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Claude Lévi-Strauss
O HOMEM NU
mitológicas 4
9 PRÓLOGO
FINALE
Das Montanhas Rochosas até o Oceano Pacífico, entre o 40° e o 50° parale-
los aproximadamente, estendem-se terras de solo basicamente formado por
lava basáltica terciária e quaternária, em camadas horizontais ou dobradas,
de que emergem, aqui e ali, rochas mais antigas. A uns duzentos metros de
distância da costa, a cadeia de montanhas das Cascades, orientada segundo
um eixo sudoeste-nordeste, representa a dobra mais importante de rochas
vulcânicas. Sua vertente ocidental se inclina em direção ao mar e, desse lado,
predomina um relevo irregular onde depósitos marinhos, principalmente
terciários, envolvem formações vulcânicas da mesma idade, a massa meta-
mórfica mais antiga dos montes Olympic e também a da cadeia costeira e
dos montes Klamath, onde aparecem, como na Sierra Nevada, ao sul, rochas
jurássicas intrusas mescladas a outras que datam do carbonífero.
Do outro lado, até os contrafortes das Rochosas, o planalto do rio Colúm-
bia ondula entre menos de 200 e mais de 1500 metros de altitude, profunda-
mente entalhado por gargantas, onde correm o rio e seus principais afluen-
tes, o Snake e o Spokane. Em toda essa região, as lavas sofreram dobraduras
consideráveis no plioceno, formando o anticlinal das Cascades bem como
sinclinais onde atualmente se encontram as regiões baixas. Essas deforma-
ções tectônicas deslocaram parcialmente o leito do rio Colúmbia para o leste,
Ú
*
“Nem quanto proveito há na malva e no asfódelo.” [n.e.]
Prólogo | 9
mas as gargantas escavadas pelo rio e por seus afluentes, para atravessar os 35 e 40 mil anos atrás (Pocklington 1670) — é interessante notar que, sem
anticlinais que lhes barravam o curso, provam que a rede hidrográfica já remontarem tão longe no tempo, os arqueólogos descobriram recentemente
existia no tempo em que estes apareceram (Hunt 1967: 348-53, Mendenhall provas de presença humana na bacia do Yukon ao norte do Alasca, talvez de
1932). Entre o Colúmbia e o Snake, afloram basaltos, possivelmente em razão mais de 20 mil anos — um instrumento de osso misturado com ossadas de
de uma gigantesca inundação que teria lavado e carregado o solo de superfí- mamute, de desdentados e de gêneros extintos de cavalo e de camelo (Old
cie até o estuário ou, segundo outros autores (Bretz, Smith & Neff 1956), por Crow River). Mais segura parece ser a datação, de 13 mil anos, do sítio de
razões mais complexas, tais como uma intensa umidade que teria sucedido Onion Portage, no Kobuk River, no noroeste do Alasca (Anderson 1968).
a um clima desértico, responsável pela formação de uma rede hidrográfica As vias de penetração utilizadas pelos imigrantes permanecem hipotéti-
sujeita a inundações frequentes e prolongadas, decorrentes do derretimento cas. A costa noroeste é tão abrupta, tão profundamente cortada por fiordes,
dos glaciares e dos transbordamentos dos rios, e certamente também de um que a viagem a pé ao longo da costa parece estar fora de questão. Assim, teria
grande lago, nos vales ainda fechados pelo gelo. sido preciso que pequenos grupos de caçadores, entrando na América sem
A cadeia das Cascades, cuja altitude ultrapassa os 4 000 metros no monte nem mesmo perceberem que mudavam de continente, devido à largura da
Rainier, bloqueia os ventos úmidos provenientes do oceano, causando uma ponte entre a Ásia e a América em certos períodos da pré-história, tives-
diferença de clima entre as regiões a oeste e a leste. A parte oeste, atravessada sem penetrado interior adentro seguindo os corredores temporariamente
em todo o seu comprimento pela depressão em forma de calha, que ocupam liberados pelos glaciares. Porém, como na costa, não se encontrou até hoje
o vale do Willamette ao sul e Puget Sound ao norte, goza de uma temperatura nenhum sinal de tais movimentos. De todo modo, o nível do oceano teve
amena e de uma pluviosidade abundante, sobretudo no inverno; a maior uma variação tão grande durante todo o período considerado que é possível
parte dela é coberta por florestas coníferas de espécies variadas. A leste das que a linha costeira esteja atualmente submersa, ou elevada no flanco das
Cascades, o planalto do Colúmbia possui um clima semiárido, com diferen- montanhas, o que explicaria o fato de ainda não ter sido localizada.
ças marcadas de temperatura média entre o inverno e o verão. As florestas Seja como for, numerosos sítios da Colúmbia Britânica e dos estados de
existem apenas nas montanhas, e o restante da região consiste em savanas Washington e Oregon fornecem datas antigas e comparáveis: uma sequência
secas de artemísia com algumas pradarias ervosas, ambas desprovidas de de ocupação contínua, datando de pelo menos 12 mil anos, nos terraços do
vegetação arbustiva, exceto nos vales, onde crescem álamos e salgueiros. rio Fraser perto de Yale; projéteis de pedra lascada de 13 mil anos em Fort
Em direção ao sul, o planalto do Colúmbia se confunde progressiva- Rock Cave, no leste do Oregon; e, no leste de Washington, à margem do rio
mente com a Grande Bacia, enquanto a altitude vai aumentando. Na parte Palouse, ossamentos do homem chamado de Marmes, datados entre 11 e 13
meridional do Oregon, a região klamath ilustra essa transição. Aparenta-se à mil anos. Este último sítio foi constantemente ocupado desde o 9°. milênio
Grande Bacia do ponto de vista fisiográfico, mas em vez de os lagos alimen- até a época histórica (Borden 1965, Bryan 1969, Kirk 1968, Grosso 1962) e
tados pelo escoamento e sem desaguadouros naturais se secarem lentamen- seus níveis mais antigos parecem ser contemporâneos de outros sítios, como
te por evaporação após o fim do período de chuvas, os que se encontram Wilson Butte e Jaguar Cave, no sul de Idaho, onde foram encontrados ins-
ao longo das falhas são alimentados por fontes e riachos permanentes, e o trumentos de osso associados a vestígios de uma fauna extinta: felídeos, des-
rio Klamath lhes oferece uma saída para o oceano. Até recentemente, seu dentados, equídeos e camelídeos. Esse primeiro período teria possivelmente
nível permaneceu, assim, relativamente estável, regularidade essa que enco- durado do 13°. até o 9°. milênio antes de nossa era aproximadamente. Teria
rajava a busca de traços de ocupação humana antiga e contínua na região sido sucedido por um segundo período, até o 6°. milênio, de que um dos
(Cressman 1956: 377-82). sítios mais característicos seria o de Lind Coulee. Os primórdios da “velha
De modo geral, toda a região que acabamos de delimitar parece estar entre cultura da Cordilheira”, que se estende do Alasca até a Califórnia, teriam
as de ocupação mais antiga e regular do continente. Visto que o povoamento exercido sua influência desde esse período, atestada pela presença de pontas
da América realizou-se total ou parcialmente da Ásia pelo Estreito de Bering, de projéteis largas e lanceoladas. Ao mesmo tempo, apareceriam instrumen-
na época em que suas terras emergiam (infra, pp. 543-44) — ou, como cre- tos ligados não apenas à caça, mas destinados a moer ou triturar grãos e raí-
em alguns, por mar, durante o período de clima favorável localizado entre zes selvagens. A mesma evolução se delineia em Dalles, no médio Colúmbia,
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na entrada do desfiladeiro das Cascades, onde também podem ser observa- sob influências provenientes da Grande Bacia, a uma economia associada
das as primeiras adaptações a uma economia pesqueira que mais tarde se à exploração de produtos selvagens. Em seguida, a pesca — difícil para os
tornaria um aspecto típico das culturas do Planalto (Cressman 1960, Sanger habitantes da Bacia, devido à escassez de peixes em lagos sem comunicação
1967, Crabtree 1969, Osborne 1967, Browman & Munsell 1969). externa — teria assumido o primeiro plano numa região onde, como vimos
Um terceiro período, entre o 6°. e o 5°. milênios, corresponderia à plena (supra, p. 10), os lagos ligados à rede hidrográfica e ao mar eram ricos em
expansão da “velha cultura da Cordilheira”, atestada de ambos os lados das trutas, salmões e outras espécies. As aldeias do tipo historicamente conheci-
Cascades, na região de Puget Sound e no Planalto. Um conjunto complexo do aparecem por volta do século viii de nossa era (Cressman 1956).
de instrumentos de pedra e de osso, vestígios de cestaria e de tecelagem e, Do ponto de vista geográfico, a região habitada pelos índios Klamath
possivelmente, o emprego do propulsor, sugerem uma economia em que a se liga tanto à Grande Bacia quanto à cadeia das Cascades, mas distingue-se
caça e a pesca seriam complementadas pela coleta de plantas selvagens. É delas pela existência de consideráveis depósitos lacustres originários do
possível que nos períodos seguintes, entre o 5°. e o 2°. milênio, a pesca e a Plioceno que a recobrem parcialmente e dos quais emergem cones vulcâ-
coleta tenham-se tornado mais importantes do que a caça devido à progres- nicos isolados. As precipitações são baixas, mas suficientes para assegurar o
siva extinção dos grandes animais de caça, em decorrência das mudanças crescimentos de florestas de pinheiros entrecortadas por vastas savanas de
climáticas que tendiam para condições mais áridas. artemísia em solos secos, ou por pradarias ervosas ao longo dos rios e perto
Por volta de 4 650 antes de nossa era, a formidável erupção que destrui- dos lagos, onde também crescem álamos.
ria o monte Mazama — cuja localização é hoje marcada pelo Lago da Cra- Como em toda parte a oeste das Rochosas, a agricultura, juntamente
tera — projetou para muito longe de seu ponto de origem cinzas vulcânicas, com a cerâmica, está ausente. Talvez fosse melhor dizer desprezada, diante
que permitem determinar com precisão a data limite dos sítios que cobri- da abundância de recursos vegetais em estado selvagem, sob formas nem
ram. Foi também nessa época que apareceu uma indústria de micrólitos que sempre diretamente consumíveis, mas que a extrema engenhosidade técnica
revela influências setentrionais. Aproximadamente em meados do 2°. milênio, dos indígenas conseguia tornar próprias ao consumo. Entre os Klamath e,
encontram-se vários indícios de trabalho em madeira, como malhetes, enxós, em menor grau, entre os Modoc, os pântanos forneciam o nenúfar aquá-
cunhas e goivas — de pedra, chifre de cervídeo ou incisivos de roedores — e tico (Nufar polysepalum), cujos campos naturais cobriam vários milhares
dissemina-se o uso de casas semienterradas. Desde o início da era cristã, todas de hectares nos Klamath Marshes; em sua superfície, os grãos caídos, que
as características historicamente conhecidas das culturas do Planalto pare- formavam uma massa flutuante e mucilaginosa eram coletados de canoa. A
cem estar estabelecidas, e não ter variado durante os dezoito séculos seguintes, importância desses grãos — chamados woka — na alimentação pode ser
até a introdução do cavalo, por volta de 1 750. Mas as transações comerciais, avaliada pelo vocabulário: os Klamath possuíam cinco palavras diferentes
que tinham muita importância na vida daquelas populações, têm uma ori- para designá-los, segundo seu estágio de maturação e o estado fresco ou
gem muito mais antiga, já que conchas marinhas encontradas nas escavações podre do invólucro. Para limpar a amêndoa de sua mucilagem, era preciso
datam de pelo menos seis ou sete milênios (Browman & Munsell 1969). deixá-la fermentar na água ou submetê-la a um cozimento prévio no vapor,
Voltemos agora nossa atenção para a região sul do Planalto, na fronteira e em seguida sacudir os grãos com uma mistura abrasiva de pó de madei-
entre o Oregon e a Califórnia, onde começará nossa investigação. Emerge ali ra, carvão e cinzas. Em seguida, eram grelhadas num cesto cheio de brasas
um quadro semelhante. Diversos sítios da terra klamath parecem ser habi- e, finalmente, moídas com uma pedra especialmente destinada a isso, com
tados há pelo menos 6 500 anos, pois as cinzas projetadas pela erupção do duas protuberâncias esculpidas no corpo para facilitar seu manuseio.
monte Mazama cobrem suas camadas inferiores. Vários indícios há de que Além dos nenúfares, os Klamath e os Modoc exploravam todos as espé-
se deve supor datas ainda mais recuadas para elas: sandália de fibra vegetal cies de raízes, bulbos, tubérculos e rizomas, entre os quais se sobressaem
encontrada em Fort Rock e datada por radiocarbono de pelo menos 9 mil uma liliácea (Camassia quamash, esculenta) e uma umbelífera, o falso comi-
anos, além de instrumentos líticos associados a ossadas de equídeos, came- nho (Carum oregonum); coletavam ainda bagas, grãos e frutos selvagens,
lídeos e talvez também mamutes. Em termos gerais, uma economia arcaica, líqen comestível e a resina açucarada de certas coníferas de cujo tronco des-
baseada essencialmente na caça, parece ter progressivamente cedido lugar, cascado retiravam o câmbio tenro entre abril e maio. Nos lagos e pântanos,
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cresciam também juncos, junças e caniços utilizados para trançar esteiras, Tanto os Klamath quanto os Modoc realizavam casamentos por inter-
chapéus em forma de calota e cestos. médio de visitas recíprocas e troca de presentes entre as famílias; não devia
A coleta de bulbos e raízes ocupava as mulheres durante os meses de haver nenhuma relação de parentesco conhecida entre os cônjuges, embora
julho e agosto, a dos grãos de nenúfar em seguida, em setembro e outubro. pudessem pertencer ao mesmo território, ou até à mesma aldeia. A poliga-
Durante todo esse período estival, em que os homens caçavam e ocasional- mia era permitida, e a poliginia sororal, frequente. A residência, patrilocal
mente pescavam, eram abandonadas nas aldeias de inverno as grandes casas entre os Klamath (exceto no caso de um marido pobre ou sem parentes) pas-
semienterradas, cada uma das quais abrigava várias famílias, e a população sava, entre os Modoc, de um tipo provisoriamente patrilocal a uma forma
se dispersava em cabanas de ramagem cobertas com esteiras. Essa existên- matrilocal estável, precedendo, eventualmente, a escolha de uma residência
cia seminômade se encerrava em outubro e novembro, meses dedicados à independente. O sistema de parentesco compreendia uma série de termos
coleta de grãos e de bagas. Então eram reconstruídas as casas, cuja carpinta- ordinais correspondentes às fases da vida e ao status matrimonial. O sexo do
ria havia sido desmontada e guardada, e todos ali permaneciam recolhidos genitor de conexão servia para diferenciar os ascendentes e seus colaterais, o
durante os meses de inverno, consagrados às celebrações rituais. O degelo de ego, para diferenciar os germanos e seus descendentes. Termos recíprocos
e o derretimento da neve ocorriam em maio, quando começava a grande prevaleciam entre indivíduos separados por uma geração, bem como entre
estação de pesca, que durava até junho. Os peixes, pescados com rede ou irmã do marido e filhos do irmão da esposa. Cinco termos especificavam os
com nassa, eram postos a secar ao sol como provisão para o inverno, mas germanos em função da idade relativa e do sexo. Além disso, a terminologia
não defumados. dos germanos se estendia a todos os primos de ego, e aquela que designava
Os Klamath, assim designados por um nome de origem desconhecida, tios e tias, a todos os primos de seus genitores. Um único termo amalgamava
chamavam a si mesmos ma’klaks, “os homens”. Junto com seus vizinhos os graus mais afastados. A terminologia de aliança, reduzida à sua mais sim-
meridionais, os Modoc do norte da Califórnia, formam um grupo linguís- ples expressão, compreendia dois termos recíprocos, designando respectiva-
tico antigamente conhecido pelo nome de Lutuami e cujo grau de afinidade mente os maridos de duas irmãs e as esposas de dois irmãos.
com a família Sahaptin é incerto (Voegelin 1964, Aoki 1963). As culturas dos O nascimento ocorria fora de casa. A parturiente era ritualmente “cozida”
Klamath e dos Modoc se pareciam em vários aspectos: mesma exploração num leito de pedras aquecidas, submetida a um regime alimentar extrema-
intensiva de bulbos, raízes e grãos selvagens, mesmo emprego de tecidos de mente rígido e a diversas obrigações, tais como a utilização de um ins-
fibra ou de casca de árvore que, antes da introdução das roupas de pele, sob trumento para coçar a própria cabeça, igualmente obrigatória para mulhe-
influência das Planícies, forneciam a base da vestimenta, mesma prática de res isoladas durante a menstruação e em caso de luto. Rapazes e moças eram
cremação dos cadáveres junto com os bens materiais do defunto e oferendas, submetidos a provas de iniciação. Eles se isolavam em locais ermos, onde
mesmos ritos de iniciação durante os quais os noviços empilhavam rochas e deviam empilhar pedras, mergulhar na água gelada de lagos e rios, escalar
pedras, formando montículos.* Contudo, entre os Modoc a pesca era menos picos, correr e jejuar, com o objetivo de obter visões que revelariam seu espí-
importante do que a caça. Mais influenciados pelas culturas californianas, rito guardião. Elas tinham de dançar, sem parar nem cair, durante cinco noi-
eles também tinham um temperamento mais guerreiro, e mantinham seus tes consecutivas e, durante o dia, isolar-se numa cabana no mato e respeitar
prisioneiros de guerra como escravos, ao passo que os Klamath, de regime várias proibições, tais como tocar a própria cabeça, pentear-se ou lavar-se e
social menos diferenciado, geralmente preferiam vendê-los nas grandes fei- consumir carne ou peixe.
ras intertribais do Colúmbia. A aquisição e emprego de espíritos protetores Como dissemos, os Klamath e os Modoc incineravam os cadáveres em
eram um privilégio dos xamãs modoc, à diferença do que ocorria entre os piras construídas em locais sagrados. Os Modoc às vezes também sacrifi-
Klamath, onde qualquer pessoa podia possuí-los, contanto que tivesse capa- cavam, do mesmo modo, um escravo ou um cavalo previamente imolados,
cidade para tanto. a menos que um espectador os comprasse mediante uma oferta de mes-
Ú mo valor. Os parentes próximos em luto se submetiam a banhos de vapor
*
O autor utiliza aqui a palavra “cairn”, que remete aos montículos de terra e pedras em estufas especiais que, segundo se dizia, haviam sido construídas pelo
erigidos pelos Celtas na Bretanha, na Escócia e na Irlanda. [n.t.] demiurgo, e a uma busca mística para reconquistar os poderes espirituais
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que tinham perdido em decorrência da provação, prostrando-os num orador persuasivo nas assembleias comunitárias, de que participavam os
estado de abandono que demonstravam ao recusar os produtos de sua caça, adultos de ambos os sexos. A chefia parece ter surgido mais tardiamente
pesca ou coleta e ganhos no jogo. Pois os Klamath e os Modoc eram apaixo- entre os Klamath, cuja vida social era basicamente regida por uma duali-
nados pelo jogo, e seus campeões gozavam de um prestígio que se estendia dade tradicional entre os xamãs e os ricos. De fato, a mesma palavra, lagi,
para além das fronteiras tribais. Reencontraremos esse aspecto da cultura designa o chefe e o homem rico que possui várias mulheres, cavalos, arma-
indígena quando discutirmos mitos em que o jogo ocupa um lugar de des- duras de guerra em couro ou placas de madeira, aljavas decoradas e peles
taque (infra, pp. 28, 313-14). preciosas. Além desses bens materiais, o chefe tinha de ter sucesso na guer-
Como a maior parte dos povos do planalto, os Klamath não tinham orga- ra, deter poderes sobrenaturais excepcionais e comprovar dons oratórios.
nização política. Subdividiam-se em quatro ou cinco grupos locais e autô- Embora não fosse propriamente hereditária, a chefia certamente se manti-
nomos, entre os quais o compartilhamento de uma língua e de uma cultura nha na mesma linhagem.
alimentava um vago sentimento de solidariedade, que se manifestava, oca- As crenças religiosas dos Klamath e dos Modoc se organizavam de modo
sionalmente, diante de estrangeiros, e fazia as vezes de unidade tribal. Uma bastante frouxo em torno de dois polos. De um lado, o personagem do
zona de alguns quilômetros que ninguém reivindicava separava os territó- demiurgo, criador da humanidade e das plantas comestíveis, instaurador do
rios dos grupos locais, entre os quais às vezes estouravam conflitos. Quando xamanismo e dos ritos de sudação. De outro, uma rede de lugares nomea-
isso acontecia, procuravam destruir as aldeias e os bens de seus adversários e dos, frequentados por espíritos de aparências diversas e diferentes povos de
capturar mulheres e crianças, para vendê-las como escravas a povos estran- gigantes, anões e espíritos recém-nascidos. Os fantasmas dos mortos, muitas
geiros. Esses grupos locais, de tamanho bastante variável, podiam incluir de vezes recusados pelo além — mundo invertido situado bem longe, a leste
uma a trinta aldeias. O mais importante deles, que equivalia sozinho a mais — assombravam a terra, em busca de almas vivas para capturar. A alma se
da metade do total, afirmava ter sido criado primeiro, considerava-se supe- sediava no coração e o deixava quando as carnes envolvendo o órgão aca-
rior aos demais e proclamava seu chefe superior aos dos outros grupos. bavam de queimar na pira funerária. Fenômenos naturais, tais como nuvens,
Os Klamath guerreavam ocasionalmente contra seus vizinhos Shasta, trovão, raio, sol, lua, estrelas e vento também eram personificados.
Takelma, Paiute, Kalapuya e Achomawi, principalmente por motivos comer- Entre os Klamath, qualquer indivíduo, de ambos os sexos, que estives-
ciais. Grandes comerciantes, eles levavam às feiras intertribais de Dalles se convencido de possuir poderes superiores à média podia tornar-se xamã
escravos e outros frutos de suas pilhagens, para trocá-los por cavalos. Por e realizar curas, durante as quais seus espíritos guardiões o possuíam. Os
outro lado, tinham relações pacíficas com os Modoc, os Molala, os Tenino, xamãs moravam em grandes casas decoradas com pinturas e animais empa-
os Wishram e os Wasko. Os Modoc, mais decididamente belicosos, possuíam, lhados que representavam esses espíritos. Uma estátua de madeira escul-
além de um chefe civil, um chefe de guerra vitalício, mas sua consciência pida, ornamentada com penas, também representando um espírito, ficava
tribal excluía os conflitos internos frequentes entre os Klamath, provocados no alto do teto. Distinguiam-se, na aparência, por pica-paus de cabeça ver-
pela vingança de um homem contra seus sogros caso ele fosse originário de melha mortos usados como diadema ou num colar, penachos ou colares de
outro grupo local e residisse com eles, ou de uma aldeia contra outra, devi- penas de pica-pau dourado, uma touca de visão ou texugo emplumada, um
do a assassinatos, com a exigência de que o culpado fosse entregue ou que colar de garras de urso e o rosto enegrecido.
uma compensação material fosse paga em seu lugar. Em todos os casos, uma Um período chamado “sem nome” ia de dezembro a janeiro. O pior frio
pantomima guerreira e ritos xamânicos precediam as expedições, e danças já tinha chegado, mas as provisões de inverno ainda eram abundantes, e essa
eram realizadas na volta, em presença dos prisioneiros capturados e sur- época do ano era escolhida para a celebração de ritos dedicados à institui-
rados, enquanto eram exibidos como troféus os membros arrancados dos ção dos xamãs. Um numeroso público, convocado para a ocasião, assistia.
cadáveres, e as mulheres agitavam escalpos enfiados na ponta de varas. Os O porta-voz do xamã traduzia para esse público as palavras ininteligíveis
Modoc se contentavam com um único escalpo, que queimavam. que seu mestre pronunciava depressa demais ou tapando a boca com a mão,
Eles também repartiam o poder entre o chefe de guerra, o xamã e o chefe para deformá-las. Durante a cerimônia, que durava cinco dias e cinco noites,
civil e político. Este, sem poder de coerção, devia sobretudo mostrar-se um o xamã dançava e executava números de prestidigitação, engolindo fogo ou
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uma corda com pontas de flecha, fazendo aparecer e desaparecer diversos gravemente atingidas pela Corrida do ouro, iniciada em 1848, que provoca-
objetos, engolindo-os ou cuspindo-os, assim como grandes quantidades de ria conflitos sangrentos com os Brancos. Os Klamath e os Modoc cederam
água, animando animais empalhados ou produzindo magicamente peixes, seus territórios ao governo americano — que adquiriu a Califórnia em 1846
grãos ou sangue, num cesto impermeável cheio de água. Além de cuidar dos e o Oregon dois anos depois —, mas os Modoc se revoltaram contra as con-
doentes, os xamãs klamath controlavam o tempo, encontravam objetos per- dições de vida na reserva, e acabaram sendo finalmente vencidos e reduzi-
didos e se dedicavam a outras formas de adivinhação. dos apenas em 1873. A cultura não estava mais viva, portanto, quando Gats-
O xamanismo modoc apresentava características bastante diferentes. chet e Curtin iniciaram o registro de seus costumes e tradições. A admirável
Apenas os xamãs podiam obter protetores sobrenaturais, graças a uma monografia de Spier, elaborada em 1925-26, apresenta um caráter ainda mais
busca, como na Califórnia, ou em sonhos, como nas Planícies. O período marcado de reconstituição. Felizmente, além desses inventários posteriores
mais favorável para a aquisição desses poderes se estendia do casamento até à morte de um mundo, temos coletâneas de mitos que nunca deixaram de
a aproximação da velhice para os homens, e depois da menopausa para as ser contados, e ainda hoje o são, e que preservam algo do espírito e das moti-
mulheres, pois os espíritos tinham aversão ao sangue menstrual. O procedi- vações íntimas de uma cultura extinta há um século.
mento iniciático era muito mais longo e complexo do que entre os Klamath; Está assim montado o cenário do primeiro ato deste livro, e situada sua
a entrada definitiva na corporação ocorria no inverno, a pedido do candi- cena de ação. Porém, antes de se levantarem as cortinas, cabe esclarecer que
dato, que organizava a cerimônia, oficiava, alimentava e pagava os partici- as páginas que seguem condensam a matéria de meus cursos no Collège de
pantes. O novo xamã devia celebrar os ritos de inverno durante cinco anos France nos anos acadêmicos de 1965-1966, 1967-1968, 1969-1970 e 1970-1971.
consecutivos (Miller 1873, Gatschet 1890, Bancroft 1875-76, Curtis 1907-30, A do curso de 1966-1967 inseriu-se melhor em A origem dos modos à mesa
v. 13, Spier 1930, Barett 1955, Ray 1963, T. Stern 1965). (Sexta Parte). O curso de 1968-1969, por sua vez, foi inteiramente dedicado
A secura da descrição acima não se deve apenas a seu caráter de resumo. à solução de uma dificuldade que eu encontrara ao abordar a mitologia dos
Na verdade, quase todas as informações de que dispomos acerca dos Kla- Salish: como que sob o efeito de uma dupla retração, uma série mítica com-
math e dos Modoc provêm de velhos informantes confinados em reservas, e partilhada com os Klamath-Modoc e os Sahaptin se projeta para o norte sob
que contaram, a partir de suas lembranças, seu antigo modo de vida, desapa- a forma de duas séries paralelas que se recobrem parcialmente, uma relativa
recido já por volta de 1870. O planalto do Colúmbia foi frequentado desde o ao fogo e à água, a outra ao nevoeiro e ao vento. Era portanto necessário
século xviii pelos coureurs de bois* canadenses, em seguida por empregados elucidar a natureza desse fenômeno, e também compreender porque tantos
da Hudson Bay Company, e mais tarde, da Northwest Fur Company. Muito elementos emprestados do folclore francês, ouvido pelos índios da boca dos
pouco subsiste, no entanto, dos primeiros testemunhos. Para que os índios coureurs de bois canadenses, se inseriam preferencialmente na segunda série.
do Planalto entrassem na literatura, seria preciso esperar pelo relato de Lewis Uma vez delimitado o problema e, esperamos, resolvido, a análise compara-
e Clark, após sua travessia do continente em 1805-06, e os dos viajantes que tiva podia retomar seu caminho. Contudo, evitando alongar ainda mais um
os sucederam. Mesmo assim, trata-se de fragmentos e menções episódicas, livro já muito maior do que seus antecessores, decidi não incluir aqui esse
cujo suporte humano já estava se decompondo, sob o efeito das epidemias desenvolvimento anexo, ao qual se aludirá, contudo, frequentemente.*
de varíola que, desde 1830, dizimavam as populações indígenas, ainda mais Além dessas dificuldades maiores, outras interromperam, duas vezes, a
redação, bastante lenta devido ao fato de o quarto volume não ser apenas
Ú a sequência dos demais, devendo reunir e ligar os fios que ficaram soltos ao
*
Na Nova França, os coureurs de bois eram comerciantes de peles independentes que se longo de toda a exposição: primeiramente, os acontecimentos de maio de
aventuravam pelo interior do continente para estabelecer relações com povos indígenas
1968, que geraram meses de um clima pouco propício à concentração inte-
distantes dos centros coloniais. Embora a atividade fosse proibida pelas autoridades
lectual e, além disso, durante o inverno de 1968-1969, problemas de saúde.
coloniais, os coureurs de bois, cada vez mais numerosos a partir da segunda metade
do século xvii, tornaram-se indispensáveis para a própria manutenção do comércio Ú
*
de peles. Foram, assim, os primeiros europeus a estabelecer contato com numerosos Essas questões serão retomadas e discutidas por Lévi-Strauss em seu último livro
grupos indígenas norte-americanos. [n.t.] dedicado à mitologia ameríndia, História de Lince, de 1991. [n.t.]
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Finalmente, as lacunas e incertezas multiplicaram os obstáculos, muitos
dos quais não teriam podido ser superados sem o auxílio de colegas a quem
expresso aqui meu reconhecimento. S. Débarbat, do Observatório de Paris,
os professores D. H. Hymes, da Universidade da Pensilvânia, B. J. Rigsby, da
Universidade do Novo México, T. Stern, da Universidade de Oregon, o sau-
doso J. Rousseau, da Universidade de Montréal, P. e E. Maranda, da Univer-
sidade da Colúmbia Britânica, E. Wolff e P. Gourou, do Collège de France,
ofereceram-me gentilmente informações preciosas de ordem astronômica,
linguística, geográfica, zoológica e botânica, bem como documentos inédi-
tos. René Leibowitz, em nada responsável pelas ideias que avanço no finale
acerca da música, dispôs-se a ler e discutir essa parte do texto, ajudando-me
assim a tornar mais precisos os pensamentos e a expressão. Devo à benevo-
lência de John Hess, do escritório parisiense do New York Times, aos serviços
desse jornal em Nova York e aos do Seattle Times a fotografia de Pillar Rock
(Ilustração 1), que apresenta um feliz paralelismo com a primeira ilustra-
ção que aparece em O cru e o cozido [a foto da chapada, reunida a outras
fotos na nossa edição: talvez seja preciso descrever a foto, e mudar a redação
deste trecho em consequência, além de trocar “ilustração” por foto, se todas
as “planches” forem efetivamente fotos...]. Yvan Simonis da Universidade de
Montréal, por sua vez, obteve para mim o documento da ilustração iv, tira-
da da edição original da Relation do Padre Dablon (1672), aparentemente
menos difícil de consultar lá do que em Paris, já que enquanto eu preparava
este livro, o exemplar da Biblioteca Nacional tinha aparentemente desapa-
recido. O Dr. Audrey Hawthorn, conservador do Museu de Antropologia
da Universidade de Vancouver, forneceu-me e autorizou-me a reproduzir o
documento da ilustração iii. Graças à amável intermediação de Charles Rat-
ton, Jean-Paul Barbier colocou à minha disposição, para ser fotografado, o
bronze de Amlash que aparece na quarta capa.
Finalmente, como hei de expressar minha gratidão para com um pintor
por cuja obra sempre senti uma predileção particular? Informado por um
amigo comum de que eu gostava de imaginar o mito de referência pintado
por ele, Paul Delvaux teve a gentileza de ornar a capa [idem acima] deste
livro com uma obra original, pela qual o editor e eu mesmo lhe somos pro-
fundamente gratos.
Nicole Belmont ajudou-me a reunir a documentação, Jacqueline Duver-
nay traduziu as fontes alemãs, Evelyne Guedj datilografou o manuscrito,
J.-M. Chavy desenhou os mapas e os diagramas. Agradeço a todas e a todos,
bem como à minha esposa, que releu as provas.
20 | Prólogo Prólogo | 21
P R I M E I R A PA RT E
Segredos de família
22 | | 23
i. A criança escondida
Incest is fine as long as it’s kept in the family Ao longo do volume anterior (omm, pp. 164, 206, 250), evidenciou-se que o
Citado por Playboy, out. 1965, p. 43 mito do desaninhador de pássaros, na América do Sul, e o das esposas dos
astros, na América do Norte, pertencem a um único grupo de transforma-
ção. Isso já se manifestava no fato, demonstrado desde O cru e o cozido, de
que os mitos sul-americanos sobre a origem do fogo ou da água vêm acom-
panhados por uma série paralela cuja heroína é uma estrela, esposa de um
mortal (M₈₇-M₉₂); pois bem, essa série, relativa à origem das plantas cultiva-
das, inverte, do ponto de vista dos sexos, a série norte-americana do marido-
estrela, da qual faz parte, justamente, a história das esposas dos astros.
No decorrer deste livro, deveremos explorar mais a fundo a estrutura
desse vasto conjunto mítico, que praticamente cobre o Novo Mundo. Porém,
tendo já evidenciado a presença e o papel dos mesmos mitos nos dois hemis-
férios, por vezes numa forma transfigurada, não poderíamos deixar de assi-
nalar os casos em que o mito de referência (M₁, M₇-M₁₂) aparece, na Amé-
rica do Norte, em forma literal; uma ocorrência ainda mais digna de nota
na medida em que se localiza numa região delimitada aproximadamente
Ú
*
“Trazei-o, trazei a Brômio, que outrora em transes do parto fatal, imaturo saiu do
ventre materno, por força do raio alado de Zeus. Fulminada a mãe deixou a vida, mas
logo Zeus Crônida novo tálamo ao filho apronta, na própria coxa o abriga, com fíbulas
de ouro o encerra, de resguardo aos olhos de Here.” [n. e.]
24 | A criança escondida | 25
pela bacia do rio Klamath ao sul e pela do rio Fraser ao norte, ou seja, um
território restrito quando se o avalia na escala do continente, e situado na
parte ocidental e setentrional da América do Norte, isto é, bastante longe
das regiões tropicais da América do Sul, onde as versões homólogas ocupam,
igualmente, um território relativamente restrito e contínuo (fig. 1).
Para levarmos a cabo esta investigação, triplamente dificultada pela dis-
tância entre as áreas geográficas, pelo elevado número de versões disponíveis
e, finalmente, pela diversidade linguística e cultural dos grupos de que elas
provêm, adotaremos um método híbrido, em parte sistemático e em parte geo-
gráfico. Caminhando do sul em direção ao norte, começaremos por isolar um
pequeno grupo de variantes, cuja
distribuição parece ser contínua
num pequeno território situado nos
confins do norte da Califórnia e na
parte meridional do atual estado de
Oregon, não obstante a heterogenei-
dade das tribos em questão, metade III
das quais pertencentes à família lin-
guística klamath-modoc, que ocupa
uma posição isolada no seio do
II
vasto grupo penutiano, enquanto a
outra metade — que compreende os
Shasta, Atsugewi, Achomawi e Yana
— pertence à família hokan. Num I I Klamath-Modoc até
os Shasta e Yana
segundo momento, examinaremos II Sahaptin
III Salish
as versões dos Sahaptin setentrio-
nais e de seus vizinhos Chinook, e
finalmente, num terceiro momento, [ 2 ] Principais populações tratadas neste livro.
as das tribos da família linguística
salish que se estende pelo território canadense adentro. Por razões que os pro-
gressos da arqueologia e da linguística talvez um dia esclareçam, esse modo de
dispor os materiais permite encerrar uma etapa, a cada estágio da análise (fig. 2).
Abordamos primeiramente o conjunto klamath-modoc, situando-nos
em um ponto de vista arqueológico e etnográfico, no prólogo, e, por uma
razão da mesma ordem, começaremos pela análise de documentos anti-
gos, aqueles colhidos por Albert S. Gatschet, por volta de 1877. Eles perten-
cem à gesta do herói cultural Aishísh que, nota esse autor, se apresenta na
“forma de um longo ciclo de mitos aparentados” (Gatschet 1890, i: lxxxv n.;
[ 1 ] Áreas de distribuição do mito de referência nas duas Américas. cf. Barker 1963a: 22):
A criança escondida | 27
M 529 KLAMATH-MODOC: NASCIMENTO DO HERÓI Kmúkamch pegou as roupas do filho e assumiu sua aparência física. Apenas a
nora que ele cobiçava se deixou enganar; as outras o rejeitaram, certas de que ele
Antigamente, uma jovem chamada Letkakáwash, levando seu bebê nas costas, como não era seu marido.
costumam fazer as mães indígenas, fez uma pira para incinerar o cadáver de uma Preso no alto da árvore e sem comida, Aishísh ficou pele e osso. Duas moças-bor-
feiticeira. Na verdade, ela queria ela própria morrer ali com a criança. O demiurgo boletas o acharam. Trouxeram-lhe água e comida, limparam seus cabelos, untaram
Kmúkamch surpreendeu-a no exato momento em que ela se jogava no fogo, mas de óleo seu corpo descarnado, e o levaram para baixo em seu cesto.
só conseguiu salvar o bebê. Sem saber o que fazer com o pequeno ser, enfiou-o no Aishísh partiu em busca de suas mulheres. Achou Tchika (tentilhão) e Klétish
joelho, voltou para casa e lamentou-se junto à filha de ter contraído uma úlcera que (grou do Canadá), arrancando raízes selvagens. O filho da primeira foi o primeiro
doía muito. A filha tentou extrair o pus e, para sua grande surpresa, uma criança saiu a reconhecê-lo. As duas mulheres, e depois uma terceira, chamada Tûhûsh, gali-
da ferida. nha d’água (Fulica americana), receberam com alegria o marido, que consideravam
Como o bebê chorava sem parar, seu “pai” resolveu dar-lhe um nome para acal- morto. Ele deu às três colares feitos com os espinhos de porcos-espinhos que ele
má-lo. Listou vários, sem resultado. Quando ele chegou ao nome Aishílamnash, que tinha matado.
significa “o que foi guardado no corpo”, as crises de choro começaram a se espaçar, e Informado de que seu filho tinha voltado, Kmúkamch se preparou para recebê-lo.
cessaram completamente quando a criança ouviu o nome Aishísh e o aceitou. Assim, O herói mandou o filho pegar brincando o cachimbo do avô e jogá-lo no fogo. Assim
ele cresceu junto ao seu pai de criação. Tornou-se especialista na confecção de rou- que ele queimou, Kmúkamch morreu. Mais tarde, ele ressucitou, e quis se vingar do
pas luxuosas, além disso grande jogador, e sempre vencedor, mesmo contra seu pai, filho incendiando a resina com que tinha coberto o céu. Um lago de resina derretida
que por isso ficou com inveja dele. (Gatschet 1890, i: lxxxv-lxxxvi) cobriu a terra, mas Aishísh conseguiu proteger sua casa. Sua terceira mulher, Tûhûsh,
quis dar uma espiada fora da casa, e uma gota de resina caiu-lhe na testa. As gali-
A identidade da feiticeira e a razão do suicídio da jovem mulher serão revela- nhas d’água possuem a marca até hoje. (Gatschet 1890, i: 94-97)
das mais tarde. O nome da heroína, Letkakáwash, designa o tangará de cabe-
ça vermelha (Pyranga ludoviciana), um passarinho cujo macho possui uma M 530B KLAMATH: O DESANINHADOR DE PÁSSAROS (2)
plumagem reprodutiva muito colorida. O nome do demiurgo, que Barker
transcreve /gmokamč/, pode ser analisado em /gmoč/, “ser velho”, mais o Aishísh era grande especialista em jogos de perícia e de azar. Quando iam jogar, ele
aumentativo /?mč/, ou seja, “o muito velho”. Aishísh (Barker: /?aysis/) vem e seus companheiros acendiam fogueiras ao longo do caminho. A chama do fogo
do verdo /?aysi/, “esconder, guardar” e significa portanto “o escondido” ou de Aishísh tinha um brilho violáceo, o fogo de Raposa prateada era amarelo, o de
“o guardado”. Os mitos a seguir descrevem os personagens mais detalhada- Kmúkamch só fazia uma fumaça densa. Nas competições de arco e flecha, Aishísh
mente e narram suas rixas: ganhava sempre; e nos outros jogos de apostas, ele embolsava o bolo todo.
Aishísh tinha cinco mulheres: Galinha-d’água, Esquilo-de-rabo-grande, Grou-
M 530A KLAMATH: O DESANINHADOR DE PÁSSAROS (1) do-Canadá, Pato-Selvagem e Tentilhão. Kmúkamch, que cobiçava a segunda, quis
matar o filho. Disse que tinha se lembrado de um lugar onde seu falecido pai ia caçar
Conta-se que na aurora dos tempos, o demiurgo Kmúkamch, que vivia junto com seu águias, levou Aishísh até lá e o fez subir no alto de um pinheiro /kápka/, ficando tão
filho Aishísh, pos-se a criar as coisas e os seres, especialmente os peixes. Construiu alto que o herói não conseguiu mais descer, e em cujo ninho, aliás, só havia passari-
uma barragem, para que os índios pudessem pescar bastante quando o vento sul nhos bem comuns.
secava o leito do rio. Kmúkamch vestiu as roupas do filho e assumiu sua aparência. Apressou-se em
Mas Kmúkamch se apaixonou por uma das esposas de seu filho e quis livrar-se dele. dormir com a mulher que desejava, mas nem ela nem as demais acreditaram que ele
Disse que os pássaros pousados numa planta de /kenáwat/ eram águias, e mandou o fosse realmente o seu marido. Os parceiros costumeiros de Aishísh tampouco se dei-
filho ir capturá-las, tirando antes a túnica, o cinto e sua faixa frontal. O herói, desnudado, xaram convencer, pois, em vez de chamas que subiam até bem alto no céu, a fogueira
subiu e só encontrou filhotes de aves comuns. Enquanto isso, a planta tinha crescido do usurpador produzia uma fumaça rasteira e suas flechas sempre erravam o alvo.
tanto que Aishísh não conseguiu descer de volta; refugiou-se no ninho, e esperou. Os companheiros sentiam tanta falta de Aishísh que perderam a vontade de jogar.
