no seu próprio
coração?
Sua mente voltou ao tempo em que foi atraída para a pequena árvore na
colina além dos jardins do palácio. Aquele foi o dia em que precisou tão
desesperadamente encontrar Doc. E ele lá estivera. Agora precisava encontrar
terra. Será que alguém estava tentando lhe dizer alguma coisa?
Olhou mais uma vez para o arco-íris. Seu coração começou a bater
enquanto seus olhos se prendiam na faixa vermelha. Era o tom exato das suas
adoradas rosas.
É este o caminho que seguiremos – anunciou para Dolly.
Naquele momento, um distante ponto de terra apareceu. Victoria ficou
atônita.
– De onde foi que veio? Não estava lá antes!
– Estava sim – replicou Dolly.
– Então por que não pude vê-lo?
– Porque o medo e a dúvida nos deixam cegos para o óbvio.
– Você quer dizer que estava lá o tempo todo, mas não pude ver porque
estava com muito medo?
– Sim. E você duvidava da resposta do seu coração.
– Não entendo. Doc disse uma vez que eu não podia ver a Trilha da
Verdade porque não estava pronta para vê-la. Você diz que eu não via a terra
porque estava com muito medo e cheia de dúvida. Então, é não estar pronta ou
com medo e cheia de dúvida o que torna alguém incapaz de ver?
– Tudo isso. Quando uma pessoa está com medo e cheia de dúvida, não
está pronta.
– Estou vendo por que você e Doc se tornaram bons amigos. Têm muita
coisa em comum – disse Victoria.
– Virá conosco, Dolly? – perguntou Vicky.
A cabeça do golfinho reluzia ao sol, sua face estava radiante e
sorridente.
– Vocês devem alcançar terra firme por conta própria. E eu preciso estar
disponível para o próximo viajante em luta para não se afogar.
– Sentiremos sua falta, Dolly – disse a princesa.
– Aqueles que vocês carregam no coração estão sempre próximos –
disse Dolly, batendo os cílios. – Sempre me lembrarei de vocês.
Com isso, ela se virou, acenou um adeus com sua cauda e desapareceu
lentamente sob a superfície da água.
O mar estava calmo. Receptivo. Cheio de esperança. A princesa lançou
seu olhar por sobre as águas cintilantes e se alegrou, sabendo que poderia
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chegar a terra firme por conta própria. Um súbito surto de poder elevou-se
dentro dela, e uma sensação de paz a inundou, tal como faziam as suaves
ondas às suas costas.
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Capítulo Doze
A Terra da Ilusão
86
– Doc! É Doc! – gritou a princesa, rapidamente se erguendo para ver
coruja empoleirada sobre uma duna próxima.
– Olá, princesa.
– O que está fazendo aqui? – perguntou ela, feliz em vê-lo.
– Esperando por você. Dolly me pediu para entregar-lhe isto – replicou
ele, segurando uma mochila axadrezada um tanto castigada pelas intempéries.
– Ela achou que você ia querê-la de volta.
– Sim, é claro que quero! Mal posso crer que a tenha encontrado. Eu a
perdi quando fui varrida da trilha e lançada no mar. Pensei que a tinha pedido
para sempre.
A princesa pegou ansiosamente a mochila e abriu-a.
– Deve estar tudo arruinado – disse ela - , mesmo assim estou contente
em tê-la de volta. Alguma das coisas que mais prezo no mundo estão aqui
dentro.
Ela procurou e extraiu os preciosos sapatinhos de cristal com suas
iniciais gravadas. Estavam ainda embrulhados na echarpe de lã macia.
Ansiosamente, ela desatou a fita, retirou os sapatinhos e examinou-os
minuciosamente.
– Nem mesmo se racharam!
– Dolly disse que notou a mochila balançando ao longo de um tronco à
deriva no mar, e imaginou que devia ser a sua. O conteúdo foi muito bem
secado e permaneceu em boas condições... considerando tudo. Parece que
você também, por falar nisso.
– Devo parecer melhor do que me sinto – disse a princesa. – Você me
disse que eu me sentiria melhor quando começasse a aprender sobre a
verdade, mas nunca me avisou que eu poderia me afogar na tentativa.
– Sentir como se estivesse se afogando é uma oportunidade de aprender
sobre a verdade.
– Engraçado... é mais ou menos o que Dolly disse.
– Não é de surpreender – replicou Doc. – A verdade tem muitos
professores.
– Lembra de quando você me disse que a verdade é mais puro e
poderoso remédio do universo? Bem... tem certeza?
– Claro, princesa. Tenho certeza. Por quê? Está começando a duvidar de
suas propriedades curativas?
– É apenas que já aprendi bastante e não está funcionando do jeito que
eu imaginava. Ainda tremo um bocado, o estômago dói e o peito aperta.
– Lembro do que dizia a sua receita? Talvez devesse relê-la.
– Não é preciso. Lembro me exatamente do diz: ―A verdade é o melhor
remédio. Tome a quantidade que puder, com a freqüência que quiser.‖ Mas já
tomei bastante. Não sei se seria tão difícil de tomar ou se funcionaria como se
eu tivesse tomado demais por muito tempo.
– Eu nunca lhe prometi que seria bater e valer. Apenas que funcionaria.
– O rosto de Doc suavizou-se num sorriso animador. – Não se sinta
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desestimulada, princesa. Está fazendo um excelente progresso, embora talvez
não esteja ciente disso.
Ele repôs o banjo e o chapéu de palha na sua valise preta
– Oh, ia me esquecendo – disse, extraindo um pequeno pacote de nozes,
semente e frutos e vegetais reluzentes, verdes, vermelhos e amarelos. – Achei
que você gostaria disso.
– Obrigada. Parecem deliciosos.
Doc entregou o pacote à princesa e fechou sua valise.
– Você é muito bem-vinda. Agora preciso ir. Tenho pacientes à espera...
Ah – disse ele, deliciado. – É disso que você precisa: paciência e espera.
– Todo mundo é humorista ultimamente – murmurou a princesa,
lembranças do príncipe recomeçando a se agitar dentro dela.
– É melhor você começar também. Tenho um longo caminho a seguir.
Verifiquei você de novo – disse Doc, erguendo-se suavemente no ar.
– Espere, Doc, por favor. Eu não sei onde estou! Como faço para voltar
à Trilha da...
Mas a coruja já estava em pleno vôo. A princesa se esforçou para ouvir
sua voz acima do rumor das ondas, enquanto ele a chamava de volta.
– Você ainda está nisso. Lembre-se... siga o seu coração.
– Eu preferia seguir um mapa – resmungou ela, frustrada por Doc ter
partido sem lhe indicar o caminho a seguir ou pelo menos ajudá-la a dicidir
por um.
– Um mapa – repetiu para si. – Se ao menos...ora, é claro. O mapa da
Família Real! – Ela agarrou sua mochila e remexeu até encontrar o
pergaminho, esperando que a tinta não tivesse sigo lavada. Ela o achou, soltou
a fita prateada e o desenrolou. Ainda estava legível. Aliviada, estudou-o
minuciosamente até que imaginou que caminho seguir. Depois pegou uma
pequena maçã verde do pacote de comida que Doc lhe dera e pôs o resto na
sua mochila, depositando o mapa em cima. Terminou o lanche às pressas,
pegou a mochila e se pôs a caminho pela areia fofa.
Caminhar era extremamente difícil. A cada passo, os pés da princesa
afundavam na areia até os tornozelos. Algum tempo depois, continuar exigia
um grande esforço. Parava com freqüência para consultar o Mapa da Família
Real, determinada a evitar a mais leve possibilidade de se perder.
Vicky era alternadamente uma chateação e uma benção. Ela se agitava,
chorava e ficava histérica. Reclamava interminavelmente por Victoria não dar
atenção a ela, sempre conferindo seu rumo no mapa ou tentando imaginar
como o conto de fada delas tinha saído errado. Mas, mesmo tudo isso,
Victoria estava contente com a presença de Vicky, pois sem ela teria sido uma
jornada insuportavelmente solitária.
Enquanto a princesa seguia penosamente, o som das ondas e o cheiro de
ar marinho desapareceram. A areia se transformou em cascalho, e o cascalho
se transformou em cobertores de seixos que rolavam sob seus pés, exigindo a
máxima concentração a cada passo que dava.
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– Doc nos falou que encontraríamos cobertores de seixos na Trilha da
Verdade, mas não nos disse o que fazer em relação a eles – disse Victoria,
lutando para manter o equilíbrio.
– Se isso continuar, vai nos levar para sempre até lugar nenhum –
gemeu Vicky.
Ah, sim, para sempre. Ela e o príncipe haviam prometido se amar para
sempre.
– Poucas coisas duram para sempre, Vicky. – Poucas coisas, pensou ela
tristemente, exceto que o sonho tinha dado errado. E a censura. E a culpa. E a
frustração. E a raiva. E o vazio. E a perda dele. E o pesar pelo fim de seu
adorado conto de fada.
– Por que saímos de casa, de qualquer modo? – perguntou Vicky. –
Continuo esquecendo exatamente por quê.
– Como pode esquecer tal coisa?
– É fácil. Sempre que penso no príncipe, tudo que me lembro é do
quanto ele era gentil, doce e maravilhoso, e eu perdi...
– E do quanto era torpe, amargo e cruel, você lembra?
– Essa é a parte que tenho dificuldade de lembrar?
Victoria suspirou.
– Não sei, Vicky. Talvez se torne mais fácil com o tempo – disse ela,
limpando os seixos de um ponto no chão para que pudesse deitar.
– Já se passou um longo tempo.
– Eu sei – disse Victoria sonolenta, se enroscando no chão e aninhando
a cabeça na dobra do braço. – Está ficando escuro. Vá dormir agora.
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– Para a esquerda. Vamos seguir a da esquerda – anunciou, enrolando o
mapa e enfiando-o de volta na mochila. – Graças aos céus!
Pouco depois de se embrenhar na trilha, a princesa notou que, embora o
solo parecesse estar nivelado, tinha a distinta sensação de que estava seguindo
colina abaixo. Curioso pensou. Estranho ainda foi que, em determinado ponto,
ela viu um córrego à frente e estava na expectativa de ter água fresca da
montanha para beber, mas quando chegou aonde tinha visto o córrego, ele não
estava lá. Ela quase podia ouvir a voz da rainha: Ora, Victoria. Você deve
aprender a diferença entre o que é real e o que não é. As pessoas vão
começar a falar.
Ela caminhou sem parar, pensou e pensou, mas não pôde imaginar o
que ia acontecer na trilha nem um pouquinho mais do que podia imaginar o
que tinha acontecido com o príncipe.
De repente, deu de cara com uma enorme pedra assentada bem no meio
da trilha. Podia ter jurado que não estava ali até que a pedra topou com ela –
ou teria ela topado com a pedra? Não tinha certeza. Mas havia muita coisa de
que ainda não tinha certeza
Quanto maior o tempo em que estava na trilha, mais o céu ficava
nublado. Ela logo perdeu a conta de quantas vezes o sol tinha nascido e se
posto desde que deixara a praia. Também não estava muito certa de onde
estivera e para onde ia, à medida que o terreno não parecia estar de acordo
com seu mapa. Se não sabia com exatidão onde estava, podia se considerar
pedida.
Uma névoa suave baixou sobre a trilha, trazendo com ela uma brisa fria.
Começou a sentir aquela familiar azia no estômago, e pôde ouvir a voz do Sr.
Oculto martelando em sua cabeça: Doente a cada vez que sopra um vento frio.
Estou tremendo de medo, princesa.
Seria horrível cair doente ali sozinha, sem nenhum Dr. Risinho para
trazer sua canja de galinha, pensou, de repente, sentindo-se melancólica. A
névoa se tornou mais densa, e a princesa sentiu como se estivesse se afogando
nela.
– Posso ainda me afogar... e na terra! Quem é que ia acreditar? –
murmurou.
– Sentir como se estivesse se afogando é com freqüência uma dádiva –
disse uma voz no meio da névoa. – Dolly não lhe contou sobre isso?
– Quem falou?
– Quem? Quem? Eu – disse a voz.
– Doc! Você me assustou!
– Você não precisa de mais ninguém para assustá-la, princesa. Já
consegue fazer isso sozinha.
– Dolly me ensinou a como não sentir medo, mas às vezes não consigo
evitar.
– Velhos hábitos custam a morrer.
– É mesmo?
90
– Claro. Requer-se muita prática para desaprender os velhos hábitos e
pôr os novos em seu lugar.
– Você tem sorte, Doc. Aposto que não precisa mais praticar.
– Não é uma questão de sorte. Por que acha que minha prática médica é
chamada de prática? Sempre há novas lições a aprender.
– Você que dizer que nunca conseguirei? – perguntou a princesa, aflita
ao pensamento de sua provação não ter mais fim.
