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Mitológicas 4

Tradução beatriz perrone-moisés

Claude Lévi-Strauss

O HOMEM NU

mitológicas 4
9 PRÓLOGO

PRIMEIRA PARTE Segredos de família


25 i . A criança escondida
45 ii . Mulheres desmioladas e virgens ajuizadas

SEGUNDA PARTE Jogo de ecos

TERCEIRA PARTE Cenas da vida privada


x i . A avó libertina
x ii . Pela vida toda
x iii . ... Esses espelhos gêmeos

QUARTA PARTE Cenas da vida de província


x i . Peixes solúveis
x ii . A praça do mercado
x iii . O ajudante barulhento
x iv . Do bomuso dos excrementos

QUINTA PARTE Amargos saberes


x i . A visita ao céu
x ii . As duas cegas

SEXTA PARTE Volta às origens


x i . O fogo e a chuva
x ii . Junções

SÉTIMA PARTE A aurora dos mitos


x i . Os operadores binários
x ii . O mito único

FINALE

xx TABELA DE SÍM BO LOS


xx ÍNDICE DE MITOS
xx ÍNDICE DE FIGURAS
xx ÍNDICE REMIS SIVO
xx BIBLIO GRA FIA
xx SOBRE O AUTOR
A minha mãe, no ano de seu 85º. aniversário, e à memória de meu pai.
Prólogo

oủб ̉ őσov ἐv μαλάχη τε ϰαἱ ἀσφοδέλῳ μέγ ̉ ὄvειαρ.*


hesíodo, Os trabalhos e os dias, v. 41.

Das Montanhas Rochosas até o Oceano Pacífico, entre o 40° e o 50° parale-
los aproximadamente, estendem-se terras de solo basicamente formado por
lava basáltica terciária e quaternária, em camadas horizontais ou dobradas,
de que emergem, aqui e ali, rochas mais antigas. A uns duzentos metros de
distância da costa, a cadeia de montanhas das Cascades, orientada segundo
um eixo sudoeste-nordeste, representa a dobra mais importante de rochas
vulcânicas. Sua vertente ocidental se inclina em direção ao mar e, desse lado,
predomina um relevo irregular onde depósitos marinhos, principalmente
terciários, envolvem formações vulcânicas da mesma idade, a massa meta-
mórfica mais antiga dos montes Olympic e também a da cadeia costeira e
dos montes Klamath, onde aparecem, como na Sierra Nevada, ao sul, rochas
jurássicas intrusas mescladas a outras que datam do carbonífero.
Do outro lado, até os contrafortes das Rochosas, o planalto do rio Colúm-
bia ondula entre menos de 200 e mais de 1500 metros de altitude, profunda-
mente entalhado por gargantas, onde correm o rio e seus principais afluen-
tes, o Snake e o Spokane. Em toda essa região, as lavas sofreram dobraduras
consideráveis no plioceno, formando o anticlinal das Cascades bem como
sinclinais onde atualmente se encontram as regiões baixas. Essas deforma-
ções tectônicas deslocaram parcialmente o leito do rio Colúmbia para o leste,
Ú
*
“Nem quanto proveito há na malva e no asfódelo.” [n.e.]

Prólogo | 9
mas as gargantas escavadas pelo rio e por seus afluentes, para atravessar os 35 e 40 mil anos atrás (Pocklington 1670) — é interessante notar que, sem
anticlinais que lhes barravam o curso, provam que a rede hidrográfica já remontarem tão longe no tempo, os arqueólogos descobriram recentemente
existia no tempo em que estes apareceram (Hunt 1967: 348-53, Mendenhall provas de presença humana na bacia do Yukon ao norte do Alasca, talvez de
1932). Entre o Colúmbia e o Snake, afloram basaltos, possivelmente em razão mais de 20 mil anos — um instrumento de osso misturado com ossadas de
de uma gigantesca inundação que teria lavado e carregado o solo de superfí- mamute, de desdentados e de gêneros extintos de cavalo e de camelo (Old
cie até o estuário ou, segundo outros autores (Bretz, Smith & Neff 1956), por Crow River). Mais segura parece ser a datação, de 13 mil anos, do sítio de
razões mais complexas, tais como uma intensa umidade que teria sucedido Onion Portage, no Kobuk River, no noroeste do Alasca (Anderson 1968).
a um clima desértico, responsável pela formação de uma rede hidrográfica As vias de penetração utilizadas pelos imigrantes permanecem hipotéti-
sujeita a inundações frequentes e prolongadas, decorrentes do derretimento cas. A costa noroeste é tão abrupta, tão profundamente cortada por fiordes,
dos glaciares e dos transbordamentos dos rios, e certamente também de um que a viagem a pé ao longo da costa parece estar fora de questão. Assim, teria
grande lago, nos vales ainda fechados pelo gelo. sido preciso que pequenos grupos de caçadores, entrando na América sem
A cadeia das Cascades, cuja altitude ultrapassa os 4 000 metros no monte nem mesmo perceberem que mudavam de continente, devido à largura da
Rainier, bloqueia os ventos úmidos provenientes do oceano, causando uma ponte entre a Ásia e a América em certos períodos da pré-história, tives-
diferença de clima entre as regiões a oeste e a leste. A parte oeste, atravessada sem penetrado interior adentro seguindo os corredores temporariamente
em todo o seu comprimento pela depressão em forma de calha, que ocupam liberados pelos glaciares. Porém, como na costa, não se encontrou até hoje
o vale do Willamette ao sul e Puget Sound ao norte, goza de uma temperatura nenhum sinal de tais movimentos. De todo modo, o nível do oceano teve
amena e de uma pluviosidade abundante, sobretudo no inverno; a maior uma variação tão grande durante todo o período considerado que é possível
parte dela é coberta por florestas coníferas de espécies variadas. A leste das que a linha costeira esteja atualmente submersa, ou elevada no flanco das
Cascades, o planalto do Colúmbia possui um clima semiárido, com diferen- montanhas, o que explicaria o fato de ainda não ter sido localizada.
ças marcadas de temperatura média entre o inverno e o verão. As florestas Seja como for, numerosos sítios da Colúmbia Britânica e dos estados de
existem apenas nas montanhas, e o restante da região consiste em savanas Washington e Oregon fornecem datas antigas e comparáveis: uma sequência
secas de artemísia com algumas pradarias ervosas, ambas desprovidas de de ocupação contínua, datando de pelo menos 12 mil anos, nos terraços do
vegetação arbustiva, exceto nos vales, onde crescem álamos e salgueiros. rio Fraser perto de Yale; projéteis de pedra lascada de 13 mil anos em Fort
Em direção ao sul, o planalto do Colúmbia se confunde progressiva- Rock Cave, no leste do Oregon; e, no leste de Washington, à margem do rio
mente com a Grande Bacia, enquanto a altitude vai aumentando. Na parte Palouse, ossamentos do homem chamado de Marmes, datados entre 11 e 13
meridional do Oregon, a região klamath ilustra essa transição. Aparenta-se à mil anos. Este último sítio foi constantemente ocupado desde o 9°. milênio
Grande Bacia do ponto de vista fisiográfico, mas em vez de os lagos alimen- até a época histórica (Borden 1965, Bryan 1969, Kirk 1968, Grosso 1962) e
tados pelo escoamento e sem desaguadouros naturais se secarem lentamen- seus níveis mais antigos parecem ser contemporâneos de outros sítios, como
te por evaporação após o fim do período de chuvas, os que se encontram Wilson Butte e Jaguar Cave, no sul de Idaho, onde foram encontrados ins-
ao longo das falhas são alimentados por fontes e riachos permanentes, e o trumentos de osso associados a vestígios de uma fauna extinta: felídeos, des-
rio Klamath lhes oferece uma saída para o oceano. Até recentemente, seu dentados, equídeos e camelídeos. Esse primeiro período teria possivelmente
nível permaneceu, assim, relativamente estável, regularidade essa que enco- durado do 13°. até o 9°. milênio antes de nossa era aproximadamente. Teria
rajava a busca de traços de ocupação humana antiga e contínua na região sido sucedido por um segundo período, até o 6°. milênio, de que um dos
(Cressman 1956: 377-82). sítios mais característicos seria o de Lind Coulee. Os primórdios da “velha
De modo geral, toda a região que acabamos de delimitar parece estar entre cultura da Cordilheira”, que se estende do Alasca até a Califórnia, teriam
as de ocupação mais antiga e regular do continente. Visto que o povoamento exercido sua influência desde esse período, atestada pela presença de pontas
da América realizou-se total ou parcialmente da Ásia pelo Estreito de Bering, de projéteis largas e lanceoladas. Ao mesmo tempo, apareceriam instrumen-
na época em que suas terras emergiam (infra, pp. 543-44) — ou, como cre- tos ligados não apenas à caça, mas destinados a moer ou triturar grãos e raí-
em alguns, por mar, durante o período de clima favorável localizado entre zes selvagens. A mesma evolução se delineia em Dalles, no médio Colúmbia,

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na entrada do desfiladeiro das Cascades, onde também podem ser observa- sob influências provenientes da Grande Bacia, a uma economia associada
das as primeiras adaptações a uma economia pesqueira que mais tarde se à exploração de produtos selvagens. Em seguida, a pesca — difícil para os
tornaria um aspecto típico das culturas do Planalto (Cressman 1960, Sanger habitantes da Bacia, devido à escassez de peixes em lagos sem comunicação
1967, Crabtree 1969, Osborne 1967, Browman & Munsell 1969). externa — teria assumido o primeiro plano numa região onde, como vimos
Um terceiro período, entre o 6°. e o 5°. milênios, corresponderia à plena (supra, p. 10), os lagos ligados à rede hidrográfica e ao mar eram ricos em
expansão da “velha cultura da Cordilheira”, atestada de ambos os lados das trutas, salmões e outras espécies. As aldeias do tipo historicamente conheci-
Cascades, na região de Puget Sound e no Planalto. Um conjunto complexo do aparecem por volta do século viii de nossa era (Cressman 1956).
de instrumentos de pedra e de osso, vestígios de cestaria e de tecelagem e, Do ponto de vista geográfico, a região habitada pelos índios Klamath
possivelmente, o emprego do propulsor, sugerem uma economia em que a se liga tanto à Grande Bacia quanto à cadeia das Cascades, mas distingue-se
caça e a pesca seriam complementadas pela coleta de plantas selvagens. É delas pela existência de consideráveis depósitos lacustres originários do
possível que nos períodos seguintes, entre o 5°. e o 2°. milênio, a pesca e a Plioceno que a recobrem parcialmente e dos quais emergem cones vulcâ-
coleta tenham-se tornado mais importantes do que a caça devido à progres- nicos isolados. As precipitações são baixas, mas suficientes para assegurar o
siva extinção dos grandes animais de caça, em decorrência das mudanças crescimentos de florestas de pinheiros entrecortadas por vastas savanas de
climáticas que tendiam para condições mais áridas. artemísia em solos secos, ou por pradarias ervosas ao longo dos rios e perto
Por volta de 4 650 antes de nossa era, a formidável erupção que destrui- dos lagos, onde também crescem álamos.
ria o monte Mazama — cuja localização é hoje marcada pelo Lago da Cra- Como em toda parte a oeste das Rochosas, a agricultura, juntamente
tera — projetou para muito longe de seu ponto de origem cinzas vulcânicas, com a cerâmica, está ausente. Talvez fosse melhor dizer desprezada, diante
que permitem determinar com precisão a data limite dos sítios que cobri- da abundância de recursos vegetais em estado selvagem, sob formas nem
ram. Foi também nessa época que apareceu uma indústria de micrólitos que sempre diretamente consumíveis, mas que a extrema engenhosidade técnica
revela influências setentrionais. Aproximadamente em meados do 2°. milênio, dos indígenas conseguia tornar próprias ao consumo. Entre os Klamath e,
encontram-se vários indícios de trabalho em madeira, como malhetes, enxós, em menor grau, entre os Modoc, os pântanos forneciam o nenúfar aquá-
cunhas e goivas — de pedra, chifre de cervídeo ou incisivos de roedores — e tico (Nufar polysepalum), cujos campos naturais cobriam vários milhares
dissemina-se o uso de casas semienterradas. Desde o início da era cristã, todas de hectares nos Klamath Marshes; em sua superfície, os grãos caídos, que
as características historicamente conhecidas das culturas do Planalto pare- formavam uma massa flutuante e mucilaginosa eram coletados de canoa. A
cem estar estabelecidas, e não ter variado durante os dezoito séculos seguintes, importância desses grãos — chamados woka — na alimentação pode ser
até a introdução do cavalo, por volta de 1 750. Mas as transações comerciais, avaliada pelo vocabulário: os Klamath possuíam cinco palavras diferentes
que tinham muita importância na vida daquelas populações, têm uma ori- para designá-los, segundo seu estágio de maturação e o estado fresco ou
gem muito mais antiga, já que conchas marinhas encontradas nas escavações podre do invólucro. Para limpar a amêndoa de sua mucilagem, era preciso
datam de pelo menos seis ou sete milênios (Browman & Munsell 1969). deixá-la fermentar na água ou submetê-la a um cozimento prévio no vapor,
Voltemos agora nossa atenção para a região sul do Planalto, na fronteira e em seguida sacudir os grãos com uma mistura abrasiva de pó de madei-
entre o Oregon e a Califórnia, onde começará nossa investigação. Emerge ali ra, carvão e cinzas. Em seguida, eram grelhadas num cesto cheio de brasas
um quadro semelhante. Diversos sítios da terra klamath parecem ser habi- e, finalmente, moídas com uma pedra especialmente destinada a isso, com
tados há pelo menos 6 500 anos, pois as cinzas projetadas pela erupção do duas protuberâncias esculpidas no corpo para facilitar seu manuseio.
monte Mazama cobrem suas camadas inferiores. Vários indícios há de que Além dos nenúfares, os Klamath e os Modoc exploravam todos as espé-
se deve supor datas ainda mais recuadas para elas: sandália de fibra vegetal cies de raízes, bulbos, tubérculos e rizomas, entre os quais se sobressaem
encontrada em Fort Rock e datada por radiocarbono de pelo menos 9 mil uma liliácea (Camassia quamash, esculenta) e uma umbelífera, o falso comi-
anos, além de instrumentos líticos associados a ossadas de equídeos, came- nho (Carum oregonum); coletavam ainda bagas, grãos e frutos selvagens,
lídeos e talvez também mamutes. Em termos gerais, uma economia arcaica, líqen comestível e a resina açucarada de certas coníferas de cujo tronco des-
baseada essencialmente na caça, parece ter progressivamente cedido lugar, cascado retiravam o câmbio tenro entre abril e maio. Nos lagos e pântanos,

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cresciam também juncos, junças e caniços utilizados para trançar esteiras, Tanto os Klamath quanto os Modoc realizavam casamentos por inter-
chapéus em forma de calota e cestos. médio de visitas recíprocas e troca de presentes entre as famílias; não devia
A coleta de bulbos e raízes ocupava as mulheres durante os meses de haver nenhuma relação de parentesco conhecida entre os cônjuges, embora
julho e agosto, a dos grãos de nenúfar em seguida, em setembro e outubro. pudessem pertencer ao mesmo território, ou até à mesma aldeia. A poliga-
Durante todo esse período estival, em que os homens caçavam e ocasional- mia era permitida, e a poliginia sororal, frequente. A residência, patrilocal
mente pescavam, eram abandonadas nas aldeias de inverno as grandes casas entre os Klamath (exceto no caso de um marido pobre ou sem parentes) pas-
semienterradas, cada uma das quais abrigava várias famílias, e a população sava, entre os Modoc, de um tipo provisoriamente patrilocal a uma forma
se dispersava em cabanas de ramagem cobertas com esteiras. Essa existên- matrilocal estável, precedendo, eventualmente, a escolha de uma residência
cia seminômade se encerrava em outubro e novembro, meses dedicados à independente. O sistema de parentesco compreendia uma série de termos
coleta de grãos e de bagas. Então eram reconstruídas as casas, cuja carpinta- ordinais correspondentes às fases da vida e ao status matrimonial. O sexo do
ria havia sido desmontada e guardada, e todos ali permaneciam recolhidos genitor de conexão servia para diferenciar os ascendentes e seus colaterais, o
durante os meses de inverno, consagrados às celebrações rituais. O degelo de ego, para diferenciar os germanos e seus descendentes. Termos recíprocos
e o derretimento da neve ocorriam em maio, quando começava a grande prevaleciam entre indivíduos separados por uma geração, bem como entre
estação de pesca, que durava até junho. Os peixes, pescados com rede ou irmã do marido e filhos do irmão da esposa. Cinco termos especificavam os
com nassa, eram postos a secar ao sol como provisão para o inverno, mas germanos em função da idade relativa e do sexo. Além disso, a terminologia
não defumados. dos germanos se estendia a todos os primos de ego, e aquela que designava
Os Klamath, assim designados por um nome de origem desconhecida, tios e tias, a todos os primos de seus genitores. Um único termo amalgamava
chamavam a si mesmos ma’klaks, “os homens”. Junto com seus vizinhos os graus mais afastados. A terminologia de aliança, reduzida à sua mais sim-
meridionais, os Modoc do norte da Califórnia, formam um grupo linguís- ples expressão, compreendia dois termos recíprocos, designando respectiva-
tico antigamente conhecido pelo nome de Lutuami e cujo grau de afinidade mente os maridos de duas irmãs e as esposas de dois irmãos.
com a família Sahaptin é incerto (Voegelin 1964, Aoki 1963). As culturas dos O nascimento ocorria fora de casa. A parturiente era ritualmente “cozida”
Klamath e dos Modoc se pareciam em vários aspectos: mesma exploração num leito de pedras aquecidas, submetida a um regime alimentar extrema-
intensiva de bulbos, raízes e grãos selvagens, mesmo emprego de tecidos de mente rígido e a diversas obrigações, tais como a utilização de um ins-
fibra ou de casca de árvore que, antes da introdução das roupas de pele, sob trumento para coçar a própria cabeça, igualmente obrigatória para mulhe-
influência das Planícies, forneciam a base da vestimenta, mesma prática de res isoladas durante a menstruação e em caso de luto. Rapazes e moças eram
cremação dos cadáveres junto com os bens materiais do defunto e oferendas, submetidos a provas de iniciação. Eles se isolavam em locais ermos, onde
mesmos ritos de iniciação durante os quais os noviços empilhavam rochas e deviam empilhar pedras, mergulhar na água gelada de lagos e rios, escalar
pedras, formando montículos.* Contudo, entre os Modoc a pesca era menos picos, correr e jejuar, com o objetivo de obter visões que revelariam seu espí-
importante do que a caça. Mais influenciados pelas culturas californianas, rito guardião. Elas tinham de dançar, sem parar nem cair, durante cinco noi-
eles também tinham um temperamento mais guerreiro, e mantinham seus tes consecutivas e, durante o dia, isolar-se numa cabana no mato e respeitar
prisioneiros de guerra como escravos, ao passo que os Klamath, de regime várias proibições, tais como tocar a própria cabeça, pentear-se ou lavar-se e
social menos diferenciado, geralmente preferiam vendê-los nas grandes fei- consumir carne ou peixe.
ras intertribais do Colúmbia. A aquisição e emprego de espíritos protetores Como dissemos, os Klamath e os Modoc incineravam os cadáveres em
eram um privilégio dos xamãs modoc, à diferença do que ocorria entre os piras construídas em locais sagrados. Os Modoc às vezes também sacrifi-
Klamath, onde qualquer pessoa podia possuí-los, contanto que tivesse capa- cavam, do mesmo modo, um escravo ou um cavalo previamente imolados,
cidade para tanto. a menos que um espectador os comprasse mediante uma oferta de mes-
Ú mo valor. Os parentes próximos em luto se submetiam a banhos de vapor
*
O autor utiliza aqui a palavra “cairn”, que remete aos montículos de terra e pedras em estufas especiais que, segundo se dizia, haviam sido construídas pelo
erigidos pelos Celtas na Bretanha, na Escócia e na Irlanda. [n.t.] demiurgo, e a uma busca mística para reconquistar os poderes espirituais

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que tinham perdido em decorrência da provação, prostrando-os num orador persuasivo nas assembleias comunitárias, de que participavam os
estado de abandono que demonstravam ao recusar os produtos de sua caça, adultos de ambos os sexos. A chefia parece ter surgido mais tardiamente
pesca ou coleta e ganhos no jogo. Pois os Klamath e os Modoc eram apaixo- entre os Klamath, cuja vida social era basicamente regida por uma duali-
nados pelo jogo, e seus campeões gozavam de um prestígio que se estendia dade tradicional entre os xamãs e os ricos. De fato, a mesma palavra, lagi,
para além das fronteiras tribais. Reencontraremos esse aspecto da cultura designa o chefe e o homem rico que possui várias mulheres, cavalos, arma-
indígena quando discutirmos mitos em que o jogo ocupa um lugar de des- duras de guerra em couro ou placas de madeira, aljavas decoradas e peles
taque (infra, pp. 28, 313-14). preciosas. Além desses bens materiais, o chefe tinha de ter sucesso na guer-
Como a maior parte dos povos do planalto, os Klamath não tinham orga- ra, deter poderes sobrenaturais excepcionais e comprovar dons oratórios.
nização política. Subdividiam-se em quatro ou cinco grupos locais e autô- Embora não fosse propriamente hereditária, a chefia certamente se manti-
nomos, entre os quais o compartilhamento de uma língua e de uma cultura nha na mesma linhagem.
alimentava um vago sentimento de solidariedade, que se manifestava, oca- As crenças religiosas dos Klamath e dos Modoc se organizavam de modo
sionalmente, diante de estrangeiros, e fazia as vezes de unidade tribal. Uma bastante frouxo em torno de dois polos. De um lado, o personagem do
zona de alguns quilômetros que ninguém reivindicava separava os territó- demiurgo, criador da humanidade e das plantas comestíveis, instaurador do
rios dos grupos locais, entre os quais às vezes estouravam conflitos. Quando xamanismo e dos ritos de sudação. De outro, uma rede de lugares nomea-
isso acontecia, procuravam destruir as aldeias e os bens de seus adversários e dos, frequentados por espíritos de aparências diversas e diferentes povos de
capturar mulheres e crianças, para vendê-las como escravas a povos estran- gigantes, anões e espíritos recém-nascidos. Os fantasmas dos mortos, muitas
geiros. Esses grupos locais, de tamanho bastante variável, podiam incluir de vezes recusados pelo além — mundo invertido situado bem longe, a leste
uma a trinta aldeias. O mais importante deles, que equivalia sozinho a mais — assombravam a terra, em busca de almas vivas para capturar. A alma se
da metade do total, afirmava ter sido criado primeiro, considerava-se supe- sediava no coração e o deixava quando as carnes envolvendo o órgão aca-
rior aos demais e proclamava seu chefe superior aos dos outros grupos. bavam de queimar na pira funerária. Fenômenos naturais, tais como nuvens,
Os Klamath guerreavam ocasionalmente contra seus vizinhos Shasta, trovão, raio, sol, lua, estrelas e vento também eram personificados.
Takelma, Paiute, Kalapuya e Achomawi, principalmente por motivos comer- Entre os Klamath, qualquer indivíduo, de ambos os sexos, que estives-
ciais. Grandes comerciantes, eles levavam às feiras intertribais de Dalles se convencido de possuir poderes superiores à média podia tornar-se xamã
escravos e outros frutos de suas pilhagens, para trocá-los por cavalos. Por e realizar curas, durante as quais seus espíritos guardiões o possuíam. Os
outro lado, tinham relações pacíficas com os Modoc, os Molala, os Tenino, xamãs moravam em grandes casas decoradas com pinturas e animais empa-
os Wishram e os Wasko. Os Modoc, mais decididamente belicosos, possuíam, lhados que representavam esses espíritos. Uma estátua de madeira escul-
além de um chefe civil, um chefe de guerra vitalício, mas sua consciência pida, ornamentada com penas, também representando um espírito, ficava
tribal excluía os conflitos internos frequentes entre os Klamath, provocados no alto do teto. Distinguiam-se, na aparência, por pica-paus de cabeça ver-
pela vingança de um homem contra seus sogros caso ele fosse originário de melha mortos usados como diadema ou num colar, penachos ou colares de
outro grupo local e residisse com eles, ou de uma aldeia contra outra, devi- penas de pica-pau dourado, uma touca de visão ou texugo emplumada, um
do a assassinatos, com a exigência de que o culpado fosse entregue ou que colar de garras de urso e o rosto enegrecido.
uma compensação material fosse paga em seu lugar. Em todos os casos, uma Um período chamado “sem nome” ia de dezembro a janeiro. O pior frio
pantomima guerreira e ritos xamânicos precediam as expedições, e danças já tinha chegado, mas as provisões de inverno ainda eram abundantes, e essa
eram realizadas na volta, em presença dos prisioneiros capturados e sur- época do ano era escolhida para a celebração de ritos dedicados à institui-
rados, enquanto eram exibidos como troféus os membros arrancados dos ção dos xamãs. Um numeroso público, convocado para a ocasião, assistia.
cadáveres, e as mulheres agitavam escalpos enfiados na ponta de varas. Os O porta-voz do xamã traduzia para esse público as palavras ininteligíveis
Modoc se contentavam com um único escalpo, que queimavam. que seu mestre pronunciava depressa demais ou tapando a boca com a mão,
Eles também repartiam o poder entre o chefe de guerra, o xamã e o chefe para deformá-las. Durante a cerimônia, que durava cinco dias e cinco noites,
civil e político. Este, sem poder de coerção, devia sobretudo mostrar-se um o xamã dançava e executava números de prestidigitação, engolindo fogo ou

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uma corda com pontas de flecha, fazendo aparecer e desaparecer diversos gravemente atingidas pela Corrida do ouro, iniciada em 1848, que provoca-
objetos, engolindo-os ou cuspindo-os, assim como grandes quantidades de ria conflitos sangrentos com os Brancos. Os Klamath e os Modoc cederam
água, animando animais empalhados ou produzindo magicamente peixes, seus territórios ao governo americano — que adquiriu a Califórnia em 1846
grãos ou sangue, num cesto impermeável cheio de água. Além de cuidar dos e o Oregon dois anos depois —, mas os Modoc se revoltaram contra as con-
doentes, os xamãs klamath controlavam o tempo, encontravam objetos per- dições de vida na reserva, e acabaram sendo finalmente vencidos e reduzi-
didos e se dedicavam a outras formas de adivinhação. dos apenas em 1873. A cultura não estava mais viva, portanto, quando Gats-
O xamanismo modoc apresentava características bastante diferentes. chet e Curtin iniciaram o registro de seus costumes e tradições. A admirável
Apenas os xamãs podiam obter protetores sobrenaturais, graças a uma monografia de Spier, elaborada em 1925-26, apresenta um caráter ainda mais
busca, como na Califórnia, ou em sonhos, como nas Planícies. O período marcado de reconstituição. Felizmente, além desses inventários posteriores
mais favorável para a aquisição desses poderes se estendia do casamento até à morte de um mundo, temos coletâneas de mitos que nunca deixaram de
a aproximação da velhice para os homens, e depois da menopausa para as ser contados, e ainda hoje o são, e que preservam algo do espírito e das moti-
mulheres, pois os espíritos tinham aversão ao sangue menstrual. O procedi- vações íntimas de uma cultura extinta há um século.
mento iniciático era muito mais longo e complexo do que entre os Klamath; Está assim montado o cenário do primeiro ato deste livro, e situada sua
a entrada definitiva na corporação ocorria no inverno, a pedido do candi- cena de ação. Porém, antes de se levantarem as cortinas, cabe esclarecer que
dato, que organizava a cerimônia, oficiava, alimentava e pagava os partici- as páginas que seguem condensam a matéria de meus cursos no Collège de
pantes. O novo xamã devia celebrar os ritos de inverno durante cinco anos France nos anos acadêmicos de 1965-1966, 1967-1968, 1969-1970 e 1970-1971.
consecutivos (Miller 1873, Gatschet 1890, Bancroft 1875-76, Curtis 1907-30, A do curso de 1966-1967 inseriu-se melhor em A origem dos modos à mesa
v. 13, Spier 1930, Barett 1955, Ray 1963, T. Stern 1965). (Sexta Parte). O curso de 1968-1969, por sua vez, foi inteiramente dedicado
A secura da descrição acima não se deve apenas a seu caráter de resumo. à solução de uma dificuldade que eu encontrara ao abordar a mitologia dos
Na verdade, quase todas as informações de que dispomos acerca dos Kla- Salish: como que sob o efeito de uma dupla retração, uma série mítica com-
math e dos Modoc provêm de velhos informantes confinados em reservas, e partilhada com os Klamath-Modoc e os Sahaptin se projeta para o norte sob
que contaram, a partir de suas lembranças, seu antigo modo de vida, desapa- a forma de duas séries paralelas que se recobrem parcialmente, uma relativa
recido já por volta de 1870. O planalto do Colúmbia foi frequentado desde o ao fogo e à água, a outra ao nevoeiro e ao vento. Era portanto necessário
século xviii pelos coureurs de bois* canadenses, em seguida por empregados elucidar a natureza desse fenômeno, e também compreender porque tantos
da Hudson Bay Company, e mais tarde, da Northwest Fur Company. Muito elementos emprestados do folclore francês, ouvido pelos índios da boca dos
pouco subsiste, no entanto, dos primeiros testemunhos. Para que os índios coureurs de bois canadenses, se inseriam preferencialmente na segunda série.
do Planalto entrassem na literatura, seria preciso esperar pelo relato de Lewis Uma vez delimitado o problema e, esperamos, resolvido, a análise compara-
e Clark, após sua travessia do continente em 1805-06, e os dos viajantes que tiva podia retomar seu caminho. Contudo, evitando alongar ainda mais um
os sucederam. Mesmo assim, trata-se de fragmentos e menções episódicas, livro já muito maior do que seus antecessores, decidi não incluir aqui esse
cujo suporte humano já estava se decompondo, sob o efeito das epidemias desenvolvimento anexo, ao qual se aludirá, contudo, frequentemente.*
de varíola que, desde 1830, dizimavam as populações indígenas, ainda mais Além dessas dificuldades maiores, outras interromperam, duas vezes, a
redação, bastante lenta devido ao fato de o quarto volume não ser apenas
Ú a sequência dos demais, devendo reunir e ligar os fios que ficaram soltos ao
*
Na Nova França, os coureurs de bois eram comerciantes de peles independentes que se longo de toda a exposição: primeiramente, os acontecimentos de maio de
aventuravam pelo interior do continente para estabelecer relações com povos indígenas
1968, que geraram meses de um clima pouco propício à concentração inte-
distantes dos centros coloniais. Embora a atividade fosse proibida pelas autoridades
lectual e, além disso, durante o inverno de 1968-1969, problemas de saúde.
coloniais, os coureurs de bois, cada vez mais numerosos a partir da segunda metade
do século xvii, tornaram-se indispensáveis para a própria manutenção do comércio Ú
*
de peles. Foram, assim, os primeiros europeus a estabelecer contato com numerosos Essas questões serão retomadas e discutidas por Lévi-Strauss em seu último livro
grupos indígenas norte-americanos. [n.t.] dedicado à mitologia ameríndia, História de Lince, de 1991. [n.t.]

18 | Prólogo Prólogo | 19
Finalmente, as lacunas e incertezas multiplicaram os obstáculos, muitos
dos quais não teriam podido ser superados sem o auxílio de colegas a quem
expresso aqui meu reconhecimento. S. Débarbat, do Observatório de Paris,
os professores D. H. Hymes, da Universidade da Pensilvânia, B. J. Rigsby, da
Universidade do Novo México, T. Stern, da Universidade de Oregon, o sau-
doso J. Rousseau, da Universidade de Montréal, P. e E. Maranda, da Univer-
sidade da Colúmbia Britânica, E. Wolff e P. Gourou, do Collège de France,
ofereceram-me gentilmente informações preciosas de ordem astronômica,
linguística, geográfica, zoológica e botânica, bem como documentos inédi-
tos. René Leibowitz, em nada responsável pelas ideias que avanço no finale
acerca da música, dispôs-se a ler e discutir essa parte do texto, ajudando-me
assim a tornar mais precisos os pensamentos e a expressão. Devo à benevo-
lência de John Hess, do escritório parisiense do New York Times, aos serviços
desse jornal em Nova York e aos do Seattle Times a fotografia de Pillar Rock
(Ilustração 1), que apresenta um feliz paralelismo com a primeira ilustra-
ção que aparece em O cru e o cozido [a foto da chapada, reunida a outras
fotos na nossa edição: talvez seja preciso descrever a foto, e mudar a redação
deste trecho em consequência, além de trocar “ilustração” por foto, se todas
as “planches” forem efetivamente fotos...]. Yvan Simonis da Universidade de
Montréal, por sua vez, obteve para mim o documento da ilustração iv, tira-
da da edição original da Relation do Padre Dablon (1672), aparentemente
menos difícil de consultar lá do que em Paris, já que enquanto eu preparava
este livro, o exemplar da Biblioteca Nacional tinha aparentemente desapa-
recido. O Dr. Audrey Hawthorn, conservador do Museu de Antropologia
da Universidade de Vancouver, forneceu-me e autorizou-me a reproduzir o
documento da ilustração iii. Graças à amável intermediação de Charles Rat-
ton, Jean-Paul Barbier colocou à minha disposição, para ser fotografado, o
bronze de Amlash que aparece na quarta capa.
Finalmente, como hei de expressar minha gratidão para com um pintor
por cuja obra sempre senti uma predileção particular? Informado por um
amigo comum de que eu gostava de imaginar o mito de referência pintado
por ele, Paul Delvaux teve a gentileza de ornar a capa [idem acima] deste
livro com uma obra original, pela qual o editor e eu mesmo lhe somos pro-
fundamente gratos.
Nicole Belmont ajudou-me a reunir a documentação, Jacqueline Duver-
nay traduziu as fontes alemãs, Evelyne Guedj datilografou o manuscrito,
J.-M. Chavy desenhou os mapas e os diagramas. Agradeço a todas e a todos,
bem como à minha esposa, que releu as provas.

20 | Prólogo Prólogo | 21
P R I M E I R A PA RT E

Segredos de família

22 | | 23
i. A criança escondida

őv ποτ, ἔχοuσ ̉ έv ὠδívωv


λοχíαις ἀvάγϰαισι
πταμέvας Διòς βρovτᾶς
vηδὑoς ἔϰϐoλov μάτηρ
ἔτεϰεv, λιπoυ̃σ, αἰῶ-
vα ϰεραυvíῳ πλαγᾷ.
λoχίoις δ, αὐτίϰα vιv δέ-
Ęατo θαλάμαις Kρovίδας Zεὐς.
ϰατὰ μηρῷ δὲ ϰαλὑψας
χρυσέαισιv συvερείδει
περóvαις ϰρυπτòv ἀφ, ῞Hρας.*
Eurípides, As Bacantes, v. 88-98

Incest is fine as long as it’s kept in the family Ao longo do volume anterior (omm, pp. 164, 206, 250), evidenciou-se que o
Citado por Playboy, out. 1965, p. 43 mito do desaninhador de pássaros, na América do Sul, e o das esposas dos
astros, na América do Norte, pertencem a um único grupo de transforma-
ção. Isso já se manifestava no fato, demonstrado desde O cru e o cozido, de
que os mitos sul-americanos sobre a origem do fogo ou da água vêm acom-
panhados por uma série paralela cuja heroína é uma estrela, esposa de um
mortal (M₈₇-M₉₂); pois bem, essa série, relativa à origem das plantas cultiva-
das, inverte, do ponto de vista dos sexos, a série norte-americana do marido-
estrela, da qual faz parte, justamente, a história das esposas dos astros.
No decorrer deste livro, deveremos explorar mais a fundo a estrutura
desse vasto conjunto mítico, que praticamente cobre o Novo Mundo. Porém,
tendo já evidenciado a presença e o papel dos mesmos mitos nos dois hemis-
férios, por vezes numa forma transfigurada, não poderíamos deixar de assi-
nalar os casos em que o mito de referência (M₁, M₇-M₁₂) aparece, na Amé-
rica do Norte, em forma literal; uma ocorrência ainda mais digna de nota
na medida em que se localiza numa região delimitada aproximadamente
Ú
*
“Trazei-o, trazei a Brômio, que outrora em transes do parto fatal, imaturo saiu do
ventre materno, por força do raio alado de Zeus. Fulminada a mãe deixou a vida, mas
logo Zeus Crônida novo tálamo ao filho apronta, na própria coxa o abriga, com fíbulas
de ouro o encerra, de resguardo aos olhos de Here.” [n. e.]

24 | A criança escondida | 25
pela bacia do rio Klamath ao sul e pela do rio Fraser ao norte, ou seja, um
território restrito quando se o avalia na escala do continente, e situado na
parte ocidental e setentrional da América do Norte, isto é, bastante longe
das regiões tropicais da América do Sul, onde as versões homólogas ocupam,
igualmente, um território relativamente restrito e contínuo (fig. 1).
Para levarmos a cabo esta investigação, triplamente dificultada pela dis-
tância entre as áreas geográficas, pelo elevado número de versões disponíveis
e, finalmente, pela diversidade linguística e cultural dos grupos de que elas
provêm, adotaremos um método híbrido, em parte sistemático e em parte geo-
gráfico. Caminhando do sul em direção ao norte, começaremos por isolar um
pequeno grupo de variantes, cuja
distribuição parece ser contínua
num pequeno território situado nos
confins do norte da Califórnia e na
parte meridional do atual estado de
Oregon, não obstante a heterogenei-
dade das tribos em questão, metade III
das quais pertencentes à família lin-
guística klamath-modoc, que ocupa
uma posição isolada no seio do
II
vasto grupo penutiano, enquanto a
outra metade — que compreende os
Shasta, Atsugewi, Achomawi e Yana
— pertence à família hokan. Num I I Klamath-Modoc até
os Shasta e Yana
segundo momento, examinaremos II Sahaptin
III Salish
as versões dos Sahaptin setentrio-
nais e de seus vizinhos Chinook, e
finalmente, num terceiro momento, [ 2 ] Principais populações tratadas neste livro.
as das tribos da família linguística
salish que se estende pelo território canadense adentro. Por razões que os pro-
gressos da arqueologia e da linguística talvez um dia esclareçam, esse modo de
dispor os materiais permite encerrar uma etapa, a cada estágio da análise (fig. 2).
Abordamos primeiramente o conjunto klamath-modoc, situando-nos
em um ponto de vista arqueológico e etnográfico, no prólogo, e, por uma
razão da mesma ordem, começaremos pela análise de documentos anti-
gos, aqueles colhidos por Albert S. Gatschet, por volta de 1877. Eles perten-
cem à gesta do herói cultural Aishísh que, nota esse autor, se apresenta na
“forma de um longo ciclo de mitos aparentados” (Gatschet 1890, i: lxxxv n.;
[ 1 ] Áreas de distribuição do mito de referência nas duas Américas. cf. Barker 1963a: 22):

A criança escondida | 27
M 529 KLAMATH-MODOC: NASCIMENTO DO HERÓI Kmúkamch pegou as roupas do filho e assumiu sua aparência física. Apenas a
nora que ele cobiçava se deixou enganar; as outras o rejeitaram, certas de que ele
Antigamente, uma jovem chamada Letkakáwash, levando seu bebê nas costas, como não era seu marido.
costumam fazer as mães indígenas, fez uma pira para incinerar o cadáver de uma Preso no alto da árvore e sem comida, Aishísh ficou pele e osso. Duas moças-bor-
feiticeira. Na verdade, ela queria ela própria morrer ali com a criança. O demiurgo boletas o acharam. Trouxeram-lhe água e comida, limparam seus cabelos, untaram
Kmúkamch surpreendeu-a no exato momento em que ela se jogava no fogo, mas de óleo seu corpo descarnado, e o levaram para baixo em seu cesto.
só conseguiu salvar o bebê. Sem saber o que fazer com o pequeno ser, enfiou-o no Aishísh partiu em busca de suas mulheres. Achou Tchika (tentilhão) e Klétish
joelho, voltou para casa e lamentou-se junto à filha de ter contraído uma úlcera que (grou do Canadá), arrancando raízes selvagens. O filho da primeira foi o primeiro
doía muito. A filha tentou extrair o pus e, para sua grande surpresa, uma criança saiu a reconhecê-lo. As duas mulheres, e depois uma terceira, chamada Tûhûsh, gali-
da ferida. nha d’água (Fulica americana), receberam com alegria o marido, que consideravam
Como o bebê chorava sem parar, seu “pai” resolveu dar-lhe um nome para acal- morto. Ele deu às três colares feitos com os espinhos de porcos-espinhos que ele
má-lo. Listou vários, sem resultado. Quando ele chegou ao nome Aishílamnash, que tinha matado.
significa “o que foi guardado no corpo”, as crises de choro começaram a se espaçar, e Informado de que seu filho tinha voltado, Kmúkamch se preparou para recebê-lo.
cessaram completamente quando a criança ouviu o nome Aishísh e o aceitou. Assim, O herói mandou o filho pegar brincando o cachimbo do avô e jogá-lo no fogo. Assim
ele cresceu junto ao seu pai de criação. Tornou-se especialista na confecção de rou- que ele queimou, Kmúkamch morreu. Mais tarde, ele ressucitou, e quis se vingar do
pas luxuosas, além disso grande jogador, e sempre vencedor, mesmo contra seu pai, filho incendiando a resina com que tinha coberto o céu. Um lago de resina derretida
que por isso ficou com inveja dele. (Gatschet 1890, i: lxxxv-lxxxvi) cobriu a terra, mas Aishísh conseguiu proteger sua casa. Sua terceira mulher, Tûhûsh,
quis dar uma espiada fora da casa, e uma gota de resina caiu-lhe na testa. As gali-
A identidade da feiticeira e a razão do suicídio da jovem mulher serão revela- nhas d’água possuem a marca até hoje. (Gatschet 1890, i: 94-97)
das mais tarde. O nome da heroína, Letkakáwash, designa o tangará de cabe-
ça vermelha (Pyranga ludoviciana), um passarinho cujo macho possui uma M 530B KLAMATH: O DESANINHADOR DE PÁSSAROS (2)
plumagem reprodutiva muito colorida. O nome do demiurgo, que Barker
transcreve /gmokamč/, pode ser analisado em /gmoč/, “ser velho”, mais o Aishísh era grande especialista em jogos de perícia e de azar. Quando iam jogar, ele
aumentativo /?mč/, ou seja, “o muito velho”. Aishísh (Barker: /?aysis/) vem e seus companheiros acendiam fogueiras ao longo do caminho. A chama do fogo
do verdo /?aysi/, “esconder, guardar” e significa portanto “o escondido” ou de Aishísh tinha um brilho violáceo, o fogo de Raposa prateada era amarelo, o de
“o guardado”. Os mitos a seguir descrevem os personagens mais detalhada- Kmúkamch só fazia uma fumaça densa. Nas competições de arco e flecha, Aishísh
mente e narram suas rixas: ganhava sempre; e nos outros jogos de apostas, ele embolsava o bolo todo.
Aishísh tinha cinco mulheres: Galinha-d’água, Esquilo-de-rabo-grande, Grou-
M 530A KLAMATH: O DESANINHADOR DE PÁSSAROS (1) do-Canadá, Pato-Selvagem e Tentilhão. Kmúkamch, que cobiçava a segunda, quis
matar o filho. Disse que tinha se lembrado de um lugar onde seu falecido pai ia caçar
Conta-se que na aurora dos tempos, o demiurgo Kmúkamch, que vivia junto com seu águias, levou Aishísh até lá e o fez subir no alto de um pinheiro /kápka/, ficando tão
filho Aishísh, pos-se a criar as coisas e os seres, especialmente os peixes. Construiu alto que o herói não conseguiu mais descer, e em cujo ninho, aliás, só havia passari-
uma barragem, para que os índios pudessem pescar bastante quando o vento sul nhos bem comuns.
secava o leito do rio. Kmúkamch vestiu as roupas do filho e assumiu sua aparência. Apressou-se em
Mas Kmúkamch se apaixonou por uma das esposas de seu filho e quis livrar-se dele. dormir com a mulher que desejava, mas nem ela nem as demais acreditaram que ele
Disse que os pássaros pousados numa planta de /kenáwat/ eram águias, e mandou o fosse realmente o seu marido. Os parceiros costumeiros de Aishísh tampouco se dei-
filho ir capturá-las, tirando antes a túnica, o cinto e sua faixa frontal. O herói, desnudado, xaram convencer, pois, em vez de chamas que subiam até bem alto no céu, a fogueira
subiu e só encontrou filhotes de aves comuns. Enquanto isso, a planta tinha crescido do usurpador produzia uma fumaça rasteira e suas flechas sempre erravam o alvo.
tanto que Aishísh não conseguiu descer de volta; refugiou-se no ninho, e esperou. Os companheiros sentiam tanta falta de Aishísh que perderam a vontade de jogar.

28 | Primeira parte: Segredos de família A criança escondida | 29


As mulheres, por sua vez, ficaram inconsoláveis, exceto por Pato-Selvagem, nem Mas Barker mantém, em sua versão de M₅₃₀a, b (infra, M₅₃₈), o sentido dado
um pouco incomodada com a viuvez. Mas Grou chorava tanto que Aishísh a ouviu de por seus predecessores. Um informante de Gatschet, por sua vez, traduzia a
sua prisão, e também caiu no choro. Lá no alto, pertinho do céu, ele, que era só pele e mesma palavra por “peixe”, bem como a versão de Curtis (M₅₃₁a, xiii: 210-
osso, esperava pela morte. 12), que lista: galinhola (uma galinha d’água), um gênero de grou ou de garça,
Duas moças-borboletas o avistaram e avisaram seu pai, que lhes disse que fos- um peixinho /stókoa/, um passarinho, um pato e um carrapato. Como vere-
sem socorrer o herói. Depois de matar a fome e a sede, ele lhes contou suas des- mos, Barker apresenta uma lista de esposas diferente, como a lista de Curtin
venturas. Elas o levaram para o chão num cesto de salgueiro trançado, forrado com (infra, M₅₄₁) e a do próprio Gatschet, segundo uma versão modoc, na qual
uma pele de lince. Aishísh ficou doente por muito tempo. Acabou se recuperando. temos: Toupeira, Doninha, Porco-Espinho, Cadela, Grou ou Garça, Pato-Sel-
(Gatschet 1890, i: 99-101) vagem (Anas boschas), Troglodita e outros pássaros, Borboleta, e mais uma
série de esposas que ninguém se dá ao trabalho de nomear (Gatschet 1890,
Os jogos de azar de que fala o mito ocupam um lugar considerável na vida i: lxxxvii).
dos Klamath e dos Modoc (Spier 1930: 76-80; Angulo & D’Harcourt 1931: Voltaremos a essa questão ao considerarmos versões setentrionais. Do
204-05; Ray 1963: 122-30). Alguns só podiam ser jogados por dois times — mesmo modo, Gatschet traduz por “raposa prateada” a palavra /wan/ que,
nacionais, de certo modo — de tribos vizinhas. Os capitães das equipes con- segundo Barker (1963b: 459), designa a raposa vermelha. A divergência é
duziam o jogo, enquanto seus companheiros torciam com cantos e gritos, menor do que parece, pois Gatschet (1890, ii: 474) indica que chama de “pra-
procuravam desconcentrar a equipe adversária de todos os modos e todos teada” a raposa vermelha quando assume a pelagem de inverno.
participavam das apostas, na medida de suas possibilidades. Riquezas consi- Por outro lado, fica claro que M₅₃₀ e M₅₃₁ remetem a espécies botânicas
deráveis acabavam assim mudando de dono. Ritos e talismãs, como lâminas diferentes quando descrevem a planta mágica cujo crescimento é responsá-
de obsidiana e cadáveres de pequenos animais encontrados por acaso, que vel pelo isolamento do protagonista. O /kenáwat/ seria uma planta comes-
se considerava capazes de dar ou manter a sorte. A caminho do torneio, os tível das pradarias, de flor cheirosa (Gatschet 1890, i: 146), certamente uma
jogadores acendiam fogueiras e liam presságios na cor das chamas e na dire- azeda (em inglês, horse-sorrel), que atinge um ou dois pés de altura e cujo
ção tomada pela fumaça. crescimento é muito rápido nas regiões mais quentes do que o território dos
Havia vários tipos de jogos, baseados nos mesmos princípios, com Klamath, onde o frio as impede de crescer (Gatschet 1890, ii: 127). O /kápka/,
pequenas variações. Cada um dos jogadores dispunha de um lote de peças por sua vez, é uma espécie de pinheiro, Pinus contorta segundo Gatschet
de diversas cores e os arrumava numa determinada ordem, atrás de um (ibid.: 118) e Barker (1963b: 148, grafado /gapka/), cuja entrecasca os índios
biombo de palha. O adversário tinha de adivinhar o arranjo e expressar- comem quando a seiva sobe na primavera. De modo que se trata de uma
se por um determinado gesto. Mas antes de formular sua opinião definiti- planta numa versão, e de uma árvore na outra, mas que têm em comum o
va, tinha o direito de fazer outros anúncios, para confundir o oponente e fato de serem comestíveis, e menores do que suas congêneres, por uma razão
provocá-lo a mudar seu jogo. Durante esses enfrentamentos preliminares, os contingente, como o frio, ou por comparação com os demais representantes
adversários se vigiavam atentamente, e aquele que deveria adivinhar tinha a da mesma família. O mito sempre transforma um vegetal que os homens
esperança de que o outro, com as peças, se traísse por algum gesto indicativo comem num “canibal” metafórico; e além disso enganador, já que abriga
ou por uma manipulação precipitada. A experiência, aliada à sensibilidade pássaros comuns em vez das águias que o protagonista esperava encontrar.
psicológica e também o que chamamos de blefe interferiam na partida. Isso Esses pássaros /skûle/ poderiam ser cotovias (cf. Barker 1963b: 390;
explica as diferenças entre os jogadores em termos de talento, e o fato de os /sqol’e/, meadowlark), cuja função semântica discutimos no volume ante-
campeões reconhecidos gozarem de um prestígio considerável, que se esten- rior (omm: 188-95), e que faz ninho no solo e voa baixo, ou seja, se encontra
dia para muito além do círculo de sua tribo. em oposição diametral em relação às águias, donas do céu, o que contribui,
A identidade das esposas do protagonista às vezes é duvidosa. Barker como as espécies vegetais, para sublinhar o contraste entre alto e baixo.
(1963b: 395) e Stern (ms.) traduzem o nome da segunda mulher, /st’ok’wa/, Quanto à pele com que as moças-borboletas forram o cesto, lembrare-
por “jovem galinha d’água”, e não por “esquilo”, como Gatschet e Curtin. mos a apóstrofe registrada por Gatschet (1890, i: 186, 189) — “Você se acha

30 | Primeira parte: Segredos de família A criança escondida | 31


rico, e não estica nem uma pele de lince!” — que as jovens recém-casadas em incesto com uma esposa do filho. Por vingança no primeiro caso e por
decepcionadas lançam aos maridos quando se veem privadas do mais sim- cálculo no outro, o pai isola o filho no alto de uma árvore ou de uma parede
ples conforto, uma pequena pele curtida, para se sentarem e ficarem pro- rochosa, dizendo que este deveria ir pegar no ninho, num caso, araras, pro-
tegidas da umidade. A função do episódio relativo aos colares de espinhos tótipo de aves frugívoras, e no outro, águias, protótipo de aves de rapina. O
de porco-espinho aparecerá na discussão da versão mais recente de Barker herói preso passa fome e sede, e seu corpo perde carne, devido a uma agres-
(infra, pp. 45ss). são externa (M₁) ou ao depauperamento interno (M₅₃₀-M₅₃₁), até ser levado
No ponto em que estamos, mais vale, com efeito, ressaltar a simetria des- de volta para baixo, por urubus machos e canibais em M₁, e por borboletas
de já manifesta entre as versões norte e sul-americanas da história do desa- fêmeas e inofensivas em M₅₃₀-M₅₃₁.
ninhador de pássaros. O protagonista de M₁, considerado impúbere, viola a Ao voltar para casa, o protagonista de M₁ urde sua vingança com a ajuda
própria mãe. O de M₅₃₀-M₅₃₁ não tem mãe e não apenas é adulto e casado, do irmãozinho; o de M₅₃₀-M₅₃₁ faz o mesmo com a ajuda do filhinho. Em
como tem muitas mulheres (algumas versões lhe atribuem dezenas delas). consequência, o pai culpado morre, num caso no fogo, no outro, na água.2
No início do mito, um sequer recebeu o estojo peniano que constitui toda Esta última oposição é especialmente interessante, por conta da relação
a vestimenta dos Bororo, enquanto o outro é apresentado como especialista de transformação que estabelecemos, em O cru e o cozido, entre o mito de
em roupas de luxo, e seu pai terá de obrigá-lo a despir-se dos pés à cabeça referência, M₁, e as versões jê M₇-M₁₂, o primeiro remetendo à origem da
para poder vestir suas roupas e assumir seu aspecto físico. Se a interpretação água (celeste) e os outros à origem do fogo (terrestre). Essa relação de trans-
que fizemos de M₁ estiver correta, o estupro da mãe traduz a recusa de inte- formação reaparece entre mitos que, como acabamos de ver, se invertem sis-
grar-se à casa dos homens e deixar o universo infantil e feminino. Aishísh, ao tematicamente num outro eixo. É notável que M₅₃₀-M₅₃₁ reúnam traços que
contrário, está tão completamente do lado masculino que é carregado pelo os aproximam ao mesmo tempo de M₁ e de M₇-M₁₂. Como nesse último
pai numa segunda gestação.1 grupo, é uma árvore, em vez de uma parede rochosa, que serve para sepa-
Em prol de nossa tese, lembramos que, em O cru e o cozido (57, 63, 67, 71, rar o protagonista dos seus. Em ambos os casos, sua busca desemboca em
84), o protagonista de M₁ transforma os de mitos aparentados, cuja deno- decepção, ou porque em lugar de aves raras ele só encontra pássaros comuns,
minação — Baitogogo em bororo — significa “o confinado”, e que, como ou porque o ninho só contém ovos. Em todos os casos, os mitos descrevem
ele, têm nomes que evocam sua elegância em termos de vestimenta e sua do mesmo modo os sofrimentos do herói prisioneiro: com fome e sede,
beleza física. Naquele estágio da demonstração, a conjectura podia parecer coberto de sujeira. O de M₇-M₁₂ é libertado pelo jaguar, animal perigoso
arriscada. Agora ela se vê confirmada por lições norte-americanas, em que que passa pelo pé da árvore, e é, portanto, salvo por baixo. O protagonista
um herói cujas aventuras reproduzem exatamente as do outro, se chama “o de M₅₃₀-M₅₃₁, que desce no cesto das moças-borboletas, criaturas inocentes
escondido” ou “o guardado”, enquanto os mitos não param de elogiar sua que voaram até ele, é salvo por cima. Os animais prestativos sempre o ali-
beleza, a ponto de em klamath uma palavra que designa a beleza física, / mentam, dão-lhe de beber, limpam sua sujeira e, enquanto ele goza da hospi-
aishíshtchi/, ser derivada do nome do herói, significando “igual a Aishísh” talidade deles, ocorre um evento decisivo para a humanidade: a descoberta
(Gatschet 1890, i: lxxxv-lxxxvii; ii: 18). Como acabamos de ver, os mitos da
América setentrional interpretam seu nome atribuindo-lhe um significado
simétrico ao que havíamos postulado a respeito de exemplos sul-americanos. 2 . Seria tentador levar adiante a comparação, pois em M₅₃₀-M₅₃₁ o pai culpado morre
Essa relação de simetria se estende a todos os aspectos do mito. Assim, o por ter sido separado de seu cachimbo, um tubo perfurado, ao passo que em M₁ ele
incesto com a esposa do pai, pelo qual começa M₁, se inverte em M₅₃₀-M₅₃₁, é aproximado de um tubo perfurante, o chifre de veado que o atravessa. Contudo,
preferimos deixar de lado o episódio do cachimbo, por duas razões. Primeiro, ele não
consta de todas as versões (as de Curtis, M₅₃₁a, e de Barker, M₅₃₈, substituem o cachimbo
1 . Segundo Gatschet (1890, i: lxxxviii), a palavra klamath para “pai”, /p’tíshap/, em por um ou vários corações externos “que o velho levava como saco pendurado no
modoc /t’shíshap/, significaria “o provedor” e seria derivada de /t’shín/, “crescer”. pescoço”; uma versão de Stern (M₅₆₀) fala de um pendente de colar. Além disso, sua
Barker (1963b) informa, sem mais comentários: /tsin/, “crescer (para pessoas apenas)” discussão obrigaria, para que se pudesse determinar um paradigma, a considerar um
e /tis/ ou /ptisap/, “pai”. conjunto mítico vasto e complexo que envolve praticamente toda a Califórnia.