Essa versão restitui, ainda de modo mais fiel do que a primeira parte de M₅₃₈ M 541 MODOC: GESTA DE AISHÍSH
e M₅₃₉, o mito de Dona Mergulhão. Mas notam-se ao mesmo tempo mudan-
ças significativas em relação às versões anteriores. Em vez de contrair um Antigamente, havia uma moça que vivia com seus cinco irmãos na margem sul do
casamento exogâmico, a irmã incestuosa é uma solteirona convicta. Rejeita lago Klamath. Ela se chamava Látkakáwas. Todos os dias, seus irmãos iam pescar de
um bom partido, e se recusa a deixar a casa da família, para não se afastar canoa perto de uma ilha no meio do lago. Látkakáwas cozinhava para eles, e só saía
do irmão que ama, ao passo que sua homóloga de M₅₃₈-M₅₃₉ apenas visita a de casa para coletar grãos selvagens. Enquanto trabalhava, ela parecia uma velha,
família com mais frequência do que convém. Consequentemente, o retrato mas “quando se sacudia e saía, parecia jovem, azul e belíssima”.
da irmã incestuosa é traçado com mais vigor em M₅₄₀, e para compô-lo, o Kmúkamch, o Ancião [Kumush em modoc; continuamos usando seu nome kla-
mito utiliza cores mais intensas. A comutabilidade entre mãe e filha, que per- math] vivia na margem leste do lago. Todos os muitos homens que viviam na mar-
mitia relançar a intriga dos mitos anteriores, em compensação, mal subsiste gem oeste admiravam a beleza de Látkakáwas quando ela abandonava a aparência
neste, na forma de leve indicação, quando a filha propõe ironicamente à mãe de velha corcunda. Todos os rapazes dessa aldeia tentaram, um após o outro, pegá-la
que se case com o marido que se lhe destina. Na verdade, a intriga de M₅₄₀ de surpresa. Mas assim que chegavam à casa, só encontravam uma velha e, frustra-
não precisa ser relançada, pois que desemboca diretamente na ressureição dos, zombavam dela.
coletiva que em geral conclui o mito da Dona Mergulhão. Durante todo o dia, os irmãos da heroína pescavam e secavam salmões. Só
A protagonista de M₅₄₀ não é apenas transformada de casada em solteira. voltavam à noite. Certa noite, ela se queixou junto ao irmão mais velho das visitas
Ela também se desdobra em duas irmãs de caráter oposto. Aqui tomamos o desagradáveis que recebia. Ele lhe prometeu que, assim que ela tivesse terminado a
verbo numa acepção figurada, mas sem esquecermos que os demais mitos coleta de grãos selvagens, ele a levaria para a ilha, onde ninguém viria atormentá-la.
descrevem um desdobramento que deve ser entendido no sentido próprio, já A oeste do lago, vivia também um rapaz tão belo que seu pai o mantinha escon-
que envolve um personagem formado por duas crianças coladas uma à outra. dido num cesto enterrado no chão. Depois de todos os rapazes da aldeia terem falha-
A caçula de M₅₄₀, que decapita a irmã mais velha e provoca sua metamor- do junto a Látkakáwas, ele foi tirado de seu esconderijo e vestido com roupas luxuo-
fose em ave aquática, desempenha, portanto, o mesmo papel que a sobrinha sas. Ele era “azul, dourado, verde, como as nuvens do céu”, e sua beleza ia além da
de M₅₃₈, que também mata sua tia incestuosa e a transforma em pássaro e que, imaginação. Deram-lhe também poderes mágicos, para que viajasse por debaixo da
contudo, se parece com ela, já que nutre pelo próprio irmão os mesmos senti- terra e surpreendesse a heroína ao nascer do dia. Ela percebeu sua presença, gostou
mentos que a outra tinha em relação ao dela. De modo que, num caso, o mito dele, e não assumiu o aspecto de velha. Mas eles não trocaram nem uma palavra, e
põe em cena uma tia e sua sobrinha, que se opõem embora se pareçam e, no Látkakáwas contou todo o ocorrido aos irmãos.
outro, põe em cena duas irmãs, também de idades diferentes, mas que se opõem Eles resolveram adiantar a mudança para a ilha para o dia seguinte. Ao cair da
porque não se parecem. Vimos que M₅₃₉, por sua vez, transforma a sobrinha e o noite, tinham pescado dois salmões grandes. Iriam prepará-los ao amanhecer, e em
sobrinho de M₅₃₈ em gêmeos de mesmo sexo, entre os quais a intriga, contudo, seguida voltariam para buscar a irmã que, enquanto isso, arrumaria sua bagagem.
introduz uma diferença de idade artificiosa. São irmãos, como as irmãs de M₅₄₀, Mas assim que eles saíram, o visitante do oeste apareceu, e brilhava tanto que a
mas de sexo oposto ao delas, e se parecem no plano moral a ponto de realiza- moça ficou maravilhada.
rem juntos a mesma execução capital de que os outros mitos encarregam um No decorrer da manhã, os irmãos chegaram e começaram a desmontar a casa.
único dos dois personagens, que então a efetua na pessoa do outro. Ao meio-dia, estenderam uma passarela de esteiras até a canoa, para que a irmã
Deixaremos temporariamente de lado este último estágio da permutação, andasse por ela. Ao pôr os pés na embarcação, ela esqueceu completamente seu
para nos debruçarmos sobre o que é ilustrado por M₅₄₀. Este, com efeito, visitante e o amor que ele lhe tinha inspirado. No entanto, ele estava lá, invisível, e
esboça uma inversão de M₅₃₈-M₅₃₉ que agora cumpre considerar, pois per- segurava a canoa. Os irmãos se esforçaram em vão até o meio da tarde, quando ele
tence manifestamente ao mesmo grupo que as transformações precedentes, finalmente deixou que partissem.
R.
son
Aishísh” (M₅₄₃; Curtin 1912: 37), talvez corresponda aos arredores da cidade
am
Willi
Albert L.
de Bligh ou Bly, no vale do alto Sprague, às portas das terras paiute (cf. Barker kowacdi
1964: 211, /blay/, “acima, alto”; Gatschet 1890, ii: 215, /m’lai/, “abrupto”, forman- Sprag
ue Riv
er
do o nome de várias montanhas). A identidade do monte Kta’ilawetes (de /
qday/, “rocha”?) é incerta. O texto do mito situa o monte Du’ilast, onde os Mt. Pitt
bligh
nihlaksi
heróis se separam, a leste do lago Tule. M₅₄₃ (Curtin 1912: 32) chama pelo mes- Upper
mo nome o Pequeno Shasta que, caso se tratasse da montanha assim desig- Klamath Lake
nusâltgaga
nada pelos mapas, estaria a várias dezenas de quilômetros na direção oposta.
langell
Apesar da distância, poder-se-ia antes pensar no monte Lassen, a aproximada-
valley
leklis
mente 150 km a sudeste do lago Tule, que os Yana chamam de Pequeno Shasta
42o
(Sapir & Swadesh 1960: 172; Kroeber 1925: 338). A identificação do último local Lower Tule L.
Klamath Lake
Goose L.
a ser mencionado, o monte Tcutgo’si, ainda é problemática.
Ainda que se leve em conta as incertezas que permanecem e os erros e
confusões que porventura tenhamos cometido, esse inventário mostra que Clear L.
Upper
Lake
os protagonistas do mito circulam de um extremo a outro das terras modoc
e até mais além, em terras klamath, onde começa o relato, e cuja travessia
Butte
completa Aishísh realiza para visitar as montanhas próximas de Crater Lake. Creek
kaiumpwis
laniswi
Ao território em que transcorre o mito se confere, assim, um valor intertri- Mt. Shasta
bal, acentuado pelo fato de os heróis, residindo a sudeste do lago Tule, isto
é, em plena terra modoc, receberem a visita dos Mo’watwas, “gente do sul”
(nome que os Modoc davam às tribos do rio Pit e mais especialmente aos [ 5 ] Território dos Klamath e dos Modoc.
S E G U N DA PA RT E
Jogo de ecos
82 | | 83
mundo, e os demais protagonistas do mito não têm nenhuma. Quando as local ermo, onde os cervídeos o pisoteiam, ou então ele mesmo se enfia no
irmãs vêm vê-lo, ele começa por servir-lhes costeletas. Recém-casado, caça solo. Duas bondosas mulheres acham o orgão, cuidam-dele e o alimentam,
para seus afins e acumula para eles enormes reservas de carne seca. e seu dono ressuscita. Como, por exemplo, numa das versões wintu (M₅₄₅a;
Pode-se portanto supor que, nos dois episódios que se parecem, o mito Du Bois & Demetracopoulou: 355-60; cf. supra, p. 53; infra, p. 120), em que
se refere, de um lado, à origem da carne (de que o herói é senhor absoluto, o coração, cujo canto a heroína ouve de longe e para onde se dirige, lhe diz
no início) e, do outro, à dos adornos e acessórios. Hipótese que para nós tem “Mulher, não tenha medo de mim! Venha!”, e ela responde “sim!”. Muitos
um interesse capital, já que estabelecemos na primeira parte que o mito do animais tinham estado ali, havia muita poeira (comparar com a descrição
desaninhador de pássaros existe na América do Sul e na América do Norte do episódio dos porcos-espinho em M₅₃₈, supra, p. 44). Tanto a leste como a
em formas praticamente idênticas e que, em volumes anteriores (cc, mc), oeste, via-se uma enorme quantidade de pegadas de cervídeos...
parece-nos termos demonstrado que esse mito, que se refere à origem da Merecerão ainda mais atenção de nossa parte as versões dos Yana, que
água ou do fogo, se transforma independentemente em mito da origem da embora separados dos Modoc pelos Achomawi e Atsugewi, tribos do rio Pit,
carne e mito da origem dos adornos, dois temas que agora encontramos situam o episódio dos cervos no Monte Shasta, em concordância com M₅₄₃.
associados num único mito, o qual faz questão de lembrar (pois que faz uma Para facilitar a leitura dos nomes próprios, tomaremos a liberdade de simpli-
alusão precisa a isso) que se herói foi primeiro um desaninhador de pássaros. ficar as transcrições de Curtin, citando entre parênteses, sempre que possível,
Vimos que esse mito se situa a meio-caminho entre a versão reta, que é seu equivalente fonético nas versões colhidas por Sapir.
a do desaninhador de pássaros (aqui transformado em pisoteado por cer-
vos) e sua forma invertida, ilustrada pelo mito de Dona Mergulhão. Eis que M 546 YANA: DONA MERGULHÃO
este último mito também trata de duas origens, a dos anti-adornos, digamos
assim, na forma do colar de corações arrancados por uma mulher de seus O velho Juka (dju’ga), “Lagarta”, morava um pouco a leste de Jigulmatu (dj ga’lmadu:
parentes mais próximos,1 e a da anti-carne, na forma do mergulhão cuja car- Round Mountain, Sapir 1910: 188 n. 293), com seus vários filhos e suas duas filhas.
ne os homens hão de cuspir, porque é incomestível. A mais velha se chamava Tsoredjowa (ts.!orê’djuwa), “Águia”, e a mais nova, Haka-
É hora de introduzir um novo aspecto de M₅₄₃. Ele não só conta um perí- lasi (‘ak!a-’lisi), “Mergulhão”. A caçula se apaixonou pelo irmão Hitchinna (‘itc!i’nna),
odo da vida de Aishísh que as demais versões da gesta desse herói ignoram, “Lince”. Ela até sonhou que ele era o seu marido. Um estrangeiro chamado Metsi
como transcorre em outra parte, as encostas do monte Shasta, que as mulhe- (me’ts.!i), “Coiote”, também morava na grande casa.
res escalam, e o topo do Duilas, o Pequeno Shasta, onde o irmão delas se No dia em que Hakalasi teve seu sonho, todos os homens estavam caçando. Volta-
posta para avaliar de longe o progresso da ascensão. Encontramo-nos, por- ram ao entardecer e foram nadar na manhã seguinte. Tsoredjowa lhes deu provisões.
tanto, no limite extremo da terra modoc em direção a oeste, quase em terra Hakalasi subiu no telhado da casa e começou a cantar chamando o marido. Ninguém
estrangeira, e mais longe ainda, em direção ao sul, caso Pequeno Shasta não entendia o que ela queria dizer, porque ela era solteira. Cada um dos irmãos, exceto
designe a montanha vizinha conhecida por esse nome e sim, como ocorre Hitchinna, que ficou deitado num canto enrolado numa pele de lince, saiu da casa,
entre os Yana, o monte Lassen (supra, p. 63). aproximou-se da moça e lhe perguntou o que ela queria dizer. Ela mandou todos
Mas também em regiões onde viviam tribos diferentes dos Klamath embora, e seu velho pai então entendeu que ela exigia a presença de Hitchinna. Ele se
e dos Modoc pela língua e pela cultura encontram-se versões do mito de lavou e vestiu suas mais belas roupas. O sol estava alto no céu. Eles partiram juntos.
Dona Mergulhão nos quais o episódio do herói sepultado à beira da morte Depois de andarem muito, eles acamparam, e deitaram um ao lado do outro.
tem um lugar de destaque. Nelas, o herói é o único sobrevivente do fogo ini- Mas Hitchinna, assustado, levantou-se assim que a irmã adormeceu e fugiu, deixan-
ciado pela mulher homicida. Seu coração salta do fogo e cai bem longe, num do um pedaço de madeira podre em seu lugar. Chegou à casa grande com o dia.
A aranha Chuhna (tc‘u‘na-), irmã do pai, que também morava lá, era insuperável
1 . Ao passo que, para perpetrar o incesto, ela faz uma oferta de adornos verdadeiros, na fiação e fabricação de cordas. Ela tinha um cesto de salgueiro, grande como uma
as contas que ela diz terem sido enviadas pelo marido para seus irmãos, e que um deles casa, suspenso por um cabo à abóbada celeste. Pressentindo que a sobrinha ia que-
tem de vir pegar. rer se vingar, ela mandou toda a família entrar no cesto, para içá-lo até o céu. Coiote
Klamath Marsh
Spier 1943: 245). Depois de cometer todos os seus crimes, Dona Mergulhão Summer L.
son
se afasta para mais a leste, depois sobe para o norte, faz uma parada no lago
m
Willia
Klamath e se instala ao norte deste, nas águas do lago Cratera, onde sua irmã,
River
também depois de passar pelo lago Klamath, a alcança.2 klamath Albert L.
Após a morte de sua irmã mais velha, a caçula volta para os lados do Sprague R.
Mt. Pitt
lago Klamath. Carregando os despojos de seu pai e de sua irmã, ela retorna
à aldeia natal, e depois de ter vagado por algum tempo, chega ao sopé do Klamath Lake
Lo
s
er
tR
coletada por Dixon por volta de 1900; contém precisões suplementares e dife- 42o Riv
ive
ath
r
lam Goose L.
re da de Curtin em vários pontos. Iremos discuti-la mais adiante, e aqui ape- K
Tule L.
nas notamos que situa a cena do massacre em Ship’a (ci’p!a) e faz vir Dona Lower
paiute
Klamath L.
Mergulhão, que nesse caso é uma estrangeira solteira, de um lago muito mais
a leste, perto de Hat Creek (“Ākā’l’imadu, cf. ‘ak’ā’lisi, “mergulhão”; ou ‘akā’lili,
“lago”, —madu, “lugar”: Hat Creek, em terras atsugewi” Sapir & Spier 1943: modoc
Upper L.
247), ou seja, exatamente a mesma região para onde a irmã incestuosa de 123o Butte
M₅₄₆ se dirige depois de ter cometido seus delitos. Consequentemente, como Creek
Mt. Shasta
nas versões klamath e modoc, um eixo leste-oeste serve para definir as posi- Midle L.
ções respectivas de Dona Mergulhão e dos seus. Quando casada, ela mora a
leste de sua aldeia natal (M₅₃₁). Quando solteira e virtuosa, também mora a achomawi Lower L.
leste daquele que poderia tornar-se seu marido (M₅₄₁). Retransformada por
Pitville
M₅₄₆ em irmã incestuosa, ela se dirige para o leste depois de ter matado seus 41o Pit River
Hat Cr.
ntg
ome
As considerações acima revelam que todos os mitos evocam uma estru- Mt. Round ry
Idalmadu
Cr.
atsugewi
tura espacial do mesmo tipo. Ora se esforçam por recuperá-la no plano local; Shipa
un
kR
ora fazem referências diretas, sem transpô-las a locais fora do território Oa
Pawi Eagle L.
Mt. Lassen
2 . Esse itinerário parece estar claro pelo contexto. Curtin afirma claramente (3: 411): wintun
Sacramento R.
a
“o lago da Cratera, a noroeste do lago Klamath”. Contudo, convém notar que também
maidu
n
ya
existe um Crater Lake em terras achomawi, na parte setentrional da bacia do Fall River
(cf. Kniffen 1928, legenda da ilustração 5₅b, p. 324). E mesmo que se tratasse desse lago, yahi
Honey L.
e não do outro, o mito levaria a heroína a terras estrangeiras, e é esse o ponto, mais do
40o
que determinar um itinerário preciso. O que queremos mostrar, é que todos os mitos
desse grupo têm um caráter cosmopolita e, diríamos, até internacional.
4 . Em atsugewi “/yunasïi/, círculo de fogo em torno de uma montanha... queimavam 5 . A palavra inglesa deer, empregada pelos mitos (ou pelo menos pelas transcrições de
cinco ou seis montanhas por ano” (Garth 1953: 132). Tanto de dia quanto de noite os que dispomos) designa os pequenos cervídeos. Mas as observações de um autor que
Klamath e os Modoc acendiam círculos de fogo ao redor das montanhas para caçar viveu entre os Modoc pouco depois de 1850 levam a crer que se referiam antes à caça
cervídeos (E. W. Voegelin 1942: 169). de grande porte, e particularmente aos verdadeiros cervos (elk na América do Norte):
companheiros, explicando: “Assim, vocês vão caçar os cervos mais facilmente, e corta-
r
ta
yurok
ka
as
sh
achomawi
rão melhor a carne”. A aldeia toda se pos a talhar pontas de flechas. No dia seguinte,
conseguiram uma grande quantidade de caça.
t
yo
wi
wintu atsugewi Um dia depois, Cão partiu para bem longe a oeste, para roubar o fogo de uma
mulher que era a única a possui-lo. Debruçado na abertura de fumaça da casa, jun-
yana
maidu des tou algumas fagulhas no oco das orelhas, colocou um pouco de estopa e foi embora.
40o montagnes
A pedido da dona do fogo, Gaio-Azul fez chover, mas Cão correu muito depressa e
chegou à aldeia ao anoitecer. No dia seguinte, distribuiu o fogo entre os habitantes
que, a partir de então, além de caçar, podiam assar a carne.
Naquela noite, um homem chamado Lince teve um pesadelo e saiu da casa
comunal. Foi dormir na casinha onde moravam suas duas irmãs, Águia e Mergu-
lhão. Prevendo outras visitas, esta última cobriu o corpo de resina. Na noite seguinte,
estimulado pela primeira tentativa, Lince fez amor com ela, e os pelos de sua rou-
[ 9 ] Dos Maidu aos Klamath pa ficaram grudados no corpo da mulher. Descobrindo assim a identidade de seu
yana achomawi
[ 1 1 ] Esquema de estilização de uma cumeeira
a clássica, Nova Caledônia. (Desenho baseado em
Guiart 1953: 15)
b
a a’ É digno de nota o fato de tais construções narrativas corresponderem
c estreitamente às construções, bem conhecidas no campo das artes plásticas,
b b’
ordem de sucessão da narrativa
Quando acabou a água nos reservatórios naturais, o herói cantou novamente: M 559 WIYOT: ORIGEM DO FOGO.
O puma perguntou ao cão de onve vinha o fogo dele. O cão no começo negou que
tivesse fogo, os dois companheiros brigaram, mas o cão se recusava a falar. O puma
teve de comer sua caça crua. O cão tinha dois bastões, um deles todo furado. Ele os
usava para produzir fogo por giração. Mesmo em tempo de vento e chuva ele conse-
guia fogo desse modo (Kroeber 1905: 102).
O mito possui a mesma armação que o dos Jê: entre a cultura e a natureza, a
“Vocês sempre poderão me encontrar invocando-me com meu tambor.” humanidade e a animalidade (representada, em cada região, por seu maior
felino), um terceiro personagem desempenha o papel de mediador, mas des-
Depois, ele saltou no vazio e se matou. Outros dizem que ele morreu no rochedo, locado, em cada um dos casos, em direções opostas, mais para a humanida-
no sétimo dia. Seu espírito continua lá, e avisa os índios quando se aproxima uma de se for um adolescente recém-iniciado, mais para a animalidade se for um
tempestade e fica perigoso pescar ou caçar no mar (Swan 1964: 86-87; Densmore animal doméstico. O mediador dos mitos jê se apossa do fogo e o transfere
1939: 197-99). de um polo para o outro, o do mito wiyot o possui desde o início. A razão
dessa diferença é compreensível. Os mitos jê introduzem o primeiro fogo na
Diante disso, talvez se admita que não cedemos a um mero capricho quando forma de um toco de madeira em brasa, ou seja, algo que pertence à ordem
intitulamos o primeiro capítulo destas Mitológicas “Ária do desaninhador natural. Já o mito wiyot faz dele função da broca de fogo, objeto manufatura-
de pássaros”... Pois, a não ser por três inversões (pai prestativo/perseguidor; do que pertence à ordem cultural.
pássaros devorados/devoradores e salvadores ineficazes/eficazes), é a mesma Ora, a mesma transformação se verifica na América do Sul, e precisa-
história, sempre fundando a origem do mau tempo. Além disso, o episódio mente na mitologia bororo, que atribui a invenção da broca de fogo ao maca-
das gaivotas vingadoras, que elevam o herói até o céu, apresenta uma relação co, e que também opõe esse animal mediador ao maior felino, o jaguar, no
de simetria com o dos cervídeos vingadores que o pisoteiam e enfiam no caso. Mostramos que esse mito bororo sobre a invenção do fogo cultural
A falta de união entre esposos, qualquer que seja a sua causa, traz desgraças terríveis; Teríamos encontrado integralmente, na América do Norte, o mito (M₁) que
mais cedo ou mais tarde, somos punidos por não termos obedecido às leis sociais. serviu de ponto de partida para estas Mitológicas e que, ao longo de quatro
volumes, não paramos de comentar? Não podemos ainda afirmá-lo cate-
h. de balzac, “Uma dupla família”, A comédia humana, ed. Pleiade, i, p. 991. goricamente pois, entre os Bororo, a história do desaninhador de pássaros,
além de ser codificada em termos sociológicos e meteorológicos, possui
uma conotação astronômica. Para localizar essa conotação nas variantes
norte-americanas, nas quais, até agora, só recolhemos suposições (supra,
pp. 39-40, 61, 70), será preciso voltar ao início deste livro e, seguindo outro
itinerário, refazer o que até aqui foi nosso trajeto.
A história do desaninhador de pássaros se nos apresentou primeira-
mente na mitologia dos Klamath e dos Modoc. Mas ela nunca aparece ali
em posição inicial ou isoladamente. Graças a uma versão tardia (M₅₃₈), que
relata episódios a que as versões mais antigas já aludiam, foi-nos possí-
vel reintegrá-la num conjunto que a encadeia a uma sequência de eventos
anteriores, os quais, por essa razão, constituem uma espécie de “abertura”,
em que reconhecemos todos os temas que, mais ao sul, formam a história
de Dona Mergulhão. Ocorre o mesmo entre os Modoc, mas com duas dife-
renças. Quando serve de abertura para a história do desaninhador, a história
de Dona Mergulhão se inverte: a mulher desmiolada vira virgem ajuizada, a
irmã casada fora, que volta o tempo todo para junto do irmão pelo qual está
apaixonada, cede lugar a uma irmã caseira, avessa ao casamento, que cuida
Decorre dessas fórmulas esquemáticas uma primeira consequência. Se M₅₃₉ M 560 KLAMATH: A AVÓ LIBERTINA
atesta que (dm) e (Irmãos cel.) são compatíveis, e M₅₄₁ que (dm-1) e (Desa-
ninhador) também o são, deve seguir-se que, de algum modo, existe uma Um menino e sua irmã viviam com a avó. Certo dia, ela os mandou levar comida
correspondência entre (Irmãos cel.) e (Desaninhador-1). para um velho vizinho, que contou-lhes uma história. Quando contaram a história à
Os Yana deveriam nos permitir rapidamente uma quarta fórmula, já que, avó, ela achou que nela havia uma proposta disfarçada. Fingindo indignação, foi ime-
entre eles, a história de Dona Mergulhão em forma reta serve de abertura diatamente para a casa do vizinho, onde ela mesma tomou a iniciativa da relação
para a do desaninhador, apresentada em forma invertida (herói culpado de amorosa. Ao voltar para casa, para explicar às crianças a razão de sua aparência des-
incesto —Y vítima de incesto; e herói alçado —Y enterrado). Ou seja: grenhada, disse que tinha se machucado. Depois de vários incidentes semelhantes,
os netos descobriram o que ela andava fazendo e ficaram profundamente chocados.
M₅₄₆ = (dm) + (Desaninhador-1) Resolveram fugir. Pediram ajuda ao furador, que no começo os protegeu da avó, mas
acabou traindo-os. A velha foi ao seu encalço e percebeu, por vários indícios, que eles
Há mais. Entre a história do desaninhador e a de Dona Mergulhão, nossa tinham-se tornado um casal incestuoso. Na verdade, eles tinham crescido, tinham-
segunda parte permitiu determinar não apenas uma conexão externa, resul- se casado e tido um filho, em relação ao qual eram pais exemplares.
tante do fato de as encontrarmos justapostas nos mesmos mitos, mas uma Transformada em ursa feroz, a avó encontrou o neto em isolamento ritual, em
relação de ordem interna e, diríamos, orgânica. Não basta constatar que busca por espíritos protetores, e o matou. A jovem viúva vingou o marido causando
cada uma das histórias tomada em si gera seu reverso. Juntas, elas formam a morte da assassina. Depois quis também morrer, com o filho, mas Gmukamps
um sistema, que torna sua simetria manifesta: (Kmúkamch) conseguiu salvar o menino, adotou-o e deu-lhe o nome de Aisis
(Aishísh) (Stern 1963: 31; 3).
1
a) (Desaninhador) ≡ dm( (
A narrativa continua com a história do desaninhador, em termos pratica-
b) (Desaninhador ) ≡
-1
( 1
dm ( mente idênticos aos de M₅₃₀. Diferente no início, essa versão logo se apro-
xima de M₅₃₁ e M₅₃₈, em que a avó, brava pela morte da filha, por culpa dos
Veremos, na sequência, que essa transformação permite ao mesmo tempo netos, informados por furador, os persegue em forma de ursa (supra, p. 43).
aceder ao código astronômico e elucidar o enigma da relação entre a histó- Fica claro, portanto, que só as aberturas diferem, consistindo no episódio da
ria do desaninhador e a dos irmãos celestes, pela qual M₅₃₉ a substitui, de avó libertina, num caso, e na história de Dona Mergulhão, no outro.
5
impossível de recuperar. A partir daí, as narrativas das duas Américas respei-
Camundongo
4>
3>
quais ele se sai mais ou menos bem. M₉ o expõe a uma troca de mensagens
2>
com a pedra, a madeira dura e a madeira podre. M₅₆₁ também o envolve
1>
numa troca, mas de dentes, com um grizzly, um urso e um puma. Em ambos
os casos, o herói tem, em seguida, um quarto encontro, por ocasião do qual
em mão):
ogro estava prestes a devorar. Segundo M₅₆₁, ele encontra primeiro o grizzly
Lontra >
e, por final, a lontra; e ele próprio se engana, dando a ela dentes de grizzly em
vez dos dela, em consequência de que a ogra lesada se prepara para matá-
lo... mas sem devorá-lo, pois que ela não tem mais dentes, e seus recursos
de mastigação parecem estar limitados aos sapos que ela esmaga entre as
gengivas, para livrar deles sua cabeça, que eles infestam como piolhos.
Puma >
No mito jê, consequentemente, em lugar de si mesmo, o herói dá ao
ogro uma pedra, matéria metafórica de seu canibalismo. No mito sahaptin,
Ursa >
Grizzly >
tura dos mitos com certas formas musicais acabaria provocando reações de
desdém. Contudo, ela nada tinha de arbitrária, e a análise das versões norte-
americanas confirmaria, se fosse preciso, a tese de que a música ocidental
Coiote, atingido no rosto várias vezes seguidas por um objeto voador que ele pensa Em vez de a periodicidade sazonal, colocada em termos categóricos no
ser um pato, pega-o, assa-o e come-o. Então ele percebe que era uma vulva de mulher início, excluir o rejuvenescimento dos velhos, o mito procede ao contrário.
(cf. Mfgb-Mfgc). Quando ele vai beber, depois da refeição, todos os seus dentes caem Mesmo munido de dentes duráveis, e que ele conserva (à diferença de Gua-
da boca, dentro da água. xinim em M₅₆₁), Coiote morre de morte violenta (como Guaxinim no final
Ele chega à casa de cinco irmãos Gansos Selvagens, que tinham saído para de M₅₆₁), porque fez barulho demais. O inverso de M₃₅₂ e dos mitos da série
caçar, e encontra a formosa irmã deles sozinha. Coiote assume a aparência de um M₅₇₀a-e, segundo os quais teria sido preciso não ouvir o ruído, para escapar
belo rapaz e se apresenta. A moça o convida para almoçar, mas como ele não tem de uma morte violenta ou, pelo menos, para que os defuntos pudessem res-
dentes, só consegue comer picadinho. Sua amada logo descobre o problema, e suscitar. Como se se tratasse de uma contrapartida, a morte que passa a ser
lhe dá dentes de cabrita montanhesa. Aí, os irmãos chegam da caçada e aceitam inelutável carrega a garantia de que, apesar dos perigos de um longo inverno,
Coiote como cunhado. a periodicidade da vida humana acompanhará a periodicidade das estações.
Ele insiste para acompanhá-los na expedição seguinte. Mas, apesar das reco- O fato de as armas utilizadas por Verão contra Inverno incluirem vísceras de
mendações que lhe foram feitas, não resiste à vontade de grasnar como os gan- cervídeo coloca um problema. Talvez as vísceras só surjam aqui para criar
sos selvagens. Imediatamente, os irmãos voadores, que o carregavam pelos ares, uma oposição maior com os pedaços de gelo pontudos que armam o campo
deixam-no cair. Durante algum tempo, Coiote consegue manter-se numa altitude adverso. Sabe-se que, em toda essa região do mundo, e para além dela, o
aceitável transformando-se ora em pena leve ora em galho pesado, conforme con- fígado cabe aos velhos que, em geral desdentados, mastigam mais facili-
sidera estar muito baixo ou muito alto. Mas chega um momento em que ele se mente essa carne macia e sem ossos (cf. omm: 332). A língua klamath classi-
engana, cai na água e se afoga. fica as vísceras animais na categoria dos objetos arredondados (Barker 1963a:
A mulher acusa os irmãos de terem matado o marido. Ataca-os com flecha- 7 n. 1), e um mito modoc (Curtin 1912: 24) opõe os ossos de cervídeo à carne
das e toma o cuidado de proteger o próprio coração no dedo mindinho. Os três e fígados, de que se alimentam, respectivamente, o pilão de pedra e o fogo.
mais velhos morrem (cf. Mfhbc, Mfgja), mas os dois mais novos miram no dedinho, e Opostas aos corações incombustíveis, portanto do lado do frio, as entranhas
matam a assassina. apresentam aqui uma afinidade com o calor. Por mais plausíveis que sejam
Além das conexões que nos permitiu evidenciar com os mitos da América
do Sul que, como ele, desembocam no tema da vida breve, o ciclo da avó
libertina apresenta outro interesse, considerável aliás. Do ponto de vista his-
tórico e geográfico, lança uma ponte para a região das Planícies, e também
para a dos Grandes Lagos, cujos mitos vêm, assim, inscrever-se no prolonga-
mento daqueles que estamos examinando.
No que diz respeito às Planícies, faremos apenas uma sugestão. Há for-
tes indícios — mas a demonstração completa disso obrigaria a voltar muito
para trás — de que um episódio do ciclo da avó e do neto, para o qual já cha-
mamos a atenção (omm: 214-15), é comutável com o da avó libertina, como
se percebe nas três transformações abaixo:
Nos mitos das Planícies que o contêm, esse episódio evoca uma conjuntura
astronômica das mais importantes para o pensamento indígena, por marcar
o momento em que o feto adquire sua forma definitiva no útero da fêmea do
bisão, alguns meses após o cio.
180 | Terceira parte: Cenas da vida privada Pela vida toda | 181
Podemos, portanto, considerar como dado que mitos que localizamos Ora, essa tríade formada pela casa da família, a casa dos homens e o mato
inicialmente num setor ocidental da América do Norte se encadeiam, e for- já estava presente desde os primeiros mitos com que nossa investigação
mam um conjunto coerente com versões orientais provenientes de tribos começou. O menino escondido (no sentido próprio de M₅, bem como seu
pertencentes à família linguística algonquina. Mais tarde demonstraremos homólogo figurado de M₁, resistem em deixar a casa da família e a se instala-
isso em relação à própria história do desaninhador de pássaros (infra, p. 536). rem na casa dos homens, única moradia adequada para os adolescentes. Por
Por ora, contentar-nos-emos com esse primeiro resultado, suficiente para sua vez, o incesto real de M₁ e M₂ ocorre no mato, o incesto ao contrário de
legitimar uma tentativa que poderia parecer arriscada, visto que consistirá M₅, na casa da família, e é para a casa dos homens que M₁₂₄ (que inverte M₁)
em interpretar certos aspectos obscuros do mito de Dona Mergulhão (e, transpõe o incesto real. Simetricamente, os mitos de Dona Mergulhão situam
consequentemente, o do desaninhador de pássaros, que ele inverte) a par- o incesto real no mato, mas o menino escondido fica na casa da família,
tir de uma transformação, irreconhecível à primeira vista, observável entre segundo as versões klamath-modoc, e na casa dos homens, na versão yana.
algonquinos orientais. Atentemos para a transformação que se opera entre M₁ e M₁₂₄, carac-
terizada, como acabamos de lembrar, pelo deslocamento do (ou dos) filho
! infrator da casa familiar — à qual o herói de M₁ permanece simbolicamente
ligado, manifestando assim suas predisposições incestuosas — para a casa
Voltando um pouco atrás. Para demonstrar a posição invertida ocupada dos homens, para a qual os de M₁₂₄ atraem sua mãe, para violentá-la. Essa
pelo mito yana M₅₄₆ no seio do grupo de Dona Mergulhão, argumentamos inversão, seguida, aliás, por várias outras, tinha-nos permitido postular, em
a partir do modo como ele transforma o palco da intriga. Em vez de come- O cru e o cozido (: 205-45), uma relação de simetria entre M₁ e M₁₂₄, relação
çar numa casa de família, M₅₄₆ situa os protagonistas numa casa comunal, essa que um uso “bem temperado” das referências astronômicas próprias a
ou estufa, onde residem também não parentes, e na qual as mulheres não cada mito permitiriam verificar. Com efeito, M₁ remete à origem da conste-
podem entrar. Como consta que os mitos yana chamam todas as constru- lação do Corvo, e M₁₂₄, à de Orion e das Plêiades. A demonstração externa
ções de estufa, Kroeber (1925: 340) concluiu que, na verdade, tratava-se de de todas as relações de correlação, simetria e oposição que uma análise
casas (supra, p. 95). É possível, mas do ponto de vista que nos interessa, a interna nos tinha levado a postular entre esses mitos e os que eles transfor-
questão não é essa. O próprio Kroeber salientou o papel das estufas nas mam ou que os transformam dependeria de duas condições: que a marcha
sociedades californianas: “Os homens ali praticavam sudações cotidianas, dessas constelações se prestasse a uma codificação sazonal e que a etnogra-
um uso social mais do que terapêutico; era lá que se reuniam, para conver- fia confirmasse que o pensamento indígena as utilizava com essa finalidade.
sar, e muitas vezes, para dormir... as estufas eram para eles como clubes... Essa foi, com efeito, nossa demonstração.
Eram aquecidas com fogo, nunca com vapor emanado por pedras em brasa Porém, se isso é verdade para os mitos da América do Sul, e se os da Amé-
molhadas com água... As mulheres não podiam entrar, exceto ocasional- rica do Norte que comparamos com eles por sua vez os transformam, não
mente, em certas cerimônias, nas quais os ritos de sudação, quando não esta- teremos completado nossa tarefa se não apresentarmos a mesma demons-
vam completamente ausentes, tinham uma importância secundária” (l.c.: tração no tocante aos mitos norte-americanos. Mitos da América do Sul que
810-11). Ainda que, para os Yana, todos esses locais pudessem servir para se transformam mutuamente de modo simétrico, referem-se ao Corvo ou às
vários usos, fica claro que M₅₄₆ define a estufa hic et nunc, por referência à Plêiades e Orion. Ou mais precisamente, o desaninhador de pássaros, herói
oposição, fundamental no pensamento californiano, entre casa dos homens do mito bororo M₁, se transforma na constelação do Corvo e em dono da
e casas de família. O local em que transcorre a ação é, do ponto de vista do estação das chuvas, ao passo que os heróis do mito xerente M₁₂₄ se trans-
mito, uma casa dos homens ne plena acepção do termo; desde o início, esse formam nas Plêiades ou numa estrela da constelação de Orion, e donos da
traço opõe o mito yana aos que insistem no caráter familiar da casa onde estação seca. Supondo — o que tentamos demonstrar pela análise interna —
vivem os mesmos protagonistas. Em compensação, todos os mitos concor- que a história do desaninhador de pássaros na América do Sul e na América
dam em situar no mato a tentativa incestuosa de Dona Mergulhão em rela- do Norte constitui um único mito, deve resultar a inversão de sua mensagem
ção a seu adorado irmão. entre um hemisfério e outro, do mesmo modo que, no mesmo hemisfério, um
182 | Terceira parte: Cenas da vida privada Pela vida toda | 183
mito que lhe é simétrico exprime sua mensagem invertida. Entre um hemis- M 575A WABANAKI: ORIGEM DA CONSTELAÇÃO DE ORION
fério e outro, inverno e verão se invertem, de modo que o conteúdo dos mitos
tem de ser igualmente invertido, se quiserem conotar a mesma estação em Um irmão e uma irmã, apaixonados um pelo outro, resolveram fugir juntos. Os paren-
ambos os casos. Ou, caso os mitos permaneçam os mesmos — como cons- tes foram atrás deles, para castigá-los. Os infratores estavam quase sendo alcançados
tatamos em relação à história do desaninhador de pássaros —, é preciso que num lago congelado que estavam atravessando quando o gelo cedeu sob seus pés;
ocorra uma inversão de sua conotação sazonal. Em outras palavras, dado eles desapareceram. Um pouco mais tarde, viram-nos emergir em forma de mergu-
que, no hemisfério sul, M₁ conota o Corvo, e M₁₂₄ — que se pode represen- lhão, emitindo seu misterioso grito. Os amantes subiram para o céu nessa forma, e se
tar por 1/M₁ —, Orion e as Plêiades, deve seguir-se que, no hemisfério norte, transformaram na constelação de Orion (Speck 1921: 352).
mitos iguais a M₁ conotam estas duas últimas constelações. O simbolismo
desses constelações reproduziria, assim, o que possuíam no Velho Mundo, de A variante penobscot (M₅₇₅b, Speck 1935: 20; 10: 52) se refere às Plêiades,
acordo com os dados da cosmografia, já que a área em que se concentra este segundo alguns, a uma constelação vizinha, segundo outros. A existência
livro se situa, como o mundo greco-romano, entre 40° e 50° lat. N. de um nome diferente para as Plêiades, /mnábasuwak/, “agrupadas”, torna
Já possuímos indícios de que é exatamente isso o que ocorre. Desde as mais plausível a segunda interpretação, que poderia designar Orion: “Alguns
primeiras versões utilizadas, o desaninhador de pássaros norte-americano chamam-na de /meda’wile/, “mergulhão”, por causa de um mito sobre um
aparecia como dono da água. Nas versões klamath (supra, p. 31), Aishísh homem apaixonado pela prima, e que se casou com ela, violando as regras.
consegue apagar o fogo provocado por seu pai hostil. De modo ainda mais Os irmãos da moça o perseguiram e, no momento em que iam matá-lo, ele
claro, o herói dos mitos yurok, wiyot e makah (M₅₅₇-M₅₅₈, supra, p. 134-38), se enfiou debaixo do gelo e depois subiu ao céu, primeiro na forma de um
autor ou anunciador da chuva e da tempestade, lembra o nimbosus Orion mergulhão, e depois, de uma constelação”.
que reina no céu noturno de janeiro, a época mais chuvosa no Oregon Da região oeste do lago Superior, praticamente à mesma distância do
(Frachtenberg 1915: 232 n. 1). Mas nenhum desses mitos o designa como uma Atlântico e do Pacífico, provém uma versão ojibwa (M₅₇₆, Josselin de Jong 1913:
constelação. Para mostrar que pelo menos ele desempenha o papel dessas 1), que inverte as duas formas extremas assumidas pelo mito a leste e a oeste
constelações, procederemos indiretamente. Sabemos que o mito de Dona do continente: em lugar de serem irmão e irmã, os amantes são um Sioux e
Mergulhão inverte, na América do Norte, o do desaninhador de pássaros. Se uma Peoria, ou seja, pertencem a povos inimigos. Resolvem fugir juntos de
existir nalgum lugar um mito que inverte o de Dona Mergulhão e cujo herói canoa, mas a tribo do rapaz se recusa a recebê-los. Indesejados nas duas mar-
é uma constelação, será possível deduzir que esse é também o papel do herói gens do lago que separa seus povos antagonistas, permanecem no meio do
do mito em relação de inversão, ainda que num outro eixo, com o de Dona lago, onde são pegos de surpresa por uma tempestade que causa sua morte:
Mergulhão. Tal demonstração elucidará simultaneamente alguns detalhes “Antes de afundarem definitivamente, subiram pela última vez à superfície e
ainda obscuros dos mitos anteriormente examinados; além de conferir-lhes lançaram seu grito, que desde então pode ser ouvido no lago Peoria”.
uma conotação astronômica, ela mesma terá sua validade reforçada. Fica claro, portanto, que nas duas extremidades do continente o mito de
Confiando em tais promessas, perdoe-nos o leitor por transportá-lo bru- Dona Mergulhão e o dos amantes incestuosos ecoam um ao outro. Um se
talmente para a outra ponta da América do Norte, mas sempre na mesma passa no inverno, já que os lagos estão congelados. O outro, no verão, já que
latitude, conforme requer nosso propósito. Os representantes mais orien- os irmãos amantes acampam inicialmente ao ar livre, e quando ela adquire a
tais da família linguística algonquina no litoral atlântico formavam o grupo natureza de pássaro aquático, a infratora se instala nos lagos, onde pode ser
chamado Wabanaki, “gente do sol nascente”, que compreendia quatro tribos vista nadando e mergulhando todos os dias, o que significa que a superfície
principais, Penobscot e Passamaquoddy no Maine, Micmac na Nova Escócia da água não pode estar congelada. Aliás, sabe-se que no momento em que esse
e Saint-Francis ou Abenaki, na atual fronteira entre o Canadá e os Estados fenômeno ocorre o Mergulhão migra para a costa, onde as águas não conge-
Unidos. Conhece-se um de seus mitos que associa o motivo do incesto, o lam. Num grupo de mitos, o incesto reúne um casal de irmãos que serão ainda
pássaro mergulhão e a origem de uma constelação: mais unidos pela morte, confundidos num único animal e, posteriormente,
numa única constelação. No outro grupo, a transformação da irmã no mesmo
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animal e o casamento do irmão numa terra longínqua os afasta, também de e principalmente a descrição da plumagem, designam sem ambiguidade o
modo duplamente definitivo. Frustrada em seus desejos condenáveis, a irmã mergulhão de colar.
incestuosa persegue os parentes no eixo vertical, em que eles tentam escapar Vimos que, nos mitos do oeste, a transformação da irmã infratora em
dela, e os destrói pelo fogo. Ao contrário, no mito wabanaki, o irmão e a irmã, mergulhão é, para ela, um castigo. Dizem que essa ave é “feia” e sua carne,
uma vez realizado seu desejo, fogem dos parentes no eixo horizontal, no qual intragável, é cuspida assim que colocada na boca (M₅₃₉, 540). Mas os algon-
estes tentam alcançá-los para destruí-los, e morrem na água congelada. Ape- quinos do leste têm uma visão diametralmente oposta do Mergulhão:
nas as conclusões coincidem, embora sejam opostas de outro modo. O mito “Dentre as aves aquáticas, é a ele que cabe o lugar de honra. Seu nome, que
wabanaki explica uma configuração astronômica na forma de uma constela- significa ‘pássaro escolhido, ou admirado’, em penobscot e em malecite, já
ção, rosário de estrelas que se destacam no céu noturno. O mito de Dona Mer- indica o quanto é estimado como anunciador das mudanças de tempo, por
gulhão explica uma configuração zoológica, as manchas brancas formando sua esplêndida plumagem e seu grito pungente... Matar um mergulhão seria
um colar que se destaca sobre a plumagem escura de uma ave aquática. Ora, um sacrilégio” (Speck 1921: 352). Um grupo de mitos discutidos no volume
se a constelação de Orion enfeita com contas luminosas o céu de inverno no anterior (M₄₄₄, omm: 200-03) chamam de Mergulhão um personagem de
registro do alto, o mergulhão (Gavia immer) que é a ave do mito apresenta incrível beleza e luxuosamente ornamentado. Para os Passamaquoddy e os
sua plumagem característica no verão, enfeitando assim a água, no registro do Micmac, os mergulhões são os caçadores e mensageiros do demiurgo. Essas
baixo, de modo alterno, tanto no eixo espacial quanto no eixo sazonal. aves proféticas e prestativas permaneceram entre os homens mesmo depois
Diante disso, é ainda mais fácil reconhecer o Mergulhão wabanaki — de ele os ter deixado. Quando lançam seu grito característico — “mergu-
“modelo de constância segundo a lenda e a realidade”, e cujo grito os índios lhoneiam”, como dizem os Passamaquoddy —, é porque estão chamando.
comparam a “um triste lamento pela morte de um amante” (Speck 1921: E os homens que, através deles, fazem pedidos ao demiurgo ausente são
352-53) — na irmã virtuosa e esposa inconsolável da versão modoc (M₅₄₁), atendidos (Rand 1894: 288-89, 378-82; Leland 1884: 19, 26, 50-51, 68; Prince
que inverte Dona Mergulhão em seu aspecto local de irmã incestuosa e 1921: 26-27, 51). Nos ritos dos Ojibwa, um bastão esculpido em forma de
parricida. E, finalmente, visto que Aishísh, o desaninhador de pássaros kla- mergulhão é usado para bater no tambor de água, para chamar os espíritos
math, é filho de irmãos incestuosos (M₅₃₁, M₅₃₈), ele pode ser identificado, (Densmore 1929: 96). Saladin d’Anglure, grande especialista dos Esquimó,
como confirma a função meteorológica de seu homólogo em M₅₅₇-M₅₅₈, confirmou-nos o apreço e respeito que eles, vizinhos dos algonquinos a leste
talvez não a Orion em si, mas ao menos a parte de Orion. Para estabelecer a da baía de Hudson, têm pelo Grande
unidade da personagem da irmã que funciona como pivô para todos esses Mergulhão. E comprovou seus dizeres
mitos, basta, com efeito, transformar: presenteando-nos com uma bolsa de
acessórios de costura feita da pele de um
M₅₇₅ (irmã, fiel até a morte ao amante, que é seu irmão) mergulhão de colar, com todas as suas
—Y M₅₄₆ etc. (irmã, assassina do irmão, que não quer ser seu amante) penas, um artigo muito valorizado.