– À medida que for aprendendo mais, a viagem se torna cada vez mais
fácil. E vai ficando cada vez mais agradável.
A princesa sentiu-se estimulada.
– O que quis dizer quando falou que a sensação de afogamento costuma
ser uma dádiva? – perguntou ela, querendo aprender mais, o mais depressa
possível.
– Não foi a ameaça imediata de se afogar no Mar da Emoção que fez
Vicky finalmente querer aprender a nadar?
– Sim.
– Desafios trazem com eles o dom de aprender sobre a verdade.
– Já estou farta de desafios. Esta trilha não é afinal o que parece ser.
Pude ver algumas coisas que não estavam lá. E não pude ver algumas que
estavam. Isso me deixou toda confusa.
– Eu pensei que a essa altura você já estivesse acostumada com coisas
que não são o que parecem.
– O que quer dizer?
– Raramente se vê as coisas tal como elas são na Terra da Ilusão.
– Terra da Ilusão! Como vim parar nela?
– Você não parou em qualquer lugar. Quanto a como chegou aqui: isso
é onde você esteve a maior parte de sua vida.
– Estive vagueando nesta névoa durante anos e nem sequer sabia?
– Sim. Todo mundo vagueia pela névoa na Terra da Ilusão. Mas não
importa muito que exista névoa ou não, pois aqui a pessoa é incapaz de ver
um palmo adiante do nariz mesmo em tempo bom.
– Não admira que eu tivesse tenta dificuldade em imaginar o que de fato
acontecia a maior parte do tempo. Como chego à Terra da Ilusão, de qualquer
modo?
– Utilizando o mapa de alguém... de uma forma ou de outra.
– Mas este mapa guiou gerações de meus ancestrais reais – disse a
princesa, extraindo o Mapa da Família Real de sua mochila. – Certamente
pode me orientar também.
– A viagem é diferente para cada um. A trilha certa para um pode não
ser a trilha certa para outro. Só o coração de alguém sabe o caminho. Você
ouviu seu coração quando foi chamada até a arvorezinha na colina além dos
jardins do palácio. E me encontrou. Você ouviu seu coração quando o arco-
íris a chamou, e ele a conduziu na direção da praia. Mas quando deparou com
a trilha bifurcada, você não ouviu seu coração. Em vez disso, confiou na idéia
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de outro quanto ao caminho que deveria seguir. É justamente assim que
alguém se perde.
– Se você está aqui, não posso me considerar como perdida – disse a
princesa, experimentalmente.
– Pelo contrário, princesa. Você está para lá de perdida, não importa
quem esteja aqui.
No mesmo instante a princesa reconheceu a verdade das palavras de
Doc ao relembrar todas as vezes em que estivera pedida mesmo quando o rei,
a rainha ou o príncipe tinham estado próximos.
– Então, o que é que faço agora? – perguntou ela. – Volto até a ponto
em que a trilha se bifurca?
– Não é necessário, princesa. Muitas trilhas conduzem à mesma
montanha. – A seguir, num piscar de olhos, Doc abriu as asas e desapareceu
na névoa de onde surgira.
Sentindo-se nervosa por não poder confiar no seu mapa, a princesa
continuou ao longo da trilha sinuosa que serpenteava através da Terra da
Ilusão. A névoa se tornou tão densa que ela quase deixou passar um poste de
sinalização. Chegou bem perto para ler o que dizia, esperando que não fosse
outra miragem. Ali, em grandes letras pretas, perto o croqui de um dedo
apontando direto à frente, estavam as palavras:
92
Capítulo Treze
93
A princesa não queria terminar no acampamento. Então se lembrou de
Doc ter dito que ninguém terminava em qualquer lugar – mas era muito
educada para não mencionar isso.
– Estive viajando por longo tempo, e agora não tenho muita certeza de
se estou onde deveria estar.
– Um companheiro meu... bem, uma espécie de companheiro, me disse
uma vez: ―Alguém geralmente está onde se espera que esteja.‖ Foi isso que
ele disse. – Willie fechou seu canivete, enfiando-o junto com o pedaço de pau
no bolso de sua camisa. – Os alojamentos são bastante bons. Vou lhe mostrar.
– Ele se levantou. – Primeiro, deixe-me atiçar um pouco o fogo desta lareira.
– Obrigada, mas não planejo ficar. Tenho de continuar em frente, em
busca da verdade. E existe um templo...
– Ah, sim. Outros aparecem aqui na mesma busca, mas a maioria decide
permanecer aqui... pelo menos por um tempo. Muitos acabam se fixando para
sempre.
– Por que o fariam?
– A Terra da Ilusão é um lugar muito sedutor, se não se importa que eu
diga, senhorita. Aqui, os companheiros só vêem o que eles escolhem ver.
– A caminho daqui entrei por uma trilha que parecia plana, mas que
realmente era em declive. E vi um córrego que na realidade não estava lá.
Acha que eu só vi o que queria ver?
– Acho. Acontece o tempo todo.
– Imagino que a névoa torna difícil ver o que realmente está
acontecendo – disse ela, especulando se ela própria distinguia. Depois se
lembrou de Doc dizendo que as pessoas não podiam ver claramente aqui, com
ou sem névoa.
– A névoa não faz grande diferença – disse Willie. – O que é importante
não se vê com os olhos. De qualquer modo, a névoa por aqui não está toda no
céu... isto é certo.
– O que quer dizer?
– Apenas que os companheiros aqui são um pouco nevoentos da cabeça.
Você sabe, brigando a toda hora acerca do que é e do que não é. É claro que
eles estão perdendo o seu tempo, porque na Terra da Ilusão ninguém jamais
sabe ao certo o que é.
– Isso tudo parece muito confuso.
– É. Os companheiros são confusos demais por aqui, certo. E não são
apenas os companheiros que se mostram confusos. Temos coelhinhos com
medo de pular e pássaros com medo de cantar.
– Por quê? – perguntou a princesa, achando difícil acreditar.
– Porque acham que não podem fazê-lo bem o suficiente.
– O que os faz pensar assim?
– Comparando-se com outros da mesma espécie. Há sempre outra
criatura que pode pular mais alto ou cantar mais docemente. Entende o que
quero dizer?
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– Mas isso é ridículo! Que possível diferença pode fazer se um coelho
não pode pular tão alto quanto outro ou se o canto de um pássaro soa diferente
do de outros?
- Ou se não posso puxar a corda de um arco tão longe quanto outra
pessoa?, pensou a princesa imaginando como isso pipocou na sua mente.
Depois ela começou a lembrar todas as outras vezes na sua vida em que tivera
medo de fazer as coisas por achar que não podia fazê-las bem o suficiente.
– Não faz qualquer diferença – replicou Willie. – Alguns companheiros
tentaram dizer isso a eles, mas não acreditaram. Aí os coelhinhos e pássaros
ficam furiosos com suas mães por tê-los tido e com o mundo por não fazê-los
melhor.
– Pobres criaturas – disse a princesa, entendendo perfeitamente bem
como deviam se sentir.
– Isso não é nem a metade, senhorita. Temos tartarugas que acham seus
cascos grandes e pesados demais e que as impedem de fazer um bocado de
coisas.
– Mas espera-se que tartarugas tenham cascos.
– Tente dizer isso a elas. Elas nem querem saber. Puxam-se para dentro
do casco de mau humor, esperando que ninguém possa ver quem está lá.
A princesa se entristeceu pelas pequenas criaturas. Especulou por que
não podiam entender o quanto era desnecessário todo aquele sofrimento.
Depois especulou por que, na maior parte da sua vida, tampouco fora capaz de
entender o quanto era desnecessário todo o seu sofrimento.
– Há mais, também – disse Willie. – Existem montes de lagartas que
rastejam por aí tentando esconder seus rostos, porque se acham feias demais.
Não fazem idéia de que já são lindas borboletas por dentro. Então, quando
finalmente se tornam borboletas, algumas continuam vendo nada mais que
seus antigos e feios seres, lagartas fitando-as de volta quando se miram numa
distante piscina natural. Outras se esquecem de que um dia já foram lagartas,
afinal. Ficam convencidas, se sabe o que quero dizer. Nada de falar com elas.
A princesa pensou nas borboletas que ainda se sentiam lagartas. Ela
recordou que se sentira como uma borboleta quando era muito pequena –
linda e livre –, mas como, à medida que crescia, vezes sem conta tinha visto a
si mesma como uma lagarta ao se mirar no espelho.
A voz de Willie a trouxe de volta ao presente. Ele estava dizendo
alguma coisa a respeito de uma macieira que se sentia embaraçada demais
para dar maçãs.
– Por que isso? – perguntou ela.
– Porque as árvores em volta davam peras. A macieira acha que está
dando a fruta errada.
De súbito, a princesa pôde ver o dedo do rei se agitando vigorosamente
diante do seu nariz, e pôde ouvi-lo urrando para ela: Você é delicada demais,
Victoria! Sensível demais. Tem medo demais da própria sombra. Que
sonhadora! O que há com você? Por que não pode ser igual às outras
crianças do corte?
95
Mas aquele tinha sido simplesmente o modo como ela era. Poderia
possivelmente ter desejado ser daquele jeito o tempo todo? Victoria sentiu-se
triste quando recordou a primeira vez em que a doce e pequena Vicky
murmurou baixinho: Eu sou o que sou. E o que sou não é bom o bastante.
Como poderia ter gritado com ela e a feito chorar e trancado a coitada num
armário quando tudo que a pobre criança tinha feito foi ser ela mesma?
Victoria sentiu um nó na garganta e o peito apertado. Oh, Vicky,
lamento muito, disse em silêncio. Eu não sabia. Eu não percebi... O que fiz
com você?
Naquele momento a princesa ouviu um som alto vindo do lado de fora
da porta aberta do escritório. Curiosa, ela foi ver o que era. Uma silhueta foi
aos poucos se formando na névoa. Ela mal pôde crer nos seus olhos – o que
não era nenhuma novidade. Um homem estava pulando de quatro.
– O que ele está fazendo? – perguntou a princesa, dando um passo fora
da porta para ver melhor.
– Oh, é apenas o príncipe. Ele pensa que é um sapo – disse Willie
casualmente, indo até o alpendre. – Se você acha estranho, deveria ver o sapo
que circula por aí usando um manto real e coroa. Pensa que é um príncipe. Eu
lhe disse que o pessoal é confuso por aqui. Até as flores andam perturbadas.
– As flores? Como as flores podem estar perturbadas?
– Fácil. Elas se sentem culpadas.
– Do que se sentiriam culpadas? – perguntou a princesa com ceticismo.
– De se embeber da luz do sol, de ocupar espaço e de sugar da terra
todos os nutrientes de que precisam.
– E por que se sentiriam culpadas disso?
– Porque acham que não merecem.
– Elas não sabem o quanto são lindas e fragrantes? Quanto prazer elas
fornecem? Jamais esquecerei das horas maravilhosas que passei nos jardins de
rosas.
– As flores não sabem do seu valor.
Não são as únicas, pensou a princesa. Ela olhou em volta para os grupos
de pessoas e para a atividade.
– Gostaria de fica e descobrir o que está acontecendo, mas preciso
retomar minha busca da verdade.
– Há um bocado de verdade bem aqui.
– Aqui? Ninguém aqui sabe sequer o que é isso!
– Aí é que está, senhorita. Há um bocado de verdade a ser descoberta no
que não é. Venha, vou levá-la para dar um passeio.
A princesa não estava certa de se deveria ficar. Então se lembrou do que
Willie lhe dissera acerca do que o amigo dele tinha dito: Alguém geralmente
está onde se espera que esteja. Talvez seja verdade, pensou ela, voltando
para dentro e pegando sua mochila.
– Não vai encontrar muitos acampados e felizes por aqui... embora
alguns às vezes pensem que são – disse ele, conduzindo-a escadas abaixo.
96
Logo depararam com um macaco sob uma árvore que pendia
molemente acima da beira de uma ampla piscina natural.
– Deixe-me ajudá-lo gentilmente, ou irá se afogar – dizia o macaco,
tirando um peixe da água com as mãos em concha e colocando-o
cuidadosamente em cima da árvore.
– O que ele está fazendo? Vai matar aquele peixe! – exclamou a
princesa.
– Acha que o está ajudando – respondeu Willie.
– Não podemos fazer alguma coisa?
– Não é preciso. Os peixes daqui aprenderam o que fazer quando os
macacos tentam salvá-los.
– Quer dizer que isso acontece sempre?
– Sim. E até pior. Se você acha ruim macacos salvando peixes, deveria
ver o que acontece quando companheiros se metem a salva outros
companheiros.
– Conheço isso muito bem – disse a princesa, lembrando de como
tentara ajudar o príncipe de maneiras que ele alegrava não querer ser ajudado.
A princesa e Willie observaram enquanto o peixe coleava para se livrar
do galho onde o macaco o havia depositado. Caiu graciosamente na água
abaixo e nadou para longe.
