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JESUS DESCEU AO INFERNO?

“... no qual também foi e pregou aos espíritos em prisão...”


(1 Pedro 3:19)

Está sendo muito comum um entendimento nas igrejas modernas, difundido em


pregações, ensinado por “teólogos” e “exegetas” que Cristo, após a sua morte,
desceu ao inferno para pregar o Evangelho da salvação aos mortos que não
tiveram oportunidade de ouvir ainda em vida; e, tomar as chaves da morte e do
inferno das mãos de Satanás. Os “estudiosos” que afirmam tal teoria, usam o
verso supracitado como apoio as suas ideias.

Como em certo seminário, o filósofo brasileiro Luiz Felipe Pondé delatou:


“Ninguém diz nada, hoje, que não tenha sido dito anteriormente e muito
melhor.” A razão é que os pensamentos apenas tornam a aparecer. Tudo que
conhecemos hoje são apenas elaborações de ideias de outrora.

A teoria bíblica em estudo, aparentemente nova, surgiu no Egito com Clemente


de Alexandria, no início do século II. Até a morte do último apóstolo, João, e
dos primeiros pais apostólicos Inácio, Policarpo e Clemente de Roma (que
conviveram diretamente com os apóstolos de Cristo), esse pensamento não
era difundido.

No decorrer da história da teologia, dois outros nomes agregaram mais ideias


ao pensamento de Clemente de Alexandria, o Cardeal Roberto Belarmino, no
século VI, que defendeu a ideia que tem sido defendida por muitos católicos
romanos: Cristo, em espírito, foi libertar as almas dos justos que se
arrependeram antes do dilúvio e que tinham ficado num estado intermediário
(limbo e purgatório). E, o teólogo alemão Frederich Spitta, nos fins do século
XIX, ensinou que, depois de sua morte e antes de sua ressurreição, Cristo
pregou aos anjos caídos, também conhecidos como “filhos de Deus”.
Tais teorias geram questões que aflige diretamente muitas outras partes da
Bíblia, e ensinos claramente expostos. Apesar de sua brevidade, as
interpretações que o texto levanta são muitas e, dependendo do
posicionamento crido, traça-se uma linha muito tênue entre cristianismo e
sectarismo. Além do mais, as teorias levantam questões, como salientou o
saudoso R. C. Sproul, renomado apologista cristão, ao dizer que a passagem
provoca uma série de perguntas preliminares:

“Que espírito está em foco: o espírito humano ou o Espírito Santo? Quem são
esses espíritos em prisão? O que essa prisão indica e onde fica? Quando essa
pregação aconteceu? Por que essa pregação foi necessária?” 1

Cada uma dessas perguntas tem respostas diferentes segundo diferentes


estudiosos da Bíblia. Os pregadores de hoje não respondem essas perguntas,
apenas afirmam com base em 1º Pedro 3:19, desconsiderando o restante das
Escrituras.

Vejamos alguns dos posicionamentos que o texto tomou na história do


pensamento cristão e quais problemáticas que a posição de Clemente,
Belarmino e Spitta nos leva.

O PENSAMENTO DE CLEMENTE, BELARMINO E SPITTA:

Ensinavam basicamente que Cristo, entre a sua morte e ressurreição, foi ao


inferno, pregou aos espíritos em prisão; ou pregou a anjos caídos; ou a
pessoas que estavam numa espécie de estado intermediário.

A posição de Clemente, especificamente, surgiu de um documento extrabíblico,


do século II, a saber, o Credo dos Apóstolos. Como é sabido por todo
estudioso cristão, o Credo Apostólico, é atribuído pela tradição aos doze
apóstolos2, justamente por causa dos textos mais antigos que possuem doze
versos. Porém, os estudiosos acreditam que ele se desenvolveu a partir de
pequenas confissões batismais empregadas nas igrejas dos primeiros séculos 3.
Esse credo só tomou a forma que conhecemos hoje no decorrer dos anos,
mais especificamente no Concílio de Niceia quando recebeu seu título, e
tornou-se a versão que conhecemos. Em alguns dos seus versos, referente a
pessoa de Cristo, ele traz:

“et in Iesum Christum, Filium Eius unicum, Dominum nostrum,


qui conceptus est de Spiritu Sancto, natus ex Maria Virgine,
passus sub Pontio Pilato, crucifixus, mortuus, et sepultus,
descendit ad inferos, tertia die resurrexit a mortuis,”

As versões latinas mais tardias trazem: “descendit ad inferos” que é a tradução


do grego para o latim. A palavra “ínferos” é o termo grego “hades” que pode ser
traduzido como mansão dos mortos, sepultura, etc. É bem provável que
Clemente teve contato com as versões desse credo, em sua época, chegando
então às conclusões que chegou do texto de 1ª Pedro 3:19.

O problema do pensamento já inicia com a palavra espíritos. Se os espíritos


forem de homens, a Bíblia é enfática em ensinar que a salvação deve ser
alcançada em vida, não tendo possibilidade de se encontra-la depois da morte
física, como o escritor de Hebreus descreve:

“E, assim como aos homens está ordenado morrerem uma só vez, vindo,
depois disto, o juízo...”
(Hebreus 9:27)

O Senhor Jesus vai mais além ao ensinar na passagem do Rico e do Lázaro


que:

“Disse, porém, Abraão: Filho, lembra-te de que recebeste os teus bens em tua
vida, e Lázaro igualmente, os males; agora, porém, aqui, ele está consolado;
tu, em tormentos. E, além de tudo, está posto um grande abismo entre nós e
vós, de sorte que os que querem passar daqui para vós outros não podem,
nem os de lá passar para nós.”
(Lucas 16:25-26)
Essa história contada por Jesus é clara em dizer que após a morte, o estado da
alma é irreversível. Não se pode retornar ao mundo dos vivos; não se pode
atravessar para o seio de Abraão; e, o sofrimento é interminável.

Humanamente falando, a visão da salvação após a morte é muito agradável,


confortadora e até “amorosa”, mas confronta-se diretamente com o Evangelho
pregado por Cristo e por seus apóstolos, anulando a justiça de Deus, tornando
a visão de salvação bíblica em uma heresia chamada de UNIVERSALISMO onde
todos serão salvos, mesmo após a morte. A bíblia nunca promete salvação
para todos os seres humanos.

Seitas como a Igreja Católica Romana e a Igreja de Jesus Cristo dos Santos
dos Últimos Dias (Mórmons), creem respectivamente em purgatório (lugar onde
se expia pegados antes de ir para o céu); e, pregação para mortos, salvação
para mortos que não aceitam o evangelho e até batismo para os mortos. Essas
crenças são heréticas, e devem ser rechaçadas da Verdadeira Igreja Cristã.

A outra problemática é: se os espíritos em prisão são anjos caídos, Pedro se


contradiz ao dizer que os anjos que pecaram estão reservados para o juízo; e,
ainda contradiz Judas, o irmão do Senhor, em sua epístola que também afirma
isso:

“Ora, se Deus não poupou anjos quando pecaram, antes, precipitando-os no


inferno, os entregou a abismos de trevas, reservando-os para juízo;”
(2 Pedro 2:4)

“...e a anjos, os que não guardaram o seu estado original, mas abandonaram
o seu próprio domicílio, ele tem guardado sob trevas, em algemas eternas,
para o juízo do grande Dia;”
(Judas 1:6)

ONDE JESUS ESTAVA ENTRE A SUA MORTE E RESSURREIÇÃO?


A Escritura Sagrada ensina claramente onde Jesus estava depois de
crucificado, até o momento da sua ressurreição. Ele estava ao lado do Pai,
aguardando a ação do Espírito Santo em ressuscitá-lo. Os evangelistas
Mateus e Lucas relatam:

“E Jesus, clamando outra vez com grande voz, entregou o espírito.”