—Y M₅₄₁ (irmã, fiel até a morte ao amante, que não é seu irmão) etc. Contudo, mesmo entre os Micmac [ 1 6 ] Adorno de cabelo
e os Passamaquoddy, o personagem esquimó de Kotzebue Sound,
! do Mergulhão parece estar ameaçado feito de pele de mergulhão.
pela instabilidade. Esposo infeliz das (Cf. Nelson 1899: 417)
A simetria entre os mitos “de mergulhão” que se observa nas duas pontas mulheres Doninhas, apaixonadas
da América do Norte é acompanhada por uma inversão radical dos valores pelos Patos marinhos, ele assassina seus rivais e depois se suicida. Ou então
atribuídos, em casa caso, a essa ave. Existem quatro tipos de mergulhão, que é enganado pelos sobrinhos, que são mergulhões de uma outra espécie, e
o francês canadense agrupa na denominação “huard” ou “huart”: o de colar se vinga fingindo o suicídio, para ressuscitar em seguida (M₅₇₇a, b; Leland
(Gavia immer), o de bico amarelo (Gavia adamsii), o ártico (Gavia arctica), 1884: 164-69). Os Iroqueses enfatizam mais ainda essa ambivalência. Na ver-
e o de pescoço vermelho (Gavia stellata). Vários detalhes de nossos mitos, são onondaga do mito de origem, foi Mergulhão que deu o aviso para salvar
186 | Terceira parte: Cenas da vida privada Pela vida toda | 187
a mulher celeste no momento em que ela, despencando do alto do céu, estava diversas tribos indígenas da costa noroeste e do interior, até os Arapaho e
prestes a se afogar na água primordial, mas, na versão mohawk, ele se enganou os Osage, foi realizado por Boas (1916: 825-29) e Savard (1966: 126-54). As
e, ao ver o reflexo da coitada, pensou que ela estava subindo das profundezas, versões esquimó, que são as mais ricas, são particularmente interessantes,
de modo que coube ao Alcaravão, uma espécie de garça cujo nome em iroquês porque retransformam, de modo evidente, o ciclo da avó libertina, ele mesmo
significa “aquele cujos olhos sempre olham para cima”, que corrigiu a perspec- uma transformação do ciclo de Dona Mergulhão, para voltar a este último
tiva e tomou as medidas de salvamento apropriadas. Ou, ainda, o Mergulhão ciclo, mas mudando a polaridade do principal personagem:
guardou debaixo da asa direita os corações de perigosos canibais, mas acabou
concordando em entregá-los. Os Iroqueses diziam que a carne do mergulhão M 580A ESQUIMÓ (POINT BARROW): O CEGO E O MERGULHÃO
era carne de bruxa, e não a consumiam (M₅₇₈a, b; Hewitt 1903: 179, 285; Curtin
& Hewitt: 136-37; Waugh: 135). A oposição entre Mergulhão e Alcaravão parece Uma velha, seu neto e sua neta eram os únicos sobreviventes de uma epidemia, e
ser atenuada entre os Blackfoot, embora cada um desses pássaros tenha, entre dependiam, para sobreviver, da caça do menino. Ele trazia tanta caça que a avó se can-
eles, uma posição bem marcada. Consideram o Alcaravão uma ave sagrada, sou de secar e preparar toda a carne. Cegou o neto, que não pode mais caçar. As pro-
talvez porque seu nome signifique “bico apontando para o sol”, e chamam o visões se esgotaram, e foi preciso comer até o que estava completamente estragado.
Mergulhão de “belo corcel”, devido ao modo como ele bate as asas, como se Quando veio a primavera, um urso se aproximou da casa, e o cego, guiado pela
estivesse num desfile de guerra (Schaeffer 1950: 39). Seus vizinhos Kutenai não avó, conseguiu matá-lo. Mas ela disse a ele que ele tinha errado, guardou a carne
comiam mergulhão (Turney-High 1892: 42). A julgar pelos mitos, a mesma fresca para si e para a neta, e continuou dando carne podre ao neto. Ela também
proibição devia prevalecer na área de distribuição do ciclo de Dona Mergu- dava a ele água ruim (cf. Mf).
lhão, isto é, no norte da Califórnia e no sul do Oregon, e também se verifica Certo dia, o cego começou a conversar com um mergulhão, que teve pena dele e
mais ao norte, entre os Tanaina e os Ingalik, que são atabascanos ocidentais: o mergulhou na água de um lago. Esse tratamento lhe devolveu a visão. Curado, ele
“Eles preferem não comer mergulhão, cuja carne escura tem, dizem, um gosto afogou a avó durante uma caça à beluga. Aconselhados pelo mergulhão, ele e a irmã
suspeito” (Osgood 1937: 40, 44; 1959: 36). Os Chippewyan, atabascanos do leste tomaram cônjuges na mesma aldeia, e todos viveram juntos, ricos e felizes (Spencer
em contato com os algonquinos, ao contrário, não tinham a mesma prevenção & Carter 1954: 65-68).
(Seton 1911: 172-73), e os Salish costeiros também comiam carne de mergulhão
(Eells 1887: 214; 1964: 619; Olson 1967: 50). Apesar das circunstâncias serem favoráveis a isso, já que o irmão e a irmã
De modo geral, chama a atenção o fato de as valências, positivas ou nega- tinham ficado sós no mundo, não houve incesto e ambos se casaram. A não
tivas, do mergulhão se inverterem entre um grupo e outro, em toda a zona ser por algumas versões que o invertem (infra, p. 189), o mito se apega tanto
noroeste, e serem sempre muito marcadas. Os Lilloet e os Snohomish, que a essa conclusão que variantes orientais a reforçam, atribuindo à irmã um
são respectivamente Salish do baixo Fraser e de Puget Sound, por exemplo, casamento perigoso e exógamo; às vezes, ela chega a morrer entre estran-
possuem mitos que vão, por assim dizer, na contramão do de Dona Mergu- geiros (M₅₈₀b,c, Boas 1916: 828-29; Kroeber 1899: 167-70). Junto com essa
lhão, cuja área de distribuição se encontra, entretanto, bem afastada, ao sul. passagem da endogamia para a exogamia ocorre uma inversão da polari-
Uns apresentam o mergulhão como subornador de uma jovem, e os outros, dade do mergulhão, que passa de maléfico a benéfico. O mesmo acontece
como um casto adolescente que se deixa seduzir e capturar por uma ogra num mito atabascano:
(M₅₇₉a-e; Teit 1912a: 334-35; Ballard 1929: 101-02; Haeberlin 1924: 435-37).
Bem ao lado deles, os Squamish e os Klallam fazem dele o cúmplice de um M 581 CHILCOTIN: A MULHER CASADA COM UM URSO
sogro assassino que quer fazer o genro se perder em alto mar (M₅₇₉f, Hill-
Tout 1900: 527-28; M₅₇₉g, Gunther 1925: 137). Uma mulher cometeu a imprudência de se casar com um estrangeiro, que na verdade
Para evitar incluir toda a mitologia esquimó na discussão, não fare- era um urso. Ele a levou para hibernar em sua toca. Um irmão da mulher achou-os,
mos o estudo detalhado do conjunto de mitos cujo inventário provisó- matou a fera e libertou a irmã. Mas ela logo depois se transformou em ursa e mas-
rio, incluindo todos os grupos esquimó, do Alasca à Groenlândia, as mais sacrou todos os familiares, exceto o irmão e a irmã caçula que, sozinhos no mundo,
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tornaram-se um casal incestuoso. A ursa os alcançou e matou a mulher. O irmão mais facilmente do que as dos Esquimó fornece um indício suplementar em
sobrevivente conseguiu livrar-se da ogra com a ajuda de um mergulhão e de outra favor do sentido da derivação que sugerimos.
ave mergulhadora (black diver) que a levaram em sua canoa para afogá-la (Farrand Se o neto cego é tapado em cima, versões provenientes da terra de Baffin
1900: 19-22; cf. Bella Coola, Boas 1900: 111-14, para uma narrativa muito semelhante). e da Groenlândia (M₅₈₀d,e; Boas 1888: 625; 1901-07: 168; e M₅₈₀f, Holm, apud
Boas 1916: 829) contam o casamento da irmã com um homem do povo sem
Aparentemente, para essas populações setentrionais, o Mergulhão não tem ânus, ou seja, um personagem tapado em baixo. O que indica que talvez não
exclusivamente o papel de impedir o incesto, em prol do casamento exogâmico, seja um acaso o fato de os Esquimó, a leste da baía de Hudson, conservarem
contrariamente ao que ocorre no ciclo de Dona Mergulhão. Ele também atua a pele do mergulhão para usá-la como bolsa para seus acessórios de costura,
em sentido contrário, para neutralizar os riscos de um casamento afastado fio e agulhas, que são objetos perfurantes, mas que também permitem juntar
demais, mas que ainda é possível nessa parte do mundo, onde vários povos de modo duradouro peças antes separadas, do mesmo modo que o casa-
acreditam descender da união de uma humana com um urso ou um cão. mento, contanto que os cônjuges não estejam nem próximos nem afastados
Como a avó bororo de M₅, a avó esquimó de M₅₈₀ comete com o neto um demais. Às vezes, em recompensa por seus esforços, o mergulhão recebe do
incesto às avessas; no primeiro caso, ela o empesteia com exalações tóxicas herói de M₅₈₀ um bico bem fino, próprio para espetar suas presas. Em puni-
e, no segundo, cega-o estragando seus óculos de neve, para que não possam ção por sua maldade, a avó é transformada, por várias versões, em narval
proteger os olhos dele; em ambos os casos, ela o contamina com alimentos macho, dotando-a, portanto, de uma presa afiada.
podres, quer seja na forma de carne estragada ou de gases intestinais. O mais frequente é o pássaro receber em recompensa um precioso
Isso não é tudo. Vimos que a transformação que permite passar de M₂ adorno de conchas dentalia, que seus congêneres usam em torno do pescoço
para M₅ é a de um incesto “horizontal” em incesto não apenas “vertical”, mas desde então (Ilustração iii). O episódio confirma que esse mito inverte, de
às avessas (supra, p. 152), e que a transformação que permite passar de Dona fato, o de Dona Mergulhão, no qual o colar de corações de parentes constitui
Mergulhão para a avó libertina também é a de um incesto “horizontal”, pro- o símbolo do anti-adorno e inclusive se opõe, no interior do próprio mito,
vocado por uma gulodice sexual, em incesto “vertical”, resultante de gulodice aos braceletes de espinhos de porco-espinho, que representam adornos de
alimentar. E quando se passa do grupo da avó libertina para o do cego e do verdade (supra, p. 44-45, 77). Já tivemos a oportunidade de salientar que os
mergulhão, esta última fórmula se transforma em gulodice alimentar alterada mitos dessa região da América do Norte frequentemente transformam espi-
em seu contrário (a avó prefere a penúria a muito trabalho doméstico), e que nhos de porco-espinho em conchas dentalia (omm: 222).
provoca o inverso de um incesto, já que, ao cegar o neto, ela o tapa em cima, Entretanto, no que diz respeito ao aspecto estético da plumagem, curiosas
em vez de ele a perfurar em baixo.5 O desleixo dessa avó, num povo tão sujeito variações se verificam entre as diversas tribos. No mito de Dona Mergulhão,
à fome, é tão paradoxal que se pode postular com toda a segurança que o tudo indica que as penas do pássaro são feias, e o texto chega a dizê-lo expres-
grupo do cego e do mergulhão é derivado em relação ao da avó libertina. samente (M₅₃₉). Contudo, os Klamath, que conhecem o mito numa forma
Além disso, seria fácil mostrar, graças a versões provenientes dos Lou- que difere por não mencionar o Mergulhão, contam algures (M₅₈₂, Gatschet
cheux e dos Peaux de Lièvre (M₅₈₀g, h; Petitot 1886: 84-88, 226-29) em que 1890, i: 132-33) que o demiurgo encarregou essa ave de destruir a barragem
o cego é um velho que recupera a juventude junto com a visão, que a visão graças à qual os donos dos salmões prendiam todos os peixes, e só cediam
recuperada forma um par de oposição com a dentição perdida. O fato de as aos vizinhos os peixes podres (comparar com a avó de M₅₈₀a). O Mergu-
versões indígenas permitirem voltar de um grupo de mitos para o outro lhão cumpriu sua missão e, em recompensa, o demiurgo cuspiu creta sobre
seu corpo, formando as manchas brancas da cabeça e do dorso. Note-se que
essa descrição dos adornos ganhos pelo animal não menciona o peito, que
5 . Savard (1966: 105) assinala na língua e no pensamento esquimó uma interessante
equivalência entre a boa visão e a virilidade. Em favor da argumentação precedente, é a parte principal segundo o mito de Dona Mergulhão. Para que não nos
notaremos também que a avó libertina é privada de carne pelo neto, que guarda tudo censurem por dar atenção demasiada aos termos de um texto exposto, por
para si mesmo alegando que a avó está menstruada (= perfurada em baixo), ao passo natureza, a todos os tipos de alterações, invocamos o testemunho dos Peaux
que, no outro ciclo, a avó faz o mesmo com o neto cego (= tapado em cima). de Lièvre, que também atribuem as manchas brancas da cabeça à creta, mas
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nesse caso lançada por Corvo por ciúme, portanto mais com a intenção de Os gaviiformes de fato possuem o torso achatado (Thomson 1964: 212), mas
enfeiar do que de embelezar o rival (M₅₈₃, Petitot 1886: 223, 296-97). Bem, é menos fácil entender porque, de cada lado da baía de Hudson, o mesmo
os Esquimó da baía de Hudson desenvolvem a oposição entre Mergulhão e mito que opõe o Mergulhão ao Corvo inverte a descrição da plumagem con-
Corvo e, em relação ao primeiro, entre as manchas do dorso e as do peito: trastada do primeiro, branco sobre fundo preto em M₅₈₄a, preto sobre fundo
branco em M₅₈₄d, um procedimento do qual já encontramos outros exem-
M 584A ESQUIMÓ (UNGAVA): ORIGEM DAS MANCHAS DO MERGULHÃO plos (supra, p. 103, 132, 151). Não nos é possível interpretar a inversão no caso
presente, mas notamos que vem acompanhada de uma outra, entre roupas
Havia um homem que queria que seus dois filhos ficassem bem parecidos. Pintou o novas ou pintura fresca (M₅₈₄a,d) e roupas usadas (M₅₈₄b,c).
peito de um deles de branco e fez quadrados brancos em seu dorso. O outro achou Em compensação, a maioria das tribos de língua salish e atabascana
isso muito engraçado e riu tanto do irmão que ele foi se refugiar na água. Desde parece concordar em comparar o peito do mergulhão aos mais belos ador-
então, o Mergulhão só mostra o peito branco e esconde as manchas ridículas de seu nos. Os Chilcotin lhe dão um colar em recompensa por ter devolvido a
dorso. Corvo, que era o segundo filho, prevenido pela desventura do irmão, não se visão a um cego (M₅₈₀i, Farrand 1900: 36), ou por ter surpreendido um
deixou pintar, e permaneceu todo preto (Turner 1894: 262-63). ladrão de túmulos que pegava as jóias deixadas sobre os cadáveres (ibid.:
47). Segundo os Shuswap e os Thompson (M₅₈₅a, Teit 1909: 667-68), o
Os Esquimó polares (M₅₈₄b, Holtved 1951: 99) situam a origem do Mergu- Mergulhão foi, antigamente, um jogador desonesto que apostou e per-
lhão num pequeno órfão vestindo roupas esfarrapadas. Os da terra de Baffin deu todos os seus ornamentos, e então fugiu com seus colares de dentalia;
(M₅₈₄c, Boas 1901-07: 218-19, 343), numa avó com roupas esfarrapadas e como punição, foi transformado em uma ave que os leva pendurados no
ensanguentadas; mas, nesse caso, pode ser que se trate do mergulhão de gar- pescoço o tempo todo. A decoração incrustada de um cachimbo de xamã
ganta vermelha, que tem penas encarnadas no peito.6 thompson representa o colar do mergulhão, e lembra, por sua vez, o colar
Um mito esquimó da costa ocidental da baía de Hudson, que associa o às vezes usados pelos xamãs, com um pendentif em forma de cabeça de
Mergulhão à bolsa de costura (supra, p. 178), por sua vez, opõe, como M₅₈₄a, mergulhão (Teit 1900: 381).
sua plumagem bicolor à do Corvo: Essas rápidas indicações, às quais poderíamos acrescentar muitas
outras, mostram que, de leste a oeste e também do sul (relativamente
M 584D ESQUIMÓ (BAÍA DE HUDSON): ORIGEM DAS MANCHAS DO MERGULHÃO falando) ao extremo norte, o valor atribuído ao Mergulhão oscila em três
planos. Do ponto de vista estético e do vestuário, o pássaro possui pre-
Corvo e Mergulhão eram excelentes costureiras que certo dia decidiram trocar entre ciosos colares, roupas estragadas ou então corações humanos, horrendos
si mostras de seu talento. Cada uma delas faria para a outra uma roupa de peles cos- adornos. Estamos aqui no plano da cultura. Do ponto de vista sexual, que
turadas com fio enegrecido com fuligem. Corvo pegou a agulha primeiro e costurou é também o da vida em sociedade, o Mergulhão pode desempenhar três
a roupa no corpo de Mergulhão, e por isso sua plumagem é pintada com pontos pre- papéis distintos: irmã incestuosa para sempre separada do amado no mito
tos. Quando foi a vez de Mergulhão por mãos à obra, Corvo não queria parar quieto de Dona Mergulhão, a ele unida até a morte no que passaremos a chamar
durante a prova. Mergulhão, irritada, despejou toda a fuligem na companheira, que de “transformação wabanaki” (M₅₇₅), ou ainda de espírito sobrenatural de
ficou toda preta. Para se vingar, Corvo, com pedradas, quebrou e amassou as pernas sexo não marcado, árbitro da união endogâmica e do casamento afastado
de Mergulhão (Boas 1901-07: 320). (M₅₈₀). E finalmente, no terceiro plano, que é o alimentar, e diz portanto
respeito à natureza, a carne de mergulhão pode ser declarada incomestível
devido ao gosto ruim que se lhe atribui, ou porque a ave é considerada
6 . A não ser que com isso o mito faça alusão a uma técnica de caça igual à verificada entre
os Micmac (Rand 1894: 378-79), baseada na atração que o mergulhão supostamente
sagrada. Um pequeno mito dos Micmac, que compartilham essa venera-
sente por cores fortes, e especialmente pelo vermelho. Uma incerteza adicional provém ção (M₅₈₅c, Parsons 1925: 82-83), introduz um aspecto adicional. Como
do fato de o texto de M₅₈₄c chamar a ave de “web-footed loon”, quando todos os entre os Esquimó, ele opõe o Corvo ao Mergulhão, mas do ponto de vista
mergulhões possuem quatro dedos, dos quais três são espalmados (Godfrey 1967: 11). do alimento, em vez do vestuário: Pica-Pau casou suas duas filhas com
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Corvo e Mergulhão e, nas bodas de um, serviu-se alimento fresco, nas do salgada” (Ballard 1929: 101-03). Os Siciatl (Seechelt) dão ao mês de maio o
outro, coisas podres. Esses algonquinos orientais opõem Corvo e Mergu- nome do mergulhão, pois é nessa época que o pássaro faz ninho e põe ovos
lhão, portanto, ativamente, no tocante à alimentação, no sentido de que o (Hill-Tout 1904a: 34).
primeiro consome alimento infecto, como fariam os humanos — segundo A ascendência supracitada do Mergulhão se afasta da crença dos Assi-
tribos vizinhas do Pacífico — se comessem mergulhão. niboine, segundo os quais o Mergulhão brigou com a Águia-Calva, que se
É tentador relacionar essa instabilidade característica do mitema aos transformou em Trovão e matou seu adversário com um raio (M₅₈₅b, Lowie
hábitos do mergulhão, variáveis em cada lugar, e até mesmo em lugares bas- 1909: 202-03). Voltando aos Salish costeiros, observaremos que os Twana
tante próximos. Os Tanaina, que são atabascanos do noroeste, descrevem- “possuíam uma lenda segundo a qual o mergulhão hibernava até a pri-
no como uma ave sazonal, “exceto em Kachemac Bay, onde a temperatura é mavera. Quando saía de seu refúgio para pousar nos lagos e gritar muito,
mais clemente” (Osgood 1937: 40). Os gaviiformes nidificam até nas regiões sabia-se que o mês chamado ‘do mergulhão de dorso manchado’ tinha che-
árticas, emigram para o sul no inverno ou, caso as condições locais permi- gado, e ajustava-se o calendário em consequência” (Elmendorf 1960: 27). Os
tam, permanecem na mesma latitude, e apenas se deslocam dos rios e lagos Thompson, que são Salish do interior, acreditam que o mergulhão grita forte
congelados no interior para o litoral marinho. e muito quando vai chover. “Seria possível fazer chover imitando o grito
Pois bem, todos os mitos que consideramos até o momento fazem do do pássaro” (Teit 1900: 374). Um mito esquimó da costa ocidental da baía
Mergulhão uma criatura sazonal, mas, para fixarem seu papel, não selecio- de Hudson conta (M₅₈₆, Boas 1901-07: 320) que homens martirizaram um
nam os mesmos traços distintivos, ou não os interpretam do mesmo modo. mergulhão depenando-o vivo e, para vingar-se, ele fez cair uma nevasca
A valência sazonal já era perceptível em certos mitos do ciclo de Dona Mer- tão densa que ninguém conseguiu chegar às reservas de carne enterradas
gulhão. O mito yana M₅₄₇ começa em Shipa (supra, p. 85), “S.īp’a”, ‘lugar debaixo de pedras e todos morreram de fome.
onde as pessoas vão beber’ (?), num promontório a aproximadamente meia Vê-se que as crenças relativas ao mergulhão variam radicalmente de um
milha acima da nascente do Oak Run; havia ali um lago onde paravam anti- grupo a outro. Segundo uns, o pássaro hiberna; segundo outros, migra, mas
gamente os gansos e patos a caminho do norte, na primavera” (Sapir & Spier ora do leste para o oeste, ora do norte para o sul. Às vezes, sua mera apari-
1943: 245). Para a versão a atsugewi (M₅₅₀), o grito ou o “riso” do pássaro é ção, ou o modo como grita ou se comporta, possui uma função significante.
o sinal da chegada da primavera. No outro extremo do continente, os Mic- Esta diz respeito ora às mudanças de tempo — chuva ou neve, dependendo
mac, que também falam do “riso” do mergulhão, o interpretam como sinal do caso — ora à volta de uma estação, que pode ser o inverno ou o verão.
de vento, crença compartilhada pelos Naskapi (Parsons 1925: 84 n. 3; Speck Não obstante tais flutuações, que caberia analisar com maior cuidado (mas
1921: 126). Os algonquinos orientais atribuem a seu demiurgo, Glooskap, um munido de um conhecimento maior do que o nosso acerca da etologia das
séquito numeroso de serviçais, dentre os quais os mergulhões (supra, p. 175), quatro espécies de Gavia, e das condições meteorológicas dominantes em
ao lado de um personagem chamado Kulpejotei, que personifica o movi- cada ponto do território), verifica-se uma oposição central em todas elas,
mento do sol e das estações (Leland 1884: 22-23). Os da região do lago Supe- que, nos dois extremos da América setentrional, desemboca numa inversão
rior também associam o mergulhão ao vento que, segundo eles, é indispen- radical dos valores e funções que os mitos de cada região — vertente do
sável para que o pássaro alce vôo (Kohl 1956: 185). É fato que a constituição Pacífico e costa do Atlântico — atribuem ao Mergulhão.
anatômica do mergulhão o torna desajeitado, tanto para voar quanto para Se fosse preciso apresentar mais uma prova, esta seria fácil de encontrar
andar no solo (cf. M₅₈₄d); mas assim que ele consegue decolar, voa com vigor nos modos diversos como os mitos tratam o par formado por Mergulhão
e segurança (Thomson 1964: 212). Os Sweet-Grass Cree dizem que a chegada e uma outra ave aquática, que é o P. auritus*, nas versões provenientes dos
do mergulhão anuncia o degelo (Bloomfield 1930: 82). Os Kutenai observam algonquinos orientais. Infelizmente, sua identidade não pode ser clara-
seu comportamento para saber da aproximação de uma tempestade (Turnay mente determinada nos mitos ocidentais; no máximo, é possível dizer que
& High 1892: 42). Os Salish de Puget Sound dizem que “quando o tempo vira se trata de um pássaro mergulhador. É possível que as tribos envolvidas não
e vem uma tempestade, o Mergulhão, cujo avô é o Trovão, vai para os lagos Ú
de água tranquila. Retorna para o litoral em abril; é o chefe do povo da água *
Ver nota a respeito, omm: xxxxx. [n.t.]
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distingam, como os Blackfoot, os patos do gênero Mergus, os podicipedí- empírica. Pois um mito, ou conjunto de mitos, longe de constituir um corpo
deos e os ciconiídeos (Schaeffer 1950: 40).7 inerte, sujeito a influências de ordem puramente mecânica, operando por
Numa das versões yana do mito de Dona Mergulhão, ela morre sob os acréscimo ou subtração de elementos, deve ser definido numa perspectiva
golpes de uma ave mergulhadora (diver), movida por forte antipatia con- dinâmica, como um estado de um grupo de transformação provisoriamente
tra a outra espécie (M₅₄₇, Sapir 1910: 232). Na versão registrada por Curtin em equilíbrio com outros estados, mas cuja aparente estabilidade depende,
(1899: 412-15, M₅₄₆), esse papel de justiceiro cabe a aves pescadoras, certa- num plano superficial, do grau no qual as tensões prevalecentes entre os dois
mente maçaricos kildir. Pois bem, os mitos algonquinos acerca das esposas estados se anulam. Se uma delas se tornar forte demais num determinado
dos astros (que já invertem o personagem de Dona Mergulhão, no sentido ponto, todo o sistema bascula em direção a um novo equilíbrio entre estados
de que em vez de desejarem uma união incestuosa, as heroínas querem des- modificados. Tais crises devem ter ocorrido numerosas vezes ao longo da
posar estrelas, isto é, maridos afastados) também colocam em cena um par história, antes da morte dos mitos e de seus contadores, proferindo um dis-
composto por Mergulhão e um pássaro aquático menos imponente, por curso derradeiro, paralisados para sempre, como os habitantes de Pompeia
quem as heroínas sobreviventes de uma aventura celeste se deixam seduzir, que, nas palavras de Proust, foram surpreendidos por um outro cataclisma e
tomando-o pelo outro pássaro. Portanto, este muda de sexo: tiveram seus gestos eternizados ao serem interrompidos.
Se agora sabemos que, contrariamente ao que se costumava crer, a área
a) (mergulhão õ) —Y (mergulhão ∆), de distribuição do ciclo de Dona Mergulhão se estende até os algonquinos
orientais, não é porque os mitos se pareçam na região das Cascades e na
e, ao mesmo tempo, invertem-se as respectivas hierarquias dos dois pássaros: costa Atlântica. Eles não se parecem em nada, ou melhor, se parecem na
medida em que diferem de vários modos, e são esses modos de diferir que
b) (mergulhão < pássaro mergulhador) —Y (pássaro mergulhador < mergulhão); se parecem (Lévi-Strauss 1962a: 111). Para percebermos isso, era preciso ini-
cialmente admitir que todos os mitos dizem; e verificar, em seguida, que os
o que não impede, aliás, o pássaro menos imponente de matar o outro no final, mitos wabanaki (M₅₇₅) não dizem apenas coisas diferentes das que dizem os
em ambos os casos. Vale lembrar que mitos chilcotin e bella coola já mencio- mitos de Dona Mergulhão desde os Klamath até os Maidu e Wintu, eles os
nados (M₅₈₁a, b, supra, p. 177) ilustram um terceiro estado da transformação: contradizem, e para tanto, invertem meios de expressão que são, entretanto,
compartilhadps por ambas as regiões. Decorre daí, primeiramente, que
c) (mergulhão + pássaro mergulhador) > (esposa exógama de um urso = Dona Mergulhão-1). narrativas que ninguém imaginara aproximar constituem, na verdade, um
único mito, e ilustram vários estados de uma mesma transformação. E, em
! seguida, que tais estados complementares podem esclarecer uns aos outros.
Pois, supondo que tivéssemos partido do negativo, de que certos aspectos
As considerações acima levam a uma primeira conclusão: o ciclo de Dona teriam permanecido indecifráveis por esse motivo, assim que temos acesso
Mergulhão possui uma extensão muito mais vasta do que supuseram os ao positivo, a comparação das duas imagens permitirá interpretar detalhes
adeptos do método chamado “histórico” que, como Demetracopoulou, pre- até então obscuros ou confusos. Vejamos como isso acontece.
tendem constituir um sistema mitológico baseando-se exclusivamente nos Comecemos por definir a estrutura da permutação. Quando analisamos
traços comuns a várias versões que podem ser percebidos por uma análise a segunda parte do ciclo de Dona Mergulhão, percebemos que um incesto
disjuntivo — no sentido de que separa para toda a vida um irmão e uma irmã,
ele bem casado com uma esposa distante, ela transformada em ave — permite
7 . Consequentemente, seria imprudente explorar uma eventual correlação entre a
plumagem do Mergulhão, caracterizada, no verão, pela oposição entre preto e branco, e a
ao mito colocar o problema da ressurreição dos mortos e da periodicidade
de certos patos, que sofre um “eclipse” sazonal, durante o qual penas escuras substituem da vida humana. Na outra ponta da área, a transformação wabanaki emprega
quase que totalmente as claras. Ou seja, para uma das categorias de pássaros, o contraste a noção de um incesto conjuntivo — unindo na morte um irmão e uma irmã
entre preto e branco é de ordem sincrônica e, para a outra, de ordem diacrônica. que preferem morrer juntos a serem separados — para explicar a existência
196 | Terceira parte: Cenas da vida privada Pela vida toda | 197
de uma constelação cujo curso acompanha o das estações. De fato, em toda Sem saber da morte do irmão, a moça estranhava que ele não viesse mais aos encon-
essa região da América, Orion e as Plêiades presidem ao calendário. Entre os tros. Sua irmãzinha lhe trazia comida, e ela acabou contando. Então, ela disse que sua
Iroqueses (Fenton 1936: 7), o ano novo começa em janeiro-fevereiro, quando reclusão tinha acabado, pediu suas mais belas roupas, e correu para o lugar onde jazia o
as Plêiades culminam ao cair da noite, seguidas de perto por Orion. No outro corpo do irmão. Tentaram pegá-la pelas roupas, ela as tirou rapidamente e se lançou no
extremo da área que nos interessa, os Shasta sabiam que o inverno tinha che- abismo. Unidos pela morte, os dois amantes triunfaram: “Quisemos ficar juntos e agora,
gado “quando as Plêiades apareciam ao amanhecer acima das colinas; seu estamos unidos para sempre. No futuro, outros irmãos e irmãs farão o mesmo que nós”.
desaparecimento marcava a chegada do verão” (Holt 1946: 341). Entenda-se: O pai sentiu remorsos. Quis ressuscitar seus filhos decretando que a morte não
quando elas eram visíveis no horizonte ocidental, no momento do nascer do seria definitva. Seus conselheiros se opuseram e ele desistiu. Mas como era um pode-
dia, pois, nessas latitudes, as Plêiades surgem de manhã a leste no finalzinho roso feiticeiro, fez morrer os filhos dos que discordaram dele. Então, foi a vez de eles
da primavera, razão pela qual não são visíveis no verão. defenderem a possibilidade de ressurreição, ao que o chefe respondeu: “Não. Os cadá-
Se os Klamath, vizinhos dos Shasta, chamam de “Mergulhões” a Grande veres de meus filhos já estão decompostos, não posso devolver-lhes a vida. Doravante,
Ursa, cuja posição no céu contrasta com a de Orion e a das Plêiades, é digno a morte será definitiva”. É a origem da feitiçaria (Ray 1933: 133-35; Boas 1917a: 106).
de nota que eles possuam em relação a Gêmeos, constelação vizinha às ante-
riores, crenças que lembram bastante os mitos wabanaki relativos a irmãos Como nas versões wabanaki, portanto, o incesto conjuntivo surge ligado
incestuosos, afogados na água gelada de um lago antes de se tornarem as Plêia- à periodicidade, considerada do ponto de vista astronômico ou biológico.
des ou Orion: “Os Gêmeos representam um irmão e sua irmã gêmea. Quando Mas os Sanpoil, que associam o incesto cojuntivo à segunda forma, contra-
eles saem à noite a leste, seu olhar congela a água dos lagos (dezembro); mais riamente aos Wabanaki, simplesmente viram o tema do avesso para explicar
adiante no ano, eles sobem no céu e anunciam a chegada da primavera” (Spier o surgimento da primeira:
1930: 221). Como vimos, o irmão e irmã incestuosos de M₅₇₄a se afogam num
lago gelado, no inverno, portanto; são primeiramente transformados em M 588 SANPOIL: ORIGEM DO SOL E DA LUA
mergulhão e, em seguida, sobem ao céu e culminam na forma de Orion, que
ocupa essa posição ao crepúsculo, pouco antes da volta da primavera. Um irmão e uma irmã viviam sózinhos no mundo, e o rapaz pescava para os dois.
Ora, mitos provenientes do noroeste da América do Norte tratam o Certo dia, porém, ele ficou egoista e começou a comer todo o peixe no local da pes-
incesto conjuntivo de um modo em tudo comparável ao dos algonquinos caria; chegou até a esconder ovas de salmão nas perneiras, para que a irmã não as
orientais. O melhor exemplo se encontra entre os Sanpoil, que são Salish do pudesse encontrar. Mas ela as descobriu fazendo a faxina. Injuriada diante da atitude
interior, bastante afastados da área principal do mito de Dona Mergulhão, do irmão, saiu pelo mundo, sem aceitar suas desculpas nem escutar suas súplicas.
mas próximos da região em que prevalece sua transformação ilustrada pelo Para alimentar-se, ela ia recolhendo resina comestível pelo caminho, e a trans-
ciclo da avó libertina: portava numa espécie de berço improvisado. A resina se transformou em criança, e
cresceu depressa. O menino logo tornou-se capaz de pescar para a mãe, mas não de
M 587A , B SANPOIL: ORIGEM DO INCESTO E DA MORTE andar. Todas as manhãs, ela tinha de instalá-lo na margem de um rio. Um dia, ela o
esqueceu lá. Quando finalmente chegou, atrasada, só encontrou um monte de resina.
Era uma vez um irmão e uma irmã, que se apaixonaram um pelo outro na época em A mulher resolveu fabricar outra criança. Primeiro, fabricou cinco berços de palha
que a moça estava isolada na cabana de puberdade. O rapaz ia encontrá-la ali todas trançada e os empilhou um dentro do outro. Depois, fez explodir uma pedra expondo-a
as noites. Desconfiada, a mãe descobriu sobre o corpo do filho traços de tintura idên- ao fogo. Um fragmento dela saltou e caiu no primeiro berço, queimou-lhe o fundo e caiu
tica à que ela própria aplicava todos os dias na reclusa. Ela contou ao marido que, no berço seguinte, e assim por diante. Quando atingiu o quarto berço, a lasca já estava
preocupado em evitar o falatório dos habitantes da aldeia, de que ele era o chefe, resfriada, e ficou. Rapidamente, a mulher a colocou no quinto e último berço, onde ele se
resolveu, com a concordância da mulher, matar o filho. Apunhalou-o com um osso transformou num menino caolho. “Tudo bem — disse a mulher —, ele vai cuidar de mim”.
pontudo enquanto ele dormia e comunicou discretamente o falecimento. No dia O menino revelou-se bom caçador e pescador, mas ficou cheio de estar só e exi-
seguinte, o corpo foi enterrado no fundo de um despenhadeiro. giu um irmão. A mãe, sempre prevenida, cozinhou raízes selvagens sob as cinzas.
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Tirou a primeira, nem bem ficou cozida. Era uma menina, ela não quis, e jogou fora. produz um resultado imperfeito quando é prematuramente interrompido: a
A segunda era um lindo menino. filha, que a mãe joga fora. Somente o cozimento “no ponto” dará um resul-
Os irmãos sempre caçavam e pescavam juntos. Um dia, ficaram sabendo que tado satisfatório: um filho, que o mito qualifica como “um lindo menino”.
alguém estava tentando criar o sol e a lua, e resolveram se candidatar. Disseram De modo que, depois de M₅₈₇ e M₅₈₈ terem eliminado, respectivamente, o
adeus à mãe. Se tivessem sucesso, ela nunca mais os reveria, mas poderia vê-los no podre e o cru, como símbolos de uma periodicidade viável, o segundo mito
céu, um de dia, e o outro, de noite. inicialmente lança mão do fogo terrestre ou culinário, encarado em suas
Apresentaram-se ao concurso, e todos acharam que eram belos rapazes. Uma duas formas, intensa e lenta. Para compreender o modo como o mito for-
mulher-sapo que vivia longe dali teve vontade de ver os jovens estrangeiros. Ela urinou mula essa oposição, é preciso saber que os Sanpoil chamavam de cozimento
em direção ao céu, começou a chover muito, e o dilúvio apagou todos os fogos. Eles não “sem fogo” aquele em que certos alimentos eram guisados por dois ou três
sabiam para onde ir, quando viram a fumaça que saía da casa da sapa e entraram. Um dias num forno de terra com pedras aquecidas (Ray 1954: 106). Portanto, para
fogo agradável ardia dentro da casa, e eles pediram à “tia” permissão para se aquecerem. eles havia dois tipos de cozimento, diferenciados em relação ao fogo; mas
Mas a sapa não queria ser chamada assim, disse que não tinha família. Saltou no eles também praticavam outros, diferenciados em relação à água, já que suas
rosto do mais jovem e cruzou os braços em torno do pescoço dele, suplicando: “Faça de técnicas culinárias incluiam o cozimento por ebulição ou no vapor, de um
mim sua mulher”. Não houve meio de fazê-la sair dali, e mesmo chegando bem perto lado, e, do outro, a assadura e ressecamento sobre brasas, podendo ou não
do fogo, para queimá-la, o rapaz conseguiu apenas provocar as bolhas do dorso da sapa. ser levada ao estágio do grelhado (ibid.). Consequentemente, para perfazer
Enquanto isso, os animais eram postos à prova para servirem de sol e de lua, mas o emprego dos símbolos culinários, é preciso que os heróis, saídos de dois
sempre havia algo errado: nuvens demais, frio demais, calor demais. No papel de sol, cozimentos, com fogo ou “sem fogo”, também sejam mediatizados pela água.
pica-pau por pouco não queimou tudo, e todos tiveram de se refugiar na água. O A água, como o fogo doméstico, intervém sob dois aspectos. Água celeste
grou (ou a garça) produziu um dia interminável. Quando foi a vez de coiote, ele logo inicialmente, provocada pela sapa, que apaga todos os fogos exceto o seu,
começou a contar tudo o que via lá do céu, e todos acharam que a vida privada das junto ao qual os heróis se beneficiam de um calor tanto mais indispensável na
pessoas tinha se ser protegida contra tais indiscrições. medida em que dele nasceram. A primeira água desempenha, portanto, um
Finalmente, chamaram os estrangeiros. “Está bem — disse o caçula. Eu serei a papel destruidor. O mito lhe opõe uma água terrestre e protetora, no episódio
lua, apesar dessa sapa grudada no meu rosto; e você, meu irmão, será o sol, e bri- seguinte, em que o pica-pau — dono do fogo celeste e destruidor (veja-se cc:
lhará tanto que ninguém notará que você tem um olho só” (Ray 1933: 135-37; cf. Mdhb, 298 quanto ao caráter panamericano desse mitema) — provoca um incêndio
omm: 46 e o grupo de mitos Mdhf e Mdic, ao qual este evidentemente se liga). que obriga a população a se refugiar na água. Torna-se assim necessário que
quatro termos formando uma espécie de grupo de Klein (cf. omm: 293-95 e
M₅₈₇ e M₅₈₈ formam um grupo, como evidencia a complementaridade entre 332) — fogo terrestre e construtor, fogo celeste e destruidor, água terrestre e
os símbolos culinários com que operam. Para justificar o fato de os mortos protetora, água celeste e destruidora — se organizem em sistema e se ponham
nãos ressuscitarem e de a duração da vida humana estar sujeita à periodici- em equilíbrio para que uma periodicidade empírica possa se instaurar. E esta
dade, M₅₈₇ invoca o fenômeno da putrefação. Não se trata disso em M₅₈₈, que se opõe a uma ausência utópica de periodicidade, assim como se opõem a
se atém exclusivamente aos dois outros vértices do triângulo culinário, o cru utopia de um casamento incestuoso que só pode ser concluído com a morte
e o cozido, cujas propriedades analisa metodicamente. Assim como, em M₅₈₇, compartilhada, e o reverso de um incesto no plano alimentar (pois o herói de
os mortos não podem reviver por pertencerem à categoria do podre, tam- M₅₈₈ se desliga da própria irmã a ponto de se recusar a alimentá-la) que, por
pouco pode um nascituro viver se, como o primeiro filho da protagonista de intermédio de uma verdadeira recriação empregando os símbolos metafóri-
M₅₈₈, mantiver-se na categoria do cru, a resina comestível que sua mãe come cos da cultura, desemboca finalmente numa ordem natural regida pela perio-
diretamente nas árvores, e a cuja natureza ele, após uma existência efêmera, dicidade. Pois se é impossível aos mortos ressuscitarem, mas revoltante que
retorna irrevogavelmente. Os filhos seguintes, em compensação, nascem mesmo aqueles que falecem na flor da idade não retornem à vida, a alternân-
do cozimento. Porém, um cozimento violento produz um resultado incom- cia regular entre o sol e a lua, e a duração razoável da vida humana a que ela
pleto: o segundo filho é caolho. O cozimento lento sob as cinzas, por sua vez, imprime seu ritmo, fornecem um meio termo entre esses dois destinos.