– Entendo agora o que você quis dizer acerca de os peixes saberem o
que fazer – disse a princesa com um risinho.
Enquanto permaneciam nas cercanias da piscina natural, os dois
depararam com um homem de chapéu branco de pescaria sentado imóvel num
tronco.
– O que há de errado com ele? – perguntou a princesa.
– Não se sabe ao certo. Começou naquele dia quando sua mente não
conseguia decidir qual vara de pescar ele usaria. Foi perguntado a todos que
passavam, mas uns diziam para usar tal vara, outros diziam para usar a outra.
Sua mente não conseguia decidir se usava um engodo ou isca fresca, ou de
que lado da piscina sentar. Ele perguntou aos companheiros o que eles
achavam, mas, com toda certeza, alguns disseram sente-se aqui, outros
disseram sente-se ali, e outros disseram que não sabiam, ou que não se
importavam, ou as duas coisas. Ele começou a parecer realmente nervoso,
andando sem parar de lá para cá.
―Então ele perguntou aos companheiros se realmente havia peixes
naquelas águas. É a Terra da Ilusão, nada se sabe ao certo. Alguns disseram
que havia peixe. Outros afirmaram que não. Ele finalmente parou de
perguntar. A próxima coisa que soubemos é que ele se sentou naquele tronco e
desde então ninguém mais o viu se mexer. Imagino que a única coisa que ele
pôde decidir por si mesmo foi decidir não se mover.‖
– Alguém algum dia perguntou-lhe por que achava que qualquer um
sabia mais do que ele? – quis saber a princesa, instigada por um fio de
lembrança.
97
– Bem, nós perguntamos a ele por que tinha tanta dificuldade em
decidir. Ele disse que ficava apavorado em fazer a escolha errada.
– E se fizesse? – disse ela, sentindo pena do homem. – O mundo is
parar se ele escolhesse o caniço preto em vez do marrom? Ou se decidisse
usar um engodo em lugar de isca fresca e descobrisse mais tarde que não
funciona?
Lembranças de ter mandado a criada levar a cavalo um bilhete para a
rainha, perguntando o que fazer a respeito disso ou daquilo, cruzaram a mente
da princesa. A seguir, páginas de prós e contras relampejaram diante de seus
olhos. Um velho e familiar desconforto se arrastava dentro dela. Percebeu que,
durante boa parte da sua vida, ela também buscara respostas com os outros e
se sentira nervosa ao ter de tomar uma decisão, receando cometer um erro.
– Ele mais parece uma estátua do que um homem – disse a princesa.
– Oh, ele está vivo e respirando. Se chegar perto, você pode ver seu
hálito saindo como um bafo de vapor no ar frio.
– Ele pode estar respirando, mas certamente não está vivendo! Ele deve
ser muito infeliz – disse a princesa, seu pesar aumentando... pesar não apenas
pelo homem lastimável diante dela, mas por ela própria. Enquanto a princesa
olhava para o homem-estátua sentado no tronco, lembranças vívidas
borbulhavam dentro dela por causa da confusão, da infelicidade e da
desesperança que a haviam esmagado em todos aqueles dias em que se
recolhera ao leito, recusando-se a se mover.
– Há uma infinidade de companheiros infelizes aqui que não estão
muito mais vivos do que ele. Não sei quem são nem o que fazem aqui. Eles
conseguem seu objetivo de qualquer jeito dia após dia, preocupando-se por
uma coisa ou outra, fazendo uma loucura após outra e tentando extrair sentido
disso tudo. Mas nunca conseguirão, porque um monte de coisas não faz
sentido na Terra da Ilusão. Justamente por isso ela tem esse nome.
Naquele momento, uma pequena criatura de luvas brancas, trajando
smoking preto de calças curtas e uma faixa de cintura com um grande molho
de chaves pendurado nela, aproximou-se da princesa. Fez uma mesura formal
entregou-lhe um envelope branco como se fosse a mais delicada das gemas.
Na frente, em letras pretas clássicas, estavam as palavras ―Convite Especial‖.
– O que é isso? – perguntou ela, olhando. Mas o baixinho já se fora. A
princesa abriu o envelope e leu o convite.
– Não é o que parece – disse Willie.
– Que sendo de oportunidade perfeito! – exclamou a princesa, sem dar
atenção ao comentário de Willie. – Estamos convidados para um banquete, e
estou faminta!
– Parece que você não pensou muito em alimentar-se ultimamente, mas
espero que não o tenha feito por muito tempo, hã?
– Como poderia? Primeiro, estive ocupada demais tentando não me
afogar, e depois...
– Quando alguém está se afogando é que precisa de mais força do que
nunca – declamou Willie como se estivesse citando de um grande livro.
98
– Suponho que o seu companheiro um dia lhe disse isso, não?
– Foi. Como é que sabe?
A princesa sorriu.
Willie a conduziu, avisando de novo que o banquete não seria aquilo
que ela estava esperando. Mas à medida que se aproximavam do local do
banquete, a princesa foi ficando eufórica. Havia mesas compridas cobertas
com toalhas, rodeadas por dezenas de entusiasmados comensais. O burburinho
de vozes festivas pairava sobre o cenário, enquanto um grupo de pequenos
garçons de luvas brancas e trajando smokings serviam de bandejas de prata
equilibradas precariamente em suas mãozinhas e antebraços.
– O que são essas criaturinhas? – sussurrou Victoria ao alcançarem a
mesa mais próxima.
– Duendes perversos. Mas eles acham que são fadas boas.
Ela olhou ansiosa para os pratos de fina porcelana e copos de haste com
bordas douradas, imaginando o que estava sendo servido. Deu uma olhada
mais atenta no prato de um dos convidados. Depois passou para outro e mais o
seguinte.
– Ora, não há comida naqueles pratos! – disse ela atônita, enquanto
observava convidados finos como lápis levando os garfos repetidamente à
boca, mastigando educadamente e conversando alegres enquanto comiam. – E
essas pessoas são tão magras!
– É, estão morrendo de fome, mas não sabem disso. E nem querem
ouvir.
– Não entendo. Por que eles ficam e toleram essa encenação?
– Olhe aqui embaixo – disse Willie, erguendo a beira da toalha para
expor uma fileira de tornozelos acorrentados por toda a extensão da mesa.
Era inacreditável.
– Estão acorrentados aqui? Por que parecem tão felizes?
– Eles não vêem as correntes ou as chaves que poderiam libertá-los. E
estão sentado alimentados com comida saborosa em troca de seu excelente
trabalho para a comunidade dos duendes. Eles não parecem fazer o bastante
por aquelas criaturinhas.
Os garçons continuavam a deslizar de um lado para o outro, servindo
com estilo de bandejas vazias, suas chaves balançando.
– Mas como pode ser isso? – perguntou a princesa, consternada.
– Uma vez já fiz esta mesma pergunta ao meu companheiro. Ainda
lembro de sua resposta: ―Quando alguém tem uma fome persistente, mas
desconhece a verdadeira fonte de seu vazio, torna-se escravo da ilusão.‖
A princesa continuou observando a inacreditável cena enquanto
pensava nas palavras de Willie. Ela se tornara escrava das suas ilusões?,
especulou. Teria o seu próprio vazio levado Victoria a crer que o príncipe era
uma fada boa, quando na verdade era um duende perverso?
– Muitos dos companheiros aqui tentam preencher o seu vazio – disse
Willie, conduzindo-a na direção de um grupo de acampados não muito longe
dali.
99
Homens e mulheres, jovens e velhos, estavam sentados em volta de um
círculo, sobre um leito de pedras pontiagudas. Alguns estavam comendo
bagas, enquanto outros traziam as mãos cheias delas de uma ampla terrina
dourada, que parecia um ídolo colocado sobre um pedestal no meio do círculo.
– Por que estão sentadas num local pedregoso quando há grama macia
por toda parte? – perguntou a princesa, apontando para uma área que parecia
consideravelmente mais confortável.
– Eles acham que é tudo pedregoso. Esta é uma das razões por que
correm bagas.
– Elas parecem deliciosas. Acha que eles iriam se importar se eu
pegasse um pouco?
– É melhor ficar longe daquelas bagas. Elas deixam os companheiros
mais adormecidos do que aquelas pedras onde estão sentados.
– O que quer dizer?
– Eles nada mais fazem exceto se empantufar de bagas e ficar sentados,
com o olhar fixo no espaço. Como aqueles dois ali – disse ele, acenando com
a cabeça na direção de dois jovens sentados de pernas cruzadas sobre uma
pilha de pedras. – Percebe o ar distante nos olhos deles? Eles pensam que
estão numa bela praia em Honolulu e não aqui, perdidos. Eu sei, já perguntei a
um deles.
―E olhe aqueles ali... aqueles com o rosto todo triturado. Preocupando-
se angustiados acerca de lhes faltar aquelas bagas suculentas. Não podem
pensar em outra coisa senão como vão conseguir mais. Muito em breve
estarão pulando e correndo por todo lugar, procurando aqui e ali. Devem estar
procurando por muito mais do que bagas.‖
– O que acha que estão realmente procurando? – perguntou a princesa,
sentindo que, de certa maneira, já sabia.
– Um meio de pararem de se ferir, em primeiro lugar, acho. Deve ser
terrivelmente doloroso ter os traseiros e pés cortados diariamente naquelas
pedras.
Uma onda de tristeza se abateu sobre Victoria.
– Ferir-se a cada dia pode levar a pessoa a fazer coisas estranhas, certo.
E assim podem sentir-se vazias.
No momento em que disse isso, tornou-se consciente do seu enorme
vazio interior que a levara a beber frascos de tranqüilizante e a comprar sem
parar no Empório do Velho Reino. Ela olhou para as pessoas a sua volta e
lamentou, sabendo que comer bagas não iria preencher o vazio deles mais do
que o tranqüilizante e a febre consumista preenchera o seu.
Willie sacudiu a cabeça enquanto ele e a princesa se afastavam.
– Isso é péssimo. Eles estão desperdiçando suas vidas. É uma vergonha
que dá vontade de chorar.
– Sim, uma vergonha que dá vontade de chorar – repetiu ela, sentindo
que já tivera o suficiente das duas coisas, vergonha e choro. E, por falar nisso,
ela já tivera também o suficiente da fome que, sabia, era conseqüência de não
ter comido nada já fazia um bom tempo.
100
– Existe alguma coisa por aqui que possa matar minha fome? –
perguntou a princesa.
– Não há muita coisa na Terra da Ilusão para satisfazer a fome de quem
quer que seja, mas isto aqui talvez possa minorá-la – disse Willie,
conduzindo-a até uma árvore cítrica com umas poucas laranjas carnudas
pendendo de seus galhos. Ele estendeu o braço, pegou uma fruta e entregou-a
à princesa.
Ela sentou-se debaixo da árvore e apoiou-se no tronco, pousando a
mochila a seu lado. Enfiou as pontas dos dedos na casca e puxou um pedaço.
O aroma pungente lhe deu água na boca.
– Todo mundo aqui é infeliz? – perguntou, ansiosamente para morder o
primeiro gomo suculento.
– Alguns companheiros lhe dirão que são plenamente felizes. Pelo
menos, às vezes. Há um bando inteiro deles que pensa que tudo aqui é lindo e
maravilhoso. Você sempre pode distingui-los pelos óculos de lentes cor-de-
rosa que usam.
Willie procurou no bolso e tirou seu canivete e o pedaço de madeira.
Executou um talho curto, depois outro, enquanto a princesa comia avidamente
a laranja.
– Coisa engraçada, aqueles óculos – disse ele, olhando de relance para
Victoria. – Os companheiros que os usam circulam por aí dizendo como tudo
é fantástico, mas estão carrancudos a maior parte do tempo. Pergunte a eles
por que, e dizem que você é louca. Eles não estão carrancudos. Como
poderiam estar, quando tudo é tão belo e maravilhoso?
– É por isso que permanecem aqui? Porque pensam que são felizes?
– Eles ficam aqui por um monte de motivos. A maioria se fixa porque
se acostumou a isso. De uma estranha maneira, sentem-se à vontade em meio
à loucura, sem saber o que é real e o que não é. Capazes de ver apenas o que
querem ver. Mesmo à custa de infelicidade e ferimento. De qualquer modo,
eles não sabem o que esperar em outro lugar. Receiam que seja tão ruim ou
pior do que aqui. Então pensam: por que ir para toda aquela confusão e correr
risco?
A princesa entendia bem demais como era fácil permanecer num lugar
onde se estava acostumado, mesmo quando se era infeliz. Mesmo quando isso
magoava. Enquanto ouvia Willie, percebeu quanta coragem tivera de reunir
para largar tudo que lhe era familiar e lançar-se em uma jornada ao
desconhecido. De repente, um surto eletrizante de energia percorreu seu
corpo.