32 | Primeira parte: Segredos de família A criança escondida | 33


do fogo culinário em M₇-M₁₂, substituída por uma outra descoberta em que aproximamos não está no fato de se assemelharem; aliás, com muita fre-
M₅₃₀-M₅₃₁. Discutiremos esse ponto mais adiante (infra, pp. 45-46). quência, eles não se assemelham. Nossa análise busca, antes, evidenciar pro-
Também em sua conclusão o mito klamath se aproxima do mito bororo. priedades comuns, apesar de diferenças às vezes tão grandes que se poderia
Lembremos que o protagonista de M₁, para punir os seus pela maldade que considerar os mitos que colocamos no mesmo grupo como seres comple-
demonstraram para com ele, provoca chuvas torrenciais que apagam todos tamente distintos.
os fogos da aldeia, exceto o de sua avó, onde ele se refugiara. Apresenta-se, Consequentemente, os casos em que o parentesco salta aos olhos cons-
portanto, simultaneamente como dono da água (celeste) que faz despencar tituem apenas limites. São certamente casos de grande interesse, na medida
e dono do fogo (terrestre) que só ele é capaz de preservar. Simetricamente, em que a convicção que geram não tem necessidade de filiar-se à escola da
o pai do protagonista de M₅₃₀-M₅₃₁, para punir o filho pela maldade para análise estrutural e de submeter-se ao complicado jogo das transformações.
consigo, faz cair do céu uma chuva de fogo de que só o protagonista conse- Mas a prova não resulta do fato de serem observáveis semelhanças no nível
gue se proteger, e que ele transforma em lago que inunda toda a terra, exceto empírico. Pois sabemos, e os excessos da mitologia comparada comprovam-
sua casa, na qual se encontra com suas esposas fiéis: “Muito tempo depois, no, que nada há de mais enganoso do que tais semelhanças; é por isso que
Kmúkamch ressuscitou e quis vingar-se do filho. Recobriu a abóbada celeste os estudos desse gênero, fundados nesse único critério, logo degeneraram
com resina e ateou-lhe fogo. Mas Aishísh pegou um tabuleiro e segurou-o numa verborreia que haveria de provocar um forte enjôo. Se, como foi dito
em posição horizontal (acima de sua cabeça). Embora suas mulheres tives- (Leach 1967: xvi), pudemos tornar os estudos comparativos novamente res-
sem muito medo, ele disse: ‘Eu é que ele nunca conseguirá matar!’ A resi- peitáveis, foi por termos compreendido que a semelhança não existe em si:
na formou um lago que cobriu a terra. Só a casa de Aishísh ficou no seco” ela não passa de um caso particular da diferença, aquele em que a diferença
(Gatschet 1890, i: 96). tende a zero. Mas esta jamais se anula completamente. É portanto necessário
De modo que uma chuva de água que apaga todos os fogos exceto um que a reflexão crítica tome o lugar dos inventários empíricos, e se coloque a
(M₁) se transforma aqui em chuva de fogo que submerge todos os lares exce- questão fundamental das condições em que uma semelhança pode ter um
to um. E se a água de M₁ funciona como antifogo, o fogo de M₅₃₀-M₅₃₁ fun- sentido cuja riqueza supera o que decorreria de um encontro casual, efeito
ciona como água. Havíamos observado, a respeito de M₁, que uma intriga de convergência ou origem comum.
complexificada (em relação à de M₇-M₁₂) permitia deixar o aspecto etioló- A partir de então, as semelhanças já não se encontram na mera obser-
gico do mito em estado latente; faremos mais adiante a mesma constatação vação. Em lugar de apreendê-las como dados da experiência, passa-se a
quanto ao grupo a que pertencem M₅₃₀-M₅₃₁. percebê-las como seres de razão. Deixam de ser meramente observáveis, e
tornam-se demonstráveis, pelo fato de se distinguirem em grau, e não em
! natureza, das diferenças que, para poderem ser reduzidas, requerem sempre
uma demonstração. A necessidade do trabalho de demonstração estende-se,
Pois bem, dirão, um grupo de mitos provenientes da América tropical assim, a todo o campo.
encontra-se intacto numa região setentrional da América do Norte. Mas o Longe, portanto, de pretender estabelecer entre os mitos relações de
quê isso prova, a não ser que a América foi povoada por ondas sucessivas parentesco ou de filiação passíveis de serem deduzidas de semelhanças
de imigrantes vindos da Ásia, que traziam consigo mitos, alguns dos quais superficiais, começaremos por estabelecer o princípio de que um mito
permanecem reconhecíveis em vários exemplares aqui e acolá? Sabe-se há jamais se reduz à sua aparência. Por mais diversas que possam ser, tais apa-
muito tempo que não faltam mitos com versões paralelas nos dois hemisfé- rências encobrem estruturas certamente menos numerosas, porém mais
rios. O fato de mais um vir juntar-se a uma lista já bastante longa não tem reais. Sem que tenhamos o direito de subtrair-lhes ou acrescentar-lhes o
interesse algum. que quer que seja, tais estruturas apresentam o caráter de objetos absolu-
Colocar a questão desse modo significaria equivocar-se completamente tos: matrizes de geração por deformações sucessivas de tipos que podem
quanto ao sentido de nossa empreitada. Não procuramos saber o porque ser ordenados em séries, e que devem permitir recuperar até as mínimas
dessas semelhanças, mas o como. Na verdade, a característica dos mitos nuances de cada mito concreto tomado em si.

34 | Primeira parte: Segredos de família A criança escondida | 35


O método nem sempre precisa invocar a história, mas nem por isso lhe postumamente. Esses traços se encontram ainda mais fortemente marcados
dá as costas. Pois ao revelar entre os mitos ligações insuspeitadas, e classifi- nos mitos nez percé e cabe notar aqui que eles contam (M₅₃₃, Spinden 1908a:
cando as variantes numa ordem que sugere pelo menos a direção obrigató- 19-21) a história do demiurgo enganador que fecunda o próprio cotovelo
ria de certas passagens, ele coloca problemas para a história, que a incitam a enfiando nele o seu pênis, e dá à luz um filho. Ainda mais significativo é o
considerar hipóteses nas quais talvez não tivesse pensado, dando-lhe, assim, fato de esse filho ajudar o pai a recuperar os olhos que tinha perdido por
uma ajuda mais fecunda do que se nos tivéssemos limitado a meramente acreditar estupidamente que podia tirá-los e depois recolocá-los nas órbitas
registrar-lhe os resultados. sem problemas. Como mostramos (cc: 197-99), esse motivo, também pre-
De modo que é considerando eventuais implicações históricas assim sente na América do Sul, se baseia numa oposição entre os olhos e os excre-
como na intenção de tornar mais plausível uma aproximação inspirada por mentos, que representam respectivamente partes do corpo inamovíveis por
semelhanças formais que aqui assinalaremos um conjunto de propriedades natureza ou amovíveis por destino.
comuns aos dois campos semânticos que formam um pano de fundo para o Entre os olhos e os excrementos, o menino, inamovível durante nove
mito do desaninhador de pássaros, tanto no noroeste da América do Norte meses e depois expulso definitivamente do corpo do qual fazia parte, pode
quanto na América tropical. Já evidenciamos um certo número delas desde assim de empenhar o papel de mediador. É por isso que o demiurgo conse-
o início e no decorrer destas Mitológicas, para efeito de registro, digamos, gue reparar o erro de exteriorizar os olhos com interiorizar o filho, por inter-
enquanto não chegávamos ao ponto onde agora nos encontramos (cf. cc: médio de uma auto-fecundação. De fato, os mitos sul-americanos enfatizam
56, 63-64, 160 n. 2, 295 n. 1, 305 n. 1; mc: 94, 160-61, 168-71, 184 n. 1, 264 n. 1, 320 a oposição olhos/excremento, ao passo que o mito que acabamos de invocar
n. 1, 392 n. 1, 396-97). Não recapitularemos o inventário, mas concentraremos desloca a ênfase para a oposição olhos/filho. Porém, justamente, esse pai, que
a atenção em casos de paralelismo de maior importância, e que remetem às vezes fica grávido no quadril, pare seus filhos pelo ânus (M₅₄₂a, Phinney
diretamente aos mitos discutidos acima. 1934: 52 n. 2). São, portanto, filhos-excremento, e numerosos mitos da mes-
Os Matako do Chaco, que estão inseridos na família pano por classifica- ma região — como os que atribuem a Coiote um conselho privado, formado
ções linguísticas recentes, conhecem, como os Klamath-Modoc e os Bororo, de irmãs-excremento que ele expulsa do próprio corpo sempre que precisa de
um personagem cujo nome em sua língua /tawkxwax/ ou /tacjuaj/ poderia algum conselho e que reintegra logo em seguida; cf. infra, pp. 233, 276-77 —
significar “o invisível” ou “o escondido”. Como os Jê, eles contam que o fogo atestam o valor operatório de um esquema tripartite:
de cozinha foi obtido do jaguar, e compartilham outros mitos com as tribos
que desenvolvem o tema do desaninhador de pássaros, como o da origem filho
das mulheres e o da dona da cobra (cf. Campana 1913: 309, 314-17 e cc, mc,
“Índice de mitos”, em “Matako”). Como o demiurgo enganador Tawkxwax
não tinha mulher, conta-se (M₅₃₂, Métraux 1939: 39-40) que ele enfiou o
pênis em seu braço e assim engravidou a si mesmo. Teve um filho, que foi
entregue a uma velha, cresceu e revelou-se um pescador milagroso. Naquele
tempo, toda a água e todos os peixes do mundo estavam contidos no tronco
inamovível olho excremento amovível
de uma grande árvore, onde se podia pescar em qualquer época do ano.
Porém, num gesto descontrolado, o herói furou o tronco e provocou um
dilúvio, que cobriu toda a terra, com exceção de uma árvore no alto da qual Ora, também nesse grupo norte-americano, Coiote é o pai do desanini-
ele se refugiou. A árvore também acabou cedendo, e o herói morreu afoga- nhador de pássaros, responsável, no decorrer de suas peregrinações, pela
do. Seu pai, o demiurgo, conseguiu reabsorver a inundação e juntar a água ordenação do universo que se traduz, entre outras coisas, pela instituição da
“no leito do rio que corre hoje perto de Buenos Aires”. Os mitos klamath- periodicidade das estações, a que está ligado o ciclo reprodutivo.
modoc já associavam o menino escondido à origem da pesca, que o herói O motivo do homem grávido ocupa na América do Norte uma área con-
matako fez sazonal, e à da rede hidrográfica, pela qual este é responsável siderável, que se estende pelo menos desde os Paiute e os Pawnee ao sul e a

36 | Primeira parte: Segredos de família A criança escondida | 37


leste, até os Esquimó ao norte, passando por atabascanos como os Kaska e que a mesma afinidade pode ser percebida entre os dois temas nos mitos e
salish como os Tillamook (Lévi-Strauss [1958a] 2008: cap. xii; Rink 1875: ritos sul-americanos. Mostramos isso, aliás, ao discutirmos o nome do pro-
443-44; Lowie 1924: passim; Teit 1910: 472; E. D. Jacobs 1959: 141-43). Encon- tagonista de vários mitos bororo, Baitogogo ou “o confinado”, cuja interpre-
tra-se também entre os Kalapuya, os Koos e até na Sibéria (Frachtenberg tação correta exigiu a aproximação com costumes jê e karajá de reclusão dos
1913: 5, 49; Jacobs 1940: 239; 1939: 375-76; Jochelson 1908: 365). A difusão do adolescentes ou de uma adolescente de alta estirpe. Korumtau, protagonista
motivo na América do Sul parece ser ainda mais vasta, pois que a noroeste de um mito mundurucu (M₁₆) é um menino escondido nos dois sentidos
e a sudeste da área do desaninhador de pássaros ela ocupa dois vastos ter- do termo, já que seu pai o gerou sem a contribuição de uma mulher e em
ritórios, um que vai do Panamá e das Antilhas ao noroeste da bacia amazô- seguida quis escondê-lo de todos (cc: 63-66).
nica e ao Peru, o outro do Brasil central até a Bolívia e o Chaco argentino. Cumpre agora notar que no noroeste da América do Norte e numa vasta
O primeiro grupo inclui os Carib das Antilhas (Rouse 1948: 564), os Cuna região da América tropical, uma transformação como essa permite passar
do Panamá e os Choco (Holmer & Wassén 1958: 24-25; Wassén 1933: 133-34; do motivo da criança escondida ao da esposa escondida. Um costume dos
1963: 70-71), os Surara e Waika (Becher 1959: 104; Zerries 1964: 273), os Catio Sanpoil garante a transição, pois como outros salish do interior e da cos-
(M₂₅₄b; mc: 172; Rochereau & Rivet 1929: 100), os Uitoto (Preuss 1921-23: 51, ta, eles mantinham as moças em reclusão para torná-las “mais respeitáveis
304-14), os Tukuna (Nimuendaju 1914: 377; Ribeiro 1951: 114-15), os Umutina e mais desejáveis como esposas do que as que
(Oberg 1953: 108; Schultz 1961-62: 172, 227) e os Yucararé (Kelm, in Zerries eram menos bem guardadas” (Ray 1954: 136-37).
1964, l.c.: 273). Zerries (l.c.) fez um inventário do motivo, que coincide apro- Apesar de atualmente viverem no sul, os Navajo
ximadamente com o nosso. de língua atabascana vêm do norte, o que tor-
Silencioso por definição, o menino escondido às vezes se transforma em na justificável evocar a origem mítica de suas
bebê chorão ao nascer (M₅₂₉). O mesmo acontece num mito (M₅₃₄, DuBois máscaras /ethkay-nahashi/, que apresentam um
& Demetracopoulou 1930-31: 333-34) dos Wintu do norte da Califórnia, pou- menino e uma menina caminhando sempre
co distantes dos Klamath e dos Modoc: um bebê inicialmente escondido um atrás do outro, a forma na qual, depois de
pelas irmãs se liberta e começa a gritar tanto que todos saem correndo. Ele terem cometido um pecado mortal, ressuscita-
só se cala ao ver o sangue menstrual da irmã, que o deixa aterrorizado, foge ram duas moças 3 que eram mantidas reclusas
e desaparece no fundo da água. no escuro por seus pais (Haile & Wheelwright
Apesar de ser uma indicação ínfima, ela sugere que a criança escondida, 1949: 24, 31, 107; infra, M₇₉₂, p. 499).
intimamente conjugada ao corpo do pai, ou então a toda a sua família, quan- E os Lilloet de língua salish, instalados nas
do esta a mantém escondida, apresenta alguma relação de correlação e opo- bordas da área atabascana, contam a história
sição com a criança chorona que afasta todos de si. Ora, a criança chorona de um incesto cometido por irmãos, apesar de
da Califórnia não suporta a visão do sangue menstrual, enquanto a criança o pai ter tomado o cuidado de fechar a filha
escondida dos mitos sul-americanos, ao contrário, se lava com ele ou até se numa caixa colocada perto de sua cama, para [ 3 ] Desenho navajo
alimenta dele (Wassén 1933: 116; Rochereau & Rivet 1929: 100). que ninguém pudesse chegar perto dela (M₅₃₅, representando uma das
Nessa hipótese, o tema do homem grávido deveria ser considerado como Teit 1912a: 340). Além de a criança escondida moças escondidas.
um caso particular do motivo mais geral em que uma família não deixa (Cf. Haile & Wheelwright
também ser frequentemente ocultada num
1949: 25)
que ninguém veja um de seus filhos, tranca-o num esconderijo, lava-o e recipiente — cesto, caixa, flauta, casulo, fossa
alimanta-o em segredo. Como veremos, esse motivo ocupa um lugar con-
siderável nos mitos da América do Norte que interessam mais diretamente 3 . Ou seja, uma transformação inversa da que, em M₅₃₈, afeta um menino que se
à nossa demonstração, cujo protagonista às vezes tem um nome análogo ao desdobra em moça e rapaz, que depois cometerão incesto. Grafamos o etnônimo
de Aishísh, inicialmente guardado pelo pai no joelho, como /weänmauna/, seguindo a decisão do Conselho da Nação Navajo que, a 15 de abril de 1969, adotou
“o escondido”, em yana (Curtin 1899: 121, 339, 421). Por ora, bastará registrar essa grafia em lugar de Navaho, tradicionalmente empregado entre os etnólogos.

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subterrânea, colmo do telhado etc. —, o mesmo ocorre com a esposa em homem grávido e seu filho, respectivamente. As equivalências entre Marta
miniatura que um homem quer proteger das investidas de seu irmão. Os e Kmúkamch e entre Doninha e Aishísh, postulada por Gatschet (1890, i:
mitos das duas Américas fazem o relato em termos tão próximos que basta- 107-08), não é contestada por Barker (1963a: 389), que a atribui a uma confu-
rá justapor duas versões, tomadas a título de exemplo dentre muitas outras: são de personagens originariamente distintos. Entretanto, um texto coletado
por esse autor três quartos de século depois de Gatschet continua identi-
M 660A KLIKITAT: A ESPOSA ESCONDIDA (trecho; cf. infra, p. 303) ficando Marta e Kmúkamch (Barker 1963a: 73). Pode-se, aliás, invocar um
outro argumento em favor da tese de Gatschet.
Era uma vez Águia, e também seu irmão caçula, Cangambá. Águia passava o tempo Na maior parte dos mitos sul-americanos que contêm o motivo da espo-
todo caçando. Apareceu uma mulher, Cangambá a escondeu. Quando Águia voltava sa escondida, esta é uma estrela (cc: 172-78). Ora, os Klamath têm um mito
à noite, descarregava a caça e dormia na casa. Cangambá conversava nas tenebras do casamento de Marta e Doninha que inverte o de Águia e Cangambá,
com sua mulher e, ao despertar de manhãzinha, Águia ficava curioso para saber com por sua vez semelhante, como vimos, aos mitos sul-americanos de Estrela
quem seu irmão falava e ria no escuro. E ele respondia: “Rio porque um camundongo esposa de um mortal, a não ser pelo fato de não especificar a proveniên-
vem me ver e fica andando no meu rosto (ou me mordisca o reto)”. (Jacobs 1929: 207; cia da mulher. No mito klamath (M₅₃₆a, b; Gatschet 1890, i: 107-18; Barker
1934: 202-03) 1963a: 71-77), longe de cobiçar a bela moça encontrada pelo irmão, Marta o
dissuade de casar-se com ela, denuncia os desígnios assassinos da estrangei-
Eis agora uma versão sul-americana: ra e tece elogios às mulheres vesgas que, segundo ele, são mais trabalhadoras.
O fato de essas mulheres vesgas serem astros, como bem viu Gatschet (1890,
M 95 TUKUNA: A FILHA DA ÁRVORE UMARI (cc: 179) i: lxxxiii), não se depreende apenas dos paralelos esquimó por ele citados,
mas também de muitos outros: estrelas vesgas entre os Kodiak (Golder 1903:
Contrariando seu irmão Epi, Dyai tomou por esposa uma moça que tinha aparecido 24-26, 30), sol chamado “um olho” pelos Sanpoil (Ray 1933: 135-37) e zarolho
milagrosamente. Rolou-a entre as mãos para torná-la bem pequena e a escondeu alhures (Adamson 1934: passim), a que deve ser acrescentado o vasto con-
em sua flauta. junto de indicações do mesmo tipo provenientes tanto da América do Sul
Quatro noites seguidas, ele a tirou do tubo, levou-a para sua rede e brincou com quanto da América do Norte, que também passamos brevemente em revista
ela em silêncio. Na quinta noite, ela riu, e as conchinhas de sua pulseira tiniram. noutro momento (omm: 128 e passim).
“Irmão, perguntou imediatamente Epi, com quem você está rindo?”. “Com ninguém”, Não devemos, portanto, descartar por princípio todas as interpretações
respondeu Dyai, “é a vassoura que está rindo porque eu lhe fiz cócegas”. (Nimuendaju de Gatschet, mesmo quando ele se mostra obcecado pela mitologia solar
1952: 127) que estava na moda no século passado. Já nos explicamos a esse respeito
(cc: 246). Max Müller e sua escola tiveram o imenso mérito de descobrir e
O paralelismo é ainda mais impressionante quando se considera que o decifrar parcialmente o código astronômico que os mitos frequentemen-
irmão casado da versão norte-americana é um cangambá, ao passo que, na te empregam. Seu erro, bem como o de todos os mitólogos daquela época
outra versão, o irmão solteiro apresenta, como mostramos (cc: 179, 187-88), e de alguns mais recentes, foi pretender compreender os mitos por meio
uma afinidade evidente com o sariguê, dois animais que os mitos de ambas de um código único e exclusivo, quando eles sempre operam com vários
as Américas, de modo independente, colocam em correlação e oposição, códigos simultaneamente. Um mito não pode ser reduzido a nenhum códi-
invertendo suas respectivas funções (cc: 255 n. 1; mc: 66-67). go tomado isoladamente, e tampouco resulta da adição de vários códigos.
Não é só isso. Os dois protagonistas do mito tukuna, meninos escondi- Seria antes o caso de dizer que um grupo de mitos constitui por si mes-
dos, nasceram dos joelhos inchados do pai, ao passo que os do mito klikitat mo um código de uma potência superior à de cada um dos que ele utiliza
têm seus correspondentes entre os Klamath nas pessoas de Marta e Doninha para cifrar mensagens múltiplas. Verdadeiro “intercódigo” — com o perdão
(membros da família dos mustelídeos, como o cangambá). Nos mitos, esses do neologismo —, ele permite a conversibilidade recíproca dessas mensa-
personagens animais funcionam como dublês de Kmúkamch e Aishísh, o gens segundo regras cujo repertório permanece imanente aos diferentes

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sistemas que, ao operarem, deixam transparecer uma significação global e episódio da morte e da ressurreição do demiurgo Kumush, nome que os
distinta das suas.4 Modoc dão a Kmúkamch: depois de ter sido lançado no fogo (cf. supra,
Portanto, ao admitirmos, seguindo Gatschet, que os demiurgos klamath M₅₃₀), “nada restava dele a não ser o crânio e o disco misturados com as
e modoc têm uma conotação astronômica, não cremos, ao contrário dele, cinzas. Muito tempo depois, a estrela d’alva os viu e gritou: ‘Ei, velho, o que
desembocar numa solução. Trata-se tão somente de uma primeira etapa, a está havendo? Por que você está dormindo até tão tarde? Levante!’ Kumush
que várias outras se seguirão antes de a verdadeira análise poder começar. pôs-se rapidamente de pé e partiu em busca de (seu irmão) Wanaga” (cf.
Mesmo sob a aparência familiar de Marta e Doninha, os dois demiurgos infra, M₅₄₁). Curtin comenta esse episódio nos seguintes termos: “Todos os
têm um papel cosmológico (M₅₃₆a,c; Gatschet 1890, i: 109-18; Curtin 1912: dias, o sol morre fisicamente e se consome, para virar apenas um monte de
288-309): decapitam os ventos, exterminam os trovões. No que diz respeito cinzas. Mas ele tem no corpo um disco indestrutível [...] que o impede de
a Kmúkamch e Aishísh propriamente ditos, a autenticidade de certas glosas desaparecer para sempre [... ] A estrela d’alva tem de chamá-lo. Obedecendo
colhidas por Gatschet não parece suspeita, ainda que ele às vezes lhes acres- a ela, o disco de ouro se eleva do monte de cinzas, e o sol goza de uma nova
cente desenvolvimentos nos quais não se sabe bem quem fala, se o pesqui- vida até o anoitecer”. Acerca desse disco imperecível que logo voltaremos a
sador ou o indígena: “Quando nuvens encarneiradas cercam o sol, diz-se no encontrar, cumpre notar que os xamãs modoc usavam pequenos discos de
figurado que Kmúkamch apoderou-se das roupas de contas de Aishísh e as palha trançada enfeitados com penas, símbolos de seus espíritos tutelares e
vestiu. Uma espécie de fumaça rosada ou bruma que aparece no céu ociden- “vagamente associados à rã” (Ray 1963: 37-38).
tal ou a noroeste anuncia sua chegada; ele também pode ser reconhecido Mais ao norte, os Kathlamet, Tillamook, Chinook e Bella Coola acredita-
por seu posterior volumoso [...]: as nuvens de verão brancas e pesadas como vam que a força vital está sediada num disco, uma bola ou um ovo, às vezes
um grupo de montanhas” (Gatschet 1890, i: xxiv). Um mito (M₅₃₇; id., ibid.: situado na nuca (Boas 1893: 192) e os próprios Klamath atribuíam aos ovos
lxxxi) explica que depois de ter visitado a terra dos mortos, Kmúkamch per- propriedades sobrenaturais (Spier 1930: 102). Quanto ao nome modoc do
correu o caminho do sol até o zênite e lá se instalou numa casa com sua filha. irmão do demiurgo, ele é idêntico ao klamath /wanaka/, que Gatschet (1890,
Gatschet conclui, não se sabe porque, que esta representa o ceú nebuloso do ii: 474) traduz por “jovem raposa vermelha ou prateada, halo solar”, dessa
crepúsculo. Por outro lado, a assimilação que ele propõe, também sem jus- vez citando uma locução indígena como confirmação. E finalmente, dare-
tificativa, entre a raposa, companheiro inseparável de Kmúkamch, e o halo mos a mesma importância que Gatschet (1890, i: lxxx) ao fato de os Klamath
solar (I: lxxxiii), merece atenção: detectamos na América do Sul, com efeito, e os Modoc, que costumam nomear os lugares a partir de referências às
uma afinidade entre o sariguê e o arco-íris, que certas tribos das planícies peregrinações dos demiurgos, chamarem um rochedo em forma de crescen-
da América do Norte transpõem para o cangambá, ou sejam dois animais te, no lago Klamath inferior, de /shapashkéni/, porque, dizem, “Sol e Lua ali
que formam um par semântico (cc: 255), sendo que o segundo desempenha viveram antigamente”.
mais ao norte, como vimos, o papel de companheiro ou de irmãozinho, que Mas, se Kmúkamch conota o sol e seu filho Aishísh a lua, surge um novo
os mitos klamath e modoc confiam à raposa. paralelismo entre as versões norte e sul-americanas da história do desani-
Igualmente apaixonado por mitologia solar, Curtin (1912: xxix, 48-49) nhador de pássaros, e que se revela de vários modos. Em O cru e o cozido,
percebe um simbolismo astronômico que parece ser incontestável no parecia-nos ter determinado que o herói bororo incarna a constelação do
Corvo e que, de modo menos direto, o personagem de seu pai remete às
Plêiades (cc: 233-45, 249-52). Também nesse caso, por conseguinte, os dois
4 . Não fazemos senão voltar a Plutarco, precursor da análise estrutural dos mitos: protagonistas denotam objetos celestes. Mas há mais: sabemos, com efeito,
“Parece-me que não seria despropositado dizer que isoladamente não há uma só
que o mito bororo transforma, invertendo-os do ponto de vista etioló-
dessas interpretações que seja inteiramente perfeita, mas que todas juntas dizem bem
e justamente, pois não é nem a seca apenas, nem o vento, nem o mar, nem as trevas,
gico, mitos jê cujo herói é também um desaninhador de pássaros do qual
mas tudo o que é nocivo e tem parte em destruir e estragar, tudo isso se chama Tífon” o cunhado, em vez do pai, quer se livrar. Pois bem, pelo menos entre os
(p. 68). E também Benveniste (1969: 60): “É um termo de sentido geral que é aplicado a Xerente, cada um deles remete a um astro, por intermédio das metades
uma realidade específica e passa a ser sua designação, não o inverso”. sociológicas a que pertence, chamadas respectivamente do sol e da lua. E

42 | Primeira parte: Segredos de família A criança escondida | 43


assim reencontramos Kmúkamch e Aishísh, embora o papel dos persona- ii. Mulheres desmioladas e virgens ajuizadas
gens seja invertido. Pois os Xerente atribuem ao desaninhador a metade sul
e solar, e a seu perseguidor a metade norte e lunar (cc: 83-84). Já no volume
anterior (M₄₉₅, omm: 351-52) havíamos chamado a atenção para a persistên-
cia das conotações astronômicas em mitos norte-americanos que transfor-
mam a história do desaninhador de pássaros, e voltamos a verificá-la, mas
desta vez em mitos inteiramente fiéis ao protótipo. O problema específico
colocado pela inversão das afinidades solar e lunar dos dois heróis será reto-
mado mais adiante (infra, p. 61-62).
Convém notar, finalmente, que tanto entre os Jê como entre os Klamath e Mir schaudert das Herz,
os Modoc, sol e lua têm participação preponderante em duas séries míticas es schwindelt mein Hirn:
complementares, a do desaninhador de pássaros, como acabamos de recor- bräutlich umfing
dar, e uma outra em que os dois astros, que são irmãos, um primogênito e die Schwester der Bruder!
um caçula, em vez de pertencerem a gerações diferentes, se veem envolvidos Wann ward es erlebt,
em aventuras por vezes cômicas nas quais o caçula morre por imprudência daß leiblich Geschwister sich liebten?
e seu irmão mais velho, mais ajuizado, fica encarregado de ressuscitá-lo. A r. wagner, Die Walküre, 2º. ato, cena 1
esse respeito, basta comparar as desventuras de Sol e Lua em várias versões
jê (cf. M₁₆₃, cc: 297-98) com as de Marta (ou Vison) e Doninha segundo os
mitos klamath e modoc a que aludimos brevemente, para convencer-se de A análise dos mitos klamath teria certamente parado por aí se não fosse pelo
que cá e lá as estruturas mitológicas são estreitamente aparentadas. aparecimento, por volta de 1955, por uma dessas felizes circunstâncias com
que os etnólogos às vezes se deparam, de uma versão mais completa e coe-
rente da gesta de Aishísh — de que Gatschet, Curtis e Stern tinham coletado
apenas fragmentos (M₅₂₉-M₅₃₁) —, milagrosamente preservada na memó-
ria de uma informante, apesar das lacunas certamente numerosas, já que —
ela mesma se lembrava —, antigamente, eram necessários vários dias para
contar o mito completo.
O que torna essa versão preciosa é o fato de começar expondo em detalhe
os antecedentes do episódio enigmático com que inicia o relato de Gatschet,
no qual a protagonista faz uma pira para queimar o corpo de uma feiticeira
e, em seguida, lançar-se ela mesma com seu bebê, sem que se saiba quem é
uma ou porquê a outra quer se suicidar.
Mais ricas que as versões de Gatschet, as de Curtis (M₅₃₁a) e de Stern
(M₅₃₁b, inédita; cf. infra, p. 145) já davam motivo ao episódio, mas se limita-
vam a explicar que a feiticeira tinha matado um irmão incestuoso que, como
sua irmã, surgia abruptamente no início da narrativa e cuja origem apenas
a versão mais recente de Barker conta. Barker (1963a: 22) confessa ter ele
mesmo ficado surpreso por sua informante encadear essa primeira histó-
ria ao mito de Gmokamch (= Kmúkamch), observando “jamais ter visto o
mito começar desse modo”. Mas acabamos de lembrar que as narrativas de

44 | Primeira parte: Segredos de família Mulheres desmioladas e virgens ajuizadas | 45


Gatschet, Curtis e Stern já sugeriam a existência de uma sequência inicial, ao Quando o sol se levantou, eles o interrogaram, e como ele não lhes dava atenção, a
reservarem para ela um ponto de inserção. Consequentemente, o ressurgi- menina atravessou-lhe a bochecha com uma flecha, que deixou uma marca preta que
mento da versão Barker entre os Klamath, numa época em que se acreditava ainda se pode ver. O astro ferido suplicou-lhes que retirassem a flecha, e concordou em
que nada ou quase nada restava de suas antigas tradições, é mais inesperada falar. Disse que quem os tinha tornado órfãos vivia na água, e mostrou o lugar exato.
do que surpreendente. Compreender-se-á portanto que, correndo o risco de Quando o inverno chegou, a irmã quis ir até lá com o irmão, dizendo que iriam
cansar o leitor com uma narrativa longuíssima, tratemos seu resumo e seus pescar no escuro. Noite após noite, traziam grandes quantidades de peixes e de aves
comentários com uma atenção pia. aquáticas. Até que, finalmente, ouviram o grito da assassina: “Gochgochgochgodjip!”
A avó também ouviu, e pressentiu que um dia, descarregando o peixe, encontraria
M 538 KLAMATH: A GESTA DE AISHÍSH a cabeça cortada de sua filha no cesto. E foi isso que aconteceu, para o seu grande
desespero, pois ela amava a filha, apesar de ela ter exterminado toda a família.
Era uma vez uma mulher, mãe de vários filhos, entre os quais uma filha, que tinha Com medo de que a velha ficasse brava, os jovens resolveram fugir pelo fogo
uma longa cabeleira vermelha e se casou, dizem, com alguém lá dos lados de Goswa- da casa. Recomendaram a todos os utensílios domésticos que não os entregassem
di [uma localidade a nordeste do lago Klamath superior (Spier 1930: 16; Barker 1963a: e fecharam com uma brasa o buraco que tinham feito nas cinzas para sair. Mas
96; 1963b: 158)]. Mas ela voltava frequentemente para junto da família, porque esta- tinham esquecido de avisar a sovela, que mostrou à velha como eles tinham escapa-
va apaixonada pelo irmão caçula e sempre exigia que ele a acompanhasse na volta. do. Ela foi imediatamente atrás deles.
Certa vez, eles tiveram de acampar no caminho para passar a noite, e a moça foi Os fujões tinham uma dianteira de vários dias. [Aqui começa a versão de Curtis]
para junto do irmão que dormia. Ele acordou, e ficou chocado por encontrá-la colada Certa vez, o menino perdeu uma flecha numa árvore e pediu à irmã para buscá-la.
nele: “Que doida! Querer ser a mulher do próprio irmão!”. Ele se levantou sem fazer Ela se recusou, a menos que ele lhe dissesse exatamente qual era a relação de paren-
barulho, colocou um galho grosso em seu lugar e voltou para a aldeia. Quando con- tesco entre eles. “Você é minha irmã? — Não. Minha tia? — Não. O quê, então? Minha
tou o ocorrido à mãe, ela augurou as piores calamidades. mãe? — Não.” Ele propos todos os graus, mas a moça os recusava, até que a palavra
O sol já estava alto quando a moça acordou. Furiosa por se ver abandonada, ela “esposa” foi pronunciada. Então, por insistência da jovem, eles se uniram, e apesar de
provocou um imenso incêndio que se espalhou e queimou seus irmãos e as mulhe- serem irmãos, passaram a viver como marido e mulher.
res deles, mas não a mãe, que ela quis poupar. Remexendo nas cinzas, a velha encon- A avó, que havia previsto esse desenlace, seguia os dois. Examinando as cinzas
trou o cadáver de Cotovia, uma de suas noras, que estava grávida e tinha protegido das fogueiras que eles acendiam, ela notou uma depressão formada pelo ventre da
a barriga debaixo de um morteiro. De suas costas carcomidas pelo fogo, a sogra con- neta, e entendeu que ela estava grávida. Encontrou também uma pele de urso que
seguiu tirar duas crianças, um menino e uma menina. Pressentindo que a menina seu neto, agora adulto, tinha matado, e a vestiu.
seria igualzinha à tia malvada, ela colou as crianças com resina e fez delas uma única Nesse meio tempo, a criança nasceu e o rapaz, conforme o costume, foi se isolar
criatura, com duas cabeças e de sexo masculino. Recomendou ao menino que jamais no mato para rezar, jejuar e pedir proteção aos espíritos. A velha transformada em
se curvasse para ver a própria sombra e que nunca atirasse uma flecha para o céu. ursa encontrou-o, matou-o e comeu-o. Depois, apresentou-se à neta e pediu algo
A criança cresceu e desconfiou de algum mistério. Um gênero de ave chilreadora, para beber. Enquanto a avó matava a sede, a neta enfiou-lhe no ânus pedras em bra-
o maçarico kildir (Charadrius vociferus), convenceu-o a atirar para o ar. A flecha caiu sa. Depois, dizendo que queria fazê-la vomitar o excesso de água que tinha bebido,
na vertical e separou as crianças. O menino, que nunca tinha visto a outra cabeça, pisou-lhe no estômago e as pedras, misturadas com a água, levaram-na à ebulição.
ficou muito espantado ao encontrar uma menina ao seu lado. Ela lhe revelou que Cozida por dentro, a ogra morreu.
era sua irmã. Quando voltaram para casa, a avó teve de se resignar diante do fato
consumado. Faremos aqui um breve intervalo na narrativa para observar que este é o
A menina sempre acompanhava o irmão nas caçadas e não parava de lhe fazer ponto onde começa a versão Gatschet (M₅₂₉). A partir daqui, os dois relatos
perguntas: “Quem somos nós? Por que não temos nem pai nem mãe? Por que vovó permanecerão paralelos, mas a versão recente difere em vários pontos de
está sempre chorando? Por que nós vivemos assim? Vamos perguntar para o sol, e suma importância, além de ser mais rica do que a outra. Por isso iremos
atirar nele se ele não quiser responder”. acompanhá-la na íntegra.

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A jovem fez uma pira, ateou-lhe fogo e, com o bebê nas costas, se preparava para jogar- que dormia com Kmúkamch, apesar de saber perfeitamente que ele não era o seu
se nela. Kmúkamch [para simplificar, mantemos transcrições próximas às de Gatschet] marido. Ave-das-Neves tinha um filho. Foi ele o primeiro a ver o pai e a reconhecê-lo.
viu a cena do alto de uma encosta onde estava e admirou o bebê. No momento em Aishísh (supõe a narradora) recuperou suas esposas.
que a mãe saltou, ele atingiu o bebê com um golpe de maça e lançou-o longe. Pegou-o, O herói mandou o filhinho jogar no fogo os corações de Kmúkamch (a narradora
tentou em vão prendê-lo à testa, ao pescoço... e finalmente enfiou-o no joelho. diz que ele tinha vários); eles explodiram nas chamas e produziram um piche viscoso
Voltou para casa mancando e queixou-se à filha de ter a perna inchada. Ela perce- que cobriu toda a terra. Aishísh colocou a família num abrigo, mas Galinha-d’Água
beu um abcesso, furou-o e viu cabelos. A criança saiu aos berros. Pai e filha lhe propu- quis ver o que estava acontecendo e ficou com manchas em volta do nariz. A narra-
seram todos os nomes que lhes passavam pela cabeça, sem sucesso. Só o de Aishísh dora não se lembra se havia uma continuação: “Talvez ela às vezes dormisse enquan-
o acalmou. O menino cresceu e, uma vez adulto, casou-se com várias mulheres: Gali- to os mitos eram contados”. (Barker 1963a: 25-49)
nha d’Água, Garça-Verde, Ave-das-Neves, Esquilo, Pato-Selvagem... Kmúkamch espiava
Esquilo enquanto ela catava piolhos, perguntando-se porque seu filho a preferia a Em lugar de nos queixarmos das falhas de sua prodigiosa memória, enquan-
todas as demais esposas. Pato-Selvagem, com ciúmes, se perguntava a mesma coi- to esperamos pela publicação de documentos inéditos,1 façamos proveito
sa. Kmúkamch começou a desejar a bela nora, e punha no fogo lenha que provocava dos detalhes e episódios novos espalhados por seu relato e que nos permiti-
muitas faíscas, para que saltassem sobre Esquilo e esta, sempre nua debaixo de seu rão dar início à análise.
vestido, tivesse de levantar a saia, mostrando o corpo, para proteger as roupas. Como havíamos anunciado (supra, p. 29) a versão Barker esclarece pri-
Então Kmúkamch resolveu matar o filho. Pensou num meio de fazê-lo durante meiramente o episódio dos porcos-espinho, que aparecia, com menos deta-
algum tempo. Certo dia, viu no campo uma planta, talvez um junco, onde cotovias lhes, já na versão Curtis. Em suas canções provocadoras, também atestadas
faziam ninho. Disse a Aishísh que tinha encontrado um ninho de águias, mas estava na versão Stern (M₅₃₁b), esses roedores revelam ao herói como confeccionar
alto demais para ele, que já estava velho. Convenceu o filho a se despir e subir. O acessórios às suas custas, como colares, mocassins e brincos bordados ou
junco se pôs a crescer. Quando Aishísh chegou ao ninho, onde encontrou filhotes que trançados com espinhos; ele só deixa suas mulheres-inseto depois de ter-lhes
jogou no chão, já não podia mais descer. Preso no alto, sem comida, foi definhando. feito um enxoval completo. Vimos que os mitos sempre apresentam Aishísh
Kmúkamch tomou a pequena Esquilo por esposa. como dono das belas vestimentas. O fato de esse poder se originar em sua
As irmãs Borboletas, que voavam em volta da árvore, pegaram um fio de cabelo estadia junto aos animais prestativos nos aproxima ainda mais das versões
no ar, e quiseram saber de onde vinha. Descobriram Aishísh esquelético, já quase sul-americanas da história do desaninhador de pássaros: o herói bororo
morto de fome e sede, ajudaram-no a descer e o acolheram. Ele ficava o tempo todo inventa o arco e as flechas para expulsar os lagartos que o cobrem de sujeira
deitado perto do fogo, o que não o impediu de se casar com outras tantas mulheres: ao se decomporem, ao passo que Aishísh inventa os adornos e acessórios
as irmãs Borboletas, Gafanhoto, Formiga e muitas outras. enquanto está coberto de poeira pelos porcos-espinho que o atormentam.
Todos os dias, os porcos-espinho vinham dançar em cima de Aishísh, cobriam-no No primeiro caso, trata-se de uma sujeira molhada e, no segundo, de uma
todo de poeira e provocavam: “Alguém vai nos cortar os pulsos?”. Aproveitavam-se sujeira seca, já que os termos indígenas /boq/ e /nkililk/, empregados pelo
do fato de ele estar doente, mas assim que ele melhorou ele os matou, cortou-lhes mito, evocam respectivamente um pó esbranquiçado (a forma verbal apre-
os pulsos e os tornozelos, e com seus espinhos fez colares para suas mulheres. É por senta o duplo sentido de “estar empoeirado” e “estar ficando grisalho”), e
isso que os gafanhotos têm um colar. Também fez mocassins para elas, e talvez brin- uma poeira leve que levanta facilmente (Barker 1963b: 66, 266). Voltaremos a
cos. Elas tinham muito orgulho de seus acessórios e dedicavam-se à coleta de raízes essa oposição, que não é mais fortuita do que as demais (infra, p. 100).
comestíveis, a não ser Gafanhoto, a preguiçosa, que só cantava e gastava os mocas- É às custas do jaguar prestativo que o herói dos mitos jê correspondentes
sins raspando uma perna na outra. obtém outros bens culturais, como o fogo doméstico e, em algumas versões,
Aishísh ficou com vontade de voltar para casa e se despediu das mulheres. “Agora, o arco, as flechas e o algodão fiado que, entre esses índios quase nus do Brasil
vocês têm tudo de que precisam”, disse, pois tinha providenciado para elas muitas
coisas. Enquanto isso, na terra dele, suas primeiras mulheres estavam inconsoláveis, 1 . Barker (1963a: 1) menciona manuscritos de Spier. Acerca de documentos mais
a não ser por Pato-Selvagem, que estava irritada com a indiferença dele, e Esquilo, recentes, coletados por Stern (1963 e inéditos), veja-se infra, p. 145.

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Central, serve principalmente para fazer adornos trançados ou tecidos. Pois os casos a vítima fica com uma marca preta no rosto. Na galinha d’água, essa
bem, havíamos mostrado em O cru e o cozido e lembrado resumidamente marca é a prova de que o céu e a terra um dia ficaram coladas pela resina. No
em Do mel às cinzas (14-25) que o ciclo sul-americano do desaninhador de sol, a de que um irmão e uma irmã, apesar da resina que fazia deles um único
pássaros pertence a um vasto grupo de transformação que permite passar ser, se descolaram um do outro. O sentido de todos esses fenômenos de parale-
da invenção do fogo de cozinha para a da carne, de um lado, e para a dos lismo, alternâncias e oposições aparecerá quando tivermos construído o grupo
adornos e acessórios, do outro. Verificamos, portanto, que a distância geográ- de transformação de que M₅₃₈ ilustra apenas um estado (infra, pp. 190-96).
fica desempenha uma função comparável à da distância semântica. O mito Convém no entanto chamar desde já a atenção para a arquitetura rigorosa
bororo sobre a origem dos ornamentos (M₂₀) transforma em vários eixos o da primeira parte do mito, ou seja, aquela que falta nas versões mais antigas
da origem da carne (M₂₁) e do fogo de cozinha (M₁, que por sua vez trans- de Gatschet e de Curtis, e na contemporânea de Stern. Se colocarmos à parte
forma M₇-M₁₂). Ao atravessarmos os milhares de quilômetros que separam o o bebê da heroína, que irá tornar-se Aishísh e desempenhará o papel prin-
Brasil Central do noroeste dos Estados Unidos, encontramos um mito sobre cipal na segunda parte, a intriga envolve personagens que pertencem a três
a origem dos ornamentos cuja armação restitui fielmente a que os índios gerações consecutivas: primeiro, a velha mãe, em seguida, sua filha, seus filhos
sul-americanos adotam para explicar a origem do fogo de cozinha. E esse e as esposas destes e, finalmente, seus dois netos. Na geração intermediária,
mito, por outro lado, transforma outros mitos, cuja proveniência geográfica o mito só qualifica três personagens: um rapaz solteiro, que tem de um lado
é entretanto próxima da sua; mas só reproduz a mensagem deles ao preço de uma espécie de irmã incestuosa, casada, conforme nos é dito, com um homem
uma inversão de código. Ora, entre os Klamath, Aishísh, que é um homem, geograficamente afastado e, do outro, uma cunhada chamada Cotovia como o
dá os ornamentos de porco-espinho às suas mulheres, que são insetos. As pássaro que conota a junção entre o céu e a terra (omm: 194). De modo que o
populações norte-americanas que vivem a leste das Rochosas, ao contrário, sistema tem em seus extremos funções semânticas duplamente constrastadas,
atribuem esses bordados a insetos, as formigas, que substituem uma mulher, união/disjunção e eixo vertical/eixo horizontal. No interior desse sistema, e na
para que esta possa oferecê-los ao seu marido (M₄₈₀; omm: 299-301, 316-17). medida em que a ação progride, a mãe vem substituir a filha morta no papel
Considerado isoladamente e em seu conjunto, M₅₃₈ apresenta uma estru- de ogra (no sentido figurado e sexual em relação à primeira, no sentido pró-
tura periódica: entre uma sequência e outra, os episódios se reproduzem. Há prio e alimentar, no caso da segunda), ao mesmo tempo em que a filha, como
três incestos sucessivos: o primeiro, frustrado, de uma mulher casada que vive que expulsa pela mãe da posição que ocupava, toma o lugar da sobrinha, irmã
longe do irmão que ficou na casa de origem; o segundo, realizado, entre um incestuosa como ela, e, simultaneamente, o irmão, que recusa as investidas de
irmão e uma irmã que cresceram colados um ao outro; e o terceiro, de um uma, transforma-se em sobrinho que cede às investidas da outra.
sogro com a esposa de um filho que nasceu como que colado nele. Dois gru-
pos familiares morrem no fogo, juntos ou um após o outro: primeiro irmãos e
suas esposas, depois uma mãe e, em seguida, sua filha. A cotovia intervém duas
vezes: como personagem humana, ela salva seus próprios filhos enfiando-os na
terra e, como pássaro, ela perde a criança de seu cúmplice levando-a para o céu.
Pares de parentes próximos sofrem alternadamente conjunções e disjunções:
irmã e irmão unidos pela resina que os mantém colados um ao outro e separa-
dos pela flecha; mãe e filho unidos pelo fogo (no momento em que vão morrer
juntos) e separados pela maça do demiurgo; pai e filho unidos quando um se
faz grávido do outro e separados quando, ao contrário, ele tenta se livrar do
outro para ficar com suas mulheres. A flecha disjuntora desempenha uma fun-
ção inversa à da resina, ao descolar os gêmeos caindo de cima para baixo. Mas
atirada de baixo para cima, ela desempenha, em relação ao sol, o mesmo papel
que a resina que cai de cima para baixo na galinha d’água, já que em ambos [ 4 ] Rede genealógica do mito M538.

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Apesar de essas comutações se encadearem no transcorrer do relato, seus M 539 MODOC: OS IRMÃOS CELESTES
respectivos fundamentos lógicos apresentam uma notável simetria entre si.
Não obstante os atos criminosos da segunda, as duas mulheres mais velhas No tempo em que os animais não se distinguiam dos humanos, cinco irmãos viviam
são profundamente ligadas uma à outra: a filha poupa a mãe, que por sua na margem sul do lago Klamath. Eram gente muito má. O mais velho era casado
vez se angustia quando sente aproximar-se a hora do castigo de sua filha com Cotovia, e os outros quatro eram solteiros. O caçula se chamava Tûtats. Sua irmã,
assassina, e depois só pensa em se vingar em cima dos netos. A relação entre Tekewas, agora casada com Lontra, que não morava muito longe, era louca por ele
as duas mulheres é, portanto, de contiguidade. A sobrinha, ao contrário, sen- desde que eram pequenininhos. Mas por mais que ela retardasse sua partida sempre
te-se tão distante da tia que a mata com as próprias mãos, muito embora que ia visitar a família, nunca conseguia ver o amado irmão, porque a mãe deles o
se pareça com ela, como não para de dizer a avó ao longo do relato, já que mantinha escondido debaixo da terra num grande cesto de entrecasca, e cuidava
consegue cometer com seu irmão o incesto que a outra queria cometer com para que ele só saisse dali escondido.
o dela. Assim, a mãe, contígua à sua filha, torna-se uma verdadeira ogra, e Certo dia, o rapaz foi levado para o rio para banhar-se e perdeu um fio de cabelo.
transpõe para o sentido próprio a função que a filha desempenhava no sen- Tekewas o encontrou na visita seguinte, e interrogou a mãe. “Mas que tanto você
tido figurado. Simetricamente, a sobrinha, semelhante à sua tia, comete o vem importunar seus irmãos? — respondeu ela. — Você é mulher de Lontra, e tem
incesto verdadeiro e transpõe para o sentido próprio o ato que, ao deitar-se mais é que ficar em casa”. Na vez seguinte, ela trouxe muitos presentes e prometeu
em vão ao lado do irmão, esta só tinha conseguido realizar de modo figurado. dar contas ao irmão que a acompanhasse de volta até a casa do marido. Mas foi recu-
Basta considerar o esquema da figura 4 para ver que a estrutura familiar sando os irmãos um a um, e insistia para que Tûtats a acompanhasse. Ao mesmo
descrita pelo mito de certo modo se dobra sobre si mesma, em três eixos — tempo, pediu ao sol para acelerar seu curso e se pôr o mais cedo possível.
a mãe aplicada no lugar da filha, o tio e a tia virtualmente incestuosos no do Como os irmãos não queriam de jeito nenhum que ela passasse a noite ali, resol-
sobrinho e da sobrinha realmente incestuosos, a cunhada que une o alto e veram pegar Tûtats, pentearam seus longos cabelos que lhe chegavam aos pés e o
o baixo, no cunhado que separa o próximo e o distante — de tal modo que entregaram à irmã, sem ligar para as lágrimas e os protestos do menino.
o conjunto forma um sistema perfeitamente fechado de que nada pode sair, Ele andava atrás dela chorando. Tekewas falou tão duro com o sol que ele ficou
exceto Aishísh, com cuja gesta o relato prosseguirá. com medo e desapareceu no horizonte. Eles tinham de acampar. Os dois se deitaram
e, assim que o irmão adormeceu, a irmã foi encostar-se nele. O movimento acordou
! o menino, que aproveitou enquanto a moça dormia, colocou um pedaço de madeira
em seu lugar e foi correndo avisar os irmãos do perigo que corriam. Porque ele acha-
Quem é afinal essa irmã incestuosa? A versão Barker a descreve por meio de va que a irmã ia matá-los todos.
uma perífrase, “a mulher de cabelos vermelhos do rio Sprague”, o que só nos Os irmãos pediram a Aranha para colocá-los em seu cesto e içá-los até o céu.
informa acerca de seu aspecto físico e da região na qual ela vive com o mari- Tekewas apareceu e, com raiva por ter sido passada para trás, pôs fogo na casa. Aranha
do, a nordeste do lago Klamath superior. O lugar chamado Goswadi se situa, tinha proibido os irmãos de olharem para baixo antes de terem chegado no alto, mas
com efeito, na extremidade norte do lago, mais ou menos na altura da con- um deles se debruçou para ver. Imediatamente, o fio quebrou, e os cinco caíram no fogo.
fluência entre o Sprague e o rio Williamson, que deságua no lago um pouco Enquanto isso, mãe e filha lutavam com remos. Tekewas fez a arma da adversária
abaixo (fig. 5) [p. 64]. O mito não especifica o animal aquático com grito cair no fogo e usou a dela para empurrar os irmãos um por um. Agora elas lutavam,
característico em que ela se transforma após ter perpetrado seus delitos. a mãe ao sul e a filha ao norte do braseiro. A mãe conseguiu tirar do fogo o coração
Uma versão modoc muito antiga, obtida por Curtin de uma índia deportada de Tûtats e transformou-o no monte Shasta. Depois tirou os outros quatro corações,
em 1873 para o Oklahoma, permite resolver esses enigmas, mas não sem colocar e os transformou em montanhas mais baixas.2
um outro. Pois essa versão, tão complexa quanto a Barker, encadeia a história
da irmã incestuosa na gesta dos dois irmãos celestes em que se reconhece cla- 2 . Os Klamath e os Modoc, que antigamente incineravam seus mortos, se lembravam
ramente as crianças coladas, mas que à primeira vista não tem relação alguma ainda em 1925-26 de que os corações eram a parte do corpo mais difícil de queimar
com a gesta de Aishísh, e tampouco com a história do desaninhador de pássaros: (Spier 1930: 72).