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Percebe-se qual o interesse dos mitos sanpoil. Pela dupla homologia que iii. ... Esses espelhos gêmeos
estabelecem entre o plano alimentar e o plano sexual, e entre a periodicidade
biológica e a periodicidade astronômica, eles tocam o ciclo adjacente da avó
libertina. Mas ao mesmo tempo o retransformam, em dois sentidos: um que
leva ao ciclo de Dona Mergulhão, ao restituir a relação incestuosa entre irmão
e irmã, e outro, que faz da periodicidade biológica uma função do surgimento
das artes da civilização, cujo símbolo é, em todos os casos, a culinária. E, final-
mente, M₅₈₇, que transforma M₅₈₈ (ou o contrário), e que emprega o mitema Edward — Dazzle mine eyes or do I see three suns?
do incesto conjuntivo (duplamente invertido por M₅₈₈ para dar conta da Richard — Three glorious suns, each one a perfect sun;
origem do sol e da lua), se liga tanto ao ciclo de Dona Mergulhão, em que o Nor separated with the racking clouds,
incesto desempenha um papel disjuntivo, como à transformação wabanaki que, But sever’d in a pale clear-shining sky.
por meio do primeiro mitema, explica a periodicidade noturna, e não diurna, See, see! they join, embrace and seem to kiss,
com o surgimento da constelação de Orion. Mostramos (supra, p. 176-80) que As if they vow’d some league inviolable:
o ciclo do cego e do mergulhão também se insere no sistema; o que é confir- Now are they but one lamp, one light, one sun.
mado por um detalhe de M₅₈₈: o estratagema do irmão que esconde ovas de In this the heaven figures some event.
salmão em suas perneiras para não dá-las à irmã inverte o da irmã que, no w. shakespeare, King Henry the Sixth, Third Part, Act ii, Scene 1.
ciclo esquimó do cego e do mergulhão, consegue alimentar o irmão esfomeado
fingindo comer alimentos que esconde debaixo de suas roupas, junto à pele.
Ela comete assim uma espécie de incesto, por um bom motivo, como parece Podemos agora iniciar a segunda etapa da demonstração. Para tanto, será
confirmar o texto do mito, que nesse momento emprega o termo /uuinik/, apa- novamente preciso voltar para trás. Vimos que os mitos klamath e modoc
rentado a outros que evocam casamento (cf. Savard 1966: 128). sobre Dona Mergulhão (M₅₃₈, M₅₃₉) contam uma estranha história de
Constata-se, portanto, que toda a parte setentrional da América do Norte gêmeos póstumos, primeiro colados e unificados pela avó, que posterior-
é palco de uma vasta permutação. Da transformação wabanaki no extremo mente se desdobram, para dar lugar a um par de crianças de mesmo sexo
leste passa-se para o ciclo de Dona Mergulhão, no extremo oeste; depois, ou de sexos diferentes. Mas os mitos não se preocupam absolutamente em
subindo de lá para o norte, ao ciclo da avó libertina, que conduz à dupla motivar essas manobras sucessivas, e a fábula parece ser gratuita e incoe-
transformação sanpoil sobre a origem da morte e a do sol e da lua. Pros- rente, ou até contraditória. Para que soldar duas crianças numa só, já que
seguindo para o norte, encontra-se o ciclo do cego e do mergulhão, que se esse estado tem de ser provisório, visto que tudo o que o personagem bipar-
desenvolve do oeste para o leste, levando finalmente de volta à transforma- tido deseja é restabelecer sua dualidade? Antes, porém, de taxarmos os mitos
ção wabanaki. Porém, nessa ponta, as coisas se complicam em razão de uma de arbitrários, perguntemo-nos qual seria a situação na hipótese (verificada
torsão adicional. Com efeito, os mitos esquimó (cf. M₁₆₅, M₁₆₈; cc: 302-03), com tanta frequência em outros casos) de os mitos klamath e modoc con-
que situam a origem do sol e da lua no suicídio ou na fuga de um casal de tarem ao contrário uma história cujo sentido só se encontra la versão reta.
irmãos incestuosos, invertem, por assim dizer in loco, o ciclo do cego e Pois a segunda lei da termodinâmica não se aplica ao campo das operações
do mergulhão (em que irmão e irmã contraem uniões exogâmicas) e, ao míticas, onde os processos são reversíveis e a informação que veiculam não
mesmo tempo, se opõem diametralmente à transformação wabanaki, em se degrada, simplesmente passa para o estado de latência. Mas permanece
que os amantes se unem na morte, em vez de um tentar fugir do outro per- sempre recuperável, e o papel da análise estrutural é restaurar, para além da
petuamente, e em que estão na origem de uma constelação. Assim, à relação aparente desordem dos fenômenos, essa ordem subjacente.
de transformação virtual, que o inventário dos estados intermediários nos Tomemos como ponto de partida aquilo que chamamos de transforma-
permitiu evidenciar entre os estados extremos do grupo, acrescenta-se, nas ção wabanaki. Ela conta uma história inteiramente satisfatória do ponto de
regiões em que estes se encontram, uma relação de transformação atual. vista lógico, se não do ponto de vista da experiência. Tristão e Isolda exóticos,
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um irmão e uma irmã apaixonados um pelo outro se unem fisicamente na informe, em M₅₆₅a, uma menina, que nem é uma irmã, e que mesmo assim
morte, apesar de seus familiares, que se esforçam por mantê-los separados. não se casará com o rapaz, tem o rosto golpeado pelo falso irmão porque
Consolidados num ser único, eles reaparecem primeiro com o aspecto de ela o informa; e ela por isso se transforma em toupeira, criatura subterrâ-
um mergulhão, depois com o da constelação de Orion. Supondo-se que, nea, em oposição diametral não só com o irmão adotivo que voa pelos ares,
para inverter a mensagem desse grupo de mitos, deva-se também inverter o como também com o o astro que brilha no firmamento. Aliás, o herói irá
curso da narrativa, seria preciso partir de um irmão e uma irmã unificados separar-se definitivamente dela, subindo ao céu, onde se casa com a filha do
por vontade de seus familiares, e que realizem eles próprios sua separação. Trovão, num casamento dos mais afastados.
Meio de um incesto conjuntivo no primeiro caso, o mergulhão torna-se Portanto, M₅₆₅a fornece a contrario a prova de que o incidente do sol
causa de um incesto disjuntivo no outro. ferido em M₅₃₈ desempenha uma função pertinente, que não pode ser ape-
Se essa interpretação for correta, deveria decorrer disso que versões tais nas a de explicar a origem das manchas solares, visíveis a olho nu pelos
como M₅₃₉, em que o personagem bipartido se desdobra em dois irmãos, em índios, observadores extremamente treinados, quando o astro é encoberto
vez de um irmão e uma irmã, possuem um caráter derivado e constituem por uma bruma leve (cf. Reichard 1947: 63 n. 1). Sendo um fenômeno diurno
uma estapa subsidiária na cadeia de transformações. Voltaremos a isso (infra, em vez de noturno, que consiste em marcas escuras sobre fundo claro, em
p. 205ss). Contudo, antes de deduzir as consequências de uma hipótese, é pre- lugar de marcas claras sobre fundo escuro, as manchas do sol invertem, efe-
ciso firmar suas bases. No caso específico de que estamos tratando, a prova tivamente, uma constelação.
depende inteiramente de duas condições: que os gêmeos desdobrados das ver- Porém, pelo menos em relação ao primeiro ponto, elas também invertem
sões ocidentais tenham, como os irmãos unificados da transformação waba- as manchas da lua, igualmente escuras em fundo claro e inscritas na orbe de
naki, uma conotação astronômica e, em seguida, que tal conotação se oponha um corpo celeste, mas pertencente ao dia num caso, e à noite, no outro.
à outra do mesmo modo que os dois grupos de mitos se opõem entre si. Não é difícil, aliás, efetuar a retransformação:
Consideremos inicialmente o mito klamath M₅₃₈. Nele, os gêmeos cola-
dos se desdobram em um irmão e uma irmã, atormentados pela ignorância M₅₃₈ (origem das o sol, marcado no rosto pela
em que se encontram quanto à própria origem. A irmã persegue o irmão manchas do sol) irmã, informa os irmãos de
com perguntas e, como ele não tem respostas, ela resolve interrogar o sol. sua condição isolada
Para obrigar o astro a falar, ela dispara uma flecha que lhe perfura o rosto,
M₃₅₈, ₃₉₂ etc. (origem das o homem, marcado no corpo
deixando uma marca escura que permanece visível (supra, p. 42, 46). O
—Y manchas da lua) por sua irmã, informa-a do grau
mesmo incidente aparece em forma invertida numa versão tillamook que,
de proximidade entre eles.
como mostramos, ilustra um estado limite do mito de Dona Mergulhão
(M₅₆₅a; supra, p. 150). Nela, o filho orfão de um casal incestuoso é aco-
lhido por uma família que o mantém sem saber a própria origem. Mas a Essa observação coloca em evidência um fato de capital importância. Desde
filha da casa não gosta dele, e multiplica as alusões desagradáveis, até que o extremo norte até o extremo sul do Novo Mundo, existe um grupo de mitos
o menino, exasperado, joga sua bola no rosto dela. Tentanto se proteger, a a que nos referimos muitas vezes (cc: 302; mc: 172; omm: 73, 321; supra, p. 189),
menina, choramingando, esfrega o nariz, que vai crescendo, e os olhos, que cuja função é explicar, concomitantemente, a origem do sol e da lua e a das
vão diminuindo, e seus punhos ficam colados no pescoço. Ela acaba se trans- manchas desta. Conta-se que elas provêm das marcas escuras feitas por uma
formando em toupeira, enquanto o menino obtém o Pássaro-Trovão como jovem no rosto de um visitante noturno cuja identidade ignorava, e que era seu
espírito guardião. Então, os dois associam seus respectivos talentos — ela, o próprio irmão. A moça, revoltada, foge para o céu e torna-se o sol; seu irmão,
de andar por debaixo da terra, ele, o de voar nos céus — e assim conseguem transformado em lua, se esforça em vão por alcançá-la. Agora compreende-se
matar a ogra responsável pelo comportamento incestuoso e pela morte sub- porque esse vasto grupo, que situa o surgimento de uma configuração astro-
sequente dos pais do menino (E.D. Jacobs 1959: 45-54). De modo que, se em nômica num incesto disjuntivo, faz parte do mesmo conjunto daqueles que
M₅₃₈, uma gêmea, futura incestuosa, perfura o rosto do sol para que ele a discutimos até o momento. Poder-se-ia até dizer que ele constitui o estado
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inicial mais plausível para toda a série de transformações, devido à sua vasta cada um deles descreve as manchas da lua ou do sol, do irmão ou da irmã
difusão, e também à sua armação rígida, que limita sua plasticidade. incestuosos, ou ainda as da plumagem do pássaro. Como prova de que o
Basta uma só transformação, com efeito, para gerar a partir desse grupo mito sobre a origem do sol e da lua se inverte no de Dona Mergulhão, já invo-
de mitos o que isolamos entre os Wabanaki. O incesto disjuntivo devido à camos um argumento: as manchas que revelam o infrator aparecem ora no
vontade de um só torna-se conjuntivo, de comum acordo, e resulta daí ou irmão, ora na irmã, e no primeiro caso, são escuras em fundo claro (homó-
a origem do sol e da lua com suas manchas, ou a de Orion e das Plêiades. logas às manchas da lua), e no segundo, claras em fundo escuro (homólogas
Vê-se, ao mesmo tempo, por que razão os mitos colocam Orion e as Plêiades às do Mergulhão tal como os próprios mitos as descrevem). Notamos tam-
em oposição diametral para com os dois astros. Essas constelações são visí- bém (cf. supra, p. 66, 85, 105, 108, 121) que várias versões do mito de Dona
veis: 1) somente à noite, 2) durante metade do ano, 3) mas sempre juntas. Em Mergulhão precisam que o irmão e a irmã, caminhando do leste para o oeste,
compensação, sol e lua são visíveis: 1) um de dia, a outra à noite, 2) durante estavam juntos, e voltaram separadamente na direção oposta. Ora, o sol e a
o ano todo (ainda que de modo descontínuo, devido às nuvens e noites sem lua também caminham do leste para o oeste, mas separados.
lua), 3) mas, ainda assim, raramente juntos. Da Califórnia ao Oregon, não Consequentemente, um detalhe do mito de referência M₁, que pode-
faltam mitos para explicar como um astro primitivamente único e que ilu- ria parecer insignificante, adquire uma grande importância. Depois de ter
minava continuamente o céu se desdobrou para gerar o sol e a lua, ou foi cometido o incesto, o herói é delatado pelas penas de seu adorno que ficam
morto por dois irmãos que se tornaram sol e lua e, desde então, garantem a coladas no cinturão escuro de casca da mãe (cc: 43). Isso quase bastaria para
alternância entre dia e noite (Sapir 1909a: 171-73, 307-11; Boas 1893: 157; etc.). inserir o mito bororo na mesma coluna dos de Dona Mergulhão, mas não
A versão wintu enfatiza a incompatibilidade entre os dois astros: “Agora — no mesmo nível, em razão do caráter periódico da transformação. Como
diz o Ser supremo ao sol — você pode ir para o leste e começar seu labor. uma tabela periódica, esta segue vários eixos, um denotando o lugar que
Você irá deslocar-se o tempo todo, dia após dia, sem parar. Todos os seres cabe a cada mito no seio de uma série contínua, outro invertendo a codifica-
vivos irão vê-lo, com seu bastão ardente. E você irá ver tudo o que se passa ção, alternadamente astronômica e meterológica, dos estados consecutivos
no mundo, mas será solitário. Ninguém jamais poderá fazer-lhe companhia para cada mudança de hemisfério, devido ao fato de as mesmas conjunturas
ou acompanhá-lo em suas andanças.” É, portanto, significativo que um mito astronômicas conotarem estações opostas em cada caso.
esquimó do Alasca (M₅₉₀; Spencer 1959: 258) tome o sentido oposto ao da Nos dois volumes anteriores (mc: 239; omm: 29-30), mitos da Guiana
problemática habitual e deva fazer dos dois astros cônjuges em desacordo que parecem fazer de Orion uma espécie de contrapartida noturna do sol já
para explicar como, de modo totalmente excepcional, é possível que sejam tinham chamado nossa atenção. Os Kaliña dizem que a constelação “chama
vistos ao mesmo tempo. e apóia” o astro do dia. Um personagem “pervertido” a incarna; gostaríamos
O mito klamath M₅₃₈ ilustra o terceiro estado de uma transformação que, de saber se, como entre os Wabanaki, deve-se entender nisso um herói inces-
tendo partido de um incesto disjuntivo para explicar, em conformidade com tuoso. A constelação das Plêiades trava relações análogas com a lua: variante
os dados da observação, a existência da marcha do sol e da lua com suas combinatória da auréola lunar segundo os Tukuna (M₈₂; cc: 166), em corre-
manchas, tinha primeiramente revirado a proposição inicial e explicado, por lação negativa com a lua com respeito ao mel na mitologia do Chaco (mc:
um incesto conjuntivo, a existência da marcha das Plêiades e de Orion. No 94-96). Na América do Norte, os Blackfoot (infra, M₅₉₁) colocam em cor-
segundo estado, essas constelações tinham-se apresentado sob a aparência relação a lua e as Plêiades. Para os Thompson (M₄₀₀b) estas são “amigas
do Mergulhão, pássaro manchado de branco em fundo escuro (ao contrário íntimas” daquela, mas também responsáveis por suas manchas e, portanto,
da lua). Com M₅₃₈, uma nova torsão leva de volta ao incesto disjuntivo, por por sua luminosidade diminuída. Tais correspondências nos pareceram, a
intermédio do mesmo Mergulhão, mas para explicar a origem das manchas princípio, enigmáticas, mas agora percebemos que se baseiam numa trans-
do outro astro, uma questão que o primeiro estado do grupo tinha deixado formação que permite gerar toda uma série de mitos:
em suspenso.
Para determinar o lugar que cabe a cada mito no conjunto das transfor- (céu diurno) [sol//lua] —Y (céu noturno) [Orion ∪ Plêiades].
mações, dispomos portanto de um elemento diagnóstico, no modo como
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Cabe, notar, entretanto, que a fórmula é desequilibrada, já que cada um dos também sua identidade moral, provocam o aparecimento das manchas sola-
termos pode ser analisado do seguinte modo: res, fenômeno astronômico. Os mesmos irmãos então contraem uma união
incestuosa, a que a avó põe fim matando o marido; ela depois morre, em
a) (Orion, noturno) ≡ (sol, diurno) decorrência de um plano totalmente orquestrado pela neta, que aproxima a
b) (Plêiades, noturnas) ≡ (lua, noturna) água e o fogo terrestres. No final, a jovem viúva se junta ao esposo na morte.
Pode-se dizer, portanto, que esse segundo incesto, ao contrário do anterior,
ou seja, três termos noturnos, e apenas um diurno. Não seria exatamente apresenta um caráter conjuntivo, como o da transformação wabanaki; tanto
para superar essa dificuldade que os Tukuna aproximam as Plêiades da mais que, também nesse caso, ele acarreta indiretamente a fusão de dois per-
auréola lunar, em vez do próprio astro? Veremos em breve (205ss) emer- sonagens, não mais o irmão e a irmã, pois que M₅₃₈ já mobilizou esse motivo
gir na série de transformações uma família de fenômenos celestes mais ou ao invertê-lo, mas o filho da moça e o demiurgo, que o introduz no próprio
menos diretamente associados aos dois astros; eles enriquecerão o reper- corpo. Sua posterior separação possibilita um terceiro incesto, real como o
tório com termos que transcendem ou seccionam as categorias demasiado segundo, em forma atenuada (não envolve consanguíneos, mas um sogro e
simples de diurno e noturno. Mas podemos desde já conceber que as man- as esposas de seu suposto filho), e disjuntivo como o primeiro, pois provoca
chas do sol possam constituir um aspecto noturno do dia, e a auréola lunar, a separação das esposas infratoras, transformadas em pássaros selvagens
um aspecto diurno da noite. segundo várias versões. A não ser pelo incesto conjuntivo, desejado pelos
Para validarmos provisoriamente as proposições acima e confirmarmos dois protagonistas do mito wabanaki, e do qual resulta a incomporação do
que seu campo de aplicação cobre ambos os hemisférios, determinaremos bebê pelo demiurgo klamath, tudo opõe os dois pares de indivíduos que
a realidade de uma transformação bastante simples, que permite passar acabamos de mencionar: parentes em linha colateral versus direta, de sexo
dos mitos wabanaki aos da região amazônica discutidos em Do mel às cin- oposto versus do mesmo sexo, parceiros versus rivais... O que é compreen-
zas (pp. 232-33). Nestes, um irmão condena a irmã à vingindade e ao celi- sível, considerando-se que a transformação wabanaki destina seus dois
bato e, para melhor proteger sua virtude, exila-a no céu, onde ela se torna heróis a se tornarem a constelação de Orion e (ou) a das Plêiades, e sabemos
a Plêiade. Ou seja, um não-incesto disjuntivo, que acarreta a metamorfose (supra, p. 39-40, 61, 70) que os mitos klamath colocam o demiurgo e seu filho
da irmã pelo irmão, em Plêiade (M₂₇₆), em vez de um incesto, conjuntivo, em correlação com o sol e a lua. Mas não se trata aqui de uma verdadeira
que metamorfoseia o irmão e a irmã na mesma constelação, ou na conste- equivalência, ou melhor, esta permanece em estado virtual, já que M₅₃₈ não
lação vizinha, Orion (M₅₇₅a, b). Independentemente, cada uma das versões especifica em lugar algum tais conotações. Basta-lhe que os dois persona-
transforma, aliás, o mito gerador do grupo, sempre presente, aquele que, a gens ajam de acordo com suas respectivas vocações astronômicas: volun-
partir do incesto disjuntivo entre um irmão e uma irmã, faz aparecer a lua e tariamente segundo M₅₃₀, involuntariamente segundo M₅₃₈, o demiurgo
o sol, cuja alternância, nos curtos períodos diurno e noturno, se situa a meio provoca um incêndio de origem celeste, do qual o filho protege a si mesmo
caminho entre a periodicidade sazonal e a mera ausência de periodicidade. e a seus familiares por meio de uma intervenção que o assimila a uma água
também de origem celeste.
! Recorrendo sucessivamente a três modalidades distintas de incesto (dois
incestos entre colaterais, um estéril e outro fértil, e um incesto às expensas
Tudo estaria muito bem se M₅₃₈ se contentasse em alinhar um único incesto de um descendente, que envolve suas esposas estéreis e deixa a esposa fértil
àquele mencionado pela transformação wabanaki e, antes dela, pelos mitos de fora), M₅₃₈ realiza três operações. A primeira engendra as manchas sola-
sobre a origem do sol e da lua. Porém, em M₅₃₈, não há um incesto, mas res, ignoradas pelo primeiro estado do grupo (M₁₆₅-M₁₆₈, M₃₅₈ etc., inte-
três. O primeiro, disjuntivo embora não realizado, envolve uma mulher ressam-se sobretudo pelas manchas da lua), e para o qual elas representam
empreendedora e seu irmão reticente. Provoca um incêndio terrestre e o nas- o que seria chamado em inglês de unfinished business. A segunda inverte o
cimento póstumo de duas crianças que são coladas uma à outra pela avó. As segundo estado do grupo (M₅₇₅a, b), relativo a Orion e às Plêiades, ao resti-
crianças conseguem recuperar sua identidade física e, buscando recuperar tuir personificações do sol e da lua cuja identidade astronômica permanece
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subentendida. A terceira, finalmente, qualifica duas divindades antropomor- código astronômico código meterológico
fas que substituem os astros em termos exclusivamente meterológicos, mas
ainda por intermédio de metáforas. américa 1/ M₁₆₅ etc. (incesto disjuntivo)
De tal modo que é o terceiro incesto de M₅₃₈ que, ao imprimir o derra- do norte Y sol, lua e suas manchas
deiro movimento à intriga, gera a sequência de transformações que, para
simplificar, chamaremos de primárias, com o intuito de deixar um lugar 2/ M₅₇₅a, b (incesto conjuntivo)
para outras, que lhes estão subordinadas (infra, p. 205ss). Passa-se facil- Y Orion, Plêiades
mente do episódio final de M₅₃₈ para a transformação ilustrada pelos mitos
yurok, wiyot e makah (M₅₅₇-M₅₅₈), em que os demiurgos, anteriormente 3/ M₅₃₈ (1) (incesto disjuntivo)
Y manchas do sol
congruentes ao sol e à lua, se invertem em direção às constelações noturnas
e invernais, Orion e Plêiades, cuja identidade astronômica eles continuam
4/ M₅₃₈ (2) (incesto conjuntivo)
não assumindo, mas cujas prerrogativas meterológicas igualmente exercem,
Y [sol, lua] (sentido figurado)
como anunciadores de chuva e tempestade.
Mas também se passa para o mito de Dona Mergulhão (M₅₄₆-M₅₅₅), que
5/ M₅₃₈ (3) (incesto disjuntivo)
inverte o do desaninhador, de que certas variantes (M₅₅₀) fazem o ritmo
Y [fogo, água celeste] (sentido
sazonal derivar da busca de um irmão pela irmã (metáfora de um incesto figurado)
conjuntivo, ainda que inspirado por sentimentos puros) e da execução,
desejada pela mesma irmã, da verdadeira incestuosa, metamorfoseada em 6/ M₅₅₈b,c (incesto ausente, pai e
pássaro anunciador da primavera. Uma outra transformação primária, esta filhos aliados)
envolvendo mudança de hemisfério, conduz ao mito bororo de referência Y [Orion], estação das chuvas
M₁, no qual a configuração incestuosa é revirada, em relação ao desaninha-
dor norte-americano: filho com esposa do pai em lugar de pai com esposa 7/ M₅₅₇-M₅₅₈a (incesto disjuntivo)
do filho. E, ao mesmo tempo, por razões de ordem cosmográfica, o mesmo Y [Orion], estação das chuvas
significado meterológico, a estação das chuvas, recebe por significante tácito
a constelação do Corvo, em vez de Orion. Mostramos, em O cru e o cozido 8/ M₅₄₆-M₅₅₅ (incesto conjuntivo)
(p. 205-45), como essa transformação se encadeia na última, sempre na Amé- (sentido figurado, irmã e irmão
rica do Sul. O mito xerente (M₁₂₄) que a ilustra impõe ao mito de referência aliados) Y bom tempo
M₁ uma série de inversões radicais, para poder explicar a origem de Orion e
das Plêiades, de um lado como significados astronômicos e, do outro, como
significantes da estação seca. Toda essa argumentação pode ser resumida no
quadro da página seguinte.
américa 1/ M₂₅₃, M₃₅₈ etc.(incesto disjuntivo)
Se deixarmos de lado seu lado esquemático e suas lacunas, esse qua- do sul Y sol, lua e suas manchas
dro coloca duas questões. A difusão panamericana do mito sobre a origem
incestuosa do sol e da lua autorizaria plenamente a considerar o grupo como 2/ M₁ (incesto disjuntivo)
fehcado. Resta a saber se seria possível efetivar tal fechamento, voltando de Y [Corvo], estação das chuvas
M₁₂₄ a mitos norte-americanos. Em segundo lugar, seria preciso localizar, no
hemisfério norte, pelo menos sinais de uma transformação que engendre a 3/ M₁₂₄ (incesto disjuntivo)
constelação do Corvo, como faz o mito de referência sul-americano. Exami- Y Orion, Plêiades . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . estação seca.
nemos essas duas questões, uma após a outra.
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Existe na América um mito sobre a origem das Plêiades em que um já que abusam da mãe, atraindo-a para a casa dos homens com um pretexto
bando de crianças gulosas ou mal-nutridas, cheias de rancor para com seus da ordem do vestuário (para ajudá-los a se pentearem e adornarem, dizem
pais, resolvem subir ao céu e transformar-se em constelação (cc: 246-49). eles), e, em M₅₉₁, realmente por um caso de roupa. Também nos dois casos
Esse grupo está claramente articulado com M₁₂₄, no qual realiza uma dupla as consequências são as mesmas, a origem da água terrestre e a da estação
transformação, passando do código sexual para o código alimentar, e da seca, que é água celeste negada. A mudança de hemisfério deixa a armação
satisfação para a frustração. intacta, afeta apenas o momento em que ocorre a transformação dos heróis
O caráter panamericano desse mito, demonstrado nos volumes anterio- em Plêiades, ou no início ou no fim de um período de seca.
res (cc: 246-52; mc: 95, 111; omm: 39), prova que o grupo também se fecha em Não se pode deixar de notar o papel dos cães, mediadores entre a huma-
M₁₂₄. É inclusive possível mostrar que, nesse ponto do ciclo, o fechamento nidade e as forças celestes e também donos da água potável, pois esse duplo
tem um caráter real, e não apenas virtual. Pois os Blackfoot que, ao pé das papel ao mesmo tempo reproduz e inverte o papel que lhes atribuem, mais a
Rochosas, são os representantes mais ocidentais da família linguística algon- oeste, os mitos de pequenos grupos algonquinos isolados na costa do Pacífico,
quina, possuem um mito das Plêiades a que já nos referimos (cc: 248 n. 2), de donos do fogo de cozinha. São mitos (M₅₅₉) que transformam os de origem
no qual é perceptível uma interseção dos dois outros: da chuva, oposta ao fogo doméstico, ao passo que aqui, a chuva apresenta uma
relação de complementaridade para com a água de fonte. Esse não é, aliás, o
M 591 BLACKFOOT: ORIGEM DAS PLÊIADES único caso em que os mitos dos Blackfoot e de seus vizinhos de língua sioux,
os Assiniboine, apresentam notáveis afinidades com os da região das Casca-
O pelo dos jovens bisões, na primavera, era especialmente apreciado pelos índios des. Ainda a respeito da origem das Plêiades, outras versões blackfoot (M₅₉₁b,
por sua cor e maciez, e os que tinham posses buscavam-nos para vestir seus filhos. McClintock 1910: 49; cf. também M₅₉₁c-d, Uhlenbeck 1911-12: 112-13; Josselin
Houve, outrora, seis irmãos, que infernizavam os pais para terem essas peles, mas os de Jong 1914: 37-38) explicam porque os meninos não conseguiram as peles
pais ou eram pobres demais, ou negligentes demais, ou estavam ocupados demais que queriam: os jovens bisões as vestem somente na primavera, período em
para poderem satisfazer a vontade de seus rebentos. Quando acabou a caça de pri- que as Plêiades não são visíveis. Consequentemente, quando a constelação
mavera, os jovens, contrariados, resolveram ir embora para o céu. Logo chegaram à está presente no céu noturno, a bela pele está ausente, e quando os bisões a
casa de um velho casal, Sol e Lua, e expuseram-lhes suas queixas. Pediram ao Sol, que possuem, é a constelação que desaparece. As peles de primavera, na terra, e as
parecia compreendê-los, que os vingasse, privando as pessoas de água. O astro no Plêiades, no céu, são regidas por uma relação de incompatibilidade.
início hesitou, mas, instigado pela esposa, acabou concordando. Essa problemática das Plêiades se encontra igualmente na região das Cas-
A terra passou a sofrer um calor tórrido durante o dia; e, durante a noite, o luar cades. Os Shasta (M₅₉₁e, Dixon 1910: 35-36) ligam o nascimento da constela-
era tão intenso que o tempo não ficava mais fresco. Os lagos e rios começaram a ção a um incidente entre Coiote e Guaxinim. O primeiro matou o segundo
ferver. Toda a água do mundo evaporou. Os homens foram salvos pelos cães, animais por descuido e o deu de comer a seus filhos. Mas esqueceram de servir o
domésticos, que cavaram os leitos ressecados até a água jorrar das profundezas. É a caçula que, para vingar-se, disse aos pequenos guaxinins o que tinha acon-
origem das fontes, e a razão do respeito que os homens demonstram para com seus tecido com o pai deles, e eles mataram todos os filhos de Coiote, exceto seu
cães. No sétimo dia, os cães começaram a uivar para a lua, na esperança de que ela, cúmplice, que levaram consigo para o céu. Hoje, são eles que se vê nas Plêia-
que não tinha piedade de seus donos, pelo menos tivesse piedade deles. Os astros des. No inverno, quando os guaxinins hibernam, essas estrelas são continua-
aceitaram fazer chover. Os rapazes ficaram no céu, e se tornaram as Plêiades (Wissler mente visíveis e brilham muito. Mas quando os guaxinins saem, no verão, as
& Duvall 1908: 71-72). Plêiades se retiram. Também nesse caso, o esquema etiológico se baseia na
incompatibilidade das duas conjunturas, uma terrestre, a outra celeste.
É digno de nota que, para evocar um período em que falta água celeste, tanto Percebe-se que a mitologia dos Blackfoot lança uma ponte entre con-
M₅₉₁ como M₁₂₄ precisem introduzir o motivo de uma água de origem sub- juntos muito afastados, mas cujo confronto, levado a cabo por meios mais
terrânea, como a única capaz de suprir à ausência da outra. Em ambos os diretos, já nos tinha levado a aproximar, os mitos da região das Cascades,
casos, os irmãos são culpados de descomedimento, no plano sexual em M₁₂₄, de um lado, e, do outro, os das regiões tropicais da América do Sul. Nesse
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sentido, convém assinalar uma outra transformação também operada por trouxeram consigo, ao lado da história dos gêmeos desdobrados (supra,
essa mitologia, pois permite articular com os demais um último grupo de p. 36), motivos bastante arcaicos (cf. infra, p. 499), conhecem bem a cons-
mitos sobre a origem de Orion e das Plêiades, cujo lugar no quadro geral telação do Corvo, que analisam o quadrilátero irregular em “pés afastados”,
que estamos montando ainda não determinamos. São os mitos guianenses “sua pena”, “seu corpo”, “seu bastão”, “seu fogo” (Franciscan Fathers 1910: 43).
(M₂₈, M₁₃₅-M₃₆, M₃₆₂ etc.) que derivam essas constelações de um persona- Seu habitat atual se situa, a bem dizer, ainda mais ao sul, por volta do 37°.
gem mutilado. Num mito blackfoot (M₅₉₂, Wissler & Duvall 1908: 72-73), Além disso, ainda que os índios do noroeste norte-americano tivessem
uma mulher adúltera que abandonou os seus para ir viver com um perso- conhecido e nomeado o Corvo, não haveria razão alguma para que lhe tives-
nagem lunar se disfarça de homem para rever os filhos. Eles a reconhecem, sem dado o mesmo nome que nós lhe damos desde a Antiguidade. O que
e depois o pai quer matar a infiel, mas ela escapa pelo buraco da fumaça, torna ainda mais intrigante o fato de encontrar entre eles um mito que não
como um meteoro, e o homem só consegue cortar-lhe a perna com um facão. relaciona o pássaro a uma constelação, mas contam a seu respeito uma his-
A mulher volta para junto da lua e seu amante. Ainda é possível perceber sua tória quase idêntica à que os gregos invocavam para explicar a origem da
forma mutilada sobre o astro. constelação do Corvo:
Esse mito transforma os das Guianas em dois sentidos. O mitema do per-
sonagem de perna cortada nele conota as manchas da lua (escuras em fundo M 593 TAKELMA: O CORVO SEDENTO
claro), em vez de uma constelação (clara em fundo escuro). Essa revirada do
código astronômico é função de uma outra, expressa em termos sociológicos: Faltava água na aldeia. Os lagos e rios estavam secos. Mandaram Gralha e Corvo, duas
em vez de um incesto entre irmãos, trata-se aqui de um adultério com um per- moças que passavam pela primeira menstruação, pegar água no oceano. Corvo achou
sonagem celeste, afastado, portanto. E esse motivo do adultério, que inverte ou o caminho longo demais, e resolveu urinar no balde que levava.8 Não enganou nin-
abranda o incesto, caso o parceiro seja um estrangeiro ou um próximo, per- guém e levou uma bronca. Gralha retornou muito depois, trazendo água potável.
mite ligar o mito blackfoot às versões guianenses em que ora é uma mulher Como punição, Corvo foi condenada a passar sede durante o verão e só encontrar
que mata o marido para ficar com o irmão dele, ora um homem que mata o o que beber no inverno. Por isso, os corvos não bebem durante a estação quente e
irmão para ficar com a esposa dele. Em Do mel às cinzas (p. 225-28, 235-36), são roucos por causa da garganta seca (Sapir 1909b: 163).
mostramos que a heroína lasciva dos mitos guianenses transforma a gulosa de
mel do Chaco. Seria portanto lícito buscar, na escala do continente, um novo As analogias entre o mito grego (cc: 243) e o mito americano são impressio-
fechamento na série de transformações que levasse da moça louca por mel nantes. Em ambos os casos, corvo é mandado buscar de beber. Por avidez ou
na América do Sul para Dona Mergulhão, louca por seu delicioso irmão nos por preguiça, deixa de cumprir sua missão, que é a de compensar a falta de
mitos do noroeste da América do Norte, com mais rapidez do que esperado. água celeste com a água terrestre que é a única disponível, em fontes ou no
oceano. Também nos dois casos o corvo recebe o mesmo castigo, ter sede
! durante o verão e ficar com a voz rouca, devido à garganta ressecada. Mos-
tramos, em O cru e o cozido, que o mito grego, relativo ao verão, coincidia
A segunda das questões que colocamos dizia respeito à constelação do Corvo. com um mito sul-americano sobre a origem de Orion e das Plêiades (M₁₂₄),
Embora pertencente ao céu austral, ela permanece teoricamente visível constelações estivais na América do Sul, dada a mudança de hemisfério, mas
durante os meses de verão em altas latitudes, dificilmente visível, é verdade, que evocam o início, e não o fim, da estação seca. E vimos que os Blackfoot
menos em função de sua posição muito baixa no horizonte do que da longa têm um mito (M₅₉₁) muito semelhante a M₁₂₄ para explicar a origem das
duração dos dias árticos. Corvo não parece, de fato, ter lugar nas represen- Plêiades, nesse caso anunciadoras da período das chuvas. Em tais condições,
tações e crenças dessa parte da América, carência essa talvez relacionada à não é inconcebível que, invertendo-se sem mudar de hemisfério, esse mito
observação de Spier (1930: 221) de que os Klamath, que vivem mais ao sul,
nas vizinhanças de 43° lat. N, só denominavam as constelações de inverno. 8 . Invertendo o comportamento da Sapa de M₅₈₈ (supra, p. 187), que urina em direção
Mas os Navajo, que são atabascanos vindos do norte e que possivelmente ao céu para fazer chover.
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ou outros do mesmo tipo tenham tomado uma forma muito próxima à do este fez o ladrão passar sede: á água escorria pelos lábios dele, e tudo à sua
mito que, em latitudes comparáveis, servia, no Velho Mundo, para explicar a volta secava. Ele acabou se transformando em pássaro. Os Tillamook con-
origem de uma constelação ligada à estação seca. tam (M₅₉₇a, Boas 1898a: 140) que a Gralha deu sua voz ao Pássaro-Trovão
Faltaria ainda que M₅₉₃ fosse passível de receber uma conotação astro- em troca da maré baixa, para poder pescar caranguejos e peixes. Mas aquela
nômica, além da conotação meterológica, que o texto deixa evidente. A maré sobrenatural era baixa demais e, assustada com os monstros marinhos
história do corvo sedento pertence a um vasto conjunto mitológico regis- que ela deixava aparecer, Gralha pediu que a água recuasse menos.
trado em toda a costa do Pacífico, dos Tlingit ao norte até os Coos, de que Os Coos também contam (M₅₉₇b-f, Frachtenberg 1913: 14-19; 1914: 34-38;
Boas (1916: 656-57) fez um inventário parcial e provisório. As versões tlingit Jacobs 1940: 234-35, 241-42) como Corvo trocou sua voz, antigamente pode-
(M₅₉₄a, Swanton 1909: 9-10, 120-21, 418) contam que tempestades contínuas rosa, com o Trovão, “pai dos alimentos”, pela dele e por uma das duas marés
provocaram inundações e fome. Corvo, demiurgo e enganador, conseguiu diárias. Em seguida, ele conseguiu a outra em troca do raio, que era capaz
escapar das águas subindo até o teto do mundo, ao qual ficou pendurado de produzir piscando os olhos. Graças a ele, duas vezes por dia, os homens
pelo bico. Quando a água baixou à metade, ele desceu de volta à terra e che- podem se precaver contra a fome recolhendo frutos do mar.
gou à casa de uma velha, que era a dona das marés. Ela não podia acreditar Os Squamish (M₅₉₇g, Hill-Tout 1900: 544-45) transpõem o esquema
que houvesse ouriços para comer pois, naquele tempo, a maré sempre estava espacial da alternância das marés para o registro temporal, e assim restituem,
alta e não era possível pegar os produtos do mar, que nunca recuava. Irri- graças a uma transformação simples, mar —Y céu, a função meterológica que
tado com a incredulidade de sua anfitriã, ele enfiou-lhe no corpo espinhos, cabe ao pássaro no Velho Mundo: para salvar os seus de uma seca persistente,
restos de sua refeição, e ordenou ao mar que recuasse. “Toda a costa secou, Corvo roubou o filho do dono da chuva, e só concordou em devolvê-lo em
nunca dantes fora vista maré tão baixa. Salmões de todas as espécies, baleias, troca de chuvas ocasionais. “Por isso há dias em que chove, e outros em que
focas e outras criaturas marinhas jaziam na areia. Juntaram provisões que não chove. Agora, o tempo seco e o tempo úmido se alternam.”
duraram muito, muito tempo”. É a origem das marés. Swanton (2: 120 n. a, Como esse mito salish [salish? ou seria squamish?], os dos Coos mos-
M₅₉₄b) faz alusão a uma outra versão, em que a egoísta dona dos alimentos tram que, no pensamento indígena, a alternância das marés é também
se vê obrigada a entregá-los por intervenção de alguém. O marido dela, que a alternância entre seca e umidade, entre abundância e penúria.9 E assim
a controlava de perto, provocou um dilúvio para vingar-se. Ele se chamava traduz, por intermédio de formas curtas de periodicidade, oposições mais
Mergulhão, o que nos permitiria certamente traçar, através da mitologia da fundamentais. Trovão, pai do alimento, tem a lua por serviçal. Quando não
costa noroeste, um itinerário que levasse de volta ao ciclo mais meridional há nada para comer, os pássaros atacam o astro da noite e provocam um
que discutimos longamente, cuja protagonista, de mesmo nome, era mulher eclipse; a abundância então retorna (Jacobs 1939: 68). O mito evoca, a esse
e não homem e provocava um incêndio em vez de uma inundação. Contudo, respeito, a barulheira que os homens fazem para torcer pelos pássaros no
deixaremos essa questão para nos concentrarmos na da origem das marés. combate; o que mostra que tínhamos razão quando, em O cru e o cozido,
A versão tsimshian (M₅₉₅, Boas 1916: 64-65) evoca o tempo em que elas criticávamos a interpretação corrente do charivari por ocasião dos eclip-
eram mensais. As pessoas, privadas de mariscos e outros frutos do mar, pas- ses, segundo a qual ele expulsaria o ogro que devora o astro. Pois aqui, o
savam fome durante longos períodos. O demiurgo, personificando um corvo, ogro é o próprio astro, e o ruído contribui para sua derrota. Essa notável
enfrentou a dona das marés e instituiu sua alternância. A velha, para vingar- reviravolta é acompanhada por uma outra, relativa ao raio, que simboliza o
se, provocou uma grande seca. Bem longe do litoral, no interior, o demiurgo, fogo celeste com valor positivo e não, como acontece com tanta frequência,
sedento, conseguiu finalmente encontrar água sob as raízes de um amieiro, o causa de incêndio, de penúria e de ruína; ao contrário, ele é moeda de troca
que confirma duplamente a origem subterrânea dessa água. E isso nos apro- para obter uma segunda maré, ou seja, a abundância dobrada. Ressaltamos
xima das versões mais meridionais. (M₃₃₇, mc: 381) uma inversão do mesmo tipo na América do Sul, e a analogia
A dos Takelma, inicialmente, e também as variantes hoh e quileute (M₅₉₆a,
b, Reagan 1935: 48-50; Reagan & Walters 1933: 315-16): Corvo comeu os 9 . Barnett (1937-39a: 13) cita o provérbio que os Brancos criaram inspirados na
mariscos de um rival, às vezes identificado ao vento sudoeste. Para vingar-se, economia indígena: “Quando a maré está baixa, a mesa é posta”.