– Por certo, algumas pessoas devem ter partido daqui, não? – perguntou
ela, sabendo que já era tempo de ela partir também.
– Oh, sim. Correm boatos rápidos e furiosos acerca da terra além, e
alguns companheiros anseiam ir para lá. Mas a neblina impede que muitos
deles achem a trilha certa. Acabam tomando uma que conduz ainda mais
profundamente à Terra da Ilusão. E eles acabam em pior situação do que
estavam aqui.
101
– Sei como escolher a trilha certa – disse a princesa com convicção.
– Mesmo assim, é uma viagem bastante dura. Diversos companheiros
retornam quando vêem o quanto é perigosa a trilha que parte daqui. Eles
dizem que a Terra da Ilusão gruda nas pessoas e não as deixa partir.
– Já deixei um lugar que se agarrara em mim e não me deixava partir,
mas finalmente consegui me soltar. Enfrentei uma inundação repentina e
tempestades no mar que quase me afogaram. Enfrentei cobertores de seixos
rolantes que ameaçavam me derrubar e penedos que me bloqueavam o
caminho quando eu tentava passar. Eu me senti vazia, solitária, assustada e
perdida. Sobrevivi a tudo isso e ainda mais – disse a princesa, surpresa pela
mensagem de força que suas próprias palavras transmitiam.
– Mesmo se você conseguisse, poderia voltar correndo. Muitos
companheiros voltam. Eles contam as histórias mais apavorantes que já se
ouviu a respeito do que encontraram lá.
– Como o que?
– Como o que é.
– O que quer dizer?
– Eles encontraram o que realmente é. Não que eles queiram coisas para
ser, ou o que eles acham que são, ou o que pensam que poderiam ser... mas o
que, verdadeira e realmente, é. É por isso que chamam o lugar de Terra do É.
– Por que fugiriam de lá? O que verdadeiro e realmente é, é a verdade.
A verdade que pode curá-los.
– Os companheiros dizem que a cura é pior do que a doença. Você
deveria ver aqueles que fogem de volta, balbuciando e gaguejando sobre como
eles nunca deveriam ter ido. Leva um longo tempo até se recuperarem.
Mesmo assim, nunca voltam a ser os mesmos.
– Não quero ser a mesma – disse ela, pensando em todas as coisas que
ainda precisava saber sobre a verdade. Por exemplo: se o príncipe tinha sido
ou não tomado por um feitiço maligno. E, em caso positivo, quem o havia
lançado sobre ele e por quê. Quem havia feito o que a quem, enquanto ela
tentava ajudá-lo. Por que o rei e a rainha tinham insistido para que ela fosse
quem eles queriam, em vez de ter sua própria personalidade. E por que ela
acreditara, na maior parte de sua vida, que aquilo que era não era quem
deveria ser.
Quanto mais pensava sobre tudo que ainda precisava descobrir, mais
ansiosa ficava para encontrar a Terra do É. Agarrou a alça de sua mochila e a
pôs no ombro.
– Preciso saber o que é, o que era e o que será. E não posso descansar
até saber.
– Bem, se você está decidida a partir...
– Estou – replicou ela, dando em Willie um abraço rápido.
Ele mudou seu peso de um pé para o outro e baixou os olhos
timidamente.
– Achei que você seria um dos companheiros que cairiam fora daqui –
disse. – Você adquiriu muita coragem. Espero que consiga.
102
– Obrigada por tudo, Willie.
Ela inspirou fundo uma vez, depois outra, e ouviu seu coração enquanto
ele a levava para fora do acampamento.
103
Capítulo Quatorze
A Terra do É
104
TERRA DO É
DIRETO À FRENTE
105
Victoria subiu cada vez mais alto, a encosta da montanha ia ficando
rochosa e a folhagem escassa. Ela podia enxergar mais longe à medida que a
névoa se dissipava. Esperava que a trilha se tornasse mais fácil, mas ela ficou
mais íngreme e o solo estava tão úmido que ela escorregou para trás. A cada
vez que isso acontecia, mais frustrada ficava. Parecia que, a cada dois passos
que dava à frente, escorregava um para trás. Várias vezes pensou em voltar,
mas sua visão do Templo da Verdade e tudo que Doc havia prometido que
encontraria por lá a impeliam a prosseguir.
Finalmente, ficou tão cansada de subir e escorregar que perdeu o passo
e caiu, com mochila e tudo, num enorme e áspero arbusto que se empoleirava
precariamente à beira de um penhasco.
– Uau! Foi por pouco! – disse Vicky, examinando por trás do arbusto o
profundo abismo abaixo.
– Sim, foi – concordou Victoria. – Por um momento pensei que íamos
escorregar de volta ao ponto de partida.
– Está tudo bem – disse uma voz. – Embora escorregões sejam comuns
na trilha, ninguém nunca desliza todo o caminho e volta ao ponto em que
estava antes.
– Doc! – gritou Victoria, libertando-se da folhagem espinhosa e rolando
para o chão. – Tenho muito a lhe contar! O acampamento era incrível e você
estava certo: Meu coração conhece o caminho. E aprendi a impedir que o
medo e a dúvida... Oh, Doc, mal sei por onde começar!
– Por que não veio cantando, tocando banjo e usando seu chapéu de
palha? – Vicky deixou escapar, soando desapontada. – Você sempre canta e
toca antes de aparecer.
– A vida é curta demais para sempre se fazer alguma coisa – disse Doc
–, mas já que insiste... – Ele sacou seu banjo da valise preta e pôs o chapéu de
palha na cabeça.
BEM-VINDO À TERRA DO É
– Bem, aqui vamos de novo – disse para si mesma, pensando que talvez
o sol que a saudava fosse um bom sinal em si, depois percebendo que idéia
inteligente era aquela.
A princesa olhou para o outro lado da montanha. A Terra do É parecia
bastante agradável. O ar era limpo e a encosta suave coberta de musgo,
convidativa. A princesa não entendia por que as pessoas mencionadas por
Willie haviam pedido a coragem e corrido de volta para o acampamento. Ela
sabia que ela não voltaria, não importa o que encontrasse ali. Depois pensou
107
sobre as pessoas que não tinham chegado à Terra do É. Ela nunca se
considerara uma pessoa forte e determinada, mesmo assim, chegar tão longe
quanto havia chegado exigira enorme força e determinação. Era estranho
pensar em si mesma nesta nova personalidade, mas sentia-se bem.
Enquanto seguiam em frente, Vicky continuou quando iriam conhecer o
mágico, e Victoria continuou respondendo que não sabia.
A princesa chegou a uma enorme pedra lisa e plana, e agradecidamente
se sentou. Ela abriu sua mochila e remexeu no seu interior. Extraiu seu livro
de receitas e segurou-o com amor nas mãos. Olhou para o seu nome em
grandes letras debaixo do título, depois folheou as páginas, recordando
quantas vezes duvidara ser realmente capaz de escrever um livro e publicá-lo.
Lembrou-se de todo o planejamento, avaliação, testes de receitas, de tudo que
fora exigido para terminar o livro.
Ela pegou de novo a mochila e tirou os sapatinhos de cristal com suas
iniciais gravadas, que o produtor de Cinderela lhe dera de presente. Recordou
que não acreditara que fosse boa o bastante para ganhar o papel e que, depois
de obtê-lo, que não seria boa o bastante para representá-lo bem. Sentiu
orgulho das coisas que tinha feito. Ocorreu-lhe que tinha o direito de se sentir
orgulhosa. Conquistara esse direito. O pensamento era estranho para ela. Será,
imaginou, que a Terra do É a estava afetando de alguma maneira?
Após repor o livro e os sapatinhos na mochila, a princesa recomeçou
sua jornada, entristecida por intensas lembranças do príncipe, de como nos
seus primeiros dias juntos ele a havia estimulado e acreditado nela mesmo
quando ela não tinha acreditado em si mesma. Suspirou. Se ao menos ele
tivesse continuado como era naquela época – tudo teria sido bem diferente.
Mais do que nunca, precisava descobrir a verdade sobre por que ele havia
mudado.
Ainda não parecia possível ele ter-se transformado naquele monstro.
Quando pensava nele – em tudo que lhe fizera, no som dele, no cheio dele, no
sorriso que produzia covinhas nas bochechas, no modo como seus olhos
cintilavam só para ela, na maneira especial como apertava sua mao
gentilmente para dizer em mudo ―eu te amo‖ –, a dor ainda a marcava como
um ferro em brasa. Mas sempre que pensava nele , voltavam também a azia e
o aperto no peito, relembrando-a de todas as coisas cruéis que ele dissera e
fizera desde aquele dia mágico em que a abordara pela primeira vez na
biblioteca da universidade.
– O mágico deverá saber o que aconteceu com ele – sugeriu Vicky.
Naquele momento, um sopro de fumaça branca encapelada sobressaltou
a princesa. Ela tropeçou e escorregou encosta abaixo, vindo parar, aprumada,
debaixo de um poste de sinalização. Ela olhou para cima e leu:
DÊ UMA ESCORREGADA
NA ALAMEDA DA LEMBRANÇA
108
– Essa foi muito engraçada – disse Vicky, tendo apreciado bastante o
escorregão pela suave encosta. – Uma escorregada na Alameda da
Lembrança.
Mas Victoria não estava nada de bom humor por ter fumaça soprada no
rosto e escorregado encosta abaixo.
– Bela escorregada – resmungou.
– Aposto que é o mágico! – exclamou Vicky. – Eles não costumam
aparecer numa nuvem de fumaça?
Mas só quem estava ali era uma pequena mulher avoenga usando uma
blusa amarela e sapatos de Mamãe Hubbard que aparentemente tinha tingido
de amarelo para combinar.
– Oh, coitada! – disse numa voz vívida. – Tudo bem com você?
– Sim, acho que sim – disse a princesa, imaginando de onde a mulher
tinha vindo. – Estou apenas desapontada.
– Por que, meu bem?
– Porque pensei... bem, um sopro de fumaça me fez escorregar pela
encosta e cair bem aqui, e achei que o Mágico de É ia aparecer. Acho que
estava enganada.
– Sem dúvida, às vezes a gente está – replicou a velha. – Mas não desta
vez.
– O que quer dizer?
– Quero dizer que você está certa. A fumaça era para anunciar a
chegada do Mágico de É.
– Então, onde está ele? – perguntou a princesa, olhando em volta.
– Ele sou eu – respondeu a velha, soando quase divertida.
– O quê? Você não pode ser o Mágico de É! Nem sequer tem barba!
– Muita gente diz a mesma coisa. É por isso que trago uma comigo –
replicou ela, sacando uma coisa peluda e grisalha de sua bolsa superestofada e
balançando-a diante da princesa.
A princesa olhou descrente para ela. Se aquela mulher era mágica,
constituía uma deplorável exemplo da classe. Nem conseguia aparecer
adequadamente numa nuvem de fumaça.
– E quanto à fumaça? – perguntou a princesa.
– As pessoas esperam por ela.
– Não creio que esperem ter um sopro direto na cara delas.
– Na verdade, eu estava treinando um de meus aprendizes para executar
a técnica. Parece que ele precisa praticar mais. Lamento muito. Pode achar um
lugar em seu coração para nos perdoar?
– Acho que sim - disse a princesa, um tanto relutante.
– Fico contente por dizer isso – replicou a mulher. – Será uma boa
prática para você, meu bem. Agora que esclarecemos todas as dúvidas, deixe-
me recepcioná-la formalmente na Terra do É.
– Obrigada, mas...tem mesmo certeza de que você é o Mágico de É? –
perguntou a princesa, ainda não convencida.
109
– Claro que sou. Tenho todas as credenciais adequadas. Deixe-me
mostrar a você. – Ela puxou um punhado de papéis de sua bolsa protuberante
e entregou à princesa um cartão de aspecto oficial. – Este é o meu cartão de
identidade com meu retrato.
A princesa examinou o cartão minuciosamente. Não pôde acreditar no
que viu. Bem debaixo do retrato da mulher estavam as palavras: ―Título
oficial: Mágico de É‖ E ―Endereço: Terra do É‖.
– E aqui está a prova de meu certificado como atual sócia ativa da
Associação Nacional dos Mágicos. De fato, no ano passado atuei como
presidente. Gostaria de ver o resto? – perguntou ela, segurando os outros
documentos.
– Não – retrucou a princesa. – Lamento ter duvidado de você. Mas eu
pensava que os mágicos fossem... bem, você sabe.
– Sim, meu bem, eu sei. Está tudo bem. As pessoas novas aqui
costumam ter problemas com a realidade.
– Como assim... ―problemas com a realidade‖?
– Simplesmente que muitos têm idéias preconcebidas de como são ou
deveriam ser as coisas... ou eram ou serão, quanto a isso, mas falaremos a
respeito uma outra hora, Seja como for, essas idéias os impedem de ver como
é a realidade. Às vezes a condição é bastante séria. Tenho encontrado pessoas
que se recusam a aceitar que sou o Mágico de É, mesmo depois de
examinarem minhas credenciais e testemunharem elaboradas demonstrações
de meus poderes.