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Certa de ter matado os irmãos, Tekewas voltou para o domicílio conjugal. Sua Eles andaram em direção ao levante, pois queriam tornar-se serviçais do sol. Na
mãe foi procurar Cotovia, que também tinha morrido, depois de dar à luz gêmeos. A margem sul do lago Tule, visitaram sua tia Pato, esposa de Serpente (bull snake) e
velha apertou um contra o outro e eles formaram uma única criança, que ela cha- lhe ensinaram, bem como a todos os demais animais, a não mais fazer os filhos pela
mou de Wéahjukéwas. Ela cavou uma fossa e a escondeu dentro dela. testa. Mataram o tio e transformaram seus restos em rochedos e serpentes.
Pouco tempo depois, Tekewas voltou a atormentar a mãe com suas visitas. Quan- Continuando a viagem para o leste, tiveram uma série de aventuras no decorrer
do viu um pequeno cobertor esquecido, entendeu que o bebê de Cotovia estava das quais vários locais receberam sua configuração atual. No caminho, eles refletiam:
vivo. A velha negou, mas fez o neto crescer bem depressa por meio de magia, e lhe o mais velho dizia que preferiria servir o sol, e o caçula preferia a lua, para passar des-
recomendou para sempre ficar escondido no mato alto. O menino começou a caçar percebido. E o outro retrucava: “Mas se nos virem sempre, ficarão à nossa espera, e se
passarinhos e aprendeu a língua deles. Certo dia, notou que sua sombra era dupla. alegrarão quando surgirmos”.
Atirou uma flecha na vertical e, ao cair, ela separou os dois corpos de que ele era for- Chegaram à casa do ogro Yaukùl, que tinha dois serviçais, Gralha e Piolho. O mais
mado. Transformou o irmão em bebê e criou-o às escondidas. Dizia à avó que perdia velho o venceu na luta e o matou. Ele se transformou em ave de rapina que pesca
todas as suas coisas, para obter da avó mais comida, roupas e instrumentos de caça. peixes mortos, e seus dois serviçais, nos bichos cujos nomes tinham. Contrariando
Ela acabou notando que ele só tinha uma cabeça, e ele teve de confessar. A velha as recomendações da tia Pato, atravessaram montanhas para continuar se dirigindo
recebeu as duas crianças e escondeu-as ainda mais cuidadosamente do que antes. ao leste, como queriam, e lá deram com um oponente ainda mais terrível, Yahyáhaäs,
Tekewas continuava atormentando a mãe, que em vão gritava: “Vá embora! Você o gigante de uma perna só. Enfrentaram-no cinco vezes seguidas e o venceram, ou
matou seus irmãos. Estou velha. Mate-me também, se quiser, mas pare de me infer- conseguindo quebrar seu cachimbo, enquanto o deles resistia a todos os golpes, ou
nizar. Vá embora e me deixe em paz!”. Mas a malvada tinha percebido sinais das na luta. Finalmente, condenaram o gigante a errar eternamente pelas montanhas, e
crianças. Um dia elas feriram um pato de coleira branca que prometeu fazer-lhes a aparecer em sonho para os xamãs, que se tornaram seus serviçais. O gigante, em
revelações se eles tirassem a flecha da ferida. Contou-lhes então a história de seus compensação, condenou-os a virar aparições, estrelas, “causa pela qual, entre o verão
parentes e avisou-os de que a tia queria matá-los também. Agora ela morava num e o inverno, os humanos combaterão uns aos outros”. Os irmãos se transformaram
lago, na forma de um pato e, quando retomava a forma humana, tinha longos cabe- em estrelas visíveis antes do alvorecer no final do inverno, que anunciam a prima-
los vermelhos. Se quisessem, podiam matá-la, mas sem dizer à avó o que pretendiam, vera. (Curtin 1912: 95-117).
porque ela certamente iria avisar a filha, já que poderia tê-la matado e salvado o pai
deles se tivesse querido. Substituímos os nomes próprios por seus equivalentes semânticos, sempre
Os meninos partiram ao encalço do pato e conseguiram com a avó uma canoa, que Curtin indica uma tradução, o que não acontece em vários casos, mas
flechas longas e uma faca afiada. Um dia viram à flor da água longos cabelos verme- às vezes é possível suprir as lacunas. Yaukùl, por exemplo, significa “águia
lhos e uma cabeça horrorosa; era a tia, que os provocava e ameaçava. Primeiro ela calva”, como indicam tanto a descrição do animal no qual os dióscuros o
tentou fazer a canoa virar, colocando todo o seu peso na borda. A avó ouvia seus gri- transformam quanto o homófono klamath /yawql/ que tem esse significado
tos, mas eles a tranquilizavam, dizendo “pertencemos à terra, ela não nos fará mal”. (Barker 1963b: 466). Do mesmo modo, o destino a que os vencedores conde-
Quando Tekewas tentou virar a canoa mais uma vez, eles lhe cortaram a cabeça. O nam Yahyhaäs remete evidentemente à palavra klamath /yayaya-as/ (Barker
sangue enegreceu toda a água; ela continua assim naquele lugar. Jogaram o corpo 1963b: 467; /yay’ahy?as/), “poder enfeitiçante que inspira o mago quando ele
num redemoinho cercado de rochedos e lhe disseram: “Você não meterá mais medo. lança malefícios, que os índios chamam de veneno de xamã” (Gatschet 1890,
Será pequena e fraca, e dirão que sua carne é ruim demais para ser comida”. O espíri- ii: 100). Devemos ser mais prudentes na interpretação dos nomes da irmã
to da morta imediatamente alçou vôo na forma de uma ave feia. incestuosa Tekewas e de seu irmão Tûtats. Poderia o primeiro estar relacio-
Depois, os meninos mataram muitos patos e, enquanto a avó estava ocupada reco- nado ao radical klamath /tak/, que conota a cor vermelha?3 Como vimos,
lhendo-os, pediram ajuda ao fogo, à água, à madeira, aos arcos e às flechas, ao pilão e
ao cesto, às escavadeiras, a todos os objetos domésticos. Mas esqueceram a sovela. E ela 3 . Observamos ainda, mas sem insistir nessa via, a semelhança talvez superficial entre
revelou à velha, enfurecida por ter encontrado a cabeça cortada de sua filha debaixo da o nome /tekewas/ e o da heroína modoc /letkakawash, latkakawas/, cujo personagem
pilha, que os dois meninos tinham fugido por um buraco perto da fogueira. inverte, em M₅₂₉ e M₅₄₁, o da irmã incestuosa de M₅₃₉ (cf. infra, pp. 56, 65-68).

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a versão klamath chama a personagem de “mulher vermelha”, e a versão — em si amorfa — as imagens e incidentes mais apropriados para servir a
modoc também insiste nessa cor, indicando que, vista de longe, a mulher seu desígnio. Segundo nosso autor, essa ideia seria a de um incesto catas-
parece ser toda vermelha (l.c.: 96, 99). Quanto ao nome Tûtats, por sua vez, trófico que ameaça a ordem do mundo, e de que as vítimas procuram se
é tentador aproximá-lo do klamath /túta/, “tirar, apanhar, retirar” (Gatschet vingar. Porém, além de esse enunciado simplista descartar toda a substância
1890, ii: 423), tendo em vista que o herói é retirado de seu esconderijo sub- concreta do mito — quando cada detalhe é, como veremos, rigorosamente
terrâneo e, por outro lado, que um herói desenterrado se chama Tulchucher- motivado —, não busca nem ao menos explicar os denominadores comuns
ris na mitologia dos Wintu, e que esse nome significa “pessoa ou coisa tirada de várias versões, a começar por aquele que foi escolhido para identificar
do solo” (Curtin 1899: 121; cf. também o nome Xaxōwilwal, “o desterrado”, o mito, justamente por parecer tão constante e importante, que é a trans-
do mesmo herói entre os Hupa, Goddard 1904: 135-49, ou Wanátcaláiyawēk formação da irmã incestuosa em mergulhão. Ainda mais grave é o fato de
em wiyot, Reichard 1925: 162-65). tais pressupostos obrigarem ao mesmo tempo a introduzir no mito ideias
A primeira parte do relato, em compensação, nada tem de equívoco. Ela gratuitas, como a de que o bem-estar “da família e da coletividade exige que
restitui na íntegra o célebre mito conhecido pelo título de “Dona Mergu- se consiga esconder o belo menino” (l.c.: 122). Mostraremos que a solução
lhão”, de que Demetracopoulou (1933) recenseou e analisou umas quinze para o problema do menino escondido é muito mais simples, bastando para
versões, todas provenientes do norte da Califórnia. Cabe agora acrescentar isso ir buscá-la na matéria dos mitos, e não na mente do mitógrafo buscan-
a versão klamath, do sul do Oregon, que o autor não tinha como conhecer, do a todo custo uma interpretação: um menino querido por seus parentes
e as variantes chinook, ainda que restritas à história do gêmeo desdobrado, e escondido por eles numa fossa subterrânea no meio da casa da família
pois que constatamos, pela versão klamath, que esse episódio desempenha apresenta uma imagem simétrica à de um menino detestado por seu afim e
um papel fundamental na narrativa. De modo que, sempre que ele aparece, isolado por ele no mato no alto de uma árvore; ou seja, o menino escondido
pode-se inferir que o mito da Dona Mergulhão também está presente, seja é o inverso do desaninhador de pássaros.
de forma direta ou modificada. O estudo de Demetracopoulou é tão útil que Antes de chegarmos a esse ponto e podermos fornecer a prova dessa
não se pode censurá-lo pelas falhas do método — o único disponível na equivalência, teremos um longo caminho a percorrer, para conectar as eta-
época — que ele aplica, inspirado na escola histórica. Já as refutamos (omm: pas da transformação umas às outras. Começaremos por expor a economia
186-91). De um lado, o mito é arbitrariamente definido, desconsiderando e a distribuição do mito da Dona Mergulhão, servindo-nos da versão sincré-
totalmente a possibilidade de ele não ser um discurso isolado cujo enuncia- tica feita por Demetracopoulou (1933: 107-08).
do empírico basta para caracterizar, em vez de um estado local ou momen- Os parentes de um menino excepcionalmente belo o escondem de todos,
tâneo de uma transformação que gera vários outros, todos regidos pela mes- especialmente das mulheres. Uma mulher, que é muitas vezes irmã do herói,
ma necessidade, de tal modo que o objeto real a que a análise se refere se pega no chão um fio de cabelo de aparência admirável e resolve querer seu
situa no nível do grupo, e não de uma ou outra de suas propriedades. Além dono por marido. Ela o acha, leva-o consigo, consegue fazer o sol desapare-
disso, o mito, já recortado segundo critérios subjetivos do conjunto do qual cer e aproveita a noite para dormir com o adolescente, que resiste às inves-
faz parte, e de cuja existência nem mesmo se suspeita, é por sua vez des- tidas de sua sequestradora ou então não pode ceder, porque seus parentes,
membrado em incidentes, elementos ou motivos que não se define com rigor antes de sua partida, encontraram um meio de impedir a cópula. Ele foge e
e que se deixa vagar à mercê de caprichos ou esquecimentos, comodamente deixa um pedaço de madeira em seu lugar.
imputados aos contadores, que seriam perdidos numa versão, recuperados Temendo a cólera da mulher, toda a família resolve se refugiar no céu,
em outra, cedidos ou tomados de empréstimo entre diferentes sistemas míti- com ou sem a ajuda da aranha. Um passageiro comete o erro de olhar para
cos, e sempre “desprovidos de propriedades intrínsecas capazes de explicar baixo durante a ascensão, a corda rompe, ele e os companheiros caem num
sua coalescência tendo em vista um determinado arranjo que daria origem incêndio, deflagrado pela perseguidora, a menos que eles mesmos tenham
a um mito” (Demetracopoulou 1933: 120). Nessas condições, se o mito sob ateado fogo à casa antes de fugirem (M₅₄₅a). Esse incêndio geralmente assu-
investigação apresenta alguma unidade, esta só pode provir de alguma ideia me proporções cósmicas. Queima as vítimas do acidente, de que só restam
central que, para adquirir uma forma sensível, tem de buscar numa tradição os corações, que a criminosa recolhe, fazendo deles um colar. Ou então um

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dos corações salta para fora das chamas e vai cair numa terra distante, onde M 540 MODOC: A DONA MERGULHÃO
é achado por duas irmãs, que reconstituem o corpo a partir do órgão, ressus-
citam-no e casam-se com ele. Cinco irmãos lince e suas duas irmãs viviam juntos. Todos os homens eram casados,
Segundo outras versões (entre as quais as dos Klamath e dos Modoc), exceto o mais novo. Sua beleza era tão grande que seus pais o mantinham preso
uma das vítimas do incêndio dá à luz postumamente bebês que a avó junta debaixo da terra num cesto. Tiravam-no de lá todas as noites, para lavá-lo, penteá-lo e
num ser único e que mais tarde recuperam a autonomia. Essas crianças, ou alimentá-lo, e o recolocavam em seu esconderijo antes de os irmãos e irmãs acordarem.
então o filho ou filhos do herói ressuscitado (M₅₄₅a), são informados de sua A irmã mais velha, porém, tinha-se apaixonado por ele quando ele era ainda um
origem por um pássaro que pouparam. Matam a malvada, que se transfor- bebê, e não queria se casar com nenhum outro homem. Para a grande indignação do
ma em mergulhão, recuperam os corações e ressuscitam seus parentes. irmão mais velho, ela dormia todas as noites perto da fossa em que se encontrava o
Tal e qual, o mito ocupa um território relativamente restrito, que inclui cesto. Quando o filho do chefe a pediu em casamento, ela se enfureceu, e à mãe, que
tribos contíguas do norte da Califórnia e também, como vimos, do sul do tentava convencê-la, disse: “Se você quer tanto tê-lo em casa, case você com ele”. Ela
Oregon. Do sul para o norte, são os Yana, Wintu, Atsugewi, Achomawi, Shas- queria que todos fizessem sua vontade.
ta, Karok e Modoc (Demetracopoulou 1933: 102-03), aos quais agora acres- Certo dia, o irmão escondido contou aos pais que a irmã vinha abrir o cesto
centaremos os Klamath. Essa área de distribuição não mede mais de trezen- para falar com ele. A seu pedido, ele foi transportado para uma ilhota no meio do
tos quilômetros de comprimento, e parece provável que todas as versões oceano.5 Seu irmão mais velho e sua irmã mais nova cuidavam em segredo de seu
tenham uma origem comum. Demetracopoulou apresenta (ibid.: 103-07), a abastecimento.
título de exemplo, uma das que coletou entre os Wintu (M₅₄₅a). Essa versão A mais velha procurava o irmão por toda parte. Acabou descobrindo a ilha onde a
inclui uma lamentação em língua indígena, que o autor não comenta, mas caçula montava guarda, e esta conseguiu fugir de lá com o irmão numa canoa mági-
na qual se pode reconhecer os nomes Anana e Omamut, os protagonistas ca feita de um junco escavado. A irmã mais velha ficou louca de raiva. Numa velocida-
das versões shasta, que se chamam Aniduidui e Ommanutc (Dixon 1910: 14), de prodigiosa, fez círculos ajoelhada e provocou um grande incêndio. A aldeia de seus
ou Ane’diwi’dowit e O’manuts (Frachtenberg 1915: 212).4 Detalhe importante, pais pegou fogo. Alguns de seus habitantes se transformaram em animais, outros
pois veremos (infra, p. 101, 110) que as versões yana, muito embora meri- morreram queimados, entre os quais a família da incendiária. Só a caçula escapou,
dionais, têm os olhos voltados para o norte. Parece-nos, portanto, que não pois ela também era uma feiticeira poderosa.
manipulamos os fatos ao deixarmos as versões klamath e modoc no centro A mais velha recolheu os corações das vítimas e fez deles um colar. Aí foi morar
da discussão. na ilha. A caçula ficou sozinha e vigiou a irmã por muito tempo. Certo dia, aproveitou
seu sono para pegar os corações e cortar-lhe a cabeça, que foi sozinha colar-se de
! volta ao corpo, lançando um longo grito melancólico, ao que a caçula, lançando nela
um punhado de cinzas, respondeu: “Grite o quanto quiser, nunca mais você vai poder
Ocorre que Curtin coletou, em 1884, uma versão modoc mais breve do que queimar as pessoas. De agora em diante, você vai viver na água; quando os homens
a outra, mas contendo elementos originais, que nos permitem fazer a tran- a comerem, dirão que sua carne é ruim e a cuspirão”. A mais velha transformou-se
sição para um outro mito modoc. Este último, fechando um primeiro cír- numa grande ave aquática e afastou-se do lago voando.
culo, leva à história de que partimos, a do nascimento de Aishísh (M₅₂₉), que Graças a uma operação mágica, a mocinha reconstituiu as casas. Recolheu as
a primeira versão Curtin do mito de Dona Mergulhão deixava completa- ossadas espalhadas e as pôs a ferver num cesto. Ela mesma se enrolou numa esteira
mente de fora.
5 . O termo assim traduzido por Curtin não pode designar o mar, e sim, como especifica
o mito mais adiante, uma vasta extensão lacustre. Todos os testemunhos concordam
4 . O nome do herói wintu Talimleluheres, que pode significar “o que foi feito (ou em afirmar que, nos tempos antigos, os Klamath e os Modoc não conheciam nem o
tornado) belo” (DuBois & Demetracopoulou 1930-31: 335), aliás, remete a nossas sal nem o oceano, que os Klamath designavam, aliás, por um composto derivado do
considerações da página 30. jargão chinook, /solcoq/, literalmente “sal” e “água” (Barker 1963b: 79, 384).

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e cobriu o rosto. Ao entardecer, todos os mortos ressuscitaram e voltaram a suas mas apresenta um caráter radical, que permitirá circunscrever melhor o
casas, onde viveram felizes (Curtin 1912: 268-71). campo semântico em que todos nossos mitos se situam.

Essa versão restitui, ainda de modo mais fiel do que a primeira parte de M₅₃₈ M 541 MODOC: GESTA DE AISHÍSH
e M₅₃₉, o mito de Dona Mergulhão. Mas notam-se ao mesmo tempo mudan-
ças significativas em relação às versões anteriores. Em vez de contrair um Antigamente, havia uma moça que vivia com seus cinco irmãos na margem sul do
casamento exogâmico, a irmã incestuosa é uma solteirona convicta. Rejeita lago Klamath. Ela se chamava Látkakáwas. Todos os dias, seus irmãos iam pescar de
um bom partido, e se recusa a deixar a casa da família, para não se afastar canoa perto de uma ilha no meio do lago. Látkakáwas cozinhava para eles, e só saía
do irmão que ama, ao passo que sua homóloga de M₅₃₈-M₅₃₉ apenas visita a de casa para coletar grãos selvagens. Enquanto trabalhava, ela parecia uma velha,
família com mais frequência do que convém. Consequentemente, o retrato mas “quando se sacudia e saía, parecia jovem, azul e belíssima”.
da irmã incestuosa é traçado com mais vigor em M₅₄₀, e para compô-lo, o Kmúkamch, o Ancião [Kumush em modoc; continuamos usando seu nome kla-
mito utiliza cores mais intensas. A comutabilidade entre mãe e filha, que per- math] vivia na margem leste do lago. Todos os muitos homens que viviam na mar-
mitia relançar a intriga dos mitos anteriores, em compensação, mal subsiste gem oeste admiravam a beleza de Látkakáwas quando ela abandonava a aparência
neste, na forma de leve indicação, quando a filha propõe ironicamente à mãe de velha corcunda. Todos os rapazes dessa aldeia tentaram, um após o outro, pegá-la
que se case com o marido que se lhe destina. Na verdade, a intriga de M₅₄₀ de surpresa. Mas assim que chegavam à casa, só encontravam uma velha e, frustra-
não precisa ser relançada, pois que desemboca diretamente na ressureição dos, zombavam dela.
coletiva que em geral conclui o mito da Dona Mergulhão. Durante todo o dia, os irmãos da heroína pescavam e secavam salmões. Só
A protagonista de M₅₄₀ não é apenas transformada de casada em solteira. voltavam à noite. Certa noite, ela se queixou junto ao irmão mais velho das visitas
Ela também se desdobra em duas irmãs de caráter oposto. Aqui tomamos o desagradáveis que recebia. Ele lhe prometeu que, assim que ela tivesse terminado a
verbo numa acepção figurada, mas sem esquecermos que os demais mitos coleta de grãos selvagens, ele a levaria para a ilha, onde ninguém viria atormentá-la.
descrevem um desdobramento que deve ser entendido no sentido próprio, já A oeste do lago, vivia também um rapaz tão belo que seu pai o mantinha escon-
que envolve um personagem formado por duas crianças coladas uma à outra. dido num cesto enterrado no chão. Depois de todos os rapazes da aldeia terem falha-
A caçula de M₅₄₀, que decapita a irmã mais velha e provoca sua metamor- do junto a Látkakáwas, ele foi tirado de seu esconderijo e vestido com roupas luxuo-
fose em ave aquática, desempenha, portanto, o mesmo papel que a sobrinha sas. Ele era “azul, dourado, verde, como as nuvens do céu”, e sua beleza ia além da
de M₅₃₈, que também mata sua tia incestuosa e a transforma em pássaro e que, imaginação. Deram-lhe também poderes mágicos, para que viajasse por debaixo da
contudo, se parece com ela, já que nutre pelo próprio irmão os mesmos senti- terra e surpreendesse a heroína ao nascer do dia. Ela percebeu sua presença, gostou
mentos que a outra tinha em relação ao dela. De modo que, num caso, o mito dele, e não assumiu o aspecto de velha. Mas eles não trocaram nem uma palavra, e
põe em cena uma tia e sua sobrinha, que se opõem embora se pareçam e, no Látkakáwas contou todo o ocorrido aos irmãos.
outro, põe em cena duas irmãs, também de idades diferentes, mas que se opõem Eles resolveram adiantar a mudança para a ilha para o dia seguinte. Ao cair da
porque não se parecem. Vimos que M₅₃₉, por sua vez, transforma a sobrinha e o noite, tinham pescado dois salmões grandes. Iriam prepará-los ao amanhecer, e em
sobrinho de M₅₃₈ em gêmeos de mesmo sexo, entre os quais a intriga, contudo, seguida voltariam para buscar a irmã que, enquanto isso, arrumaria sua bagagem.
introduz uma diferença de idade artificiosa. São irmãos, como as irmãs de M₅₄₀, Mas assim que eles saíram, o visitante do oeste apareceu, e brilhava tanto que a
mas de sexo oposto ao delas, e se parecem no plano moral a ponto de realiza- moça ficou maravilhada.
rem juntos a mesma execução capital de que os outros mitos encarregam um No decorrer da manhã, os irmãos chegaram e começaram a desmontar a casa.
único dos dois personagens, que então a efetua na pessoa do outro. Ao meio-dia, estenderam uma passarela de esteiras até a canoa, para que a irmã
Deixaremos temporariamente de lado este último estágio da permutação, andasse por ela. Ao pôr os pés na embarcação, ela esqueceu completamente seu
para nos debruçarmos sobre o que é ilustrado por M₅₄₀. Este, com efeito, visitante e o amor que ele lhe tinha inspirado. No entanto, ele estava lá, invisível, e
esboça uma inversão de M₅₃₈-M₅₃₉ que agora cumpre considerar, pois per- segurava a canoa. Os irmãos se esforçaram em vão até o meio da tarde, quando ele
tence manifestamente ao mesmo grupo que as transformações precedentes, finalmente deixou que partissem.

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Mas nadava atrás deles na forma de um salmão, para continuar vendo sua ama- Aqui se situam vários episódios seguindo um mesmo modelo, e que agru-
da. Ela estava no meio da canoa, com um dos irmãos. Dois outros estavam na proa, e paremos sob o nome de “sequência iniciática”. O demiurgo envia o filho a
dois na popa. lugares selvagens, assombrados por espíritos. Para obter a proteção deles, ele
Enquanto os irmãos remavam, um deles viu o magnífico salmão azul, dourado e terá de mergulhar na água gelada dos lagos de montanha, carregar e amon-
verde. Fisgou-o e içou-o. Assim que foi trazido para dentro da canoa, o peixe se trans- toar pedras até a exaustão, orar e sonhar. O herói supera todas as provas e
formou em rapaz e morreu. volta munido de poderes mágicos. Poderia então tornar-se um grande che-
Látkakáwas caiu no choro e acusou os irmãos. Desolados, eles incineraram o cor- fe, mas o pai o dissuade disso: “Melhor nos retirarmos para um local ermo,
po numa pira com oferendas de contas e esteiras. Nas cinzas, recolheram um disco onde você conservará todos os poderes que as montanhas e lagos lhe outor-
resplandescente como o sol; era a calota craniana do defunto. “Leve-a para Kmúka- garam, e não será maculado e corrompido pela terra e pelos homens”. Como
mch — disse o asssassino à irmã. Ele está em Nihlaski, em sua estufa. Um fio de se vê, o demiurgo decididamente não defende uma moral de engajamento.
cabelo lhe basta para ressuscitar um homem.” Ele e o filho preferem construir uma bela casa no alto de uma montanha.
A heroína guardou o disco junto ao seio, deu coçadores de cabeça aos irmãos Kmúkamch ocupa a metade norte, e Aishísh, a metade sul. A porta se abria
(quanto a este rito de luto, ver omm: 419) e partiu para nunca mais voltar, a menos para o leste. O mito continua assim:
que o demiurgo ressuscitasse aquele que ela chamava de marido. Ela andou o dia
todo, acampou durante a noite em Koaskisé e, ao amanhecer, deu à luz um lindo Naquela montanha, que eles pensavam não ser habitada, viviam duas mulheres,
menino. Seguindo a prática indígena, amarrou-o numa prancha, colocou-a nas cos- Perereca e Nada, um pássaro (cf. Gatschet 1890, ii: 230; klamath /na’ta/, “pequeno
tas e chegou assim ao demiurgo. pato negro”; Barker 1963b: 275: /n’a.t’a/, “maçarico comum”). Elas se apaixonaram por
A visitante apresentou sua solicitação. Kmúkamch ferveu o disco num cesto cheio Aishísh e quiseram casar-se com ele. O demiurgo prometeu aceitar aquela que se
de água e pedras em brasa, e disse a Látkakáwas para não olhar. Dali a pouco, o rapaz mostrasse mais rápida em pegar e transportar a água de um lago. Perereca voltou
ressuscitou, mas o demiurgo, com inveja da beleza dele, resolveu imediatamente primeiro, porque tinha pegado a água numa poça, mas o herói escolheu a água fres-
matá-lo para ficar com o disco e ao mesmo tempo com a aparência radiosa do rapaz. ca trazida pela outra. O demiurgo cortou Perereca em pedacinhos, que se transfor-
Quando Látkakáwas descobriu o rosto, viu o marido morto, e soluçou enquanto o maram nas pedras que hoje em dia emergem na superfície do lago.
demiurgo preparava a pira funerária. Ela insistiu para que ele pusesse mais lenha, e Sempre em busca da solidão, os heróis foram para o nordeste e acabaram che-
enquanto o cadáver era consumido pelo fogo, levantou-se, colocou o bebê nas costas gando a Lost River, que o demiurgo povoou de salmões e peixes /histis/ (cf. Barker
e saltou nas chamas. O demiurgo só teve tempo de tirar a criança do braseiro. 1963b: 187, klamath /hist’y/, “mullet sp.”). Depois de outras peregrinações, pai e filho
O bebê berrou sem parar até ouvir o nome que desejava receber [Isis, na transcri- se separaram. Aishísh se instalou numa montanha, a leste do lago Tule, e Kmúkamch
ção de Curtin. Continuaremos grafando Aishísh]. O demiurgo pegou o disco no meio foi para o oeste.
das cinzas, e tentou colocá-lo no joelho, debaixo do braço, sobre o peito, na testa e Em sua nova morada, Aishísh tinha várias mulheres: Toupeira, Texugo, Patos e
nos ombros, mas não conseguia fixá-lo de modo duradouro. Conseguiu, finalmente, outras aves, Borboleta... A que se chamava Troglodita (? Gatschet 1890, ii: 437, klama-
inseri-lo abaixo dos rins, e tornou-se imediatamente jovem e belo. E como ele agora th /tcika/, “pequena ave de cor escura que faz ninho na grama”; ou ainda “chaffinch”,
tinha em si o disco “pai de Aishísh”, virou também pai do bebê. isto é, uma espécie de tentilhão; cf. Barker 1963b: 88, /c’ika/, “snowbird, chaffinch”)
O demiurgo foi para o norte, e colocou o bebê no joelho. Duas velhas em cuja casa logo teve um filho. A ausência de Kmúkamch a preocupava.
ele passou a noite fizeram seu parto. Sempre que lhe perguntavam, ele respondia que a Mas ele logo voltou, carregado de sementes em saquinhos que espalhou em
terra tinha lhe dado um filho (cf. Mfdj: “Pertencemos à terra”, supra, p. 50). Depois, insta- todas as direções — é a origem das plantas selvagens. E como ele cobiçava as mulhe-
lou-se a sudeste do lago Tule e criou o menino. Quando ele chegou à idade de casar, os res do filho, quis livrar-se deste.
Mowatwas [“gente do sul”, tribos do rio Pitt, cf. Barker 1963b, art. /mowat/] lhe propuse- Alegando que lhe faltavam penas para empenar novas flechas, mandou-o buscar
ram uma mulher trabalhadora, chamada Toupeira. Corvo transformou todo mundo em filhotes de águia num ninho no alto de uma árvore. Aishísh despiu-se, subiu até o
pedra, inclusive o demiurgo e seu filho. Mas eles logo recuperaram sua forma original e ninho e jogou os pássaros. Enquanto isso, a árvore tinha crescido, por ordem de seu
se mudaram para Leklis [local ao norte do lago Tule, cf. Ray 1963: 209, /liklis/]. pai, e seu cume quase tocava no céu. O demiurgo pegou as roupas do filho e as vestiu.

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Ao retornar, as mulheres no início acharam que ele era seu marido. Ele apressou Dando início à análise desse longo mito, começaremos ressaltando que ele
o pôr do sol, e a noite caiu. Só Borboleta, Texugo, Troglodita e Toupeira desconfia- faz várias referências a costumes reais, como a pesca e secagem de salmões, a
ram. No dia seguinte, elas se recusaram a acompanhá-lo com as outras mulheres até desmontagem da casa de inverno, a cremação dos cadáveres acompanhada
Pitcowa, uma chapada a nordeste do lago Tule, onde iria ocorrer um campeonato. No de oferendas, os banhos de vapor, os ritos de iniciação — descritos com tanta
caminho, o demiurgo ateou fogo ao mato. Como a fumaça não subia em linha reta minúcia que a leitura do texto dessa parte do mito quase equivale a um curso
para o céu, seus companheiros desconfiaram. de ciência religiosa —, as competições de destreza e os jogos de azar. Ao mes-
Enquanto isso, Borboleta e Texugo procuravam o esposo. Acharam-no quase mo tempo, a sequência iniciática inverte de vários modos a que termina M₅₃₉.
morto no alto da árvore, que Texugo tentou em vão arrancar pela raiz. Borboleta con- Primeiro, não se situa no mesmo lugar do mito, pois M₅₄₁ a coloca mais
seguiu subir até o topo. Alimentou Aishísh e untou de gordura de urso seu corpo cedo no relato. Em segundo lugar, esse mito descreve a iniciação do ponto
famélico. Depois levou-o para baixo num cesto. de vista dos homens. Detalha as provas, enumera os locais, evoca as emo-
As duas mulheres cuidaram do herói e o vestiram. Também lhe revelaram o mau ções do noviço, mas deixa no vago os seres sobrenaturais que se manifes-
comportamento de suas coesposas. Após os jogos de azar, começava em Pitcowa tam em sonhos ou alucinações. Do lado oposto dessa opção empírica, M₅₃₉
uma partida de bola. Enquanto o demiurgo se curvava para pegar a bola, um xamã adota uma perspectiva que é a dos próprios espíritos, e os coloca em cena
provocou um vento sul que levantou-lhe a capa. Todos viram o disco em suas costas, na condição de atores. Com eles, os heróis competem em provas sem seme-
igual a uma cicatriz. Reconheceram-no e riram dele. lhança direta com as que os índios em busca de protetores sobrenaturais
Aishísh, curado, partiu com suas duas esposas fiéis. Acendeu fogos no caminho, têm de enfrentar.
cuja fumaça bem reta anunciava sua chegada iminente. O primeiro que viu Aishísh Mas não se trata da mesma iniciação em ambos os casos. Entre os Kla-
foi seu filhinho, cuja mãe errava, desamparada, acampando com a criança e alimen- math, o xamanismo não era privilégio exclusivo de alguns, e todos aqueles
tando-a com raízes. “Pois é — disse-lhe o herói — foram as duas mulheres que eu cujos poderes sobrenaturais ultrapassavam a média podiam pretender a ele
desdenhava que me salvaram.” (Spier 1930: 107); contudo, as revelações comuns tinham de ser solicitadas
O demiurgo tentou de tudo para acalmar o filho. Este ordenou que se fizesse pelos noviços, ao passo que as que determinavam a vocação xamânica entre
uma grande pira, chamou as mulheres infiéis e queimou-lhes os pés. Depois trans- os Modoc dependiam da iniciativa dos espíritos (Ray 1963: 31). Umas se ori-
formou-as em patos e outras aves aquáticas, para servirem de alimento à futura ginavam, por assim dizer, diante do espelho, e as outras atrás. Fica claro que
humanidade. Jogou Kmúkamch nas chamas, e ele foi reduzido a cinzas. Mas nas cin- M₅₄₁ evoca a busca por poder imposta a todos os adolescentes, e até a fun-
zas estava o disco. damenta, já que o herói nele aparece como primeiro iniciado. Na sequência
No alvorecer do dia seguinte, estrela d’alva, que era um amuleto mágico do correspondente, M₅₃₉ relata, ao contrário, a origem da iniciação xamânica:
demiurgo, dirigiu-se ao disco: “Por que é que você está dormindo tanto? Ei, velho, depois de vários espíritos excepcionalmente temíveis, os heróis enfrentam e
levante!”. Kmúkamch ressuscitou imediatamente. A partir de então, viverá tanto vencem o gigante Yahyáhaäs (supra, p. 51), e fazem com que ele se torne espe-
quanto o disco e a estrela d’alva. cial patrono dos xamãs. Os mitos também formulam a oposição de outro
Aishísh descobriu, assim, que seu pai era imortal. Vagou por muito tempo pelas modo: remetem implicitamente ao dualismo típico da sociedade klamath,
montanhas, entoando um canto de uma beleza inimitável. Kmúkamch seguiu-o que traçava uma distinção clara entre o poder do chefe ou homem rico em
durante anos, e acabou alcançando-o. Ele queria se reconciliar com o filho, mas este bens materiais — a língua expressava ambas as ideias pela mesma palavra
não quis: “Vá para onde quiser, e eu mesmo irei aonde tiver vontade. Sinto que você (Spier 1930: 38; Barker 1963b: 212) — e o do xamã. Pois bem, após sua inicia-
não é meu pai. E espero que quando os humanos povoarem a terra, nenhum pai tra- ção bem sucedida, Aishísh poderia tornar-se um grande chefe, mas ele recu-
te o filho como você me tratou”. O demiurgo se instalou perto do lago Tule. Aishísh sa, enquanto os dióscuros de M₅₃₉ instituem o poder mágico dos xamãs e se
metamorfoseou suas três mulheres em texugo, borboleta e troglodita, e depois foi veem imediatamente impedidos de exercê-lo, pois esse mesmo poder lhes dá
viver sozinho no alto do monte Tcutgosi (Curtin 1912: 1-16). um destino diferente. O que isso quer dizer? Aishísh não quer sujar as mãos
lidando com política e, assim, priva os homens da sabedoria e os abandona
aos caprichos do destino. Essa não participação nos assuntos humanos se

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transforma em participação negativa no outro mito, que só evoca o poder Um outro episódio reforça ainda mais a hipótese de uma conotação
xamânico em seu aspecto maléfico, o “veneno” que os adeptos usam para astronômica, desta vez em mitos muito menos afastados. É fácil reconhecer,
lançar sortilégios sobre seus conterrâneos.6 E assim, a um “não-chefe” de no incidente das duas mulheres — uma perereca, a outra pássaro — que
um lado, e a “não-xamãs”, do outro, cabe a responsabilidade pelas misé- pretendem se casar com o herói e que o pai deste submete a um teste, que
rias humanas, um por ter privado os homens do bom chefe que ele mesmo consiste em pegar água, o mito das esposas dos astros longamente discutido
poderia ter sido e os outros, por lhes terem dado maus xamãs. no volume anterior (omm, quarta e quinta partes). Não passa de uma alu-
No final de M₅₃₉, os dióscuros viram estrelas. O paralelismo que aca- são em M₅₄₁, sem dúvida, alusão essa também presente, como veremos mais
bamos de estabelecer com a outra versão reforça portanto a tese de que adiante, entre os Nez Percé (M₆₆₁a, b). Porém, em ambos os casos, trata-se de
Kmúkamch e Aishísh possuem, também eles, uma conotação astronômica. uma oposição entre uma mulher trabalhadeira e uma rã, numa competição
Evidentemente, é preciso manter uma certa reserva diante dos relatos de organizada por ascendentes para decidir entre as duas. E nos dois casos a rã
Curtin, pois ele, tanto quanto Gatschet, era tão obcecado por mitologia solar é preguiçosa, além de suja, pela baba preta que produz ou pela água turva
que é até possível desconfiar da possibilidade de ele ter acrescentado inocen- que traz. No mito das esposas dos astros, as duas mulheres sobem ao céu
temente ao texto detalhes capazes de confirmar sua mania. No entanto, mes- para se casarem com os irmãos Sol e Lua. Neste, elas escalam uma montanha
mo levando tudo isso em conta, não parece duvidoso, a menos que se recuse alta para irem viver na casa de um homem e de seu pai, que apresentam evi-
o conjunto todo, que o verdadeiro pai de Aishísh, e Kmúkamch, seu pai ado- dente afinidade com esses mesmos corpos celestes.
tivo, estão do lado do sol, enquanto Aishísh e sua mãe estão do lado da lua. O Dissemos que vários detalhes do mito modoc refletem a realidade etno-
pai de Aishísh vive eternamente num disco resplandescente que o demiurgo gráfica. O mito é igualmente respeitoso para com a geografia: todos os luga-
incorpora a si e graças ao qual pode, reduzido a cinzas ao anoitecer, ressusci- res nomeados são reais. Durante suas peregrinações, os heróis fazem para-
tar na alvorada atendendo ao chamado da estrela d’alva. A mãe de Aishísh se das em locais que em geral podem ser localizados nos mapas disponíveis.
apresenta ora como uma linda moça, ora como uma velha corcunda, formas Eles modificam a paisagem primitiva, marcam sua passagem criando recur-
nas quais é tentador reconhecer a lua cheia e o quarto crescente. sos ou acidentes naturais — peixes, rochas, vegetação — que são explorados
Já invocamos, em favor desse dualismo astronômico, o que se observa ou observados nos lugares em questão.
nos mitos jê correspondentes (supra, p. 40), notando que as funções astro- No início do mito, estamos na margem sul do lago Klamath. Mas qual
nômicas dos protagonistas se invertem, contudo, quando se passa de um deles? Pois há (ou melhor, havia, já que a região tornou-se mais seca depois)
hemisfério para o outro. M₅₄₁ permite superar essa dificuldade graças ao dois lagos com esse nome, a uma distância de aproximadamente 30 km, o
episódio em que os dois heróis resolvem abandonar a terra e se instalar superior, em terras klamath, e o inferior, em terras modoc. Tenderíamos
numa morada quase celeste, o cume inacessível de uma montanha, onde a escolher o segundo, mas existem dois empecilhos. Vejamos. Nihlaksi,
constroem uma bela casa toda vermelha, de que o demiurgo ocupa a parte morada do demiurgo, onde vai ter a heroína para obter a ressurreição de seu
norte e seu filho, a parte sul (cf. também M₅₃₉, supra, p. 41). Consequente- esposo, é uma elevação situada a uns 12 km da margem leste do lago superior
mente, embora o desaninhador de pássaros e seu perseguidor sejam alter- (mapa em Gatschet 1890, i, /nilakshi/, “alvorada”: xxi). A caminho de lá, ela
nadamente sol e lua, conforme perguntemos aos mitos brasileiros ou aos do faz uma parada em Koaskisé, localidade cujo nome lembra Kohasti na trans-
hemisfério boreal, sua posição permanece invariante em relação aos pontos crição de Gatschet (l.c.), e que não é senão o Gowasdi de M₅₃₈, uma aldeia
cardeais: tanto entre os Modoc quanto entre os Xerente, o perseguidor se no extremo norte do lago superior (cf. também Spier 1930: 16, /kowa’cdi/;
encontra na metade norte, e o perseguido, na metade sul. Passando de um Barker 1963a: 196, /gowasdi/).
hemisfério para o outro, só os astros mudam de lado. Após o encontro com a heroína, o demiurgo vai primeiro para o norte.
Depois, indo certamente na direção oposta (mas o mito não diz), ele se ins-
tala a sudeste do lago Tule, e em seguida em Leklis (Ray 1963: 209, /liklis/),
6 . O que não exclui, aliás, a possibilidade de o poder funesto dos xamãs ser canalizado que fica ao norte. Essa série de idas e vindas leva o herói a Lâniswi (Id. ibid.:
para fins benéficos, como explicam outros mitos (Curtin 1912: 148-58). 208, /lani’shwi/), no extremo sul das terras modoc, e depois para Sla’kkosi,

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de identificação duvidosa (Id. ibid. 1963: 210, /chalklo’ki/, se situa comple- Achomawi, seus inimigos tradicionais), mas que, no mito, vêm oferecer uma
tamente a leste). Nenhuma dúvida, entretanto, quanto à etapa seguinte do de suas filhas em casamento. O espaço mítico adquire assim o aspecto de
circuito iniciático, “Gewa’sni, um lago profundo escavado na rocha no topo patrimônio indiviso. Isso explica que vários locais nomeados possam ser
de Giwa’syaina” (Curtin 1912: 8), pois /yaina/ (Gatschet 1890, ii: 100; Barker localizados no mapa (fig. 5) e que, ao mesmo tempo, certas correspondên-
1963b: 472, /y’ayn’a/) significa “montanha” em klamath, e /gewash, giwash/ cias sejam estabelecidas em versões diferentes — conforme provenham dos
(Gatschet 1890, i: xxx; Barker 1963b: 145, /gi.was/) designa Crater Lake, no Klamath ou dos Modoc — entre locais que podemos considerar como prati-
extremo noroeste do território klamath. Ada’wa, a etapa seguinte, é proble- camente simétricos nas partes norte e sul do território. Apresentamos várias
mática, a menos que se reconheça nela Aga’wesh, que é o nome klamath do razões para supor que a versão modoc começa, como a dos Klamath, às mar-
lago inferior (Gatschet 1890, ii: 16) ou /Agá/ (Ray 1963: 208), localidade a gens do lago Klamath superior, no território destes últimos. Mas como os
sudoeste do mesmo lago. Depois, o herói vai para Ka’impeos (cf. Ray 1963: heróis se dirigem pouco depois para o lago Tule, que fica próximo ao lago
25-26, /ka’umpwis/), ao sul do Clear Lake e na fronteira sul das terras modoc. inferior, tudo se passa como se na verdade partissem deste.
Essa última viagem encerra a sequência.
A montanha inacessível onde os protagonistas se instalam não tem nome,
122o 121o
mas é visível das margens do lago Tule, onde os Modoc (Ray 1963: 18) situam o
43o Klamath
centro do mundo. De lá, os heróis vão para nordeste (Curtin 1912: 11), exploram Crater Marsh
Lake
Mt. Yamsay
Lost River e fazem uma parada em Nusâltgaga (Ray 1963: 210, /nushaltka’ga/),
localidade na curva formada pelo rio ao infletir-se para o norte. Quanto às Summer L.

etapas seguintes, Bla’ielka, “Blaiaga, montanha em que viveram Kmúkamch e

R.
son
Aishísh” (M₅₄₃; Curtin 1912: 37), talvez corresponda aos arredores da cidade

am
Willi
Albert L.
de Bligh ou Bly, no vale do alto Sprague, às portas das terras paiute (cf. Barker kowacdi
1964: 211, /blay/, “acima, alto”; Gatschet 1890, ii: 215, /m’lai/, “abrupto”, forman- Sprag
ue Riv
er
do o nome de várias montanhas). A identidade do monte Kta’ilawetes (de /
qday/, “rocha”?) é incerta. O texto do mito situa o monte Du’ilast, onde os Mt. Pitt
bligh
nihlaksi
heróis se separam, a leste do lago Tule. M₅₄₃ (Curtin 1912: 32) chama pelo mes- Upper
mo nome o Pequeno Shasta que, caso se tratasse da montanha assim desig- Klamath Lake
nusâltgaga
nada pelos mapas, estaria a várias dezenas de quilômetros na direção oposta.
langell
Apesar da distância, poder-se-ia antes pensar no monte Lassen, a aproximada-
valley
leklis
mente 150 km a sudeste do lago Tule, que os Yana chamam de Pequeno Shasta
42o
(Sapir & Swadesh 1960: 172; Kroeber 1925: 338). A identificação do último local Lower Tule L.
Klamath Lake
Goose L.
a ser mencionado, o monte Tcutgo’si, ainda é problemática.
Ainda que se leve em conta as incertezas que permanecem e os erros e
confusões que porventura tenhamos cometido, esse inventário mostra que Clear L.
Upper
Lake
os protagonistas do mito circulam de um extremo a outro das terras modoc
e até mais além, em terras klamath, onde começa o relato, e cuja travessia
Butte
completa Aishísh realiza para visitar as montanhas próximas de Crater Lake. Creek
kaiumpwis
laniswi
Ao território em que transcorre o mito se confere, assim, um valor intertri- Mt. Shasta
bal, acentuado pelo fato de os heróis, residindo a sudeste do lago Tule, isto
é, em plena terra modoc, receberem a visita dos Mo’watwas, “gente do sul”
(nome que os Modoc davam às tribos do rio Pit e mais especialmente aos [ 5 ] Território dos Klamath e dos Modoc.

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É igualmente digno de nota o fato de uma sequência importante do mito ela contraia um casamento exogâmico que a levaria para o oeste — pois a
modoc ocorrer a nordeste do lago Tule, no vale do Lost River. Com efeito, por aldeia dele fica a oeste do lago, e a heroína vive ao sul —, ou seja, uma união
sua configuração topográfica, essa região se parece com aquela, a uns 50 km duplamente inversa da que a irmã incestuosa deseja, quando, na expectativa
ao norte, que é formada pelo lago Klamath superior, a foz do rio Williamson de uma união endogâmica, ela arrasta o irmão para a aldeia em que ela se
e seu afluente, o Sprague, onde a versão klamath situa a intriga. casou, situada a leste daquela em que ambos nasceram. Vê-se, portanto, que
Parece ser particularmente significativo quanto a isso o nome da locali- ao contrário de M₅₃₈ e M₅₃₉, M₅₄₁ põe a irmã dentro, e o menino escondido
dade em que se realiza o campeonato. Segundo Curtin, Pitcowa se encontra fora. Este não é aqui um irmão que ela gostaria de transformar em marido
a nordeste do lago Tule. E Gatschet (1890, i: xx, xxi; ii: 268) designa pelo sacrílego, mas um estrangeiro, um não-irmão portanto; e uma união alta-
mesmo nome (Pitsua), um local também a nordeste, mas do lado Klamath mente recomendável, aliás, já que os dois se apaixonaram um pelo outro à
superior.7 Dir-se-ia, portanto, que conforme se adote a perspectiva espacial primeira vista.
própria dos Klamath ou a dos Modoc, os dois dispositivos funcionam como E no entanto, apesar de seduzida pelo aspecto do belo estrangeiro, a
variantes combinatórias e substituem um ao outro em contextos geográficos heroína de M₅₄₁ nem por um instante sonha em deixar os irmãos. Ao con-
simplesmente deslocados. trário, só quer que eles a retenham de modo ainda mais firme. É como se ela
só tivesse uma paixão na vida: cuidar dos irmãos, colher para eles plantas
! comestíveis e cozinhar para eles. Também nesse sentido ela se opõe, como
nutriz efetiva, à amante em potencial que a irmã das demais versões incarna.
Quando se passa do plano geográfico para o plano semântico, já não se trata De todo modo, trata-se sempre de uma irmã ocupada demais com seu ou
de aplicações simples relativas a espaços homotéticos que podem, de certo seus irmãos, pois o destino normal de uma moça é deixar sua família de
modo, deslizar um sobre o outro e se sobrepor, mas de funções invertidas. origem para viver com o marido, dormir com ele e cuidar dele. Ainda que de
Tanto nas versões klamath como nas versões modoc do mito de Dona Mer- modos diferentes, as heroínas de M₅₃₈, M₅₃₉ e M₅₄₁ são, portanto, igualmen-
gulhão (M₅₃₈, M₅₃₉), a oposição principal se estabelece entre um menino te excessivas. Elas abusam da relação entre irmãos, quer no plano doméstico
escondido, que os pais mantêm perto da casa da família, e uma irmã obceca- e alimentar, quer no plano conjugal e sexual. Todas se mostram incestuosas,
da por desejos incestuosos, embora seu casamento exogâmico devesse tê-la cada qual a seu modo, uma no sentido próprio, a outra no figurado.
afastado física e moralmente dos seus. De modo que, na situação inicial, o A variante modoc M₅₄₀ se situa na passagem entre M₅₃₈-M₅₃₉ e M₅₄₁. Sua
irmão está dentro, e a irmã está fora. heroína recusa o casamento, como a de M₅₄₁, mas pelo mesmo motivo conde-
M₅₄₁ inverte radicalmente essa configuração: sua heroína recusa o casa- nável que impele a de M₅₃₈-M₅₃₉ a voltar para a família, apesar de estar casada.
mento, para não deixar os irmãos, e até deseja que eles façam dela uma Inicialmente escondido debaixo da terra, no meio da casa da família, o jovem
irmã escondida. Entretanto, o verdadeiro escondido é um adolescente, ori- herói de M₅₄₀ é transportado para uma ilha, guardado por uma irmã caçula
ginário de outra aldeia. Ele visita a heroína na esperança de fazer com que virtuosa que prefigura a heroína da M₅₄₁, destinada ao mesmo exílio insular
para escapar do amor de um jovem herói, o qual reproduz o de M₅₄₀, mediante
7 . Curtin especifica que Pitcowa está na parte sul do Langell Valley. Na versão Curtis sua transformação de personagem endógeno em personagem exógeno.
do mito klamath (M₅₃₁a), Aishísh, libertado pelas borboletas, aterrissa em Pitswa, Há mais. A irmã incestuosa e quase canibal de M₅₃₈-M₅₄₀ sofre uma sepa-
“uma depressão no Landsley Valley”. Apesar da ajuda especializada de nosso eminente ração definitiva, ao mesmo tempo da humanidade e de sua própria família,
colega Pierre Gourou, nenhum vale com esse nome pôde ser localizado, mesmo nos quando um membro desta a mata e metamorfoseia seu cadáver em pássaro
mapas mais detalhados do estado do Oregon. Em desespero de causa, consultamos por
mergulhador. O marido potencial de M₅₄₁ se transforma em salmão para
carta o professor T. Stern, da Universidade de Oregon, grande especialista dos Klamath
contemporâneos, que teve a amabilidade de confirmar que não existe nenhum vale tentar se manter unido aos que ele gostaria de transformar em seus afins e
com o nome de Landsley na região, e que certamente Curtis fora traído pela memória. que, ao matá-lo, devolvem-no à sua humanidade original. O mergulhão é
Numa das versões colhidas pelo próprio Stern (1963 e inéditos; M₅₃₁b), as irmãs um pássaro, o salmão é um peixe, ambos ligados à água e migradores num
Borboletas fazem o herói aterrissar “a leste do monte Shasta”. eixo leste-oeste (eixo esse que, como vimos, tem um papel importante nos

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mitos). De fato, os salmões sobem os rios do oeste para o leste, na primavera aliança matrimonial, e a relação antissimétrica irmão/não-irmã torna-se por
e no outono (Spier 1930: 148) e os mergulhões, que passam o verão nos lagos, isso pertinente.
lagoas e rios do interior, se instalam perto da costa ou à beira mar quando A fórmula c) significa que o herói-salmão de M₅₄₁ inverte a heroína-
chega o inverno (Thomson 1964: 212; Brasher 1961-62: 3; Godfrey 1967: 11-12). mergulhão de M₅₃₉-M₅₄₀. Mas M₅₄₁ também a evoca por seu contrário, na
A pertinência da oposição mergulhão/salmão é também evidenciada pelo pessoa da heroína cuja virtude, e não o vício, motiva seu apego doentio aos
modo como os mitos qualificam as duas espécies por atributos contrastados. irmãos. Essa heroína se chama Látkakáwas. Tem o mesmo nome no pri-
Basicamente dois aspectos são por eles ressaltados no mergulhão (“huart” meiro mito que examinamos (M₅₂₉), e que coincide ponto por ponto com a
em francês do Canadá, Gavia immer): sua plumagem de verão, caracterizada segunda parte deste, desde o episódio do suicídio da moça até o final.
por pontos brancos sobre fundo preto em volta do pescoço (fig. 6), que o Vimos que esse nome8 designa um pássaro, o tangará de cabeça vermelha
motivo do colar de corações ser- (supra, p. 26), apto portanto (embora a plumagem brilhante pertença
ve para evocar, e sua carne, decla- exclusivamente aos machos, mas a ornitologia indígena desconsidera esse
rada incomestível, que faz desse detalhe) a imortalizar a lembrança de uma heroína morta numa fogueira.
animal um antialimento. M₅₄₁, As cores vivas do tangará o opõem ao mergulhão pintado de branco sobre
por sua vez, destaca dois aspectos preto. Além disso, o primeiro faz ninho nas árvores, na ponta dos galhos, e
inversos no salmão, suas escamas o outro na terra, à beira da água. E finalmente, as duas espécies não migram
brilhantes e coloridas, “todo azul, no mesmo eixo. No inverno, o mergulhão permanece aproximadamente
dourado e verde” (Curtin 1912: 4) na mesma latitude, pelo menos na região que nos interessa, e se desloca do
[ 6 ] Mergulhão Imbrin (redesenhado a
e o fato de ser alimento excelente, leste para o oeste. O tangará parte ao longe, para o sul. Tudo se passa por-
partir de Snyder 1957: 25) já que os irmãos, como aponta o tanto como se os mitos utilizassem o que chamaríamos de “zoemas”, redutí-
mito, se dedicam inteiramente à veis, como os fonemas dos linguistas, a feixes de elementos diferenciais diver-
pesca e à secagem desse peixe. Na verdade, eles matam o herói transformado samente combinados. As oposições tiradas da experiência inspiram outras,
em salmão para comê-lo, ao passo que o justiceiro ou justiceira dos outros simbólicas. Dona Tangará é casta, mas fértil, e Dona Mergulhão é lasciva,
mitos mata a protagonista condenável para que — especificam — transfor- mas estéril; uma se imola numa fogueira, a outra faz morrer numa fogueira
mada em mergulhão, ela não possa nem mesmo ser comida. todos os seus. O quadro se torna mais rico quando se leva em conta a coto-
Tentaremos formalizar esse complexo sistema, que contém nada menos via (representada no oeste pela espécie Sturnella neglecta), que aparece em
que cinco pares de oposições: M₅₃₈ e M₅₃₉. Colorida de amarelo, como o tangará, mas menos brilhante, ela
faz ninho no solo, e se opõe a ele, portanto, no que diz respeito ao eixo alto-
a) [1heroína 2depravada, 1esposa 3ilegítima de um 4irmão] —Y [5mergulhão] baixo. Mas ela também se opõe ao mergulhão, triplamente, pelo cromatismo,
b) [5salmão] —Y [1herói, 1esposo 3legítimo de uma 4não-irmã 2virtuosa] pela plumagem pouco contrastada e pela terra em vez da água:
c) [5mergulhão] = [5salmão(-1)].
Mergulhão Tangará Cotovia
Nas transformações a) e b), a inversão dos dois membros se explica pelo fato cromático/acromático – + +
de o herói de b) só se tornar um esposo legítimo, aos olhos da mulher e seus marcado/não-marcado + + –
irmãos, depois de sua metamorfose de peixe vivo em homem morto. A hero- alto/baixo – + –
ína de a), ao contrário, é castigada por ter querido ser uma esposa ilegítima terra/água – o +
quando é metamorfoseada de mulher morta em mergulhão vivo. Redundan- n-s/l-o – + +
te, a dupla oposição herói esposo/heroína esposa se reduz à oposição entre
masculino e feminino. Em compensação, se a heroína de b) é uma irmã para 8 . Barker (1963b) fornece em klamath uma fórmula vizinha, /kakkakla.w’as/, “yellow-
seus irmãos, ela é o contrário de uma irmã quando se qualifica no plano da headed blackbird”, Xanthocephalus xanthocephalus.