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merece ser aprofundada. Ainda que nos limitássemos aos mitos sobre a ori- alhures (mc: 31 n. 1; Lévi-Strauss 1971c) de dedução empírica. A voz rouca do
gem das marés, as comutações são tão numerosas de um grupo tribal a outro corvo seria certamente suficiente para que grupos humanos diferentes con-
que exigiriam um estudo exclusivo. siderassem que ele tem sede, ainda que a etologia animal não confirmasse
Por exemplo, segundo o mito tsimshian (M₅₉₅), nos tempos antigos a que essa ave não bebe ou bebe muito pouco durante o verão, como afirmam
maré baixa e a abundância alimentar voltavam com a lua nova, ao passo que os mitos do Velho e do Novo Mundo. Com ou sem razão, os Antigos acredi-
os Coos responsabilizam o astro pela penúria. Para o nosso propósito, basta tavam que, nessa estação, uma doença crônica atingia os corvos, sobretudo
notar que os mitos que ligam a origem das marés ao Corvo — condenado a durante os dois meses que precedem o outono, antes do amadurecimento
passar sede por ter duas vezes reivindicado o papel de dono da seca; no eixo dos figos (Plínio 1584, x, xii e xxix, iii; Esopo, fábula 134, O corvo doente). De
vertical, quando domina a inundação, e no eixo horizontal, quando seca as todo modo, para justificar a configuração norte-americana sem apelar para
praias — referem-se insistentemente a conjunturas lunares, isto é, astronô- a Grécia antiga, bastaria registrar o fato de que os mitos frequentemente
micas. É verdade que mito blackfoot (M₅₉₁) que serviu de ponto de partida colocam Mergulhão e Corvo em oposição diametral (M₅₈₄a,d, supra, p. 179).
para a presente discussão alia a lua e os meninos frustrados que irão tornar- E, como associam o primeiro pássaro a uma constelação que prenuncia a
se as Plêiades. Contudo, de um ponto de vista meterológico, ele os opõe: para estação das chuvas, “produzisse” um mito análogo ao que o Velho Mundo, de
vingar seus jovens protegidos, a lua colabora com o sol para secar a terra e modo independente, dedica à constelação estival, em oposição de fase para
causar sofrimento aos humanos e só depois disso os astros mandam chuva, com a outra em ambos os casos. Com efeito, o mito americano também se
e então os heróis se transformam na constelação das Plêiades. De modo que, refere a uma seca periódica, não a de verão, sem gravidade nessa região lito-
no primeiro papel, a lua cheia ocupa um lugar comparável ao que cabe à rânea onde a oposição entre estação seca e chuvosa é pouco marcada, mas
constelação do Corvo nos mitos do Velho Mundo. Finalmente, não se pode a seca — muito mais importante da perspectiva de populações costeiras —
deixar de notar que o mito takelma, transformando os mitos sobre a origem que desnuda o litoral a cada 24 horas, e permite a coleta de frutos do mar,
das marés, reproduz um incidente de um mito dos Modoc (M₅₄₁, supra, p. 58, base de sua alimentação.
62) que, no entanto, vivem longe do mar, no qual as duas carregadoras de
água, que são moças à procura de maridos em vez de virgens que atingem !
a puberdade, querem se casar com o demiurgo Aishísh. Bem, vimos que ele
possui uma conotação lunar. Na transformação geradora de objetos ou fenômenos astronômicos a partir
Seria possível explicar uma confluência tão inesperada entre os mitos do de um ou vários incestos, reservamos lugar para dois estados do grupo que
Velho e do Novo Mundo evitando as voltas que propusemos (supra, p. 202)? estão intimamente ligados (supra, p. 196). Comecemos pelo primeiro.
Outra opção, satisfatória do ponto de vista lógico, todavia enfrentaria uma O mito modoc M₅₃₉ sobre Dona Mergulhão ao mesmo tempo se parece
dificuldade de ordem histórica: a América foi povoada do norte em direção com seu homólogo klamath M₅₃₈ e difere dele. Parece-se com o outro pelo
ao sul, o que torna mais provável que mitos do hemisfério sul transformem incesto que uma moça quer cometer com o irmão, pelas violências que ela
os do hemisfério norte do que o contrário. É evidente que não se pode postu- perpetra quando se vê frustrada em seus projetos e, finalmente, pela sobre-
lar, mas nem por isso se pode descartar, que certos mitos sobre a origem das vivência miraculosa de gêmeos póstumos que a avó tenta em vão “colar”.
constelações ou que lhes foram associados posteriormente tenham surgido A partir daí, como observamos (supra, p. 56, 144), as duas versões diver-
no paleolítico superior ou até antes. As primeiras levas de imigrantes vindos gem; e a mola mestra dessa diversidade reside essencialmente no fato de os
da Ásia para a América os teriam trazido consigo, enquanto, propagando-se gêmeos de M₅₃₉ serem de mesmo sexo, ao passo que os de M₅₃₈ são de sexo
na direção oposta, outros deslocamentos de população explicariam a difu- oposto. Além disso, à diferença de seus congêneres de M₅₃₈, eles não se preo-
são ocidental desses mesmos mitos até a bacia do Mediterrâneo. Encontra- cupam à mínima com a questão da própria origem. Em vez de interrogarem
ríamos, em ambas as regiões, seus vestígios, testemunhando em favor de o céu, proclamam que pertencem à terra. Longe de desafiarem e ferirem o
uma origem comum num passado muito recuado. Mas também poderia se sol, declaram-se seus serviçais e buscam juntar-se a ele; ainda que também
tratar de um mero fenômeno de convergência, devido ao que chamamos seja, como veremos, para “marcá-lo”, de outro modo.
218 | Terceira parte: Cenas da vida privada ... Esses espelhos gêmeos | 219
O fato de os gêmeos serem de mesmo sexo significa que, contrariamente Esses índios viviam no curso inferior do Columbia e de seus afluentes, o
aos que eles transformam, eles não podem cometer incesto. Consequente- que lhes permitia controlar as grandes feiras e os locais de pesca nos quais
mente, serão poupados de separar-se um do outro como o irmão e irmã todas as tribos das vizinhanças se encontravam periodicamente. Por esse
incestuosos de M₁₆₅-M₆₈ (origem do sol e da lua), mas proibidos de juntar- motivo, os mitos chinook muitas vezes possuem um caráter eclético. Cada
se um ao outro como os de M₅₇₅ (origem de Orion e das Plêiades). Terão de um deles representa como uma espécie de denominador comum, em que
ficar juntos, mas separados. Partindo de uma base puramente dedutiva, já se fundem versões que, tomadas isoladamente, poderiam parecer difíceis
poderíamos afirmar que esse estado intermediário requer um significante de conciliar, o que significa certamente uma vantagem. Por outro lado, as
astronômico que satisfaça a três condições: 1) se o incesto disjuntivo conota referências múltiplas que acumulam e sua tendência à síntese complicam
a imcompatibilidade entre dia e noite, e o incesto conjuntivo, a compatibili- especialmente a tarefa do analista.10 É o que ocorre especialmente com uma
dade entre duas constelações em relação à noite, mas não ao dia, é preciso narrativa de que são conhecidas várias versões, nem sempre coincidentes,
que a transformação intermediária conote a interseção entre dia e noite; 2) que ao reutilizar praticamente todos os mitos que consideramos até agora
se as constelações conotadas pelo incesto conjuntivo são de inverno, deve- assume ares de uma espécie de pot-pourri ou, se preferirem, de um grande
se postular categoricamente que os astros conotados pelo incesto disjuntivo recital de mitologia norte-americana. Devido à sua complexidade, esse mito
possuem uma conotação estival (embora os mitos não o digam, talvez sim- reaparecerá várias vezes em nosso caminho. Começaremos por apresentar
plesmente porque a lua e o sol, devido à maior limpidez do céu, brilham um breve resumo dele, para depois, sem levar a cabo uma análise exaustiva,
mais durante o verão), de onde resulta que a transformação intermediária assinalar apenas alguns de seus aspectos:
deve situar-se num ponto de transição entre as duas estações; 3) se o incesto
disjuntivo está na origem do surgimento de astros solitários, e o incesto con- M 598A CLACKAMAS (CHINOOK): O ESPOSO DO ASTRO
juntivo, na origem de constelações, é preciso que a transformação interme-
diária implique simultaneamente os dois tipos de objetos celestes. A expe- Um chefe e sua mulher, divorciados, continuavam morando na mesma aldeia. Ela
riência, isto é, o texto do mito, preenche integralmente as duas primeiras tinha um filho pequeno, e várias escravas, que se indignaram no dia em que ela quis
condições. Os gêmeos de M₅₃₉ se transformam em estrelas 1) visíveis logo ir a uma festa, onde corria o risco de encontrar o ex-marido. Mas a vontade de assistir
antes da aurora e 2) “entre o verão e o inverno”, como espacifica o texto do ao espetáculo foi mais forte do que a preocupação com o decoro. E apesar de ter pro-
mito. Veremos em breve que uma outra transformação permite ao mesmo metido voltar cedo e não participar das danças, ela foi arrastada pela multidão para
tempo satisfazer a terceira condição e compreender porque M₅₃₉ acrescenta bem perto do homem como quem tinha sido casada.
que ao verem as duas estrelas em que os irmãos se metamorfoseiam “os Durante a noite, o bebê acordou e chorou pela mãe. As escravas tentaram
humanos guerrearão”. acalmá-lo e, desesperadas, foram avisar a patroa, e pedir-lhe para voltar para casa,
Gostaríamos de poder identificar esses corpos celestes. Segundo o mito uma depois da outra. Porém, eram sempre levadas pela multidão para o lado oposto.
modoc, seu surgimento logo antes da aurora anuncia a chegada da prima- Como ninguém voltava, a última escrava que tinha ficado partiu, por sua vez, e dei-
vera. Uma indicação de Spier já mencionada (supra, p. 185) sugere que pode- xou o bebê sozinho. “Ele está quase morto de tanto chorar”, disse ela à mãe, junto
ria tratar-se de Gêmeos, pois quando eles sobem no céu, dizem os Klamath, com críticas. Brutalmente lembrada de suas responsabilidades, ela se apressou em
é sinal de que a primavera se aproxima. De fato, naquelas latitudes, a culmi- voltar para casa. Mas encontrou o berço vazio. Ou melhor, só viu nele um pedaço
nação de Gêmeos ocorre em março-abril, ao cair da noite. Mas o mito fala
da aurora e, a essa hora, os Gêmeos sobem em julho, culminando em outu-
10 . Foi por esse motivo que deixamos de lado uma versão chinook do mito do
bro e se pondo em janeiro. Mesmo levando em conta diferenças decorren-
desaninhador (Curtis 1907-30, v. 8: 132-35), em que o herói, chamado Salmão, tem quatro
tes de horizontes montanhosos, é difícil fazer coincidir as duas informações. esposas (Camundongo e Tentilhão, infiéis; Rola e Gafanhoto, fiéis) e desempenha o
Talvez o mito tenha em vista planetas, e não uma constelação. É o que sugere, papel de dono da chuva. Essa versão também apresenta um caráter eclético e o sistema
em todo caso, a notável transformação que ocorre entre os Chinook, e à qual só poderia ser definido a partir de um estudo, a partir dela, da mitologia chinook em
passaremos agora. suas relações com as dos povos circundantes.
220 | Terceira parte: Cenas da vida privada ... Esses espelhos gêmeos | 221
de madeira podre, deixado por uma ogra que tinha roubado o bebê, aproveitando Logo a moça deu à luz dois irmãos siameses. O pai dela lhe tinha recomendado
uma bruma espessa. A raptora alimantava o cativo com cobras, pererecas e sapos. E para nunca deixar o marido se deitar de bruços quando estivesse tirando seus pio-
o levava num cesto para onde ia. lhos. Mas um dia ela esqueceu a precaução. O homem começou a raspar sem razão
Não longe dali vivia um homem chamado Grou (certamente uma Garça). o solo abaixo de si, furou a abóbada celeste e avistou sua aldeia e seu irmão, nascido
O menino cresceu e, certo dia, quis ir visitá-lo, apesar de a mãe adotiva tê-lo proibido depois de sua partida, e que, como todos os seus familiares, tinha ficado cego de
de fazê-lo. Com uma voz tonitruante — explicando que só assim não seria ouvido tanto chorar a perda do parente querido. Foi tomado por uma profunda melancolia,
— o homem explicou a seu visitante que ele era alimentado com coisas impróprias cuja causa o sogro adivinhou. Conseguiu fazer a filha e o genro confessarem, e aca-
para o consumo humano, e ensinou-lhe a comer trutas grelhadas. A partir de então, bou se conformando em deixá-los partir. As aranhas fizeram-nos descer até a terra
o herói passou a recusar as refeições da ogra. Ela acusou o vizinho, que afirmava não num cesto pendurado na ponta de uma corda.
ter dito nada, a não ser, talvez, um comentário maroto a respeito do modo como ela O herói reencontrou seus familiares, e sua mulher lhes devolveu a visão com
teria dado à luz seu suposto filho. Seduzida pelo senso de humor do vizinho, a ogra uma água milagrosa. As casas passaram por uma limpeza em regra antes de o casal
passou a tratá-lo de irmão. entrar nelas. A vida retomou seu curso normal. Vivia na aldeia o enganador Gaio-
O herói tinha contado a seu protetor que muitas vezes, quando a ogra o trans- Azul, que se irritava ao ver os siameses. Ele cortou a membrana que os unia, o que
portava em seu cesto, ele, por brincadeira, se agarrava aos galhos das árvores até provocou em ambos uma ferida por onde as entranhas saíram. Os dois morreram.
que o percoço elástico da mulher, esticado ao limite, ficasse fino como um fio. Grou A mãe deles explicou que, se tivessem deixado que eles vivessem e crescessem,
aconselhou-o a aproveitar a ocasião para decapitá-la, com uma lâmina de pedra que eles teriam se separado sem nenhuma intervenção. Mas agora era tarde, não havia
lhe deu. Disse também que todas as árvores, que eram parentes da ogra, cairiam mais nada a fazer. Ela pegou os pequenos cadáveres, cada um debaixo de um braço,
sobre ele para vingá-la. Ele deveria subir para o alto de um pinheiro branco [Abies e subiu ao céu na forma do sol visível. Anunciou que, quando vissem seus filhos,
concolor], que seria o único a não reagir ao assassinato, e em seguida, usando seu cada um de um lado dela, ao amanhecer, isso seria o presságio da morte de alguém
arco e suas flechas alinhados, chegar até o céu. importante, e se só um deles fosse visível, de uma pessoa menos importante. Os
Dito e feito. No mundo celeste, o herói encontrou primeiro parasitas canibais, habitantes da aldeia choraram tanto a morte dos gêmeos que ficaram cegos nova-
piolhos cinzentos, piolhos pretos, larvas de piolhos e pulgas, e ordenou-lhes que inco- mente (Jacobs 1959, ii: 388-409).
modassem os humanos com moderação. Contra a vontade da dona da escuridão, ele
instituiu a alternância regular entre dia e noite. Depois encontrou dois caçadores O que é notável nesse mito, é o fato de construir uma cadeia sintagmática
perseguindo suas presas, um após o outro. Perguntou-lhes o caminho e obteve indi- coerente encadeando paradigmas tomados de empréstimo a todos os mitos
cações contraditórias. Seguindo as do primeiro, deu-se mal e foi dar na casa canibais. que consideramos até o momento, mas invertendo-os todos, metodica-
A casa estava vazia, e ele não conseguiu encontrar nem o pote de urina reservada mente. O paradigma de Dona Mergulhão gera a situação inicial, mas uma
para molhar os cabelos antes da lavagem. Teve de se contentar com água e, procu- irmã casada porém incestuosa, atenciosa demais para com o irmão, se trans-
rando um pente numa bolsa pendurada numa trave, achou uma menina. O pai e os forma em mãe divorciada, negligente demais para com o filho e despreo-
irmãos dela lhe ofereceram a mão da moça assim que chegaram. Ele se recusou a cupada com as conveniências a ponto de se mostrar em público ao lado do
participar da refeição de carne humana deles, mas aceitou a moça. Sem vantagem ex-marido, cometendo assim uma espécie de incesto social. Decorre daí que
nenhuma, aliás, porque ela não tinha orifícios inferiores, e portanto, não tinha vagina. em lugar de a irmã levar o irmão para longe (eixo horizontal) e ele procurar
Decepcionado, o herói resolveu seguir o outro caminho, que o levou a uma casa desesperadamente fugir subindo para o ceú (eixo vertical), a criança, captu-
bem aparelhada, com pote de urina e um pente de cobre, que lhe foi emprestado por rada por uma completa estranha (eixo horizontal), consegue fugir, também
uma moça encontrada dentro da bolsa de objetos de toucador. Não hesitou em casar- tomando a direção vertical, e chega ao céu.
se com ela, após um excelente jantar em família. Ela possuía todos os atributos de seu Estrangeira e não-parente, a ogra reproduz e transforma a avó libertina
sexo. Furiosos por terem sido desdenhados, os habitantes da primeira casa apareceram, (por sua vez transformação de Dona Mergulhão), exceto, justamente, por
com as piores intenções, chamando os donos da casa de “furados e rachados”. Estes os não ser uma ascendente e por deixar-se seduzir pelo vizinho em vez de se
expulsaram, queimando ossos de cervídeos, que provocaram uma densa fumaça preta. zangar com ele por causa de uma brincadeira de gosto duvidoso a respeito
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da procriação, e não da cópula, mas que também visa seu aparelho genital. de vaginas. Porém, se a interpretação que propomos estiver correta, nesse
Em consequência disso, ela o trata castamente como um irmão, em vez de caso, a aplicação de carne crua e sanguinolenta determina o aparecimento da
fazer dele seu amante. menstruação, que só exigem uma perfuração, digamos, mensal. Destinada a
Depois de Dona Mergulhão e da avó libertina, o mito se refere a um ter- permitir as relações conjugais, a perfuração das filhas canibais de M₅₉₈a teria,
ceiro personagem. Salvo por um demiurgo macho da mãe, uma viúva aos portanto, de ser mais frequente, senão permanente. Entretanto, o procedi-
prantos que queria levá-lo consigo para a morte, o menino que irá tornar-se mento inverso ao outro, empregado pela gente do sol para afastar seus adver-
desaninhador de pássaros, inicialmente incorporado ao pai adotivo, depois sários, com fumaça de ossos queimados, não acarreta nenhuma modificação
se separa dele e renasce graças a um parto pelo joelho, mas muito real. Rou- anatômica. De modo que M₅₉₈a responde à periodicidade relativamente lenta
bado de uma mãe, divorciada alegre que descuidava dele para viver a sua instituída por M₅₇₁ por uma periodicidade do mesmo tipo, mas mais curta,
própria vida, o outro menino, primeiro preso no cesto de um demônio que a ordem da narrativa anunciava. Aliás, ao xingarem os do sol de “furados
fêmea, se livra cortando o pescoço exageradamente esticado daquela que e rachados”, os canibais expressam sua vontade de permanecerem tampados.
o carrega, um verdadeiro cordão umbilical, que transfere o local do parto, O episódio das duas esposas encontradas numa bolsa também remete
agora metafórico, para a parte superior do corpo, em lugar de se produzir ao ciclo de Dona Mergulhão, cujo herói é inicialmente um menino escon-
no sentido próprio pela parte de baixo. O desaninhador de pássaros quase dido. Mas aqui são meninas, em vez de um menino, que fazem esse papel, e
morre por ter subido ao topo de uma árvore. O herói de M₅₉₈a se salva gra- o herói se casa com elas, quando o menino era escondido para não poder ser
ças ao mesmo procedimento,11, mas deve percorrer a distância restante até desposado. Em segundo lugar, as moças, colocadas numa bolsa pendurada
o céu por uma cadeia de flechas, um detalhe que encontraremos bem mais como o cesto ou bolsa (M₅₅₅a, b) em que fica o menino, ilustram uma situ-
adiante (quinta parte) e cuja interpretação adiaremos. ação inversa: estão tão pouco escondidas que a bolsa em que se encontram
Deixaremos igualmente para mais tarde o episódio seguinte, relativo à é aquela em que todo o visitante cansado vai imediatamente buscar o aces-
origem dos parasitas do corpo, não sem notar que ele evoca uma inevitável sório mais indispensável para arrumar-se, ao chegar de uma longa viagem.
concessão da cultura à natureza. E também o episódio que vem imediata- É significativo que esse acessório seja um pente, pois que Dona Mergulhão
mente depois, no qual a alternância entre luz e escuridão, instaurada pelo acha o irmão escondido graças a um longo fio de cabelo que ele perdeu ao
herói, explica e justifica o lugar que o dia deve ceder à noite. O fato de essa pentear-se (quanto ao significado desse episódio, ver infra, p. 347-48).
periodicidade diária ser a mais curta que se possa observar aproxima mais Como no mito tillamook M₅₆₅a, que também combina e transforma para-
uma vez M₅₉₈a do ciclo da avó libertina, também dedicado à periodicidade, digmas emprestados de outros mitos (supra, p. 150), o herói finalmente con-
mas em sua forma mais longa, medida pela passagem das gerações sucessi- trai com uma criatura celeste um casamento dos mais afastados, o oposto,
vas. Mitos nez-percé (M₅₇₁a-c) — cuja forma a intriga de M₅₉₈a vai agora portanto, de uma união incestuosa. Esse casamento mais que exogâmico
adotar — se referem a uma periodicidade intermediária, a do ritmo sazonal. produz gêmeos colados desde o nascimento, que correspondem aos gêmeos
Finalmente, M₅₉₈a se opõe a M₅₇₁ de um outro modo, que conecta os de M₅₃₈-M₅₃₉, colados após o nascimento, em consequência indireta de uma
dois grupos ao ciclo do cego e do mergulhão, ciclo no qual a irmã do herói união incestuosa. Mas é preciso notar outra coisa: o esposo terrestre de uma
contrai um casamento afastado, no povo canibal das gentes sem ânus nem mulher solar, que perfura a abóbada celeste e revê sua aldeia, transforma
vagina, como faz o herói de M₅₉₈a em sua primeira experiência conjugal fra- diretamente, por efeito de uma simples inversão de sexo, a esposa terrestre de
cassada. Bem, um incidente de M₅₇₁, que já comentamos (supra, p. 169), leva um astro, à qual se dedicou longamente o volume anterior. Compreender-se-
a supor que as filhas de inverno, as primeiras a serem visitadas pelos heróis á mais adiante (infra, p. 529-34) o significado desse elo, que junta quase que
(igualmente em busca de um pente para se pentearem) eram desprovidas sem intermediário a esposa do astro e o desaninhador de pássaros. Depois
do episódio dos cegos que recuperam a visão, que evoca mais uma vez o
11 . Porém, nesse caso, trata-se de uma árvore, o pinheiro branco, cuja madeira é ciclo esquimó sobre o mesmo tema e que voltaremos a encontrar (infra, p. v,
desvalorizada: “imprópria para qualquer uso e úmida demais para servir como lenha” ii), embora os gêmeos sejam desdobrados por uma intervenção mal-inten-
(Adamson 1934: 162). cionada, em vez de eles mesmos se desdobrarem — M₅₃₉ — para poderem
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cumprir seu destino, transformam-se, em ambos os casos, em estrelas da de um círculo claro, que por sua vez se destaca em fundo escuro, ao passo
manhã, não anunciadoras da primavera, segundo M₅₉₈a, mas de morte vio- que a última configuração consiste em duas marcas claras que se destacam
lenta e, às vezes, de guerra (Jacobs 1959, i: 281 n. 128a). O que não exclui M₅₃₉, num fundo escuro, fora de um círculo a que o último mito não atribui marca
em que as estrelas gêmeas também pressagiam combates (supra, p. 206). escura interna. Pode-se até dizer que ele a exclui por preterição, na medida
Sobretudo, o mito chinook completa o dos Modoc, no sentido de que em que o irmão caçula, cego no sentido próprio, também exterioriza em
tomadas em conjunto, suas conclusões verificam integralmente as quatro relação ao herói a cegueira de ordem moral que o caracteriza em M₅₃₈, e da
condições que postulamos dedutivamente para justificar a transformação qual, justamente, ele tenta escapar ferindo o sol e provocando suas manchas,
que ambos operam, de um casal de irmão e irmã incestuosos posterior- para que ele concorde em iluminar.
mente separados ou reunidos num par de irmãos que, sendo de mesmo sexo,
não podem cometer incesto, o que leva a postular que, consequentemente, !
uma vez transformados também em astros, eles não serão nem separados
nem reunidos. O fato de tal condição intermediária se refletir na oposição Se as estrelas de M₅₃₉ anunciam a primavera, a ausência de conotação sazo-
ora entre verão e inverno, ora entre aliados e inimigos, não deveria surpre- nal em M₅₉₈a, que as associa a ocorrências menos regulares, como as mortes
ender, considerando-se o desenvolvimento que dedicamos a essa transfor- violentas e as guerras, sugere que os corpos celestes envolvidos aqui possuem
mação, em A origem dos modos à mesa (sexta parte). Mas o mito chinook uma periodicidade menos marcada. A possibilidade de supormos que se trata
precisa, ainda com mais clareza que M₅₃₉, que as estrelas gêmeas podem de planetas é reforçada pelo fato de os Blackfoot (cuja mitologia, como mos-
ser vistas uma de cada lado do sol; ele as descreve, portanto, no momento tramos, era aparentada à das regiões mais a oeste) atribuírem grande impor-
do nascer helíaco, que ilustra bem a interseção entre noite e dia. Finalmente, tância à conjunção de dois planetas, talvez Vênus e Júpiter, logo antes do
essa conjuntura astronômica, que aproxima o astro do dia, geralmente soli- nascer do sol. Eles os identificavam, além do mais, a dois personagens mito-
tário, de duas estrelas, restitui o equivalente de uma constelação, o que veri- lógicos, o filho de uma Estrela e a Estrela d’Alva, respectivamente (McClin-
fica nossa terceira condição. Mas há mais: pois esta última configuração, a tock 1910: 490, 523-24; cf. M₄₈₂a-c, omm: 302). A conjunção de dois planetas
que chegamos depois de termos inventoriado toda uma série de estados que no momento de seu nascer helíaco constitui um fenômeno recorrente, mas
se transformam uns aos outros e que ela mesma, por sua vez, transforma de periodicidade muito mais longa, e portanto menos facilmente notada do
(fig. 17), apresenta antisimetrias em vários eixos com relação à que ilustrava que a das constelações. De modo que, entre M₅₃₉ e M₅₉₈a, passa-se de uma
o grupo em seu estado inicial. Tratava-se, então, da lua e do sol, ou seja, da periodicidade empírica a uma periodicidade não menos real, mas que dela se
noite incompatível com o dia; agora, trata-se de uma aurora indecisa, em diferencia pelo fato de, ao contrário dos antigos mexicanos, os índios da Amé-
que a luz do sol ainda não apaga a das estrelas, e que tolera, portanto, uma rica do Norte certamente não a conhecerem. Bem, as demais versões chinook
certa compatibilidade entre a luz e a escuridão. Por outro lado, o estado ini- do mesmo mito dão um passo a mais em direção à ausência de periodicidade.
cial dava mais atenção às manchas da lua, isto é, uma marca escura dentro Depois de terem operado a transformação de estrelas em planetas (se é que os
astros do mito modoc M₅₃₉ já não o eram), eles transformam os planetas em
paraélios ou outros fenômenos celestes do mesmo tipo.
É o caso das versões kathlamet (M₅₉₈b,c, Boas 1893: 192-93; 1901: 9-19),
que chamam de Estrela da Noite o pai dos canibais e da Lua, e Estrela da
Manhã o pai da senhorita Sol desposada pelo herói. Ao subir ao céu com
seus filhos mortos, esta última os transforma em paraélios; se um deles for
visto, morre um chefe, se ambos forem vistos, morrem dois chefes.
Mbgflbgi, Mcfd, dfi etc Mfdi Mfji
Os paraélios, também chamados de falso-sol ou meteoro, são brilhos
às vezes visíveis ao lado do sol quando está baixo no horizonte e as nuvens
[ 1 7 ] Transformações celestes. refletem seus raios. Existem paraélios simples, duplos e múltiplos. O mesmo
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fenômeno observável nas imediações da lua recebe o nome de parasselênio. vimos, em vez de sinal de nascimento por uma mulher. Além disso, as con-
As versões wishram e wasco (M₅₉₈d-g, Sapir 1909a: 171-73, 276-79, 303-07; junções de tipo lunar ou solar conotam respectivamente mortes femininas
Sapir & Spier 1930: 277) buscam explicar, além da origem dos paraélios, por- ou masculinas. E assim, vemos tomar forma um sistema:
que as formigas e vespas têm cintura fina. Os moradores da aldeia tinham
amarrado em torno da cintura os ricos presentes recebidos da dama celeste, nascimento morte
que quis retomá-los ao partir, e puxou com tanta força que seus portadores (chuva, arco-íris)
quase foram cortados ao meio. Como vimos, em M₅₉₈a, eles voltaram a ser
cegos. A dialética do grupo gera, portanto, personagens tapados em baixo fêmea macho
(sem ânus e sem vagina) ou em cima (cegos), e também personagens corta- (conjunções (conjunções
dos em dois, na altura do pescoço (a ogra), ao longo do corpo (os gêmeos) lunares, solares,
paraélios) parasselênios)
ou na altura da cintura (os insetos). Estes últimos têm como contrapartida
parasitas de origem celeste que passarão a “furar” os humanos. Esse ponto
resulta, a contrario, de um mito nootka que discutiremos mais adiante Os Yana, cujo léxico junta, de modo significativo, nascimento e arco-íris,
(M₆₀₀f, infra, p. 361), cujo herói, que inverte o de M₅₉₈a por ser o único entre atribuem aos paraélios um papel funesto, como anunciadores de morte imi-
seus irmãos e irmãs a não ser roubado pela ogra, tendo por missão libertá- nente (Sapir & Spier 1943: 285). Pois bem, um de seus mitos ilustra com tanta
los, encontra primeiramente no céu, para onde vai em busca deles, em vez fidelidade o sistema triádico que acabamos de esboçar que de certo modo o
de parasitas canibais, graciosas moças-caracol cegas, a quem ele dá a visão comprova experimentalmente (M₅₉₉a, Curtin 1899: 281-94; para uma forma
perfurando-lhes olhos com a ponta do pênis. Por outro lado, nos mitos fraca do mesmo mito M₅₉₉b, Sapir 1910: 233-35). No tempo em que a noite
correspondentes dos Salish de Puget Sound (M₆₀₀i-m, Ballard 1929: 106-12), ainda não existia, o povo celeste se dividia em três grupos. O primeiro com-
as ogras terrestres e ladras de crianças são mulheres-caracol, infestadas de posto pelos dois Arco-Iris, pai e filho, e seu cunhado ou tio materno, dono
parasitas que as atormentam cruelmente. da chuva e da tempestade, o segundo por Lua e sua mulher, Puma, com suas
O comentário indígena inclui entre os fenômenos premonitórios as con- filhas, as Estrelas, e seus maridos, e o terceiro, por Sol e sua esposa, Paraélio
junções de uma ou duas estrelas com a lua. A primeira significa que uma (Curtin, /utjamhji/, cf. Sapir & Spier 1943, /utdja’m’djisi/, “paraélio”; Sapir &
mulher logo irá enviuvar, e a segunda, que ela própria morrerá, bem como
seus dois filhos. O arco-íris próximo da lua no crepúsculo pressagia um vida vida/morte morte
assassinato (Sapir 1909a: 193; Sapir & Spier 1930: 277). Trata-se certamente
de um parasselênio cujas cores, como a dos paraélios, às vezes se asseme- Arco-íris
lham às do arco-íris.
∆ õ = ∆ õ = ∆ ∆ = õ
Todas as tribos dessa região que dão um valor sinistro aos paraélios pare-
Dono Puma Lua Sol Paraélio
cem, efetivamente, opo-los ao arco-íris que, assim, conota a vida. A mesma da chuva
palavra yana, /lakiyaa/, significa “recém-nascido” e “arco-íris” (Sapir &
Swadesh 1960: 114). Os Shasta garantem que, em qualquer estação, sempre ∆ = õ õ õ õ õ õ
chove após um parto (Dixon 1902-07c: 454-55). Os Coos veem no arco-íris Arco-íris Estrela Estrelas Meteoros
um sinal de que ocorrerá, numa família importante, um nascimento, acom- d’Alva
panhado de chuva (Jacobs 1939: 101). Os Wishram acreditam que, quando
aparece um arco-íris, isso quer dizer que uma mulher está prestes a dar à luz, dia noite dia
e se o arco-íris for duplo, ela dará à luz gêmeos (Sapir 1909a: 191, 193). Para (+) (+ / —) (—)
todos esses índios, portanto, o arco-íris se opõe à conjunção entre a lua e
uma ou duas estrelas (ou planetas), sinal de morte para uma mulher, como [ 1 8 ] Estrutura triádica do mito yana Mfjj.
228 | Terceira parte: Cenas da vida privada ... Esses espelhos gêmeos | 229
Swadesh 1960, /udzamxzi-/, “há um paraélio”), com suas três filhas Meteoros. vai fazer a partir do número de paraélios existentes ao norte e ao sul do astro
O jovem arco-íris desejava se casar com uma das três filhas solteiras de Lua, (Cline 1938: 178-79). Seus vizinhos Sanpoil e Nespelem crêem que os paraé-
que se chamava Estrela d’Alva (a única, portanto, que não é incompatível lios pressagiam calor, e os antélios, frio (Ray 1954: 213).
com o dia). Mas Lua costumava levar os pretendentes de suas filhas para Do outro lado das Rochosas, os Blackfoot, de língua algonquina, veem
seu irmão, Sol, que lhes impunha testes mortais. O herói conseguiu passar um sinal de perigo nos paraélios ao crepúsculo: “Quando o sol pinta as faces,
pelos testes, graças à ajuda do tio, dono da tempestade e da chuva. Lua, con- em outras palavras, quando se vê um paraélio (icksi) de cada lado do astro,
tudo, não se deu por vencido, e tentou ele mesmo destruir o genro, mas este é um aviso de que tempestades violentas se aproximam, com muito vento
livrou-se do adversário despachando-o, juntamente com as Estrelas suas e brusca queda de temperatura. E se o sol pinta a testa, o queixo e as duas
filhas, para o céu noturno, onde, a partir de então, ele morrerá e renascerá faces (paraélio quádruplo), isso é presságio da morte iminente de um chefe
periodicamente (fig. 18). (McClintock 1910: 56; Grinnell 1892: 64). A importância que os Algonqui-
Embora resultante, segundo dizem, da formação de cristais de gelo na nos dos Grandes Lagos davam aos paraélios foram notadas pelos antigos
atmosfera, o fenômeno dos paraélios não parece estar ligado a uma latitude viajantes: “Eles também possuem expressões variadas para designar... o halo,
específica. No entanto, chama a atenção a diferença no interesse que demons- os sóis duplos e outros eventos no céu; o que prova que prestavam bastante
tram por ele os povos do mundo. Na América do Norte, notadamente, todas atenção nas coisas do firmamento” (Kohl 1956: 119).
as observações relativas às crenças indígenas se concentram numa área As crenças relativas aos paraélios se estendem para além das Planícies
setentrional, praticamente contínua, que se estende da costa do Pacífico à do centrais, mas entre tribos da família linguística algonquina, sabidamente de
Atlântico, se concordarmos em colocar a transformação wabanaki no mesmo origem setentrional, ou entre tribos adjacentes de língua sioux. Entre estes
grupo que os mitos do ciclo de Dona Mergulhão (Ilustração iv). últimos, os Assiniboine, vizinhos dos Blackfoot, ecoam em seus mitos o de
A razão de tal distribuição talvez se deva ao fato de o fenômeno assu- Dona Mergulhão. A irmã incestuosa mata todos os familiares com raios e se
mir, segundo testemunhos fidedignos, formas mais imponentes nas pro- transforma em pássaro, seu irmão ressuscita os parentes mortos, que se divi-
ximidades do círculo ártico: “Não há como ficar insensível ao charme dos dem em dois grupos e se dispersam em direções opostas (M₆₀₉a, Lowie 1909:
dias curtos em que o sol brilhante recebe um séquito de dois, quatro ou 160-61; compare-se com a versão achomawi, supra, p. 105). Ainda segundo
até oito satélites, pelo misterioso efeito do paraélio” (Morice 1906-10: 253). eles, o aparecimento de paraélios no inverno pressagia tempestades dura-
Mas o interesse pelos paraélios persiste para além das terras ocupadas pelos douras (ibid.: 56). Os Arapaho, de língua algonquina e vindos do norte, acre-
Esquimós e pelos atabascanos. Para os Tlingit, paraélios que se põem com o ditam que os paraélios anunciam muito frio: “Os velhos diziam que o sol
sol anunciam bom tempo, e se desaparecerem antes, mau tempo (Swanton acendia fogueiras, uma de cada lado, e, diante disso, eles se preparavam para
1908a: 452-53). Segundo os Kwakiutl (Boas 1932a: 218), os paraélios signifi- aguentar um inverno rigoroso” (Hilger 1952: 93). Os Santee Dakota, vizinhos
cam que a alma de um chefe chegou ao céu na forma de um brinco de nácar; imediatos dos Ojibwa a sudeste dos Grandes Lagos, chamam os paraélios e
um paraélio único pressagia a morte de um homem comum. Os parasselê- parasselênios, /wi-a-cé-i-çi-ti/, de /a-cé-ti/, “acender uma fogueira” (Riggs
nios recebem a mesma interpretação. Um duplo anel em torno do sol anun- 1890: 8, 565). Segundo os Oglala Dakota, um círculo em torno do sol pre-
cia um acontecimento desagradável, e os meteoros pressagiam a morte. cedia o retorno dos guerreiros vitoriosos; era também um incentivo para
Os Bella Coola chamam de “pintura facial de nosso pai” o paraélio situado a celebração da dança do sol, que simboliza o sucesso de uma expedição
a oeste do disco solar; se cair na terra, provocará uma epidemia (Boas 1900: guerreira (Beckwith 1930: 404-05).
36). Os Lilloet dizem que os paraélios são filhos do sol e anunciam mau Voltemos, após esse rápido circuito, a nosso ponto de partida. Os Modoc
tempo (Teit 1912a: 275). No mesmo estilo, os Thompson crêem que o sol, chamam de /wänämsäkätsaliyis/ um círculo verde ao redor do sol que anun-
cansado de um certo tipo de tempo, “joga os filhos para fora”; é assim que cia tempestade (Curtin 1912: 302). A locução klamath que designa o halo
eles chamam os paraélios, sinal de que o tempo vai mudar (Teit 1900: 341). solar, /wanam shakatchalish/, remete à raposa, /wan/, fiel companheiro de
Um de seus mitos (M₅₉₈h, Teit 1898: 54-55) explica a origem dos paraélios de Kmúkamch (Gatschet 1890, ii: 474), aproximação que lembra a das línguas
um modo que lembra o dos Chinook. Os Okanagon prevêem o tempo que das Guianas, entre o sariguê e o arco-íris (supra, pp. 37, 39; cc: 255; omm: 136).
230 | Terceira parte: Cenas da vida privada ... Esses espelhos gêmeos | 231
É digno de nota o fato de os Klamath atribuírem ao grito do Mergulhão o & Swadesh 1939: 89-101; cf. Chinook, M₅₉₈a-g). Ele finalmente conseguiu
mesmo significado que os Modoc e os Chinook dão ao nascer helíaco de libertá-los e matou a ogra. Nas versões klallam, a ogra é substituída por uma
duas estrelas ou dois planetas, e os Chinook, aos paraélios: “Quando se ouve fera que fez da irmã do herói sua esposa; um marido subterrâneo de uma
o grito do mergulhão ao amanhecer, é presságio de assassinato” (Spier 1930: humana, que inverte a esposa celeste de um humano, o que é reforçado pelo
138). Se nos transportarmos para o outro extremo da área, entre os algon- fato de, nas versões chinook, a mulher sempre dá à luz uma criança dupla,
quinos orientais, onde a transformação wabanaki nos forneceu a chave para irmãos siameses ou, como aqui, criança de duas cabeças ou duas caras, que
interpretar um vastíssimo conjunto mítico e consolidá-lo, a noção de um não para de provocar o tio, chamando-o de “Ranho”. Furioso e humilhado,
paralelismo entre os paraélios e o grito do mergulhão é ainda mais evidente. ele sobe ao céu, onde se transforma na lua, ou nas manchas do astro noturno.12
Segundo os Penobscot, “os paraélios, /abas.éndan/, ‘meio’ (certamente para Portanto, em vez de a criança dupla dar origem diretamente aos planetas
indicar a origem central dos reflexos do sol), ou ‘a porta’, anunciam a tem- conjugados ou paraélios, cujas características podemos resumir numa
pestade, chuva no verão, neve no inverno. A tempestade virá do mesmo setor forma simplificada,
em que o anel em torno do sol está rompido”. Eis agora o que os mesmos
índios dizem do mergulhão: “Quando ele grita à noite, o vento vai soprar a) 2 claros externos sobre escuro / sol,
no dia seguinte, vindo do setor oposto àquele de onde vinha o grito do pás-
saro. Quando vem do outro lado de um lago, o vento vai soprar de lá, pois ela dá indiretamente origem às manchas da lua, cuja fórmula simplificada é
os mergulhões buscam se abrigar sob o vento” (Speck 1935: 33). Os Shasta, antisimétrica em relação à outra,
vizinhos imediatos dos Klamath, parecem estender aos paraélios o mesmo
tipo de raciocínio: “Se forem vistos ao amanhecer, pressagiam guerra; e se b) 1 escuro interno sobre claro / lua.
um deles se dissipa antes do outro, o que resta mostra de que lado estarão
os vencidos” (Dixon 1902-07c: 471). De modo que, do Atlântico ao Pacífico, Diante disso, é fundamental notar que o mito do Filho-de-Ranho repro-
estamos diante da mesma problemática que, ora no campo da meterologia, duz e inverte em vários detalhes o mito das Planícies chamado do Menino-
ora no da ordem social e política, utiliza de modo comparável os paraélios e de-Pedra. Bastaria, para comprovar que ele o inverte, a origem de cada um
o mergulhão. Não surpreende, portanto, que uma longa série de transforma- dos heróis. Mas eles nascem, ambos, de uma mulher cujos filhos ou irmãos
ções nos tenha levado do Mergulhão para Orion, e então para as manchas desapareceram, um após o outro, vítimas de uma bruxa má. O herói, nas-
do sol, e para estrelas ou planetas em relação ou em conjunção com o sol e, cido de um milagre, sempre os liberta, mas em seguida deve se separar de
finalmente, aos paraélios. Mais uma vez, o ciclo das transformações míticas seus familiares para escapar das intenções negativas — ou positivas demais,
se fecha: os paraélios levam de volta ao mergulhão. no caso do incesto, cf. M₄₆₆ — de um parente próximo. A não ser que con-
Aliás, os Klallam, de língua salish, e os Nootka, de língua wakashan, ins- siga, como na versão nootka, casar-se com uma mulher de longe, que então
talados uns diante dos outros nas duas margens do estreito de Juan de Fuca, se torna o sol visível. Nos dois outros casos, é ele mesmo que se transforma
compartilham um mito que retransforma os paraélios, certamente assimila- na lua ou em suas manchas, ou ainda numa pedra clara no alto de uma
dos aos parasselênios, nas manchas da lua, com que começou nossa série de colina que, como mostramos (omm: 321), é uma contrapartida terrestre da
operações. As versões klallam (M₆₀₀a-c, Gunther 1925: 125-31) contam que lua, exigida por um contexto que já invertia ponto por ponto o do mito
uma mulher, cujos filhos tinham todos desaparecido, um após o outro, cho- panamericano sobre a origem incestuosa da lua com suas manchas e do
rava muito e teve de assoar o nariz; o muco nasal, ao cair no chão, adquiriu sol. O retorno à pedra, da qual nasce, afinal das contas, a lua celeste, acon-
vida na forma de uma criancinha que cresceu depressa e que, em referência tece aliás ali mesmo, nos mitos dos Salish costeiros cujo herói é o demiurgo
à sua origem, recebeu o nome de “Filho-de-Ranho” ou “Feito-de-Ranho”. Ao
tornar-se adulto, tratou de reencontrar seus irmãos e irmãs, que tinham sido 12 . Ele é filho do sol e se reune ao pai na versão bella coola (M₆₀₀h, Boas 1900: 83-86).
roubados por uma ogra e que ela mantinha presos, depois de tê-los cegado Acerca do conjunto desse grupo, que se estende dos Tlingit, ao norte, até os Coos, ao
colando suas pálpebras com resina (Nootka, 600f, Boas 1891-95: 117; Sapir sul, e do qual selecionamos aqui apenas um dos estados, veja-se Boas 1916: 734-38.