A princesa pensou por um momento.
– Percorri um longo caminho para descobrir o que é e o que foi, e não
vou deixar que coisa alguma me impeça.
– Excelente. Então você encontrará a verdade que busca.
Finalmente, aceitando que estava em companhia de um mágico
autêntico, a princesa fez as perguntas que a vinham atormentando.
– Por que sempre fui tão delicada? Tão sensível, com medo de minha
própria sombra? Tão sonhadora? E quem lançou o feitiço maligno sobre meu
Príncipe Encantado? – E continuou sem parar, a toda velocidade.
O Mágico de É ouviu atentamente até o furioso fluxo de perguntas
diminuir o suficiente parar dar-lhe a oportunidade de falar.
– Ninguém jamais conhece a verdade de outra pessoa – disse ela. –
Cada um tem de descobri-la por si mesmo. Creio que o Dr. Hoot já lhe
explicou isso previamente, não?
– Também o conhece? – disse a princesa. – Ele certamente circula por
aí. – Ela suspirou em frustração. – Eu pensava com toda certeza que, tão logo
encontrasse você, eu descobriria a verdade a respeito do que é e do que foi.
– Descobrirá, meu bem. Mas suas idéias de como os mágicos trabalham
são tão errôneas quanto suas idéias de como eles se parecem. Os mágicos
dedicam-se a ajudar pessoas a verem a verdade por elas mesmas. Por falar
nisso, você tem uma peça teatral para assistir. Agora venha comigo.
– Uma peça teatral! Adoro teatro. Uma vez representei Cinderela.
110
– Sim, eu sei. Você representou excepcionalmente bem. E não foi a
única vez. Venha comigo. Verá o que estou querendo dizer.
A princesa se pôs de pé, agarrou sua mochila, que a acompanhara na
escorregada, e seguiu ao lado do mágico pela Alameda da Lembrança.
111
Capítulo Quinze
FANTOCHES DO PASSADO
Uma saga a relembrar
112
Estrelando PRINCESA VICTORIA
com
O rei, a rainha e o príncipe
– Acorde, meu bem – disse o mágico algum tempo mais tarde. – Está na
hora do Quarto Ato.
A princesa preparou-se para o que sabia que estava vindo – a aparição
do príncipe criança. A partir do momento em que ele apareceu em cena, ela
ficou fascinada pelo garoto pequenino que ia crescer e tornar-se o seu Príncipe
Encantado. O ânimo dela se elevava e caía com os altos e baixos da vida dele.
Ela testemunhou seus desafios e suas vitórias, sentiu sua luta e viu como ele
fazia piadas do próprio sofrimento. A princesa sentava-se rígida na poltrona
enquanto testemunhava os primórdios do feitiço maligno que mais tarde
transformou seu carinhoso Dr. Risinho no hediondo Sr. Oculto.
Quando o Quarto Ato terminou, a princesa olhou intencionalmente para
o mágico.
– É tudo tão difícil de acreditar. Sempre achei que o príncipe real fosse
o meu doce e maravilhoso Dr. Risinho e que o Sr. Oculto fosse apenas um
feitiço maligno que alguém lançara sobre ele. Eu não fazia idéia de que o
príncipe verdadeiro fossem os dois juntos.
– Assim é a natureza dos Srs. Ocultos... e a natureza dos contos de fada,
que fazem tudo mais real do que é.
A seguir, a um estalar de dedos do mágico, o Quinto Ato começou.
Abria na biblioteca da universidade, com a princesa fitando os olhos mais
azuis que já tinha visto. A excitação pulsou através dela como da primeira
vez.
Ela reviveu todo o êxtase e agonia de seus dias com o príncipe. Mas
desta vez entendeu o que estava acontecendo e por quê. Embora fosse um
alívio ter imaginado isso, seu entendimento não afastava a dor, a raiva, o pesar
ou o vazio de ficar sem ele.
Ela e o mágico falaram sobre isso até que a princesa finalmente gritou:
– Estou furiosa com o príncipe por destruir meu conto de fadas, por trair
minha confiança e meu amor.
– Claro que está, meu bem – replicou o mágico piedosamente. – E há
alguém mais com quem esteja furiosa?
115
– Sim, comigo mesma! – gritou a princesa, sacudindo os punhos no ar.
– Estou furiosa comigo mesma por permitir que ele me magoasse tão
profundamente por tanto tempo.
Enquanto ela continuava a sentir o que precisava ter sentido e dizer o
que precisava ser dito, sua fúria cresceu até mais não poder. Depois, foi se
dissipando lentamente, liberando-a do pesado fardo que carregava por tanto
tempo.
Pensou de novo nas cenas que presenciava da fase de crescimento do
príncipe.
– Ele estava furioso a respeito de um monte de coisas antes de nos
conhecermos, e descarregou tudo isso sobre mim. Eu nunca tive uma chance.
Ele usou o amor que eu tinha por ele para me magoar. E extraía prazer da
minha dor. Mas por muito tempo não consegui me obrigar a ir embora.
– As pessoas se tornam a vítima das vítimas quando a necessidade delas
de ser amadas sobrepõe-se à necessidade de ser respeitadas – replicou o
mágico. – No geral, as pessoas obtêm aquilo que irão determinar. Nem mais
nem menos.
– Talvez elas fixem aquilo a que estão acostumadas – disse a princesa,
relembrando a profundeza de seu amor pelo rei e a rainha e a profundeza da
dor que era parte disso.
– É verdade. As pessoas procuram aquilo que elas conhecem. O que é
familiar é confortável.
– Mesmo se for um conflito?
– Sim, especialmente se for um conflito. As pessoas mudam. Mas estão
ainda tentando desesperadamente acertar, pôr em prática, finalizar seus
negócios pendentes. Infelizmente, em geral, elas tentam fazer isso do mesmo
modo que não funcionou da primeira vez.
A princesa se remexeu desconfortável na poltrona.
– É isso que o príncipe estava fazendo? Ele disse que não podia evitar
transformar-se no Sr. Oculto.
– Talvez, mas prosseguir num legado de sofrimento é sempre uma
opção, e irresponsável, ainda por cima. Todo mundo é responsável por suas
ações e por resguardar sua própria dor de modo a não infligi-la aos outros. As
portas do Teatro Legado estão abertas a todos.
– Se ao menos ele tivesse estado aqui anos atrás... – disse a princesa,
sombria. – Talvez ele tivesse se saído melhor, e as coisas poderiam ter sido
diferentes.
– Talvez, mas algumas pessoas receiam demais enfrentar o que elas
devem enfrentar aqui e são avessas a fazer o devem fazer.
A princesa franziu o cenho.
– Que desperdício. Todos aqueles anos de tremores, azia e aperto no
peito, de sentimentos impotentes e confusos, de doença e cansaço...
– Quando você permite que os juízes de outrem sejam mais importantes
que os seus, você deixa o seu poder escapar.
– Manter o poder deve ser fácil para você. Seu poder é tão grande.
116
– Bem como o seu, meu bem. Mas, como todo poder, deve ser
reconhecido e exercido, do contrário fica entorpecido.
A princesa inspirou fundo, tentando relaxar a tensão no seu corpo.
– Se sou tão poderosa, por que sinto que ainda o amo, mesmo sabendo
tudo que sei?
O mágico tomou as mãos trêmulas da princesa nas suas.
– Saber é uma coisa e sentir é outra completamente diferente. Pode
levar muito tempo para que o sentimento alcance o conhecimento. Seja
paciente, meu bem. Ele virá.
A princesa meditou a respeito de tudo que o mágico disse. Havia muito
em que pensar.
Depois, outra indagação pipocou na mente da princesa, e que surgia ser
respondia:
– Eu o amei de todo o coração e alma, mas ele disse que não bastava.
Por quê?
– Nem dez princesas o amariam o suficiente para satisfazê-lo – disse o
mágico. – As pessoas que não se sentem dignas de ser amadas, como o
príncipe, costumam duvidar do amor de outras pessoas por elas. Não
acreditam que o amor pudesse chegar para gente indigna, como elas.
Lágrimas rolaram pela face da princesa. Foram caindo cada vez mais
rápido, até que ela se viu soluçando incontrolavelmente devido à angústia e
futilidade de tudo aquilo.
Em breve, a vozinha vacilante e fungada de Vicky rastejou para a
consciência de Vicky.
– Temos de ter cuidado para não inundar o teatro – disse ela. – Você
sabe o que nos aconteceu na última vez em que derramamos tantas lágrimas.
Quase nos afogamos.
– Isso foi antes que aprendêssemos a nadar – disse Victoria. – Por mais
funda que seja a água, nunca mais teremos medo de nos afogar.
– As lições bem aproveitadas trazem enorme paz – disse o mágico, com
um tapinha na cabeça abaixada da princesa.
– Gostaria de me sentir em paz a respeito de tudo o que me aconteceu.
– Você pode.
– Como? – perguntou a princesa, olhando para o rosto amável do
mágico.
– Tendo boa vontade.
– Boa vontade para quê?
– Para continuar demonstrando todos os sentimentos acerca do que lhe
aconteceu no passado até que eles percam o seu poder. Boa vontade, dessa
vez, para confortar e tranqüilizar Vicky em tudo, em vez de culpá-la. E boa
vontade para perdoar a si mesma por ter sido incapaz de fazer melhor do que
foi, na época, o seu melhor esforço.
A princesa enxugou os olhos com o lenço que o mágico lhe entregou.
– Não entendo por que tudo isso aconteceu.
117
– A vida é difícil. Algumas pessoas entram na vida de outras pessoas e
deixam marcas nos seus corações, e elas nunca mais são as mesmas. Mas isso
pode ser até melhor.
– Você não se tornou mais sábia acerca do que o amor é e do que não é?
Não aprendeu mais sobre quem você é e sabe quem não é? E não aprendeu a
reunir energia do seu interior que nem mesmo sabia possuir?
– Acho que sim – respondeu a princesa.
– Existe uma valiosa dádiva em cada relacionamento, em cada
experiência. Quanto mais cedo você puder ver a dádiva, mais cedo você pode
progredir através da dor.
– Doc uma vez me disse que desafios carregam dentro deles o dom de
aprender sobre a verdade. Porém ainda não vejo por que tenho de sofrer para
aprender.
– A dor é um professor muito melhor do que o prazer. Pense em si
mesma como uma pessoa em treinamento. Então suas experiências se tornam
lições. E de suas lições vem a sabedoria que torna a vida mais plena, mais
gratificante e mais fácil.
A princesa sacudiu a cabeça.
– Certamente é uma maneira dura de aprender.
– Sim, mas é como se aprendi melhor. E o sofrimento pode alargar seu
coração para dar mais espaço ao amor e à alegria.
A princesa suspirou.
– Amor e alegria? Não sei. Depois de tudo que aconteceu...
– A maneira como você viveu ontem determinou o seu hoje. Mas a
maneira como você viveu hoje determinará o seu amanhã – disse o mágico. –
Cada dia é uma nova oportunidade para ser a maneira como você quer ser, e
ter sua vida do jeito que você quer. Não precisa mais se prender nas suas
velhas crenças. Como viu, elas provêm de outras pessoas, de outros tempos.
O mágico pôs as mãos nos ombros da princesa. A ternura dos seus
olhos acalentou a princesa ainda mais.
– Preste bem atenção, querida. O que digo a você agora é de suma
importância. – O mágico falou lenta e determinadamente: – Os anos passaram.
Os perigos passaram. Está a salvo para ser você.
118
Capítulo Dezesseis
O Vale da Perfeição
119
Enquanto caminhavam, a princesa percorreu o vale com os olhos.
Quanto mais ela via, mais percebia que as coisas não era tão perfeitas quanto
haviam parecido do alto da colina – e quanto mais ela percebia, mais
desapontada se sentia.
– Pensei que você tinha dito que tudo neste vale era perfeito. Quero
dizer, isto aqui é lindo, mas quando você vê tudo de perto, não é tão perfeito.
As folhagens não parecem tão verdes. As árvores são comuns. O lago não é
tão límpido. Há insetos e... bem, pelo menos esses ainda parecem bons – disse
ela, esticando o braço para colher um roliço morango de um vermelho
reluzente e mostrando-o ao mágico. – Esta é a única coisa que ainda parece
perfeita.
Mas quando ela enfiou os dentes no morango de aspecto saboroso, seu
rosto fez uma careta e a boca se enrugou.
– Está azedo! Nada é perfeito aqui. Absolutamente nada.
– Você, meu bem, é muito definitiva em fazer pouco caso da grandeza
do que é.
– Não costumo fazê-lo. Mas você disse que tudo aqui era perfeito, e não
é. Estou decepcionada. Eu esperava...