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Ora, Dona Cotovia não é nem casta como Dona Tangará, nem lasciva como Essa Dona Borboleta, que entre os Sahaptin do interior transforma a Dona
Dona Mergulhão. Fértil como a primeira, ela se mostra esposa fiel, à dife- Raia dos Yurok e de outras tribos costeiras da Califórnia (M₂₉₂d; mc: 264 n. 1),
rença da outra. E acima de tudo, é boa mãe, qualidade que não se pode reco- transforma também as irmãs Borboletas dos mitos klamath e modoc, que aju-
nhecer em Dona Tangará, que se joga voluntariamente numa fogueira junto dam o herói e tornam-se depois boas esposas para ele. Mas, como explica M₅₄₂,
com o filho, que morreria com ela. Vítima de um fogo (acendido por Dona a diferença decorre de Dona Borboleta aparecer aqui fora de estação, como uma
Mergulhão), Dona Cotovia consegue salvar os filhos que traz no ventre: aberração, portanto, confirmando a contrario que, com o papel inverso, a borbo-
leta apareça na boa estação. Em relação à transformação das irmãs Borboletas
Mergulhão Tangará Cotovia em duas esposas, uma borboleta e a outra texugo, formando assim um par dios-
virtuosa/depravada – + + cúrico e portadoras da mesma missão que as precedentes, note-se que ela ocor-
fértil/estéril – + + re em M₅₄₁ após uma outra distorção do mesmo tipo: as duas mulheres pássaro
agente/paciente + + – e rã, pretendentes à mão de Aishísh, apresentam uma relação de oposição mais
incendiada/incendiária – + + marcada do que as esposas dos astros, uma conterrânea, a outra estrangeira, ou
salvadora/destruidora – o + ainda uma humana e uma rã, nos mitos norte-americanos, que sua reaparição
ecoa aqui (supra, p. 58). Tais oposições amplificadas devem certamente ser pos-
O fato de a cotovia aparecer em alguns mitos na qualidade de mulher grávi- tas em correlação com a que M₅₄₁ institui entre os demiurgos, pai e filho, asso-
da e prestes a parir sugere que a ação transcorre no verão. Os demais mitos ciados ao sol e à lua, ao passo que M₅₃₉ a situa mais modestamente entre dois
do grupo que incluem a história do desaninhador de pássaros vão no mes- irmãos que no final viram estrelas gêmeas. Trataremos mais adiante (terceira
mo sentido, já que o ninho abriga cotovias (M₅₃₀, M₅₃₁, M₅₃₈, M₅₆₀) ou filho- parte, iii) dessas questões relativas às transformações do código astronômico.
tes de águia mal saídos do ovo (M₅₄₁). Quer se trate de águias douradas ou Por ora, cabe concentrar a atenção num fenômeno de outro tipo, dire-
de águias calvas, os filhotes não são capazes de suprir às próprias necessida- tamente relacionado ao código etnozoológico, cujo deciframento estamos
des e, por isso, não deixam o ninho definitivamente antes do meio do verão buscando. Existe um mito modoc, que conta em detalhes um dos vários
ou início do outono (Bent 1963, Birds of Prey 1: 300-02, 340). Por outro lado, casamentos de Aishísh, e no qual “aves das neves” desempenham a função
o herói preso na árvore deve sua salvação a borboletas, que mitos provenien- que os outros mitos do grupo atribuem às borboletas:
tes de tribos vizinhas qualificam como insetos migratórios:
M 543 MODOC: UM CASAMENTO DE AISHÍSH
M 542A NEZ-PERCÉ: DONA BORBOLETA
Depois de se instalar no topo do monte Tcugosi (aqui Teutgosi; cf. Mfeb in fine),
Coiote, o demiurgo, estava passeando. Uma Dona Borboleta avistou-o de longe, cha- Aishísh (Isis) primeiro concentrou-se na caça aos cervídeos. No flanco sul da monta-
mou-o e lhe fez propostas. Como ela era bonita e elegante, Coiote cedeu à tentação, nha vivia a velha Yaulilik, com seu filho e suas duas filhas. A família era muito pobre.
mas ela o apertou com tanta força que o esmagou. Jogou então o corpo na água, que A mãe conhecia a reputação de Aishísh, e aconselhou as filhas a se casarem com
boiou à deriva durante um bom tempo e acabou encalhando. Uma pega o ressusci- ele, pois ele lhes daria carne para comer. E alertou-as para não o confundirem com
tou, bicando a gordura. Coiote bateu no quadril e excretou seus filhos (cf. supra, p. 34), Kmúkamch (Kumush), que costumava querer se fazer passar pelo filho.
que imediatamente começaram a brigar. Por isso ele resolveu pô-los de volta para Mesmo assim, quando elas chegaram na aldeia, Kmúkamch conseguiu enganá-las.
dentro, mas antes pediu conselho ao mais jovem, que lhe explicou como vingar-se de Mas Aishísh logo voltou para casa, carregado de carne fresca, e as moças perceberam
Dona Borboleta, empalando-a. Coiote declarou à sua vítima moribunda: “Você não seu erro. Pularam em cima de Kmúkamch e o dilaceraram com seus coçadores de cabeça
vai mais matar ninguém. Os homens logo aparecerão na terra e dirão: veja a borbole- de osso. Só restaram dele o esqueleto e o disco (cf. Mfeb, supra, p. 57). Aí elas foram embora.
ta voando, é a nova estação!” (Phinney 1934: 51-54; MfecB, Boas 1917a: 153-54). Sem o pai, Aishísh sentiu-se só. Partiu uma montanha em dois com uma flechada e
as fujonas não conseguiram atravessar o rio que corria no meio. Aishísh alcançou-as
e cortou-lhes as cabeças. Depois retirou-se para chorar no topo do monte Shasta.

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A mãe das vítimas e seu jovem filho acharam as cabeças, e depois os corpos, que Esse mito, que abreviamos bastante, é importante em vários aspectos. Pri-
tinham-se enroscado em suas redes de pesca. A velha conseguiu ressuscitar as filhas meiro, ele opera uma espécie de corte transversal em todos os que foram
e tratou de descobrir o nome do assassino. examinados até o momento (sobre esse tipo de construção, ver mc: 302-07).
Assim que se restabeleceram, as filhas quiseram ir coletar sementes comestíveis Evoca a história do desaninhador de pássaros, coloca em cena virgens des-
no monte Shasta. Ficaram ali acampadas por vários dias seguidos. Quando escala- mioladas, culpadas, como Dona Mergulhão, de uma união incestuosa (com
va até o topo para pegar água, a mais jovem ouviu uma voz gemendo “Você bebe o pai do homem que deviam tomar por marido), além de assassinas de um
minhas lágrimas!”. Ela pegou um fio de cabelo vermelho e entendeu que pertencia parente (na verdade um afim, em vez de irmãos; e que elas esfolam vivo, em
ao responsável pelo assassinato dela mesma e de sua irmã. No centro de um terreno vez de queimar, mas com o mesmo resultado — persistência do disco —
plano e descampado, ela viu um esqueleto, só com os olhos (sic) vivos. Eram os restos daquele da mesma vítima que morre na fogueira, cf. M₅₄₁). Em seguida, o
de Aishísh, pisoteado por milhares de cervos, como vingança contra aquele que tinha mito inflige às duas mulheres o suplício da decapitação, que os outros mitos
matado tantos deles. reservam a Dona Mergulhão. E, finalmente, desdobra a seu modo, que é pós-
A mais velha teve medo do esqueleto, mas a caçula o recolheu, apesar do fedor. tumo, crianças cuja morte prematura impede de se tornarem o par heróico
De volta ao acampamento, ela o untou e alimentou com gordura. Sua carne foi pou- e dioscúrico com que sonhava seu pai; o mito divide as crianças em dois
co a pouco se reconstituindo, e finalmente Aishísh voltou à vida. lotes, as almas, que Aishísh pega, e os corpos, que deixa para as mães, porque,
Ele bebeu e adormeceu. Durante o seu sono, porcos-espinho vinham girar em como explica, “as crianças são metade de vocês, a outra metade é minha”. A
torno dele e desafiá-lo. Quando ele se restabeleceu, matou-os, limpou-os e arrancou conclusão reproduz mais fielmente ainda o mito dos irmãos celestes (M₅₃₉),
seus espinhos, para dá-los a suas esposas e à sogra. já que a origem dos poderes xamânicos está em questão em ambos os casos.
Logo a mais velha das irmãs teve um filho, depois foi a caçula. Voltaram todos Se pudéssemos interpretar o nome modoc /kengkong’kongis/, que
juntos para a casa de Yaulilik. Aishísh matava dezenas de cervos junto com o jovem designa tais poderes em M₅₄₃, por comparação com a palavra klamath /ken/,
cunhado, e os trazia amarrados à cintura, como se fossem meros coelhos. “neve”, mais a forma verbal /q’wanqkanga/, “que avança mancando”, obtería-
Certo dia, quando procurava uma certa fonte para beber, lembrou-se de que ela mos um sentido aproximado, “o manco das neves”, ainda mais satisfatório na
ficava perto do lugar onde Kmúkamch tinha mandado ele subir numa árvore para medida em que os Klamath descrevem o espírito homólogo de M₅₃₉ como
pegar filhotes de águia (cf. Mfda, Mfdb, Mfdi, Mfeb). Essa lembrança o deixou melan- “um manco que tira vantagem de sua perna mais curta perseguindo suas víti-
cólico. Suas mulheres tinham grandes provisões de carne, e nada lhes faltaria. Ele mas nas encostas, porque assim compensa a declividade do terreno” (Barker
resolveu ir embora. 1963b: 467 e cf. pp. 185, 336; Gatschet 1890, i: ci, 180, onde Yayayá-ash tem uma
A mais velha insistiu para ir com ele e a mais nova, embora tivesse medo da aven- perna só). Estaríamos, portanto, diante de uma mesma família de espíritos,
tura, concordou em acompanhá-los. No quarto dia, a mais velha cometeu um des- que M₅₄₃ define tanto em relação à neve quanto à altitude. A velha Yaulilik
cuido que causou a morte acidental de seu filho. Aishísh gritou: “Nunca pensei que provoca tempestades de neve quando se desloca, e suas filhas se tornam aves
minhas mulheres fossem me fazer mais mal do que meu pai, mas vejam! Eu queria das neves, “com que os homens irão brincar, perseguindo-as nos arbustos, e
meus filhos vivos, para mergulharem nos lagos, aprenderem a falar com a terra e que morrerão no frio e na neve de que elas mesmas são a causa”. Desse modo,
as montanhas, ficarem jeitosos e espertos. Já que meu filho está morto, não ficarei o mito estabelece firmemente sua conotação invernal, que está ligada à trans-
neste mundo”. Ele fez com que lhe trouxessem o outro filho, colocou os lábios no alto formação das irmãs prestativas, de borboletas em aves das neves.
da cabecinha e aspirou o sopro vital. Colocou os dois cadáveres lado a lado e disse Infelizmente, parece ser difícil determinar com segurança a espécie a que
às mulheres que tinha pego o sopro das crianças, mas que os corpos eram delas. pertencem essas aves /yaulilikumwas/. A locução popular “ave das neves” tra-
Que ele nunca mais iria se casar. Transformou as mulheres em aves das neves, e do duz, além dessa palavra indígena, pelo menos outras duas, cuja forma é pra-
pequeno cunhado, fez Kengkong’kongis, um espírito sobrenatural que se manifesta ticamente idêntica em klamath e em modoc, /tchika/, que também é termo
em sonho aos xamãs. Depois foi para bem longe, no norte. (Curtin 1912: 27-38) genérico para “pássaro” (cf. Barker 1963a: 38-39; 1963b: 88), e /ma’idikdak/
(Gatschet 1890, ii: 206, “ave das neves de cabeça preta”, Junco oregonus”; Cur-
tin 1912: 125). A forma /yaulilik/, por sua vez, parece aparentar-se, do ponto

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de vista fonético, a /yaukùl/ (transcrição de Curtin), que designa a águia cal- marcas brancas e pretas que formam um motivo fortemente contrastado”
va (supra, p. 51); quanto à desinência, só se encontra em Barker (1963b: 232) (Thomson 1964: 212), suas nuances fundidas e fracas tornam tal ausência de
/l’il’i.ks/, “nome próprio masculino, impossível de analisar” e (1964: 192) / cromatismo não-marcada;9 assim como as cotovias de plumagem colorida
či.l’il’ig/, “bebês pássaros”. mas não marcada se opõem aos tangarás no registro cromático. E finalmente,
Outro mito modoc indica que os três termos indígenas designam espé- os juncos contrastam com os mergulhões por seu tamanho reduzido, e por
cies vizinhas, senão idênticas. Nele (M₅₄₄; Curtin 1912: 125-28), duas irmãs seu habitat, terrestre em vez de aquático.
Ma’dikdak têm aventuras muito semelhantes às das irmãs Yaulilik. Partem para Para justificar a pertinência das duas oposições conexas, cromático/acro-
se casar com filhos de chefes, pegam o caminho errado e vão parar na casa de mático e marcado/não-marcado, pode ser invocada a importância excep-
Wus, a raposa, que tenta se fazer passar por um dos noivos, mas não consegue cional da categoria cor entre os Modoc. Bancroft (1875-76: 330) ressalta o
enganar as irmãs, por causa de seu mau cheiro (cf. M₁₀₃, mc: 98). Então ele apreço deles pelos despojos de pássaros de cores brilhantes, com que enfei-
as transforma em velhas desdentadas, corcundas e esfarrapadas. Apesar disso, tavam suas roupas. E o lirismo empolado de Curtin, desprovido de verdadei-
os rapazes as recebem bem e, durante a noite, elas recuperam sua aparência ra poesia, jamais teria sido capaz de produzir por conta própria expressões
normal e ralham impiedosamente com o sogro, que tinha-se enganado a res- audaciosas como “ela era jovem, azul, linda”, que volta incessantemente em
peito delas. Em seguida elas vão embora, transformadas por Wus em patos de suas narrativas. Na verdade, o estilo narrativo dos mitos modoc brilha com
cabeça verde, mas a mãe delas consegue retransformá-las em mulheres. O mais tonalidades tão diversas quanto a madrepérola, emitindo por toda parte as
jovem dos irmãos, trazendo muitos presentes, como roupas, contas e espinhos mais ricas explosões de tons de vermelho, violeta, azul, verde e dourado.
de porco-espinho, vai ter com elas e se torna seu marido. O vermelho conota o poder e a crueldade, o azul, a beleza física e a juven-
Desprende-se de todos esses incidentes uma impressão geral de que as tude, ou porque o adjetivo se refere aos cabelos ou talvez porque evoca as
“aves das neves” constituem uma classe pouco digna de nota, muitas vezes tatuagens que as mulheres tinham no queixo, e cuja cor, segundo um antigo
chamada pelo nome que designa as aves em geral, sem interesse algum para viajante, “era um azul escuro, profundo e esplêndido” (Bancroft l.c.: 332-33).
os humanos, que as desdenham como alimento e zombam delas porque É, portanto, compreensível que uma cultura tão preocupada com sua
nem ao menos sabem se proteger do frio e da neve. Os Tillamook, que são paleta construa os zoemas de seus mitos por meio de afastamentos diferen-
um grupo salish isolado na costa noroeste da terra klamath, tinham a mes- ciais nos quais os modos da cor têm um lugar tão importante quanto os dos
ma opinião a respeito das “aves das neves”: “sem interesse, boas para nada. hábitos. Se colocarmos provisoriamente de lado a nomenclatura das esposas
Ninguém as utiliza para nenhuma finalidade” (E.D. Jacobs 1959: 69). aldeãs do herói, devido ao seu caráter instável — embora ela vá revelar uma
Com efeito, na América do Norte, confundem-se sob a denominação oposição simples, subjacente, quando examinarmos versões mais setentrio-
genérica de ave das neves várias espécies ou variedades do gênero Junco. nais da história do desaninhador de pássaros (infra, pp. 310-13) — notare-
Como as cotovias, essas aves fazem ninho no solo ou próximo dele, mas mos que o mergulhão é a articulação entre pares de termos que ao mesmo
diferem delas, como os tangarás e as borboletas, porque são pouco ou nada tempo contrastam com ele e um com o outro. Os zoemas mergulhão, cotovia
migratórias e, durante o inverno, às vezes apenas buscam um local próxi- e tangará são compatíveis, pois, simplificando quase nada e sem fazer sur-
mo onde a temperatura seja um pouco mais clemente do que nas montanhas gir contradições entre os mitos, constata-se que Mergulhão é a cunhada de
onde passam o verão (Brascher, iv: 152-53; Godfrey 1967: 460-62; Jewett et al.: Cotovia, que poderia ser a mãe de Tangará. Mas o zoema mergulhão perten-
638, 641). Nesse sentido, esses pássaros se assemelham aos mergulhões, e ce também a uma outra tríade, na qual todas as relações são incompatíveis:
deles diferem: como eles, permanecem na mesma latitude, mas se deslocam Dona Mergulhão se opõe às irmãs Borboletas como uma criatura assassina
num eixo praticamente vertical, em direção a altitudes menores, em vez de se opõe a criaturas prestativas. As irmãs Borboletas e as Aves das Neves se
um eixo horizontal que liga os lagos e rios do interior à região costeira.
Os juncos possuem uma plumagem pouco distintiva, colorida de 9 . No sistema que estamos considerando aqui. Mas veremos mais adiante que, num
preto, cinza e beje. No que diz respeito à cor, eles são, portanto, como os outro sistema, uma espécie de junco chamada “de dorso ruivo”, aparece, ao contrário,
mergulhões, mas ao contrário destes, que “na idade adulta, apresentam fortemente marcada (infra, p. 441).

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mostram igualmente prestativas, umas se opondo ao céu (de onde as borbo-
letas trazem o herói), as outras, à terra (de onde as aves das neves exumam
o herói sepultado). Apesar de prestativas, ao contrário de Dona Mergulhão,
as irmãs Aves têm um destino como o dela, a decapitação. Enfim, e princi-
palmente, as irmãs Borboletas e Aves das Neves têm o papel de variantes
combinatórias: desempenham a mesma função, em contextos mutuamente
exclusivos. Com efeito, as irmãs Borboletas aparecem numa série simétrica
àquelas em que aparecem as Aves; é sempre a gesta de Aishísh, mas num caso
invertendo, e no outro, reproduzindo, o mito de Dona Mergulhão.

S E G U N DA PA RT E

Jogo de ecos

80 | Primeira parte: Segredos de família | 81


Rêve, dans un solo long, que nous amusions O episódio dos porcos-espinho, que também se apresenta no mito modoc
La beauté d’alentour par des confusions M₅₄₃, encontra-se ali antecipado, de certo modo, por um outro, que só
Fausses entre elles-même et notre chant crédule
se encontra ali. Antes de os roedores dançarem sobre o corpo do herói e
o desafiarem enquanto ele jaz, doente e impotente, no acampamento das
s. mallarmé, L’après-midi d’un faune
duas irmãs, ele já sofreu um destino análogo e mais cruel: foi pisoteado por
milhares de cervos sedentos de vingança, até seu corpo ficar reduzido a um
esqueleto e o terreno em volta ser transformado num descampado desolado.
Ligamos (supra, p. 45) o episódio dos porcos-espinho à origem dos ador-
nos e acessórios, e o texto de M₅₄₃ confirma essa hipótese. Mas que interpreta-
ção dar ao episódio dos cervos, de que esse parece ser aqui mera duplicação?
Além de substituir as irmãs Borboletas por Aves das Neves, M₅₄₃ inova
de outro modo. Descreve Aishísh não como grande especialista dos jogos
de perícia e de azar, mas como grande especialista da caça. O mito chega a
empurrar esse atributo, que não aparece nas demais versões, a não ser de for-
ma muito enfraquecida, para o primeiro plano. Segundo M₅₄₃, Aishísh tinha
uma tal quantidade de carne de cervo “que se toda a população do mundo
tivesse vindo comê-la ainda sobraria quase o mesmo tanto”. A família das
moças-ave, ao contrário, não tem carne; sua velha mãe é obrigada a men-
digar para alimentá-las, e se aconselha as filhas a se casarem com Aishísh, é
porque conhece seus dons de caçador, e espera que, junto dele, haverá muito
o que comer. De modo que, em situação inicial, Aishísh tem toda a carne do

82 | | 83
mundo, e os demais protagonistas do mito não têm nenhuma. Quando as local ermo, onde os cervídeos o pisoteiam, ou então ele mesmo se enfia no
irmãs vêm vê-lo, ele começa por servir-lhes costeletas. Recém-casado, caça solo. Duas bondosas mulheres acham o orgão, cuidam-dele e o alimentam,
para seus afins e acumula para eles enormes reservas de carne seca. e seu dono ressuscita. Como, por exemplo, numa das versões wintu (M₅₄₅a;
Pode-se portanto supor que, nos dois episódios que se parecem, o mito Du Bois & Demetracopoulou: 355-60; cf. supra, p. 53; infra, p. 120), em que
se refere, de um lado, à origem da carne (de que o herói é senhor absoluto, o coração, cujo canto a heroína ouve de longe e para onde se dirige, lhe diz
no início) e, do outro, à dos adornos e acessórios. Hipótese que para nós tem “Mulher, não tenha medo de mim! Venha!”, e ela responde “sim!”. Muitos
um interesse capital, já que estabelecemos na primeira parte que o mito do animais tinham estado ali, havia muita poeira (comparar com a descrição
desaninhador de pássaros existe na América do Sul e na América do Norte do episódio dos porcos-espinho em M₅₃₈, supra, p. 44). Tanto a leste como a
em formas praticamente idênticas e que, em volumes anteriores (cc, mc), oeste, via-se uma enorme quantidade de pegadas de cervídeos...
parece-nos termos demonstrado que esse mito, que se refere à origem da Merecerão ainda mais atenção de nossa parte as versões dos Yana, que
água ou do fogo, se transforma independentemente em mito da origem da embora separados dos Modoc pelos Achomawi e Atsugewi, tribos do rio Pit,
carne e mito da origem dos adornos, dois temas que agora encontramos situam o episódio dos cervos no Monte Shasta, em concordância com M₅₄₃.
associados num único mito, o qual faz questão de lembrar (pois que faz uma Para facilitar a leitura dos nomes próprios, tomaremos a liberdade de simpli-
alusão precisa a isso) que se herói foi primeiro um desaninhador de pássaros. ficar as transcrições de Curtin, citando entre parênteses, sempre que possível,
Vimos que esse mito se situa a meio-caminho entre a versão reta, que é seu equivalente fonético nas versões colhidas por Sapir.
a do desaninhador de pássaros (aqui transformado em pisoteado por cer-
vos) e sua forma invertida, ilustrada pelo mito de Dona Mergulhão. Eis que M 546 YANA: DONA MERGULHÃO
este último mito também trata de duas origens, a dos anti-adornos, digamos
assim, na forma do colar de corações arrancados por uma mulher de seus O velho Juka (dju’ga), “Lagarta”, morava um pouco a leste de Jigulmatu (dj ga’lmadu:
parentes mais próximos,1 e a da anti-carne, na forma do mergulhão cuja car- Round Mountain, Sapir 1910: 188 n. 293), com seus vários filhos e suas duas filhas.
ne os homens hão de cuspir, porque é incomestível. A mais velha se chamava Tsoredjowa (ts.!orê’djuwa), “Águia”, e a mais nova, Haka-
É hora de introduzir um novo aspecto de M₅₄₃. Ele não só conta um perí- lasi (‘ak!a-’lisi), “Mergulhão”. A caçula se apaixonou pelo irmão Hitchinna (‘itc!i’nna),
odo da vida de Aishísh que as demais versões da gesta desse herói ignoram, “Lince”. Ela até sonhou que ele era o seu marido. Um estrangeiro chamado Metsi
como transcorre em outra parte, as encostas do monte Shasta, que as mulhe- (me’ts.!i), “Coiote”, também morava na grande casa.
res escalam, e o topo do Duilas, o Pequeno Shasta, onde o irmão delas se No dia em que Hakalasi teve seu sonho, todos os homens estavam caçando. Volta-
posta para avaliar de longe o progresso da ascensão. Encontramo-nos, por- ram ao entardecer e foram nadar na manhã seguinte. Tsoredjowa lhes deu provisões.
tanto, no limite extremo da terra modoc em direção a oeste, quase em terra Hakalasi subiu no telhado da casa e começou a cantar chamando o marido. Ninguém
estrangeira, e mais longe ainda, em direção ao sul, caso Pequeno Shasta não entendia o que ela queria dizer, porque ela era solteira. Cada um dos irmãos, exceto
designe a montanha vizinha conhecida por esse nome e sim, como ocorre Hitchinna, que ficou deitado num canto enrolado numa pele de lince, saiu da casa,
entre os Yana, o monte Lassen (supra, p. 63). aproximou-se da moça e lhe perguntou o que ela queria dizer. Ela mandou todos
Mas também em regiões onde viviam tribos diferentes dos Klamath embora, e seu velho pai então entendeu que ela exigia a presença de Hitchinna. Ele se
e dos Modoc pela língua e pela cultura encontram-se versões do mito de lavou e vestiu suas mais belas roupas. O sol estava alto no céu. Eles partiram juntos.
Dona Mergulhão nos quais o episódio do herói sepultado à beira da morte Depois de andarem muito, eles acamparam, e deitaram um ao lado do outro.
tem um lugar de destaque. Nelas, o herói é o único sobrevivente do fogo ini- Mas Hitchinna, assustado, levantou-se assim que a irmã adormeceu e fugiu, deixan-
ciado pela mulher homicida. Seu coração salta do fogo e cai bem longe, num do um pedaço de madeira podre em seu lugar. Chegou à casa grande com o dia.
A aranha Chuhna (tc‘u‘na-), irmã do pai, que também morava lá, era insuperável
1 . Ao passo que, para perpetrar o incesto, ela faz uma oferta de adornos verdadeiros, na fiação e fabricação de cordas. Ela tinha um cesto de salgueiro, grande como uma
as contas que ela diz terem sido enviadas pelo marido para seus irmãos, e que um deles casa, suspenso por um cabo à abóbada celeste. Pressentindo que a sobrinha ia que-
tem de vir pegar. rer se vingar, ela mandou toda a família entrar no cesto, para içá-lo até o céu. Coiote

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foi o primeiro a embarcar, e se instalou no fundo. Todos os moradores da casa grande irmã, despiu-se e envolveu o corpo com sua roupa. Depois contou os corações; falta-
seguiram-no. vam os de seu pai e de seu irmão mais velho.
Hakalasi acordou abraçada a um pedaço de madeira podre. Furiosa, correu para a Os Tsunanewa lhe contaram que frequentemente ouviam gemidos vindo de lon-
aldeia. Não havia mais ninguém. Ela procurou rastros em todas as direções, levantou ge, ao norte. Torejowa saiu imediatamente naquela direção. Logo reconheceu a voz
os olhos, e viu o cesto subindo em direção ao sol. Então ela pos fogo na casa. do pai. Olhou para todos os lados, avistou a cabeça querida, cavou a terra com uma
Antes do fim da ascenção, Coiote, curioso, fez um buraquinho no fundo do cesto vara e conseguiu livrar o corpo todo. Juka era só osso. Ela o vestiu numa pele de cerví-
para espiar. O cesto imediatamente se rompeu e todos cairam na fogueira, exceto deo, voltou ao seu ponto de partida para pegar o cadáver da irmã e levou os dois para
Tsoredjowa, que tinha sido a última a subir no cesto e estava na parte de cima. Ela sua antiga aldeia, a leste de Jugalmatu. Deixou-os em local seguro e saiu novamente,
conseguiu se agarrar ao sol e se salvou. à procura do irmão.
Hakalasi ficou olhando os irmãos queimarem. Os corpos explodiam, um a um, os Ao pé do monte Shasta vivia um certo Jamuka (zaamuk’u), “Minhoca de glande”,
corações saltavam nos ares e ela os pegava num fio, preso na ponta de uma haste. com sua mulher e suas filhas. Certo dia, as moças estavam juntando lenha, e ouvi-
Conseguiu pegar todos, a não ser os do pai e do irmão mais velho. O primeiro foi cair ram um canto, mas não sabiam de onde vinha. Na vez seguinte, a mais nova das
numa ilha, no meio de um rio perto do lago Klamath. Lá, voltou a ser Juka. Enterrado irmãs achou no chão um rosto humano coberto de lágrimas, imundo e horrível. As
até o pescoço, só a cabeça ultrapassava o nível do solo. irmãs cavaram durante dois dias e finalmente conseguiram desenterrar o homem
O outro coração voou até o sopé do Wahkalu (wa’galu-, o monte Shasta, Sapir 1910: todo. Era só osso. Envolveram-no em suas roupas e foram buscar peles de lince. Ao
161 n. 260), onde seu dono também voltou ao que era antes, mas ficou tão enfiado no saber do achado, o pai pensou que talvez fosse um sobrevivente do massacre de que
solo que só o rosto aflorava. ele ouvira falar e recomendou às filhas que cuidassem bem dele. Quando voltaram
Hakalasi juntou os corações que tinha apanhado e fez com eles um colar. Pri- com as peles, viram que os olhos do homem vertiam rios. Os cervídeos desciam das
meiro, ela tentou morar nas águas rasas demais de um lago a leste de Jigulmatu, e encostas vizinhas para beber deles.
depois foi se instalar no lago da Cratera, a noroeste do lago Klamath. Dois irmãos Dia após dia, as irmãs alimentaram seu protegido. Noite após noite, dormiram
Tsanunewa, nome de um pássaro pescador, viviam perto dali com sua velha avó. Esta- ao lado dele. Seu estado ia melhorando, mas ele chorava sem parar, e os cervídeos
vam caçando patos quando ouviram e viram Hakalasi se erguer acima da água. vinham beber a água que jorrava de seus olhos. Quando começou a falar, pediu um
Enquanto isso, Tsorejowa, que tinha descido de volta do céu, só encontrou cinzas arco e flechas, e dispensou suas enfermeiras. Numa única noite, ele matou um por
e ossos no lugar onde antes estava a casa grande. Enlutou-se e foi procurar a irmã. um os quatro animais que vieram beber suas lágrimas, e na noite seguinte, mais
Andou por toda parte, até o lago Klamath, e acabou chegando à casa dos irmãos Tsa- ainda. As moças ficaram com medo, mas o pai delas adorou. Ele limpou a caça e pos a
nunewa, a quem contou sua história. Eles lhe deram pato para comer, pediram-lhe carne a secar. Completamente restabelecido, o herói foi-se instalar com a nova famí-
para descrever a assassina, e reconheceram a mulher do lago. Até se ofereceram para lia. Ele tinha parado de sonhar, mas uma fonte salgada jorrava no lugar onde ele
capturá-la. Tsorejowa prometeu-lhes peles, contas, e até casamento. Mas eles não tinha vertido tantas lágrimas. Ela continua lá, e bandos de cervídeos vêm beber nela.
queriam nada dela, a não ser ossos verdes e vermelhos de cervídeos, para fazer pon- Os caçadores, que ficam de tocaia, matam muita caça ali, como fizera o filho de Juka.
tas de flecha; ela foi procurá-los na montanha. O mais velho escolheu os vermelhos, e Tsorejowa, que ia de casa em casa à procura do irmão, acaboupor encontrá-lo na
o mais novo, os verdes. Uma glosa explica que as diferenças na coloração provêm da casa de Jamuka. Tranquilizada quanto ao seu estado e sabendo-o bem casado, voltou
gordura que envolve os ossos longos. à sua aldeia. Em uma noite ela construiu uma casa espaçosa e trançou um grande
Os irmãos atingiram o lago ao amanhecer. Fizeram-se pequenos por meio de cesto estanque, que encheu de água. Na noite seguinte, colocou ali os corações, junto
magia e embarcaram em duas minúsculas canoas feitas de caule de junco. Quando com o da irmã, que ela tinha retirado do cadáver, e pedras em brasa. Quando a água
Hakalasi apareceu, nenhum dos dois conseguiu atingi-la no coração com uma flecha, começou a ferver, ela cobriu o cesto, depositou-o sobre o teto da casa e adormeceu.
como eles mesmos tinham predito. Mas feriram-na no pescoço e na axila e, depois Ao amanhecer, o cesto virou e liberou um bando de gente tremendo de frio que
de algum tempo, ela reapareceu na superfície e morreu. Eles arrastaram o cadáver se apresentou na porta da casa. Ela reconheceu os irmãos, e a irmã, que já não tinha
para perto de sua casa e, depois de todos terem comido uma refeição de peixe, dis- nada de mau nela, pois seu coração tinha ficado puro. Tsorejowa deu a todos notícias
seram, assim sem mais, para Tsorejowa ir ver o que tinham caçado. Ela reconheceu a do irmão ausente e os homens retomaram suas atividades costumeiras.

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Certo dia, Jamuka aconselhou o genro a ir apresentar suas mulheres a seus parentes. que já encontramos (supra, p. 42); mas o termo yana corrente é /dutdu-/
Assim que avistou o filho, o velho Juka prendeu-o numa coberta grande e o escondeu. (Sapir & Swadesh 1960: 79). O nome Jamuka designa uma espécie de ver-
Dois de seus irmãos se apropriaram das mulheres, que nunca mais viram o primeiro me cuja identidade será discutida abaixo (p. 99). Quanto ao termo /weän-
marido, porque Juka tinha feito dele um /weänmauma/, quer dizer, um rapaz escondido. mauna/, era aplicado pelos Yana a “crianças, geralmente meninas, que as
Quando as mulheres, carregadas de presentes, foram visitar o pai, contaram-lhe famílias de alta estirpe mantinham escondidas, às vezes até a idade de trinta
o que acontecera. Ao que respodeu o pai: “Está bem assim, o pai dele o tirou do mun- anos” (Sapir & Swadesh 1960: 172). Esses filhos escondidos não se casavam
do, e os irmãos dele são para vocês matidos igualmente bons”. As mulheres não dis- nunca, ou se casavam muito tarde (Sapir & Spier 1943: 274). Quando casa-
cordaram e ficaram morando na casa de Juka (Curtin 1899: 407-21). dos, os mitos se apressam em fazê-los voltar à condição de solteiros (Curtin
1899: 349, 421).
! Tal como é narrado pelos Yana, o episódio dos cervídeos se apresen-
ta numa forma bastante diferente da que lhe é dada pelas versões modoc
Para analisar esse mito, convém proceder por etapas, pois a tarefa é com- (M₅₄₃) e wintu (M₅₄₅a), onde o encontramos anteriormente. O herói não só
plicada pelo fato de desconhecermos quase que completamente a etnogra- verte todas as lágrimas de seu corpo, como já dizia M₅₄₃, como suas lágri-
fia dos Yana. Essa pequena população, que pertencia pela língua à família mas produzem uma fonte salgada na qual os cervídeos vêm beber. Ele os
hokan, como seus vizinhos setentrionais Atsugewi, Achomawi e Shasta, vivia atrai, portanto, e a condição lamentável em que se encontra não decorre
numa região acidentada e dominada pelo monte Lassen, entre os rios Pit e de ter sido atacado e pisoteado por esses animais, mas de circunstâncias
Sacramento. Apesar de já estarem bastante assimilados à vida dos colonos totalmente outras, e anteriores. O mito yana integra assim o tema das lágri-
americanos, para quem trabalhavam como assalariados, os Yana foram mas- mas e o dos cervídeos, e por meio disso explica, não a origem da caça (já
sacrados de modo ignóbil em agosto de 1864, cujo triste relato foi feito por que os irmãos se dedicam a essa atividade desde o início), mas como ela foi
Curtin (3: 517-20). Menos de cinquenta sobreviveram. Jamais saberemos se a facilitada pelo aparecimento de fontes salgadas que atraem as manadas, de
imagem rudimentar que possuímos de sua cultura se explica por sua antiga modo que basta ficar de tocaia junto a elas para matar muitos animais. É
rusticidade (Kroeber 1925: 340) ou porque somente pedaços de informação fato confirmado que havia sal no território dos Yana: “Perto da aldeia de
chegaram até nós. Wichuman’a, a alguns quilômetros a leste de Millville, havia um brejo salga-
Comecemos passando em revista os nomes dos personagens do mito. Já do. Dele era extraída uma lama escura, que se deixava a secar, para consu-
conhecemos Dona Mergulhão no papel que lhe atribuem os Yana. Seu irmão mi-la como sal. Os Achomawi, Atsugewi e Wintu vinham todos reabastecer-
se chama Lince, nome que compartilha com toda a família numa versão se ali, o que sugere que essas tribos costumavam manter relações amistosas.
modoc (M₅₄₀) do mesmo mito. Ele é o filho do velho Juka (Sapir 1910: 55, Isso explica o fato de os Achomawi chamarem os Yana de Ti’saichi, ‘gente
68 n. 106; Sapir & Swadesh 1960: 207), nome de uma espécie de bicho da do sal’” (Kroeber 1925: 339-40; Sapir 1910: 54 n. 78; Sapir & Spier 1943: 245).
seda parasita do sumagre venenoso chamado na América de “poison oak” ou É claro que o local em questão não é o mesmo do mito. Mesmo porque o
“poison ivy” (Rhus diversiloba). Coiote, demiurgo e enganador entre tantos monte Shasta, onde ocorrem vários episódios, se encontra bem afastado do
povos da Califórnia e de alhures, tem aqui um papel secundário. A aranha território yana. Contudo, era visível de vários lugares (Sapir & Spier 1943:
Chuhna mantém o papel que lhe é atribuído numa versão modoc (M₅₃₉) 247), e já notamos (supra, p. 78) que esses índios chamavam o monte Lassen,
mas, como tia paterna, perde o sexo masculino que seu personagem cos- situado à beira de sua terra, a sudeste, de um nome que significa literalmen-
tuma ter nos relatos yana (Sapir 1910: 29 n. 45). Mais adiante entenderemos te “o pequeno Shasta” (Kroeber 1925: 338; Sapir & Swadesh 1960: 172). Como
porque, e também a razão pela qual a heroína que ressuscita os seus e redi- observamos a respeito dos mitos modoc, aparentemente, os Yana também
me a irmã criminosa se chama Águia. estabeleciam uma espécie de correspondência ideal entre os lugares que
A respeito dos irmãos Tsanunewa, Curtin apenas indica que são aves frequentavam e os de uma região mais ao norte, aonde muitas vezes envia-
pescadoras; isso é confirmado por uma versão achomawi (M₅₅₂; Angulo & vam, aliás, seus heróis, como os de M₅₄₆, que visitam locais tão distantes
Freeland: 126): /tsànúnné.wā/, nome mítico do kildir Charadius vociferus, quanto o lago Klamath e o lago da Cratera.

88 | Segunda parte: Jogo de ecos | 89


123o 122o 121o
Tais itinerários podem ser parcialmente reconstituídos (fig. 7). No início
do mito, estamos em algum lugar a leste de Round Mountain: “I’da’lmadu, 43o

Bone Place, entre Montgomery Creek e Round Mountain... dizem que as


Crater L.
pedras e pedregulhos são ossadas metamorfoseadas, daí o nome” (Sapir & Mt. Yamsay

Klamath Marsh
Spier 1943: 245). Depois de cometer todos os seus crimes, Dona Mergulhão Summer L.

son
se afasta para mais a leste, depois sobe para o norte, faz uma parada no lago

m
Willia
Klamath e se instala ao norte deste, nas águas do lago Cratera, onde sua irmã,

River
também depois de passar pelo lago Klamath, a alcança.2 klamath Albert L.

Após a morte de sua irmã mais velha, a caçula volta para os lados do Sprague R.
Mt. Pitt
lago Klamath. Carregando os despojos de seu pai e de sua irmã, ela retorna
à aldeia natal, e depois de ter vagado por algum tempo, chega ao sopé do Klamath Lake

monte Shasta e volta definitivamente à aldeia para ressuscitar seus familiares.


A mais completa das versões publicadas por Sapir (1910: 228-32, M₅₄₇) foi

Lo
s
er

tR
coletada por Dixon por volta de 1900; contém precisões suplementares e dife- 42o Riv

ive
ath

r
lam Goose L.
re da de Curtin em vários pontos. Iremos discuti-la mais adiante, e aqui ape- K
Tule L.
nas notamos que situa a cena do massacre em Ship’a (ci’p!a) e faz vir Dona Lower

paiute
Klamath L.
Mergulhão, que nesse caso é uma estrangeira solteira, de um lago muito mais
a leste, perto de Hat Creek (“Ākā’l’imadu, cf. ‘ak’ā’lisi, “mergulhão”; ou ‘akā’lili,
“lago”, —madu, “lugar”: Hat Creek, em terras atsugewi” Sapir & Spier 1943: modoc
Upper L.
247), ou seja, exatamente a mesma região para onde a irmã incestuosa de 123o Butte
M₅₄₆ se dirige depois de ter cometido seus delitos. Consequentemente, como Creek
Mt. Shasta
nas versões klamath e modoc, um eixo leste-oeste serve para definir as posi- Midle L.

ções respectivas de Dona Mergulhão e dos seus. Quando casada, ela mora a
leste de sua aldeia natal (M₅₃₁). Quando solteira e virtuosa, também mora a achomawi Lower L.

leste daquele que poderia tornar-se seu marido (M₅₄₁). Retransformada por
Pitville
M₅₄₆ em irmã incestuosa, ela se dirige para o leste depois de ter matado seus 41o Pit River

familiares. E, em M₅₄₇, no qual assume o aspecto de uma estrangeira lasciva e wintu


assassina, é para o oeste que vai para realizar seu duplo objetivo. Mo

Hat Cr.
ntg
ome
As considerações acima revelam que todos os mitos evocam uma estru- Mt. Round ry
Idalmadu
Cr.
atsugewi
tura espacial do mesmo tipo. Ora se esforçam por recuperá-la no plano local; Shipa
un
kR
ora fazem referências diretas, sem transpô-las a locais fora do território Oa
Pawi Eagle L.

Mt. Lassen
2 . Esse itinerário parece estar claro pelo contexto. Curtin afirma claramente (3: 411): wintun

Sacramento R.

a
“o lago da Cratera, a noroeste do lago Klamath”. Contudo, convém notar que também
maidu

n
ya
existe um Crater Lake em terras achomawi, na parte setentrional da bacia do Fall River
(cf. Kniffen 1928, legenda da ilustração 5₅b, p. 324). E mesmo que se tratasse desse lago, yahi
Honey L.

e não do outro, o mito levaria a heroína a terras estrangeiras, e é esse o ponto, mais do
40o
que determinar um itinerário preciso. O que queremos mostrar, é que todos os mitos
desse grupo têm um caráter cosmopolita e, diríamos, até internacional.

[ 7 ] Geografia do mito de Dona Mergulhão.


90 | Segunda parte: Jogo de ecos
tribal, mas que, da perspectiva de vários povos, parecem possuir o mesmo do mel. A prova de que esta última transformação é real resulta do fato de
valor e o mesmo significado. Por intermédio dos mitos, cada uma das tribos o mel, meio da origem dos adornos, tornar-se um fim em si em mitos que,
afirma um direito de propriedade mística sobre um vasto território, do qual como podemos demonstrar de modo independente, estão com os primeiros
ocupa apenas uma parte. em relação de transformação. Sua existência constitui, portanto, uma condi-
Voltaremos a isso. Pois não esgotamos o tema das terras e das águas salga- ção a priori da existência dos demais e, quando são estudados, revelam possuir
das de que partiu a presente discussão. De fato, o relato yana dá a impressão todas as propriedades empíricas que a hipótese inicial permitia postular.
de que o surgimento das águas salgadas permite solucionar o problema da Essa estrutura reaparece nos mitos norte-americanos que acabamos
caça, que sem isso encontraria dificuldades de ordem ecológica. Se não exis- de estudar, a não ser por duas coisas. Primeiro, eles substituem a categoria
tissem as fontes salgadas, que atraem a caça de porte para os baixios, como de doce pela de salgado. Para consolidar os dois sistemas num único, seria por-
explica o mito, os caçadores seriam obrigados a se arriscar na montanha. tanto necessário, e suficiente, subsumir ambas as categorias na categoria mais
Aliás, quando os irmãos Tsanunewa, que são aves pescadoras, precisaram de abrangente de condimento. E os adornos, não são um condimento da pessoa,
ossos de cervídeos para fabricar pontas de flecha, não puderam consegui-los do mesmo modo que os sabores acrescentados são adornos dos alimentos?
por conta própria e tiveram de recorrer a uma heroína chamada Águia, que Em segundo lugar, as conexões internas do sistema norte-americano
sendo capaz de subir até o sol, ainda mais facilmente chega alto da monta- formam uma rede mais complexa do que a que é própria da América do
nha, onde vivem e morrem os cervídeos, e onde seus ossos são coletados. Sul, ilustrada de forma simplificada em nosso diagrama (mc: 25). As mesmas
Vimos também que na versão modoc do mesmo episódio, o herói é atacado ligações existem na América do Norte, mas se desdobram. Tanto em M₅₄₃
pelos cervídeos quando se aventura perto do pico do monte Shasta. quanto em M₅₄₆, o condimento opera em dois planos, como meio da carne e
Visto do ângulo etiológico, o mito yana preenche, portanto, uma dupla como antecedente dos adornos. Assim, esses mitos se opõem a outros, ante-
função. Relata a origem das fontes salgadas, que são o meio da caça facilitada, riormente examinados (M₅₃₀, M₅₃₈), em que os adornos aparecem como fim,
e em seguida a dos adornos e acessórios de espinhos de porco-espinho. É sem que se faça alusão aos alimentos ou aos condimentos.
extraordinário que a versão modoc (M₅₄₃) respeite a mesma construção, ape- Deveríamos concluir que se trata de uma semelhança fortuita entre os
sar desses índios e de seus vizinhos Klamath não fazerem uso de sal, que cha- mitos dos dois hemisférios, e que diante das diferenças que acabamos de
mavam por um nome emprestado do chinnok (supra, p. 54). Apesar disso o assinalar, seria equivocado invocá-la como uma prova em favor da estrutura
desconheciam, mesmo em sua apresentação terrestre, como comprova o fato comum a eles? Há dois modos de responder a essa pergunta.
de sua versão do mito conservar um lugar para o sal, reduzindo-o no entanto Poderíamos começar procurando saber se os mitos norte-americanos
à sua mais simples expressão, as lágrimas, modo do sal que todos os huma- relativos à origem do sal e dos adornos não resultam da mesma transforma-
nos conhecem, meramente graças à sua constituição fisiológica. Reduzido a ção que, na América do Sul, leva dos mitos de origem do fogo terrestre ou
esse denominador comum, o sal de fato figura na versão modoc, em que seu da água celeste para os da origem dos adornos e do mel. Verifica-se que não
surgimento também precede o dos adornos de espinhos de porco-espinho. apenas é isso mesmo que acontece, como também as armações geradoras
da transformação apresentam, nas duas Américas, propriedades que se cor-
! respondem estritamente. Mas ainda não chegou a hora de apresentar o que
constituirá, para nós, a demonstração final e decisiva (infra, p. 125ss).
Nesse ponto, impõe-se a nós uma constatação de importância capital. Vemos Comecemos portanto pelo outro meio, que parece ser mais apropriado
reconstituir-se, pouco a pouco, uma configuração mítica em parte análoga à ao atual estágio da discussão. Se respeitarmos as convenções do diagrama já
que tínhamos encontrado em O cru e o cozido e no início de Do mel às cinzas publicado, que aqui reproduzimos para a comodidade do leitor (fig. 8), pode-
(p.25). Recapitulemos brevemente. Mitos sobre a origem do fogo de cozinha mos dizer que, deixando provisoriamente de lado o sistema S₁ e seu inverso,
(M₇-M₁₂), que se invertem em mitos sobre a origem da chuva, água celeste que S-₁, relativos à origem da culinária tomada positivamente (cozimento dos
apaga os fogos domésticos (M₁), transformam-se primeiramente em mitos alimentos) ou negativamente (água que apaga os fogos), até agora só discu-
sobre a origem dos adornos e acessórios e depois em mitos sobre a origem timos a parte esquerda, na qual se situam os mitos de origem dos adornos

92 | Segunda parte: Jogo de ecos | 93


S-₃ S₃
No decorrer desse episódio, os dois heróis, caminhando em direção ao nas-
cer do sol, enfrentam duas vezes seguidas o ogro de uma perna só, Yahyáhaäs.
S-₂ S₂ A primeira prova consiste em quebrar o cachimbo do adversário, ou
fumando-o com muita força ou jogando-o contra um rochedo. A segunda
S₁
prova é uma luta, cujo perdedor será condenado a morrer na fogueira. De
(fin) (moyen) (moyen) (fin) modo que a versão Gatschet da história de Aishísh (M₅₃₀) nada mais faz
mel tabaco do que fundir essas duas provas numa só, já que conta que o demiurgo
Kmúkamch, por ter perdido seu cachimbo, morre numa fogueira.
parures viande Quanto ao episódio correspondente de M₅₃₉, dois pontos devem ser
cuisine [ 8 ] legenda. assinalados. Primeiro, o ou os heróis começam alegando que não têm nem
cachimbo nem tabaco. Um deles chega a explicar que está viajando há tanto
tempo que esgotou toda a sua provisão (Curtin 1912: 115). Em segundo lugar,
e do mel. Com a transformação do mel em sal, e das contas de conchas em o ogro Yahyáhaäs se apresenta como um dono da caça egoísta: sempre traz
espinhos de porco-espinho, animal desconhecido nos trópicos,3 acabamos um ou dois animais recém-caçados, mas não oferece carne a seus visitantes.
de reconhecer a mesma estrutura local nos mitos da América do Norte. E sua cabana é coberta com peles de cervídeo no lugar de placas de entrecas-
Mas o que acontece do outro lado, isto é, na parte direita do diagrama? ca, e enorme quantidades de carne secam em volta dela (ibid.: 114-15).
Obteríamos desde já um sólido argumento em favor de nossa hipótese de A coletânea de Curtin (1: 148-68, M₅₄₉a, b, c) contém três outros mitos
uma estrutura comum aos mitos das duas Américas cujo herói é um desani- relativos ao mesmo ogro, que permitirão elucidar esses pontos. Não os anali-
nhador de pássaros se, também neste caso, fôssemos levados a constatar que saremos em detalhe, para não tornar mais pesada a discussão; bastará extrair-
os mitos do hemisfério boreal reproduzem os do hemisfério austral. mos seu espírito. Esses mitos põem em cena grandes caçadores, homens ou
Ora, a parte direita do diagrama é o palco de uma transformação simé- mulheres, impedidos de prosseguir em suas atividades porque Yahyáhaäs os
trica à da outra, pois que também engendra, em duas etapas, mitos sobre persegue, e lhes impõe uma escolha: ou eles conquistam o ogro pela fumaça
a origem da carne e do tabaco. Meio da carne na primeira etapa, o tabaco do tabaco ou ele irá vencê-los na luta e matá-los. Mas os heróis esqueceram
torna-se fim na segunda. Existiria uma transformação do mesmo tipo, isto é, de trazer seu bastão de fogo, e não têm tabaco. O ogro os obriga portanto a
ligando a carne ao tabaco, nos mitos norte-americanos? enfrentá-lo na luta e os empurra do alto da montanha para um lago, onde
Basta colocar a questão para resolvê-la. Efetivamente, um dos mitos modoc morrem afogados, sendo seus cadáveres despedaçados contra os rochedos.
que discutimos (M₅₃₉) contém um longo episódio que é completamente inin- Numa variante invertida (M₅₄₉c), irmãs solteiras costumam por fogo
teligível, a menos que seja interpretado desse modo. Como não havíamos ain- no mato ao pé das montanhas, para obrigar os cervídeos a subirem ao topo,
da formulado nossa hipótese, ele parecia tão supérfluo que apenas o mencio- onde é mais fácil matá-los. Os homens da aldeia vizinha não ousam nem
namos, sem inseri-lo na análise. casar-se com elas nem concorrer com elas, porque elas matam os audaciosos
como se fossem caça. Aí aparece Yahyáhaäs, pretendendo fazer delas suas
esposas, e as importuna tanto que elas não conseguem mais caçar. As irmãs
3 . Mas convém observar que as pequenas contas brancas e pretas tão comumente atacam o ogro com chamas mágicas; e desafiam-no a produzir fogo como
utilizadas na América do Sul, que são enfiadas alternadas num fio flexível ou mesmo elas, sem a ajuda de nenhum instrumento. Depois, derrotam o ogro na luta
numa fibra rígida — sobretudo entre os Bororo, de cujo mito (M₂₀) provém a
e o queimam numa imensa fogueira. Elas transformam seus restos num
referência aqui invocada, e que trata exatamente dessa técnica — se parecem muito
com espinhos de porco-espinho, cujo diâmetro é comparável ao das contas, e que espírito dos cumes. Entrementes, perderam seus dons de caçadoras. Então
também apresentam zonas pretas e brancas alternadas. A transformação mel —Y sal, elas se conformam em casar-se com os homens da aldeia e deixá-los caçar
por sua vez, está registrada na América do Sul entre os Matsiguenga (mc: 242 n. 1) e os em seu lugar, mas as irmãs têm uma aparência e um cheiro tão repugnantes,
Ayoré (Muñoz & Bernand 1970, anexo, Mitologia, p. xxx-xxxv). que ninguém se dispõe a fazê-lo. Depois de muitas peripécias, elas acabam