232 | Terceira parte: Cenas da vida privada ... Esses espelhos gêmeos | 233
Lua, criança concebida de uma pedra engolida pela mãe, depois roubada no
berço e libertada por intervenção dos familiares, em vez de ser ele que os
liberta (M₃₇₅a-o, M₃₈₂, cf. Adamson 1934: 380 et passim). Uma versão salish
da ilha de Vancouver (M₆₀₀g, Hill-Tout 1907a: 331-36) atesta a realidade
dessa transformação. Depois de ter ressuscitado seus dez irmãos mortos
por um ogro, e libertado a irmã raptada, ao voltar para sua aldeia, o herói,
ofendido por uma alusão indelicada à sua origem, se retransforma em
ranho. O ciclo pedra —Y lua, lua —Y ranho, se fecha, portanto, pela comuta-
ção entre pedra e ranho, origem do herói. Voltaremos mais adiante (p. 297)
ao conjunto da transformação.
Q U A R TA PA R T E
A sociedade não faz do homem, dependendo dos meios em que ele atua, tantos homens Ao norte do território dos Klamath, o planalto e a cadeia das Cascades dei-
diferentes quanto variedades há em zoologia? As diferenças entre um soldado, um operá- xam fluir o rio Columbia, aparentemente anterior aos grandes acidentes geo-
rio, um administrador, um advogado, um desocupado, um especialista, um político, um lógicos, que não foram capazes de obstruir seu curso e dão à paisagem seu
comerciante, um marinheiro, um poeta, um pobre, um padre, ainda que mais difíceis de aspecto atual. Pequenos grupos indígenas, rapidamente extintos e sobre os
perceber, são tão consideráveis quanto as que distinguem um lobo, um leão, um asno, quais não se sabe grande coisa, Takelma e Molala, constituíam um tampão
um corvo, um tubarão, um filhote de baleia, um cordeiro etc. Portanto, houve, e sempre entre os Klamath e os Kalapuya. Estes últimos, cuja língua é relacionada ao
haverá, Espécies Sociais, assim como há Espécies Zoológicas. takelma (Swadesh 1965; Shipley 1969), ocupavam o curso superior do rio. O
curso inferior e a confluência, quase no estuário do Columbia, pertenciam a
h. de balzac, Prólogo, A Comédia Humana tribos chinook instaladas nas duas margens do rio e na zona costeira, desde
as quedas no início da travessia das Cascades até o mar. Essas tribos chi-
nook — Clatsop. Kathlamet, Clackamas, Wishram, Wasco etc. — confina-
vam, por sua vez, a leste, com um conglomerado de populações de língua
sahaptin, no qual podem ser distinguidos vários grupos, os Sahaptin do
rio Columbia, cujos principais representantes eram os Tenino, os Sahaptin
setentrionais, compreendendo os Yakima, Klikitat, Cowlitz, Walla, Palouse
etc., e, finalmente, os Nez-Percé, nos contrafortes das Rochosas, ocupavam
as marcas orientais dessa família linguística, a cujas formas arcaicas estão
ligados. Classificados outrora entre os Sahaptin, os Molala e os Cayuse são
atualmente considerados como ramos distintos do grande tronco Penutiano,
a que pertenceria também o conjunto Sahaptin-Nez Percé (Rigsby 1965,
1966; Voegelin 1964).
blackfoot
in
coola
ot
político dos Chinook, dos Wishram e Wasco sobretudo, que ocupavam per-
ilc
shuswap
ch
manentemente os grandes locais de pesca no curso inferior do Columbia,
e por essa razão organizavam as feiras intertribais que reuniam periodica-
kwakiutl mente os povos vizinhos, e até outros, vindos de mais longe.
Pois bem, certas versões chinook do mito do desaninhador de pássaros
oet
on
noo
ps
sici
lill
thom
tka
comox com as versões mais setentrionais, a que estudaremos na quinta parte, como
on
squamish
também em razão de um problema teórico colocado a seu respeito, para o
co
kutenai
ag
wi
an
qual iremos sugerir uma solução muito diferente daquela que foi inicial-
ch
an
ok
h
songis mente proposta.
lummi
makah skagit kalispel
klallam
le
snuqualmi
a sanpoil M 601A WASCO: A LIBERTAÇÃO DOS SALMÕES.
eil
quileute a n
tw puyallup
’or
quinault
dd
nisqually
humptulips cœur Era uma vez um grande caçador, chamado Águia, que vivia com seu avô, Coiote. Este fez o
pen
chehalis (wash.) d’alêne
neto subir no alto de um rochedo, para pegar águias no ninho, cujas penas serviriam para
cowlitz-sahaptin
chinook cowlitz empenar suas flechas. Antes, ele o tinha convencido a despir-se, para não estragar suas
tillamook klikitat
flathead belas roupas bordadas com contas e enfeitadas com conchas. Água cumpriu sua missão
alsea
nez percé mas, quando quis descer, percebeu que o rochedo tinha se elevado e seu topo quase
puy
a tocava no céu. O que ele tomara por penas de águia não passava de tripas de coiote.
kala
coos Coiote vestiu as roupas do neto e assumiu sua aparência. Para enganar melhor
as esposas do neto, fingiu que estava preocupado com a ausência do velho avô, e
um
pq
dormiu com duas delas, que se chamavam Camundongo e Pica-Pau. Levantou acam-
ua
yurok desceu por ele e foi procurar a família. Duas de suas mulheres tinham permanecido
ta
paiu
as
wiyot sh achomawi fiéis a ele. Quando Coiote mudava de acampamento, elas seguiam as outras de longe,
wintu atsugewi chorando. Guiado pelo calor crescente das fogueiras abandonadas, Águia conseguiu
yana
alcançá-las, e elas lhe contaram tudo o que tinha acontecido. Na mesma noite, o
herói se apresentou. Choramingando, Coiote quis devolver-lhe as roupas roubadas.
o
pom
maidu “Pode ficar com elas — respondeu Águia — e com minhas duas mulheres também”.
A vida voltou a ser como era antes.
Certo dia, Águia pediu ao avô para ir limpar dois cervos que ele tinha matado e
[ 1 9 ] Distribuição tribal no oeste da América do Norte. trazer a carne. O caminho de volta era longo, e Coiote passou a noite perto da caça.
dos Chinook, por exemplo, que podiam muito bem conhecer as narrativas
dos Klamath, que frequentvam as margens do Columbia; o que é atestado õ = ∆
por textos chinook (Sapir 1909a: 292-94). Por outro lado, a recorrência de
temas idênticos nas versões pomo e chinook parece ser mais atribuível em que o filho (neto) de Grizzly substitui Dona Ursa e, já que a ogra será
a um esquema latente, capaz de operar em toda a área de difusão do mito. vítima de sua filha ou neta, onde esta substitui os filhos da ursa que também
Mas acabamos de constatar que a influência desse esquema não se limita vingam o parente. A versão sinkoyne (M₆₃₂, Kroeber 1919: 349-51) contém,
ao ciclo “dos veadinhos e dos ursinhos” definido no sentido estrito; pois aliás, o motivo do incesto, que é consumado, como no mito de Dona Mergu-
os mitos desse ciclo cruzam constantemente com os do de Dona Mergu- lhão, no momento em que a irmã tem sua primeira menstruação. Ela é aban-
lhão e do desaninhador de pássaros. Suspeitamos, portanto, que esses ciclos, donada pelo irmão, mas encontra seus congêneres cervídeos graças à mirta
cuja extensão geográfica é aproximadamente a mesma, constituem cama- com que se perfuma, que atrai irresistivelmente esses animais. É a origem
das mitológicas paralelas e superpostas: nem bem se decapa uma e aparece dos ritos de puberdade. A versão wappo (M₆₃₇, Radin 1924: 47-49) intersecta
outra que, uma vez retirada, deixa ver uma terceira... Embora a matéria que o grupo do desaninhador em M₂₄: Dona Ursa mata o marido que subiu
compõe cada uma das camadas seja diferente, elas possuem uma estrutura numa árvore para colher glandes, devora-lhe o corpo e coloca a cabeça num
comum, que resulta das contingências locais e da natureza do embasamento. cesto. Várias outras versões convertem essa disjunção vertical característica
Às vezes, o embasamento chega a aflorar em pontos onde as camadas se do ciclo do desaninhador, para fazer dela um meio de salvação, e não de
estiram e se afinam, e acabam cedendo sob o efeito das pressões que sofrem. perdição. Os Shuswap (M₆₂₃), ao norte, os Sinkoyne (M₆₃₂), no centro, e
Já demos um exemplo disso com a versão clackamas, M₆₁₆, que deforma ao os Maidu (M₆₃₆) e Miwok (M₆₄₁), ao sul, contam que as crianças persegui-
mito das duas ursas ao submetê-lo a várias torções e assim deixa entrever, das escaparam da ogra subindo no alto de um rochedo. Em alguns casos se
através das malhas distendidas da narrativa, certos detalhes característicos acrescenta que o rochedo foi subindo e elas chegaram ao céu onde, segundo
(zoológico)
universo (M₃₇₅b, M₃₈₂, Adamson 1934: 158-77), dão uma importância muito
botânico
Qualificação
das espécies
maior. Quando o demiurgo Lua, roubado após o nascimento pelas filhas da
Chinook
vegetais
(fogo)
leita, que o criam e se casam com ele, resolve voltar para junto dos seus, pri-
meiro ele transforma os filhos que teve da mais velha em árvores, e os que
perseguidora
teve da caçula em peixes. E dá a cada espécie vegetal e animal seu nome e sua
Ogra
função. De modo que se trata de uma criação que enfatiza, no universo zoo-
lógico e botânico, seres especialmente valorizados por povos essencialmente
e das mulheres
Thompson do
pescadores, artesãos da madeira e da cestaria.
sociológico
Roubo dos
alimentos
Shuswap
interior,
(água) Façamos aqui um breve parêntese. Em seus mitos, os Salish descre-
vem a ordenação do universo de um modo que pode parecer estranho. O
demiurgo executa um programa de três pontos, começando por transfor-
mar parte de seus filhos em árvores de madeiras diferentes e a outra parte,
em peixes de todas as espécies. Depois disso, o demiurgo inicia uma longa
viagem, durante a qual vai se ocupando de outras tarefas, que são a criação
dos quadrúpedes, de técnicas artesanais, de instituições sociais e até de brin-
astronômico
cadeiras infantis, tudo isso aparentemente na mais completa desordem. As
Thompson do
Ursa Maior
delta
Origem da
do mundo
da chuva
um valor tópico para povos cujos vizinhos, ou às vezes eles mesmos, nos
acampamentos de inverno, sofriam com a falta de madeira e eram obriga-
dos a recorrer a combustíveis substitutos. Nesses casos, os salmões serviam
Crianças
fugitivas
(água)
Mundo
celeste
(vida breve)
Impossível
mãe
pela
menção a isso entre os Citas (Hough 1924: 57, 188). De todo modo, aos olhos
dos povos limítrofes, e talvez para os próprios envolvidos, essa culinária
[ 2 0 ] Estrutura do grupo dos veadinhos e dos ursinhos.
Os mitos que acabamos de discutir põem fim à confusão dos gêneros, ins-
taurando uma ordem ao mesmo tempo social, econômica e culinária. É a
troca, tal como praticada nas feiras e mercados, que torna essa ordem mani-
festa, envolvendo então gêneros alimentícios, matérias primas e objetos
manufaturados; mas escravos também se compram, e até o casamento é uma
transação. Tudo se passa portanto como se o mercado condensasse, como
um espelho redutor, o conjunto dos mecanismos que garantem o funciona-
mento do corpo social e colocam pessoas e coisas praticamente no mesmo
plano. Ao instituir a troca, dizem os mitos, o demiurgo fixou definitivamente
a fronteira entre cultura e natureza, humanidade e animalidade.
No entanto, existem coisas que não se trocam, pois apresentam o caráter
de bem comum; é o caso da água potável e do fogo de cozinha (M₆₀₃-M₆₀₄).
E outras coisas se prestam ao compartilhamento, fora de qualquer transa-
ção comercial. E se Grizzly e Urso preto ou pardo evitam invadir os terrenos
de coleta um do outro, embora esses animais pertençam a espécies vizinhas,
outros são aproximados na busca pelo alimento, como acontece com os carni-
ceiros, que aproveitam a carne não consumida que os predadores deixam como
que para eles. Para uma filosofia que vê na troca uma espécie de pedra de toque
na qual é possível reconhecer a passagem da natureza à cultura, as relações
econômicas de felinos de diversos tamanhos têm algo de escabroso. Deveriam
ser postos do lado da natureza, embora seus hábitos de compartilhamento
outro contexto, é produzido por instrumentos chamados, justamente, “das tre- o toco em brasa roubado dos gri- 1. fogo celeste 3. água terrestre
vas”; e que, também nos dois casos, marca ou determina uma regressão dos zzlys, que contém o fogo em estado
humanos a um estágio pré-culinário, já que se deve jogar fora a comida e jejuar selvagem, Lince sofre queimadu-
durante o eclipse, e o ofício das trevas ocorre no momento mais rigoroso da ras cujas marcas permanecem em 2. fogo terrestre 4. água celeste
quaresma; e, finalmente, em ambas as circunstâncias, todos os fogos devam ser sua pelagem. Molhado até os ossos
apagados (cc: 304-05; mc: 355-57). Bem, os mitos sahaptin começam revelando e tiritando de frio, Vison encontra erro alimentar erro linguístico
a natureza do gênio da escuridão ao atribuir-lhe um comportamento regres- abrigo e proteção no estojo que
sivo na ordem culinária: ele aterroriza o jovem herói quando engole pedaços contém o fogo civilizado, o que em [ 2 1 ] Armação do mito Mgef.
de madeira como se fossem peixes (cf. supra, p. 267, 269). vez de se roubar dos ogros, se pro-
Responsável pelo reinado da noite e da penúria, Lince comete, portanto, um duz pelo manejo técnico da broca. Os respectivos erros de Lince e Vison se
erro que apenas renova nas versões cowlitz quando, mais tarde, deixa extin- correspondem, portanto, e formam um quiasma. O primeiro erro de um e o
guir-se o fogo doméstico. Convém no entanto notar uma diferença: a escuridão segundo do outro resultam de um comportamento desmedido, por excesso
é uma carência de fogo celeste, ao passo que, na segunda vez, é a carência de ou por falta, em relação à caça ou à culinária; e o segundo erro de um e o pri-
um fogo terrestre que impede o cozinheiro de cumprir sua tarefa. Após o roubo meiro do outro se originam igualmente de um comportamento desmedido,
do fogo dos grizzlys ou dos personagens que fazem o papel deles, os irmãos se do ponto de vista linguístico: Lince canta alto quando devia ficar em silêncio,
saparam e poder-se-ia pensar que, como nas versões klikitat, essa disjunção e Vison diz aos gritos o nome de lugar que estava proibido de pronunciar.
temperada pelo compartilhamento ocasional do alimento põe fim às conjun- As quatro primeiras sequências das versões cowlitz explicitam, portanto, a
ções abusivas pelas quais Lince é responsável. Mas depois da saída de Lince, sequência única das versões klikitat; equilibram umas as outras e formam
as versões cowlitz ainda possuem uma sequência reservada. É a vez de Vison um sistema coerente (fig. 21).
“li
is”
negativo, visto que Coiote ameaça constantemente suas irmãs-excremento
ng
ga
u
ju
íst
com uma chuva que as desintegrará (note-se que, inversamente, a leita per-
on
ica
“c
s”
manece incólume dentro da água). Consequentemente, prevalece uma rela-
ção de compatibilidade entre as esposas-do-poço e a água parada, e entre as filhas-da-leita, irmãs-excremento,
(–) produtos do produtos do (+)
filhas-da-leita e a água corrente; essa água é de origem terrestre em ambos os alimento cru alimento cozido
casos, ao passo que entre as irmãs-excremento e a água corrente de origem água corrente: terrestre (+) celeste (–)
celeste prevalece uma relação de incompatibilidade.
Os três pares de mulheres possuem uma afinidade com o alimento. As
[ 2 2 ] Tríade das mulheres sobrenaturais.
esposas-do-poço produzem pratos cozidos, as irmãs-excremento são elas
mesmas produto digerido do alimento cozido, e as filhas-da-leita são pro-
esposas-do-poço: filhas-da-leita: irmãs-excremento:
duto de um alimento cru não consumido, pois nasceram da leita do salmão água corrente/parada – + +
que Coiote não conseguia cozinhar por achá-las “brancas e belas”. água terrestre/celeste + + –
Cada par de mulheres mantém com seu autor uma relação especial de alimento cru/cozido + – +
mulheres produtoras/produtos + – –
parentesco. As nascidas da leita são filhas que se recusam a ser esposas: quando mulheres conjugais/não-conjugais + – –
Coiote as chama assim, elas se zangam e desaparecem. As mulheres do poço, em mulheres linguísticas/não-linguísticas – + +
Uma outra versão, que junta os tipos i e ii (M₆₄₉b, ibid.: 67-69), coloca o
episódio das mulheres barulhentas depois do do ogro, e continua com a his-
tória do fogo roubado e da troca de fígados. Como em outras, os irmãos se
separam e Puma promete a Lince que sempre reservará para ele parte de Nem mesmo a noite podia separá-los; encontrava-os
frequentemente deitados no mesmo berço, de rosto
sua presa. Enquanto isso, o ogro continua a perseguir Puma e ele se refugia
e peito colados, ambos com as mãos em volta do pes-
na casa de Trovão, que o prende e finalmente o libera mediante pagamento coço do outro, dormindo nos braços um do outro.
pelo serviço prestado. Uma última e brevíssima versão (M₆₄₉c, ibid.: 69-71) j.h. bernardin de saint-pierre, Paulo e Virgínia,
pertence ao tipo ii; ela identifica o ruído produzido pela cabeça do ogro ao Paris, edição de 1789, p. 19-20
barulho do oceano: conforme ele parecer vir do norte ou do sul, o tempo
será bom ou ruim.
Desse modo reencontramos o motivo da partilha, mas transposto em Qualquer que seja o plano em que os mitos se situem — cósmico, meteoro-
termos meterológicos. É significativo que o equilíbrio que se estabelece lógico, zoológico ou botânico, técnico, econômico, sexual, social, etc. —, são
nessas versões entre os ventos e os tipos de tempo, a partir de então regi- dominados pelas ideias de partilha, troca e transação. Opõem-se às espécies
dos pela alternância, ponha também um ponto final num conflito entre que não acasalam entre si e evitam invadir os territórios umas das outras as
afins. As variantes humptulips insistem duplamente nessa correlação. De que praticam, como os predadores e carniceiros, uma certa forma de colabo-
um lado, afirmam a precariedade da partilha alimentar: mesmo destruído ração. Opõem-se aos bens ou pessoas que são adquiridos nas feiras e merca-
como ser cósmico nas versões em que Puma consegue matar sua mulher dos ou em consequência de transações matrimoniais uma categoria de rique-
grizzly, o urso, diz M₆₅₁a (Adamson 1934: 310-15), sobrevive na condição de zas que, como o fogo de cozinha e a água potável, pertencem a todos. Assim,
espécie zoológica, sempre presente e sem dar a mínima importância à regra os mitos que acabamos de passar em revista estabelecem uma verdadeira
da partilha entre pumas e linces, roubando sempre que pode a porção que tipologia das modalidades que a vida em relação é passível de assumir. Eles
os primeiros destinam ao irmão caçula. Por outro lado, uma outra variante analisam e distinguem os casos nos quais nem se troca nem se compartilha,
humptulips (M₆₅₁b, ibid.: 315-24) desenvolve paralelamente o aspecto mete- em que se troca sem compartilhar, em que se compartilha sem trocar, ou em
rológico e o aspecto matrimonial: os diferentes ruídos emitidos pela cabeça que partilha e troca se confundem. Cada um dos mitos faz, a seu modo, a teo-
do ogro e sua proveniência explicam três tipos de tempo em vez de dois, e o ria de um estilo de vida possível entre outros, ilustrados por provérbios como
herói, além de enfrentar a malevolência do sogro, sofre também a da sogra. “cada um por si”, “toma lá, dá cá”, “onde come um, comem dois” ou “cada um
Acaba conseguindo apaziguar a ambos, dando o raio ao Trovão, que aceita o por todos”. E em cada caso, a responsabilidade da demonstração recai sobre
presente em troca, como declara, da filha. Porque até então, conclui o mito, o uma dupla animal diferente, cujos componentes se encontram, um em rela-
trovão era ruído sem luz. De fato, não confirmam nossas análises que apenas ção ao outro, na posição de parceiros, adversários ou rivais.
na tempestade a algazarra incompatível com o fogo de cozinha e a luz, apesar Melville Jacobs, que empenhou-se em salvar tudo o que podia ser salvo,
de também ser fogo, ainda que celeste e não terrestre, podem conviver bem e sublinhou várias vezes que os mitos coletados por ele e por seus antecesso-
seguirem juntas a máxima do “onde cabe um, cabem dois”? res representavam apenas uma fração ínfima de um vasto conjunto perdido
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para sempre. Seria portanto inútil tentar estabelecer um quadro sistemático num único personagem. Ouve-se o canto da ave na época do ano em que as
das duplas animais e de suas funções. Mas podemos ao menos listar as mais provisões terminaram e reina a penúria, o que às vezes obriga a comer os
importantes, as que vemos operar em mitos de que temos várias versões. próprios mocassins. Atribui-se ao espírito do tetraz as pesadas nevascas que
Distinguiremos, pois, as duplas formados por termos antitéticos (águia e retardam a chegada da primavera (Jacobs 1945: 34). Já os Bez Percé situam
coiote, águia e cangambá etc.) das formadas por termos análogos mas desi- as aventuras de Coiote e Raposa nos tempos de fome do final do inverno
gualmente marcados. Nesta última categoria, identificamos as três duplas (M₆₁₄e, Phinney 1934: 301-06; cf. Boas 1917a: 184-95).
formadas por coiote e lobo, urso pardo (ou preto) e grizzly, e lince e puma. Seria possível localizar as mesmas correlações sazonais nos outros mitos
Em todos os casos, os animais vivem uma relação de intimidade de que um do grupo? Certamente sim para o das duas ursas coletoras de bagas, já que
deles abusa. Resulta daí um drama, cujo desenlace é a instituição da troca essa é uma atividade estival e os plantigrados dormem no inverno. Para
no primeiro caso, a da não-partilha no segundo, e a da partilha no terceiro. fechar o ciclo, seria portanto necessário que o mito de Lince e Puma trans-
Para completar o grupo, seria preciso acrescentar uma quarta dupla, ao corresse no outono, o que é sem dúvida possível em se tratando de animais
qual já aludimos (M₆₁₄a-d; supra, p. 252). Essa dupla, formado por Coiote que vivem basicamente da caça. Ao que se adiciona uma indicação mais clara:
e Raposa em posição de irmão mais velho e irmão mais novo, respectiva- no final de M₆₄₄a (Jacobs 1929: 194-95), Lince encontra um pescador da espé-
mente, transforma a que é formada por um ou vários coiotes e lobos, estra- cie de salmão chamada de truta steelhead, “cabeça de aço” (Salmo gairdnerii),
nhos entre si que roubam a comida uns dos outros. Não obstante, trata-se devido à resistência de sua pele. Esse peixe sobe os rios entre novembro e
sempre de fundar a origem da troca, encarada pelo ângulo ora das transa- maio. Vários mitos ressaltam que ele é pescado no inverno (Adamson 1934:
ções comerciais, ora matrimoniais. Mas uma diferença significativa aparece 163-64; E.D. Jacobs 1959: 167, 177), e inclusive o colocam em oposição dia-
entre os dois grupos. metral com o salmão da primavera (M₆₅₃a-e, Adamson 1934: 72-74, Ballard
O conflito entre o coiote e os lobos deve ocorrer na primavera ou no 1929: 133-34). Quando se considera os mitos sahaptin do ponto de vista sazo-
começo do verão, já que em quase todas as versões os lobos comem ovos de nal, eles parecem, portanto, organizar-se num grupo quadripartite, em que
aves, e é essa a época da postura. Por outro lado, uma versão salish (M₆₁₄c, o verão se opõe ao inverno, do mesmo modo que a discreta reserva que o
Jacobs 1934: 169-71) do outro mito termina com uma sequência que evoca Urso e o Grizzly respeitam um em relação ao outro se opõe à aliança entre
o inverno. Nela, depois de ter instituído o uso da moeda nas transações Coiote e Raposa contra um inimigo comum. Esse primeiro par de duplas de
matrimoniais, Coiote encontra crianças que declaram ter por mãe “aquela termos contrastados é invertido num outro, que opõe o outono à primavera
que provoca sustos repentinos”. Incrédulo, o demiurgo rapta as crianças do mesmo modo que se opõem a partilha de alimento de mão única entre o
mas, logo depois, uma ave escondida alça vôo tão subitamente sob os seus Puma e o Lince e o roubo recíproco praticado por Lobos e Coiotes.
pés que ele cai para trás e desmaia. A ave retorna e liberta as crianças. Em Se a codificação sazonal parece verossímil para as versões salish, sua
seguida, aparece o espírito do gelo, que se aproveita do sono de Coiote para aplicação é mais difícil no caso das versões cowlitz, chehalis e humptu-
roubar o saco cheio de riquezas que ele tinha pegado. No interior do grupo lips. Com efeito, o fato de a coleta de lacamas (palavra chinook para camá-
M₆₁₄, observamos, assim, a transformação: cia, Camassia quamash) feita pelas mulheres-gruas de M₆₄₈ se situar na
primavera é reforçado pelo texto, que especifica serem “button lacamas”
[maus vizinhos —Y mau tempo] (Adamson 1934: 62), ou seja, os primeiros bulbos, que os Chinook situa-
: : [inimigo espacial = “Sioux” —Y inimigo temporal = “Gelo”. dos um pouco mais ao sul colhiam no mês de março (Jacobs 1959, i: 75).
Por outro lado, uma das provas a que o velho Trovão submete seu genro,
O pássaro assustador é um tetraz. Na América do Norte, o termo inclui em M₆₅₁b, consiste em juntar enormes quantidades de neve. Mas sabemos
vários gêneros distintos, mas nessa parte do continente ele parece aplicar-se (supra, p. 285-86) que essas versões salish, longe de remeterem a um deter-
sobretudo aos gêneros Canachites e Bonasa, ou seja, diferentes espécies de minado período do ano, se propõem a dar conta das mudanças de tempo
tetrazes e frangas (infra, p. 352ss). Se o mito salish faz intervirem o tetraz e o que ocorrem em todas as estações. O que significa que quando passamos
espírito do gelo um após o outro, os Kalapuya, por sua vez, fundem os dois dos Sahaptin para os Salish, uma transformação global interioriza, num
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mito único e mais complexo, modalidades meterológicas ou climáticas que contrario da interpretação acima. O mito em questão pertence a um pequeno
os Sahaptin tratam separadamente, remetendo cada qual a um mito dife- grupo de contornos imprecisos7 ao qual, sem investigarem seu significado
rente. A mesma transformação desloca a máxima do “cada um por si” do ou seu alcance, os mitógrafos americanos deram o prosaico nome de “Anus
plano alimentar para o plano sexual, e a do “onde come um, comem dois”, wiper”. Mas quem se expressa na língua que foi a de Rabelais certamente
da ordem da natureza para a da cultura. Mas isso não é tudo, pois a ordem pode caracterizar com mais franqueza a personalidade do herói:
em que os mitos se distribuíram espontaneamente — pelo simples fato de
que a interpretação de cada um deles exigiu a intervenção de um outro M 654 SAHAPTIN (RIO COWLITZ): AVENTURAS DE LIMPA-BUNDA E DE PIPI-NA-CAMA
— oscila constantemente entre dois tipos de transações, ora matrimoniais
ora econômicas, mas sempre concebidas segundo o modelo de uma troca No tempo de antigamente, havia um casal de grizzlys. O marido tinha uma irmã-
permitida ou proibida. E com efeito, o pensamento indígena não sepa- zinha e a melhor amiga da mulher era uma Ursa. O homem Gizzly foi pouco a
rava os dois tipos; não distinguia claramente, do ponto de vista jurídico, pouco deixando de gostar da esposa e resolveu deixá-la. Fingiu uma doença, fez
a aquisição de uma esposa da de bens de subsistência. Acontecia até de crer que tinha morrido e deu um jeito para que enterrassem em seu lugar o cão
mulheres serem diretamente trocadas por produtos de consumo corrente; de seu pai, que ele mesmo tinha matado. Quando a mulher descobriu o engodo,
os Salish do Cowlitz, por exemplo, “não sem se sentirem envergonhados ele já estava longe.
disso”, observa a informante, às vezes pagavam com uma mulher os ali- A esposa Grizzly foi tomada de ódio e devorou todos os moradores da aldeia,
mentos frescos e variados recoltados para a venda pelos Sahaptin instala- exceto a pequena cunhada, de quem fez seu saco de pancada. Sempre que ela defe-
dos a montante (Jacobs 1934: 224). cava, usava os cabelos da pobre menina para se limpar. O irmão desta, que tinha
Tendo partido de M₆₀₆, que abre com um drama familiar de que resulta vindo buscá-la, encontrou-a num estado lamentável, com a cabeça coberta de excre-
um incesto e termina com a instituição das feiras e mercados, fomos leva- mentos. Entrou na casa sem ser reconhecido pela ex-mulher. As duas mulheres esta-
dos a mitos relativos a outras formas de troca. À medida que esses mitos vam sentadas uma diante da outra, com o alimento canibal da ogra colocado no
as inventoriavam e analisavam, trouxeram-nos a problemas matrimoniais chão, entre suas pernas afastadas. Ao verem o visitante, assumiram uma postura
opostos aos que eram considerados no início: o mito de Lince e Puma não mais decente. O homem não quis compartilhar a medonha refeição mas, ainda sem
trata de incesto, mas dos riscos associados a matrimônios afastados demais. ser reconhecido, naquela noite ele dormiu com a mulher.
Irrealizáveis segundo M₆₄₅, que faz do herói um celibatário, tais matrimô- No dia seguinte, inventou um pretexto para fazê-la cavar um buraco tão fundo
nios são bem sucedidos no final da versão humptulips M₆₅₁, que assim ilus- que ela não conseguiu sair dele. Pegou seu arco e suas flechas e a matou. Depois,
tra o último estado de uma única e mesma transformação. Simplificando deu uma bordunada na Ursa amiga da defunta. Decretou que, dali em diante, esses
bastante, pode-se portanto dizer que M₆₀₆ abre com a derrocada sangrenta bichos seriam caçados assim.
do casamento de um personagem chamado Arco com uma Ursa Grizzly, ao O homem queria ir para bem longe com a irmã. Mas ela tinha vivido tempo
passo que M₆₅₁ termina com o sucesso desse mesmo casamento; pois que demais com a ogra e, no caminho, transformou-se em Grizzly e começou a perseguir
é também um caçador que o contrai, com a filha do Trovão, que as versões o irmão, que saiu correndo. Ela estava prestes a alcançá-lo quando ele se refugiou
intermediárias descrevem como um grizzly. O personagem da mulher e os numa casa. Lá havia um menininho. O homem pediu-lhe ajuda mas, em vez de res-
eventos de que ela toma parte passam progressivamente do início do mito ponder, ele repetia ironicamente as suas palavras. A brincadeira acabou quando o
(M₆₀₆) para o meio (M₆₁₅-M₆₄₂), mas é sempre a mesma mulher e os mes- homem chamou seu interlocutor de cunhado. O menino, que aqui se chama Pipizi-
mos eventos que encontramos, a partir de M₆₄₅ e até M₆₅₁b, no final. nho, escondeu-o nos cabelos e também miniaturizou magicamente a casa. A irmã
! 7 . Que poderia ser estendido até a bacia do Missouri, mediante a inversão do personagem
de Pipi-na-Cama num outro que os Mandan chamam de “Esterno” ou “Osso-ruim” (M₄₆₃,
Em tais condições, possui um interesse especial o mito sahaptin que inverte M₄₆₉b, Bowers 1950: 291-93, 320. Cf. infra, p. 301). Mais perto dos Sahaptin, ver Kutenai,
o conjunto do sistema e permite, assim, apresentar uma demonstração a M₆₉₅b, Boas 1918: 125, e Okanagon, M₆₉₆c, d, Cline 1938: 201-04, 244-47.
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Grizzly chegou e perguntou a Pipizinho “se ele tinha visto a comida dela que ela de M₆₀₆ desce num buraco natural, levada pela falta de água (falta de ali-
estava perseguindo”. O outro apenas ecoou suas palavras. O tom foi subindo, e ele mento umido), e a de M₆₅₄ cava um buraco artificial para nele depositar,
urinou no corpo e na boca da ursa. A urina era venenosa. A ursa morreu. conforme o mito, suas reservas de ossadas humanas (excesso de alimento
Ao anoitecer, as cinco irmãs de Pipizinho, todas mais velhas que ele, voltaram seco); 5) em M₆₀₆, a mãe transformada em grizzly mata o filho sob pretexto
para casa carregadas de raízes comestíveis. O menino pediu permissão para dormir de tirar-lhe os piolhos, ou seja, de limpar-lhe a cabeça, procedimento inverso
com cada uma delas, a uma de cada vez. As quatro mais velhas recusaram, com medo ao da mulher-grizzly para com a cunhada, que ela não mata, mas usa para
de que ele urinasse nelas durante a noite, mas a caçula consintiu. Ela sabia que ele limpar-se, enchendo-lhe os cabelos com o próprio excremento em vez de
tinha um homem escondido no cabelo. Quando ele fez o homem sair, as irmãs quise- extrair os parasitas — espécie de sujeira — que neles havia.
ram que o estrangeiro se tornasse marido de todas. “Não!”, disse o menino às quatro Após o assassinato da ogra, M₆₀₆ encadeia com a história do desaninhador
mais velhas, “vocês me repeliram, só a caçula vai tê-lo” (Jacobs 1934: 186-88). de pássaros, e M₆₅₄, com a de Pipi-na-Cama. Para prosseguirmos de modo
proveitoso a comparação, convém contudo introduzirmos algumas variantes:
Essa estranha história seria incompreensível, se não reconhecêssemos nela
o produto de uma inversão metódica. Toda a sua primeira parte pode ser M 655A NEZ-PERCÉ: AVENTURAS DE LIMPA-BUNDA E DE PIPI-NA-CAMA
reconstruída virando do avesso uma a uma cada célula narrativa do mito
klikitat M₆₀₆. Nesse mito, um personagem chamado Arco (arma de caça da Uma menina querida por toda a aldeia foi raptada por cinco irmãs Ursas. Seu irmão,
humanidade futura) tem, por essa razão, uma relação de complementari- que se chamava Pica-Pau-de-Cabeça-Vermelha, foi procurá-la. Encontrou-a num
dade com suas duas esposas, Grizzly e Ursa (que levam os nomes de futuras estado lastimável. Ela explicou que as ursas a obrigavam a trabalhar duro, limpavam
presas). Aqui, é o contrário. Ursa e Grizzly não são co-esposas que se hosti- o traseiro em sua cabeça e não lhe davam nada para comer. Pica-Pau deu-lhe um
lizam, mas amigas, e a relação entre Grizzly e seu marido é suplementar, em pássaro que ele tinha matado para ela fingir que tinha caçado, e encheu a cabeça
vez de complementar, já que ele próprio é um Grizzly. Em M₆₀₆, ocorre uma da irmã de plantas cortantes, que machucaram as ursas quando elas se limparam.
separação temporária entre a mulher Grizzly e o marido, por uma razão Como de costume, elas ficaram nuas para a refeição da noite; e faziam muito baru-
natural, que é o fato de ela estar menstruada. Em M₆₅₄, o marido quer se lho para comer. Quando Pica-Pau fez sua entrada, elas se vestiram às pressas. Ele
separar da esposa definitivamente, e para isso inventa um artifício. Ou seja, aceitou comer com elas e passou a noite com uma delas, mas ficou falando sem
a tripla transformação: parar, para mantê-las bem acordadas. Esgotadas, elas acabaram adormecendo. Pica-
Pau pos fogo na casa e saiu com a irmã, proibindo-a de pegar qualquer coisa. Mas ela
a) M₆₀₆ (co-esposas inimigas) —Y M₆₅₄ (amigas não co-esposas) não pode resistir ao espetáculo dos cadáveres das ursas explodindo no fogo, nem à
b) M₆₀₆ (marido/mulher) —Y M₆₅₄ (mulher ≡ marido) vontade de pegar os dentes delas. Gesto fatal, pois assim contaminada, ela virou ursa
c) M₆₀₆ (disjunção natural, temporária) —Y M₆₅₄ (disjunção artificial, definitiva) e começou a perseguir o irmão.
Ele buscou refúgio na casa de cinco mulheres, que chamou de primas, depois
A mulher Grizzly de M₆₀₆ tem um filho e uma filha; do marido, logo meta- de cunhadas, e que só lhe deram atenção quando ele as chamou de esposas. Elas
morfoseado em arco, não se ouve mais falar. A mulher Grizzly de M₆₅₄ não o esconderam e conseguiram enganar a ursa com palavras de duplo sentido. Essas
tem filhos, e sim dois afins, o marido e a pequena cunhada. De sua amiga mulheres eram perigosos cabritos-monteses (“mountain sheep”, Ovis canadensis),
Ursa não se ouve mais falar, a não ser para fazê-la morrer sob uma borduna, que deixaram o herói cozinhar sua refeição mas proibiram-no de tocar em seus
que forma com o arco um par de termos correlativos e opostos. Os afins de bastões (espetos?) de madeira de tuia. Mas ele os usou para atiçar o fogo. Os bas-
Grizzly desempenham, em M₆₅₄, um papel simétrico inverso do que cabe tões eram os “filhos” das mulheres, e ele os tinha destruído. Furiosas, elas saíram
aos filhos de Grizzly em M₆₀₆. Vejamos: 1) sua relação, de incestuosa (M₆₀₆), atrás dele. Ele se refugiou numa casa cujo ocupante era um menino, chamado
se transforma em canibal (M₆₅₄); tal relação é travada após o assassinato da Pipi-na-Cama, que concordou em escondê-lo atrás de sua nuca, contanto que ele
ogra, e não antes; 3) o autor do assassinato é a mulher num caso, o homem o chamasse de cunhado. Quando as Cabritas chegaram, ele as borrifou com urina
no outro; 4) cá e lá um buraco é o instrumento do assassinato, mas a ogra e elas morreram.