– A perfeição, assim como a beleza, está nos olhos do espectador.
A princesa estava intrigada.
– Mas qualquer um pode ver que os arbustos e as árvores, o lago e os
morangos não são perfeitos. – Ela os olhos e resmungou: - Vai ver que nada é.
Nem o rei ou a rainha, ou eu e o príncipe... ou mesmo o amor ou meu conto de
fadas.
– Tudo é como se pretende que seja – disse o mágico, animando-a. –
Isso faz a perfeição. O que é falho é a sua maneira de perceber a perfeição.
– À medida que o mágico prosseguia, a princesa apenas entreouvia, pois
estava preocupada com o fato de que sua maneira de perceber a perfeição
fosse evidentemente imperfeita.
– As pedras são duras e a água é molhada, e às vezes os morangos bem
vermelhos e roliços são azedos. O que é, é. Em toda a natureza, tudo é e faz o
que está destinado a ser e a fazer.
– Tudo que me era destinado foi ser imperfeita.
– Pelo contrário. Foi perfeitamente destinada a preencher o plano do
universo para você.
A princesa sacudiu a cabeça.
– Não sei sobre um plano. Só sei que tentei me convencer de que estou
ótima do jeito que sou, mas existem muitas coisas a meu respeito que eu
gostaria de mudar.
– A parte mais profunda de você, a parte que é una com tudo, é perfeita
– explicou o mágico. – Sempre foi e sempre será. Perfeição é um dom da
natureza. Não é alguma coisa que você tem de obter. É algo que você é,
independente das coisas sobre você que acha que poderiam ser mudadas para
melhor.
120
A princesa pensou em todos aqueles anos em que tentara parecer
perfeita e fazer tudo à perfeição.
– Você quer dizer que sempre foi perfeita?
– Exatamente! Você faz parte de tudo que é. E o que é é perfeito em sua
assim chamada imperfeição.
– Mas e quanto ao meu ser delicado e sensível demais, com medo das
coisas e sonhando acerca de coisas que provavelmente não vão acontecer? E
minhas listas de prós e contras?
– Quando você aceita o milagre de quem você é e ama a si mesma
incondicionalmente, mudando as coisas que precisam ser mudadas, tudo virá
mais fácil. Mas algumas das próprias coisas sobre você que sempre acreditou
que precisavam ser mudadas, coisas que acreditava serem falhas suas, seus
inimigos, foram na verdade seus servos leais – disse o mágico. – É por causa
delas que você é a pessoa que é. Uma você perfeita, única, ao contrário de
qualquer outra que veio antes ou que virá depois.
A mente da princesa começou a disparar. Seria possivelmente verdade?
Ela pensou em todos aqueles anos que tinha lutado contra ser do jeito que era.
As centenas, milhares, talvez milhões de vezes em que ficara furiosa consigo
mesma por não ser diferente, não ser melhor.
– Houve ocasiões em que pensei que não era boa o suficiente para se
amada – disse ela, o lábio inferior trêmulo.
– Minha pobre querida – disse o mágico, pondo as mãos nos ombros da
princesa e olhando-a direto nos olhos. – Você sempre boa o bastante para ser
amada. Não por causa do que você disse ou não disse, ou do que fez ou deixou
de fazer. Mas simplesmente porque você é uma filha do universo. Chegou a
hora de honrar aquilo que você condenou a maior parte da sua vida.
Ela tomou a mão da princesa nas suas.
– É hora de apreciar ser tão delicada quanto suas adoradas rosas que
brotam no jardim do palácio. É hora de apreciar a sensibilidade que abriu para
você a porta aos prazeres do universo, pois quem sente as profundezas da dor
também sente os ápices da alegria. É hora de apreciar seus medos, pois eles a
desafiaram a devolver a força e a coragem de um valente cavaleiro na batalha.
E é hora de apreciar os sonhos que falam dos desejos do seu coração, pois eles
estão tentando revelar o segredo do plano do universo para você. – E o mgico
continuou, indicando amorosamente a verdade inegável.
A princesa sentiu como se estivesse suspensa no tempo e no espaço.
Gradualmente, um peso opressivo ergueu-se de seus ombros e flutuou para
longe. Tudo começou a adquirir um novo significado. Pensou acerca de tudo
que tinha passado e tudo que havia aprendido. Pensou no quanto havia
crescido e florescido, no que era agora por causa de tudo que fora antes.
Recordou tudo – e sentiu-se bem.
De repente, tudo no vale pareceu diferente. Radiantes raios de sol
beijaram a maravilha de tudo que havia. Árvores e arbustos ganharam mais
verde. O lago ficou mais azul. E a fragrância de milhares de flores tornou-se
mais doce. A princesa observou os esquilos correndo, as borboletas voejando,
121
e ouviu a canção das calhandras. Tudo parecia tão fresco e novo como se ela o
estivesse vivenciando pela primeira vez. De repente, elevou-se nela uma
sensação de amor intenso.
– Sinto-me mais linda agora do que jamais fui antes, exceto talvez
quando era bem pequena – disse ela, retroagindo no tempo e tentando lembrar.
– Quando procura beleza em tudo que existe, você começa a ver
também a beleza em si mesma – replicou o mágico. – Se procurar a beleza no
que é, você a encontrará. Se procurar imperfeição, a encontrará por sua vez.
Naquele momento, uma vozinha familiar invadiu os pensamentos da
princesa.
– Victoria?
Victoria sentiu um bolo na garganta.
– Eu estava certa sobre uma coisa – disse Vicky.
– Sobre o que?
A resposta veio um momento depois.
– Sobre ser capaz de amara mim mesma se você puder me amar do jeito
que sou,
Soluços de felicidade vieram em ondas, enquanto Vicky e Victoria
riam, choravam, choravam e riam, até que submergiam em poças de lágrimas
felizes.
– Não temos mais que nos preocupar com afogamento, não é, Victoria?
– disse Vicky em júbilo. – Nunca mais nos afogaremos porque temos uma à
outra. E sabemos nadar. Certo, Victoria?
– Certo.
Uma sensação de calma baixou sobre a princesa, diferente de qualquer
outra que sentira antes.
– Sinto-me como se, de alguma forma, tivesse voltado a casa.
– E voltou – replicou o mágico. – Para a casa e a família que você,
muito tempo atrás, esqueceu que um dia teve. Para a casa e a família que
muita gente passa uma vida inteira procurando, jamais percebendo que já
estavam lá o tempo todo.
– Família? Que família?
– Na Terra do É tudo é família, inclusive coelhos, pássaros, peixes,
flores e estrelas, você e eu. A partir deste momento, aonde quer que vá, onde
quer que esteja, estará em casa, porque, em qualquer situação, estará em
família.
A princesa olhou para a beleza que a circundava – a beleza da qual fazia
parte – e sentiu-se plena.
– Agora, querida, o Templo da Verdade e o Pergaminho Sagrado
esperam por você.
– O Templo da Verdade! – gritou a princesa. – Eu não vi. Onde fica?
– No topo da montanha – disse o mágico, apontando em direção ao
outro lado do vale. – É uma bela caminhada. Você vai gostar.
– Não vai vir comigo?
– Não, esta parte da jornada você deve seguir sozinha.
122
– Mas por quê?
– Porque é a única maneira de você poder ouvir a voz do Infinito.
– O que é isso?
– A voz do Infinito não pode ser explicada. Para saber o que é, tem de
vivenciá-la.
– Voltarei a ver você? – perguntou a princesa, já começando a sentir
falta do mágico.
– Claro, meu bem! Mais cedo do que pensa – respondeu o mágico,
soprando um beijo para ela. A seguir, desapareceu numa nuvem de fumaça
branca.
De coração leve, a princesa foi atravessando o vale na direção da
montanha, viu um enorme salgueiro-chorão, ereto como um monumento
contra o céu crepuscular. Embora vergado sob o fardo de seu enorme peso, a
árvore se elevava com força e esperança. Ela parou por algum tempo debaixo
dos seus galhos, especulando por que o salgueiro a fascinava tanto. Por fim,
percebeu o que era. Ele a fazia lembrar de si mesma – e de toda a vida –
enquanto subia com determinação rumo ao céu, transformando o peso que
suportava em beleza e graça.
Ela pousou sua mochila e sentou-se ao lado da árvore, apoiando a
cabeça no tronco e fechando os olhos. Sentiu-se tão relaxada que, dentro de
poucos minutos, até mesmo o clamor de seus próprios pensamentos se
afastou. Foi quando a ouviu.
A voz do Infinito era diferente de qualquer outra. Era uma voz gentil
que lhe falava ao coração como um sussurro. De início, a princesa pensou que
fosse fruto da sua imaginação.
A voz tornou a falar, suavemente. Não foi tanto o que disse que a fez
pensar que algo muito incomum estava acontecendo, mas a sensação que tinha
em sua presença. Sentiu-se aliviada, tranqüilizada e validada. O amor parecia
envolvê-la como um cobertor quente no inverno.
– Por que não falou comigo antes? – perguntou ela.
– Falei, muitas vezes. Mas você não me ouviu – foi a resposta.
– Perguntas importantíssimas começaram então a se amontoar na mente
da princesa, disputando atenção.
– Tenho um milhão de perguntas a lhe fazer – disse ela, sentindo-se tola
e pouco à vontade, como se ainda não estivesse convencida de que não falava
consigo mesma.
– Qualquer que seja a pergunta, a resposta é verdade – disse a voz. –
Descubra a verdade e saberá tudo que necessita saber.
– Mas e quanto ao amor? – quis saber a princesa.
– Aonde vai a verdade, vai o amor.
Destemida, a princesa então perguntou:
– São a verdade e o amor o que está por toda parte? Da vida, quero
dizer.
A voz do Infinito a gratificou com uma resposta:
– A vida está em toda parte descobrindo que a vida está em toda parte.
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Depois, tão misteriosamente quanto tinha vindo, a voz pareceu
desaparecer.
– Espere, não vá! Não me deixe – chamou a princesa, preocupada com
que, na ausência da voz, ela perdesse a sensação inteiramente abrangente de
amor e reconforto que sentia.
– Sou uma parte de tudo que é, tal como você. Estou dentro de você e
você está dentro de mim – disse a voz. – Estamos juntos para sempre, mesmo
que possa pensar que estejamos separados.
O grande vazio que permaneceu entranhado na princesa durante anos
encheu-se de contentamento, pertencimento e paz.
– Promete?
A resposta veio como um distante eco ao vento:
– Sempre estarei para você. É só chamar... e depois ouvir.
O silêncio que restou após a partida da voz pareceu, de alguma forma,
mais pleno.
Em seguida, a princesa começou a subir a montanha rumo ao Templo
da Verdade, seu coração batendo de expectativa, e a mochila balançando feliz
no seu flanco.
124
125
PARTE IV
126
127
Capítulo Dezessete
O Templo da Verdade
128
do salão, em frente a uma parede de pedra sólida, havia uma ampla plataforma
sobre a qual assentava-se um trono generosamente forrado de veludo com a
tonalidade exata do manto real de seu pai. De cada lado do trono estava um
pedestal de alabastro que sustinha um excêntrico vaso de cristal lapidado a
mão contendo dúzias de rosas vermelhas de caule longo. O verde intenso e o
arranjo de cores admiráveis do pátio atravessavam os painéis de vidro,
salpicando um jardim de matizes por toda a rotunda. Feixes de radiante luz
solar se irradiavam através de um enorme domo de vidro chanfrado.
Pasma, a princesa adentrou o salão.
– Olá – chamou, imaginando quem seria o encarregado. Certamente
haveria alguém por perto. – Olá – repetiu.
Sem saber o que viria a seguir, ela foi até o trono. Subiu a plataforma e
instintivamente foi até um dos vasos de rosas. Inalou profundamente o
perfume. Sempre se sentira tentada a parar e cheirar as rosas, muito embora,
por algum tempo, tivesse sido incapaz de apreciá-las plenamente.
Ela depositou a mochila e passou os dedos pelo suave forro de veludo
do trono.
– Há alguém aqui? – chamou, imaginando a quem pertenceria aquele
trono. Continuou sem resposta. Sentindo-se cansada da jornada, afundou no
veludo macio, esperando que o dono do trono não se importasse. Ela sentiu-se
como no tempo em que era pequena, enrolando-se no manto do rei quando ele
a abraçava apertadamente, seu peito inflando de orgulho. Ela refletiu sobre
sua jornada até aqui. Tinha sido longa e difícil, mas a trouxera até onde estava
hoje, e ficou contente por ter empreendido a viagem. Então, lembrando-se do
Pergaminho Sagrado e dando-se conta de que não o tinha visto, olhou em
volta do salão. Mas não viu o pergaminho em lugar nenhum.
Abruptamente, vindo de lugar nenhum, um azulão veio voando e
pousou no seu ombro. Ela ficou espantada. De onde teria vindo?, especulou.