Mateus 27:50

“Então, Jesus clamou em alta voz: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito!
E, dito isto, expirou.”
(Lucas 23:46)

Lucas ainda é mais detalhista ao narrar à promessa que o Senhor Jesus fez a
um dos ladrões crucificados ao seu lado, quando registra:

“Jesus lhe respondeu: Em verdade te digo que hoje estarás comigo no


paraíso.”
(Lucas 23:43)

Erroneamente alguns tentam argumentar que Cristo entregou o espírito a


Deus, e “outro espírito” (talvez o Espírito Santo) foi pregar no inferno. Ora isso
não é dito em lugar nenhum. Antes da encarnação, Cristo era apenas espírito e
quando o Espírito Santo encheu o ventre de Maria, Cristo se fez carne
juntamente com o espírito que possuía antes da existência humana. O Espírito
Santo está em Cristo, mas não é Cristo. Ele é outra Pessoa diferente da
Pessoa de Cristo. Essa teoria do “outro espírito” fere o pilar do cristianismo que
é a DOUTRINA DA TRINDADE: um único Deus eternamente subsistente em três
Pessoas distintas: Pai, Filho e Espírito Santo.

O Espírito Santo não é Jesus! Jesus foi cheio do Espírito Santo e tinha uma
relação ímpar com essa Pessoa da divindade, pois compartilham da mesma
essência divina, sendo pessoas diferentes. Porém, o Espírito Santo não é a
Pessoa de Cristo. Essa confusão é dada justamente porque uma das
designações do Espírito Santo é o Espírito de Cristo. Mas o Espírito Santo
também é chamado de Espírito de Deus, sem ser a Pessoa do Pai.

Essas afirmativas corroboram claramente com os ensinos bíblicos, sem entrar


em contradições. Deus não pode se contradizer em sua Palavra, senão, não
seria Deus. Sua Palavra não seria isenta de erros, e se um texto estiver errado,
muitos outros poderão estar.

E AS CHAVES DA MORTE E DO INFERNO?

Os defensores da posição de Clemente, também buscam no texto de João, ao


escrever as profecias de Apocalipse, amparo para defender que Jesus foi ao
inferno, quando o apóstolo narra a visão do Cristo Glorioso:

“...e aquele que vive; estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos
séculos e tenho as chaves da morte e do inferno.”
(Apocalipse 1:18)

A grande problemática aqui é que Satanás não tem poder de condenar


ninguém, e muito menos lançar as almas da pessoa no inferno. Satanás será
fustigado também no inferno. Ele não será um carrasco que assolará as almas,
mas sim um espírito que ficará em tormentos e dores. Deus tem o poder sobre
o inferno, e quando o texto joanino descreve Cristo com as chaves da morte e
do inferno, aponta para sua supremacia sobre tudo e todos no universo, sendo
o Deus Salvador, e, o Deus que cumprirá a justiça na vida das pessoas. O
Senhor Jesus mesmo afirma quem devemos temer e o porquê temer:

“Eu, porém, vos mostrarei a quem deveis temer: temei aquele que, depois de
matar, tem poder para lançar no inferno. Sim, digo-vos, a esse deveis temer.”
(Lucas 12:5)

“Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei, antes,
aquele que pode fazer perecer no inferno tanto a alma como o corpo.”
(Mateus 10:28)
Paulo, ao condenar os imorais da igreja de Corinto, ensina que a limitação do
poder de Satanás se estende apenas a vida física do ser humano. Tudo que
Satanás pode fazer é matar a carne do homem e desviar a sua conduta. Ele
não tem poder de levar ninguém ao suplício eterno:

“Eu, na verdade, ainda que ausente em pessoa, mas presente em espírito, já


sentenciei, como se estivesse presente, que o autor de tal infâmia seja,
em nome do Senhor Jesus, reunidos vós e o meu espírito, com o poder de
Jesus, nosso Senhor,
entregue a Satanás para a destruição da carne, a fim de que o espírito seja
salvo no Dia do Senhor [Jesus].”
(1 Coríntios 5:3-5)

As Interpretações Mais Coerentes

Agostinho de Hipona – Século IV:

O grande Teólogo Agostinho de Hipona rebateu a posição de Clemente de


Alexandria e apontou seus erros doutrinários ao afirmar que não pode haver
salvação depois da morte. Segundo sua posição (por volta de 400 d.C) é
afirmado que o Cristo preexistente proclamou a salvação por intermédio de
Noé ao povo que viveu antes do dilúvio, seguindo o texto do verso seguinte:

“...os quais, noutro tempo, foram desobedientes quando a longanimidade de


Deus aguardava nos dias de Noé, enquanto se preparava a arca, na qual
poucos, a saber, oito pessoas, foram salvos, através da água,”
(1 Pedro 3:20)

Como bem observou Agostinho, a geração de Noé ouviu o Evangelho de Deus,


por meio do patriarca, pois o próprio Pedro declara sobre Noé:
“...e não poupou o mundo antigo, mas preservou a Noé, PREGADOR DA
JUSTIÇA, e mais sete pessoas, quando fez vir o dilúvio sobre o mundo de
ímpios;”
(2 Pedro 2:5)

A passagem nos mostra que a geração de Noé ouviu sua pregação, porém,
rejeitou a mensagem de Deus por meio do patriarca. Diante disso o
pensamento agostiniano pode ser assim sintetizado:

“Por meio de (Espírito Santo), ele (Cristo), foi e pregou (por meio de Noé) aos
espíritos (agora) em prisão (no Hades)”.

Dessa forma o teólogo entedia o texto, sendo esta uma posição que não
contradiz o ensino ortodoxo. Um defensor dessa posição é o teólogo
contemporâneo Drº Augustus Nicodemus Lopes, Pós-doutorado em teologia do
Novo Testamento.

Visão Reformada Contemporânea:

Três grandes comentaristas contemporâneos, a saber: Hernandes Dias Lopes,


Simon J, Fistemaker e Francis Schaeffer ensinam que o Cristo ressurreto,
quando ascendeu aos céus, proclamou aos espíritos em prisão sua vitória
sobre a morte. O Cristo exaltado passou pelo reino onde são mantidos os anjos
caídos e proclamou seu triunfo sobre eles. Essa teoria encontra amparo nos
escritos paulinos onde é dito que os anjos caídos habitam as regiões celestes:

“...porque a nossa luta não é contra o sangue e a carne, e sim contra os


principados e potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso,
contra as forças espirituais do mal, nas regiões celestes.”
(Efésios 6:12)
Uma ilustração sobre o pensamento é como uma casa de dois andares. O
primeiro é o andar onde vivemos. Aqui é o mundo visível. O segundo andar, as
regiões celestes, é o mundo espiritual invisível, onde estão os seres angelicais.
Cristo proclamou sua vitória aos seres angelicais nessas regiões celestes.
Essa interpretação encontra reações favoráveis nos meios das igrejas
protestantes mais alinhadas com a Reforma e não entra em contradição com
os ensinamentos do restante das Escrituras.

CONCLUSÃO

Vemos como a Bíblia é um livro que deve ser interpretado à luz de seus
contextos e dos ensinos gerais do Cristianismo Histórico. Fora isso, uma
passagem com apenas nove palavras, no grego (dez na versão Almeida
Revista e Atualizada) pode trazer um bojo de erros e heresias, criando até
falsas religiões que se dizem cristãs sem ser, levando muitos à perdição. Outra
questão é que devemos ter muito cuidado com pregadores modernos e
pseudoteólogos que apregoam tais ideias dizendo que possuem uma
interpretação certa ou uma nova revelação. Apartai-vos destes.

“Mas, ainda que nós ou mesmo um anjo vindo do céu vos pregue evangelho
que vá além do que vos temos pregado, seja anátema.”
(Gálatas 1:8)

Romulo Lima
1
Sproul, R. C. 1-2 Peter, p. 125.
2
Alguns chegaram a sugerir que cada apóstolo teria contribuído com um artigo.
3
Extraído do livro de Humberto Casanova e Jeff Stam, El Credo Apostólico (Grand Rapids, Libros Desafio,
1998), pp. 14-22.

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