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Logo depois as cinco irmãs de Pipi-na-Cama voltaram da caça. Repreenderam- conseguem comer os vermes que proliferam no peixe podre (Haeberlin 1924:
no por ter matado suas “primas” e as ressuscitaram, pisoteando os cadáveres.8 Em 429). Aliás, em toda a região são frequentes as menções a seres sobrenaturais
seguida, prepararam o jantar. Uma após a outra, todas as irmãs se recusaram a tapados em cima ou em baixo, na frente ou atrás, às vezes de vários lados
compartilhar suas porções com Pipi-na-Cama, exceto a mais nova, que exclamou: ao mesmo tempo; ocorrem, por exemplo, entre os Chinook (Sapir & Spier
“Por que você pede? Alguma vez elas dividiram alguma coisa com você? Venha, ande, 1930: 279; Jacobs 1959, i: 80-105; ii: 388-409, cf. M₅₉₈) e os Tillamook (E.D.
coma! Só nós dois temos pena um do outro!” A mesma cena se repetiu quando o Jacobs 1959: 3-9). Em geral, esses personagens participam na qualidade de
menino pediu a cada uma das irmãs para domir com elas. Todas disseram que ele sujeitos passivos da ordenação do mundo pelo demiurgo, que lhes dá uma
fedia a urina. Mas a mais jovem disse: “Como se fosse a primeira vez que urinamos vida normal perfurando os orifícios ausentes. O fato de uma intervenção
um no outro! Venha dormir comigo!” Aí, ele mostrou o belo rapaz que escondia atrás da mesma ordem ser aqui apresentada como destrutiva, e de acontecer no
da nuca. Apesar dos protestos de Pipi-na-Cama, as irmãs pegaram Pica-Pau para ser momento em que o herói, refugiado no topo de uma árvore para escapar de
o marido delas. um perigo de origem terrestre ou até mesmo subterrânea, simultaneamente
Certo dia, Pica-Pau quis ir caçar. Suas mulheres recomendaram-lhe que não ultra- imita e contradiz o personagem do desaninhador de pássaros, basta para
passasse um certo penhasco, mas ele foi levado para o outro lado atrás de um animal convencer de que essa família de mitos reflete os que consideramos até o
ferido. Repentinamente, foi cercado por um bando de anões, que no começo foram momento, mas apresenta deles uma imagem invertida. E não é o excremento
intimidados pelo fogo dele. Ele queimou toda a sua reserva de lenha, e o animal que o inverso do alimento?
tinha caçado. À medida que o fogo diminuía, os anões fechavam o cerco. Pica-Pau
subiu ao topo de um grande pinheiro que havia ali. Os anões foram subindo uns em !
cima dos outros e quase chegaram até ele, que quebrou um galho e usou-o como
lança, para furar e fazer explodir seus corpos. Os anões caíram mordendo uns aos Não se trata de retomar o estudo nesse nível, ainda mais na medida em que
outros. Quando amanheceu, os anões resolveram costurar-se uns nos outros para o grupo que acabamos de ilustrar com dois exemplos compenetra, do modo
formar no pé da árvore um círculo compacto e intransponível. Mas dormiram tão mais insidioso, toda a mitologia do noroeste da América e se estende para
profundamente que Pica-Pau conseguiu escapar pisoteando e furando os corpos. além dali. Sabemos que os Salish, os Chinook e seus vizinhos imediatos
Quando chegou à casa, encontrou Pipi-na-Cama com os olhos inchados e encharca- atribuem a organização do mundo às obras de um demiurgo chamado Lua
dos de lágrimas (Phinney 1934: 106-12). (M₃₇₅, M₃₈₂, M₅₀₆). Ele as realiza durante uma longa peregrinação de retorno
para junto dos seus, partindo da terra dos salmões, onde as duas filhas-da-
leita, que o tinham raptado no berço, criaram-no e casaram-se com ele. Pois
Essa versão coloca vários problemas, a começar pelo título com que o filho bem, certas versões informam que Lua foi concebido no céu por uma mulher
da informante a registrou e publicou. Ele o intitula “Jovens estrelas”. No que desejava ter uma estrela por marido. À diferença de sua análoga das Pla-
entanto, o texto não menciona nenhum astro. Deveríamos supor que, como nícies, ela consegue voltar para a terra, mas a corda ou escada que tinha uti-
ocorre entre os Kalapuya ao sul (Jacobs 1945: 173-75) e os Coeurs d’Alêne ao lizado se quebra e, desde então, tornou-se impossível a comunicação entre o
norte (Boas 1917a: 125-26), os protagonistas do mito se transformaram, após céu e a terra (infra, p. 368). Nessa forma integral, que a conecta a mitos lon-
a cena final, em constelação? A hipótese é plausível, mas só teria interesse gamente discutidos no volume anterior (quarta e quinta partes), a gesta do
se pudéssemos identificar os astros em questão e esse não é, infelizmente, o demiurgo coloca, sob dois aspectos sucessivos, a questão da mediação entre
caso. Quanto aos anões que se costuram uns aos outros com esmero, mas os mundos natural e sobrenatural, entre natureza e sociedade. Uma primeira
que o herói fura, é tentador lembrar os pigmeus de que falam os mitos salish tentativa de conjunção no eixo vertical fracassa, e os humanos nunca mais
da região de Puget Sound, que são mudos, e cuja boca é tão pequena que só poderão se comunicar com o céu; mas uma segunda tentativa, no eixo hori-
zontal, será bem sucedida graças à atuação do demiurgo, e a subida dos pei-
8 . Sobre a ressureição por pisoteamento, cf. Spinden 1908a: 153; McDermott 1901: 242, xes, de que os homens dependem para sobreviver, confirma periodicamente
244ss. a veracidade do mito.
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Percebe-se claramente que, reduzida a esses contornos essenciais, a gesta numa aldeia e se impôs como co-esposa a um de seus habitantes. Ao oferecer
do demiurgo pode ser transformada na história do desaninhador de pássa- carne a famílias de parasitas que até então eram vegetarianos, ela gerou neles
ros. Ambas começam operando num eixo vertical, certamente com vistas a o apetite por sangue.
uma disjunção e não uma conjunção, nas versões do desaninhador que dis- Convém fazer aqui duas observações. Primeiramente, M₆₅₄ e M₆₅₅, que
cutimos até agora; porém, entre as tribos do interior (Nez Percé e Salish do tratam da origem da caça ao urso e suas técnicas (supra, p. 291), poderiam
Planalto), logo voltaremos a encontrar a fórmula inicial, já que o herói preso inverter o motivo dos parasitas no episódio de M₆₅₅ em que o herói sobe até
no topo de uma árvore consegue chegar ao céu, onde vive diversas aventuras o cume de um pinheiro, não para chegar ao céu e lá encontrar criaturas per-
antes de retornar à terra. Por outro lado, as peregrinações que conduzem o furantes, como em M₅₉₈a, mas para fugir da terra tomada por criaturas anãs
enganador, à sua revelia, até o mar, invertem as do demiurgo, tanto pelo seu que ele mesmo tratará de perfurar. Por que esses mitos fundam a caça aos
caráter involuntário como pela direção que tomam, mas também prenun- ursos pelos humanos em vez da caça aos humanos pelas pulgas e piolhos,
ciam a libertação (ou mesmo a criação) dos peixes. estes assumiriam a forma de parasitas invertidos.
Ora, quando os mitos do desaninhador se atêm ao aspecto disjuntivo, No mesmo sentido, mencionaremos um mito thompson (M₆₅₅b, Teit
sabemos o que aguarda o herói, em sua posição exaltada: sofre de fome e 1898: 35, 1912b: 362-65) em que uma mãe e seu filho, que se salvam passando
sede, definha, as aves o cobrem de excrementos, enquanto suas esposas, que por um arco feito de um jato de urina do menino (invertendo o personagem
ficaram na terra, só recebem de seu novo senhor, Coiote, alimento em pouca de Pipi-na-Cama), são perseguidos e acuados no topo de uma árvore por
quantidade e poluto. Do mesmo modo, contam os Salish e os Chinook, o um povo de parasitas. A versão nootka (M₆₀₀f) do filho do ranho também
demiurgo Lua, ao retornar para casa, encontra seu irmãozinho (feito da confirma essa interpretação, pois em vez de ser roubado por uma ogra, esse
urina do mais velho, e que mais tarde se tornará o sol) submetido aos maus- herói é, ao contrário, o único dentre várias crianças a escapar disso, o que
tratos de um enganador doméstico, Gaio-azul, que o usa como limpa-bunda. lhe permite partir em busca de seus irmãos e irmãs e, mais tarde, libertá-los.
Os mitos não se contentam, pois, com encarar operações simples, tais como Bem, como o herói clackamas, de quem ele é a contraparte, esse herói sobe
a conjunção e a disjunção, situadas num eixo horizontal ou vertical. Eles ao céu e também se casa com a filha do sol. Porém, em lugar de parasitas
também distinguem as direções tomadas pela realização dessas operações, e perfurantes, ele lá encontra inicialmente moças-caracol, lindas mas cegas,
os graus. Responde ao desaninhador de pássaros, forma fraca e incompleta cujos olhos ele abre usando o próprio pênis como perfurador (supra, p. 214,
de um personagem que consegue subir ao céu, o coveiro de ursos de M₆₅₄, 251; infra, p. 361). Convém não esquecermos que numa versão wishram do
complementar de seu parente limpa-bunda, personagem soterrado por um mito do cônjuge do astro (M₅₉₈g) também aparece, mas dessa vez na terra,
urso, que é umaincarnação animal do mundo subterrâneo. a contrapartida igualmente perfuradora dos parasitas, na forma de formi-
Que as desventuras de Limpa-Bunda — personagem masculino ou gas, zangões e vespas. E finalmente, introduziremos mais adiante um mito
feminino — representam uma contrapartida subterrânea da visita ao céu, thompson (M₆₅₈b, infra, p. 299) que inverte os que acabamos de discutir e
durante a qual um terráquio, homem ou mulher, torna-se esposo de um cuja heróina possui um cãozinho chamado Parasita, que assim passa do
astro, resulta também de uma função etiológica compartilhada pelos dois papel de parasita do homem para o de animal doméstico.
grupos, que explicam a origem dos parasitas, na medida em que sua relação Se o mito da criança roubada que foge para o céu e desposa um astro é,
com o homem (que eles comem) é a mesma que prevalece entre o próprio como mostramos, simétrico ao das esposas dos astros, o mito contrário da
homem e sua presa. O jovem herói chinook, roubado por uma ogra (M₅₉₈a) criança que não é roubada (nascida do ranho expelido por uma mulher, ou
que o cria com carinho e o alimenta com bichos imundos que constituem de uma pedra ingerida por ela) é, na primeira dessas duas formas, simétrico
sua alimentação costumeira (fórmula simétrica à de Limpa-Bunda), mata ao importante grupo estudado no volume anterior sob o título de “menino
a mãe adotiva e foge subindo numa árvore até o céu. Lá, ele encontra povos de pedra” (M₄₆₆, M₄₇₀, M₄₈₇, M₄₈₉) e que, por outras vias, já tínhamos conec-
que iriam virar as várias espécies de parasitas, piolhos, lêndeas, pulgas etc. tado ao das esposas dos astros. Ora, na gesta salish do demiurgo Lua, este
Simetricamente, a versão clackamas do mito do limpa-bunda (M₆₅₆a, Jacobs também aparece como uma criança roubada, mas pelas filhas-da-leita, que
1959, ii: 315-31) conta que uma mulher já grizzly e em breve ogra apareceu são em tudo o contrário de ogras, já que elas mesmas são alimento e dão
314 | Quarta parte: Cenas da vida de província Do bom uso dos excrementos | 315
origem, umas às árvores úteis para os humanos (≠ cúmplices da ogra em 1915: 305-11, Bloomfield 1928: 395-409), menino em vez de menina, nascido
M₅₉₈a), outras aos peixes comestíveis (cujo valor alimentar é ignorado pela da união entre um humano e uma ursa e por algum tempo reduzido pelas
ogra de M₅₉₈a). Entrevê-se assim um meio de consolidar um apanhado raposas ao papel de limpa-bunda. O mito termina com a disjunção hori-
incrivelmente complexo de mitos num único grupo (fig. 23). zontal dos protagonistas, que vão uns para o norte e os outros para o sul,
como os da versão clackamas (M₆₅₆a), que partem em direções diferentes,
Herói indo a mulher para a água, e portanto para o oeste, e seus filhos junto com
o tio para o leste, para as montanhas, enquanto o marido parte sozinho
numa terceira direção.
Intermediário entre o grupo do limpa-bunda e o dos veadinhos contra
os ursinhos, um outro mito clackamas (M₆₁₉, Jacobs 1959, i: 156-66) também
único que não
roubado desemboca numa tripartição do povo mítico: uns foram para os rios, outros
é roubado
para as montanhas, outros ainda para os ares, e viraram peixes, quadrúpe-
des e aves. De modo que estamos sempre diante do mesmo esquema.
Ficaremos por aqui. Essas rápidas indicações bastam para mostrar que,
menino de filho do por uma ogra pelas filhas da leita apesar de sua estranheza, a história do limpa-bunda não se reduz a uma
pedra ranho (come-cru) (cruas não comidas) fantasia surgida in loco da imaginação brincalhona de algum narrador.
(M₄₆₆ etc.) (M₆₀₀ etc.) (M₅₉₈ etc.) (M₃₇₅ etc.) Aliás, seria fácil estender seu paradigma a toda a América do Norte, mos-
trando que o motivo, tão difundido na região dos Grandes Lagos e mais a
[ 2 3 ] Estrutura do grupo do menino roubado.
leste, de uma esposa martirizada pelo marido que lhe queima o rosto com
brasas transforma o da vítima com a cabeça coberta de excrementos (infra,
p. 463, 465).
Todos os personagens do gráfico têm uma conotação ou uma contrapartida Interrompemos temporariamente a análise na versão nez percé em que a
celeste, lua ou suas manchas, parélios, a que corresponde uma contrapartida irmã caçula de um herói que sofre de incontinência o convida cordialmente
subterrânea ou uma prova infernal (nos dois sentidos do termo) imposta a compartilhar sua refeição e sua cama. Esse episódio se esclarece à luz de
a personagens destinados a voltar a ser celestes, ilustrada pela história de uma outra versão:
limpa-bunda. O desaninhador se move num plano intermediário, bloque-
ado a uma altura mediana, sujado por aves em vez de ursos. M 658A COWLITZ: HISTÓRIA DE PIPI-NA-CAMA
Quando esboçamos (supra, p. 218-19) os primeiros contornos desse
sistema, chamávamos a atenção para variantes klallam de M₆₀₀ em que o Pipi-na-Cama tinha cinco irmãs. Um dia, ele matou uma criatura temível que per-
filho do ranho liberta a irmã, que um urso tinha raptado e desposado. Ela seguia um rapaz e o escondeu nos cabelos. O mesmo incidente repetiu-se cinco
volta para casa com a criança gerada por essa união, uma menina de duas vezes seguidas com personagens diferentes, e o herói conseguiu, assim, arrumar
cabeças ou duas caras, e muito insolente, que ofende o tio lembrando-o um marido para cada uma de suas irmãs. A mais velha teve dois filhos, um menino
que ele é feito de ranho e provoca a partida dele para o céu. Essa menina e uma menina, que se apaixonaram um pelo outro e fugiram juntos. A mãe saiu
meio ursa, ainda mais perigosa por ter olhos na frente e atrás e não poder correndo atrás deles mas não conseguiu alcançá-los. O casal incestuoso se refugiou
ser atacada de nenhum lado, faz uma breve intervenção num mito chinook em terra estrangeira. Tiveram um filho. Todos os dias, ele dançava e cantava “minha
já mencionado (M₆₄₆a, Jacobs 1959, i: 262-64) em que o filho do Trovão e mãe também é minha tia, meu pai também é meu tio...”. O pai ficou com medo que
de uma humana a encontra e livra a futura humanidade do perigo hiper- alguém escutasse e o matou. O demiurgo enganador apareceu e mandou o casal
bólico que ela encarna. Mas também a encontramos bem mais longe, entre incestuoso se separar, obrigando o homem e a mulher a encontrarem cônjuges entre
os Menomini da região dos Grandes Lagos (M₆₅₇a, b, Skinner & Satterlee os estrangeiros: “Assim será feito doravante: ao atingirem a idade da razão, os irmãos,
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irmãs e primos saberão que não devem dormir juntos. Agora é assim: é ruim irmão e do sentido em que a revelação é feita). A mais velha das irmãs Grizzly, que
irmã virarem amantes” (Adamson 1934: 226). continuava procurando o marido, ouve a mulher, mata-a e come-a junto
com o bebê. O homem volta e reconhece a voz da ogra. Junta toda a água dos
Pelo motivo dos irmãos incestuosos perseguidos pela mãe que quer castigá- rios num poço, perto da casa. Entra em casa, reclama de sede e pede água à
los9 esse mito se junta ao dos Klikitat (M₆₀₆), de que partimos. E este, por mulher, mas ela lhe diz que os rios estão secos. Ele a encaminha ao poço. Ela
sua vez, esclarece reciprocamente o outro, pois se a mãe de M₆₅₈a é uma se debruça e ele aproveita para empurrá-la por trás. Ela morre afogada e ele
réplica enfraquecida da que se transforma em grizzly (mas, transferido para restaura a rede hidrográfica.
a geração seguinte, o infanticídio subsiste), os casamentos das cinco irmãs Vê-se que se a primeira parte do mito inverte M₆₅₈a, a segunda inverte
com humanos ocorrem entre cônjuges demasiado afastados. Em compensa- M₆₀₆, já que aqui a irmã e seu bebê morrem e o irmão escapa ileso, ao con-
ção, um casamento posterior une irmão e irmã, ou seja, cônjuges demasiado trário do que acontecia no outro mito. Além disso, a ursa canibal aparece
próximos. Resulta desse duplo abuso, uma disjunção atual que teria sido como esposa em vez de mãe. E, finalmente, a ogra se afoga numa água tor-
preciso respeitar e uma conjunção potencial que teria sido preciso evitar, a nada superabundante, ao passo que a de M₆₀₆ morre em decorrência de falta
proibição do incesto e a instituição de uma exogamia razoável, unindo côn- de água, caindo num barranco seco.
juges igualmente humanos, mas estrangeiros. Entre o grupo das duas ursas, A versão shuswap (M₆₅₈c) diverge a partir do incidente dos pelos enfei-
de que faz parte M₆₀₆, e o de Limpa-Bunda, ao qual se conecta M₆₅₈a, mitos tiçantes. Em vez de se deixarem seduzir, os irmãos resolvem matar as ursas,
thompson e shuswap (M₆₅₈b,c, Teit 1898: 72-74, 1909: 707-09) ilustram um mas morrem na luta. A jovem irmã, aos prantos, assoa o nariz sobre o fogo,
estado intermediário. A heroína, irmãzinha de quatro homens que passam o onde seu ranho vira um menininho. Seu nome, “Pedra-de-Ranho”, sintetiza
tempo todo caçando, é o inverso de um limpa-bunda, já que, longe de a mar- por si só os dois grupos do “filho do ranho” e do “menino de pedra”, cuja
tirizarem do modo que conhecemos, as quatro irmãs Grizzly que ela encon- afinidade tínhamos estabelecido independentemente (supra, p. 218, 297). Ao
tra no campo a mimam e cobrem de presentes. Na verdade, elas queriam crescer, ele mata as ursas e ressuscita os tios.
casar-se com os irmãos da menina e, conforme M₆₅₈b, conseguem seduzi-los Todos esses mitos pertencem, portanto, ao mesmo grupo de transforma-
misturando às escondidas seus pelos púbicos com as raízes que constituem ção, e todos tratam do incesto, comparando-o com outros tipos de união
sua alimentação habitual, e que convencem a pequena a servir no próximo entre cônjuges afastados demais ou na justa medida. Porém, como lembrá-
jantar. Ou seja, uma tripla transformação: vamos há pouco (supra, p. 289-90), para conectá-los, foi preciso passar por
mitos que colocam em termos de relações entre espécies animais distintas a
a) (excremento de ursa) —Y (alimento de ursa) questão a que M₆₅₈ confere sua expressão sociológica, e que, principalmente,
b) (cabeleira de humana) —Y (pelos púbicos de animais) recorrem a um código alimentar para enunciar as diversas soluções que a
c) (irmã maculada) —Y (irmãos seduzidos) sociedade pode dar à questão do casamento. Não é surpreendente, pois, que
o grupo do limpa-bunda, que inverte esses mitos e particularmente, como
Nem bem se casam, e as ursas só querem matar e comer seus maridos o vimos na p. 292, o das duas ursas, transforme o código alimentar destes em
mais rápido possível. Só o mais velho consegue fugir com a irmãzinha. Não código, digamos, excrementar. Num novo registro, ele também permite dis-
obstante a diferença de idade, que agrava a relação incestuosa, ele a toma por tinguir entre o que é lícito ou proibido trocar.
esposa. Ela logo tem um bebê, que nina cantando “Ah, Seu tio está caçando! Quanto a isso, o uso de outrem, ainda que escravo, para os fins que
Ah, seu pai está caçando!” (cf. M₆₅₈a e a inversão, correlativa às precedentes, M₆₅₄-M₆₅₇ descrevem com uma espécie de fascínio horrorizado parece
representar, para o pensamento indígena, um limite para além do qual nada
9 . O estudo do grupo salish dos irmãos incestuosos se encaixaria melhor num
se pode conceber de mais abjeto. Os mitos dessa região dão provas de uma
contexto diferente, que foi o de nosso curso no Collège de France em 1968-1969. Aqui real delicadeza no exercício das funções naturais. Coiote, por exemplo, avisa
mal o afloramos, e remetemos, para pesquisas mais amplas, a Teit 1912a: 340-41, 5: 287- seu companheiro de estrada: “Tenho dor de barriga, preciso me aliviar; não
88, Hill-Tout 1907a: 336-38, 1899b: 566-74, Cline 1938: 212-13, entre outros. me espere, o cheiro poderia incomodá-lo” (M₆₄₆a, Jacobs 1959, i: 264). Mas
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para essas populações do noroeste, a urina pertencia a uma categoria dife- Mas esse desenrolar num eixo linear gera também fenômenos de resso-
rente da das fezes.10 Era coletada em penicos e utilizada na higiene corporal. nância. Como uma melodia que seguisse sua própria curvatura enquanto
Em suas peregrinações celestes, a primeira coisa que o herói de M₅₉₈a-c faz cada nota, ao ser ouvida, evocasse a série de seus harmônicos, a cada estado
ao entrar numa casa cujos ocupantes estão ausentes é encontrar um reci- da transformação, percebida como uma série de estados, corresponde um
piente cheio de urina para lavar os cabelos. Esse emprego da urina como conjunto de elementos míticos superpostos e que formam acordes entre si.
loção capilar ou corporal, bem atestado pela etnografia, coloca-a em opo- Ao personagem que faz o papel de mediador, garantindo a transição entre
sição particularmente marcada com os excrementos de ursa, já que a urina dois estados ou dois mundos, responde um anti-mediador, impotente ou
serve para limpar os cabelos e, conforme os mitos, é sempre a cabeça que os mesmo dotado de uma eficácia negativa. O herói de M₆₅₄-M₆₅₅ e sua irmã,
excrementos sujam. No plano das funções de excreção, o comportamento da inicialmente rebaixada ao papel de limpa-bunda e depois transformada em
ursa para com seu escravo exibe uma promiscuidade tão revoltante quanto ogra, repartem entre eles as duas funções. O anti-mediador se inverte, por
seria um incesto no plano sexual. Ora, a caçula entre as irmãs de Pipi-na- sua vez, no personagem de Pipi-na-Cama que vem socorrer o mediador
Cama assume um comportamento que, no plano das excreções, beira obje- inicial, e reverte contra seu antagonista a potência antes maléfica do excre-
tivamente o incesto; mas seu comportamento diz respeito à urina, não às mento, que invertia a potência benéfica do alimento. Esse duplo caráter,
fezes, e no plano da vida sexual, trará à heroína um belo rapaz que também ao um tempo melódico e contrapontístico, de uma transformação que se
será para ela um bom marido. Quer seja em relação ao alimento ou ao excre- opera em dois eixos, o das sucessões e o das simultaneidades, e que assim
mento, todos os mitos tratam de delimitar as fronteiras entre o que se deve se projeta como encadeamento de sintagmas e como sistema de paradig-
ou não se deve compartilhar. mas, permite a ocorrência de atrasos ou antecipações ao modo do que os
músicos chamam de cadências rompidas ou evitadas. Com efeito, no inte-
! rior de um mesmo mito, mas em segundo plano, ou na forma de mitos dis-
tintos situados em estágios diferentes, motivos ou incidentes se justapõem,
Os desenvolvimentos acima decorrem da observação de que, entre os Sahap- pertencentes a estados anteriores ou posteriores do grupo de transforma-
tin, tanto o mito do desaninhador de pássaros como o de Lince e Puma pos- ção. Quando tais estados são distribuídos numa ordem que, por comodi-
suem funções etiológicas correlatas e opostas. Em suas formas norte-ame- dade, pode ser chamada de “natural”, os mitos de limpa-bunda vêm bem
ricanas examinadas até o momento, o primeiro pretende explicar a origem depois dos do desaninhador; pois é mais econômico, passando pela série
das feiras e mercados, da troca portanto, e os define em relação à cultura. de tipos intermediários, transformar estes naqueles do que buscar o mesmo
O segundo funda a origem da partilha, definindo-a em relação à natureza. resultado no sentido inverso. No entanto, já notamos (supra, p. 295) que
Cada mito ilustra, portanto, um estado simétrico de uma transformação que o motivo do limpa-bunda estava implicitamente presente na história do
se desenvolve progressivamente ao percorrer uma gama de estados. desaninhador. Quase sempre, ele marca uma fase crítica que o herói atra-
vessa na diacronia, e se manifesta ainda mais claramente quando o herói se
10 . É certamente aí que deve ser buscada a chave da inversão do grupo já assinalada desdobra, no plano sincrônico, em dois personagens, o seu próprio e o de
(supra, p. 299) entre os Mandan. Pois a mulher canibal dos mitos mandan, em vez seu jovem filho, que encarna a neutralização de sua função mediadora. É o
de limpar o traseiro em sua vítima, possui um osso protuberante que ficará entalado caso das versões yurok (M₅₅₇) em que o filho do herói vira saco de panca-
numa fenda (≡ ânus) cavada intencionalmente por um jovem herói chamado “Esterno” das do avô, que o cega com seu esperma e assim se livra de uma testemunha
ou “Osso-Ruim”, enquanto que o nome de seu homólogo sahaptin ou salish, se incômoda, para melhor saciar seus desejos incestuosos. Uma transforma-
nossa interpretação estiver correta, denotaria o “bom excremento”. A pertinência da
ção tanto mais evidente do limpa-bunda na medida em que permite passar
transformação que aqui ocorre no sentido urina —Y osso, em outras palavras, excreção
líquida —Y “increção” sólida, é confirmada pelo ciclo de Cabeça Vermelha das Planícies
da história do desaninhador para a (M₅₉₈) do herói também trepado no
(M₄₆₃, M₄₆₉ etc.), em que o braço ou perna anormalmente fortes de um homem vestido alto de uma árvore, mas que de lá chega ao céu, para tornar-se esposo de
de mulher revelam sua identidade, por sua vez revelada, na versão chinook do mesmo uma criatura solar. Ao retornar à terra com sua esposa, encontra o irmão-
mito (Jacobs 1959, ii: 340-41, Hymes s/d), por seu modo masculino de urinar. zinho martirizado e cegado por Gaio-Azul. A transição entre um mito e
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o outro é modulada por um terceiro, também proveniente dos Chinook Jacobs 1934: 42-43) põe em cena Lobo e Cangambá. Eles são irmãos, Can-
(M₆₅₉, Boas 1894: 130-32; cf. infra, p. 400, M₇₁₂-M₇₁₃): o herói é abando- gambá é casado, Lobo deseja a cunhada e a rapta. Cangambá os persegue
nado por seus companheiros numa ilha em pleno mar, a que tinham ido em através de um terreno acidentado (eixo vertical —Y eixo horizontal), tropeça
busca de moluscos (disjunção, vertical —Y conjunção, vertical —Y disjunção, e perde a glândula anal. Furado, não pode mais se alimentar, porque tudo o
horizontal). Na aldeia, Gaio-Azul, enganador doméstico (≠ Coiote, engana- que come escapa de seu corpo. Ele tapa o reto escancarado com um tampão
dor exótico) se apropria de duas das quatro mulheres do herói. Como na de palha e consegue, finalmente, se alimentar.
história do desaninhador de pássaros, aqui mudado em coletor de molus- Os leitores do primeiro volume destas Mitológicas certamente se lembrarão
cos, as duas outras mulheres permanecem fiéis ao marido. Mas Gaio-Azul de que o herói do mito bororo M₁, afastado para o alto em vez de para baixo
também vem defecar na casa de suas vítimas, obrigando o menino da casa ou para longe, mas também em decorrência de um incesto, sofre a mesma
a limpá-lo com seu casaco e martirizando-o tanto que quando seu pai o desventura que Cangambá: privado de fundilhos, seu tubo digestivo não pode
encontra, ele já está cego e careca (cf. M₇₆₇a, infra, p. 461). Vemos, assim, que mais reter o alimento e o herói passa fome até ter a ideia de tapar a abertura
certas variantes do mito do desaninhador precipitam o movimento de tal com um tampão (cc: 44, 55-56). Mas há mais, já que tínhamos imediatamente
modo que o baixo de sua harmonia alcança, por assim dizer, uma parte alta transformado esse herói furado por baixo no de M₂, achatado por cima pelo
reservada por outros mitos para uma fase ulterior da mensagem que de peso de uma grande árvore que lhe nascera do corpo. Depois de livrar-se
ambos os lados é desenrolada por sua melodia comum. dela, ele se transforma em juiz, como Cangambá em M₆₆₀a-b, poupando ou
Do mesmo modo, o mito do desaninhador, que se situa antes da série dos matando seus compatriotas (em vez de povos estrangeiros), conforme estes
pares animais à qual está ligada pelo que chamamos de abertura iv (mãe lhe dão ou não ricos presentes; de modo antissimétrico, pois, com o compor-
que vira grizzly quando está menstruada), possui ainda assim, transposto tamento de Cangambá, que se apodera das riquezas daqueles que mata mas
na série dos pares animais, um equivalente que lhe dá a réplica exata. Águia respeita as pessoas e os bens dos demais, que o trataram com cortesia.
se apossa da mulher de seu irmão Cangambá e a leva para o céu. Cangambá
descobre seu paradeiro, consegue ser içado até eles, mas Águia corta a corda. !
Cangambá cai e, na queda, perde a glândula anal que secreta o fluido com
que ele ataca e se defende. Ele parte em busca dela e a encontra em posse de Retornemos agora ao contraste mais simples que a inversão de suas respecti-
estrangeiros que a utilizam como um brinquedo. Recupera o que é seu gra- vas funções etiológicas permitia (supra, p. 301) perceber entre o mito do desa-
ças a uma esperteza, mata e pilha os povos que lhe faltaram com a considera- ninhador e o de Lince e Puma. Tal inversão etiológica acompanha uma outra,
ção, e poupa os que demonstraram respeito para com ele. Levando as muitas relativa às cores. As mulheres de pele escura do desaninhador são virtuosas e
riquezas que pegou, primeiro ele enfrenta Puma, e escapa; em seguida, roe- as de pele clara, infiéis. No mito de Lince e Puma, ao contrário, é a carne clara
dores chamados “cães da pradaria” (Cynomys gen.) tiram-lhe tudo e o redu- que é boa, e a escura, ruim. A pertinência dessa inversão se evidencia num
zem à condição atual de animal repugnante mas inofensivo para o homem, e outro grupo de mitos cuja armação toda, e não mais apenas a mensagem, é
que um mero assobio espanta (M₆₆₀a, Jacobs 1929: 207-15). rigorosamente simétrica à da história do desaninhador de pássaros:
Uma outra versão (M₆₆₀b, Jacobs 1934: 202-06) informa que a mulher
raptada por Águia lhe era previamente destinada; Cangambá tinha ficado M 661A , B NEZ-PERCÉ: OS DOIS IRMÃOS
com ela graças a um estratagema. O espírito assobiador que faz Cangambá
fugir e lhe rouba todos os tesouros é aqui o congelamento, o que permite Numa aldeia cujo chefe principal era Coiote, e Águia seu braço direito, viviam dois
situar esse grupo de mitos, na série das transformações, bem perto dos que irmãos, caçadores ricos e respeitados que mantinham distância dos demais habi-
têm Coiote e Raposa por heróis (M₆₁₄), e que também destinam as riquezas tantes. O mais velho era casado. O mais novo, solteiro, tinha um urso grizzly como
roubadas às transações matrimoniais: “Isto será para meus aliados por casa- cão. A mulher se apaixonou pelo cunhado, que resistiu às suas investidas. Certo dia,
mento; isto aqui para minha sogra, e isto aqui para o meu genro. E isto para quando eles estavam sozinhos, ela arranhou propositadamente o próprio rosto com
a minha roupa de casamento” (Jacobs 1929: 213). Uma terceira versão (M₆₆₀c, as patas de um passarinho que tinha pedido a ele para matar. Quando o marido dela
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voltou, ela alegou que aquelas eram as marcas de uma luta contra o jovem, para Transformado em cãozinho, acompanhado por alguns companheiros diversa-
proteger a própria virtude. mente transformados, o herói conseguiu ser recolhido pela filha de Corvo. Ela o levou
Louco de raiva, o homem quebrou e jogou no fogo as flechas que o irmão tinha até a tenda onde seus pais mantinham os animais presos. O cão latiu tão alto que
ficado fabricando em casa, e cobriu-o de censuras. O outro saiu sem dizer uma pala- eles ficaram com medo e fugiram (Boas 1917a: 157-64; Phinney 1934: 163-72. Cf. Boas
vra. Seguido por seu cão, atravessou quatro montanhas, despiu-se no topo da quinta, 1917a: 85-90; Cline 1938: 212-13).
que era a mais alta, subiu numa árvore e desapareceu no céu (graças à ação mágica
do cão, M661B). Nunca mais foi visto. Cansado de tanto esperar (M661A), seu cão-urso Quais são as relações entre esse mito e o do desaninhador de pássaros? Pri-
resolveu ficar vivendo nas montanhas. meiro, ele ilustra o que poderíamos chamar de sua “transformação Putifar”,
Enquanto isso, o marido se arrependera de ter sido tão duro com o irmão e resol- registrada na América do Sul (Wagley & Galvão 1949: 146-47; Murphy 1958:
veu ir à sua procura. Guiado pelos uivos do cão, encontrou o animal, que lhe revelou 87-88; e M₁₃₅, Koch-Grunberg 1916: 56-60, cf. mc: 235) e tão difundida na
a verdade, pois tinha testemunhado as tramóias da mulher. O homem transformou América do Norte que todo o estudo do grupo poderia ser retomado por
o cão em urso grizzly e lhe disse que a partir de então ele seria um bicho perigoso, esse viés (cf. infra, pp. 454-63, 474-75; S. Thompson 1929: 326-27).
assassino até. Ele então voltou para a aldeia e sem uma palavra de explicação, matou Contentemo-nos com verificar em que ela consiste nesse caso em foco,
a mulher a flechadas. Depois comeu todos os seus adornos (as roupas e adornos de pois alhures ela assume outras formas. Em vez de o mais velho de dois
seu irmão, da sua mulher e dele mesmo, M661B). Era um homem grande e belo, mas homens tentar seduzir a ou as mulheres do mais novo, é a mulher do mais
sua estranha refeição teve por efeito torná-lo pequeno, horroroso e barrigudo. Foi velho (pai ou irmão) que tenta seduzir o caçula. Meio ou consequência do
enfeiando ainda mais ao andar. Consequentemente, todas as mulheres que encon- ato transgressor, a árvore na qual o herói sobe o separa dos seus, tempo-
trou zombaram dele, exceto uma filha de Águia que caridosamente o levou à casa de rariamente num caso, definitivamente no outro. A volta à terra, quando
uma velha, que era avó dele. ocorre, requer a intervenção de animais prestativos que podem ser tão
No dia seguinte, Águia organizou uma competição de arco e flecha e prometeu inofensivos quanto as borboletas ou a aranha das versões norte-ameri-
suas duas filhas ao vencedor. Como ninguém acertava o alvo, Coiote convidou o herói canas, ou ferozes como o jaguar das versões jê. É, pois, significativo que
feioso a atirar ao mesmo tempo que ele. A flecha do monstrinho foi certeira. Coiote M₆₆₁, mito norte-americano que vira ponto por ponto a história do desa-
dizia que era a sua, mas ninguém acreditou. Águia mandou as filhas para junto de ninhador e dele apresenta a imagem simétrica, faça do grizzly (a fera mais
seu novo marido. A caçula obedeceu de boa vontade, mas a mais velha, horrorizada temível dessas paragens setentrionais) um equivalente do jaguar, mas com
com a feiúra do moço, resolveu se casar com Corvo. Após uma noite durante a qual inversão da função que os mitos brasileiros confiam ao segundo animal:
ele se manteve longe de sua jovem esposa, mandou-a sair. Pediu à avó que o pendu- em vez de facilitar a descida do herói, o cão-urso de M₆₆₁ faz surgir um
rasse no alto da tenda e, nessa posição, vomitou tudo o que tinha engolido. Quando pássaro comestível que seu dono tenta pegar, e que o leva até o céu, de onde
sua mulher voltou, ele estava bonito de novo. ele nunca mais retornará.
No dia seguinte houve uma caçada coletiva. O herói matou muitos bisões. Ao Como o jaguar sul-americano, até entã dono do fogo de cozinha e que,
retornar à aldeia, aceitou a água branqueada com argila que lhe oferecia a esposa tendo-o cedido aos humanos, passará a comer cru, o grizzly de M₆₆₁, até
e recusou a água escurecida com carvão que a cunhada tinha preparado a pedido então animal doméstico, viverá a partir de então em regiões selvagens.
de Corvo, seu marido. Este tinha apenas catado as cabeças de bisão deixadas pelos Segundo uma versão yurok do mesmo mito (M₆₆₁c, Erikson 1943: 287), a
caçadores. O sogro preferiu a carne boa do outro genro. Vexado, Corvo prendeu toda gralha enegrecida pelo fogo de cozinha não mais comerá carne fresca e terá
a caça, de que era o dono. Veio a fome. Só o herói ainda conseguia caçar. de contentar-se com lixo.
Tentaram descobrir onde Corvo tinha escondido os animais, mas como naquele Entre os Salish da costa, os Chinook e os Sahaptin limítrofes, a histó-
tempo sua plumagem era toda branca, sua cor se confundia com o céu assim que ele ria do desaninhador desemboca num episódio no qual um personagem
alçava vôo. Castor teve então a ideia de assumir a aparência de carniça. Corvo pousou semi-humano chamado Coiote, antes de assumir sua forma animal defini-
nele, foi capturado e suspenso sobre o fogo para ser defumado. Agora negro, tinha-se tiva, liberta em benefício da humanidade futura os peixes que eram man-
tornado visível, mas alçou vôo e desapareceu no horizonte. tidos presos pelas andorinhas do mar (ou outras aves marinhas). Em M₆₆₁,
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simétrico ao outro mito, um personagem semi-humano assume tempora- de fora — pois que as roupas envolvem o corpo — enquanto o desaninha-
riamente a forma animal para libertar, em benefício de seus companheiros, a dor, que definha e não tem nada para comer a não ser a própria substância,
caça que é mantida presa por um casal de corvos, aves terrestres. se alimenta do de dentro.11
Mas o episódio mais notável de M₆₆₁ é certamente aquele no qual o Como anti-alimento, as vestimentas ingeridas transformam, portanto,
herói ingere roupas e adornos, o que o faz transformar-se de adulto grande as vestimentas retiradas pelo desaninhador. Correspondem menos à falta
e bem feito em criatura infantil e disforme. Para interpretá-lo, convém de alimento de que sofre um herói nu e esfomeado do que à condição de
começar notando que o episódio seguinte, no qual o herói é pendurado crueza, ou até mesmo de podridão, a que se vê reduzido o mesmo herói, nos
pelos pés no alto da tenda — perto da saída de fumaça, diz o mito — e mitos homólogos sul-americanos, antes de obter o fogo de cozinha e dá-lo
regurgita, na fogueira portanto, tudo o que tinha engolido, antecipa a cena aos humanos. Em M₁, o herói cobre o próprio corpo de lagartos putrifica-
que mostra Corvo colocado na mesma situação e enegrecido pela fumaça. dos, os urubus tomam-no por carniça e começam a devorá-lo. O mesmo
Neste caso, um movimento ascendente que parte da fogueira, análogo à motivo reaparece, com a função inversa, em M₆₆₁, em que um comparsa (em
defumação, que é um procedimento culinário, ao mesmo tempo enegrece lugar do herói) se transforma em carniça para capturar o corvo. No outro
e enfeia um personagem anteriormente branco e belo. No outro caso, um extremo da área geográfica percorrida por este livro, os Wintu (M₆₆₂, Du
movimento em sentido inverso, análogo ao vômito, que é o contrário de Bois & Demetrecopoulou: 288-89) têm um mito que associa a origem, não
um processo alimentar, devolve sua antiga beleza a um personagem que dos salmões, mas de seu consumo ritual pelo menos, à das “panelas” naturais
tinha ficado feio. fabircadas nas rochas pela erosão, de que M₁ também se ocupa (cc: 146).
Contudo, a conduta alimentar cujos efeitos são anulados pela suspen- Por uma curiosa coincidência, nele também aparece o motivo da caça aos
são do herói possui um caráter anormal: diz respeito não a alimento, mas a lagartos, invertendo uma caça verdadeira (pois que ali eles são batizados de
vestimentas. Simetricamente, a suspensão do corvo acima da fogueira tam- “veados”), e que os protagonistas amarram à cintura, como o herói de M₁.
bém possui um caráter anormal, já que em vez de um animal ser cozido, ele A conversão do código culinário em código vestimentar obviamente não
recebe uma nova roupagem. Essa conversão do código culinário em código representa um fenômeno próprio das culturas da América do Norte. Várias
vestimentar permaneceria incompreensível se não notássemos que sua ori- outras línguas, entre as quais o francês, dão mostras disso e, dessa perspec-
gem se encontra nas versões norte-americanas do mito do desaninhador de tiva geral, já o discutimos (cc: 340-45). Mas parece estar claro que um papel
pássaros, cuja transformação é rematada por M₆₆₁. estratégico lhe cabe nesses mitos de que estamos falando, nos quais a passa-
Empanturrado de vestimentas, o herói de M₆₆₁ ganha um barrigão e gem de um código para o outro determina toda a série de transformações.
regride para um estágio infantil. Privado de vestimentas e de alimento, o Como começamos a demonstrar às páginas 281-82, esse fenômeno resulta de
desaninhador de pássaros sofre de fome e de frio; emagrece, saltam-lhe os duas ordens de fatos. Primeiro, o recobrimento do universo da cultura pela
ossos, chega bem perto da morte. E, efetivamente, basta percorrer todas entrecasca, cujos múltiplos empregos vão do combustível ao vestuário, pas-
as versões norte-americanas do mito do desaninhador de pássaros que sando pelo alimento e os utensílios de cozinha. E ainda a função ambígua
resumimos até agora para constatar que a retirada do vestuário pelo herói das conchas brutas ou trabalhadas, que de um lado são adornos costurados
representa um traço invariante. Ao obrigar Águia a se despir, Coiote o faz às roupas e, do outro, mercadorias oferecidas nas feiras em troca de gêneros
regredir da cultura para a natureza e, metaforicamente falando, do cozi- alimentícios ou meio de pagamento para adquiri-los, bem como a outros
mento para a crueza, como os companheiros de Corvo, ao obrigarem-no bens. Por intermédio da entrecasca e das conchas ao mesmo tempo enfeite
a deixar-se cozer, transformando sua branca nudez primitiva, que o con- e moeda, as ordens vestimentar e culinária eram objeto, nas culturas indíge-
fundia com o céu, numa veste cujo negrume será doravante característico. nas, de uma união não apenas metafórica, mas real.
Além desses dois estados extremos de uma mesma transformação, o herói
de M₆₆₁ ilustra um terceiro: pelo fato de ingerir suas próprias roupas, pode- 11 . Sem prejuízo de uma oposição explicitada mais ao norte entre corvo, larápio de
se dizer que ele se veste por dentro, ao passo que o desaninhador, que tira as alimento, e o outro parasita do homem que é o camundongo, em que se transforma entre
suas, se despe por fora. E pela mesma razão, o herói de M₆₆₁ se alimenta do os Atabascanos setentrionais o homem que comeu suas roupas (Jetté 1909: 485-86).