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conseguindo o que querem e, quase que imediatamente, se transformam, Era exatamente esse o papel do tabaco entre os Klamath e os Modoc, que
como seus maridos, em espíritos da montanha. certamente fumavam no cotidiano por prazer, mas tinham um lugar reser-
Em vários casos, portanto, os personagens do mito perdem o poder de vado ao tabaco nos ritos xamânicos. Não há como concordar com Spier (2:
caçar ou são privados de carne porque não têm tabaco nem com que fazer 87) quando ele afirma que os xamãs fumavam apenas para relaxar, tese que
fogo, acessórios indispensáveis do fumante e que todos, principalmente em aliás diverge de suas observações anteriores quanto aos cachimbos reserva-
viagem, como lembra o mito, devem ter sempre consigo. É digno de nota que dos a esses especialistas e sua forma particular (tubo muito longo, envol-
os mitos desse grupo não façam nenhuma alusão ao fogo de cozinha, e que vido numa pele de cascavel) e ao tabaco, misturado com raízes venenosas,
encarem o fogo em três outras modalidades bem distintas, a pira funerária, a que era preparado para eles. O fato de os xamãs, numa invocação citada por
queimada para encurralar a caça e o que é produzido com a ajuda do bastão Gatschet (1890, i: 157), designarem seus cachimbos pelo mesmo termo que
giratório, para acender o cachimbo e fumar. Essas três modalidades corres- se aplica a seus apetrechos mágicos em geral também advoga em favor de
pondem a técnicas reais. Os Klamath, os Modoc, e também os Yana, vários um uso ritual do tabaco.
outros povos da Califórnia e os Carrier, bem ao norte, cremavam os cadá- As informações coletadas por Ray (1963: 55, 69-70) entre os Modoc con-
veres, incendiavam o mato para caçar (Ray 1963: 187),4 e fumavam, do modo firmam as que podem ser tiradas dos mitos, a menos que as técnicas xamâ-
indicado pelos mitos, um tabaco selvagem, Nicotiana attenuata ou bigelovii, nicas diferissem radicalmente nas duas tribos, o que não é nada verossí-
que talvez fosse também cultivado por alguns grupos klamath (Spier 1930: mil. Antes de começar a cura, os xamãs modoc fumavam como os espíritos
87). Do ponto de vista lógico, as três técnicas formam um sistema: a pira lhes haviam ensinado. Para assoprar a fumaça sobre suas próprias mãos
funerária é destruidora, o fogo produzido pelo bastão é construtor, e a quei- ou sobre o corpo do doente, cada um tinha seu estilo próprio. Informan-
mada reune os dois aspectos, pois destrói a vegetação mas oferece caça aos tes contam que um certo xamã possuía um cachimbo excepcionalmente
homens. Contudo, apenas o fogo produzido com o bastão tem uma posição grande, e que acendia sozinho, e que um colega klamath quis comprar. O
marcada nos mitos. Na falta desse fogo duplamente cultural, tanto por sua proprietário concordou, pois sabia que o cachimbo, animado pelo espíri-
origem quanto por sua finalidade, os homens perdem a chance de conquis- to tutelar, voltaria sozinho para ele. Certa vez, o cachimbo caiu na água e
tar a boa vontade dos espíritos e entram em conflito com eles. ninguém conseguiu recuperá-lo, mas na mesma noite, o xamã encontrou-o
Como na América do Sul (mc: 222), portanto, manifesta-se um desequi- em seu lugar na casa e, ainda por cima, aceso. Exalando a fumaça de seu
líbrio dinâmico no seio do grupo das transformações. Tanto no caso do sal cachimbo sobre um homem que o tinha provocado, um outro xamã provo-
quanto no do mel, os mitos concebem um eventual retorno do homem a cou nele uma doença mortal.
uma condição natural. Pois também o sal, na tripla forma de lama extraída O cachimbo e a fumaça de tabaco são, portanto, mediadores privilegia-
do brejo e pronta para o consumo uma vez seca, de fonte salgada em que dos para influenciar uma certa categoria de espíritos. Esses espíritos fre-
os animais bebem e de lágrimas secretadas pelo corpo humano, ilustra o quentam as montanhas e, em condições normais, só os xamãs se relacionam
paradoxo de uma culinária crua, a única capaz de levar o alimento ao seu com eles. Mas pode acontecer de homens comuns os encontrarem, como
ponto de perfeição, mas por efeito de vias naturais. Na outra ponta do grupo, viajantes que atravessam as montanhas — e devem por isso estar sempre
em compensação, o tabaco que corresponde simetricamente ao mel ou ao munidos de um cachimbo, de um bastão de fogo e de tabaco — e caçado-
sal aparece ao mesmo tempo como obra da cultura (já que é preciso possuir res. E aqui tocamos no cerne do problema da caça entre esses índios, que
um cachimbo e um bastão de fogo para poder fumá-lo) e meio supremo de só podiam encontrar caça de porte nas montanhas, onde, por razões tanto
comunicação com o mundo sobrenatural. práticas quanto místicas, temiam aventurar-se.5

4 . Em atsugewi “/yunasïi/, círculo de fogo em torno de uma montanha... queimavam 5 . A palavra inglesa deer, empregada pelos mitos (ou pelo menos pelas transcrições de
cinco ou seis montanhas por ano” (Garth 1953: 132). Tanto de dia quanto de noite os que dispomos) designa os pequenos cervídeos. Mas as observações de um autor que
Klamath e os Modoc acendiam círculos de fogo ao redor das montanhas para caçar viveu entre os Modoc pouco depois de 1850 levam a crer que se referiam antes à caça
cervídeos (E. W. Voegelin 1942: 169). de grande porte, e particularmente aos verdadeiros cervos (elk na América do Norte):

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Corroborando tal paradoxo etnográfico, dispomos de numerosas indica- pois a época em que corriam os maiores riscos, os caçadores poderiam
ções afora as que provêm dos mitos, e que nossa análise permitiu evidenciar. ter estado em suas cabanas semi-enterradas bem aquecidas, cobertas de
Spier (2: 155) faz notar que apesar da abundância de caça em seu território, esteiras e de torrões de grama, protegidos dos rigores do inverno, vivendo
os Klamath eram maus caçadores: “Não sabemos nada de caça aos cervíde- de suas provisões em completa segurança.
os”, reconhece um de seus informantes. Essa carência não é explicada ape- Tal aspecto discordante da existência prática se manifesta igualmente
nas pelo fato de que um bom caçador precisa contar com a proteção especial de outro modo. Para caçarem, os Klamath às vezes tinham de se aventurar
dos espíritos, mas também porque as montanhas cobertas de florestas só fora de seu território, na vertente ocidental das Cascades (Spier 1930: 155). Os
atraíam os solitários em busca de uma revelação sobrenatural. mitos modoc também atestam que, da perspectiva deles, a caça não apre-
À diferença do que ocorria entre os Klamath, entre os Modoc a caça era sentava um caráter apenas atípico, mas exótico. A sudeste das terras modoc,
mais importante do que a pesca; a temporada era aberta no outono, “quan- conta M₅₄₉a, dois irmãos, Doninha e Marta (avatares de Aishísh e Kmúka-
do os acampamentos eram deslocados para maiores altitudes”. Os homens mch, cf. supra, p. 37) viviam no topo de uma montanha alta. Em recompensa
então caçavam cervídeos, enquanto as mulheres coletavam bagas da monta- por ter causado a morte do ogro Yahyáhaäs numa fogueira colossal, Doni-
nha, que amadurecem no final do outono (Ray 1963: 182). O período de caça nha recebeu a mão da filha do chefe local. Porém, ao contrário da esposa de
ia até dezembro, embora fosse preciso retornar à aldeia de inverno a partir Marta, que era shasta, ela não conseguiu se acostumar à nova residência e foi
de outubro, para consertar as casas, cujo vigamento fora desmontado na embora. De modo que uma moça de um grupo de inimigos tradicionais se
primvera. Enquanto as mulheres cuidavam disso, os homens continuavam adapta ao modo de vida dos heróis culturais melhor do que uma conterrânea,
caçando nas montanhas, por vezes até por mais tempo, se as provisões não em circunstâncias nas quais eles livram os humanos do gigante canibal que,
fossem suficientes. Mas essa eventualidade era temida, ainda mais porque segundo M₅₄₉b, c, os impedia de assumir sua condição de caçadores. Pois
“o tipo de habitat dos Modoc e seu modo de vida impedem-nos de caçar de naquele tempo (M₅₄₉a), as pessoas comiam apenas grãos e raízes (Curtin
modo proveitoso no inverno” (ibid.: 185). 1912: 148).
Nessas condições, a caça de fato apresenta um caráter paradoxal, Vimos (supra, p. 72) que, para os Klamath os Modoc, esse ogro só tem
duplamente paradoxal até. Pois, para evitar a fome, era preciso que o uma perna, ou manca. No segundo volume destas Mitológicas (mc: 395-
auge dessa atividade ocorresse justamente no momento em que os índios 400), discutimos a função semântica da claudicação e propusemos ver nela,
deviam descer das montanhas frequentadas pela caça de porte, para pelo menos na América, o símbolo de uma ausência de periodicidade. Mas
reconstruirem as aldeias de inverno. Além disso, a caça podia ser abso- Yahyáhaäs usa essa enfermidade a seu favor, já que sua perna mais curta lhe
lutamente indispensável na época do ano em que é mais difícil praticá-la. permite correr na encosta das montanhas com a mesma velocidade de um
Uma atividade que deveria ser normal para resolver o problema da sub- indivíduo normal em terreno plano. Ou seja, nas condições particulares dos
sistência obrigava os caçadores a um comportamento duplamente anor- lugares que ele frequenta, são suas vítimas, e não ele, os verdadeiros mancos.
mal. No espaço, pois as montanhas por onde se aventuravam para caçar Porque ele se desloca com penas de comprimento diferente num mundo em
os expunham a uma luta desigual com os espíritos, que não sabiam paci- que tudo é declive, essas duas anomalias se neutralizam. E somente para o
ficar com oferendas de tabaco especial, como faziam os xamãs. No tempo, dono das montanhas a caça satisfaz a exigência de uma periodicidade bem
regrada. Ao contrário, como mostramos, ela se apresenta arritmica aos caça-
dores humanos, que têm de se extenuar nas encostas das montanhas, para
“Pode soar estranho dizer que os cervos (elks) sobem para os cumes quando o inverno as quais suas pernas não foram feitas, e contrariar o curso ideal de sua exis-
se aproxima, em vez de descerem para as colinas baixas e planícies, como os pequenos
tência, enfrentando os rigores do inverno, quando sua cultura tinha tudo
cervídeos (deers), mas é isso que ocorre... Existem fontes quentes nas montanhas...
onde cresce uma espécie de agrião das fontes, e bagas selvagens nos brejos de água
previsto para que eles pudessem se abrigar em casas confortáveis.
morna e em suas margens, que permitem aos cervos sobreviver”. E, um pouco mais A claudicação de Yahyáhaäs não apenas confirma nossa interpretação
adiante: “Pelo meio do inverno, o chefe levou seus homens para uma grande expedição do caráter paradoxal da caça nas tribos limítrofes da Califórnia e do Ore-
de caça nos maciços montanhosos mais altos” (Miller 1873: 213, 271). gon. Confirma também, e de modo notável, o parentesco que buscamos

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determinar entre os mitos das duas Américas que veem a origem da caça Acabamos de por em evidência uma espécie de jogo de espelhos cujo efeito
como função da do tabaco. Mas a evidência de que a armação dos mitos faz com que dois sistemas míticos consideravelmente afastados se reprodu-
sul-americanos correspondentes está implicitamente presente nos mitos zam um ao outro, sem por isso deixarem de sofrer deformações decorrentes
que acabamos de discutir aparece, imediatamente, ao se os comparar com da estrutura de cada uma das superfícies refletoras, diferentes em cada caso.
um mito do Chaco sobre a origem do tabaco que introduz a mesma relação Por outro lado, cabe lembrar que foi a análise de um episódio específico de
dialética entre a presença e a ausência de periodicidade. Nesse mito (M₂₄; um mito yana (M₅₄₆) que nos levou a fazer essa constatação. Ora, esse mito
cc: 108-15; mc: passim), uma ogra envenena o marido com sangue menstrual ao mesmo tempo reproduz e transforma, de modo ainda mais sistemático,
e, desse modo, o transforma num manco. Como seu homólogo dos mitos mitos que se encontram bem próximos dele no espaço. Visto que o mito faz
modoc, ela consegue tornar sua vítima aperiódica, tirando vantagem de seus atores transitarem por todo o território modoc e se aventurarem até as
uma periodicidade sua que, em ambos os casos, apresenta um caráter pato- fronteiras setentrionais das terras klamath, é de supor que os Yana possuís-
lógico. Em seguida, ela devora os pássaros que o marido tira do ninho, e pro- sem algum conhecimento de terras estrangeiras.7 Na verdade, as referências
cura devorar o próprio marido, que consegue escapar dela, matá-la numa ao lago Klamath e ao lago da Cratera, que já mencionamos, são acompanha-
fossa-armadilha e queima seu cadáver numa fogueira, cujas cinzas originam das por indicações que remetem tanto a sítios quanto a mitos que também
o primeiro tabaco.6 De modo que um conflito declarado entre uma ogra e podem ser localizados na mesma região.
um personagem manco, que a lança numa fossa e em seguida numa foguei- Para mostrar isso, seremos obrigados a comparar minuciosamente vários
ra, acarreta a presença do tabaco. Basta inverter a fórmula para obter uma mitos. Para evitar que o leitor se perca ao ter de voltar atrás, começaremos
expressão condensada dos mitos modoc relativos a Yahyáhaäs, nos quais um resumindo em grandes linhas o que será nossa interpretação. A primeira
conflito declarado entre personagens masculinos (ou femininos em M₅₄₉c) e parte deste livro permitiu apresentar mitos cujo herói é um desaninhador
um ogro de uma perna só, ou manco, resultante da ausência do tabaco, leva de pássaros. Na segunda parte, introduzimos o mito de Dona Mergulhão,
o ogro ao precipício ou à fogueira. que transforma o primeiro de vários modos. Tais transformações equivalem,
Ao mesmo tempo, verifica-se que o desdobramento da armação, já obser- em vários aspectos, a inversões: herói pisoteado em vez de erguido, origem
vado na parte esquerda do diagrama, quando se passa dos mitos do hemis- de anti-adornos (colares de corações humanos) tirados por uma mulher de
fério austral para os do hemisfério boreal, se repete na outra extremidade seus irmãos no lugar de origem dos adornos (espinhos de porco-espinho)
do campo. De um lado, o sal, dom gratuito feito pela natureza para a cultura, presenteados por um homem a suas esposas etc.
constitui o meio da caça, antecedente dos adornos. Do outro, a ausência do Portanto, no atual estágio, dispomos de duas séries míticas que se corres-
tabaco — ou mais precisamente, do equipamento do fumante, cachimbo e pondem mas das quais uma apresenta, por assim dizer, um poder rotatório
bastão de fogo que, enquanto objetos manufaturados, correspondem antes direito e a outra, um poder rotatório esquerdo. Levando adiante uma analo-
aos adornos — constitui o antecedente da caça, pelas mesmas razões que gia que talvez seja considerada audaciosa, mostraremos que a originalidade
fazem dele(s) o meio de manter relações harmoniosas com o mundo sobre- do mito yana está em uma forma que os químicos chamam de racêmica. Ele
natural. Tudo bem considerado, tais razões dizem respeito à infra-estrutura consolida os dois tipos num corpo único e neutraliza a oposição entre eles.
tecno-econômica, para a qual é preciso, como sempre, olhar primeiro, se se Mas veremos também que ele não chega a isso apenas invertendo a ambos
pretende tornar inteligíveis os afastamentos diferenciais entre as ideologias.

! 7 . Não há porque duvidar que se possa legitimamente estender a todas as tribos da


região a observação de um antigo viajante que com elas conviveu numa época em
que ainda tinham liberdade de movimento: “Esses índios têm uma grande sede de
6 . A aproximação entre os mitos dos dois hemisférios é, portanto, reforçada pelo fato conhecimento, principalmente no que diz respeito a lugares e regiões. São grandes
de os índios da região aqui considerada da América do Norte cultivarem o tabaco (ou viajantes... Ensinam geografia uns aos outros traçando mapas na areia ou nas cinzas
as plantas que o substituem) em leitos de cinzas (cf. Sapir & Spier 1930: 269; Sapir 1907: com uma vareta... modelam a areia ou as cinzas em pequenos montículos ou em forma
259; Goddard 1903: 37). Era essa a única forma de agricultura que conheciam. de espigões, para representar os picos e as cadeias de montanhas” (Miller 1873: 240).

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num eixo diferente daquele no qual se situava a oposição primitiva. O fenô- leste (M₅₄₇). Vimos que os Modoc — cujo território confina com o dos Kla-
meno resulta do fato de que o mito yana, para poder juntá-los e construir math, ao norte, e com o dos Achomawi, vizinhos dos Yana, ao sul — também
sua intriga, tem de remanejar pedaços de narrativa que toma emprestados adotam em seus mitos soluções intermediárias, casando a irmã com um
alternadamente das duas séries. homem de fora, como os Klamath, mas acrescentando que ela não desgruda
O mito começa descrevendo uma família composta de um pai, seus dos parentes (M₅₃₉), ou então mantêm-na solteira (M₅₄₀), como uma das
vários filhos e duas filhas. Tal composição inverte duplamente a que é dada versões yana, mas sem nunca adotarem a fórmula extrema do outro.
pelo mito klamath correspondente (M₅₃₈), uma mãe (≠ pai), seus vários A partir daí a análise se complica, pois, além das versões já mencionadas,
filhos, sua filha e uma nora (esposa grávida/jovem virgem).8 Já que os irmãos o contraponto mítico faz intervir implicitamente o mito modoc M₅₄₁, que
não ocupam posição marcada em nenhum dos casos, pode-se dizer que a encadeia a história do desaninhador de pássaros a uma versão invertida do
filha, futura Dona Mergulhão, constitui o termo invariante, pivô em torno mito de Dona Mergulhão (supra, p. 60ss). A primeira cena de M₅₄₁ adota o
do qual a configuração familiar bascula entre um mito e outro. estilo da vida econômica; nela, os irmãos da heroína se dedicam à pesca, e
A respeito da oposição nora grávida/filha virgem, note-se que a primeira são caçadores em M₅₄₆. Na sequência de M₅₄₆, as referências indiretas a M₅₄₁
se chama Cotovia, em M₅₃₈, e a segunda, Águia, em M₅₄₆. Ambas são salva- se multiplicam.
doras, mas uma delas opera de modo passivo e por baixo (morre na fogueira Consideremos, por exemplo, o local da intriga, que é uma grande casa
após deitar-se de bruços, para proteger os filhos que traz no ventre) e a outra, comunal, contraposta pelo mito, para o melhor funcionamento, a uma
de modo ativo, pelo alto (pendura-se no sol, fogueira celeste, para poder em casa habitada por um único casal, contrariamente ao que, a respeito dos
seguida ajudar os parentes). Pois bem, sabemos, por M₅₃₁, M₅₃₈ e M₅₆₀, que Yana, afirma Kroeber, induzido a erro pelo pressuposto tão tenaz na escola
a águia e a cotovia formam um par de aves em correlação e oposição. Aqui, americana de que os mitos sempre refletem uma realidade etnográfica, sem
uma verdadeira “Águia” (pois que é esse seu nome) ressuscita os seus, ao levar em conta relações dialéticas que prevalecem entre os mitos e que fre-
passo que em M₅₃₁ etc, falsas águias, que na verdade são cotovias, servem de quentemente os levam a adulterar a realidade. Voltaremos a esse ponto, de
pretexto a um pai para enviar o filho à morte, segundo crê. capital importância ao nosso ver (infra, p. 170). Por ora, contentemo-nos em
Numa outra versão yana, a que já nos referimos (M₅₄₇; Sapir 1910: 228- ressaltar dois detalhes de M₅₄₆ que mostram que, à diferença de M₅₄₁ e de
32), em que a irmã salvadora não aparece, e cede lugar ao irmão, um per- outros mitos do grupo, o mito yana rompe a constelação familiar em favor
sonagem único chamado Cotovia exerce uma função intermediária entre a de um conjunto ao mesmo tempo mais restrito e mais vasto, a sociedade dos
de sua homônima em M₅₃₈ e a de Águia em M₅₄₆. É uma velha, que vive homens, simbolizada pela casa comunal. Em primeiro lugar, a lista dos pro-
sozinha a leste da aldeia. Dona Mergulhão, que nesse caso é uma estrangeira tagonistas inclui Coiote, que não faz parte da família, e faz papel de comensal.
vinda do leste, precisa, portanto, passar na frente da casa dela para chegar a Em segundo lugar, a versão Sapir de nosso mito, na qual também aparecem
seu destino. E, de fato, para lá, e diz que é sobrinha da anfitriã, que desconfia, estrangeiros (a própria Dona Mergulhão, além de vários visitantes de fora),
e chega a pensar em matar a hóspede. Acaba desistindo, e se limita a dar conta como a desconhecida tentou convencer as moças da aldeia a se junta-
sábios conselhos à jovem, que não irá segui-los. Ela poderia ter agido como rem a ela para espiar os homens na casa comunal usada como sauna. Uma
salvadora, como Águia, mas, como Cotovia em M₅₃₈, ela se conforma em delas responde: “Não, nós nunca olhamos dentro da casa quando os homens
aceitar seu destino. fazem sauna”. Qualquer que fosse a realidade etnográfica, o texto deixa bem
A irmã incestuosa de M₅₃₈ é casada, e mora nalguma parte a leste de sua claro que a sauna funciona aqui como uma casa dos homens, e se opõe à
aldeia natal. As versões yana separam todos esses atributos, para conceber casa de família em que transcorrem as demais versões. Mesmo se colocando
ou uma irmã incestuosa e solteira (M₅₄₆), ou uma estrangeira lasciva e assas- numa perspectiva estritamente etnográfica, Sapir e Spier (1943: 257) admi-
sina como a outra, mas não incestuosa devido a seu estado civil e que vive a tem a possibilidade de algumas das casas cobertas de terra dos Yana terem
sido reservadas para a utilização como sauna “isto é, primeiramente, lugar
8 . Os Modoc que vivem entre os Klamath, os Achomawi e os Shasta mencionam um de reunião dos homens e dormitório masculino”. As saunas eram verdadei-
pai e uma mãe numa versão (M₅₄₀). ras casas dos homens entre os Shasta (Holt 1946: 306).

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Na casa da família, o jovem herói, objeto dos desejos de sua irmã, é per- Todas essas reviravoltas conservam valor operatório até em seus mínimos
manentemente ocultado no fundo de um buraco especialmente preparado detalhes. A incendiária de M₅₄₆ pega os corações de suas vítimas com uma
para isso. Na casa dos homens de M₅₄₆, circunstâncias temporárias fazem espécie de rede de borboletas, cuja construção o mito descreve cuidadosa-
com que ele durma à parte. A reclusão apresenta, portanto, características mente. Essa rede que serve para a captura inverte o remo que a protagonista
antitéticas: institucional num caso, ocasional no outro. E quando a filha homóloga de M₅₃₉ utiliza, não para retirar os corações do fogo, mas para os
incestuosa sobe no teto da sauna onde o irmão descansa para alardear seu empurrar para dentro dele. Ambos os instrumentos apresentam claramente
amor, opõe-se claramente à irmã virtuosa de M₅₄₁, que sobre o teto da casa uma relação de correlação com outros. Primeiro, com a borduna grossa que
da família, avistando seu pretendente, consegue não revelar seus sentimentos. Dona Mergulhão utiliza na outra versão yana (M₅₄₇), para empurrar para o
A estrangeira de M₅₄₇ apressa o anoitecer, como a heroína das versões fogo os olhos, em vez dos corações de suas vítimas. E também com o malhete
setentrionais. Já a irmã incestuosa de M₅₄₆ parece ser menos impaciente, vis- ou bengala que o demiurgo utiliza em M₅₃₁ e M₅₃₈, para lançar o bebê da
to que, como trata de notar o mito, o sol ainda ia alto no céu quando o irmão heroína fora da fogueira (cf. Barker 1963a: 36 n. 26). Esta última ligação é
desejado lhe foi entregue e ela, ao contrário, aproveita a circunstância para confirmada quando M₅₃₈ conta o nascimento e as aventuras de um menino,
adiar a parada. Essa inversão parece ser exigida por uma intriga que coloca a vítima do pai incestuoso, e M₅₄₆ — divergindo nesse ponto de todas as outras
outra irmã em conivência com o sol; logo compreenderemos porque. versões do mito de Dona Mergulhão (mas começamos a entender porque) —
A união nunca é consumada. Ou o rapaz foge de uma aproximação inces- desdobra o personagem do sobrevivente em irmão mais velho e pai, ambos
tuosa (M₅₄₆) ou então, na ausência desse motivo, quando a heroína é uma vítimas de uma filha incestuosa. Os corações desses dois sobreviventes são
estrangeira (M₅₄₇), teve-se o cuidado de cobrir o pênis do herói com uma projetados para bem alto pelo fogo, e um cai numa ilha fluvial perto do lago
cúpula de glande para impedir o coito. Klamath, o outro ao pé do monte Shasta; em relação às demais versões, tem-
Homem em M₅₄₇ e outros, a aranha vira mulher em M₅₄₆, parente ainda por se portanto uma dupla oposição, ilha/montanha e sopé da montanha/cume.
cima, irmã do pai salvadora, invertendo a irmã do pai destruidora que é Dona Chegamos aqui a uma transformação essencial. Por que M₅₄₆ afirma que
Mergulhão em relação a seus sobrinhos, em outras versões (M₅₃₈, M₅₃₉). os corações, no momento em que caem, reconstituem o corpo todo de seus
Segundo essas mesmas versões, os passageiros do cesto celeste formam possuidores? A continuação explica. É para permitir que os corpos fiquem
uma família biológica. Para os Yana, eles são a população de uma aldeia, ten- depois enterrados, um até o pescoço, e o outro até o rosto. Ou seja, uma
do à frente Coiote, mero comensal: “todos os que estavam na casa grande situação que, em dois eixos, ao mesmo tempo reproduz e inverte a história
o seguiram” (Curtin 1899: 409). De acordo com M₅₃₉, um irmão comete o do desaninhador de pássaros. Pois o pai e o filho, opostos como persegui-
erro de olhar durante a ascensão. M₅₄₆ e M₅₄₇, ao contrário, atribuem o erro dor e perseguido naquela história, aqui comparecem juntos na posição de
a Coiote, personagem que se tratou anteriormente de definir como hóspede perseguidos. E se, naquele caso, um deles é elevado pelo outro até o topo
de uma família da aldeia, da qual não é membro; ele desempenha, portanto, de uma árvore ou de um rochedo, agora ambos estão enterrados no solo,
a função semântica de não-irmão. projetados ambos para baixo, em vez de o filho, sozinho, ser levantado para
A irmã mais velha de M₅₄₆ é a única que escapa do desastre, um privi- cima. Confirma-se, assim, tal como havíamos anunciado, que o mito de
légio que as versões modoc (M₅₄₀) — aqui também a meio caminho dos Dona Mergulhão inverte o do desaninhador de pássaros. Aliás, o herói da
Yana, já que também põe em cena duas irmãs de caráter oposto — reser- versão yana M₅₄₆ se chama Lince, como seu homólogo modoc de M₅₄₀. Seria
vam para a irmã caçula. Nessa versão, todos os habitantes da aldeia esca- imprudente invocar esse aspecto do mito, já que a outra versão yana (M₅₄₇)
pam, transformando-se em pássaros, exceto a família, que permanece no se chama Águia. Contudo, mesmo que se trate de mera coincidência, não
solo, assim como a irmã caçula, que consegue escapar da fogueira. A versão podemos deixar de lembrar que o herói klamath desce da árvore na qual
yana (M₅₄₆) inverte rigorosamente essa sequência: apesar de subirem ao estava preso num cesto forrado com uma pele de lince, símbolo de luxo para
céu, todos os habitantes da aldeia morrem, exceto a irmã mais velha, que os índios (supra, p. 29; Sapir 1910: 36 n. 55), e que os desaninhadores sul-ame-
chega ainda mais alto do que eles e já possui — já que se chama Águia — ricanos possuem nomes análogos, ou que têm a mesma conotação. O dos
uma natureza de pássaro. Kayapó-Gorotire se chama Botoque, nome de um adorno, e entre os Bororo,

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o nome do herói Gueriguiguiatugo é analisável em duas palavras, sendo que Tal divergência não é menos motivada do que as demais. Com efeito, os
a segunda, que significa “o pintado”, designa uma perifrase do jaguar, quali- dióscuros da versão klamath e modoc se apresentam como uma espécie de
ficado portanto de um ponto de vista estético (cf. cc: 84, 168 n. 1), e cuja pele especialistas do desdobramento. Unidos no ventre da mãe pela gemelari-
é um bem muito precioso. dade, eles se separam no momento em que a avó os tira de lá, mas ela os cola
Se o personagem do desaninhador é simétrico ao do herói enterrado, novamente logo em seguida, para formar um ser único que, mais tarde, con-
parece normal que seu salvador, de natureza terrestre (jaguar) ou celes- seguirá se separar. Quando eles decapitam a tia, parente próxima, também
te (urubu) na América do Sul, segundo se considerem as versões retas ou dilaceram o cerne de sua própria intimidade, por assim dizer, manifestando
invertidas — e, pela mesma razão, celeste (irmãs-borboleta) ou terrestre mais uma vez sua natureza paradoxal, que ainda não é o momento de inves-
(ave das neves) na América do Norte — adquira a natureza celeste ainda tigarmos. Por ora, notaremos apenas que essa natureza difere em todos os
mais pronunciada da águia, quando a posição da vítima, simétrica oposta à sentidos da dos irmãos Tsanunewa: parentes próximos dos demais prota-
sua, é invertida de cima para baixo. gonistas, em vez de completamente estrangeiros, gêmeos em vez de irmãos
Vejamos agora o episódio dos irmãos Tsanunewa. Vimos que, segundo de idades diferentes, nascidos no decorrer do mito e progressivamente edu-
Curtin, essa palavra designa pássaros pescadores, e portanto carnívoros cados, ao passo que os irmãos Tsanunewa, assim que entram em cena, já
como a águia, mas numa escala muito mais modesta, caso se trate do maça- são capazes de caçar e até de casar (já que Águia se propõe a desposá-los).
rico kildir, como sugere uma outra fonte (supra, p. 82). Faremos duas obser- As versões klamath e modoc situam os dióscuros, portanto, no interior, e a
vações a esse respeito. Em primeiro lugar, a versão Sapir (M₅₄₇), que ignora versão yana se coloca numa perspectiva exterior, para descrevê-los. Suple-
a heroína salvadora e transfere o nome de Águia para o herói perseguido, mentares num caso (pois provêm de um corpo desdobrado), os dióscuros se
também confia o papel de vingadores a dois pássaros aquáticos, o mergu- tornam complementares no outro, como indicam as preferências respectivas
lhão (diver), “pequeno pato que vive na água lamacenta”, e a garça. Ambos dos irmãos Tsanunewa por ossos vermelhos ou verdes, e suas escolhas de
enfrentam juntos Dona Mergulhão mas, na verdade, a garça deixa tudo na duas partes diferentes do corpo de sua vítima para atingir com suas flechas.
mão do companheiro. De modo que a oposição mais fortemente marcada Se de fato, como postulamos, o herói enterrado corresponde simetrica-
aqui é aquela entre um pássaro mergulhador — certamente um P. auritus — mente ao desaninhador elevado, segue-se que as irmãs que salvam o irmão
e o mergulhão. Voltaremos a isso na terceira parte (ii).* mais velho correspondem simetricamente às irmãs-borboleta que, nas ver-
Em segundo lugar, os irmãos Tsanunewa substituem o par dioscúrico que, sões retas (M₅₃₀, M₅₃₁, M₅₃₈), desempenham a mesma função em relação ao
nas outras versões do mito, se encarrega, como eles, de executar o criminoso; prisioneiro no alto da árvore. A palavra /jamuka/ (Sapir & Swadesh 1960: /
são também irmãos em M₅₃₉, e informados por “um pato de pescoço branco”, zaamuk u/) designa em yana o verme de glande. É portanto possível que a
ao passo que aqui é uma mulher chamada Águia que os informa.9 Depois transformação mítica tenha retomado a seu modo uma metamorfose real,
disso, eles atravessam o corpo de Dona Mergulhão com flechas e trazem seu pois também na natureza as lagartas se transformam em borboletas. Tanto
cadáver inteiro, em contraste flagrante com outros mitos do grupo, em que as irmãs larvares de M₅₄₆ quanto as que já atingiram o estágio adulto de
os dióscuros a decapitam com uma faca e trazem apenas a cabeça cortada. M₅₃₀, M₅₃₁ e M₅₃₈ livram o herói de sua prisão terrestre ou celeste, cuidam
dele e o curam; e ele sempre se casa com elas.
Por outro lado, os dois velhos de M₅₄₆, que tem nomes de lagartas, for-
*
Os dois pássaros aqui nomeados, grèbe e plongeon no original, são os mesmos que mam claramente um par de opostos: respectivamente pai e sogro do herói,
protagonizam mitos analisados em A origem dos modos à mesa, a que a tradução optou, um tira dele as esposas que o outro lhe havia dado. Ora, eles personificam
ali, por referir-se pelos nomes científicos, respectivamente P. auritus e P. podiceps,
duas espécies de larvas de hábitos diametralmente opostos: uma delas se
por não existirem em português nomes correntes que os diferenciem (ambos são
“mergulhões”) [n.t.]
alimenta, à diferença dos homens, de /folhas/venenosas/ e a outra, como os
9 . Mas se a palavra /tsanunewa/ designa o kildir, como em língua achomawi, cumpre homens, de /grãos/comestíveis/.
notar uma torsão suplementar em relação a M₅₃₈, na qual é esse pássaro barulhento ele De modo ainda mais claro do que a versão modoc M₅₄₃, que como sempre
mesmo que faz o papel de informante. ocupa uma posição intermediária, no sentido de conjugar os dois motivos, a

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versão yana M₅₄₆ inverte o episódio dos porcos-espinho por meio do dos cer- mas como vários deles, cujas propriedades refletoras geram tipos diferentes
vídeos, com que o substitui. Pois aqui o caçador não é vítima de sua caça; muito de simetria. Opostos pela língua e pelos interesses, dos dois lados de uma
pelo contrário, ele a atrai com isca da água saborosa que destila, e os animais, fronteira comum, os Klamath-Modoc e os grupos de língua hokan, a que
seduzidos, se oferecem a ele. Um herói umidificado, fonte de guloseima para pertencem os Yana, consideravam-se mutuamente como ferrenhos inimigos.
animais cheios de carne, se opõe assim a um herói coberto de cinzas (supra, p. Porém, era-lhes possível encontrar num determinado uso da simetria um
45), importunado por bichos portadores de adornos. Ao mesmo tempo, M₅₄₆ meio para superar a antinomia que resultava de sua proximidade geográfica
revela sua função etiológica: relata a origem de fontes salgadas, isto é, de uma e de sua rivalidade política e econômica. Iluminamos alhures (Lévi-Strauss
água terrestre duplamente benfazeja, já que dá origem a terras salíferas e, por 1971a) esse papel funcional da simetria, modelando os ritos e mitos e povos
ser naturalmente atraente para a caça de porte (ao passo que os espinhos de vizinhos até apresentarem imagens invertidas uns dos outros, a relação mais
porco-espinho são culturalmente atraentes para os humanos), facilita a sua caça. apropriada para conciliar as semelhanças herdadas da geografia ou da his-
Uma vez recuperado, o desaninhador das versões klamath e modoc tória, das quais não é possível livrar-se facilmente, e as diferenças que cada
recupera as esposas que lhe tinham sido tomadas pelo pai. Aqui, a irmã do povo cultiva para realçar sua originalidade.
herói enterrado o encontra na companhia de mulheres encorajadas pelo pai No caso dos mitos que acabamos de discutir, essa situação normal se
a casar-se com ele. É como se a narrativa, ao aproximar-se de seu final, con- complica, devido a uma situação menos normal. Pois esses mitos não fazem
densasse seus motivos, como o stretto de uma fuga; entre um grupo de mitos apenas transformar a mesma história em vários eixos. Eles a situam num
e o outro, as passagens alternadas se tornam mais rápidas e mais breves. Pois território único, cuja realidade objetiva os impede de desnaturar, a não ser
logo depois dessa alusão invertida ao mito do desaninhador, volta-se, tam- — mas sem jamais empregar esse procedimento de forma sistemática — des-
bém de forma invertida, para o de Dona Mergulhão, e em vez de (M₅₄₀) uma locando de alguns quilômetros no mapa uma configuração topográfica sim-
irmã caçula ressuscitar seus familiares depois de maldizer sua irmã e trans- ples, que eles aplicam a uma outra semelhante e que pode, por isso, desem-
formá-la em pássaro, uma irmã mais velha (M₅₄₆) reproduz o primeiro mila- penhar o mesmo papel. Mas determinados sítios — como o lago da Cratera,
gre, mas beneficia com ele a própria irmã, que redime moralmente e devolve o lago Klamath superior e o monte Shasta — parecem estar tão profunda-
fisicamente à vida. E finalmente, em acordes refinados, o episódio terminal mente gravados na imaginação das diversas tribos que, ainda que não façam
conjuga o tema e a resposta da composição em fuga. No lugar de um herói parte de seu território, elas não podem mudar-lhes a identidade.
que derrota definitivamente o pai e recupera as esposas que este lhe tinha Para superar esse novo tipo de dificuldade, é preciso que o pensamento
roubado, vemos um pai que derrota definitivamente o filho e faz dele, que mítico se valha de um gênero suplementar de simetria. E agora comprrende-
era inicialmente um rapaz temporariamente isolado, um filho escondido mos que o tipo de simetria que percebemos nos mitos corresponde exatamente
para sempre; e ainda lhe tira as mulheres, não para si mesmo, mas para os às perspectivas invertidas nas quais um mesmo território se apresenta a obser-
irmãos mais velhos, que ficam com elas. O mito conclui, portanto, como o vadores colocados face a face nas duas extremidades. É essa, efetivamente, a
do desaninhador, mas invertendo o conteúdo da narrativa. E essa narrativa situação dos Klamath e dos Yana: uns olham para o sul, a partir do lago Klama-
invertida reproduz um episódio do mito de Dona Mergulhão, mas que neste th superior, na direção do monte Shasta, e os outros, para o norte, a partir dos
último aparece no início, e não no fim. Em relação aos mitos que reutiliza, montes Lassen e Shasta, na direção dos lagos Klamath e da Cratera. Com isso,
a versão yana opera, consequentemente, uma dupla reviravolta: afetando o suas visões respectivas de mitos estreitamente associados a esse território com-
conteúdo das duas intrigas e também a ordem de sucessão de uma das nar- partilhado se invertem, e o que é começo para uns torna-se fim para os outros.
rativas. Há que se curvar à evidência: ao concluir com a transformação do Em escala reduzida, já percebemos um esboço do mesmo fenômeno nos
herói em filho escondido, a versão yana do mito de Dona Mergulhão, que mitos modoc. Pois devido ao fato de a primeira parte de M₅₃₉ se inverter em
no entanto conta a mesma história, remonta o curso dos acontecimentos e M₅₄₁, conservando contudo o mesmo lugar (refiro-me à história da virgem ajui-
termina exatamente onde as versões modoc começavam. zada em lugar da mulher desmiolada), a sequência iniciática comum a ambos
Se de fato o mito yana reflete as versões mais setentrionais, como dizí- os mitos se desloca perceptivelmente: precede a história do desaninhador de
amos no início, não o faz, consequentemente, como um simples espelho, pássaros que forma a segunda parte de M₅₄₁, e termina a dos irmãos celestes

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que a substitui em M₅₃₉. Mas é quando se comparam mitos provenientes de Os Atsugewi e Achomawi, de língua hokan como os Yana, viviam entre
povos distintos que essas transformações adquirem plena dimensão. Fenôme- eles e os Modoc, na bacia do rio Pit, o “rio das fossas”, assim chamado devi-
no generalizado no conjunto de grupos que os compartilham, o mito de Dona do às numerosas armadilhas cavadas no solo para capturar cervídeos, e tal-
Mergulhão e o do desaninhador de pássaros refletem um ao outro. E se ocorre, vez também para interditar as pistas que levavam às aldeias (Miller 1873: 373;
como entre os Yana, de se consolidarem num único corpo mítico de forma racê- Garth 1953: 132). A oeste, o território dos Achomawi confinava com o dos
mica, neutralizando, portanto, sua oposição, é o próprio corpo mítico resultante Shasta, também de língua hokan, com quem eles mantinham relações ambí-
que tem de refletir um outro, ainda que virtual, do qual apresenta uma ima- guas (Miller 1873: 33; Kniffen 1928: 301). Os Atsugewi ocupavam, ao sul, os
gem enantiomorfa, como o são as imagens que, de cada lado de uma fronteira, o vales de vários afluentes do rio Pit; seus vizinhos meridionais eram os Yana
mesmo espaço gera para povos que o percebem a partir de perspectivas opostas. e os Maidu da montanha, estes membros da família linguística penutiano
(figs. 7 e 9). São esses os cinco grupos cujos mitos passaremos em revista,
! começando por uma versão atsugewi que servirá de referência, devido à sua
riqueza, e também em razão da posição geográfica dos Atsugewi, no centro
Para delinear mais claramente nossa argumentação, escolhemos opor as ver- da zona intermediária que agora examinamos.
sões klamath-modoc às yana, que provêm de tribos situadas decididamente ao
norte e ao sul da área de difusão do mito de Dona Mergulhão. Ao fazermos isso, M 550 ATSUGEWI: DONA MERGULHÃO
deixamos de lado versões intermediárias e marginais, que agora cabe analisar.
Antigamente, os homens não tinham pedras para talhar as pontas de suas flechas;
faziam-nas de casca de árvore, o que não contribuía para sua eficácia. Esquilo-ter-
124o 122o 120o restre [Eutamias townsendi?] foi até a casa do dono das pedras e disse que tinha
fome; serviram-lhe pedras piladas para comer. Ele comeu bastante, fingiu que pas-
sava mal e sentia cólicas terríveis. O anfitrião achou que ele ia morrer e parou de
klamath vigiá-lo. Ele aproveitou para pegar um monte de pedras e conseguiu escapar cavan-
do um túnel subterrâneo.
42o
modoc De volta à aldeia, ele escondeu todo o seu tesouro, exceto uma faca de pedra
que usou, para espanto de todos, para cortar sua carne. Distribuiu as pedras entre os
ok

companheiros, explicando: “Assim, vocês vão caçar os cervos mais facilmente, e corta-
r

ta

yurok
ka

as
sh

achomawi
rão melhor a carne”. A aldeia toda se pos a talhar pontas de flechas. No dia seguinte,
conseguiram uma grande quantidade de caça.
t
yo
wi

wintu atsugewi Um dia depois, Cão partiu para bem longe a oeste, para roubar o fogo de uma
mulher que era a única a possui-lo. Debruçado na abertura de fumaça da casa, jun-
yana
maidu des tou algumas fagulhas no oco das orelhas, colocou um pouco de estopa e foi embora.
40o montagnes
A pedido da dona do fogo, Gaio-Azul fez chover, mas Cão correu muito depressa e
chegou à aldeia ao anoitecer. No dia seguinte, distribuiu o fogo entre os habitantes
que, a partir de então, além de caçar, podiam assar a carne.
Naquela noite, um homem chamado Lince teve um pesadelo e saiu da casa
comunal. Foi dormir na casinha onde moravam suas duas irmãs, Águia e Mergu-
lhão. Prevendo outras visitas, esta última cobriu o corpo de resina. Na noite seguinte,
estimulado pela primeira tentativa, Lince fez amor com ela, e os pelos de sua rou-
[ 9 ] Dos Maidu aos Klamath pa ficaram grudados no corpo da mulher. Descobrindo assim a identidade de seu

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visitante, Mergulhão ficou enfurecida, e lançou chamas sobre a casa comunal. Os Os dois rapazes competiram para saber quem atiraria primeiro, e acabaram com-
moradores se assustaram, acusaram Lince e concordaram em entregá-lo à irmã que binando de agir em conjunto. Levaram o cadáver de Mergulhão para a irmã Águia,
o tinha denunciado. Mas antes Borboleta substituiu o pênis dele por um órgão de que limpou e empalhou o corpo, proclamando que, a partir de então, os mergulhões
tamanho ridículo. Mergulhão partiu com o amante e, ardendo de desejo, apressou o seriam ouvidos “gritando e rindo na primavera”. Em seguida, recuperou os dois cora-
anoitecer. Mas, apesar de todos os seus esforços, ele não conseguiu satisfazê-la. De ções que faltavam e juntou-os com os do colar.
manhãzinha, aproveitando que ela ainda dormia, ele colocou um pedaço de madeira Águia voltou a sua aldeia natal, dos lados de Pitville, e reconstruiu a casa comu-
em seu lugar e fugiu. nal. Mergulhou os corações no rio que corria nas proximidades, voltou para casa e
Enquanto isso, Aranha tinha tecido uma rede e, assim que Lince chegou, todos adormeceu. Ao amanhecer, os corações ressuscitaram e ela reencontrou todos os
se instalaram nela. Coiote, pai das duas irmãs, foi o primeiro a subir. Águia voou para seus familiares. A vida voltou a ser como antes (Dixon 1908: 174-77).
seu lugar. A rede já ia alto no céu quando Mergulhão, injuriada, chegou a aldeia e a
incendiou. Suplicou aos irmãos que a esperassem, em vão. Coiote, querendo ver a Várias versões achomawi são conhecidas, que contrastam entre si e com
filha uma última vez, fez um buraco na rede, que imediatamente se rompeu e deixou a versão atsugewi. Segundo uma delas (M₅₅₁; Dixon 1908: 165-67), Dona
todos cairem na fogueira. Mergulhão fez às pressas um batedor de grãos — espécie Mergulhão conseguiu que lhe entregassem Lince, “que ninguém jamais
de raquete trançada usada pelas mulheres para bater nos arbustos e fazer os grãos tinha visto ou tocado, pois ele era mantido escondido como um tesouro,
cairem em seus cestos (cf. Kroeber 1925, ilustração 29 e p. 814; Garth 1953: 139, 151). num saco suspenso dentro da casa”. Ambos partiram em direção ao oeste
Quando os corpos das vítimas explodiram e os corações saltaram para fora do fogo, e acamparam juntos, mas o adolescente fugiu na alvorada e voltou para o
ela usou o batedor para pegá-los no ar. Só poupou o do pai, e não conseguiu pegar seu esconderijo.
três outros. O coração de Broca-de-Madeira foi cair para os lados do monte Shasta, Nesse caso, é gritando e rolando no chão que Dona Mergulhão pro-
o de Borboleta em algum lugar a leste, e o de Pedra-Azul desapareceu, não se sabe voca o incêndio; ao mesmo tempo, as gargantas e cânions aparecem. Os
onde.10 A outra irmã, Águia, ficou voando e chorando, enquanto modelava o relevo moradores da aldeia se apavoram, um deles, chamado Casulo, oa anima, e
pois, naquele tempo, não havia montanhas e a terra toda era plana. os irmãos Camundongos tecem um cabo de fibra vegetal e o prendem na
Mergulhão fez um colar com os corações e foi andando de lago em lago, até abóbada celeste com o auxílio de uma flecha certeira. Todos sobem por ele,
chegar àquele em que nasce o Butte Creek, e lá se instalou. Águia procurava os cora- mas Coiote, pai de Mergulhão, olha para trás para ver a filha pela última
ções e moldava as montanhas. Acabou descobrindo o coração de Broca-de-Madeira vez. O cabo se rompe e todos caem na fogueira. Mergulhão pega seus cora-
numa terra nórdica, onde duas irmãs chamadas Contas o tinham encontrado enter- ções com uma rede, guarda a maior parte deles para fazer um colar, e dá os
rado na terra salgada por suas lágrimas, e que os cervídeos vinham lamber. Quando restantes a Raposa-Cinzenta (o demiurgo achomawi; cf. Kroeber 1925: 315;
Águia soube que seu irmão tinha ressuscitado e estava bem casado com suas salva- Garth 1953: 195).
doras, voltou ao lago de Butte Creek. Dois irmãos que lá viviam, que tinham nomes Depois disso, Mergulhão começa a andar pelo mundo, enquanto sua
de aves aquáticas marrom, lhe revelaram a presença de Mergulhão “que usava um irmã Águia, que continua à procura dela para recuperar os corações, molda
colar em torno do pescoço e ficava o tempo todo se olhando na água”. Concordaram a terra e fabrica montanhas. Águia consegue finalmente realizar seu intento,
em matar a criminosa, contanto que Águia lhes desse pontas de flechas de ossos de reconstrói a casa comunal e mergulha os corações no rio mais próximo. As
cervídeos; um dos irmãos queria que os cervídeos em questão tivessem sido mor- vítimas de Mergulhão ressuscitam ao amanhecer. Então, Raposa-Cinzenta
tos na época em que o pelo dos animais fica vermelho, e o outro, na época em que lhes dá nomes e manda que se espalhem pelo mundo, atribuindo a cada um
perdem os chifres. seu habitat, seu grito e suas cores. E eles foram embora, em todas as direções.
Uma versão registrada por Curtis (1907-30, v. 13: 209-10; M₅₅₂) se apresenta
como episódio final do mito da criação do mundo. Depois de os dois demiur-
10 . A pintura azul provinha de uma rocha que era extraída em território achomawi gos, Qan (Raposa) e Jemul (Coiote) terem criado a terra e os humanos, ins-
(Garth 1953: 147). Os Chilula chamavam de “pedras azuis” as que eram aquecidas para tituíram a guerra para limitar o crescimento demográfico, e a morte natural,
fazer ferver a água. para tornar o controle mais eficaz. Consequentemente, fizeram com que seus

112 | Segunda parte: Jogo de ecos | 113


dois filhos não pudessem ressuscitar. Furioso com essa consequência, pela qual Os moradores da aldeia ficam apavorados com a aproximação de um
culpava Jemul, Qan tentou matá-lo. Os demiurgos acabaram se reconciliando e incêndio iniciado por Dona Mergulhão, enfurecida por ter sido enganada.
um criou a rede hidrográfica, enquanto o outro criava todos os peixes. Os irmãos Aranha colaboram para tecer uma longa corda. Lagarto-Grande,
Foi nessa época que a filha de Jemul se apaixonou pelo primo, chamado também chamado O-que-perdeu-seus-filhos, amarra-a numa flecha e con-
“Combatente”, filho do velho chefe Apona (cf. Angulo & Freeland 1931b: 125, segue fincá-la na abóbada celeste. Águia é a primeira a subir, seguida pelo
/a-pónáhá/, “casulo”). Ela o levou para oeste mas, ao cair da noite, ele esca- velho chefe Casulo, Broca-de-Madeira e os outros irmãos, Lagarto e, final-
pou e foi se esconder na sauna. A moça retornou à aldeia, insistiu para que mente, Coiote. Mergulhão, filha do último, o vê e o chama. Ele olha para
o rapaz lhe fosse entregue e lançou chamas sobre a construção. Qan disse: baixo, a corda arrebenta e todos caem no fogo que queima a aldeia, exceto
“Bem, vamos deixar tudo queimar e subir para o céu”. Obedecendo a uma Águia, Casulo, Broca-de-Madeira e um irmão, que já tinham conseguido
ordem sua, Yuininu (Camundongo) atirou uma palhinha na abóbada celeste, chegar ao céu.
que se fixou, se alongou e virou uma escada. Qan e Jemul subiram por ela e Mergulhão recolhe os corações num cesto. Separou o de seu pai e cons-
desapareceram para sempre. tatou que faltavam quatro corações, além do de Lagarto, que tinha sido o
Uma outra versão (M₅₅₃; Angulo & Freeland 1931b: 126-32) começa opon- último a cair, perfurara o cesto e acabara no cume do monte Shasta. Certa de
do as duas filhas de Coiote, chamadas Águia e Mergulhão. A primeira é ajui- que Lagarto acabaria com ela, anunciou ao pai que ambos passariam a viver
zada e trabalhadora; a segunda é despudorada, não toma nem as precau- na forma dos animais cujos nomes tinham. Ela iria morar nos quatro lagos
ções costumeiras quando está menstruada, e causa azar para os caçadores. Tule, Honey, Goose e Superior (cf. mapa, fig. 7). Reconheceria o pai pelo gri-
“A mãe dela fazia a mesma coisa”, lembra o outro chefe da aldeia, chamado to, e responderia com o seu.
Casulo, pai de um rapaz escondido, que ele mantém enrolado numa cober- Não longe de lá viviam Gaio-Azul e sua mulher, Tsanunewa, nome que
ta no fundo da casa comunal. Lá viviam também seus outros filhos, Lobo, designa o maçarico kildir ou outra ave dos pântanos (Angulo & Feeland
Doninha, Marta e Lince. As duas filhas de Coiote dormiam numa casa isola- 1931b: 126; supra, pp. 42, 82). Preocupado com seu azar na caça, Gaio-Azul
da e vinham, pela manhã, para cozinhar para os caçadores. desconfia da presença de Mergulhão, cuja mãe já havia causado os mesmos
Como em M₅₅₀, a história prossegue com as investidas incestuosas de Lince. problemas. Guiado por um canto de incrível beleza, que parece vir do monte
Embora este, aqui, não seja irmão, mas sim primo, Mergulhão manifesta a mes- Shasta, ele acha o coração de Lagarto semi-enterrado no chão, desenterra-
ma cólera, e ataca a casa comunal lançando raios pela abertura para a fumaça; o e o entrega à esposa. Ela coloca o coração num cesto impermeável cheio
ou seja, à diferença de M₅₅₀, ela produz um fogo de origem celeste. E quando de água morna, onde o coração ressuscita, na forma de um bebê. A criança
lhe oferecem Lince como marido, ela recusa, pois o estupro de que foi vítima cresce depressa e se torna um menino com a testa protuberante. A mãe ado-
lhe causa um choque psicológico e faz com que ela perceba os profundos sen- tiva lhe diz para sempre atirar as flechas na vertical. Certo dia, uma delas cai
timentos que nutre por Broca-de-Madeira, o filho escondido do velho chefe nele e descola a protuberância frontal, que se transforma em outra criança.
Casulo. Passa a exigir que ele lhe seja entregue. Concordam, mas com medo de Os parentes de Dona Kildir, que vivem à beira do lago, informam o jovem
que ele, com seu pênis minúsculo, não consiga satisfazê-la, e ela volte a atacar. herói da presença de Mergulhão. Mas essa versão do mito menciona duas
Então dão a Broca-de-Madeira um pênis enorme, que dificulta seus movimen- mulheres com esse nome, uma que vive na água e usa um colar de corações,
tos. Coiote, temendo que o membro enorme machuque sua filha, arranca-o em e sua mãe, que mora numa casa no meio dos juncos. Gaio-Azul manda os
segredo e joga-o no fogo. Mergulhão vai embora, seguida pelo tímido amante; dois meninos irem até a casa desta última, e pedirem emprestada a canoa
diz que vai cair uma tempestade, para que eles tenham de acampar, e prepara dela, contra a promessa de dividir com ela o produto de sua pesca. Eles veem
uma cama confortável, na qual Broca-de-Terra se deita de bruços, resistindo a jovem Dona Mergulhão entrar na casa da mãe, que penteia seus longos
passivamente às investidas da mulher, que fica tentando virá-lo. Quando ela cabelos, e admiram sua beleza. No dia seguinte, o mais novo dos meninos
adormece, exausta, Broca-de-Madeira se levanta, procura um tronco caído a mata com uma flechada e esconde o cadáver na canoa, debaixo de um
com um galho saliente e o utiliza para dar à parceira a ilusão de ter sido satisfei- monte de patos que também tinha matado. Quando a velha encontra o cor-
ta. Depois foge, e chega na aldeia sem ar, incapaz de dar explicações. po da filha, persegue o assassino lançando raios, que incendeiam o mato.