Fazia um bom tempo que um amiguinho emplumado não se empoleirava no
seu ombro. Achou isso maravilhoso. Estendeu a mão para o pássaro e
ofereceu-lhe o dedo. O azulão subiu nele. Ela baixou a mão e olhou direto na
face do pássaro e reparou no seu corpo anormalmente roliço.
– Ora, conheço você! É o mesmo azulão que costumava voar pela janela
de minha cozinha e pousou no meu pistache ralado! – gritou ela com
satisfação.
Os olhos do azulão pareciam estar brilhando, e ele começou a gorjear
uma alegre melodia.
De súbito, a música de banjo ecoou na rotunda, executando a mesma
melodia. A princesa pulou do trono, com o pássaro canoro ainda empoleirado
no seu dedo.
– Doc! Oh, Doc, como estou feliz em vê-lo! – gritou ela. – O que está
fazendo aqui?
– Estou acompanhando o Azulão da Felicidade, é claro. De outras
maneiras além desta – replicou a coruja, continuando a dedilhar o banjo.
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– Azulão da Felicidade? Este aqui? – disse a princesa, olhando
surpreendida para a criatura canoro sentada no seu dedo. Olhou nos olhos dele
de novo. – Não é de admirar que eu sempre me sentisse tão bem quando você
aparecia amiguinho. Creio que é verdade que, para encontrar a felicidade, a
pessoa não deve procurar além de seu próprio pátio, ou cozinha, como pode
ser o caso – disse a princesa com um risinho.
– A verdadeira felicidade não é encontrada nem nos pátios e nem nas
cozinhas – replicou Doc. – E não vem dos pássaros, nem mesmo deste, nem
do outro lado da cerca onde a grama parece mais verde. Ela borbulha do
âmago quando a pessoa conhece a verdade das coisas.
– Você quer dizer que o azulão não traz felicidade?
– Como um Príncipe Encantado, o azulão vem para ajudar alguém a
celebrar a felicidade de alguém. Não é responsável por trazê-la.
A princesa pensou nas palavras de Doc enquanto ouvia a melodia.
– Vocês fazem uma música tão linda juntos! O príncipe e eu uma vez
fizemos uma música linda juntos. Oh, como anseio ter isso de novo.
– E você o terá um dia. Mas há outras coisas a atender primeiro.
– Como o Pergaminho Sagrado? Olhei por toda parte e não o encontrei.
Quem quer que seja o encarregado deve saber onde...
– Nós somos os encarregados aqui.
– Mas... mas de quem é este trono?
– Seu, princesa – respondeu Doc.
De repente, um enorme sopro de fumaça branca apareceu. No meio dela
estava uma figura animada de cabelo prateado, acenando vigorosamente para
limpar o ar.
– Espero não estar atrasada! – disse o Mágico de É. – Não queria perder
isso por nada.
– Ambos sabemos que você nunca perde uma coisa – disse Doc,
piscando divertido para ela.
– Henry, que prazer em vê-lo. E a você também, querida – disse o
mágico para a princesa. – Vejo que chegou bem aqui, como eu sabia que
chegaria. – Voltando-se para a coruja, perguntou: – Está tudo preparado,
Henry?
– Preparado para quê? – quis saber a princesa.
– Ela ainda não sabe – Doc sussurrou para o mágico.
– Saber o quê? – perguntou a princesa.
– Que planejamos uma cerimônia especial de iniciação para você –
replicou Doc.
– É mesmo? Para mim? – disse a princesa com um prazer infantil. – É
para quando eu for ver o Pergaminho Sagrado?
Antes que Doc pudesse responder, um bando de pássaros entrou
chilreando ruidosamente no salão. Ficaram circulando em torno da princesa,
alguns pousando brevemente nos seus ombros e braços.
– Meus velhos amigos emplumados! – exclamou ela, reconhecendo os
pássaros de dias passados.
130
Um por um, ela acariciou suas cabecinhas com o dedo, e um por um
eles arrulharam enquanto ela o fazia.
– Estou tão feliz de vê-los de novo – disse ela. – Senti tanta falta de
vocês!
Quando a princesa terminou de acariciar o último pássaro, o mágico
falou:
– Poderia, por favor, assumir seu trono agora, princesa? E todos os
convidados façam o favor de tomar seus lugares. A cerimônia de iniciação já
vai começar.
Os pássaros voaram em volta e rapidamente vieram descansar em
fileiras alinhadas, ao estilo teatral, de frente para o trono. O mágico assumiu
seu lugar ao lado.
Enquanto a princesa se aninhava de volta no assento de veludo, um
pombo – aparentemente vagueando atrás dos outros – voou com dois
envelopes no bico e os entregou a Doc.
– O que são? – perguntou a princesa acima do chilreio dos pássaros, que
tinham recomeçado quando o pombo chegou voando.
– São passarogramas, claro – respondeu Doc. – Para você. Quer lê-los?
– disse, oferecendo-os a ela.
– Não, você lê, de modo que todos possam ouvir.
Fez-se silêncio enquanto Doc abria o primeiro envelope. Ele limpou a
garganta e começou a ler:
131
Doc deu um risinho e disse que achava o passarograma de Willie
inteligente. Os pássaros irromperam numa rodada de chilreios entusiasmados
e bater de asas. O mágico achou tudo extremamente divertido.
Quando cessaram o chilrear, o bater de asas, as conversas e os risos,
Doc – em sua melhor voz de mestre-de-cerimônias – disse:
– Estamos reunidos aqui hoje para homenageá-la, princesa, por sua
força, coragem e determinação na sua busca da verdade.
Força, coragem e determinação... A princesa sorriu. Sim, Doc estava
certo. Ela nunca se sentira mais forte, corajosa ou mais determinada na sua
vida.
– Você teve de enfrentar no seu caminho mares tempestuosos e areia
profunda, escalou montanhas e atravessou a neblina densa – continuou Doc. –
Você deslizou e escorregou, tropeçou, caiu, só para se erguer de novo e
prosseguir. Tudo isso e mais você suportou na busca da verdade... verdade que
prometeu curar você e trouxe a paz e o amor que desejava tão
desesperadamente.
Ele ajustou cerimoniosamente o seu estetoscópio e continuou:
– Você ganhou merecidamente a honra de estar aqui, hoje, no Templo
da Verdade e de segurar nas suas mãos o precioso Pergaminho Sagrado.
– Não vejo o pergaminho em parte alguma – sussurrou a princesa
ansiosamente para o mágico.
– Nada para se preocupar. Tudo acontece no devido tempo – sussurrou
de volta o mágico.
132
Capítulo Dezoito
O Pergaminho Sagrado
133
– Espere que não signifique o que acho que significa – replicou a
princesa, olhando de Doc para o mágico e de volta para Doc. A seguir,
recomeçou:
II
III
134
– Lembre-se, algumas das maiores lições são provenientes do maior
sofrimento de alguém – replicou Doc
A princesa suspirou, depois baixou os olhos e leu:
IV
135
– À medida que eu me tornei mais ciente disso, serei capaz de
produzir sopros de fumaça branca, tal como você? - perguntou a princesa
com prazer infantil.
– Não haverá sopros de fumaça, meu bem, mas haverá magia mesmo
assim. Você em breve verá o que quero dizer. Por enquanto, vamos
continuuar.
VI
VII
VIII
137
– E você promete, Vicky, ser para sempre o meu fardo de espanto e
inocência, meu elo com um coração feliz?
– Prometo. Não importa o quê!
– E promete me presentear com seu riso, suas lágrimas e a doçura de
suas canções?
– Prometo, prometo!
Victoria tirou uma única rosa de um dos vasos de cristal e segurou-a
reverentemente diante de si.
– Isto é para você, Vicky. Um símbolo do nosso amor.
– É para você também, Victoria. É para nós e de nós! E não porque
alguém mais parou de nos dar rosas, tampouco!
A princesa saltou de pé.
– Nunca imaginei que podia ser tão feliz sem um príncipe! Você estava
certa – disse ao mágico. – Quando sente a verdade como parte de você, isso é
como magia!
Ela agitou a flor no ar e girou graciosamente, subindo e descendo o
corpo numa dança animada que vinha de algum lugar no fundo de seu ser. Ao
mesmo tempo, não fazia idéia de que um halo de luz radiante estava agora
brilhando a sua volta.
Os pássaros gorjeavam e trinavam ao máximo de suas pequenas vozes,
batendo suas asas e esvoaçando em volta. Doc bateu as asas, esvoaçou e piou
junto com eles. O mágico, rindo a valer, juntou-se à alegria.
No meio das festividades , a princesa subitamente relembrou seu conto
de fadas e ficou intrigada. Chamou Doc.
– Você me disse no início da jornada que, quando chamasse ao Templo
da Verdade, eu estaria bem encaminhada para transformar meu conto de fada
em realidade.
– E está, princesa – replicou ele. – Para amar a outro verdadeiramente,
precisa primeiro amar a si mesma.
– Mas supostamente os contos de fada não deveriam inclui um
príncipe?
– Sim, quando eles são da espécie que é lida para ninar as crianças. Os
contos de fada da vida real supostamente devem ter um final feliz... com ou
sem um príncipe.
A princesa pensou por que ansiara por um príncipe durante boa parte da
sua vida – de fato, com freqüência, se sentira uma nulidade sem um príncipe.
Havia necessitado de um príncipe para amá-la, precisava da centelha nos
olhos dele para ser feliz e se sentir bela, especial e amada. Isso só servia para
mostrar o quão errada alguém podia ser, pensou ela, lembrando o que
aprendera sobre príncipes, resgates e amor. Ela agora sabia que, se
continuasse querendo um príncipe na sua vida, ele poderia nunca ser de novo
a sua vida, e que agora se amava o suficiente para se tornar feliz – com ou sem
príncipe.
138
– Você uma vez me disse que meu conto de fadas podia se tornar
verdade, mas que poderia ser diferente daquele que fantasiei pela primeira vez
– disse ela. – Estou começando a entender o que quis dizer.
Ela sentou-se na beirada do trono, inclinou a cabeça e apertou a face
com as mãos.
– Mas ainda quero um príncipe que fará meu coração tamborilar e meus
joelhos fraquejarem, quando me olhar fixamente nos olhos.
– Uma noção romântica, com certeza, mas existe um bocado mais na
escolha de um Príncipe Encantado do que olhar fixamente nos olhos de um
estranho e achar que ele é o próprio.
– Então como o conhecerei?
– Pela pureza de seu espírito e a plenitude de seu coração.
– Você quer dizer que ele será como diz o Pergaminho Sagrado: gentil,
amável, compassivo e tudo mais?
– Sim – replicou Doc. – Tanto em relação a ele quanto aos outros. Pois
deve-se amar os outros como a si mesmo, com gentileza e tolerância, ou com
aspereza e rejeição.
– É esse o segredo do verdadeiro amor? – perguntou a princesa.
– Parte dele – respondeu Doc. – A outra parte é inclinação.
– Inclinação?
– Sim, porque não se pode amar uma pessoa de quem não se goste. E
que significa gostar do que a outra pessoa realmente é, não do que você
queria ou precisaria que fosse.
– A princesa pensou por um momento, depois perguntou, ansiosa:
– Existem mais outras partes para o segredo?
– Sim, muitas outras, tais como confiar, partilhar e ser os melhores
amigos. O verdadeiro amor significa liberdade e crescimento, em vez de
propriedade e limitações. Significa paz em vez de tumulto, segurança em vez
de medo – disse Doc, começando a falar mais rápido. – Significa
compreensão, lealdade, estimulo, compromisso, união e... ah, esta é uma parte
especialmente importante para você, princesa... respeito. Pois quando alguém
não é tratado com respeito, vem inevitavelmente a dor, de um tipo profundo,
desagradável, destrutivo, de esfrangalhar os nervos, que nunca é uma parte da
beleza que é verdadeiro amor.
– Sei muito bem a respeito disso. E agora sei que era minha obrigação
aceitar nada menos que respeito, como diz o pergaminho. Mas até mesmo o
verdadeiro amor deve ter seus momentos difíceis. Quero dizer, às vezes as
pessoas ficam perturbadas e dizem coisas...
– Sim, mas pode-se ficar perturbado com o que outra pessoa diz ou não,
sem desgostar ou maltratar a pessoa que o disse ou não. O verdadeiro amor
significa concordar ou discordar como amigos ou colegas de equipe, em vez
de como inimigos ou concorrentes, pois o verdadeiro amor não se ocupa com
competição ou triunfo. – Sua voz ficou mais alta e profunda, e ele parecia alto,
o peito inflado como pavão. – E ele nunca é aviltante, cruel, agressivo,
violento. Faz de uma casa um castelo, nunca uma prisão. O verdadeiro amor...
139
– Doc... Doc – chamou o mágico insistentemente.
A coruja parou abruptamente de falar e agitou sua asa sobre a boca.