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Mencionaremos um último argumento em favor dessa interpretação. Águia punha a ferventar as presas grandes que matava, e Coiote pegava
Ao lado da “transformação Putifar” do mito do desaninhador de pássaros, camundongos e os punha sob as cinzas para assar. Invejoso, Coiote matou o
existe uma outra, que examinaremos mais adiante (infra, p. 385ss), em que irmão e passou a levar uma vida errante: “Pouco importa, disse ele, irei para a
Coiote, em vez de se apropriar de afins, procura seduzir a própria filha (sobre mata, pois se aproxima o tempo em que os índios povoarão esta terra”.
o grupo como um todo, cf. Schmerler 1931). Notemos apenas que, na maior O mito não é interessante apenas por proclamar a superioridade implí-
parte dos mitos desse grupo, Coiote deseja pela primeira vez a filha quando cita do ensopado sobre o assado, e do recipiente de entrecasca sobre uma
ela está no alto da casa, para apagar um incêndio, e dá a ver suas partes ínti- técnica culinária tão rudimentar que prescinde do uso do espeto (cf. supra,
mas ao pai, que ficou em baixo. Esse incidente inverte claramente aquele p. 279). Por meio do par formado por águia e coiote,12
no qual Coiote, na série do desaninhador, põe fogo às roupas de suas noras
para obrigá-las a se exporem. Seu homólogo Corvo procede de modo ainda (águia: coiote):: (ensopado: assado),
mais direto nos mitos bella coola e kwakiutl que retomam o mesmo episódio
(Boas 1900: 90-91; Boas & Hunt 1906, ii: 288-91). Por conseguinte, a mulher ele exprime o que poderia ser chamado de universo culinário:
desejada, agente de uma extinção num caso, torna-se sujeito passivo de um
atiçamento no outro. Ora, numerosas versões do mito em que Coiote seduz (águia + coiote) = culinária.
a própria filha explicam que ele recorreu ao fogo para alcançar seu intento:
fingiu morrer depois de ter mandado queimarem seu cadáver, de modo que, Mas, se é assim, resulta que em M₆₆₁, o Corvo revoltado que priva do meio de
quando ele reapareceu, tomaram-no por um estrangeiro e ele pode se casar praticar a culinária (prendendo a caça) todos os habitantes de uma aldeia cujos
com a filha, que era a única, como ele disse para se justificar, que sabia acen- chefes são, justamente, Coiote e Águia, representa sua contraparte negativa:
der corretamente o seu cachimbo. Versões paiute e shoshone fazem-no comer
o próprio pênis cozido debaixo das cinzas, como castigo. Portanto, se pelas corvo = (águia + coiote)-1.
razões expostas essa sequência de eventos constantemente referidos ao fogo
inverte aquela em que consiste o mito do desaninhador, é necessário, a con- E, com efeito, a conotação culinária negativa do Corvo está na defuma-
trario, que o meio empregado pelo mesmo personagem — forçando o filho a ção que ele sofre passivamente quando é enegrecido, ao passo que Águia e
despir-se para apropriar-se de suas roupas, sua aparência física e suas esposas Coiote têm uma relação ao mesmo tempo positiva e ativa, um com o enso-
— esteja fundado numa relação de congruência entre nu e cru. pado, e o outro com o assado. Mas isso não é tudo. A Águia e o Coiote podem
formar um par de termos em correlação e oposição porque seu constraste se
! manifesta duplamente: a águia é celeste e predadora, o coiote é terrestre e car-
niceiro. O corvo, por sua vez, se qualifica para formar uma tríade com os dois
A construção de M₆₆₁a ilustra admiravelmente as relações de simetria que ao outros animais porque é celeste como um e carniceiro como o outro. Esse
mesmo tempo o unem e o opõem ao mito do desaninhador. Em ambos os sistema aparentemente triangular guarda reservado um quarto lugar para
casos, atuam Águia e Coiote, mas ao mesmo tempo em que se inverte a ordem animais definíveis pelas duas relações ainda livres, predador como a águia e
de precedência entre eles [(Águia > Coiote) —Y (Coiote > Águia)], os dois terrestre como o coiote. Tais animais, que os mitos também põem em cena,
personagens passam juntos do nível de protagonistas para o de comparsas. são o puma e o grizzly, um provedor e o outro canibal, ou seja, investidos
Sempre presentes, mas em segundo plano na narrativa, eles atestam com essa respectivamente de conotação positiva e negativa em relação à culinária.
mudança de perspectiva que o mito girou, por assim dizer, sobre si mesmo. E
não é indiferente notar que, numa narrativa wasco que também lhes dá um 12 . O mito thompson sobre a origem do fogo (M₆₆₃b, Teit 1912b: 338-39) reparte os
papel secundário (M₆₆₃a, Sapir 1909a: 233), Coiote e seu jovem irmão Águia papéis entre três animais. O castor rouba o fogo da gente de Lytton e o dá aos do rio
têm uma conotação culinária. Os dois irmãos viviam juntos, Águia caçava, Nicola e de Spences Bridge. Águia lhes ensina a assar, e doninha a ferventar. De modo
enquanto Coiote ficava em casa. Cada um preparava sua própria comida: que, para essa versão, o universo da culinária consiste de fogo, mais assado e ensopado.
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Vê-se pelo exposto acima que o mito dos dois irmãos e o de Lince e Puma, Tentemos, pois, encarar a questão de um outro ângulo. Em toda a Amé-
que invertem em eixos diferentes o do desaninhador, são coerentes consigo rica do Norte, a oposição entre claro e escuro é mais comumente associada
mesmos quando invertem também os valores respectivos das cores, branco e à oposição entre dia e noite, de um lado, e entre gênero masculino e femi-
preto ou claro e escuro, que os três mitos selecionam para formar uma opo- nino, do outro. Um mito salish da costa (M₇₁₆b, Adamson 1934: 85) opõem as
sição pertinente. No que diz respeito a M₆₆₁ em particular, essa oposição cro- “escuras” filhas do crepúsculo às “cinzentas” filhas da aurora. Do outro lado
mática aparece duas vezes, na água branqueada com argila que é boa e na do continente, as tribos do nordeste opõem o bebê preto e feio, “nascido de
enegrecida com carvão que é ruim, e no Corvo que, antes branco, fica preto. noite”, ao bebê branco e belo, “nascido de dia” (Speck 1925: 24-25). À mesma
Como esse escurecimento se apresenta como uma punição e faz Corvo regre- distância dos dois grupos, os Mandan associam a artemísia branca ao sol e
dir do estágio de predador para o de carniceiro e como, finalmente, M₆₆₃a o veado de cauda branca ao dia, a artemísia negra à lua, e o veado de cauda
estabelece a superioridade do primeiro sobre o segundo, pode-se admitir: preta à noite (Maximiliano 1843: 366; Bowers 1950: 304-05). Seus vizinhos
Omaha dizem que na puberdade a alma do rapaz fica branca, renasce então
claro escuro da escuridão, pois a noite é mãe do dia (Fletcher & La Flesche 1911: 128).
mito do desaninhador: – + Além disso, os Wiyot da costa da Califórnia, cujos mitos já foram aqui
mito de Lince e Puma: + – aproveitados (supra, p. 135-36), distinguem os bojos de seus cachimbos pela
mito dos dois irmãos: + _ pedra clara ou escura de que são feitos. Chamam de machos os cachimbos
do primeiro tipo, e de fêmeas os do outro. Esses índios crêem, ademais, que
Surge aí um problema: por que o desaninhador de pássaros dos mitos norte- as estrelas são mulheres tornadas cegas durante o dia (Kroeber 1908: 39).
americanos prefere entre suas mulheres as que têm a pele escura? Pois essa A mesma conotação sexual do branco e do preto está presente no centro do
predileção constitui um traço invariante do grupo, desde os Klamath ao sul continente, entre os Kansa (Skinner 1915: 760) e os Omaha, que invertem
até os Thompson ao norte, passando pelos Sahaptin setentrionais, os Chi- a fórmula californiana: os membros da confraria da Concha consideravam
nook, os Salish do rio Cowlitz e os de Puget Sound. Conforme as versões, as fêmea a concha branca de Olivia nobilis e macho a mais escura, de Olivia
mulheres claras se chamam Esquilo ou Peixe, Camundongo, Gafanhoto, Lei- elegans (Fletcher & La Flesche 1911: 519-20). Mas essa classificação se insere
tas, Pato, Cisne, Andorinha do Mar, Tentilhão; e as mulheres escuras, Pica- num sistema simbólico muito complexo, de que ilustra apenas um aspecto;
Pau, Rola, Besouro, Gafanhoto, Cisne Negro, Mergulhão, Pato-Selvagem. no mito de origem, o céu diurno (claro, macho) forma com o céu noturno
Empregando um vocabulário moderno, seríamos tentados a interpretar sua (escuro, macho) um par correlato ao que uma outra modalidade de céu
oposição como uma entre animais tecnófobos e animais tecnófilos, pelo fato noturno (escuro, fêmea) forma com a terra (macho). Além disso, no registro
duplo de que, em várias versões, o castigo das infiéis de pele clara consiste do baixo, as conchas correspondem às estrelas, no registro do alto, e juntas
em sua transformação em aves selvagens que passarão a viver longe dos remetem, assim, ao céu noturno. Ainda segundo o mito de origem, o homem
humanos, e que a mesma transformação afeta, em M₆₆₁, o cão do herói, ani- encontrou a concha escura, e a mulher, a clara. A relação para com o sexo
mal doméstico, quando vira grizzly. Mas seria muito difícil, quiçá impossível, dos inventores de cada uma poderia, pois, tanto ser de complementaridade
dar base empírica a essa interpretação, pois entre um grupo e o outro, às quanto de homologia (ibid.: 513-14).
vezes os mesmos animais mudam de lado. Como por exemplo o gafanhoto Não é preciso multiplicar os exemplos. Mostramos, em Do mel às cin-
e a rola, que são negros nas versões sahaptin e salish de Puget Sound, que os zas (mc: 363), que a relação das mulheres com a noite e dos homens com
opõem a camundongos brancos, ao passo que, em versões cowlitz, camun- o dia apresenta, no pensamento americano e certamente também alhures,
dongo e gafanhoto se opõem, juntos, a rolas negras. No máximo se pode um valor operatório em que se encontra a chave de ritos bastante difundi-
notar que os camundongos são sempre brancos, e as rolas, sempre negras, dos mas avessos a qualquer outra interpretação, como a proibição feita às
mas reina uma tamanha incerteza quanto à identidade das espécies, prin- mulheres de ver os instrumentos musicais [rhombes-verificar em mc]. Bem,
cipalmente quando se trata de aves, que a via de interpretação baseada nos vimos que na região de Puget Sound, versões da história do desaninhador
hábitos dos animais parece bloqueada. (M₆₀₆c, supra, p. 236) identificam suas esposas brancas e infiéis às filhas da
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leita, qualificadas por outros mitos como “muito belas e brancas” (Boas 1893: mais escuras — são aquelas em que ela não está no céu. Em compensação,
156), “brancas e bonitas” (Jacobs 1934: 139) etc. Aliás, é por causa da cor que contam os mitos, no tempo em que a lua pretendia ser o astro do dia, ela
os Chinook chamavam ironicamente os brancos de “leitas” (Jacobs 1959, ressecava e queimava a terra, e tornava impossível para os humanos viver.
ii: 560). Os termos empregados pelos mitos salish para descrever as filhas À diferença da lua, o sol pode presidir ao dia sem que resultem seme-
da leita, futuras mães de todos os peixes, aparecem praticamente idênticos lhantes desastres; mas também à diferença da lua, a experiência atesta que
num mito wasco (M₆₀₁a) que os aplica às egoístas donas dos salmões: “elas ele é incompatível com a noite. Sendo apenas do dia, ele só tem direito a
eram muito brilhantes, brilhavam mais do que o sol, e seguravam remos de um lugar subalterno na cosmologia, réplica enfraquecida da lua, que só ela
madeira branca, muito bonitos” (Sapir 1909a: 266). O elo entre a brancura e reúne os dois aspectos. Por isso os mitos salish fazem com que ele nasça
o caráter diurno ou solar também se evidencia aí. da urina espremida dos cueiros de seu irmão Lua, depois de este ter sido
Porém, se ao contrário dessas irmãs maléficas, as mulheres em geral têm roubado (M₃₇₅). Essa problemática permaneceria impenetrável se não com-
uma afinidade com o escuro, disso resulta que a tez clara, por mais atraente preendêssemos que, como tão frequentemente acontece nos mitos, de um
que seja, constitui um atributo contraditório com sua verdadeira natureza. ponto de vista lógico, se não histórico, a relação de oposição é anterior às
Retomando uma distinção outrora utilizada num contexto diferente (Lévi- coisas opostas.
Strauss [1949] 1967, cap. 13), diremos que as mulheres de pele escura são Num tal sistema, por conseguinte, o personagem do mau demiurgo solar
harmônicas, e as de pele clara, desarmônicas.13 Razão que já bastaria para se eclipsa, ou, mais exatamente, os Salish o transformam em enganador cujos
entender porque o herói prefere as primeiras, e que só elas sejam férteis e atos e gestos parodiam a obra civilizadora do bom demiurgo Lua, ordenador
fiéis a seus votos conjugais. Mas por que o Coiote dos mitos salish e sahaptin do mundo e da sociedade, de modo que, como enganador, Coiote vira uma
manifesta a preferência inversa, e acha “escurinhas e feias” as mulheres de espécie de Lua invertida. Um realiza sua obra com sabedoria e generosidade,
quem o filho mais gosta? o outro a completa à revelia, por assim dizer, já que suas contribuições posi-
Para responder a essa pergunta, é preciso lembrar que, entre os Klamath tivas resultam de acidentes, imprevistos ou malogros. Entretanto, a mesma
e os Modoc, junto a quem começou nossa investigação, os papéis do desa- estrutura de oposição que os Klamath e os Modoc concebem entre o desa-
ninhador e de seu pai cabem respectivamente aos dois demiurgos Aishísh ninhador e seu pai continua existindo nessas versões setentrionais. De sua
e Kmúkamch, sendo que o primeiro possui uma marcada afinidade com afinidade solar reduzida a uma expressão negativa, Coiote conserva uma
a lua e o segundo com o sol. Essa afinidade persiste nos mitos que substi- predileção pelas mulheres de pele clara. De seu paralelismo com o demiurgo
tuem essas divindades supremas por seus duplos animais, Marta e Doninha ordenador od universo, de quem ele continua sendo discretamente a réplica,
(supra, p. 37), e continua sendo afirmada entre os Chinook e os Sahaptin, o desaninhador mantém uma afinidade com a lua e com as trevas, que
onde os papéis do desaninhador e de seu pai passam para Águia e Coiote. explica que as mulheres de pele escura sejam suas preferidas.
Contudo, a oposição simples, concebida pelos Klamath e Modoc entre um É significativo que, para finalizar a interpretação desse vasto grupo de
mau demiurgo solar e um bom demiurgo lunar, torna-se aqui mais com- mitos, sejamos obrigados a voltar aos exemplos que nos serviram de ponto
plexa. Para os Salish e alguns de seus vizinhos, a ordem e o bom andamento de partida e que nos seja preciso apreender, de um só golpe de vista, o con-
do mundo dependem de um equilíbrio satisfatório entre forças antagôni- junto como totalidade. De fato, a história do desaninhador — compartilhada
cas de que o dia e a noite expressam apenas um aspecto. Só a lua, quando por todo o grupo — constitui o que poderíamos chamar de sua célula regu-
ilumina levemente as trevas, ilustra essa temperança recíproca entre a luz e ladora. A partir daí, os Salish e os Sahaptin engatam em dois aspectos para
a escuridão. Ela é, portanto, da noite e do dia, pois a experiência comprova eles essenciais da ordem do mundo, a liberação dos salmões e a instituição
que não é exclusivamente da noite, já que as noites mais noturnas — porque das trocas comerciais. Mas os Klamath, e mais ainda os Modoc, viviam longe
das grandes feiras do rio Columbia. Quando as frequentavam, era princi-
13 . De onde o charme muitas vezes pérfido das louras, a quem se atribui, como se sabe, palmente para negociar suas presas de guerra, prisioneiros condenados a
a destruição de lares. Charme esse a que o herói de nossos mitos, no entanto, mesmo serem escravos, capturados pelos Klamath e seus aliados Modoc entre as
em seu lar, fica insensível, ele que é o modelo de todas as virtudes sociais e domésticas. tribos do rio Pit ou que os Klamath sozinhos, agindo como intermediários,
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compravam de seus vizinhos meridionais para depois vendê-los ao norte e ocorre muito mais cedo na ordem de sucessão da narrativa. De fato, vimos
(Spier 1930: 38-43; Ray 1963: 134, 144). Sendo função da guerra mais do que (supra, p. 77, 85-93, 128) que é à origem da caça, e não da pesca, que os Kla-
condição e meio de garantir a paz entre os homens, e dissociada das ativida- math e os Modoc remetem a história do desaninhador. Ora, por seu caráter
des de produção, compreende-se que a troca não possa nesse caso oferecer combativo e aventureiro, no plano da busca pelo alimento a caça se opõe à
um modelo plausível das relações intertribais, e menos ainda fornecer uma pesca do mesmo modo que, no plano das relações intertribais, os jogos com-
solução para os problemas que toda ordem social tem de resolver. Bem longe petitivos, que são um modo de guerra, se opõem aos pacíficos intercêmbios
de se abrir para a fórmula da troca, a célula reguladora dos mitos klamath comerciais. Chega-se assim a uma imagem de conjunto em que se inscre-
e modoc desemboca na fórmula simétrica àquela dos jogos de competição vem os valores e as funções simétricas, sempre ligadas à infraestrutura, que
entre tribos, que também permitem desviar da guerra, não por transformá- o mito do desaninhador recebe, de um lado, entre os Klamath e os Modoc e,
la dialeticamente em seu contrário, mas porque, com uma virulência atenu- do outro, entre os Salish da costa e os Sahaptin (fig. 24).
ada, propiciam-lhe um substituto.
Afora isso, os Modoc viviam sobretudo de caça e coleta. Também pesca-
vam na primavera e em outras épocas do ano, mas os salmões não subiam
seus rios e eles tinham de se contentar com espécies de menor valor alimen-
tar (Ray 1963: 192). Não era o caso dos Klamath, pois os salmões e outros pei-
xes invadiam várias vezes ao ano o seu rio epônimo e afluentes. No entanto,
eles aparentemente não se incomodaram com um ritual de pesca tão com-
plexo quanto seus vizinhos a oeste a ao norte. E seus mitos empurram a cria-
ção dos peixes para a origem dos tempos, bem antes de o demiurgo entrar
em conflito com seu filho e transformá-lo em desaninhador: “Primeiro,
Kmúkamch criou as coisas e os seres, e decidiu que todas as espécies de pei-
xes existiriam... Depois, e tendo realizado tudo isso, Kmúkamch fez o filho
subir numa árvore para, alegava ele, desaninhar águias...” (Gatschet 1890, i:
94). Consequentemente, a criação dos peixes toma o lugar de sua libertação,
Origem Origem
dos jogos da caça
competitivos
klamath-
modoc
Desaninhador
salish- de pássaros
sahaptin
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Q U I N TA PA R T E
Amargos saberes
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i. A visita ao céu
Eζθ’ ὤφελ’ ’Aργοῦς μἠ бιαπτάσθαι σϰάφοϚ No decorrer das discussões precedentes, centradas na mitologia dos Sahap-
Kόλχων ές αῖαν ϰυαέαϚ Συμπληγάδας. tin e de seus primos Nez Percé, não hesitamos, sempre que se fazia necessá-
eurípides, Medeia, v. 1-2. rio, em servir-nos à vontade de mitos dos Salish meridionais, tanto da costa
como do interior, cujo território confinava com o dos Sahaptin, e que man-
tinham com eles relações tão próximas, no comércio e nas alianças matri-
moniais, que é muitas vezes difícil atribuir determinadas versões do mesmo
mito a uma das duas famílias linguísticas.
Tais discussões foram nos levando à história do desaninhador de pássa-
ros. Cumpre, portanto, examinar a forma que ela assume ao norte da área
sahaptin, into é, na vasta família linguística salish que — à exceção de dois
postos avançados isolados, que eram os Tillamook ao sul e os Bella Coolla
ao norte — ocupava um território contínuo desde a parte oriental da ilha de
Vancouver até o piemonte das Rochosas, incluindo a maior parte das bacias
dos rios Columbia e Fraser.
Essa investigação enfrentará dificuldades específicas, não apenas liga-
das ao fato de que, apesar do volume já considerável que ela representa, só
conhecemos fragmentos da mitologia salish; pois nesse particular, a situação
não se distingue em nada daquela encontrada entre os Sahaptin e seus vizi-
Ú nhos. Na verdade, a história e a etnografia dos Salish conspiram para com-
*
“Ah!, Se jamais os céus tivessem consentido/ que Argó singrasse o mar profundamente plicar a tarefa do analista. Cristianizados desde a primeira metade do século
azul/ entre as Simplégades, num voo em direção/ à Cólquida [...].” [n.e.] xix, em certos casos por iniciativa própria (como os Flathead, que lançaram
É por uma breve volta aos mitos nez percé que convém, entretanto, dar início
à discussão. Vizinhos imediatos dos Salish ao norte, os Nez Percé são primos
dos Sahaptin pela língua, e fornecem uma transição apropriada entre essas
duas famílias. Aliás, o modo como eles contam a história do desaninhador de
14 . Do mesmo modo que os parélios, assimiláveis a “clivagens” do sol, alhures (cf. supra, 15 . A fórmula enunciada em omm: 48 pode, pois, ser completada do seguinte modo:
p. 213-18). berço: balanço : : balanço: symplégades : : conjuntor: disjuntor.
Quase nos mesmos termos das versões chinook e nez percé já discutidas
(M₆₀₁-M₆₀₂, supra, p. 223), as versões salish do mito do desaninhador de pás-
saros incluem o episódio da liberação dos salmões. Em geral, ela ocorre depois
de Coiote, que caiu numa correnteza forte, vai parar perto da barragem vigiada
pelas mesquinhas donas dos peixes. Mas além dessa narrativa etiológica os
Salish conhecem outras, que explicam a seu modo a origem dos salmões.
Como foram evocados no final da seção anterior, comecemos voltando
rapidamente ao grupo de mitos {M₃₇₅, M₃₈₂, M₅₀₆} que os Salish da costa
dedicam à gesta do demiurgo Lua, ordenador do universo. Depois de
S E X TA PA R T E
Volta às origens
Wie macht’ ich den andren, Foi sufocando as chamas de uma fogueira doméstica que a ogra de M₇₂₀ espa-
der nicht mehr ich, lhou a escuridão para mais facilmente perpetrar seus crimes, e foi acendendo
und aus sich wirkte, uma fogueira que seu celeste filho, senhor da piroga solar, a fez morrer para
was ich nur will? castigá-la. Neutralizado na terra, o fogo de cozinha se inverte em fogo destrui-
r. wagner, Die Walkure, ato ii, cena ii dor no céu, num mito que atribui aos salmões uma origem celeste, portanto
imaginária e contrária à sua origem verdadeira, que outros mitos (M₃₇₅, M₃₈₂,
M₇₂₀a), mais de acordo com a experiência, situam ao longe no ocidente, no
mar de onde, efetivamente, os peixes retornam todos os anos. Simplificando
demais, poderíamos concluir que o pensamento salish estabelece uma relação
inversamente proporcional entre a origem do fogo de cozinha e a origem dos
peixes destinados à alimentação. Conforme os casos e os grupos, os salmões
proviriam de longe e o fogo, do alto. Ou então, ao contrário, o fogo proviria de
longe e os peixes, do alto. Veremos, contudo, que a realidade é mais complexa,
pois certos mitos atribuem a mesma origem longínqua ao fogo e aos salmões.
Já encontramos um exemplo dessa origem comum do fogo e dos peixes,
num mito lilloet (M₇₁₇a, supra, p. 404) no qual Corvo, agora dono da luz do
dia, que roubou de seu amigo Gaivota, avista uma coluna de fumaça que
revela o local onde arde o fogo primordial, zelosamente guardado pelos pei-
xes. Corvo se aproxima de canoa, captura uma menininha e exige o fogo à
guisa de resgate. Depois partilha o fogo com as famílias que consentem em
lhe dar em troca uma esposa.
M₇₂₄a
melro de inverno melro de verão 12 . Ao passo que o tordo verdadeiro tem em thompson um outro nome, /qa’lέq’a?/,
como teve a bondade de verificar junto a informantes indígenas, a pedido nosso, nosso
[ 3 1 ] Correspondências entre oposições binárias. colega P. Maranda.
( ( ( (
Bororo õ = ∆ Klamath-Modoc, Salish ∆ gam procedendo de modo semelhante: ou aproximam o sol da terra (M₇₆₅a)
—Y
ou pedem à irmã mártir que acenda um grande forno, ou provocam eles
∆ õ = ∆
mesmos um calor intenso que transforma a água em vapor e onde morrem
fervidos os traidores (M₇₆₅c). Fogo destruidor, portanto, de origem terrestre
Em O cru e o cozido (: 78-79, 100), mostramos que o mito de referência M₁ ou celeste mas, neste último caso, devido ao rebaixamento do sol até a terra,
se situa na interseção de dois tipos. Funda-se num antagonismo entre pai e invertendo o fogo de cozinha construtor que afasta o sol da humanidade.
filho mas, dada a filiação matrilinear em vigor entre os Bororo, o filho per- Também fogo cuja obtenção, conforme o ciclo do desaninhador, libera os
tence ao grupo social da mãe, o qual está em posição de doador em relação humanos da cruel alternativa diante da qual se encontravam, entre comer
ao pai. Compreende-se, assim, que o mito de referência lance mão dos dois cru ou, dispondo apenas do calor do sol para cozinhar seu alimento, correr
esquemas de disjunção que a América inteira parece concordar em alocar a o risco de serem eles próprios queimados. Mas há mais. Tanto entre os Assi-
formas de antagonismo que são elas mesmas opostas. niboine como entre os Cree (M₇₆₆a, b), o herói aconselha perfidamente o pai
Tínhamos pouco a pouco chegado à conclusão de que, no sistema mito- a se proteger do grande incêndio iminente cobrindo o corpo com gordura
lógico das duas Américas, o mito do desaninhador cumpre o papel de dobra- (de urso, especifica-se em certos casos), o que o torna ainda mais inflamável.
diça. Mas agora percebemos a possibilidade de dar mais um passo. Pois se Como a gordura é alimento, e inclusive o que confere à carne seu mais alto
esse mito se desdobra em duas fórmulas, uma que respeita um protótipo (ini- valor alimentar (infra, p. 483), o fogo destruidor provocado pelo protago-
cialmente isolado entre os Jê) e a outra que vai dar na transformação Putifar18, nista se apresenta claramente como o inverso do fogo de cozinha. Além disso,
entre as duas, o mito de referência M₁ cumpre o papel de primeira articu- a transformação que apontamos acima (: 455), do grupo M₆₅₄-M₆₅₇, em que
lação; e compreendemos porque foi ele, dentre todos os mitos americanos um herói ou heroína se vê sujo de excrementos, justamente de urso, até M₇₆₂,
disponíveis, que se impôs a nós antes mesmo de sabermos o porquê disso. em que a sujeira da heroína provém de gordura, um alimento, prossegue
As versões assiniboine também oscilam entre as duas fórmulas (M₇₆₅a, b, c; aqui por intermédio da mesma gordura, incinerada em vez de cozida ou
Lowie 1909: 150-54 e cf. M₅₀₄, omm: 367): ou o pai do herói o afasta para excretada, ou seja, passando da categoria do podre para a do cozido e, final-
mente, para a do queimado (cf. cc: 300).
Um último aspecto das versões assiniboine merece nossa atenção. M₇₆₅a
18 . Essas linhas foram escritas antes da publicação do segundo volume da Enciclopédia
Bororo, em que se encontra uma variante até então inédita de M₁ que, se não for um
conta que, no caminho de volta, o herói viu dois precipícios cujas bordas se
remanejamento inspirado pelos editores, seria muito próxima da transformação afastavam e se juntavam rapidamente. Conseguiu passar por eles jogando
Putifar, já que nela, em vez de um filho violentar a mãe, é uma madrasta que seduz o dentro de cada um um peixinho, e aproveitando o momento em que a
enteado (E.B. ii: 303-59). terra se fechava para engoli-lo. Como havíamos postulado (supra, p. 456), a
cães
papel, de vítima propiciatória, holocausto oferecido ao sol em pleno inverno, fogueira
para implorar seu retorno (Hewitt 1910). De modo que os sistema, do leste quase-humanos pro-humanos anti-humanos
para o oeste, permanece o mesmo, mas todos os termos trocam de lugar: a
contiguidade física que, na costa oeste, cria uma afinidade metonímica entre
cães e homens desaparece no leste, dando lugar a uma semelhança metafó- Olhando para o sul, para a periferia da área na qual, como mostramos nas
rica entre os modos de vida de ursos e humanos. Como se podia prever, o nó primeiras seções deste livro, o mito do desaninhador se transforma no
dessa inversão está situado a meio-caminho, entre os Blackfoot, onde (M₅₉₁) de Dona Mergulhão, notam-se primeiramente as formas fracas. Entre os
os cães, amigos dos humanos, põem fim a um grande incêndio (meio de seu Takelma, pequeno grupo linguístico do sul do Oregon cercado por Atha-
holocausto para o sol entre os Iroqueses) chamando a chuva; é essa a origem paskan, a história do desaninhador se insere de modo episódico entre outras
das Plêiades, cuja culminação no crepúsculo (Shimony 1961: 174) anunciava aventuras de Coiote (M₇₇₃, Sapir 1909b: 83-84). Vimos (M₆₃₆a-b, supra,
para os Iroqueses, justamente, a época do sacrifício dos cães:21 p. 259) que os Maidu transferem seu tema para o ciclo dos veadinhos con-
Esse duplo paralelo entre, de um lado, o nordeste da América setentrio- tra os ursinhos. Entre os Ute, em compensação, o tema do desaninhador se
nal e, do outro, o leste e o oeste da América do Norte, ajudam a convencer de destaca em primeiro plano. Sabe-se que esse grupo linguístico ocupava um
que a mitologia americana constitui um todo. imenso território na região chamada de Grande Bacia, que corresponde ao
atual Utah, estendendo-se largamente para Wyoming, Colorado e Nevada.
! Divididos em pequenos bandos nômades, os Ute viviam de coleta mais do
que de caça, num meio semi-desértico do qual sabiam explorar todos os
recursos, e que contrastava com as regiões adjacentes tanto quanto sua lín-
gua, ramo da família uto-asteca, sua organização social e seu modo de vida
21 . Entre os Blackfoot e os Iroqueses, o mito cree M₇₆₆b fornece mais uma transição. Nele,
os distinguiam dos povos vizinhos, Sahaptin ao norte, tribos californianas a
os cães são bichos ferozes a serviço de espíritos matadores que os acusam de mentir e os
matam quando o herói os engana e consegue escapar deles (supra, p. 460). De modo que oeste, Navajo e Pueblo mais ao sul, Crow, Cheyenne e Arapaho a leste.
os cães, que já eram anti-humanos, se comportam objetivamente como se fossem ainda Pois bem, entre os Ute, observa-se um duplo fenômeno. De um lado, o
pro-humanos. Existem outras transições. Entre os atabascanos do norte, acreditava-se mito do desaninhador se reconstitui quase que completamente. Do outro,
que morder a orelha de um cão e fazê-lo ganir provocava trovoadas (Jetté 1909: 351) e en- consolida-se com seu complementar, isto é, a transformação Putifar. Essa
tre os Yokuts e os Mono, prevalecia a crença inversa, de que o cão celeste, dono da tempes- dupla operação é realizada de modo tão preciso e elegante, e com tama-
tade, faria parar a chuva se escutasse um cão na terra ganir por ser maltratado com essa nho engenho na utilização dos meios, que merece uma atenção mais detida,
finalidade (Gayton & Newmann 1940: 29; ver também p. 48-50, em que gêmeos criados
tanto mais que seu autor é um povo a que nem os colonos nem os etnógrafos
por uma cadela viram os trovões). Note-se, finalmente, que o mito tão difundido a oeste
das Rochosas a respeito da origem da humanidade atual, gerada pela união entre uma
parecem ter dado o devido valor.
mulher humana e um cão, assume uma forma inversa e simétrica no leste do continente, Na verdade, essa tendência à síntese já aparece entre os Mono, cuja fração
entre os Montagnais, para os quais a humanidade atual nasce da união entre um perso- oriental pertence à mesma família linguística que os Ute. Contam eles (M₇₇₄a,
nagem macho e sobrehumano, o demiurgo, e uma fêmea de hamster (Perrot 1864: 160). Gifford 1923: 338-39) que Coiote mandou um dos dioscuros, seu sobrinho
Has omnes, ubi mille rotam volvere per annos, Lathaeum ad fluvium deus evocat De um extremo ao outro do Novo Mundo, dir-se-ia que povos que falam lín-
agmine magno: scilicet immemores supera ut convexa revisant, rursus et incipiant in guas, possuem modos de vida, práticas e costumes que nada têm em comum,
corpora velle reverti. não obstante buscaram com tenacidade, sob os climas mais diversos, loca-
Virgílio, Eneida, VI, v. 748-51.
lizar certas formas de vida animal (e certamente isso se aplica aos demais
O que pensar de uma lei que só pode ser executada por revoluções periódicas? Trata-se, reinos), seguir, por assim dizer, seus rastros, comparando sempre que pos-
simplesmente, de uma lei natural fundada na inconsciência dos que a ela são submetidos. sível espécies, gêneros ou famílias, com o intuito de encarregar alguns deles
F. Engels, nota em K. Marx, O Capital, v. 1 do papel de algoritmo a seviço do pensamento mítico, para efetuar as mes-
mas operações.
Assinalamos tais ocorrências várias vezes. É o caso do papel atribuído
às lontras, tanto marinhas como fluviais, do Alasca até o sul do Brasil (mc:
169-73); e também nas duas Américas, do destino reservado aos pássaros
da família dos icterídeos, como vigias, protetores ou conselheiros (omm: 31,
188-95). Ao longo deste livro, em várias ocasiões, fomos levados a aproximar
a função semântica que os mitos da América do Norte atribuem às aves da
família dos tetraonídeos — tetrazes e galinholas — das funções análogas
já destacadas na América do Sul, em relação aos tinamídeos. Como mui-
tas vezes acontece, trata-se de animais de espécie, gênero e família diferen-
tes, mas que pertencem à mesma ordem; no caso, a dos galináceos. Tudo se
passa, portanto, como se uma espécie de saber oculto orientasse tais apro-
ximações, embora os critérios que as inspiram serem de natureza diversa
daqueles a que recorrem taxinomias mais científicas.
2 . É verdade que o mito klallam M₇₈₀b manda Raia guerrear contra o vento norte, mas 3 . Isso nos permite resolver uma dificuldade que havia incomodado Boas (1916: 660),
nesse caso ele sai derrotado em vez de vencedor. relativa a uma versão haida (Swanton 1905: 32-34) intermediária entre os dois tipos.
o equilíbrio quando tenta rodopiar. Nisso já fica clara uma oposição extrema
entre raia e cobra: uma tem a forma de um losango achatado, a outra, a de Salientamos várias vezes que os mitos sobre a guerra dos terráqueos contra
um cilindro alongado. Mas as conotações simbólicas que detectamos na raia, os habitantes do céu ou os ventos possuem uma função subsidiária. Além
registradas nos dois hemisférios, permitem desenvolver a oposição em outros da conquista do fogo, no primeiro caso, e do estabelecimento do regime
planos. Se a raia é uma criatura uterina, a cobra apresenta uma afinidade com dos ventos, no outro, esses mitos explicam a origem das estrelas ou, mais
o pênis que um vasto grupo de mitos (M₄₉-M₅₂, M₁₅₀-M₅₉, M₂₅₅-M₂₅₆ etc.) precisamente, mostram porque as estrelas se dividem em duas categorias, a
explora metodicamente. A raia, cuja instabilidade constitutiva pode ser uma das menores e mais numerosas, agrupadas numa multidão anônima, e a das
Sol, não-irmão
de duas Luas;
só o sogro hostil Fica claro que, também entre os Coos, o aspecto macho está ligado à perio-
dicidade astronômica, já que o herói a institui ao violentar Dona Sol, e o
Trovões, prestativos aspecto fêmea, à periodicidade biológica, concebida na forma da menstrua-
ção feminina, presidida por Dona Lua. Mas, e o travesti?
Aves aquáticas,
prestativas !
15 . Bem como entre os Salish do estreito de Puget, aliás, que tratavam reumatismos Jê: (podre + cru) / / cozido
queimando um buraco na carne até o osso (Eells 1XXX: 218). Tupi: podre / / (cru + cozido).
Ao longo dessas páginas, o nós de que o autor não quis se afastar não era
apenas “de modéstia”. Traduzia também o cuidado mais profundo de fazer
do sujeito o que, numa tal empresa, ele devia tratar de ser, se é que não o é
sempre: lugar insubstancial oferecido a um pensamento anônimo para que
ali se desenvolva, tome distância de si mesmo, recupere e realize suas verda-
deiras disposições e se organize exclusivamente em função das exigências
de sua própria natureza. Pois se esses vinte anos dedicados ao estudo dos
mitos — de que estes tomos cobrem apenas os últimos oito — propiciaram
a quem escreve estas linhas uma experiência profunda, terá sido a de que a
consistência do eu, preocupação primeira de toda a filosofia ocidental, não
resiste à sua aplicação contínua a um mesmo objeto, que o invade por inteiro
e o impregna do sentimento vivido de sua própria irrealidade. Visto que o
pouco de realidade a que ele ousa ainda pretender é o de uma singularidade,
no sentido que os astrônomos dão ao termo: lugar de um espaço e momento
de um tempo mutuamente relativos, onde ocorreram, ocorrem ou ocorre-
rão eventos cuja densidade, ela também relativa a outros eventos não menos
reais, porém mais dispersos, permite circunscrever aproximadamente, con-
tanto que esse nó de eventos idos, atuais ou prováveis não exista como subs-
trato, mas somente no fato de que coisas ali ocorrerem, embora essas coisas
que ali se entrecruzam surjam elas mesmas de inumeráveis alhures e os mais
das vezes de não se sabe onde.
652 | Finale
Com a descoberta do código genético, podemos hoje colocar uma reali- Assim, por trás de cada par de oposição primário aparecem pares secundá-
dade objetiva por detrás dessa exigência teórica de um princípio de descon- rios, por trás destes, terciários, e assim por diante, até que a análise encon-
tinuidade, em operação tanto nos trabalhos da natureza como nas constru- tre as oposições infinitesimais com que se compraz o discurso do ritual. O
ções do espírito, para restringir a gama ilimitada dos possíveis. É apenas num outro eixo, que é propriamente o do mito, remeta antes ao eixo metafórico;
universo mítico, ensinam-nos as narrativas indígenas (supra, pp. 417-21) que subsume individualidades sob o paradigma, alarga e empobrece simultane-
as espécies vivas puderam existir em número tão grande que os afastamen- amente os dados concretos, obrigando-os a transpor um após o outro os
tos distintivos entre elas tinham-se tornado imperceptíveis. E se os próprios limiares descontínuos que separam a ordem empírica da ordem simbólica,
mitos se curvam, no que lhes diz respeito, a uma semelhante exigência de des- depois da ordem imaginária e, finalmente, do esquematismo.
continuidade, é, definitivamente, porque ao restituírem ao universo sensível O constante recurso do ritual a meios de expressão não verbais como os
propriedades que já lhe pertenciam, mas de cujo fundamento objetivo não gestos e símbolos materiais corresponde a um esforço cada vez mais difícil
podiam ainda suspeitar, não faziam senão generalizar processos de engen- à medida em que o pensamento avança nesses eixos perpendiculares e se
dramento do pensamento desvelados a ele quando se exerce, e que são em afasta, portanto, de sua origem comum, para manter entre eles ligações dia-
ambos os casos os mesmos porque o pensamento e o mundo que o engloba gonais. Praticamente sempre, os mitos fundadores dos rituais traduzem essa
e que ele engloba são duas manifestações correlativas da mesma realidade. necessidade de reter, retomar e reunir esses impulsos divergentes. Conta-se
Mas o pensamento jamais tem acesso direto a esse mundo sensível. Entre que, para obter um ritual, foi preciso que um humano abjurasse as distin-
eles se interpõem, já no nível da visão, para nos limitarmos a esse aspecto, ções claras e precisas em vigor na cultura e na sociedade e que, misturado
procedimentos analíticos que antecipam a atividade cerebral e operam na com os animais e tornado igual a eles, voltasse ao estado de natureza mar-
própria retina. Voltaremos a isso (infra, pp. 619), mas convém notar desde já cado pela promiscuidade dos sexos e pela confusão entre os graus de paren-
que o olho não fotografa simplesmente os objetos visíveis, também codifica tesco — uma desordem que, contrariamente ao que atesta a experiência prá-
suas relações e transmite ao cérebro menos imagens figurativas do que um tica, engendra imediatamente regras em benefício de um escolhido para a
sistema de oposições binárias entre imobilidade e movimento, presença ou edificação dos seus (Boas 1917: 40-43; Teit 1912b: 259), ou seja, o inverso do
ausência de cor, um movimento realizado numa direção por contraste com caminho interminável e sem saída ao longo do qual o ritual se esforça.
outras, um certo tipo de forma que difere de outros tipos, etc. A partir desse E assim, enquanto o mito volta decididamente as costas para o contínuo,
repertório de informações discretas, o olho ou o cérebro reconstroem um para decupar e desarticular o mundo por meio de distinções, contrastes e opo-
objeto que jamais perceberam propriamente. Isso certamente vale sobre- sições, o rito segue um movimento no sentido inverso: partindo das unidades
tudo para o olho de certos vertebrados desprovidos de córtex, como as rãs, discretas que lhe são impostas pela conceitualização prévia do real, ele corre
mas mesmo nos gatos e nos primatas, em que essa função analítica passa atrás do contínuo e tenta alcançá-lo, apesar de a ruptura inicial operada pelo
principalmente para o córtex, as células do cérebro apenas retomam por pensamento mítico tornar a tarefa para sempre impossível. Daí a mistura tão
conta própria operações cuja sede original é o órgãos sensível. característica, feita ao mesmo tempo de obstinação e impotência, que explica
Dito de outro modo, as operações da sensibilidade já têm um aspecto o fato de o ritual sempre possuir um lado maníaco e desesperado. Daí tam-
intelectual e os dados externos, de ordem geológica, botânica, zoológica, etc., bém, em compensação (e isso certamente explica porque, apesar do exposto,
nunca são intuitivamente apreendidos em si mesmos, mas na forma de um os homens, que deveriam ter sido ensinados pelo fracasso ou pela inocuidade,
texto, elaborado pela ação conjunta dos órgãos dos sentidos e do entendi- jamais renunciaram a ele), a função que se poderia chamar de “senatorial” da
mento. Tal elaboração se faz simultaneamente em duas direções divergentes: magia, esse jogo complicado e em sua essência irracional, ao inverso do pen-
por decomposição progressiva do sintagma e por generalização crescente do samento mítico mas todavia indispensável, porque introduz em cada empre-
paradigma. Uma corresponde ao eixo que poderíamos chamar de metoní- endimento de alguma seriedade um elemento de lentidão e reflexão, pausas e
mico; substitui cada totalidade relativa pelas partes que nela discerne e trata etapas intermediárias, e desse modo tempera inclusive a guerra.
uma por vez cada uma dessas partes como totalidades relativas de ordem Contrariamente ao que imagina um naturalismo atrasado, o ritual não
subordinada, sobre as quais exerce o mesmo trabalho de decomposição. provém, portanto, de uma reação espontânea ao vivido. Volta-se para ele,
670 | Finale
Tabela de símbolos
∆ homem
õ mulher
∆ = õ casamento (disjunção: # )
—Y se transforma em...
: está para...
:: assim como...
⁄ oposição
≡ congruência
≈ isomorfismo
∩ interseção
// desunião, disjunção
ƒ função
x (-1) x invertido
∑ somatória
+, – estes sinais são utilizados com conotações variáveis em função do contexto:
mais, menos; presença, ausência; primeiro, segundo termo de um par de
oposições.
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