114 | Segunda parte: Jogo de ecos | 115


Mas Gaio-Azul apaga o fogo com uma ventania e o mais velho dos meni- do rio Pit obtinham das populações costeiras em troca de peles. Tal comér-
nos, Lagarto-que-perdeu-os-filhos, executa a feiticeira. Assim, as duas Dona cio era, portanto, realizado num eixo leste-oeste; as peles desciam o rio, e as
Mergulhão morrem. contas subiam (Kroeber 1925: 309-11; Garth 1953: 147). Essa é uma indicação
importante, pois M₅₅₀ indica como domicílio das irmãs Contas as proximi-
! dades do monte Shasta, a noroeste do território atsugewi, portanto, e uma
versão achomawi (M₅₅₁) inverte o sentido da viagem incestuosa em relação
Há tanto a dizer acerca desses mitos que avançaremos por partes. Come- às versões klamath-modoc e yana, ao afirmar que Dona Mergulhão e Lince
cemos por algumas observações quanto aos personagens. Já conhecemos partiram em direção ao poente (supra, p. 105). Consequentemente, o herói
Águia, sua irmã Mergulhão e seu irmão ou primo Lince, bem como Coiote, portador de pele parte do leste, e as irmãs Contas provêm do oeste, em con-
que continua no papel de enganador mas, em vez de ser apenas um comen- formidade com o sentido das trocas econômicas, ao passo que Dona Mer-
sal, como na versão yana, é pai das duas protagonistas, além de parente e gulhão, criadora dos anti-adornos na forma do colar de corações, viaja no
colega do dono da casa comunal, o velho chefe Casulo. sentido oposto ao dos verdadeiros adornos.
Esse nome designa a lagarta de uma grande borboleta com asas bem Tais observações levam a considerar o aspecto geográfico dos mitos. A
coloridas (Attacus? cf. p. 113), que tece seu casulo nos arbustos. Os índios da ação de M₅₅₀ se situa entre Pitville, ao sul, no curso superior do rio Pit, o
Califórnia recolhiam os casulos para fazer objetos rituais e talvez os Yana monte Shasta a oeste, uma localidade indeterminada bem afastada, a leste
(Sapir & Spier 1943: 259) também utilizassem os da lagarta que dá nome ao (onde cai o coração de Borboleta) e Butte Creek e seu lago, difícil de identifi-
pai do herói em seus mitos. Vimos que essa lagarta se alimenta das folhas car, já que existem vários cursos d’água com esse nome; mas se trata de um
venenosas de Rhus diversiloba; em certos grupos, pelo menos, as vagens des- limite setentrional, que poderia portanto corresponder a um lago e a um rio,
sa planta podiam substituir os casulos (Goldschmidt 1951: 426). Butte Lake and Creek, situados nos confins das terras modoc (cf. Kroeber
O personagem chamado Casulo no mito é um velho sábio e pacífico. 1925: 318; Ray 1963: 208; mapa, fig. 7).
Seu filho é Broca-de-Madeira, larva grande que vive sob a casca das coní- Se assim for, seríamos levados a admitir que, como observamos para a
feras, principalmente do pinheiro de açúcar (Pinus lambertiana), de cuja maioria das versões, a dos Atsugewi transcorre quase que inteiramente fora
resina se alimenta. Talvez devêssemos aproximar seu nome corrente /ámòq/ do território tribal. De onde o aparente paradoxo de nas versões yana Dona
(Angulo & Freeland 1931b: 125) do de um outro personagem larvar na ver- Mergulhão vir de Hat Creek (ou para lá se dirigir), em terras atsugewi, ao
são yana, Jamuka. passo que os próprios Atsugewi transportam o palco da ação mais para o
De Lagarto-Grande não se sabe grande coisa, a não ser que ele aparece norte, como que para mantê-la em terra estrangeira. Mas M₅₅₃ cobre um
frequentemente como personagem rude e briguento, supostamente devido território ainda mais vasto, pois vai do monte Shasta, a noroeste, até Honey
ao fato de estar em luto pelos filhos.11 O maçarico kildir /tsanunewa/ passa Lake, que marcava, a sudeste, o limite entre os Achomawi, de um lado, e os
do papel dos irmãos que levam seu nome na versão yana para o de mãe Maidu, Paiute e Washo, do outro (Kroeber 1925: 391; Heizer 1966, mapas);
adotiva de um menino que se desdobra, como o das versões klamath-modoc, esse território compreende também o lago Tule, em terra modoc, Goose Lake,
mas cuja conexidade com os irmãos Tsanunewa de M₅₄₆ resulta de esses em seu limite oriental, e o lago Superior, ainda mais a leste (supra, p. 106).
gêmeos exigirem, como os outros, pontas de flechas de ossos de cervídeos, Tal como observamos a respeito da versão yana (M₅₄₆), esse sincretis-
de cores diferentes num caso, colhidas em épocas diferentes do ano no outro. mo geográfico se efetiva em fenômenos de desdobramento que afetam o
Borboleta, em M₅₅₀, ao mesmo tempo passa a ser macho e a fazer parte conteúdo dos mitos. Comparadas às versões klamath e modoc, os mitos
das vítimas de Dona Mergulhão, e cede seu papel de animal prestativo (cf. achomawi e atsugewi se apresentam como formas dilóides, que desdobram
M₅₃₀, M₅₃₁, M₅₃₈, M₅₆₀) às irmãs Contas. Trata-se, certamente, das contas todas as funções.12 Isso aparece em graus diversos nas quatro versões, mas
de conchas marinhas que serviam de adorno e de moeda, e que as tribos
12 . Procedimento que valeria a pena estudar, ainda mais tendo em vista que outros
11 . Acerca dos nomes de luto, ver Garth 1953. exemplos dele se verificam na Califórnia (cf. Angulo & Feeland 1928: 252).

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é certamente M₅₅₃ que aplica o procedimento de modo mais sistemático. o comportamento atual da filha pelo passado da mãe, supra, pp. 105, 107),
Nele, estão presentes dois pais, Casulo e Coiote, de caráteres opostos; dois inverte o sentido do procedimento correspondente do mito klamath: aqui, o
irmãos incestuosos, Lince e Broca-de-Madeira, um ativo, o outro passi- comportamento da filha é a causa final do da mãe, lá, o comportamento da
vo — a resina “come” um do sentido figurado, pois os pelos de seu casaco mãe é a causa eficiente do da filha.
de pele ficam colados nela, e o outro se alimenta dela no sentido próprio; Mais impressionante ainda é a oposição entre os modos de proceder
dois modos de prevenção do incesto, que são um pênis grande demais ou das versões yana (M₅₄₆) e achomawi (M₅₅₃) para gerar formas diferentes de
minúsculo; e também dois modos de escapar da investida incestuosa, por simetria. Vimos que a versão yana consegue consolidar duas histórias em
impotência do parceiro, ou porque ele coloca em seu lugar uma árvore mais uma, mas com duas condições, a de inverter o conteúdo de uma e integrar-
aparelhada para cumprir sua tarefa (contrariamente ao pedaço de madeira lhe a outra invertendo a ordem de sucessão da narrativa. A simetria interna
inerte de que falam as outras versões). Para tentar escapar da incendiária, é dessa versão está, portanto, parcialmente situada na ordem diacrônica. Mas
necessária a colaboração de dois atores, Lagarto que atira a flecha, e Aranha, se a transpusermos em termos sincrônicos, será preciso concebê-la dedo-
cujo personagem se desdobra, ele também, em dois outros, aranha pequena brada num eixo vertical, no qual, de cada lado do plano de simetria, duas
e aranha grande, que têm de conjugar seus esforços para tecer uma corda séries de imagens se sucedem, reconstituindo um mito único, comparável ao
suficientemente longa. Se considerarmos que Mergulhão poupa o coração conjunto formado por um indivíduo de carne e osso e sua imagem refletida
do pai, que quatro lhe escapam, e depois mais um, no total são seis corações num espelho que estivesse ligeiramente inclinado acima dele. A cabeça seria
que faltam em seu colar (isto é, três vezes mais do que na versão yana, que já tangente a seu próprio relfexo, e as outras partes do corpo se repetiriam, de
dobrava outras). Opõem-se a esse anti-adorno incompleto, na função adver- um lado e do outro, na mesma ordem, com os pés nas duas extremidades.
sa, duas irmãs Contas que incarnam os verdadeiros adornos. Mergulhão Mostramos (supra, p. 101) que esse tipo de simetria também corresponde ao
decide morar em quatro lagos diferentes. Para cumprir sua missão de justi- modo como se ajustariam, pelas pontas, as imagens que observadores posta-
ceiro, Lagarto deve primeiro se transformar em par dioscúrico, cuja vítima dos em lados opostos teriam de uma mesma paisagem. Era essa, com efeito,
também se desdobra, já que em M₅₅₃ há uma velha e uma jovem Dona Mer- a situação dos Klamath e dos Yana, nas duas pontas de um território reivin-
gulhão. Ainda que sumária, a outra versão achomawi (M₅₅₁) contém pelo dicado igualmente pelos mitos, de onde quer que venham. Porém, parte des-
menos duas indicações no mesmo sentido. Ela acentua o contraste entre as se território parece gozar de um estatuto privilegiado, a que corresponde às
irmãs e, ao atribuir a uma delas a formação dos câniones e vales profundos, terras klamath, cujas características as demais tribos transpõem nos termos
e à outra, a das montanhas, analisa o relevo em dois aspectos, negativo e de suas topografias locais, sem por isso deixarem de se referir aos sítios ori-
positivo. M₅₅₂, por sua vez, enfatiza a dualidade dos demiurgos. ginais. A simetria do mito yana reflete essa atitude ambígua: tudo ali se passa
É notável que M₅₅₃, que estende o palco da ação até o limite das terras como se os Yana deixassem transparecer, no plano da organização formal da
klamath, seja também o mito que melhor preserva vários aspectos de M₅₃₈, narrativa, sua pretensão de olhar o território klamath de duas perspectivas
que é um mito originário daquela região. Tanto quanto o menino desdobra- simultâneas, uma real, orientada do sul para o norte, e a outra, imaginária
do (mas de testa protuberante, em vez de ter duas cabeças) e o desdobra- — pois que implicaria que eles fossem Klamath — orientada do norte para
mento de Dona Mergulhão em mãe e filha, que havíamos inferido a partir o sul. Ao final das contas, se a simetria interna da versão yana diz respeito
da versão klamath, mas que o mito achomawi ilustra de modo muito mais primeiramente ao eixo das sucessões, mais do que ao das simultaneidades, é
direto. Num certo sentido, portanto, o mito klamath continha o princípio de porque eles vivem nas bordas, ou até mesmo no exterior, da terra escolhida
vários dos desdobramentos que acabamos de descrever, mas interpretava-os pelo mito mas, para incorporá-lo ao seu patrimônio, tinham de fazer como
diacronicamente: o menino se desdobra porque foi inicialmente formado se vivessem dentro dela.
por dois indivíduos colados, e a mãe reproduz a filha porque vai progres- Comparada a essa posição excêntrica, a dos Atsugewi e Achomawi se
sivamente se conscientizando de seu apego sentimental por ela. O mito mostra intermediária, já que se situam no centro da área de difusão, e não
achomawi, ao contrário, dispõe, por assim dizer, todos os pares no momen- em seu contorno. Assim, em vez de terem de percorrer uma série num
to presente. Ou, caso recorra a uma justificativa histórica (quando explica sentido e depois, refazer no sentido inverso o mesmo trajeto — o que

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corresponde, como vimos, à construção particular da versão yana —, eles
têm de resolver um outro problema, colocado pela ocorrência de um mito,
que também é deles, ao mesmo tempo em seu lado norte e em seu lado
sul. Para darem conta dessa dualidade, eles recorrem a um procedimen-
to inverso ao dos Yana: desdobram sistematicamente todos os termos, a nuca
cada etapa da narrativa, numa série de operações que sempre forma pares, lados da cabeça
para trás
em lugar de duas séries consecutivas de operações unitárias. A figura 10 fronde
lados da cabeça
apresenta uma ilustração gráfica dessas construções diferentes. O que elas para a frente
fazem, afinal, é traduzir o fato, atestado pela situação geográfica das duas testa
orelha furada supercílio orelha furada
tribos, de que uma está fora, e olha para dentro, enquanto a outra, que está rosto
dentro, olha para fora. queixo
ombro
peito
gravata

yana achomawi
[ 1 1 ] Esquema de estilização de uma cumeeira
a clássica, Nova Caledônia. (Desenho baseado em
Guiart 1953: 15)
b
a a’ É digno de nota o fato de tais construções narrativas corresponderem
c estreitamente às construções, bem conhecidas no campo das artes plásticas,
b b’
ordem de sucessão da narrativa

com o nome de “desdobramento da representação” (Lévi-Strauss [1958a]


d c c’ 2008, cap. 13). Existem dois tipos de desdobramento, um definido em rela-
ção ao eixo horizontal, e o outro, ao eixo vertical. A arte da Nova Caledônia
e d d’
fornece um exemplo clássico do primeiro tipo, com suas pontas de cumeei-
e e’ ra representando um personagem visto do peito até a cabeça, e prolongado
e’
pelas partes dorsais não visíveis de frente e distribuídas em ordem inverti-
da, de modo que acima do rosto veem-se os lados da cabeça para a frente,
d’
depois os cabelos, depois os lados da cabeça para trás, e, por cima de tudo,
c’ a nuca, na forma de um disco achatado, simétrico ao que representa o peito
ou o ventre, na parte de baixo do monumento (fig. 11; cf. Leenhardt 1937:
b’ 98-100; Guiart 1953: 13-15). Pode ser reconhecida nesse edifício perpendicu-
lar exatamente a construção do mito yana. O desdobramento que se observa
a’ na América do Norte, na arte da costa noroeste do Pacífico, diferentemente,
respeita um plano de simetria vertical, de cada lado do qual, como no mito
achomawi, se alinham lateralmente os lados esquerdo e direito do corpo,
cada uma das partes respeitando sua distância relativa em relação ao pla-
no mediano. Poder-se-ia até dizer que esses dois tipos de figuração plástica
[ 1 0 ] Estrutura diplóide dos mitos yana e achomawi. também correspondem a perspectivas na apreensão de um mesmo objeto

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— corpo humano ou animal, no caso —, respectivamente visto de fora ou M 554 MAIDU: DONA MERGULHÃO
visto de dentro (fig. 12).
A perspectiva neo-caledoniana corresponde, com efeito, à que seria obti- Águia e Mergulhão eram as duas únicas mulheres numa casa comunal à beira de um
da por uma inspeção à distância, ou um sobrevôo, e a da costa noroeste lago, onde viviam com seus irmãos e primos. Um deles saía mais raramente do que
implica que o modelo, concebido como se tivesse sido cortado ao meio, se os outros para se banhar. Intrigada com um fio de cabelo excepcionalmente longo
abre em duas metades que, pelo menos no caso das máscaras articuladas, que tinha achado na água, Mergulhão descobriu que ele pertencia àquele irmão que,
são viradas para trás e se revelam ao espectador, portanto, por dentro. havia muito tempo, ela amava. Postou-se no caminho dos banhistas, mas só Coio-
Diante disso, cabe examinar o que se passa, não mais ao norte, ao sul te percebeu. Ele ficou para trás e a violentou. A moça deve ter sido “acordada” pelos
ou no centro da área de difusão do mito de Dona Mergulhão, mas no eixo acontecimentos, porque logo depois declarou-se ao irmão, Bicho-de-Madeira. E como
transversal, isto é, de leste a oeste. o chefe da aldeia, Sokotin maidu (cf. Shipley 1963, /sokot/ “Attacus cocoon”), lhe propu-
A sudeste, os Maidu da montanha eram os vizinhos dos Achomawi e dos nha outros maridos, a começar por Coiote, ela começou a lançar chamas e anunciou
Yana. Sua versão do mito situa a ação “longe, para o norte”. De modo que, impli- que, por ordem sua, o sol em breve deitaria fogo na casa. Acabaram lhe entregando
citamente, esses índios se referem ao mesmo território privilegiado que as outras o amado, depois de cobrir seu pênis com uma cúpula de glande, para impedir o coito.
tribos; em termos de geografia, eles fazem a mesma coisa que os Wintu que, no O sol já ia baixo quando partiram. Com uma piscadela, a mulher fez com que
extremo sudoeste da área de difusão do mito, reconhecem-lhe as afinidades ele desaparecesse atrás do horizonte. Esforçou-se e esforçou-se, proclamando que a
setentrionais, conservando os nomes shasta dos protagonistas (supra, p. 54). humanidade futura seguiria seu exemplo e se entregaria a todos os tipos de devassi-
dão, mas nada conseguiu obter do amante. Ao amanhecer, ele colocou uma tora em
seu lugar, nos braços da mulher, e fugiu.
Todos embarcaram numa rede tecida por Aranha, que começou a içá-la para o
céu. Ao acordar, Mergulhão correu para a aldeia, lançando chamas. Lagarto, que esta-
va no fundo da rede, quis ver a irmã. Fez um buraco na rede, que rebentou. À medida
que os corpos iam caindo no fogo, eles explodiam, e os corações voavam pelos ares.
Com um utensílio de palha trançada em forma de concha (scoop; cf. Dixon 1902-
07b: 188, fig. 47a-b) ou de batedor de grãos, Mergulhão foi pegando um por um, o de
Lagarto primeiro, “mas perdeu os melhores”. Fez um colar com os que lhe restavam e
se instalou num lago ainda mais para o norte. Enquanto isso, Águia voava pelos céus,
jurando que encontraria os corações que tinham saltado nos ares, onde quer que
tivessem caído, nas montanhas ou nos vales. Pouco a pouco, foi conseguindo, mas
faltavam ainda os dois melhores. Bem longe, para o norte, ela finalmente foi infor-
mada por cincles plongeurs e a avó deles de que sua irmã vivia no lago vizinho. Retor-
nou à aldeia, para buscar os arcos e flechas dos irmãos, e os entregou aos cincles,
que mataram a criminosa enquanto ela olhava para sua própria imagem refletida na
água. Águia então proclamou: “Você não poderá mais fazer mal a ninguém, porque
doravante será uma ave que matarão”.
Águia voltou à aldeia e mergulhou os corações no lago. Eles ressuscitaram no dia
seguinte. Depois, ela partiu novamente para o norte, à procura dos corações que fal-
tavam. Lá viviam uma mulher e suas duas filhas. Atraídas por um canto maravilhoso
[ 1 2 ] Desdobramento vertical e desdobramento horizontal. (Desenho baseado em Guiart que vinha não se sabia de onde, elas certo dia descobriram os corações, enfiados numa
1953: 14 e Boas 1927, figura 232) terra salgada por suas lágrimas, que os cervídeos vinham lamber. Desenterrarram os

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corações e cuidaram deles. Seus donos, que eram Bicho-de-Madeira e Marta [em inglês, preservar a distinção, tão clara em M₅₅₁, entre os dois aspectos do relevo, mas
fisher (Mustella pennanti), em maidu /inbukim/, cf. Shipley 1963: 201, /?inbuk/, “fisher na forma de uma vaga alusão ao cume das montanhas e ao fundo dos vales,
animal”], recuperaram a integridade física e se casaram com as duas irmãs. onde os corações desaparecidos poderiam ter caido.
Ao encontrar os irmãos, Águia anunciou que os humanos evitariam a morte e Por outro lado, M₅₅₄ se esmera em situar vários aspectos essenciais da
ressuscitariam por imersão, a menos que ela própria e seus familiares fossem derro- intriga na duração. Em vez de estar escondido no espaço, o herói maidu se
tados nessa tentativa para obter a vida longa. Repetiu a mesma coisa para os paren- esconde, de certo modo, no tempo: sai menos frequentemente do que seus
tes, ao voltar para casa. “Se formos derrotados, nossa casa se transformará em mon- irmãos. E se a versão atsugewi (M₅₅₀) se opõe à versão achomawi (M₅₅₁)
tanha e nós nos dispersaremos...” E todos esperaram, para ver o que iria acontecer... pela conclusão, já que uma conclui dizendo que “a vida voltou a ser como
(Dixon 1902-07a: 71-76). era antes”, e a outra, que “os sobreviventes se transformaram em animais
de diferentes espécies e se dispersaram”, ambas se opõem à versão maidu,
Essa versão maidu transforma de vários modos as dos Achomawi e Atsugewi. que liga a dispersão dos humanos apenas ao surgimento da vida breve. M₅₅₁
As mulheres vivem na casa comunal (“sauna” no texto; cf. supra, p. 96), não desemboca, afinal, na diversidade das espécies, que é uma espécie de equiva-
fora dela, e os laços de família se estreitam, já que uma única família ocupa a lente espacial das variações sazonais (cc: 311), enquanto a conclusão de M₅₅₁,
casa. Em consequência disso, um personagem desaparece, o de Lince, justa- de que “a vida voltou a ser como era antes”, evita a noção de periodicidade
mente o que possui um papel de destaque nas versões distribuídas ao longo temporal logo depois de o mito tê-la evocado, encarregando o mergulhão de
do eixo norte-sul, dos Modoc até os Yana. Resulta daí uma redistribuição anunciar a mudança de estação. M₅₅₄, ao contrário, dá à periodicidade sazo-
dos papéis: um dos chefes da aldeia, Casulo, permanece igual, mas o outro, nal seu papel principal, que é o de medir a duração da vida humana.
Coiote, toma o lugar deixado por Lince, como irmão incestuoso, e Lagar- O aspecto etiológico de todos esses mitos tem, contudo, tamanha impor-
to toma o de Coiote, o que o faz passar de justiceiro (na versão achomawi, tância, que preferimos discuti-lo separadamente (infra, p. 117-20). Passare-
M₅₅₃) a enganador. As duas comutações equivalem, portanto, a uma inversão. mos, pois, para as versões dos Shasta, de língua hokan, como os Achomawi,
E, ao mesmo tempo, seu coração, que era o último faltante, passa a ser o pri- Atsugewi e Yana, que situados a oeste dos primeiros, do outro lado do monte
meiro a ser pego. Como a versão astugewi (M₅₅₀), a dos Maidu retoma, mas Shasta, ocupavam uma posição aproximadamente simétrica à dos Maidu,
sem insistir nisso, o motivo do terreno salgado frequentado pelos cervos, nas vertentes orientais do monte Lassen. As duas versões de que dispomos
que noutras versões ocupa uma posição destacada. A ausência do motivo são bastante breves. Iremos resumi-las conjuntamente, indicando as diferen-
entre os Achomawi certamente se explica pela raridade do sal em sua região; ças no decorrer da narrativa.
é até possível que o consumo de sal fosse ali estritamente controlado (Kroe-
ber 1925: 310; Garth 1953: 139). Note-se ainda que as flechas da execução, em M 555A, B. SHASTA: DONA MERGULHÃO
vez de serem fabricadas para esse fim, com pontas de tipo especial, provêm
do armamento ordinário dos irmãos desaparecidos. Uma mulher vivia com seus dez filhos e sua única filha (Mfffb: dez filhos, dos quais o
Sobretudo, a versão maidu substitui os desdobramentos sincrônicos, mais velho é uma moça). Esta se apaixonou pelo irmão mais novo, que a mãe teve de
fartamente explorados por M₅₅₃, lançando mão de uma periodicidade cuja esconder (Mfffb), ou que se escondeu por conta própria, enquanto um outro irmão
noção é francamente diacrônica. Transformação essa que parece ser bastante cometia o incesto (Mfffa). Mas a moça conseguiu que lhe entregassem seu amado.
significativa, visto que cada uma das versões contém o esboço da outra forma. Segundo Mfffa, esse segundo incesto parece ter sido igualmente consumado, mas
Em M₅₅₃, a metamorfose da protagonista criminosa em mergulhão marca o nas duas versões o irmão foge, e tenta subir para o céu com os familiares. A irmã os
aparecimento da periodicidade sazonal: a partir de então, ouvir-se-á o grito viu em plena ascensão, avisada por Cinzas, cuja cumplicidade os fugitivos tinham
dessa ave na primavera. M₅₅₄ evoca, por sua vez, duas vezes o tipo de dualis- esquecido de garantir (Mfffb), ou seguindo automaticamente com os olhos as fagu-
mo caro à versão achomawi, mas sempre no modo hipotético, ao designar lhas do fogo de que estava cuidando, que subiam pelos ares (Mfffa). Ela chamou, e a
dois utensílios diferentes que podem ter servido para pegar os corações, mas mãe (Mfffb) ou um dos irmãos (Mfffa) cometeu o erro de olhar. A corda arrebentou e
sem afirmar qual deles foi efetivamente empregado pela protagonista, e ao todos morreram na fogueira.

124 | Segunda parte: Jogo de ecos | 125


Ao explodir, o coração do irmão amado voou e foi parar perto de um rio (Mfffa), mecanicamente funções que os mitos centrais desdobram de modo orgâ-
ou numa praia à beira-mar (Mfffb). Só Mfffa acrescenta que a protagonista recolheu nico, para gerar relações de complementaridade. Os filhos vivem com uma
as ossadas calcinadas e com elas enfeitou os cabelos. Duas irmãs patas (Mfffa) ou mãe, não com um ou dois pais. O papel de informantes prestativos, que nas
gaivotas (Mfffb) encontraram o coração, restauraram a integridade física de seu dono outras versões cabe a criaturas ligadas à água, como o kildir ou o cincle, nas
e se casaram com ele. As mulheres deram à luz meninos (Mfffa) ou um menino e versões shasta é papel de informante nefasto, atribuído a seres ligados ao
uma menina (Mfffb). Agindo por conta própria, ou instigadas pelo pai, as crianças fogo, como as cinzas e fagulhas que, ativa ou passivamente, informam a
descobriram a casa da tia assassina. Pegaram as flechas dela e puseram nelas pontas assassina. Ao mesmo tempo, a oposição, tão clara no mito atsugewi, entre
de pedra, mas ela resistia bravamente a seus ataques (Mfffa). Ou foi o próprio pai que dois tipos de fogo, construtor e destruidor, dá lugar à oposição entre dois
investiu contra ela, igualmente sem sucesso (Mfffb). Finalmente, a cotovia revelou fogos destruidores, o que é provocado pela assassina, onde morrem todos os
que o coração da ogra, “claro e brilhante” (Mfffb), “igual ao fogo” (Mfffa) ficava escon- seus familiares, e o que arde em seu próprio calcanhar, por meio do qual ela
dido em seu calcanhar. Quando uma flecha atingiu seu ponto vulnerável, ela caiu, mesma é morta. Poderíamos alongar a lista dessas transformações. As que
com um barulho tão grande que foi ouvido no universo inteiro. Queimaram sua casa, enumeramos bastam para ilustrar a economia das versões shasta.
e a enterraram (Mfffa) (Dixon 1910: 14-15; Frachtenberg 1915: 212-14).
!
Existe uma versão karok, inédita, que não pudemos obter. A julgar pela
utilização que dela fez T. Kroeber, para compor uma narrativa sincrética, e Dois mitos do grupo apresentam um caráter etiológico particularmente cla-
seus comentários (1959: 41-65, 171), parece ser próxima da versão shasta, e ro. A versão atsugewi (M₅₅₀) começa, com efeito, por explicar a origem das
Demetracopoulou (l. c.), que também teve acesso a ela, não faz nenhuma pontas de flecha de pedra que irão possibilitar a caça, das facas de cozinha
observação particular a seu respeito. Os Karok, membros da mesma família usadas para cortar a carne, e do fogo, que permitirá cozê-la. Consequen-
linguística que os Shasta, eram seus vizinhos imediatos a oeste. Voltaremos temente, também nesse caso, sob um aspecto culinário que nos é familiar
mais adiante (120ss) às versões wintu. desde o início destas Mitológicas, é da origem da cultura que se trata. O fato
Nenhuma dessas primeiras versões ocidentais contém o episódio da res- de tais acontecimentos precederem imediatamente o primeiro incesto e o
surreição dos corações, a não ser no que concerne ao do herói. Os demais incêndio da aldeia pela irmã concupiscente seria incompreensível, e levaria
membros da família morreram sem esperança de volta, como indica com a taxar o mito de arbitrário, se não tivéssemos, em O cru e o cozido, apresen-
particular vigor M₅₅₅a, que não se contenta em omitir o episódio, e o inverte, tado os fundamentos da homologia entre a união dos sexos e a que pode
substituindo os corações incombustíveis por ossos calcinados, com os quais a ocorrer entre o sol e a humanidade, quando escrevemos: “A conjunção de
protagonista enfeita os cabelos, em vez de fazer um colar. Mas as duas versões um homem e uma mulher representa, em miniatura e num outro plano, um
shasta realizam uma inversão ainda mais radical, ao transformarem o próprio acontecimento que lembra, simbolicamente falando, a tão temida união
coração, que noutras versões é meio de ressurreição, em meio de extermínio, entre o céu e a terra” (cc: 373). Para terem o fogo culinário, os homens têm
já que a protagonista possui um corpo invulnerável, exceto, justamente, pelo de aproximar de si um elemento potencialmente destruidor, expondo-se aos
coração escondido no calcanhar. Em lugar de os corações que ela torna exte- riscos de um grande incêndio. É o que experimentam no mito atsugewi, pri-
riores servirem de base para a ressurreição dos parentes que ela matou, é ela meiro com o aparecimento do incesto, símbolo social da conjunção cósmica
mesma que é morta em seu coração, exterior de saída, e que serve de alvo para e, em seguida, com a do fogo destruidor, consequência real dessa conjunção:
os tiros de parentes assassinos. em seu desejo furioso de unir-se ao irmão que deveria permanecer o mais
Começamos a perceber que, a oeste, as versões shasta invertem os mitos afastado possível dela, a heroína lança chamas (M₅₅₀) ou raios (M₅₅₃), ou
centrais em eixos diferentes dos que são afetados pelas versões situadas do aproxima perigosamente o sol da terra (M₅₅₄).
lado oposto. São diplóides, como as versões achomawi e atsugewi, mas, ao Para que os mortos ressuscitem e se ponha um ponto final na desordem,
elevarem o número dos filhos a dez (em lugar dos cinco enumerados por será preciso que os protagonistas do mito se curvem, três vezes seguidas, às
M₅₅₃: Lobo, Doninha, Marta, Lince e Bicho-de-Madeira), elas adicionam exigências da periodicidade cósmica. Primeiro, criando o relevo, isto é, o

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espaço modulado. Em seguida, equipando as flechas justiceiras com pontas ressurreição dos mortos no final da narrativa, o substitui, no meio dela, pelo
definidas em relação ao calendário, já que devem ser de osso (≠ pedra), e de seu renascimento, ou seja, uma ressurreição modulada, de certo modo,
provir de animais mortos em diferentes épocas do ano. E, finalmente, atri- pela periodicidade (já que é preciso que o defunto que voltou a ser bebê
buindo ao mergulhão a função positiva de anunciar a mudança de estação. se desenvolva e cresça antes de assumir sua aparência física primeira). Esse
Somente então a vida poderá voltar a ser “como era antes”. renascimento causa um desdobramento, que poderia parecer arbitrário, se
Uma das versões achomawi (M₅₅₁) cumpre a mesma função etiológica, não percebêssemos que a posição específica do mito no seio de um grupo
mas lhe dá uma expressão invertida. Do ponto de vista formal, primeiro, de transformação o sujeita a imposições de ordem lógica que reverberam no
pois o episódio significativo se encontra no final, em vez de no início, e trata conteúdo da narrativa.
da origem das espécies, de sua diversidade e de sua dispersão. De modo que A mesma observação pode ser feita a respeito da relação de inversão
um mito começa relatando a origem da cultura, ao passo que o outro termi- que se vê entre as versões achomawi. M₅₅₀ e M₅₅₁ se opõem, ambas, a M₅₅₂,
na relatando a origem da ordem natural, ao emergir da indistinção primitiva. na medida em que este último mito exprime a transição entre o tempo
A diferença afeta o conteúdo, e se evidencia claramente na maior insistência mítico e o tempo histórico, por fórmulas sistematicamente negativas,
de M₅₅₁ do que de M₅₅₀ na especificidade das formas do relevo, cheias ou como a ressurreição dos mortos tornada impossível, a partida definitiva
vazias. O fato de os personagens do mito, que originariamente constituíam dos demiurgos, o velho chefe Casulo (descrito alhures como um velho
uma família vivendo sob o mesmo teto, acabarem se transformando em ani- pacífico e sábio) aqui dotado de um filho cujo nome significa “Combatente”
mais de espécies diferentes, que irão viver dispersos, certamente afastará o (Fighting-Man). E isso numa narrativa que acaba de tratar da guerra como
risco de uniões incestuosas e os perigos decorrentes de proximidade exces- solução para o problema demográfico, ou seja, a dizimação de uma única
siva. O resultado disso, no entanto, é que, ao contrário do que anunciava o espécie, em vez da diversificação do mundo animal em espécies distintas,
final de M₅₅₀, para eles, nunca mais a vida será como antes. seguida de sua dispersão.
As duas versões etiológicas de que dispomos são simétricas, embora uma Já observamos (supra, p. 115) que, no modo especulativo, a versão maidu
seja escrita, digamos, em clave de cultura, e a outra em clave de natureza, e (M₅₅₄) sugere em conclusão que, no futuro, os humanos não mais poderão
que os aspectos espacial e temporal que a periodicidade é passível de assumir ressuscitar os mortos, e que a duração de sua existência será, assim, delimi-
sejam nelas diferentemente dosados; nesse sentido, M₅₅₁ se apresenta como tada. Nesse sentido, M₅₅₄ faz a síntese das outras versões: como M₅₅₁, liga
integralmente espacial (diversidade do relevo, diferenciado em montanhas e a periodicidade à dispersão, mas reforçando, como M₅₅₀ e M₅₅₂, o aspecto
vales, e diversidade das espécies, ligada à sua dispersão), ao passo que M₅₅₀ temporal em detrimento do aspecto espacial. M₅₅₄ chega a dar a esse aspecto
mantém equilibradas as ordens espacial e temporal (topografia e periodici- temporal da periodicidade a expressão mais vigorosa que pode ter da pers-
dade sazonal). Fiel à sua técnica de desdobrameto sistemático (supra, p. 109), pectiva humana, pois que aqui se trata da duração de sua própria existência,
M₅₅₃ justapõe o aspecto natural e o aspecto cultural, e encarrega perso- e não da das estações. E se estações e gerações se sucedem, umas retornam,
nagens diferentes de incarná-los. Uma das irmãs, industriosa, personifica mas as outras não.
a cultura; o que permite avaliar o quão certo estava um bom pesquisador A conclusão do mito maidu reune, assim, as dos mitos achomawi e atsu-
(Garth 1945) ao ver no espírito da indústria o próprio critério da cultura gewi, ao mesmo tempo em que se opõe a ambas. A vida retoma como antes,
segundo as tribos do rio Pit. A outra irmã, por sua vez, é acusada pelo mito já que a família ressuscitada volta a se reunir, e seus membros não viram
de contaminar os caçadores por descuido durante a sua menstruação; ele a animais. Contudo, essa vida nunca mais será a mesma, pois deixará de existir
caracteriza, portanto, inteiramente por uma função natural que ela se recu- a possibilidade de ressurreição (ao passo que, em M₅₅₂, ela já deixou de exis-
sa a submeter aos imperativos da cultura. Os aspectos espacial e temporal tir), o que faz com que os vivos também se transformem, não em animais,
da periodicidade também estão presentes, mas numa forma atenuada e, no mas em mortos. E o relevo geográfico, antecedente da diversidade zoológica
que diz respeito ao primeiro, reduzido, de modo característico, à dualidade segundo M₅₅₁, e da periodicidade sazonal, segundo M₅₅₀, torna-se, em M₅₅₄,
de duas espécies, coiote e mergulhão, que sozinhos e conjuntamente assu- consequência da periodicidade da vida humana. Se M₅₅₀ ia da cultura para
mem sua natureza animal. Por outro lado, M₅₅₃, que suprime o motivo da a natureza, M₅₅₄ faz o caminho inverso: devido ao surgimento da morte, a

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casa na aldeia coberta de terra se esvazia, voltanto portanto ao estado natu- transformações lexicais. Em lugar de uma mãe só (invertendo o pai só, ou
ral, e possibilita o aparecimento do relevo na forma de montanha: outrora os dois pais, das versões mais a leste), ela menciona pai e mãe de dez filhos,
habitação, agora obra de cultura desertada por seus ocupantes. como nas versões shasta. Mas nela é o mais velho, e não o mais novo, dos
A versão maidu também revela sua natureza sintética de outro modo. dez irmãos que ocupa o lugar de filho escondido, arrastado pela irmã para
Extrai, por assim dizer, a moral da história que conta, e desloca a explica- o oeste (ao passo que, na versão shasta M₅₅₅b, seu coração escapa da irmã
ção da ordem física para a ordem moral. Em vez de dar conta da diversida- assassina tomando esse mesmo rumo). Em vez de subir ao céu por uma cor-
de zoológica ou telúrica, ela pretende explicar a origem do desregramento da, para fugir do incêndio provocado pela protagonista, a família da versão
moral: “Porque eu agi desse modo — repete, como um leitmotiv, a mulher wintu acende ela mesma um fogo e tenta ser levada para o céu pela fumaça.
incestuosa e assassina — no futuro, os homens cometerão loucuras”. Fracassa, por causa de Coiote, e despenca nas chamas, onde a protagonista
Portanto, ela institui um comportamento, em vez de seguir, como em recolhe seus corações, à exceção do do irmão desejado, que cai longe. De
M₅₅₃, o exemplo tristemente célebre de um ascendente. Nessa versão, os modo que essa versão wintu retorna ao motivo do colar de corações, ignora-
humanos também se dispersam sem no entanto se transformarem em ani- do por uma das versões shasta (M₅₅₅b) e transformado pela outra em ador-
mais de diferentes espécies. O que mostra que, para ela, a diversidade dos no de cabelo feito de ossos (M₅₅₅a) que, como os corações da versão wintu,
comportamentos morais no seio da humanidade é, no plano das normas, mas à diferença de todas as outras, são recolhidos na cinza resfriada, e não
um equivalente da diversidade dos seres no plano dos fatos. apanhados no ar, antes do final da incineração.
Se a versão maidu aparece, na ponta sudeste da área de difusão, como Duas mulheres humanas, transformando as irmãs gaivotas ou patos das
a mais filosófica de todas, as versões shasta, situadas do outro lado, apre- versões shasta, encontram o coração num terreno salgado frequentado pelos
sentam o caráter oposto. Nelas já não há sinal de função etiológica, já que cervídeos — motivo ausente das versões shasta e acomawi, que reaparece
o episódio da ressurreição dos corações que lhe servia de argumento desa- aqui —, ressuscitam seu dono, casam-se com ele e têm com ele dois filhos,
parece. Na verdade, as versões shasta empobrecem e esquematizam a his- que é informado por um pássaro ferido da presença de sua tia (comparar
tória, e sua originalidade própria se afirma unicamente em inversões tanto com a cotovia informante das versões shasta). Aconselhados pelo pássaro,
indiferentes à mensagem, que elas obliteram, como reduzidas ao nível do matam-na com flechas sem ponta. Seu pai recupera o colar de corações e o
léxico (supra, p. 117). coloca na água. Toda a família ressuscita no dia seguinte.
Em tais condições, é interessante nos debruçarmos sobre as versões dos Ao cabo de um certo número de inversões, acabamos voltando, portanto,
Wintu, que apenas evocamos brevemente (supra, p. 53, 78), pois que esses ao que se poderia chamar de vulgata, de que as variantes shasta de afastavam
índios, também membros da família linguística penutiana, nas margens tão decididamente. E já que elas tinham de transformar as versões centrais
ocidentais da área de difusão do mito, ocupam uma posição comparável à para obter esse resultado, não surpreende que, repetidas vezes, a torção adi-
dos Maidu do outro lado do bloco formado pelas tribos de língua hokan. cional aplicada pela narrativa wintu nos leve de volta a estas últimas, como
Pois bem, em relação às versões provenientes da área central, as dos Wintu ocorre com o papel de Coiote, o motivo do colar de corações e o da res-
fazem uma opção exatamente contrária à que é ilustrada pela versão maidu, surreição. Mas também acontece, em certos casos, de os recursos da com-
renunciando a sintetizá-las, e limitando-se a justapo-las. Dispomos de duas binatória ainda não esgotados pelo mito gerarem novos modelos, como a
versões wintu do mito de Dona Mergulhão, e não é certamente por acaso ascensão sobre a fumaça, em vez de ao longo de uma corda ou dentro de um
que cada uma dessas duas versões, contraditórias entre si, manifesta a seu cesto ou uma rede, que implica na transformação do fogo de destruidor em
modo relações de correlação e oposição ou com as versões shasta, ou com as auxiliar, razão pela qual são os próprios fugitivos, e não sua perseguidora,
dos Achomawi-Atsugewi. Olhemos mais de perto. que o acendem (para uma transformação análoga na América do Sul, ver cc:
Uma primeira versão, em parte já resumida (M₅₄₅a; supra, p. 53, 78), se 206-07). Ainda no mesmo espírito, observe-se que M₅₅₀ substitui, no decor-
situa decididamente na perspectiva das versões shasta, tanto que, como já rer da narrativa, as flechas “culturais” de ponta de pedra lascada por flechas
observamos (supra, p. 54, 113), toma emprestados os nomes próprios de seus “naturais” de ponta de ossos de cervídeo (supra, p. 104). As versões shasta
protagonistas. O que não a impede, aliás, de afirmar sua originalidade em ignoram as primeiras, e uma delas (M₅₅₅a) retransforma as segundas em

130 | Segunda parte: Jogo de ecos | 131


flechas de ponta de pedra, que as versões wintu, por sua vez, sem voltarem A família refugiada prepara um cesto impermeável cheio de água e
à formulação inicial, transformam em flechas sem ponta, mas cuja haste é pedras incandescentes. A irmã mais velha o pega e assume posição a sudeste
preciso afiar (M₅₄₅b: DuBois & Demetracopoulou 1930-31: 362). do lago. Colibri faz o mesmo ao norte, armado com uma flecha sem ponta
Se nossos conhecimentos etnográficos fossem menos lacunares, cer- mas afiada. Ele fere mortalmente a criminosa, que vai morrer na beira do
tamente essa tríade de flechas forneceria informações suplementares. Os lago. A irmã pega o colar, coloca o coração na água fervente, e o herói ressus-
índios do norte da Califórnia acreditavam que as pontas de flecha, em cita: “Mas, apesar de ele ter voltado a ser uma pessoa, ele não parecia normal,
geral de obsidiana, veiculavam um veneno natural, e que cada variedade e não viveu muito tempo”.
ou coloração de pedra convinha à caça de um animal específico (Garth Como a versão maidu, portanto, esta termina admitindo que é impossí-
1953: 154; DuBois 1935: 125; Sapir & Spier 1943: 268; Curtin 1899: 469-70; vel ressuscitar realmente os mortos, e formula sua mensagem recorrendo a
E. W. Voegelin 1942: 191; Goldschmidt 1951: 149). No plano da cultura, a procedimentos que lembram, além daquela versão, as dos Achomawi e Atsu-
especificidade das pontas de pedra lascada reflete, portanto, a das espécies gewi. Em todos os casos, uma primeira experiência provoca a fúria da prota-
naturais, ao passo que os mitos associam as pontas de ossos antes a parti- gonista; experiência do incesto em M₅₅₀-M₅₅₄, que a leva a destruir a própria
cularidades anatômicas (M₅₄₆) ou fisiológicas (M₅₅₀) de uma espécie única família pelo fogo, e, aqui, experiência do sabor do próprio sangue, isto é, um
(diversidade interna/externa). Quanto a isso, as flechas sem ponta ocupam incesto alimentar que lhe inspira o ardente desejo de cometer um incesto
uma posição não marcada. real, e esse desejo frustrado se retransforma em apetite alimentar, igualmen-
A outra versão wintu (M₅₄₅b; DuBois & Demetracopoulou 1930-31: 360- te inspirado pelo corpo do irmão reticente.
62) parece aberrante, à primeira vista, pois identifica Dona Mergulhão Concorda perfeitamente com essa interpretação o fato de o papel de
a uma figura mitológica bem conhecida de uma ponta à outra do conti- informante passar, entre M₅₅₅b e M₅₄₅b, das cinzas para os excrementos.
nente americano, a da cabeça que rola e que devora primeiro os parentes Pois, já que se trata de incêndio num caso e de canibalismo — na forma
próximos, e depois, toda a população (cf. mc: 159, 270 n. 1, 388; omm: 73-91 de consumo alimentar — no outro, as cinzas estão para o primeiro como
et passim). Entretanto, do mesmo modo que a versão precedente se refere o excremento está para o segundo. Note-se, finalmente, que a segunda
explicitamente às dos Shasta, invertendo-as no plano do léxico, é evidente versão wintu não dá nenhum lugar para o motivo do fogo destruidor,
que M₅₄₅b remete às versões achomawi-atsugewi, respeitando-lhes a forma introduzido por M₅₅₀ a título de consequência da conquista do fogo de
e simplesmente invertendo-lhes a mensagem. Do ponto de vista da forma, a cozinha. Mas a razão dessa divergência é compreensível. Ela resulta do
versão wintu abre mão da coleção estática de dez filhos, em proveito de uma fato de M₅₄₅b inverter a mensagem do outro mito. Um remete à origem
dupla série de pares funcionais: quatro filhos repartidos em pares, um de da cultura, formulada em termos culinários, e que acarreta, como contra-
irmãos e um de irmãs, de caráter oposto. E, como em M₅₅₃, a irmã a que cabe partida, o aparecimento do incesto no plano social e o do fogo destrui-
a valência negativa não respeita a discrição que convém às moças quando dor no plano cósmico. O outro remete à origem do canibalismo, verso
estão menstruadas. da culinária doméstica que exclui, portanto, o fogo construtor (a não ser
A mais velha a manda a irmã incestuosa ir buscar casca de árvore para metaforicamente, cf. infra, p. 131), mas que é ele mesmo equivalente, no
fazer um tapa-sexo, esta se corta acidentalmente e lambe o próprio sangue, plano alimentar, do fogo cósmico destruidor e do casamento socialmente
cujo sabor provoca nela um tal apetite que ela devora a si mesma e vira uma próximo demais.
cabeça rolante, que ataca todos os demais, para comê-los. A discussão acima traz vários ensinamentos. Do ponto de vista da análise
Sua família, apavorada, sobe para o céu. Um velho monte de excrementos formal, ilustra o número e a diversidade dos tipos de simetria que o pensa-
humanos avisa a cabeça. Ela se agarra os fugitivos e, ardendo de desejo, con- mento mítico coloca em operação quando aplica a uma série de variantes
segue arrancar deles o irmão, prendendo-o entre as coxas (sic). Como ele se deformações sucessivas, que preservam a unidade do grupo, mas ao mes-
recusa a satisfazê-la, ela o devora, deixando apenas o coração, que enfia num mo tempo mantêm o aspecto original de cada estado. As versões klamath e
colar. Então ela parte em direção aos rios do norte e se instala num grande modoc, que nos serviram de ponto de partida, já invertiam umas às outras
lago, do qual só sai à noite, para tomar a fresca na margem sul. em vários eixos. E seu paradigma, deformado pela ideologia das tribos

132 | Segunda parte: Jogo de ecos | 133


adjacentes, projeta sobre esse fundo outras tantas imagens, cuja estrutura Fica evidente que as duas versões wintu representam formulações con-
global sempre pertence ao mesmo grupo de transformação. trariadas do mesmo mito: num caso (M₅₄₅b), o herói sobrevivente ressuscita
Se ordenarmos idealmente esses povos contíguos em série linear (fig. 13), seus parentes e, no outro (M₅₄₅b), são eles que sobrevivem, e não conseguem
deixando os da família linguística hokan no centro, com cada um dos repre- ressuscitar o herói de modo duradouro. Como todas as outras versões se
sentantes da família penutiana de um lado — disposição que quase não con- dividem em dois grupos, umas fazendo ressuscitar os corações por imersão
tradiz a realidade geográfica —, perceberemos, situadas no mesmo plano num receptáculo cheio de água fervente, outras na água fria de um lago ou
e no que chamaríamos de sua relação natural, fórmulas diversas que, por rio, é tentador buscar a mesma dualidade nas versões wintu. M₅₄₅b especi-
um duplo trabalho de imitação e distorção, podem gerar umas às outras, de fica que o coração foi exposto ao vapor da água fervente ou nela mergulha-
modos demonstrados por nossa análise. Partindo dos Yana, que nos pare- do, ao passo que M₅₄₅a fala vagamente de uma imersão na água e debaixo
ciam possuir as ligações míticas mais diretas com os Klamath-Modoc — já de pedras. Embora esses mitos só nos sejam conhecidos na transcrição em
que integram dos dos mitos destes num único, pelo procedimento do des- inglês, pode ser significativo que, para descrever a operação, o texto de um
dobramento vertical — passamos, à direita, para os Achomawi-Atsugewi, deles empregue o verbo to soak, “por de molho”, e o do outro o verbo to
que utilizam o mesmo procedimento, mas deslocam todo o sistema para a steam, “cozinhar no vapor” com pedras incandescentes na água.
horizontal, e, em seguida, para os Maidu, que operam a síntese desses tipos Mas o principal é que agora estamos em condições de completar a
desdobrados. À esquerda, passa-se para os Shasta, que se limitam a inver- demonstração iniciada na p. 86. Existe, dizíamos, uma completa homologia
sões lexicais, e para os Wintu, que recorrem a um procedimento simétrico e entre a configuração mítica evidenciada em O cru e o cozido e Do mel às
inverso ao dos Maidu, situados no outro extremo do esquema, pois, em vez cinzas, para a América do Sul, e a da América do Norte, que estamos aqui
de realizarem a síntese dos contrários num único mito, eles os justapõem, na mostrando. Num primeiro momento, notamos do lado esquerdo dessa con-
forma de mitos separados. figuração — cujo personagem central é, não devemos esquecer, um desa-
ninhador de pássaros — mitos relativos à origem dos adornos e à do mel,
sendo este último simplesmente invertido em sal pelos mitos dessa região
da América do Norte, setentrional demais para permitir a sobrevivência das
Klamath
abelhas indígenas. O condimento salgado ou doce sempre funciona como
Modoc
antecedente ou meio dos adornos, para os mitos que se referem à sua origem,
ou como fim para outros mitos, unidos aos precedentes por uma relação
simples de transformação.
Numa segunda etapa (pp. 88ss), localizamos no flanco direito da con-
figuração mítica, tanto na América do Norte quanto na América do Sul,
mitos simétricos aos do flanco esquerdo, mas que se associam à origem da
caça, ou à do tabaco. Porém, o mito modoc M₅₃₉, o único de que dispúnha-
mos até então para atestar tal ligação, não cumpria plenamente sua tarefa,
Wintu Shasta Yana Achomawi Maidu
pois não explicava a origem do tabaco. Na verdade, existem mais ao norte
Atsugewi
mitos que satisfazem essa condição, mas invocá-los teria sido injustificado,
justaposição inversão desdobramento desdobramento síntese
dos contrários vertical lateral
na ausência de meios de conectá-los tanto lógica como etnograficamente
aos outros. A versão wintu M₅₄₅b permite isso. Retomemos, pois, a discus-
são no ponto em que a havíamos deixado, para introduzir um mito prove-
Penutiano Hokan Penutiano
niente das tribos de língua chinook que residem no baixo Columbia, muito
ao norte dos Klamath e dos Modoc, mas que eles conheciam bem, pois fre-
[ 1 3 ] Sistema das transformações do mito de Dona Mergulhão quentavam suas feiras.

134 | Segunda parte: Jogo de ecos | 135


M 556A WASCO: ORIGEM DO TABACO da Companhia da Baía de Hudson. Antes desse contato, os índios iam colher,
a leste, uma outra planta, que crescia nas pedras das montanhas, certamente
Na margem direita do Columbia, a aproximadamente cinco quilômetros a jusante o kinikinnick (Arctostaphylos uva-ursi), e outras plantas também, todas mais
de Dalles, vivia um homem especializado em fabricar pontas de flecha de pedra. Cer- fortes que o tabaco verdadeiro, dizia-se, capazes de provocar a inconsciên-
to dia, ele cortou o dedo trabalhando, lambeu o sangue, achou-o tão bom que não cia durante períodos prolongados. Essa origem oriental das antigas plantas
conseguiu resistir e devorou a si mesmo. De seu corpo, só restou o esqueleto, com fumadas concorda com o uso do cachimbo reto de que fala o mito. Pois os
um pequeno pedaço de carne inacessível, atrás dos ombros, e o coração, pendurado Chinook tinham cachimbos curvados, e os do outro tipo vinham de montan-
entre as costelas. Tornou-se um ogro, e começou a atacar os habitantes da aldeia, te, dos Sahaptin, ao que tudo indica (Sapir & Spier 1930: 270).
para comê-los. Seus ossos eram invulneráveis, e por isso ninguém podia matá-lo. Antigamente, entre os Chinook, só os xamãs e os chefes tinham o direi-
Sua mulher fugiu com o fillhinho de ambos para o sul, tomando o cuidado de to de fumar. As pessoas comuns eram convencidas de que definhariam até
andar pelo ar, apenas tocando a ponta do mato baixo, para não deixar rastros. Mas o morrer se fizessem o mesmo. Mas os xamãs sempre fumavam antes de come-
ogro foi atrás dela, e a estava alcançando, quando ela se refugiou numa casa, no sopé çar a cura. Davam cinco inaladas em seus cachimbos e, assim, seu espírito
de uma montanha azul. De um lado da porta, estava um velho que fabricava arcos e protetor ficava mais ativo e poderoso, o que aumentava a garantia de cura.
flechas e, do outro, sua filha, que confeccionava bolsas de tabaco. Sapir (1909a: 242) considera que “a narrativa wasco aproxima claramen-
O esqueleto apareceu, trazido por um terrível vento do norte. O velho ficou na frente te duas histórias distintas. Tal como se apresenta, a primeira parte é uma
da refugiada, que implorava sua proteção, e atravessou o coração do esqueleto com uma variante do mito muito difundido da cabeça que rola, de que Curtin (1899:
ponta de flecha longa, aproveitando enquanto ele se esforçava por pisotear as flechas até 325-35), por exemplo, fornece um paralelo yana. A segunda parte, dedicada à
reduzi-las a pedacinhos. O esqueleto desmontou imediatamente, e quando só ficou um caça ao tabaco, é unida à outra de modo bastante frouxo”.
monte de ossadas no chão, o vento cessou. O velho mandou a mulher jogar fora os ossos. A comparação com a versão wintu M₅₄₅b permite corrigir essa interpre-
A mulher viveu com seu filho por muito tempo, na casa de seus hospedeiros. tação preguiçosa. Pois nela vimos que a transformação da protagonista em
O menino cresceu e começou a caçar esquilos para a mãe. Certo dia, ele seguiu o cabeça que rola remete à origem do auto-canibalismo, que equivale, no modo
velho, e o viu caçar o tabaco que vivia nas rochas escarpadas. Imitou-o e, com o pri- alimentar, ao incesto sexual da outra versão. M₅₅₆a remete à origem dos pode-
meiro golpe, abateu seis pés. O velho dançou de alegria, pois nunca tinha feito tão res xamânicos e, ao mesmo tempo, à do tabaco, e, segundo o próprio testemu-
boa caçada. Deu a filha em casamento ao jovem. “Por isso, no futuro, os homens nho de Sapir & Spier (1930: 242), entre os Wishram e os Wasco, as sessões de
escolherão bons caçadores para genros”. Embora estivesse muito contente com a xamanismo constituíam formas declaradas de auto-canibalismo: “Assim que
abundância de tabaco, o velho via nisso um sinal de aproximação da morte. Mas seu um homem ou uma mulher escutava seu canto pessoal, ele ou ela ‘ficava como
genro continuou caçando, e encheu a casa de tabaco. Então, resolveu voltar para o fogo por dentro, selvagem’, e comia pedaços de seu próprio corpo cortados por
rio Columbia com a esposa e a mãe. Porém, na aldeia natal, só achou os ossos das um assistente... recolhia com o peito da mão o sangue que escorria e o lambia”.
vítimas de seu pai. Graças a seus poderes mágicos, conseguiu ressuscitar a todos. Isso nos permite definir a coerência do mito de outro modo. Ele começa
Sua mãe envelhecia e era alimentada, todos os dias, pela nora. O herói decre- situando o auto-canibalismo, e depois o canibalismo, numa época em que as
tou que, a partir de então, as moças cuidariam assim de suas sogras. Finalmente, a pontas de flecha eram o único meio de caça. Meio material, entenda-se, pois
mulher decidiu partir para o sul com “sua filha” (sua nora?), onde ambas se torna- a sequência do mito descreve uma caça espiritual, a dos espíritos guardiães,
riam espíritos guardiões das mulheres xamã, e lhes dariam o direito de fumar. O filho, identificados ao tabaco porque este, por sua vez, constitui o seu meio. Não
por sua vez, resolveu tornar-se (ao norte?) o espírito quardião dos caçadores bem era certamente apenas entre os Atsugewi que “durante a caçada, os xamãs
sucedidos (Sapir 1909a: 246-48). fumavam e invocavam cada montanha pelo nome. A cada uma delas diziam:
não esconda seus filhos, os cervídeos, dê sorte aos meus meninos, dê a eles
Os Chinook do curso inferior e do estuário do Columbia conheciam o taba- os seus filhos” (E.W. Voegelin 1942: 172). Para que a caça exista como arte
co, que cultivavam em leitos de cinzas (Sapir & Spier 1930: 269; Ray 1938: 97). da civilização, não basta, portanto, que os homens tenham pontas de flecha.
Mas é possível que tivessem obtido a primeira semente junto aos empregados É preciso que também tenham tabaco.