– Epa, parece que fui um pouco longe demais – disse, baixando a asa. –
Desculpe, isso tende a acontecer quando estou falando de meu tema preferido.
– Está tudo bem. É meu tema preferido também – replicou a princesa,
suspirando profundamente. – Engraçado. Sonhei por toda a minha vida em
descobrir o verdadeiro amor, mas nem mesmo soube o que é isso.
– O que explica por que você teve dificuldade em descobri-lo, Ninguém
pode encontrar o que está procurando a menos que saiba primeiro o que é.
Ela sentou-se em silêncio, seus olhos enchendo-se de lágrimas. Por fim,
disse:
– Meu conto de fadas me manteve acreditando que o que eu tinha era
amor de verdade. – Ela se remexeu desconfortável no assento. – Eu acreditava
no êxtase do conto de fadas, a despeito da agonia da realidade. Esperei e
sonhei que meu conto de fadas ainda iria se tornar realidade.
– Aquilo foi antes, e isto é agora. Seu conto de fadas ainda pode se
tornar realidade, se for o correto.
A princesa recordou o que o Pergaminho Sagrado dissera a respeito de
plenitude mental e como o amor no coração de alguém cria amor na vida de
alguém, e ela imaginava o que o futuro poderia lhe assegurar.
– O verdadeiro amor soa até melhor do que jamais sonhei, exceto
aquela parte sobre nenhum coração tamborilar e os joelhos não tremerem. É
muito triste. É mais do que triste, é verdadeiramente deprimente!
Doc sorriu.
– Eu não diria que seu coração não iria tamborilar nem que seus joelhos
não virariam geléia. Só que escolher um príncipe para amar exige que você
considere mais do que sua anatomia inconsciente, que, aliás, pode impedi-la
de perceber postes de sinalização importantes.
A princesa enrubesceu e tentou sufocar um risinho. Depois aquietou-se.
Doc, o mágico e os pássaros esperavam pacientemente.
Finalmente, com a voz trêmula de emoção, a princesa disse:
– Tenho um novo conto de fadas. Um conto de fadas diferente. Um
conto de fadas melhor. É que eu vivo feliz para sempre e encontro o
verdadeiro amor com um príncipe que está vivendo feliz para sempre. E,
juntos, celebramos a nossa felicidade!
– Você percorreu um longo caminho, princesa – disse Doc. – Você uma
vez precisou amar a fim de sentir-se bem. Agora você pode escolher amar
porque se sente bem.
– Viveremos em harmonia perfeita, meu príncipe e eu? – perguntou
sonhadora.
– Será perfeita na sua imperfeição.
Ela poderia ter adivinhado esta, pensou a princesa.
– E nossos corações bateram como um só?
– Não, mas seus corações baterão juntos, como dois que sentem como
um.
140
– Oh, isso soa maravilhoso – disse a princesa. – Mas não sei como um
dia o encontrarei naquele grande mundo lá fora.
– Não se preocupe – disse o mágico. – Há muitas coisas que você ainda
não sabe, querida, mas saberá.
– Oh, não – disse a princesa, acomodando-se mais fundo no trono. –
Tive uma sensação quando vi o Pergaminho Sagrado, dizia ―O Primeiro...‖
– Você estava inteiramente certa – replicou Doc. – A jornada de uma
pessoa nunca termina.
– Pensei que já tivesse acabado de subir encostas, escorregar em seixos
e bater com o nariz em enormes penedos. Não é disso que trata essa iniciação?
– Pelo contrário, iniciação significa começo.
– Na verdade não quero perguntar, mas que história é essa de começo?
– indagou ela, ansiosa.
– Pôr em pratica um conhecimento recém-adquirido. Uma parte
importante de aprender a verdade é vivê-la.
A princesa olhou para o veludo macio debaixo dela e acariciou-o com
os dedos.
– O que há – perguntou Doc.
– Imagino que é apenar porque já cheguei longe demais, e agora sinto
que preciso ir ainda mais longe.
– É? E para onde?
– Não estou certa Algum lugar que parecerá como se eu tivesse chegado
aonde supostamente devesse ir, acho.
– A maior parte da vida é a ida... não o chegar lá, pois quando alguém
chega aonde supostamente estava indo, inevitavelmente sente a necessidade
de ir a algum outro lugar. É tudo aventura. Seja feliz, o melhor está por vir.
De repente, a princesa percebeu o som abafado de algum tipo de
música. Ouviu atentamente, tentando imaginar de onde vinha, depois olhou
desconfiada para sua mochila, que jazia ao chão, perto do trono.
– Vá em frente, querida – disse o mágico.
Quando ela abriu a mochila as notas ásperas e tilintantes de uma flauta
se espalharam no ar. Perplexa quanto ao que havia acontecido com ―Algum
dia meu príncipe chegará―, ela estendeu o braço e pegou sua pequena caixa de
música. Mas viu que não era a sua caixa de música, afinal! Ela só tinha uma
figura no topo, e que parecia com ela. Oscilava ao som da música, girando
graciosamente, se abaixando e levantando, jogando os braços para o alto,
numa dança animada que parecia vir de algum lugar bem fundo no interior da
caixa.
De repente, eram duas flautas. A seguir, um Piccolo. A figurinha girava
cada vez mais e erguia o braço mais alto e baixava o corpo, como se a sua
dança estivesse impregnada com o pot-pourri de sons vívidos espiralando em
torno dela. Clarinetes se juntaram, e a música ficou mais forte e plena. A
figura pareceu ganhar vida enquanto valsava alegremente e rodopiava com
abandono no topo da caixa de música.
141
– O que está havendo aqui? – perguntou a princesa, presumindo que
fosse um dos truques habituais do mágico.
O rosto do mágico estava radiante.
– Continue olhando, meu bem.
A música ficou mais plena ainda, e mais doce, quando entraram
violinos. A dança apaixonada da figura deixou a princesa hipnotizada. A
música continuou a aumentar de intensidade. Crescia dentro dela, mais e mais,
até que finalmente ela e a música se tornaram uma só. De olhos arregalados,
ela olhou para o mágico,
– Ainda não acabou. Vai ficar melhor ainda – disse o mágico, erguendo
a voz acima da sinfonia de sons.
A princesa estava assombrada.
– Melhor! Como poderia ficar melhor do que isso?
– Você verá. Olhe de novo.
Quando ela o fez, para seu espanto, a figurinha da princesa dançava nos
braços de um belo príncipe. Eloqüentemente, eles rodopiavam, se abaixaram e
deslizaram num uníssono perfeito. Cellos se juntaram e a dança continuou a
crescer. O pequeno casal evoluía cada vez mais rápido no topo da caixa de
música. Quanto mais instrumentos se juntavam, mais a música ficava mais
plena, mais rica e mais forte, até que toda a rotunda reverberou com o som dos
tambores e os painéis de vidro chanfrado vibraram com o fragor dos címbalos.
O pequeno casal real, rindo descontroladamente, se abrigava um nos braços
do outro.
Espantada, a princesa olhou de volta para o mágico, que estava
empertigado, nitidamente orgulhoso de sua obra.
– É um pequeno presente de iniciação – disse. – Um lembrete do seu
novo conto de fadas.
A princesa pulou de pé e apertou a caixa de música contra o peito.
– Adorei! Vou tocá-la sem parar. A cada vez me recordará de que estou
inteira e de que o amor no meu coração criará amor em minha vida, e que tudo
será como tinha de ser, quando tiver de ser, pois tudo acontece como tem de
acontecer e no seu devido tempo – declarou como se soubesse disso a vida
toda.
O mágico sentiu-se altamente gratificado com a resposta da princesa.
– Você aprendeu bem suas lições, querida.
– Obrigada – replicou a princesa, inflando de orgulho. – Agora só tenho
de vivenciá-las.
– Sim! – disse o mágico.
– Sim! – repetiu Doc.
– E o farei... à perfeição.
– À perfeição? – perguntou o mágico, descrente.
– À perfeição? – perguntou Doc com óbvia preocupação.
Mas a princesa nada disse. O único som foi uma súbita agitação de
gorjeios e trinados. Ela ergueu as sobrancelhas, tentando com todo o seu
esforço prender um sorriso que suplicava para aflorar.
142
– Sim, à perfeição, tão perfeitamente como toda princesa perfeitamente
imperfeita pode vivenciá-las! – disse ela por fim, explodindo em riso.
Doc e o mágico também irromperam em risos. Os pássaros
contribuíram com seus arrulhos e gorjeios, bater de asas e esvoaçares. Todos
eles envolveram a princesa num anel de alegria.
Passado algum tempo, o mágico disse:
– É chegada a hora de você partir.
– Agora? Mas estou me divertindo tanto!
– Sim, meu bem, agora – replicou o mágico.
– Mas para onde irei? – indagou a princesa, lembrando-se de ter feito a
mesma pergunta quando abandonou o príncipe e embrenhou-se na trilha. E
percebendo que, embora seu coração estivesse batendo como fizera tanto
tempo atrás, desta vez sentia mais excitação do que medo.
– Você continuará na Trilha da Verdade – respondeu Doc. – Descerá do
outro lado da montanha, para a aventura que a espera.
– A aventura do esclarecimento. Não é, Doc?
– Sim, princesa, pois sempre há novas trilhas a desbravar e novas
canções para cantar. Ah, isso me faz lembrar... Temos um musical especial de
despedida em preparação, ao ar livre.
– Parece maravilhoso – replicou a princesa, pegando sua mochila e
recolocando a caixa de música. Depois, ela retirou os passarogramas do
pedestal onde Doc os colocara e jogou-os cuidadosamente na mochila, junto
com o Pergaminho Sagrado, que o mágico havia enrolado e entregado a ela.
– Posso levar isso também? – perguntou ela, pegando o espelho.
– Claro – replicou o mágico. – Eu o conjurei especialmente para você,
querida... com as rosas e tudo.
– A princesa enfiou o espelho na echarpe de lã que abrigava seus
sapatinhos de cristal e fechou a mochila.
Ombro a ombro, ela e o mágico foram caminhando pela rotunda, com
Doc seguindo ao lado e os pássaros se entrecruzando felizes atrás deles.
Passaram pelo vestíbulo, pelo pátio, e saíram através dos portões brancos de
ferro batido para o sol de fim de tarde.
– Muito obrigada por tudo! – disse a princesa, pousando sua mochila e
abraçando Doc e o mágico, sem vontade de partir. – Algum dia os verei de
novo? – perguntou esperançosa. Mas antes que qualquer outro pudesse
responder, ela lembrou: - Eu sei – disse, recordando as palavras de despedida
de Dolly: ―Aqueles que você leva no seu coração estão sempre por perto.‖
Extasiado, Doc tirou seu banjo e o chapéu de palha de sua valise. Pôs o
chapéu na cabeça e começou a tocar e cantar:
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Um coro de vozes em júbilo se juntou. A princesa ouviu por um
momento, depois tornou a abraçar Doc e o mágico. Pegou sua mochila e olhou
com ternura para o adorável grupo a sua frente. Ela queria memorizar o
momento – tal como todos o viam e tal como ela o sentia.
– Mantenham a música tocando – disse ela numa voz tão melodiosa
quanto a canção mais doce jamais ouvida.
– Manter a música tocando será tarefa inteiramente sua agora, princesa
– replicou Doc, batendo suas asas no ar acima dela. – Vá em frente e viva sua
verdade mais elevada, princesa.
– Eu o farei – replicou ela com convicção, o belo anel de luz a sua volta
reluzindo mais brilhante do que nunca.
Ela voltou-se e se afastou do topo da montanha. Sua empolgação a
respeito da maravilhosa vida nova que ia começar aumentava a cada passo que
dava. Mesmo assim um toque de tristeza continuava atado a ela. Incerta sobre
se e quando iria rever seus adorados amigos, ela parou e voltou-se para acenar
em despedida.
Para seu espanto, tudo e todos se tinham ido! O templo, Doc, o mágico
e os pássaros – tudo sumira! Como poderia ser? Ela esfregou os olhos em
descrença e olhou de novo. Não havia nada, afinal.
Ela tomou uma calma e profunda inspiração, depois outra.
Gradualmente, tomou consciência de um sussurro distante e familiar, ecoando
suavemente de uma montanha para outra. Ouviu com atenção.
– Acredite... acredite... acredite... – dizia.
Naquele exato momento – ainda que debilmente – uma nova versão da
canção de Doc, ―Conto de fadas de fato podem se tornar realidade‖, começou
a tocar. De inicio, a princesa ficou perplexa. Passou-se um momento. Depois
aquilo a atingiu como um relâmpago. A música vinha de dentro de si mesma!
Com um sorriso nos lábios, uma mola nos pés e uma canção no coração,
ela desceu em meio a um glorioso crepúsculo de mil cores.
O Começo
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Uma palavra da Autora
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146
Cara amiga,
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