136 | Segunda parte: Jogo de ecos | 137


Dissemos que os índios dessa região acreditavam que as pontas de flecha fogo doméstico para cozê-la. É verdade, portanto, que em duas regiões do Novo
de pedra possuíam uma espécie de veneno mineral que matava infalivel- Mundo — todavia muito afastadas uma da outra — um grupo de mitos sobre a
mente a caça. Uma correlação suplementar aparece, assim, entre as pontas origem da culinária engendra, de um lado, mitos sobre a origem dos adornos e
e o tabaco, veneno para os humanos de baixa condição entre os Chinook e, dos condimentos e, do outro, mitos sobre a origem da carne e do tabaco.
nos mitos sobre a origem do tabaco de proveniência mais setentrional, anti- Há mais. O estudo desse sistema mítico, quando o iniciamos em O cru e
gamente veneno para todos os fumantes. Tais mitos provêm dos Salish seten- o cozido, a partir de exemplos sul-americanos, iria levar-nos a perceber dois
trionais, Thompson e Shuswap, e de seus vizinhos Chilcotin, que são atabas- outros sistemas, simétricos entre si, e cada um deles ligado a seu modo ao
canos (M₅₅₆b-e; Teit 1912b: 304-05; 1909: 646; Boas 1891-95: 3; Farrand 1900: primeiro por relações de transformação: de um lado, um grupo de mitos
12). Como todos são muito breves, apresentá-los-emos de forma sincrética. sobre a origem da vida breve (M₇₀-M₁₁₈) e, do outro, um grupo relativo à
Durante suas peregrinações, os demiurgos encontraram a árvore de tabaco, diversidade das espécies animais e à origem da cor dos pássaros (M₁₇₁-M₁₈₆).
que possuía um ramo grosso que, com um movimento pendular, matava todos Agora, ainda de modo alusivo, acabamos de ver transparecer esses dois moti-
os passantes; ou então, o que dá no mesmo, o tabaco da árvore era venenoso. vos na configuração norte-americana, em que surgem à guisa de conclusão,
Os demiurgos, ou um deles, derrubaram a árvore, com um instrumento para um na versão maidu (M₅₅₄) e o outro numa das versões achomawi (M₅₅₁).
retocar pontas de flecha, segundo uma das versões, e decretaram que, a partir Mas, melhor ainda, se na América do Sul estabelecemos a conexão entre
de então, o tabaco não seria mais tóxico e poderia ser fumado sem problemas os mitos sobre a origem da cor dos pássaros e os mitos sobre a origem do
(Shuswap). A versão chilcotin substitui o instrumento por um bastão planta- veneno de pesca (cc: 306-07), na América do Norte, a mesma conexão apa-
do na diagonal, que desvia a árvore que cai sobre o corpo do demiurgo. Os rece em forma invertida, entre a origem da cor dos pássaros (M₅₅₁) e a das
Thompson atribuem à árvore uma sombra mortífera; Coiote fez um cachimbo pontas de flecha de pedra, que são um veneno de caça, igualmente presente
de pedra, colheu as folhas, agora transformadas em tabaco, e as fumou. no estado natural, segundo as tribos dessa região do continente. E, finalmen-
Portanto, se atualmente as pontas de flecha são um veneno para os ani- te, verificaremos, a partir da próxima parte deste livro, que a origem da vida
mais caçados (mas benéfico do ponto de vista dos caçadores), antigamente, o breve ocupa, na configuração norte-americana, um lugar mais importante
tabaco era veneno para os humanos. E foi o instrumento usado para retocar do que parece, e que a economia dos mitos que a ela remetem é rigorosa-
pontas de flecha que permitiu tirar-lhe a toxicidade para fazer dele — como mente idêntica à dos mitos sul-americanos. A ordenação da natureza pela
as flechas, mas num registro complementar — um potente auxiliar na caça a instituição das diferenças específicas, por sua vez, aparecerá na quarta parte.
esses mesmos animais. Os mitos setentrionais a respeito da origem do tabaco Dixon (1905: 609) estava, portanto, fundado em seu pressentimento de que,
atestam plenamente, por conseguinte, a conexão entre carne e tabaco que a longe de ser uma formação isolada, como acreditava Demetracopoulou (supra,
exegese do mito modoc, menos explícito (M₅₃₉) havia permitido inferir. p. 52-53), o mito de Dona Mergulhão faz parte de uma cosmogonia. Sapir, por
Definitivamente seguros de que as configurações míticas comuns às duas sua vez, tinha ficado impressionado com o fato de um episódio do mito de
Américas são homólogas em sua parte direita (fig. 8), podemos voltar para a Dona Mergulhão aparecer no mito que os Yana consagram à origem do fogo:
parte central, que tínhamos provisoriamente deixado de lado, para integrar
ao sistema versões suplementares (supra, p. 93-125). Com efeito, ainda não M 548 YANA: ORIGEM DO FOGO DE COZINHA
tínhamos meios de determinar a presença da mesma homologia no centro
da configuração, isto é, onde sua modalidade sul-americana situa os mitos Antigamente, as pessoas só tinham um foguinho fraco, que não esquentava. Caçavam,
sobre a origem do cozimento dos alimentos. pescavam e coletavam plantas selvagens, mas a comida não cozinhava, e era comida
Agora temos, já que a versão atsugewi, de modo direto, e as outras, sob trans- praticamente crua. Os antepassados se reuniram e decidiram que precisavam de fogo de
formações em que é possível ver o mesmo tema etiológico, subordinam a his- verdade. Olharam em todas as direções, e finalmente avistaram um grande clarão ao sul.
tória de Dona Mergulhão (que, como demonstramos, inverte a do desaninha- Cinco bons corredores partiram. Coiote teimou em acompanhá-los, apesar de
dor de pássaros) à descoberta das artes da civilização, sob o triplo aspecto de eles não gostarem da ideia. Chegaram juntos à aldeia do fogo e, enquanto os mora-
flechas de ponta de pedra para a caça, facas de cozinha para cortar a carne, e dores dormiam, roubaram uns tições e correram com eles de volta.

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Coiote exigiu fazer a sua parte quando chegou a sua vez no revezamento, mas o papel de espectadora em M₅₄₈, não é senão Dona Mergulhão, que também tem
fogo queimou-lhe a mão e ele soltou. Todo o universo pegou fogo, as rochas esplodi- esse nome. A outra versão, em que ela aparece como principal personagem, a
ram, a água evaporou, e os habitantes morreram. apresenta munida de uma broca “na qual havia fogo... ela quebrou a broca, lan-
O incêndio logo atingiu Cipla (cf. supra, Mfeh, p. 85, 181), aldeia cujo chefe era Águia, çou uma metade para o leste e a outra para o sul (ou seja, o contrário da técnica
e todos foram içados para o céu por Aranha. Mas Coiote, que estava no fundo do ces- real, que emprega peças intactas e as aproxima uma da outra). O fogo surgiu
to, abriu um buraco para espiar. O cesto arrebentou, e seus ocupantes foram caindo onde os pedaços caíram e tudo queimou. Dona Mergulhão estava de pé, arma-
no fogo um depois do outro, observados por Dona Broca-de-Fogo. Os olhos de Urso- da com uma borduna grossa, e supervisionava o fogo” (M₅₄₇; Sapir 1910: 232).
Preto explodiram, e dispararam nas quatro direções (sic). Todos foram queimados, Consequentemente, as versões yana também unem o fogo destruidor e o
exceto Aranha, que permaneceu no céu (Sapir 1910: 23-35; cf. Curtin 1899: 365-70). incesto, e fazem de ambos uma função derivada do fogo construtor, a que se
referem diretamente ou por intermédio do instrumento que serve para pro-
Como na versão atsugewi, a aproximação do fogo culinário ou construtor, duzi-lo. Sabe-se que ele consiste de um bastão segurado verticalmente entre as
desejado pela humanidade, acarreta como consequência um incêndio uni- palmas das mãos que, num movimento de vai-e-vem, o fazem girar nos dois
versal. Como uma das versões achomawi, o mito yana conclui, se não com a sentidos, até que a extremidade inferior, provocando atrito entre as paredes da
diversidade das espécies animais, ao menos com a dispersão de uma delas; bacia que fura e um outro bastão ou prancha, fique suficientemente aquecida
pois é o incidente relativo aos olhos do urso que explica, segundo o mito, para atear fogo na palha ou casca colocada ao lado, como uma mecha; ou seja,
que esses animais sejam hoje em dia encontrados em todos os lugares (Sapir o intrumento mais “incestuoso” que se possa imaginar, já que o fogo nasce do
1910: 35 n. 53). Por outro lado, não há como não ficar impressionado com atrito entre peças “irmãs” cuja ação recíproca lembra o coito (cf. mc: 209).
a flagrante analogia entre a intriga de M₅₄₈ e a que é utilizada pelos povos O mito yana evoca esse instrumento em forma invertida, a de um ser
de língua jê do Brasil Central para dar conta da origem do fogo destruidor fêmea que provoca um incêndio devastador devido à carência de seu parceiro
(M₁₆₃; cc: 207-08). Os dois protagonistas são, nesse caso, os irmãos Sol e Lua macho, ao passo que, na broca de fogo, é a ação exclusiva do elemento macho
que, entre os Jê, os Bororo e os Bakairi, desempenham respectivamente os que acende um fogo criador. Esse funcionamento ao contrário, que transpõe
papéis de demiurgo e enganador, que entre os Yana, cabem exatamente aos a broca de fogo para o plano do imaginário,13 contrasta de modo notável com
protagonistas dos mitos que acabamos de resumir, Raposa, que pega o fogo, sua ausência ocasional em mitos modoc que discutimos (M₅₄₉a, b, c; supra,
e Coiote, que o deixa cair (supra, p. 129). Tanto na América do Norte como p. 88-89), acarretando, senão o contrário do fogo de cozinha, na forma de um
na América do Sul, esse par dioscúrico horizontal se inclina para o eixo ver- grande incêndio, pelo menos sua ineficácia prática, já que sem tabaco e sem
tical e se encarna em personagens que não são mais irmãos ou companhei- broca, não é possível fazer as oferendas de fumaça exigidas pelo espírito da
ros, mas indivíduos pertencentes a gerações diferentes, como pai e filho. Foi montanha, o que inviabiliza a caça, e então não há nada para cozinhar. Para
levando em conta esse fenômeno que pudemos (supra, p. 40) verificar que reverter a situação, é preciso vencer o espírito, e destrui-lo num fogaréu de
os mitos do desaninhador de pássaros eram, também no tocante à sua cono- proporções cósmicas. O recurso ao fogo destruidor (mas para destruir um
tação astronômica, idênticos no conjunto bororo-jê e no conjunto klamath- ogro canibal) torna-se, nesse caso, meio e condição de retorno a uma alimen-
modoc. É, portanto, significativo que a mesma fórmula reapareça ao sul dos tação civilizada. Vê-se, assim, que o grupo se fecha também por esse ângulo.
Atsugewi, entre os Maidu da montanha, que definem os elos de parentesco
entre sol e lua de três modos: irmã e irmão, mulher e marido, ou pai e filho !
(Loeb 1933: 157 n. 40, 230; quanto a essa instabilidade do sexo dos astros, ver
Lévi-Strauss 1967). Em outras palavras, e sempre dentro de limites geográ-
ficos bem restritos, observam-se as mesmas transformações dos dois astros, 13 . Ilustrado de modo metafórico por M₅₄₅b, que substitui a cena do incêndio por uma
de pai e filho em par dioscúrico, e de par dioscúrico em casal incestuoso. outra, em que a irmã incestuosa, deitada de costas, espera que seu parceiro macho caia do
Ei-nos de volta ao incesto, trama central do mito de Dona Mergulhão. Ora, o céu entre suas pernas afastadas (supra, p. 122), reconstituindo assim a verdadeira imagem
informante de Sapir (1910: 35 n. 52) afirma que Dona Broca-de-Fogo, que faz o da broca de fogo num mito em que o motivo do fogo, justamente, não está presente.

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Para concluir, gostaríamos de chamar a atenção para um outro aspecto desses Para definir a linha que seguimos desde o início deste livro, poderíamos,
mitos e resolver o último problema levantado por sua comparação. Quando, portanto, retomar os próprios termos que empregamos em O cru e o cozido,
no final de O cru e o cozido, consideramos retrospectivamente o conjunto de falando de mitos provenientes do outro hemisfério: “considerando nosso pro-
nosso procedimento, foi evocado como ilustração um mito dos índios Shi- cedimento retrospectivamente, podemos dizer que este começa com mitos
paya (M₁₇₈), segundo o qual irmãos incestuosos, sabendo que haviam sido cujo herói é um desaninhador de pássaros e que, ao menos provisoriamente,
descobertos, fogem para o céu. Mas, ao chegarem lá, discutem, e o homem desemboca em mitos relativos à origem da cor dos pássaros... um problema
empurra a mulher, que cai na terra com um estrondo. Ela se transformou em formalmente do mesmo tipo que o do surgimento de uma ordem que poderí-
anta, enquanto o irmão que ficou no céu tornou-se a lua. Guerreiros convoca- amos chamar de alimentar” (cc: 356). Efetivamente, a criação de uma ordem
dos por um outro irmão buscaram matar o astro criminoso com flechas. Seu zoológica se situa a meio caminho entre a de uma ordem cósmica e a de uma
sangue policromo jorrou, provocando o aparecimento da menstruação femi- ordem cultural; os problemas colocados pelas três são isomorfos (cc: 321-22).
nina e tingindo os pássaros, cujas plumagens receberam suas cores distintivas. Contudo, convém renovar aqui uma observação que já tínhamos feito a
A respeito dele, notamos que “existe pelo menos uma tribo brasileira que respeito dos mitos homólogos da América do Sul: eles jamais tratam simul-
percorre, no espaço de um só mito, o itinerário complicado que seguimos, taneamente os três problemas, pois o ou os níveis que selecionam impli-
juntando vários mitos, para passar da algazarra ao eclipse, do eclipse ao inces- cam constrangimentos que se traduzem, em cada mito, por diversos tipos
to, do incesto à desordem, e da desordem à cor dos pássaros” (cc: 335). Pois de inversões e transformações. É exatamente isso que a análise dos mitos
bem, esse mito ao mesmo tempo reproduz e inverte o de Dona Mergulhão: norte-americanos permite, novamente, constatar: o mito atsugewi M₅₅₀ res-
iniciativa do irmão, em vez da irmã; irmão marcado com a cor preta no rosto salta problemas relativos ao advento da ordem cultural, e possui relações de
pela parceira, ao passo que, no outro mito, é a irmã que é marcada de branco correlação, mas também de oposição, com os mitos achomawi (M₅₅₁) e mai-
pela penugem que orna seu parceiro e gruda na resina que ela mesma passou du (M₅₅₄), que tratam do advento de uma ordem natural considerada pelo
no corpo; fuga para o céu dos infratores, para evitar a vingança dos parentes, ângulo do espaço, num caso, e do tempo, no outro. Pode-se dizer o mesmo
tendo o incesto sido cometido (a irmã está grávida), opondo-se à fuga dos dos mitos que se concentram na instauração de uma ordem cosmológica:
parentes, no outro caso, para evitar a vingança da infratora, furiosa por não ter periodicidade sazonal (M₅₅₀) e modelagem do relevo (M₅₅₀, M₅₅₁).
conseguido consumar o incesto; transformação da irmã em pássaro aquático, Contudo, essas formas dadas ao tempo ou ao espaço ilustram a ordem
a pior caça de todas, ou em mamífero terrestre, o maior dos animais de caça cósmica em aspectos bastante modestos. É necessário achar mais, e melhor,
— ambos, além do mais, portadores de anti-ornamentos, que são, na América no grupo de mitos norte-americanos, para validar definitivamente a homo-
do Sul, os carrapatos, “que são as pérolas da anta” (M₁₄₅; cc: 301) e, na América logia que tentamos demonstrar entre as configurações míticas dos dois
do Norte, o colar de corações; transformação do irmão em lua, astro periódico hemisférios. Bem, e o que compõe a ordem cosmológica instituída pelos
sujeito a eclipses, ou em ressuscitado precário (M₅₄₅b), no decorrer de uma mitos correspondentes do Brasil? Sendo mitos da origem da culinária, eles
operação de que resulta (M₅₅₄) a periodicidade da vida humana; incesto acar- colocam os homens ao abrigo de dois perigos, o da a ausência total de fogo
retando o surgimento da menstruação nas outras mulheres (M₁₇₈) ou con- e o de sua presença excessiva, porque demasiadamente próxima. Interposto
secutivo ao seu surgimento na própria protagonista (M₅₄₅b, M₅₅₃); tudo isso entre o sol e a humanidade, o fogo doméstico ao mesmo tempo os liga e
levando, em ambos os casos (M₁₇₈ e M₅₅₁), à origem da cor dos pássaros. Até o os mantém suficientemente afastados. Esse aspecto foi de fato encontrado
motivo da algazarra, que tínhamos aproximado do charivari para lutar contra nos mitos norte-americanos, mas eles lhe dão uma expressão negativa, que
os eclipses e punir as uniões proibidas (cc: 291-305), pode ser encontrado em mais compromete do que garante a ordem do mundo. Seguindo um pro-
termos praticamente idênticos na América do Sul e na América do Norte: “a cedimento regressivo, fazem do fogo ardente substituindo um fogo morno
mulher caiu como um meteoro e tocou o solo com muito barulho”, diz M₁₇₈. (M₅₄₈) o sinal e o meio de um incêndio universal. O tom excepcionalmente
E, em M₅₅₅a, depois de ser atingida no calcanhar, onde o coração escondido trágico do mito de Dona Mergulhão, que lhe confere uma grandeza som-
reluz e brilha “como fogo”, “ela caiu e morreu; por toda parte, no mundo intei- bria cujo equivalente teríamos dificuldade de encontrar, provém dessa con-
ro, ouviu-se o ruído de sua queda” (Dixon 1910: 15). versão que ele opera, regredindo de uma ordem empírica, que os demais

142 | Segunda parte: Jogo de ecos | 143


mitos buscam, antes, fundar, para um caos imaginário, que é o contrário de O menino cresceu, casou-se, e teve um filho. O demiurgo desejava a nora, e conven-
uma cosmogonia. ceu o filho a subir numa árvore para desaninhar filhotes (talvez de aves de rapina do
Teríamos de nos conformar com uma solução capenga e duvidosa, por- gênero Accipiter), que divertiriam a criança. Quando o herói chegou ao topo, o pai pro-
tanto, se não recordássemos que, na América do Sul, os mitos de origem do vocou uma ventania que quebrou todos os galhos. Sem poder descer, e correndo o ris-
fogo culinário ou fogo terrestre (M₇-M₁₂) transformam um mito (M₁) cuja co de despencar no chão, o herói usou o cordão que tinha em torno da cabeça para se
intriga é lançada por um incêndio, e que se refere à origem da água celeste amarrar. Começou a nevar, e ele ficou assim, preso no alto da árvore, durante cinco dias.
em forma maléfica, o temporal. Na América do Norte, ao contrário, é o mito Certo de que o filho estava morto, o demiurgo violentou a nora, apesar do choro
da origem do fogo terrestre (M₅₅₀) que contém o motivo do incesto. Mas, e a dela e do menino. Para livrar-se dessa testemunha incômoda, ele o contaminou (com
outra forma, que deveria, também lá, remeter à água? seu esperma, segundo algumas versões) e o menino, atingido nos olhos, ficou quase
Cabe aqui sublinhar que nos encontramos no limiar de uma etapa deci- completamente cego.
siva, que influenciará não apenas a sequência de nossa demonstração, como O herói finalmente conseguiu descer da árvore. A caminho da aldeia, viu o filho
também as considerações teóricas que a inspiram. Pois, se a análise estru- atirando flechas a esmo e estalando a língua contra os dentes; a cada vez, um pás-
tural dos mitos prepara o advento de uma antropologia científica, é preciso saro (ou uma concha do gênero Dentalium) caia em suas mãos. O menino contou ao
que, como toda ciência, esta permita montar experiências para controlar pai tudo o que se passara desde o seu desaparecimento.
suas hipóteses e deduzir, a partir dos princípios que a orientam, proprie- O herói provocou uma bruma espessa; não podendo ser visto, graças a ela, juntou
dades ainda desconhecidas do real. Dito de outro modo, que permita pre- todas as suas coisas e levou o filho a jusante. O demiurgo tentou uma reconciliação.
ver, em condições experimentais determinadas, o que deve necessariamente Ele não queria saber de nada. Resolveu separar-se também do filho, e cada um dos
ocorrer. Temos condições de enfrentar esse duplo desafio. Sabendo que, na três partiu numa direção diferente (J. Sapir 1928: 253-54).
América do Sul, um mito da origem da água se inverte em mito da origem
do fogo, e dispondo agora de um mito norte-americano da origem do fogo Não dedicaremos muita atenção ao episódio do menino cego, que ocupa um
que. como demonstramos, é homólogo ao outro de vários modos, devemos lugar considerável nos mitos de tribos mais ao norte. Ele constitui o último
postular que, se sua forma invertida existe em algum lugar dentro da mesma estado de uma transformação cujo ponto de partida se encontra em mitos
área cultural e geográfica, ela tratará da origem da chuva e da tempestade. discutidos alhures (omm: 191-94): exilado desde o nascimento sem o saber,
Não precisamos procurar muito para encontrá-la. Na vizinhança imedia- um jovem caçador certo dia não acerta um pássaro, que lhe revela sua ori-
ta da área de difusão do mito de Dona Mergulhão, a oeste, as pequenas tri- gem, e ele consegue reencontrar a família. O mito de Dona Mergulhão impõe
bos costeiras dos Yurok e dos Wiyot (fig. 9), preenchem todas as condições uma primeira transformação a esse motivo, em versões (M₅₅₅a, b) em que o
requeridas por nossa hipótese. Elas não possuem o mito de Dona Mergulhão, pássaro ferido dirige as crianças para a tia, mas para que possam matá-la, e
e não podem, portanto, lhe remeter a origem do fogo. Em compensação, elas separá-la, portanto, definitivamente de si. O mito yurok opera uma torção
conhecem o mito do desaninhador de pássaros. suplementar: torna o menino cego para que, incapacitado a mirar nos pás-
saros — e também de errar a mira, portanto —, ele os mate infalivelmente,
M 557A YUROK: O DESANINHADOR DE PÁSSAROS com seu poder mágico, o que os impede, evidentemente, de “esclarecê-lo”.
De fato, o menino não pode mais se reunir ao pai. Sua aproximação é tão
O demiurgo Velho-d’Além-Mar desejava duas moças, que resistiam às suas investi- precária quanto a ressurreição do herói de M₅₄₅b e, como em M₅₅₁ e M₅₅₄, o
das. Depois de ter tentado outros estratagemas, conseguiu engravidar magicamen- mito termina numa dispersão.
te uma delas, assumindo a aparência de um garotinho. Naquele tempo, era preciso Ainda mais explícita a esse respeito, a versão Erikson, já indexada em Do
abrir as mulheres com uma faca, e matá-las, para realizar o parto (cf. Kroeber 1925: 73; mel às cinzas como M₂₉₂d (mc: 264 n. 1) conta que o herói exilou o filho no
e 1905: 96-97, acerca da mesma crença entre os Wyiot). Mandaram chamar o demiur- mundo celeste, terra das crianças e dos cervídeos; e engata imediatamente
go e, como ele era o responsável pela gravidez, disseram-lhe que encontrasse um num outro episódio (igualmente registrado entre os Wiyot, os Tolowa e os
método melhor. Ele deu um jeito para o bebê nascer de parto natural, e ficou com ele. Yupa, M₂₉₂e, Kroeber 1905: 85-107; M₂₉₂f, Goddard 1904: 116, 132), no qual o

144 | Segunda parte: Jogo de ecos | 145


demiurgo cede às propostas de uma Dona Raia que o prende entre as coxas M 558A WIYOT: O DONO DA CHUVA
durante o coito, aprisoina-o e o manda de volta para sua terra de origem, do
outro lado do oceano, ou seja, ele também é afastado do mundo dos huma- A mulher de Velho-do-Alto deu-lhe um filho, a quem ele deu habilidade na caça e no
nos. Aliás, já o início de M₅₅₇ atesta que continuamos dentro do mesmo jogo. Mas o aprendiz ficou tão bom que o pai ficou com ciúme dele e prendeu todos
grupo de mitos. Segundo M₅₅₀, a conquista do fogo de cozinha, isto é, da os animais, para que ele voltasse de mãos vazias, e fez com que ele perdesse todas as
cultura, acarreta o aparecimento do incesto, apresentado como uma de suas partidas que jogava. O herói ficou pobre e resolveu trabalhar. Pediu conselho ao pai,
implicações. Aqui, o incesto só se torna possível a partir do momento em que o recomendou a Trovão, que concordou em empregá-lo. Desde então, “quando
que seu meio anatômico, natural portanto, é instituído: antes de as mulheres há uma grande tempestade, é porque o rapaz está trabalhando. Ele não tinha mais
terem vagina, um sogro não poderia ter violentado a nora. E se o demiurgo nada, não conseguia fazer mais nada. Quando há uma grande tempestade, é (obra d)
engravidara antes a primeira conquista, foi por um método que nada tinha a o filho de Velho-do-Alto” (Reichard 1925: 151-53; cf. ibid.: 156-61, Mffhd).
ver com a cópula: como ele não conseguia o que queria com a aparência de
um belo rapaz, engravidou a moça de longe, depois de ter-se transformado Não há dúvida de que nos encontramos diante do herói do mito bororo
num menininho. (M₁) que servia de referência para o primeiro volume destas Mitológicas, ele
Uma versão do mesmo mito, registrada e resumida por Kroeber (1925: também vítima do ciúme do pai, devido ao incesto cometido com a mãe, ao
73; M₅₅₇b) detalha dois pontos importantes. Em primeiro lugar, o filho do passo que M₅₅₇, que o isola igualmente sob pretexto de desaninhar pássaros,
demiurgo é o dono de todas as conchas do mundo (“suas coisas”, como diz num lugar de onde ele não pode sair, o pai comete incesto com a mulher do
M₅₅₇a) e, para vingar-se do pai, leva-as embora consigo; mas, diz essa versão, filho. O herói sempre se torna dono das tempestades e ventanias.
o demiurgo conseguiu alcançá-lo e recuperar uma quantidade de conchas Não se trata de uma casualidade que só pode ser ilustrada pelo caso
suficiente para satisfazer as futuras necessidades da humanidade. São as muito particular dos Yurok e Wiyot, representantes remotos da família lin-
conchas dentalia que, em toda a região, servem para fazer os ornamentos guística algonquina (Hass 2, 3), perdidos na costa do Pacífico. Uma versão
mais apreciados e, entre as populações de que estamos tratando, fazem papel muito lacunar do mito yurok (M₅₅₇c, Curtis 1907-30, v. 13: 190) termina con-
de moeda preciosa. Parido por um homem, dono dos adornos, vítima do tando que, ao tornar-se adulto, o filho do demiurgo resolveu deixar a mãe.
ciúme e da lascívia do pai, que tenta fazer com que ele morra no alto de uma Desceu o rio (Klamath) de canoa. A mulher, moendo sementes, foi atrás dele,
árvore para tomar-lhe a esposa, todos esses aspectos do herói de M₅₅₇ cor- sem largar seu pilão de pedra. Quando ela chegou à costa, viu que a canoa
respondem exatamente aos que os Klamath e Modoc utilizam para descrever já estava no mar e lançou o utensílio em sua direção, mas ele caiu na água e
seu herói Aishísh. E assim voltamos ao nosso ponto de partida. virou um rochedo alto ao largo do estuário.
Na verdade, chegamos a outra coisa, que vai nos levar bem mais para trás. Por uma transposição geográfica, de que descrevemos outros exemplos
A versão Kroeber nomeia o herói Kapuloyo, nome de uma divindade que os (supra, p. 62-65, 83-85, 100-02, 108-09), essa versão conecta o mito yurok com
Yurok invocam “quando o vento ameaça derrubar uma casa ou quando tro- um mito dos Makah do cabo Flattery, a seiscentos ou setecentos quilômetros
veja. Olham então para o norte, estendendo a mão naquela direção, e rezam: mais ao norte, únicos representantes da família linguística nootka na terra firme.
Kapuloyo, sou teu filho, ajuda-me!” (Spott & Kroeber 1942: 233). Essa impressionante versão setentrional do mito bororo contém até a música:
Kroeber (1925: 119) considera que o demiurgo Velho-d’Além-Mar não
tem, para os Yurok, muita relação com a principal divindade de seus vizi- M 558B ,C MAKAH: O DESANINHADOR DE PÁSSAROS
nhos Wiyot, chamado Velho-do-Alto. Entretanto, as histórias deste com o
filho se parecem muitíssimo com as evocadas nos mitos precedentes. Falta o A noroeste do cabo Flattery, um pouco ao sul do estreito entre Tatoosh Island e a
episódio do desaninhador de pássaros, é verdade, mas todos os outros deta- costa, eleva-se uma ponta rochosa isolada que os índios chamam de Tsa-tsa-dak, e
lhes remetem com a mesma precisão, senão mais, aos mitos dos Klamath que os brancos batizaram de Pillar Rock (ilustrações 1, 2). Um rapaz costumava subir
e Modoc de que partimos (M₅₃₉). Como os Yurok, os Wiyot apresentam o nela para caçar as gaivotas que faziam ninho no topo. Certo dia, ele não pode descer
herói vítima do próprio pai como dono do mau tempo: de lá, porque, diz uma versão, os pássaros bateram com as asas contra a rocha e, por

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vingança, fizeram-na crescer muito além de sua altura costumeira aquecendo-a. O solo, contado por muitas variantes do mito de Dona Mergulhão, o qual, vale
pai do herói, que era o chefe da aldeia, organizou o resgate, mas não conseguiram lembrar, inverte o do desaninhador.
levar até o herói as cordas que tinham tentado prender nas patas das gaivotas, na Acrescentaremos uma prova suplementar. Vimos que o mito bororo
esperança de que elas o sobrevoassem, ou em flechas, que não chegaram até o topo. inverte mitos jê cujo herói, ele também desaninhador de pássaros, torna-se
O herói foi ficando fraco e com sede. Gritaram para que ele rezasse por chuva. Ele dono do fogo culinário roubado do jaguar, que desde então come cru. O
cantou a invocação que até hoje é utilizada para fazer chover: conjunto do sistema está apoiado em três grandes oposições: entre o fogo
terrestre e a água celeste, entre a humanidade e o jaguar, entre cozido e cru.
As formas bororo e jê são, portanto, mutuamente exclusivas e, visto que os
Yurok e os Wiyot adotaram a primeira, não se pode esperar encontrar entre
eles a segunda. Como seus vizinhos Hupa, os Wiyot chegam a afastar a teoria,
prevalecente em toda a área (cf. M₅₅₀), segundo a qual a primeira humani-
dade teria obtido o fogo graças a um roubo (Kroeber 1905: 92). Entretanto,
o mito ausente esclarece aquele que o substitui entre os Wiyot, como se este
só tivesse podido adquirir sua configuração por ter sido projetado a partir
“Oh, chuva! Cai, te peço, e enche as reentrâncias da rocha!” desse foco virtual:

Quando acabou a água nos reservatórios naturais, o herói cantou novamente: M 559 WIYOT: ORIGEM DO FOGO.

O puma perguntou ao cão de onve vinha o fogo dele. O cão no começo negou que
tivesse fogo, os dois companheiros brigaram, mas o cão se recusava a falar. O puma
teve de comer sua caça crua. O cão tinha dois bastões, um deles todo furado. Ele os
usava para produzir fogo por giração. Mesmo em tempo de vento e chuva ele conse-
guia fogo desse modo (Kroeber 1905: 102).

O mito possui a mesma armação que o dos Jê: entre a cultura e a natureza, a
“Vocês sempre poderão me encontrar invocando-me com meu tambor.” humanidade e a animalidade (representada, em cada região, por seu maior
felino), um terceiro personagem desempenha o papel de mediador, mas des-
Depois, ele saltou no vazio e se matou. Outros dizem que ele morreu no rochedo, locado, em cada um dos casos, em direções opostas, mais para a humanida-
no sétimo dia. Seu espírito continua lá, e avisa os índios quando se aproxima uma de se for um adolescente recém-iniciado, mais para a animalidade se for um
tempestade e fica perigoso pescar ou caçar no mar (Swan 1964: 86-87; Densmore animal doméstico. O mediador dos mitos jê se apossa do fogo e o transfere
1939: 197-99). de um polo para o outro, o do mito wiyot o possui desde o início. A razão
dessa diferença é compreensível. Os mitos jê introduzem o primeiro fogo na
Diante disso, talvez se admita que não cedemos a um mero capricho quando forma de um toco de madeira em brasa, ou seja, algo que pertence à ordem
intitulamos o primeiro capítulo destas Mitológicas “Ária do desaninhador natural. Já o mito wiyot faz dele função da broca de fogo, objeto manufatura-
de pássaros”... Pois, a não ser por três inversões (pai prestativo/perseguidor; do que pertence à ordem cultural.
pássaros devorados/devoradores e salvadores ineficazes/eficazes), é a mesma Ora, a mesma transformação se verifica na América do Sul, e precisa-
história, sempre fundando a origem do mau tempo. Além disso, o episódio mente na mitologia bororo, que atribui a invenção da broca de fogo ao maca-
das gaivotas vingadoras, que elevam o herói até o céu, apresenta uma relação co, e que também opõe esse animal mediador ao maior felino, o jaguar, no
de simetria com o dos cervídeos vingadores que o pisoteiam e enfiam no caso. Mostramos que esse mito bororo sobre a invenção do fogo cultural

148 | Segunda parte: Jogo de ecos | 149


transforma os mitos jê sobre a obtenção ou roubo do fogo natural (M₅₅; cc:
135-41). Por outro lado, o macaco se aproxima do homem pela natureza, por
semelhança física, e o cão está próximo do homem pela cultura, por conti-
guidade social. A distância entre as tribos cujos mitos estamos comparando
é evidentemente enorme. Mas, para justificar a aproximação, convém notar
que o espaço intermediário pode ser pontuado com exemplos provenientes
da Guiana (cc: 136 n. 1), do sudoeste dos Estados Unidos, no Arizona, entre
os Yuma e os Pima (Harrington 1908: 338-39; Russell 1908: 216 n. a), e do sul
da Califórnia, entre os Luiseño (C.G. Du Bois: 134, 146). O princípio taxo-
nômico fundado na presença ou ausência de cauda, introduzido em O cru e
o cozido (pp. 138-39) para a discussão do mito bororo, parece estar também
presente no noroeste da América do Norte, entre os Chinook (Boas 1893: 191).
Como outros mitos analisados acima (supra, p. 89, 130-31), o dos Wiyot
substitui o fogo pelo instrumento que serve para produzi-lo. E também jus-
tifica esse procedimento metonímico. De modo ainda mais claro do que o
próprio fogo, a broca se opõe à tempestade e à chuva porque permite aos
homens se abrigarem para obtê-lo, ao passo que uma fogueira externa cor-
reria o risco de ser apagada pelas intempéries. Talvez por isso os Yurok con-
cebessem uma relação de incompatibilidade entre o cão, dono da broca de T E R C E I R A PA RT E
fogo, e a água, e jamais levassem os cães em suas embarcações. Recordemos
que, no mito bororo M₅₅, o macaco inventa a broca de fogo depois de ter Cenas da vida privada
corrido de risca por ter subido numa canoa. De modo que, em ambos os
hemisférios, os mitos opõe o fogo à água, celeste ou terrestre e, como pos-
tulamos, tanto de um lado como do outro, mitos que invertem, do ponto de
vista de sua estrutura formal, os que se referem a um dos elementos, reme-
tem necessariamente ao outro. No centro de sua área de difusão, a história
de Dona Mergulhão se apresenta como mito de origem do fogo. Decorre daí
que a história do desaninhador de pássaros, que lhe é simétrica, se manifesta
na periferia como mito da origem da água. O fato de essa notável transfor-
mação, registrada duas vezes na costa do Pacífico, a centenas de quilômetros
de distância, estar mais bem ilustrada entre os Yurok e os Wiyot, filhos des-
garrados da família algonquina, abre outras perspectivas, de que tiraremos
mais adiante (terceira parte, ii) outras informações.

150 | Segunda parte: Jogo de ecos | 151


i. A avó libertina

Sic dentata sibi videtur Aegle


emptis ossibus Indicoque cornu.
marcial, Epigramas, 1, 72

A falta de união entre esposos, qualquer que seja a sua causa, traz desgraças terríveis; Teríamos encontrado integralmente, na América do Norte, o mito (M₁) que
mais cedo ou mais tarde, somos punidos por não termos obedecido às leis sociais. serviu de ponto de partida para estas Mitológicas e que, ao longo de quatro
volumes, não paramos de comentar? Não podemos ainda afirmá-lo cate-
h. de balzac, “Uma dupla família”, A comédia humana, ed. Pleiade, i, p. 991. goricamente pois, entre os Bororo, a história do desaninhador de pássaros,
além de ser codificada em termos sociológicos e meteorológicos, possui
uma conotação astronômica. Para localizar essa conotação nas variantes
norte-americanas, nas quais, até agora, só recolhemos suposições (supra,
pp. 39-40, 61, 70), será preciso voltar ao início deste livro e, seguindo outro
itinerário, refazer o que até aqui foi nosso trajeto.
A história do desaninhador de pássaros se nos apresentou primeira-
mente na mitologia dos Klamath e dos Modoc. Mas ela nunca aparece ali
em posição inicial ou isoladamente. Graças a uma versão tardia (M₅₃₈), que
relata episódios a que as versões mais antigas já aludiam, foi-nos possí-
vel reintegrá-la num conjunto que a encadeia a uma sequência de eventos
anteriores, os quais, por essa razão, constituem uma espécie de “abertura”,
em que reconhecemos todos os temas que, mais ao sul, formam a história
de Dona Mergulhão. Ocorre o mesmo entre os Modoc, mas com duas dife-
renças. Quando serve de abertura para a história do desaninhador, a história
de Dona Mergulhão se inverte: a mulher desmiolada vira virgem ajuizada, a
irmã casada fora, que volta o tempo todo para junto do irmão pelo qual está
apaixonada, cede lugar a uma irmã caseira, avessa ao casamento, que cuida

A avó libertina | 153


dos irmãos o tempo todo, de modo que o incesto sexual se transforma numa modo imprevisto. Pois a história dos irmãos celestes emprega um código
espécie de intimidade doméstica que se lhe assemelha, no plano alimentar e astronômico para inverter uma mensagem que é exatamente a da história
econômico (M₅₄₁). do desaninhador, mas utilizando um léxico que transforma todos os termos
De modo simétrico, e ainda entre os Modoc, a história de Dona Mer- da história de Dona Mergulhão. Antes de chegar a isso, é preciso completar
gulhão também pode existir em sua forma “reta”. Porém, quando é usada o inventário do que chamamos de “aberturas” da história do desaninhador,
como abertura, desemboca num outro tipo de narrativa, a gesta dos irmãos que não se reduzem ao mito de Dona Mergulhão (M₅₃₈) e seu inverso (M₅₄₁).
celestes (M₅₃₉), sem relação aparente com a do desaninhador. No presente Existem pelo menos duas outras, cujas relações mútuas e com as examina-
estágio da investigação, dispomos, portanto, de três fórmulas míticas, cada das anteriormente convém determinar.
uma delas correspondendo a uma mensagem distinta: Comecemos por uma versão da qual apenas o resumo foi publicado. Mas
o professor Theodore Stein teve a amabilidade de nos enviar seu texto iné-
M₅₃₈ = (dm) + (Desaninhador) dito, juntamente com outros, registrados por ele em 1951. Aproveitamos para
M₅₃₉ = (dm) + (Irmãos cel.) expressar aqui nossa gratidão para com ele, por um auxílio que não se reve-
M₅₄₁ = (dm-1) + (Desaninhador) lou precioso apenas nesta ocasião.

Decorre dessas fórmulas esquemáticas uma primeira consequência. Se M₅₃₉ M 560 KLAMATH: A AVÓ LIBERTINA
atesta que (dm) e (Irmãos cel.) são compatíveis, e M₅₄₁ que (dm-1) e (Desa-
ninhador) também o são, deve seguir-se que, de algum modo, existe uma Um menino e sua irmã viviam com a avó. Certo dia, ela os mandou levar comida
correspondência entre (Irmãos cel.) e (Desaninhador-1). para um velho vizinho, que contou-lhes uma história. Quando contaram a história à
Os Yana deveriam nos permitir rapidamente uma quarta fórmula, já que, avó, ela achou que nela havia uma proposta disfarçada. Fingindo indignação, foi ime-
entre eles, a história de Dona Mergulhão em forma reta serve de abertura diatamente para a casa do vizinho, onde ela mesma tomou a iniciativa da relação
para a do desaninhador, apresentada em forma invertida (herói culpado de amorosa. Ao voltar para casa, para explicar às crianças a razão de sua aparência des-
incesto —Y vítima de incesto; e herói alçado —Y enterrado). Ou seja: grenhada, disse que tinha se machucado. Depois de vários incidentes semelhantes,
os netos descobriram o que ela andava fazendo e ficaram profundamente chocados.
M₅₄₆ = (dm) + (Desaninhador-1) Resolveram fugir. Pediram ajuda ao furador, que no começo os protegeu da avó, mas
acabou traindo-os. A velha foi ao seu encalço e percebeu, por vários indícios, que eles
Há mais. Entre a história do desaninhador e a de Dona Mergulhão, nossa tinham-se tornado um casal incestuoso. Na verdade, eles tinham crescido, tinham-
segunda parte permitiu determinar não apenas uma conexão externa, resul- se casado e tido um filho, em relação ao qual eram pais exemplares.
tante do fato de as encontrarmos justapostas nos mesmos mitos, mas uma Transformada em ursa feroz, a avó encontrou o neto em isolamento ritual, em
relação de ordem interna e, diríamos, orgânica. Não basta constatar que busca por espíritos protetores, e o matou. A jovem viúva vingou o marido causando
cada uma das histórias tomada em si gera seu reverso. Juntas, elas formam a morte da assassina. Depois quis também morrer, com o filho, mas Gmukamps
um sistema, que torna sua simetria manifesta: (Kmúkamch) conseguiu salvar o menino, adotou-o e deu-lhe o nome de Aisis
(Aishísh) (Stern 1963: 31; 3).
1
a) (Desaninhador) ≡ dm( (
A narrativa continua com a história do desaninhador, em termos pratica-
b) (Desaninhador ) ≡
-1
( 1
dm ( mente idênticos aos de M₅₃₀. Diferente no início, essa versão logo se apro-
xima de M₅₃₁ e M₅₃₈, em que a avó, brava pela morte da filha, por culpa dos
Veremos, na sequência, que essa transformação permite ao mesmo tempo netos, informados por furador, os persegue em forma de ursa (supra, p. 43).
aceder ao código astronômico e elucidar o enigma da relação entre a histó- Fica claro, portanto, que só as aberturas diferem, consistindo no episódio da
ria do desaninhador e a dos irmãos celestes, pela qual M₅₃₉ a substitui, de avó libertina, num caso, e na história de Dona Mergulhão, no outro.

154 | Terceira parte: Cenas da vida privada A avó libertina | 155


De forma independente, ou ligada a outras narrativas, a história da avó Foi dar na casa de uma Ursa Grizzly que o chamou de marido e lhe pediu os
libertina ocupa um lugar considerável nos mitos das populações a oeste e dentes em troca dos dela, que eram bem grandes. O herói concordou, e enfiou
ao norte, Coos, Tillammol (pequena tribo isolada de língua salish, ao sul os dentes na gengiva. No dia seguinte, chegou à casa de uma Ursa de outra espé-
da área principal ocupada por essa família), Chinook, Salish costeiros e cie, que também o pediu em casamento. Mas, antes de os cônjuges se deitarem,
do interior.1 Como veremos (infra, p. 167; cf. omm, M₃₈₄, p. 61), sua área de apareceu a mulher-grizzly, para devolver ao herói seus dentes. A segunda mulher-
difusão se estende também para o leste e para o sul. A análise exaustiva urso desejou-os imediatamente e conseguiu trocá-los pelos dela. O mesmo acon-
de todas as versões recenseadas exigiria, consequentemente, um trabalho teceu no dia seguinte, na casa de uma Dona Puma, onde Ursa apareceu de repente
considerável. Limitar-nos-emos a distinguir as três formas que a narrativa para devolver os dentes trocados na véspera, e depois na casa de uma Dona Lontra,
pode assumir, dependendo da região considerada. Para maior clareza, atri- aonde Dona Puma foi para devolver o que tinha tomado emprestado.
buiremos a cada tipo um título: 1) o vizinho provocante; 2) o pênis do grizzly; Finalmente, o herói encontrou cinco irmãs Camundongos, brancas e formosas,
e 3) a avó incestuosa. e casou-se com elas. Apareceu Lontra, para devolver os dentes do herói e pegar de
A versão que acabamos de citar (M₅₆₀) já fornece um exemplo do pri- volta os seus. Mas os dentes que ele deu a ela eram, na verdade, os primeiros que
meiro tipo. Eis agora um outro, muito mais rico, que provém de um grupo tinha recebido, isto é, os da ursa grizzly. Temendo a cólera da ogra lesada, as Camun-
sahaptin do noroeste, cujo território ficava a não mais de trezentos quilôme- dongos cavaram um tunel subterrâneo para fugirem com o marido. Enquanto isso, a
tros das terras klamath. Ursa Grizzly atacava as outras esposas animais. Ela não encontrou a segunda ursa
que, desconfiada, tinha ido tomar banho no rio, mas matou as outras mulheres.
M 561 KLIKITAT: A AVÓ LIBERTINA. Depois, perseguiu as Camundongos, e foi pegando e matando uma por uma. Antes
de morrer, cada uma delas confiava o herói à que estava à sua frente no túnel. A mais
O jovem Lince vivia com sua avó. Um dia, ela o mandou à casa de um velho vizinho, nova, que era a primeira da fila, conseguiu escapar com ele.
para perguntar em que mês estavam, e quando chegaria a primavera. O velho res- Exausta, com calor e com sede, a Ursa Grizzly foi se refrescar num lago, onde viu o
pondeu: “Diga a ela que este mês se chama: a gente trepa-trepa-trepa”. Humilhado relfexo de suas duas vítimas. Achou que estivessem no escondidos no fundo, mas na
por uma réplica tão grosseira, o menino, chorando, saiu correndo e repetiu a mensa- verdade eles tinham conseguido subir para bem alto, no céu, e riam dela. Impruden-
gem. A avó fingiu ter ficado furiosa, vestiu todos os seus adornos e disse que ia dar tes, eles deixaram que Ursa fosse até eles e lá, a pretexto de catarem piolhos uns dos
uma bronca no vizinho. outros, ela os matou e jogou os corpos na água (Jacobs 1934: 24-27).
Nem bem chegou e o velho, sem escutar uma palavra do que ela dizia, convidou-a
a montar, e ela o fez. Ela tinha avisado o neto de que ele escutaria todos os tipos de Para analisar de maneira útil esse mito, convém examinar antes os outros
barulho enquanto ela tomava satisfações do vizinho, mas era tamanha barulheira tipos. Observaremos apenas que o incidente da bexiga explodida, inver-
que saía da casa que ele correu para lá, e viu a avó numa posição indecente. tendo os corações ejetados do ciclo de Dona Mergulhão (por uma razão que
Revoltado com esse espetáculo, o jovem herói besuntou a casa de resina e ateou- aparecerá mais adiante), é esclarecido do ponto de vista sintagmático por
lhe fogo. Quando ouviu a bexiga da avó explodir no fogo, afastou-se. meio de uma versão dos Salish costeiros, portanto proveniente de popula-
Em seu caminho, encontrou um pedaço de carne bem cozida e comeu. Depois, foi ções vizinhas dos Klikitat na encosta ocidental das Cascades. Nela, o herói se
beber água num riacho ali perto. Para a sua surpresa, todos os seus dentes se solta- chama Guaxinim e perde os dentes por ter, como nessa versão, apanhado e
ram e cairam na água. Ele os recolheu, fez um embrulho, e foi embora. comido um pedaço de carne cozida, que não é senão a vulva de sua avó, lan-
çada longe pelo calor da fogueira (M₅₆₂a, Adamson 1934: 220-21). A vulva e
a bexiga parecem ser, portanto, duas variantes combinatórias de um mesmo
1 . M₅₆₂a (Cowlitz), Adamson 1934: 220-21; M₅₆₂b,c (Chehalis), ibid.: 33-40; M₆₅₂d (Cowlitz), mitema, cuja função pertinente transpõe para o registro alimentar uma
ibid.: 185-88; M₅₆₂e,f (Snuqualmi-Puyallup), Ballard 1929: 137; M₅₆₃a (Sahaptin), Jacobs conexão incestuosa que, como veremos, as outras versões do mito situam
1934: 179-83; M₅₆₃b (Lilloet), Teit 1912a: 323-325; M₅₆₃c,d (Thompson), Teit 1898: 66-67, 5: no registro sexual.
247-48); M₅₆₃e (Shuswap), Teit 1: 678-79. Cf. infra, p. 429.

156 | Terceira parte: Cenas da vida privada A avó libertina | 157


M 563A SAHAPTIN DO RIO COWLITZ: A AVÓ LIBERTINA refere ao ânus abrindo-se para soltar gases, o outro à vagina se abrindo para
receber o pênis. Em M₅₆₃a, o pedregulho que espirra prefigura, por uma
Encarregado pela avó de coletar bolotas, Guaxinim deixou cair o balde, as bolotas se inversão do mesmo tipo, o incesto que outras versões, a serem examinadas
esparramaram pelo chão e ele as comeu ali mesmo. Na volta, recebe uma boa surra, em seguida, imputam à própria velha com o neto.
que o deixa todo dolorido e inconsciente. Quando volta a si, vai sozinho pescar e Do mesmo modo, a travessia subterrânea do herói de M₅₆₁, guiado
comer caranguejos num rio. pelos camundongos, e graças à qual ele escapa do grizzly homicida, ecoa
Um urso grizzly, na outra margem, o chama e pergunta onde fica o vau. “Onde o a travessia que ele faz quando procura matar o mesmo ogro atraves-
teu cu se abre para peidar!”, responde o herói. O grizzly, furioso, atravessa o rio a nado, sando-lhe o corpo por um outro túnel, o tubo digestivo. Os mitos jogam
se lança sobre o insolente e o engole. Mas ele tinha uma faca de pedra, enfia-a no constantemente com a ambiguidade da noção de consumo, ora tomada
coração do ogro, e escapa pelo ânus. O grizzly ingurgita o adversário várias vezes do no sentido próprio e alimentar, ora no sentido figurado e sexual, o que
mesmo modo, com o mesmo resultado. Acaba morrendo. fica bastante evidente na bronca que o herói dá na avó, numa versão salish
Guaxinim volta para a casa da avó se gabando de seu feito. Juntos, vão limpar e (M₅₆₂d, Adamson 1934: 186), quando a surpreende em suas atividades com
cortar o monstro. Mas quando chega a hora de carregar a carne, a avó rejeita todos o único pedaço de carne que ela concordara em carregar: “É para comer,
os pedaços, um depois do outro, a não ser aquele onde fica o pênis. Eles partem, ela não para casar!” Ao que retruca a velha: “Eu precisava usá-lo, já que você
fica para trás, e o herói volta para ajudá-la. Surpreende-a numa casa de vapor vazia, se recusa a dormir comigo!” E o herói replica imediatamente: “Vovó! Estou
muito ocupada se masturbando com sua carga. O menino lhe dá uma surra. com fome!”, subentendendo um apetite de ordem sexual que inverte o con-
A velha chama os filhos de seu irmão, que são patos e moram do outro lado do sumo alimentar da vulva da avó em M₅₆₂a. Essa réplica nos leva à terceira
rio, paraque venham buscá-la em sua canoa. Em vez de subir na canoa, ela se trans- das formas que anunciamos.
forma várias vezes seguidas num pedregulho cheio de cavidades, onde os sobrinhos,
irritados, enfiam um bastão, o que a faz espirrar. Ela resolve ir, finalmente, e assim M 564 CLACKAMAS (CHINOOK): A AVÓ LIBERTINA
que chega, acusa o neto de tê-la maltratado.
Eles vão atrás do culpado, que está ocupado secando toda a sua carne, e exigem Cambaxirra e a avó paterna não tinham mais nada para comer. A velha mandou o
uma explicação. Ele denuncia o comportamento da avó e distribui a carne entre os neto caçar. Ele, com invocações mágicas, foi fazendo aparecer animais cada vez maio-
tios. Abastecidos, eles aprovam o modo como ele tinha agido (Jacobs 1934: 179-83). res. Quando o cervo se apresentou, ele o matou atravessando-lhe o corpo várias vezes
do ânus à boca e inversamente, e arrancando a gordura que envolve o coração em
Vizinhos dos Sahaptin, os Chinook e os Salish costeiros também conhecem cada passagem. Na hora de carregar a carne, a avó só aceitou levar a traseira, e assim
esse mito, mas às vezes substituem a coleta de bolotas por uma coleta de que ficou sozinha, instalou-se nela para copular.
gafanhotos, que o herói tampouco compartilha com a avó (Adamson 1934: Cambaxirra a surpreendeu e arrancou-a dali. Voltaram para casa, jantaram e dei-
43), ou fazem a busca por alimento começar com o encontro com o animal taram, cada um de um lado do fogo. O rapaz começou a sonhar em voz alta: “Ah!
monstruoso, grizzly ou cervo, que o herói — aqui chamado Cambaxirra Se uma mulher klamath viesse dormir comigo!...”. “Meu corpo é metade klamath”,
(“Wren”, um pequeno passarinho insetívoro) — mata atravessando-lhe o declarou a avó. E subiu no neto.
corpo da boca ao ânus, em vez de fazer o contrário (M₅₆₄, Jacobs 1959, i: Logo eles ouviram um ruído de remos. Separaram-se, a contragosto, e o rapaz foi
199-207). O estudo de todas as comutações, longo demais para ser empreen- ao encontro dos viajantes para saber das novidades. E eles disseram: “Ah... dizem que
dido aqui, certamente mereceria ser feito. De modo que fica claro que a Cambaxirra dormiu com a avó...” Envergonhado e furioso por ter sido descoberto, o
resposta grosseira do herói de M₅₆₃a à pergunta do urso grizzly, “onde fica rapaz voltou para casa, enrolou a avó no couro do cervo e a jogou na água.
o vau?”, transpõe em termos de espaço a que o velho de M₅₆₁ dá ao herói Bem longe, rio abaixo, o cadáver foi pescado e reconhecido. Três xamãs tentaram
quando ele lhe pergunta em que mês estão e quando começa a primavera, ressuscitá-la. Só o último conseguiu. Conseguiu até livrar a velha de sua pele enru-
estação que é também a mais fácil de atravessar. Num caso, a provocação gada, junto com o couro de cervo com o qual ela se confundia, mas não conseguiu
esconde um desejo de ordem alimentar, e no outro, um desejo sexual; um se lhe devolver os dentes. Enquanto ficasse de boca fechada, ela tinha a aparência de

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uma moça jovem e bonita. Ofereceram-na em casamento a Cambaxirra. Ele a viu, das neves às vezes encarnado pela avó libertina, cf. vimos acima), cunhada
gostou dela, e desposou-a. de Dona Mergulhão, se deita de bruços, para proteger do fogo em que vai
Tinham-lhe recomendado levar o couro de cervo onde quer que fosse com a morrer as crianças que traz no ventre. Assim, ela abriga seu precioso fardo
esposa, e ela prestava atenção para não mostrar as gengivas, mas um dia, Cam- na concavidade que seu corpo, aumentado pela gravidez, produz nas cinzas.
baxirra fazia cócegas nela, ela não resistiu e riu, abrindo a boca. O couro de cervo Simetricamente, para aproveitar melhor o namoro com o neto, a avó liber-
imediatamente saltou sobre ela e a recobriu, como uma pele enrugada. O rapaz tina, que é torta, exige que o parceiro cave um buraco onde ela possa acomo-
reconheceu a avó. “Zombaram de mim”, disse, e jogou-a na água pela segunda vez. dar a corcunda ao deitar-se (M₅₆₂c,d; Adamson 1934: 39, 187).
Mas dessa vez não conseguiram ressuscitá-la novamente. (Jacobs 1959, I: 199- As versões tillamook (M₅₆₅a, Boas 1898a: 34-38; M₅₆₄b-g, E.D. Jacobs
207; cf. Mfggd, Boas 1894: 119-22). 1959: 45-72) estabelecem uma conexão entre os dois grupos, ainda mais sig-
nificativa na medida em que esse pequeno grupo — de língua salish, como
Para essa terceira forma do mito, que leva a libertinagem da avó até o aqueles em que a história da avó libertina é tão importante — se encontrava
incesto, também seria proveitoso fazer um inventário detalhado das comu- isolado no sul, a meio caminho da área ocupada pelo mito de Dona Mer-
tações. A avó às vezes é um camundongo (M₅₆₂e,f; Ballard 1929: 137), ou um gulhão. Essas versões, ricas e complexas, mereceriam um estudo específico.
animal sazonal, pequeno pássaro que anuncia a chuva (Abamson: 31 n. 2, Aqui apenas notaremos que elas fundem numa única narrativa a história da
188) ou um pássaro das neves (/spi’tsxu/, cf. M₆₅₂, infra, p. 441), que precisa avó libertina, a de Dona Mergulhão e a do menino salvo da fogueira, de que
de pouco alimento para sobreviver, e que o neto não perdoa por querer que o pai adotivo engravida e a que dá a luz (ou seja, o herói que os Klamath-
ele se contente com uma porção equivalente à sua (M₅₆₂a; Adamson 1934: Modoc promovem ao papel de desaninhador de pássaros). Mas nesse caso,
220). Numa versão proveniente do rio Chehalis, em compensação, a velha uma ogra de bom coração, chamada de Dama Selvagem, consegue, com
é uma gulosa, cujo apetite insaciável é responsável pela miséria do neto algum esforço, roubar duas crianças. Ela as cria e os condena a tornar-se um
(M₅₆₂b; Adamson 1934: 35). casal incestuoso como punição por terem descoberto suas relações clandes-
Às vezes acontece de essa penúria de alimento, que constitui um dos tinas com um velho marido de quem ela está declaradamente separada. Por
traços invariantes do grupo, ser consequência dos acontecimentos narra- isso ela transforma a neta (que é a mais nova das crianças, mas toma todas
dos pelos mitos, em vez de sua causa. Em versões salish (M₅₆₂c,d; Adamson as iniciativas) num equivalente funcional de Dona Mergulhão. E mata o neto.
1934: 36-40, 187-88), por exemplo, as zombarias dos canoeiros degeneram Aos prantos, a jovem viúva de um “irmão pelo alto, marido por baixo” tenta
em briga, durante a qual a avó empurra sem querer o neto, em vez de seu se matar, e se joga com o filho numa fogueira. Um personagem sobrenatu-
adversário, no fogo, e ele morre queimado. Ela o ressuscita, colando os ossos ral chamado Águia-Calva salva o menino, o esconde debaixo dos testículos
meio carbonizados com resina, mas ele comete a imprudência de tomar um e o entrega à esposa para um parto simulado. Numa outra versão (M₅₆₅ e,
banho de sol, e o calor o derrete. “Se ele não tivesse sido queimado, teria per- l.c.: 65-67), Dama Selvagem comete ela mesma o incesto com seu irmão.
manecido um pássaro grande, e talvez hoje os caçadores matassem a caça do Dispomos, portanto, de uma série considerável de variantes que poderiam
mesmo modo que ele tinha matado o cervo gigante. Mas suas cinzas deram ser ordenadas, para ilustrar as etapas da transformação que leva do ciclo
origem ao cambaxirra, um passarinho bem pequeno”. Trata-se, consequen- de Dona Mergulhão ao da avó libertina. Pois esta última ora aparece como
temente, de explicar porque e como a caça tornou-se difícil. uma irmã incestuosa, ora como a responsável por uma irmã — sua neta, no
caso — cometer incesto com um irmão — que é justamente o neto, com
! quem ela mesma comete incesto na derradeira etapa da transformação. Os
Tillamook, situados a uma certa distância da área de distribuição do mito,
Notamos, a propósito de M₅₆₁-M₅₆₂ (supra, p. 147), que o episódio da bexiga certamente não conhecem Dona Mergulhão pelo nome. Mas conservam-na,
explodida ou da vulva lançada longe transformava o dos corações ejetados invertendo um elemento característico de sua história: a irmã incestuosa é
no ciclo de Dona Mergulhão. Outros indícios de afinidade entre os dois gru- delatada pelas manchas de resina preta em seu pescoço branco (l.c.: 66), ao
pos podem ser observados. Dona Cotovia (cujo epônimo se opõe ao pássaro passo que, nos confins da área, a mulher infratora é descoberta por causa dos

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tufos de pelo branco, provenientes de pele do irmão, coladas na resina preta M₅₆₂b, ela primeiro é gulosa por comida, depois incestuosa. E M₅ é com-
que (em maior conformidade com a verdade zoológica) funciona como posto por duas sequências sucessivas, a primeira apresentando uma avó
fundo, em vez de figura (cf. supra, p. 103, 132).2 No outro extremo da área incestuosa a seu modo, e a segunda, sua neta, que a sucede e reproduz na
de distribuição, a versão maidu (M₅₅₄) fundamenta a origem das relações forma de uma gulosa, quase uma ogra (cf. cc: 67-73). Mas há mais: a pri-
incestuosas; como seu eco derradeiro repercutindo a oeste, a versão tilla- meira sequência de M₅ se refere a uma avó que peida na boca do neto, e
mook (M₅₆₅d, l.c.: 62) fundamenta a origem de sua proibição: “Está vendo? que ele mata enfiando-lhe uma flecha no ânus. Simetricamente, uma das
— exclama a avó. Tudo acaba sendo descoberto... De agora em diante, será versões tillamook (M₅₆₅g, E.D. Jacobs 1959: 70-72; cf. também Wishram in
impossível fazer amor com um parente próximo em segredo. É errado fazer Sapir & Spier 1930: 279) mostra um neto que defeca na comida da avó e
isso, meu neto. Não vamos mais fazer”. que em seguida a mata, enfiando um bastão pontudo em sua boca aberta.
Resulta das considerações acima que um incesto por assim dizer “verti- Segundo M₅, os tatus, animais fuçadores e comedores de carniça, enterram
cal” — já que une parentes em linha direta — transforma o incesto de tipo secretamente o cadáver na casa da família, bem debaixo da esteira onde
“horizontal” — isto é, entre parentes pertencentes à mesma geração — que dormia a defunta. Em M₅₆₅g, com a mesma simetria, sua homóloga morre
constitui o tema da história de Dona Mergulhão. no mato, os fragmentos espalhados do cadáver se agarram às árvores, e
Ora, bem no início destas Mitológicas, tínhamos localizado exatamente dão origem aos cogumelos.
a mesma transformação entre o mito de referência M₁ (ele mesmo trans- M₅ se refere à origem das doenças, exaladas por uma mulher gulosa de
formável na história de Dona Mergulhão, cf. supra, pp. 97-98) e um outro peixes, que ela não consegue evacuar naturalmente. Antes, explica o mito,
mito bororo (M₅), cujos protagonistas também eram uma avó e seu neto, as doenças eram desconhecidas; seu aparecimento, obviamente, encurtaria
ilustrando uma espécie de casal anti-natural. Naquele mito, como neste, a a duração da vida humana. Aí reside mais uma aproximação entre o mito
avó monta no neto, certamente não um incesto (no qual reconhecemos o bororo e o ciclo norte-americano da avó libertina. Como já deve ter sido
contrário de um outro incesto), mas o contrário de um incesto, já que ela notado, todas as versões concluem com o envelhecimento prematuro ou
o empesteia com gases intestinais. Isto é, uma transformação das relações a impossibilidade de ressuscitar os mortos. O que esclarece a razão pela
incestuosas, que os mitos norte-americanos recuperam por outras vias: a qual o ciclo da avó libertina inverte metodicamente o de Dona Mergulhão:
avó copula ao contrário, em vez de fazer o contrário de copular. Eles dão símbolos da ressurreição, os corações incombustíveis dos parentes mortos
a ela o papel ativo e, em várias versões, a posição superior no coito. Além por uma irmã culpada de incesto sexual se transformam, de modo perfei-
disso, M₅₆₃a atribui ao herói uma resposta grosseira ao urso grizzly (em tamente plausível, em bexiga (M₅₆₁) ou em vulva (M₅₆₂a) assada no ponto
que M₅₆₀ transforma uma avó canibal em vez de incestuosa ou, mais preci- de uma parenta morta por um descendente que será culpado de incesto
samente, que comete um incesto na pessoa de outrem): “Onde o teu cu se alimentar, ao comê-la.
abre para peidar!”. Resposta que, como determinamos de forma indepen- Essa comparação entre mitos provenientes dos dois hemisférios apre-
dente, se inscreve numa permutação em que se inserem também o incesto senta um outro interesse do ponto de vista do método. Com efeito, veremos
(sexual) e a gula (alimentar). que, por intermédio dos mitos norte-americanos, torna-se possível detec-
Portanto, é altamente significativo, quanto a isso, que os mitos da Amé- tar uma ligação que não estava tão evidente no início, entre o mito bororo
rica tropical e os do hemisfério boreal revelem a mesma armação. Em M₅₆₀, M₅, transformação de M₁, e um grupo de mitos jê {M₈₇-M₉₄}, que trans-
uma avó transforma a neta em irmã incestuosa e a si mesma em ogra. Em formam um outro {M₇-M₁₂}, que por sua vez, como tínhamos demons-
trado independentemente, transforma M₁. À luz do grupo norte-americano
{M₅₆₀-M₅₆₄}, percebemos agora que M₅, como {M₈₇-M₉₄}, também é um
2 . Outros exemplos são conhecidos de transformação invertendo uma imagem
positiva em seu negativo, como uma placa fotográfica. No mesmo mito, por exemplo, mito de origem da vida breve. Aliás, {M₈₇-M₉₄} a atribuem à intervenção de
o pássaro junco tem um colar de contas pretas entre os Yokuts e os Mono ocidentais, e uma criatura celeste que se torna esposa de um mortal e, além disso, nutriz,
uma túnica branca entre os Paiute de Owens Valley, que são seus vizinhos imediatos (cf. pois é ela que revela aos homens as plantas cultivadas. Simetricamente, M₅
Gayton & Newman 1940: 47; Steward 1936: 407). atribui a origem das doenças, e também da vida breve, portanto, a uma

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criatura terrestre (ou aquática), irmã de um mortal e anti-nutriz, já que priva os corações de seus parentes (supra, p. 97). Vimos também que certas ver-
os homens do produto da pesca devorando ela mesma os peixes crus. Uma é sões do mito de Dona Mergulhão fazem renascer um coração na forma de
uma estrela que se transforma em esposa humana para realizar o desejo do uma criancinha (M₅₅₃, supra, p. 107). A resistência do coração à combustão é
futuro marido. A outra é uma irmã humana que, por vontade dos irmãos, se um dado da experiência, que podia ser observado quando da cremação dos
transforma em arco-íris (cf. cc: 252-57). cadáveres (supra, p. 49 n. 1). Para validar a coerência do sistema, vale notar
que, nos limites da área onde prevalecia a cremação, o mito de Dona Mer-
! gulhão transforma os corações em olhos (M₅₄₇), e ressuscita os mortos por
Quando discutimos o tema da vida breve nos mitos sul-americanos, cons- imersão em água fria (M₅₅₄) em vez de ebulição, ou seja, um modo do cru
tatamos que eles o desenvolviam ora na forma do rejuvenescimento ou res- em lugar de um modo do cozido.
sureição que se tornam impossíveis, ora na forma, complementar, do enve- Os mitos jê de origem da vida breve a associam à introdução das plan-
lhecimento prematuro (cc: 168-71). Os mitos norte-americanos do ciclo da tas cultivadas, por sua vez função positiva da união entre uma estrela e um
avó libertina preservam essa distinção, pois no primeiro tipo (vizinho pro- mortal, que ocorre no eixo cosmológico do alto e do baixo. As tribos norte-
vocante) um herói muito jovem perde subitamente os dentes, tornando-se americanas que contam a história da avó libertina não cultivam a terra. Mas
um velho prematuro, ao passo que no tereceiro (avó incestuosa) uma pro- seus mitos evocam a união entre uma avó e um neto — situada, portanto,
tagonista muito velha consegue livrar-se das rugas. Mas nem mesmo os também num eixo alto-baixo, embora genealógico —, para tirar daí con-
xamãs mais renomados conseguem devolver-lhe os dentes, e essa carência sequências de que enfatizam o aspecto privativo, a proibição do incesto,
é responsável por uma segunda morte, após a qual não há mais ressurrei- inaugurando a vida em sociedade; e a perda da caça milagrosa realizada por
ção (comparar M₆₅₁ e M₅₆₄, supra, p. 146 e 149). Note-se, aliás, que os Salish meios naturais, de que resulta uma caça trabalhosa, a única que os homens
costeiros concebem uma oposição do mesmo tipo entre a morte por doença que atingiram o estado de cultura poderão praticar (cf. supra, p. 150).
e a morte por decapitação: só a segunda é irrevogável (Ballard 1929: 137-38; É o momento de lembrar que todos esses mitos começam num período
Adamson 1934: 24, 167). de penúria. Os dois protagonistas não têm mais nada para comer, devido a
O fato de a perda dos dentes fornecer o argumento do envelhecimento circunstâncias externas ou em decorrência da gulodice ou do descuido de
prematuro ou da ressurreição impossível se combina com uma mitologia um deles. Segundo versões chinook (M₅₆₆ a, Boas 1901: 142-53; M₅₆₆b, Sapir
(cf. cc: 197-99 e supra, p. 34; infra, p. 341) que trabalha, como na América 1909a: 153-65; M₅₆₆c, Jacobs 1959, ii: 423-30; M₅₆₆d, Boas 1894: 119-22; M₅₆₆e,
tropical, com a oposição entre os olhos inamovíveis por natureza e os excre- f, Ray 1938: 146-51), também registradas entre os Klamath (M₅₆₆g, Stern 1963:
mentos, amovíveis por destino. Ninguém pode se desfazer dos olhos, ao 39), Guaxinim se cansa de coletar bolotas no verão porque sente muito calor,
passo que os excrementos devem ser evacuados a intervalos regulares. Entre e, para ir mais depressa, deixa de triá-las, e pega também as que estão bicha-
o olho inseparável e o excremento separável, os dentes ocupam uma posição das.3 Quando chega o inverno, deixa só as bichadas para avó, o que causa a
intermediária: o envelhecimento separa pouco a pouco o indivíduo de sua primeira discussão entre eles. A segunda ocorre no verão, quando ele lhe
dentição, embora ela parecesse ser parte tão integrante de seu corpo quanto dá bagas que encheu de espinhos, o que provoca a transformação da velha
os olhos. Expressão negativa da periodicidade que rege a vida humana, o num galináceo, provavelmente Bonasa sp., que, como iremos mostrar mais
dente também inverte o feto, cuja separabilidade do corpo a que parecia per- adiante, simboliza o aparecimento da vida breve nos mitos dessa região. Esse
tencer atesta a mesma periodicidade, mas aqui de forma positiva, garantindo motivo também existe entre os Bororo (cf. M₂₁, cc: 102-03): em ambos os
a perpetuação da espécie. Do ponto de vista coletivo, a separação do feto casos, os animais nos quais um ou vários humanos se transformam depois
no parto equivale, portanto, à separação do coração incombustível, apesar de terem ingerido frutos cheios de espinhos são criaturas a meio caminho
da destruição do cadáver, como penhor e meio da imortalidade individual. entre a humanidade e a animalidade (porcos do mato) ou entre a vida e a
Assim se explica a transformação em três etapas que percebemos nos mitos,
que gera o golpe de cacete do demiurgo afastando o bebê da fogueira e a 3 . Vimos que no ciclo de Dona Mergulhão, que inverte o da avó e do neto, o bicho de
paleta ou o cesto da irmã criminosa, empurrando para ela ou tirando dela bolota, ao contrário, possui uma conotação positiva (supra, p. 99).

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morte (galináceos). A avó da versão kalapuya (M₅₆₇, Jacobs 1945: 130-33) M₉ (carne humana)
também é uma galinácea, cujo neto Guaxinim não faz sofrer de fome, mas de pedra
sede, porque está ocupado demais comendo lagostins e conchas para pegar o herói deixa para o
a água que ela pediu. Ela se transforma em pedra na versão klamath (M₅₆₆g), ogro uma pedra em
em pedra ou galináceo nas versões coos (M₅₆₈, Jacobs 1940: 172-73, 181). seu lugar
Outras aproximações entre mitos norte- e sul-americanos da vida breve
são ainda mais significativas, na medida em que não dizem respeito somente
à mensagem, e colocam em evidência propriedades compartilhadas da ogro madeira dura
armação. É preciso retomarmos em detalhes o episódio de M₆₅₁ no qual o (carne animal)
herói vai trocando seus dentes pelos de sucessivas esposas animais. Apesar
de sua aparência barroca, esse episódio apresenta uma construção de lógica
impecável, cujo esquema é escrupulosamente respeitado pelos mitos dos
dois hemisférios.
Comecemos por voltar atrás. Para não morrer, o herói bororo do mito de
referência M₁ deve enfrentar quatro desafios. Os três primeiros, homólogos madeira podre
entre si, envolvem instrumentos musicais que ele deve trazer do mundo dos (plantas cultivadas)
mortos sem fazer barulho. O herói consegue, graças à ajuda de três animais,
dos quais o último por pouco não fracassa. O quarto desafio, de natureza
diferente, consiste em permanecer exposto à sede e à fome no alto de um
rochedo. Ele também o vence, graças ao auxílio material e moral da avó (que
deu a ele sua bengala e ensinou-lhe um remédio), embora chegue perto da M₅₆₁ (carne humana)
morte, por culpa do pai que, cortando todos os caminhos de fuga do filho, grizzly
na esperança de acabar com ele, revelou-se como ogro metafórico. Deixa- o herói deixa para
mos esse aspecto de lado em O cru e o cozido, não porque fosse dispensável a lontra seus dentes
para a demonstração, mas simplesmente porque nos tinha escapado. Mais de grizzly em lugar
uma vez, a comparação entre mitos provenientes de regiões bastante afas- dos dentes dela
tadas ilumina de modo inesperado detalhes que permaneciam obscuros
quando considerados independentemente. lontra ursa
Para demonstrar a unidade do grupo formado pelos mitos relativos à ori- (peixe) (frutos selvagens)
gem do cozimento dos alimentos e à vida breve, tinha bastado transformar
as três primeiras provas descritas por M₁ nas que aparecem em outros mitos.
Como M₉, por exemplo, no qual, para evitar que a humanidade tenha de
se submeter à vida breve em troca do fogo de cozinha que lhe é dado pelo
jaguar, o herói, ouvindo três chamados, deverá responder apenas aos dois
primeiros, que vêm da pedra e da madeira dura, mas não ao “doce chamado”
puma
da madeira podre. De modo que nesse caso também há três desafios suces- (carne animal)
sivos de mesma natureza, e que só podem ser diferenciados pela intensidade
acústica própria. Como no mito de referência, acrescenta-se um quarto
desafio: o herói enfrenta um ogro que consegue surpreendê-lo assumindo a [ 1 4 ] Armação compartilhada pelos mitos Mj e Mfgb).

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aparência de seu pai, mas escapa dele graças à argúcia. Entre M₁ e M₉, con- palavras, os humanos envelhecem, ao passo que os animais permanecem
sequentemente, além de as três primeiras provas se reproduzirem, já que se jovens até a morte. Substituindo seus dentes pelos dentes de animais, o herói,
trata, para o herói, de evitar fazer ou ouvir barulho, a quarta também é a que ficou velho precocemente, procura não apenas recuperar sua integri-
mesma, já que resulta ou da irrupção de um pai fazendo o papel de um ogro dade física, mas também garantir para si uma juventude prolongada.
(M₁) ou de um ogro fazendo o papel de um pai (M₉). Falha, por duas razões. Primeiro, suas sucessivas transações são feitas
Essa afinidade suplementar entre dois mitos do Brasil Central não se com animais cada vez menores e mais próximos do homem pela dieta. Se a
apresentaria com tanta clareza se um mito norte-americano, relativo à ori- lontra aparece como última da série, não é só porque é pequena e tem hábi-
gem da vida breve, como M₉, não apresentasse a mesmíssima construção; a tos pacíficos. Esse animal se alimenta de peixes, alimento principal das tri-
única diferença é que o quarto e último desafio de um é o primeiro do outro. bos que eram donas ou freqëntadoras dos principais locais de pesca no rio
Vejamos isso mais de perto (fig. 14). Columbia. Em segundo lugar, ao entregar por descuido os dentes do grizzly
Depois de ter perdido todos os seus dentes, transformado num velho à em troca dos seus, o herói volta à estaca zero, por assim dizer: sua esperança
beira da morte, o herói recupera os atributos da juventude obtendo uma de vida longa é definitivamente destruída. Note-se, aqui, a simetria entre
dentadura de reposição: troca seus próprios dentes cuidadosamente reco- esse simbolismo e aquele tão apreciado pelos mitos sul-americanos sobre
lhidos no fundo da água onde tinham caído, com uma mulher grizzly, com a vida breve (M₇₉-M₈₅), que teria sido mantida, dizem eles, se os homens
quem ele se casa. Sabemos quem é essa mulher ou, para sermos mais pre- tivessem conseguido imitar os animais — répteis e insetos — que conse-
cisos, sabemos qual é a sua função semântica no grupo. Ela equivale à avó guem permanecer jovens trocando de pele. Nesse caso, o prolongamento da
que assassina o neto e se transforma em grizzly ou — numa substituição juventude teria resultado, se tivesse sido possível, da imitação de animais
da metonímia pela metáfora — se comporta como uma ursa grizzly por que, à diferença dos homens, não perdem os dentes. Teremos a oportuni-
copular com um pedaço de um macho dessa espécie. Para reencontrarmos o dade de ver, aliás, que na região da América do Norte que nos interessa, as
quarto desafio dos mitos sul-americanos, basta, portanto, transformar: duas fórmulas simbólicas existem lado a lado.
Mostramos, em O cru e o cozido (cc: 160-61), que as três matérias que
M₁(pai transformado em ogro) —Y M₉(ogro transformado em pai) —Y M₅₆₁(avó transformada em ogra) dirigem chamados ao herói, pedra, madeira dura e madeira podre, cono-
tam respectivamente a carne humana, a carne animal e as plantas cul-
Vêm em seguida três provas homólogas entre si, como as três primeiras pro- tivadas, em concordância com um outro grupo de mitos jê de origem da
vas de M₁ e M₉, com uma semelhança suplementar, o fato de a terceira sem- vida breve (M₈₇-M₉₄), que situam sua origem na época em que as plantas
pre terminar num quase fracasso. Em M₁, o gafanhoto cúmplice volta quase cultivadas foram introduzidas. As trocas dentárias (em vez de acústicas)
morto, conotando, portanto, uma condição intermediária entre a vida e a de M₅₆₁ também estão relacionadas à alimentação. O urso grizzly, o mais
morte, que ilustra a seu modo a duração abreviada da vida humana (cf. cc: forte e mais temido dos animais dessa região do mundo, que tinha de ser
211-12). Em M₉, o herói se engana e responde ao chamado da madeira podre, caçado no corpo-a-corpo (Ray 1963: 188; Jacobs 1945: 21-23), goza de uma
apesar das recomendações do jaguar, e assim provoca o surgimento da vida sólida reputação de canibal. Por isso, sua carne era proibida pelos Kala-
breve. Finalmente, em M₅₆₁, ele quase consegue ficar com os dentes de grizzly puya (l.c.: 23) e pelos Salish de Puget Sound (Eells 1964: 618; M.W. Smith
em lugar dos seus, já que consegue inseri-los nas próprias gengivas no início. 1940: 246). A mesma afinidade entre a carne de grizzly e a carne humana se
Ele pode, por conseguinte, obter sem dificuldade os dentes de suas outras exprime também por vias mais secretas. Os mesmos Salish, que matavam
esposas, em troca dos seus que permaneceram disponíveis, e que basta entre- ursos grizzly, mas não comiam sua carne, incineravam o cadáver do animal,
gar a cada nova parceira assim que a anterior os devolve. Contudo, na última embora não praticassem a cremação (Elmendorf 1960: 116-17), uma prática
transação, ele comete o erro fatal de entregar à mulher Lontra, em troca dos simétrica à crença dos Pomo mais ao sul, de que os cadáveres humanos não
seus próprios dentes, que ela traz, os dentes de Grizzly. O que isso significa? cremados se transformavam em ursos grizzly (Gatschet 1890, i: 86).
Entre os humanos e os animais, o mito seleciona uma diferença entre Mitos que discutiremos mais adiante (quarta parte, ii, iii) opõem à ursa
outras: uns perdem seus dentes ao envelhecerem, os outros não. Em outras grizzly (Ursus arctos) a ursa comum (Ursus americanus), coletora-modelo

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Ursa, Camundongo, Herói
de bagas e outros frutos selvagens. Os mitos cujo herói é o puma apresen-
tam-no como o melhor dos caçadores. Assim, as quatro esposas animais de

iii. morte do herói


M₅₆₁ ilustram uma série ordenada de dietas cuja base é, na sequência, carne
humana (grizzly), frutos selvagens (ursa comum), carne animal (puma) e
peixes (lontra).
Como na América do Sul, o ciclo de mitos sobre a vida breve se desen-
volve em dois registros paralelos. Num, o herói culpado de gulodice mata a
avó e queima o cadáver, e em seguida perde os dentes e sofre um envelheci-
mento prematuro. No outro, uma avó gulosa no sentido alimentar, ou sexual,
ou ambos, afogada pelo herói, tem uma ressurreição precária, e não recupera
os dentes que a idade a fez perder, o que significa que, para ela, a juventude é

5
impossível de recuperar. A partir daí, as narrativas das duas Américas respei-

Camundongo

4>

ii. perseguição e tentativa de evasão


tam escrupulosamente o mesmo esquema, como mostram os diagramas da
figura 14. O herói tem três encontros sucessivos, que ocasionam provas das

3>
quais ele se sai mais ou menos bem. M₉ o expõe a uma troca de mensagens

2>
com a pedra, a madeira dura e a madeira podre. M₅₆₁ também o envolve

1>
numa troca, mas de dentes, com um grizzly, um urso e um puma. Em ambos
os casos, o herói tem, em seguida, um quarto encontro, por ocasião do qual

(Ursa) (Puma) (Lontra)


enfrenta um perigo que supera graças a um elemento guardado do primeiro

(herói passa de mão


(caçada de Grizzly):
encontro. Segundo M₉, ele encontra primeiro a pedra e, no final, um ogro,
que ele engana, deixando uma pedra no lugar de seu próprio corpo, que o

em mão):
ogro estava prestes a devorar. Segundo M₅₆₁, ele encontra primeiro o grizzly

Lontra >
e, por final, a lontra; e ele próprio se engana, dando a ela dentes de grizzly em
vez dos dela, em consequência de que a ogra lesada se prepara para matá-
lo... mas sem devorá-lo, pois que ela não tem mais dentes, e seus recursos
de mastigação parecem estar limitados aos sapos que ela esmaga entre as
gengivas, para livrar deles sua cabeça, que eles infestam como piolhos.

Puma >
No mito jê, consequentemente, em lugar de si mesmo, o herói dá ao
ogro uma pedra, matéria metafórica de seu canibalismo. No mito sahaptin,

[ 1 5 ] Composição em fuga do mito Mfgb.


Herói
o herói tira da ogra o meio metonímico de seu canibalismo, que são seus
dentes. Num caso ele escapa, mas o preço disso, para a humanidade, é estar
condenada à vida breve. No outro caso, ele morre, porque ele próprio não

Ursa >

i. a troca dos dentes


conseguiu evitá-la.
Completaremos a presente discussão com uma observação. Tínhamos
intitulado “fuga” a seção de O cru e o cozido consagrada aos mitos sul-ame-
ricanos de origem da vida breve, e essa aproximação (entre outras) da estru-

Grizzly >
tura dos mitos com certas formas musicais acabaria provocando reações de
desdém. Contudo, ela nada tinha de arbitrária, e a análise das versões norte-
americanas confirmaria, se fosse preciso, a tese de que a música ocidental

170 | Terceira parte: Cenas da vida privada A avó libertina | 171


descobriu tardiamente, e recuperou a seu modo, transpondo-as para um era possível tratar-se de mitos simplesmente passados de tribo para tribo
outro registro, tipos de construção que os mitos já utilizavam havia milênios, ou difundidos por distâncias consideráveis no decorrer do povoamento da
em formas plenamente elaboradas. Basta considerar o diagrama da figura América, mas de enunciados distintos, gerados pelos mesmos esquemas. São
15 para se convencer de que, como os mitos homólogos da América do Sul, tais esquemas produtores, muito mais do que seus resultados, que impor-
M₅₆₁ apresenta a forma de uma fuga. O tema da troca de dentes se desen- tam para nós, para demonstrar sua generalidade, e também para mostrar o
volve por etapas sucessivas. Cada voz, a cargo de um personagem distinto, modo como operam.
responde àquela que a precedeu e, neste caso de modo literal, corre atrás Os Klamath e os Modoc, pelos quais começou a presente investigação,
da que vem em seguida. E a cada vez os graus e cadências variam, pois que possuem mitos de certo modo perpendiculares aos eixos em que se situam
o mesmo tema é retomado por partes em ordem de tamanho descrescente {M₁-M₅} e {M₇-M₁₂}, que contam que os homens receberam ao mesmo
e, do ponto de vista qualitativo, diferenciadas entre si por seus hábitos, de tempo o fogo de cozinha e as doenças:
modo não menos sensível do que os registros e timbres das vozes ou instru-
mentos. No caso que estamos considerando, como naquele evocado acima M 471C MODOC: ORIGEM DO FOGO DE COZINHA (cf. omm: 280-81)4
(p. 100), não falta nem a stretta. Ela começa quando Grizzly, com quem a
peça abriu, se lança e vai alcançando, uma após a outra, para reduzi-las ao Os primeiros ancestrais não tinham fogo e comiam carne crua, porque o fogo estava
silêncio, as sucessivas intérpretes do tema. Depois, a intriga recapitula, num nas mãos dos dez irmãos Doença, que viviam no oriente, e dos dez irmãos Sol, que
movimento precipitado, as etapas da corrida do herói fugindo da morte, viviam no ocidente.
numa fuga ainda mais angustiante na medida em que, em vez de adotar, Raposa-Preta encorajou os ancestrais a conquistarem o fogo, pelo bem da huma-
como no início, os símbolos retóricos de uma juventude eterna, ela consa- nidade futura. Postou corredores a intervalos regulares entre sua aldeia e a dos
gra a perda de um ser de carne e osso que cinco esposas, subsumidas no irmãos Doença, onde ele roubou o fogo dos esquilos rajados, que o guardavam, e os
nome de um único animal, vão passando febrilmente uma para a outra, da corredores se revezaram para levá-lo. Os Doença tentaram pegá-los, mas como não
mais velha à mais nova, antes de morrerem, uma depois da outra, e ele no conseguiram recuperar o fogo, resolveram se instalar entre os homens e persegui-
final. A majestosa cadência final conjuga os extremos e conclui com uma los: “Até aquela época, nenhuma doença tinha atingido ninguém. Mas, depois do
série de acordes arpejados, alternadamente ascendentes e descendentes, para roubo do fogo, se espalharam pelo mundo todo. As pessoas ficaram com o fogo, mas
os quais o eixo alto-baixo serve de pedal. Eles unem — no modo menor, também com as doenças”.
evidentemente — o céu e a terra, o ar e a água, o aqui e o além, e colocam Raposa-Preta resolveu em seguida se apossar do fogo dos irmãos Sol. Pos-se de
um ponto final nessa transfiguração não realizada. Fuga, com efeito, para tocaia e conseguiu decapitar cinco dos irmãos, com o auxílio do serviçal deles, que
escapar dos estragos irrecuperáveis da velhice, mas que empurra os homens os traiu, e que se chamava Káhkaas (que Curtin traduz por stork, “cegonha”, mas
para uma outra alternativa (cc: 160): escolher entre a decrepitude da idade e que é certamente a grande garça azul, Ardea herodias, cf. Barker 1963b: 329, klamath
a morte violenta sob os golpes do inimigo. /q’ahq’a.h?as/). Raposa não ousou atacar os outros cinco irmãos Sol, primeiro porque
eles eram muito poderosos, mas também porque temia que a morte deles provo-
! casse uma noite eterna. Até então, nevascas e tempestades dominavam o ano todo,
mas, com a destruição dos cinco sóis, verão e inverno começaram a se alternar. Porém,
Para tranquilizar aqueles que porventura se inquietem diante da consolida- era preciso fixar sua duração respectiva. Alguns queriam um inverno de dez meses,
ção de mitos provenientes de povos afastados em tudo além da distância outros de apenas dois meses, “porque se o inverno durar dez meses, as pessoas vão
geográfica, convém notar que, no noroeste de América do Norte, existem morrer de fome; não conseguirão fazer provisões suficientes de raízes e grãos”. Con-
versões sobre a origem da vida breve que se aproximam ainda mais das for- cordaram, finalmente, em três meses de frio. Antes de se transformarem em animais,
mas sul-americanas daquelas que discutimos inicialmente, precisamente
porque a aparente ausência de qualquer semelhança entre elas conferia 4 . Um erro nos índices (p. 429, 432) atribui esse mito aos Klamath, que possuem uma
maior rigor à demonstração, por obrigar a proceder dedutivamente. Não versão diferente (M₄₇₁b)

172 | Terceira parte: Cenas da vida privada A avó libertina | 173


os ancestrais proclamaram que os futuros humanos ficariam contentes com eles: Durante a viagem de volta, Coiote pegou a caixa, que era levada por Águia.
“Nós lhes demos o fogo, matamos cinco dos irmãos Sol, encurtamos o inverno; eles Curioso com o barulho que escutava dentro dela, abriu uma ponta, e os mortos
ficarão gratos a nós” (Curtin 1912: 51-59). imediatamente escaparam e voltaram para a sua terra. Coiote só conseguiu agar-
rar um doente, mas desistiu de ficar com ele. “Se a caixa tivesse permanecido
Os três meses mais frios correspondem certamente aos três irmãos do norte, fechada até o final da viagem — explicou Águia — os mortos fariam como as árvo-
atacados imprudentemente, numa variante de mesma proveniência (M₅₆₉a, res, ressuscitariam na primavera” (Sapir & Spier 1930: 277-78. Versão wishram in
Curtin 1912: 60-67), pelo herói Cascavel, que por isso perde todos os dentes (cf. Sapir 1909a: 107-17).
M₅₆₀-M₅₆₄), exceto os dois, que se tornarão venenosos. Por vingança, ele cria
e espalha as doenças que a partir de então encurtarão a vida humana; só as Reencontramos aqui a problemática de certos mitos sul-americanos sobre a
cobras, que trocam de pele, conseguirão curar-se das doenças que contraírem. origem da vida breve e a impossibilidade da ressurreição dos mortos (M₇₉,
Uma terceira versão (M₅₆₉b, Curtin 1912: 68-72) tem por protagonistas M₈₅, M₈₆; cc: 164-71). Mas não é só isso. Mitos provenientes da mesma região
cinco irmãos criminosos e detestados por todos, para os quais a irmã atrai a da América do Norte interpretam a vida breve em termos de código acústico,
doença, em consequência de uma falta que ela cometera dormindo durante como M₉, M₇₀, M₈₁, M₈₅ e M₈₆, e de um modo especialmente significativo,
a sua festa de puberdade (M₈₁). Todos acham que eles morreram, mas eles na medida em que, como observou Boas (1917b: 486-91), os mitos sobre a
se recuperam e massacram todos os habitantes do mundo, exceto um casal origem da morte são bastante raros na América do Norte, e notadamente
chamado Velhice, que não conseguem matar. Passam a ser eles perseguidos inexistentes em toda a parte oriental.
pelo casal de espíritos poderosos, são atingidos pela decrepitude e morrem:
“Foi assim que a velhice surgiu no mundo, o que não teria ocorrido se os M 570A SAHAPTIN DO RIO COWLITZ: ORIGEM DA VIDA BREVE
irmãos tivessem deixado o velho e sua mulher tranquilos na terra deles”.
Esses mitos, em que vemos reaparecer a questão das dezenas, tratada no Jesus (sic) encarregou o demiurgo Coiote de modelar a terra. Ele criou os rios, nomeou
volume anterior (omm, vi, 1), associam, portanto, a duração abreviada da os lugares, fez crescerem as árvores e as plantas comestíveis. “Os homens queimarão
vida humana ao aparecimento da periodicidade em seu aspecto fisiológico essa madeira — disse —, irão manter-se aquecidos e estarão protegidos do frio”.
(M₅₆₉b), zoológico (M₅₆₉a), ou sazonal (M₄₇₁c). Vizinhos dos Klikitat, cujo Dois humanos apareceram, um homem e uma mulher que não tinham nem
mito M₅₆₁ começa com a busca do herói pela informação quanto à chegada boca nem olhos. “Vou completá-los — disse o demiurgo —, mas não respondam a
da primavera, os Salish de Puget Sound (a que voltaremos quanto a isso, infra, nenhum chamado, pois poderia provir de uma criatura perigosa”. Todavia, eles deso-
p. 484) e os Chinook do rio Columbia faziam dela a estação da ressurreição: bedeceram. Jesus veio, constatou que o Diabo o tinha vencido e decidiu abreviar a
duração da vida humana (Jacobs 1934: 238-40).
M 352 WASCO: ORIGEM DA MORTE IRREVOGÁVEL (cf. mc: 396)
Apesar de adaptada ao Velho e ao Novo testamentos por um informante
Quando a mulher de Coiote morreu, Águia levou seu amigo viúvo para buscá-la indígena membro da seita dos Shakers, essa narrativa reproduz outras, espa-
no além. Foram transportados pelo passador até a ilha dos mortos, no meio do rio lhadas por toda a área. Os Klamath a contam quase nos mesmos termos, e
Columbia, mas ninguém apareceu. Explicaram-lhes que os mortos só apareciam nas também a misturam com o que sabem da Gênese (M₅₇₀b, Gatschet 1890:
noites sem lua, quando sua guardiã, a rã, engolia o astro. Então, eles se divertiam e xciii-xciv), embora expliquem com ela não a origem da vida breve, mas
aproveitavam. o aparecimento das artes da civilização. Um mito menos adulterado dos
De fato, Coiote avistou a mulher, se divertindo tanto com um compadre que ele Salish de Puget Sound associa o motivo dos chamados que é fatal responder
ficou com ciúme. Com a ajuda de Águia, matou a rã, esfolou-a e vestiu sua pele, mas e a vida breve: “No futuro, os homens serão mortais. Em cada família, uns
não conseguiu nem saltar como ela nem engolir a lua, que ficou atravessada na gar- morrerão (jovens), mas não todos, os outros sobreviverão” (M₅₇₀c, Ballard
ganta. Ele cuspiu a lua e, no momento em que o dia ia raiar e os mortos se retirariam, 1929: 114-17). Os Nez-Percé transformam o motivo em termos de código
ele capturou a todos numa caixa especialmente preparada para isso. tático ou visual: é permitido ouvir os mortos, mas não olhá-los ou tocá-los.

174 | Terceira parte: Cenas da vida privada A avó libertina | 175


O demiurgo infringe a proibição e, por isso, os mortos não poderão ressus- Os irmãos sobreviventes partem sem rumo e, quase mortos de fome, comem
citar (M₅₇₀d, Phinney 1934: 278-85). Num mito kutenai (M₅₇₀e, Boas 1918: as peças de couro de seus arcos. Chegam a uma casa, onde moram o velho Inverno
113-17), o demiurgo corre risco de morte, juntamente com seu companheiro, e suas filhas, que banqueteiam diante deles sem nada lhes oferecer. Os viajantes
por ter respondido aos chamados dos Pássaros-Trovão, que os aprisionam, pegam suas coisas e vão para a casa do velho Verão e suas filhas. Os novos anfitri-
mas acabam libertando-os. Desde então, o trovão não mata mais ninguém, ões lhes oferecem uma refeição tão lauta que eles não conseguem comer tudo. Em
contenta-se em fazer barulho. seguida, as moças desembaraçam os cabelos cheios de mato dos dois irmãos e se
Os protagonistas, receptores de ruído nos mitos acima, se invertem nou- casam com eles.
tros mitos em produtores de ruído, numa transformação homóloga à que, Certo dia, o velho Inverno manda uma filha para a casa do pessoal de Verão, para
nos mitos simétricos entre si da América do Sul — M₁ e M₉-M₁₀ — faz do saber o que tinha acontecido com os visitantes. Quando ela se aproxima, o velho
herói ora sujeito, ora objeto de ruído (cf. cc: 157). Constatamos, assim, como Verão assa um pedaço de carne e o lança nas partes sexuais da moça, que não vestia
era de esperar, que uma versão nez-percé do mito dos dentes perdidos e tro- roupa nenhuma. Ela volta para casa comendo a carne e, ao chegar, joga os restos
cados inverte ponto por ponto a história da avó libertina, devido ao fato de para o pai, que come tudo.
Coiote ter nela o papel principal, e de sua falta consistir em emitir ruído em Inverno e suas filhas partem em guerra contra o pessoal de Verão. Atacam-
vez de receber, como nos mitos de origem da vida breve cujo protagonista é nos com pedaços de gelo, que o velho Verão derrete agitando seu casaco ou então,
esse mesmo enganador. segundo uma das versões, vísceras, fígado e pulmão de cervídeos. Derrotado, e rea-
bastecido de carne por seus generosos adversários, o pessoal de Inverno se afasta
M 571A-C NEZ-PERCÉ: ORIGEM DAS ESTAÇÕES definitivamente (Boas 1917a: 144-48; cf. Spinden 1908a: 149-52; Phinney 1934: 330-38).

Coiote, atingido no rosto várias vezes seguidas por um objeto voador que ele pensa Em vez de a periodicidade sazonal, colocada em termos categóricos no
ser um pato, pega-o, assa-o e come-o. Então ele percebe que era uma vulva de mulher início, excluir o rejuvenescimento dos velhos, o mito procede ao contrário.
(cf. Mfgb-Mfgc). Quando ele vai beber, depois da refeição, todos os seus dentes caem Mesmo munido de dentes duráveis, e que ele conserva (à diferença de Gua-
da boca, dentro da água. xinim em M₅₆₁), Coiote morre de morte violenta (como Guaxinim no final
Ele chega à casa de cinco irmãos Gansos Selvagens, que tinham saído para de M₅₆₁), porque fez barulho demais. O inverso de M₃₅₂ e dos mitos da série
caçar, e encontra a formosa irmã deles sozinha. Coiote assume a aparência de um M₅₇₀a-e, segundo os quais teria sido preciso não ouvir o ruído, para escapar
belo rapaz e se apresenta. A moça o convida para almoçar, mas como ele não tem de uma morte violenta ou, pelo menos, para que os defuntos pudessem res-
dentes, só consegue comer picadinho. Sua amada logo descobre o problema, e suscitar. Como se se tratasse de uma contrapartida, a morte que passa a ser
lhe dá dentes de cabrita montanhesa. Aí, os irmãos chegam da caçada e aceitam inelutável carrega a garantia de que, apesar dos perigos de um longo inverno,
Coiote como cunhado. a periodicidade da vida humana acompanhará a periodicidade das estações.
Ele insiste para acompanhá-los na expedição seguinte. Mas, apesar das reco- O fato de as armas utilizadas por Verão contra Inverno incluirem vísceras de
mendações que lhe foram feitas, não resiste à vontade de grasnar como os gan- cervídeo coloca um problema. Talvez as vísceras só surjam aqui para criar
sos selvagens. Imediatamente, os irmãos voadores, que o carregavam pelos ares, uma oposição maior com os pedaços de gelo pontudos que armam o campo
deixam-no cair. Durante algum tempo, Coiote consegue manter-se numa altitude adverso. Sabe-se que, em toda essa região do mundo, e para além dela, o
aceitável transformando-se ora em pena leve ora em galho pesado, conforme con- fígado cabe aos velhos que, em geral desdentados, mastigam mais facili-
sidera estar muito baixo ou muito alto. Mas chega um momento em que ele se mente essa carne macia e sem ossos (cf. omm: 332). A língua klamath classi-
engana, cai na água e se afoga. fica as vísceras animais na categoria dos objetos arredondados (Barker 1963a:
A mulher acusa os irmãos de terem matado o marido. Ataca-os com flecha- 7 n. 1), e um mito modoc (Curtin 1912: 24) opõe os ossos de cervídeo à carne
das e toma o cuidado de proteger o próprio coração no dedo mindinho. Os três e fígados, de que se alimentam, respectivamente, o pilão de pedra e o fogo.
mais velhos morrem (cf. Mfhbc, Mfgja), mas os dois mais novos miram no dedinho, e Opostas aos corações incombustíveis, portanto do lado do frio, as entranhas
matam a assassina. apresentam aqui uma afinidade com o calor. Por mais plausíveis que sejam

176 | Terceira parte: Cenas da vida privada A avó libertina | 177


essas interpretações sugeridas pela cadeia sintagmática, não se deve esque- ii. Pela vida toda
cer que o mito sul-americano M₁ que melhor corresponde a M₅₇₁ — no sen-
tido de que ambos adotam a transformação sujeito receptor —Y emissor de
ruído e fundam igualmente a origem da periodicidade sazonal — se encerra
num episódio em que um herói (disfarçado de) cervídeo causa a morte do
aversário, de que só restam as vísceras, nas quais fomos levados a reconhecer
uma conotação astronômica (cc: 249-52; omm: 28-29, 84-85). É esse para-
digma astronômico que vamos agora explorar.

Usant à l’envie leurs chaleurs dernières,


Nos deux coeurs seront deux vastes flambeaux,
Qui réfléchiront leurs doubles lumières
Dans nos deux esprits...
c. baudelaire, “A morte dos amantes”, As flores do Mal, cxxxi

Além das conexões que nos permitiu evidenciar com os mitos da América
do Sul que, como ele, desembocam no tema da vida breve, o ciclo da avó
libertina apresenta outro interesse, considerável aliás. Do ponto de vista his-
tórico e geográfico, lança uma ponte para a região das Planícies, e também
para a dos Grandes Lagos, cujos mitos vêm, assim, inscrever-se no prolonga-
mento daqueles que estamos examinando.
No que diz respeito às Planícies, faremos apenas uma sugestão. Há for-
tes indícios — mas a demonstração completa disso obrigaria a voltar muito
para trás — de que um episódio do ciclo da avó e do neto, para o qual já cha-
mamos a atenção (omm: 214-15), é comutável com o da avó libertina, como
se percebe nas três transformações abaixo:

a) [(feto retirado de um animal fêmea) —Y (pênis deixado num animal macho)],


b) [(....causa de medo para um neto) —Y (...causa de prazer para uma avó...)]
c) [(...entregue pelo neto a amantes estrangeiros) —Y (apropriada por ele mesmo para
uma união incestuosa)].

Nos mitos das Planícies que o contêm, esse episódio evoca uma conjuntura
astronômica das mais importantes para o pensamento indígena, por marcar
o momento em que o feto adquire sua forma definitiva no útero da fêmea do
bisão, alguns meses após o cio.

178 | Pela vida toda | 179


O ciclo da avó libertina também coloca uma questão relativa à renovação omm: 343-44), localizamos o mesmo motivo entre os Menomini, numa forma
periódica das gerações, mas faz isso de modo negativo: em lugar do nasci- que o aproxima duplamente do ciclo da avó libertina. Nesse caso, também se
mento anual dos filhotes de animais, trata-se da impossibilidade, para os velhos, trata de uma avó que dorme com um urso (vivo, e não morto), sobre cujo púbis
de rejuvenescer, e, para os mortos, de ressuscitar. Contudo, o aparecimento de o neto lança um coágulo do sangue desse animal, morto por ele. A avó, por vin-
uma periodicidade biológica, que por sua vez condiciona a procriação, se des- gança, instaura a menstruação, mas o neto se aproveita desse estado dela, agora
taca em primeiro plano entre os Nez-Percé, parentes longínquos dos Sahaptin real, para comer toda a carne que consegue e guardar para si o resto. O incidente
no interior, cujos mitos invertem, nesse ponto, os de tribos da mesma família do coágulo lançado sobre o púbis de uma mulher nua evoca imediatamente
linguística (Klikitat) situadas no extremo oposto do território contínuo que os M₅₇₁ (supra, p. 165), em que o velho Verão age do mesmo modo para com a filha
Sahaptin ocupam, entre a cadeia das Rochosas e a das Cascades. de Inverno, o que faz supor que a periodicidade fisiológica das mulheres apare-
ceu ao mesmo tempo que a periodicidade sazonal, por sua vez ligada, por todos
M 572A , B . NEZ-PERCÉ. A AVÓ FALSAMENTE MENSTRUADA. os demais mitos do grupo, à duração abreviada da vida humana.
A confirmação chega a nós, do modo mais convincente possível, de uma
Certo dia, o pequeno Guaxinim, depois de ter-se fartado de lagostins, subiu numa população de língua algonquina que vivia na frente dos Menomini, na mar-
árvore para fazer a siesta. Uma ursa grizzly foi até lá e pediu-lhe para tirar as rãs que gem oposta do lago Michigan. Os Mascouten, com efeito, juntam em sua
infestavam seus cabelos. Dizendo que precisava tirar um bicho de dentro da orelha versão do mito todos os temas que articulamos com ligações menos diretas:
da visitante, Guaxinim pediu-lhe emprestada uma longa agulha de osso, e enfiou-a
yão profundamente no canal que a ursa morreu. M 574 MASCOUTEN: ORIGEM DA MENSTRUAÇÃO
O jovem correu para pedir à avó para ajudá-lo a cortar o animal. A velha arranhou a
perna. Ao ver o sangue correndo, Guaxinim mandou-a se isolar, porque estava menstru- O demiurgo Wisakä vivia com a avó. Certo dia, quando eles tinham muita comida, ele
ada, e se ficasse ali ele seria contaminado, e não poderia mais caçar. Ela obedeceu, a con- manchou de sangue o lugar onde a velha costumava ficar e, alegando que ela estava
tragosto. Guaxinim comeu toda a carne, falando em voz alta, para que a avó pensasse menstruada, proibiu-a de comer com ele. Desde então, as mulheres ficam menstrua-
que ele tinha muitos convidados, e não se espantasse se não sobrasse nada. Quando das periodicamente, e têm de se isolar numa cabine afastada. Se não revelarem seu
ela voltou, só lhe restava a pele do urso. Cheia de rancor, ela vestiu a pele, transformou- estado e comerem na casa da família, encurtarão a vida de seus maridos.
se em ursa grizzly e matou o neto (Boas 1917a: 196-97; Phinney 1934: 259-67). Wisakä tinha informado a avó confidencialmente desse perigo. Ela logo foi contar
a uma vizinha, que organizou uma festa e proclamou o novo costume. Isso deixou
Esse mito inverte o da avó libertina já no método empregado pelo protago- Wisakä furioso, porque ele era malvado, e teria preferido que os humanos ignoras-
nista para matar a ursa, aqui uma criatura pacífica, e não uma ogra. Em vez sem as precauções a serem tomadas, pois assim a duração de suas vidas seria redu-
de atravessar ele mesmo o corpo da ursa do ânus até a boca (M₅₆₃), ele enfia zida (Skinner 1924-27, III: 338-39).
uma longa agulha em sua orelha, e permanece no exterior. Guaxinim tam-
bém come toda a carne, e deixa a avó com fome, ao contrário do que ocorre M₅₇₄ apresenta uma impressionante simetria para com as versões ocidentais.
em M₅₆₂b. E, se em M₅₆₄, o protagonista mata a mãe e embrulha o cadáver Em lugar de a penúria decorrente da alternância sazonal provocar a vida
numa pele de cervo que vira pele enrugada, sinal anunciador de morte para breve, no início do mito, reina a abundância. O sangue reservado permite ao
os velhos, em M₅₇₂ ela mesma se cobre com uma pele de grizzly, para provo- protagonista afastar de si a avó, em vez de a abundância recuperada (quando
car a morte prematura de um jovem. ele mata um animal de grande porte) propiciar a ambos a ocasião, ou o meio,
Começando agora uma progressão que nos levará longe em direção a leste, de se reunirem. Num caso, a vida humana será abreviada em decorrência de
notamos inicialmente que os Paiute, que conhecem a história da avó (no caso, um delito sexual cometido pela avó, que o mito exprime por meio de sím-
mãe) libertina, contam que Coiote acusou uma mulher de estar menstruada bolos alimentares. No outro, o cuidado tomado pela avó para não cometer
para poder ficar com toda a carne, alimento proibido para as mulheres mens- um delito de ordem alimentar relacionado a seu estado sexual garante aos
truadas (M₅₇₃, Lowie 1924: 136-37, 126). No decorrer do volume anterior (M₅₀₁b, humanos uma vida mais longa do que se ela não o tivesse feito.

180 | Terceira parte: Cenas da vida privada Pela vida toda | 181
Podemos, portanto, considerar como dado que mitos que localizamos Ora, essa tríade formada pela casa da família, a casa dos homens e o mato
inicialmente num setor ocidental da América do Norte se encadeiam, e for- já estava presente desde os primeiros mitos com que nossa investigação
mam um conjunto coerente com versões orientais provenientes de tribos começou. O menino escondido (no sentido próprio de M₅, bem como seu
pertencentes à família linguística algonquina. Mais tarde demonstraremos homólogo figurado de M₁, resistem em deixar a casa da família e a se instala-
isso em relação à própria história do desaninhador de pássaros (infra, p. 536). rem na casa dos homens, única moradia adequada para os adolescentes. Por
Por ora, contentar-nos-emos com esse primeiro resultado, suficiente para sua vez, o incesto real de M₁ e M₂ ocorre no mato, o incesto ao contrário de
legitimar uma tentativa que poderia parecer arriscada, visto que consistirá M₅, na casa da família, e é para a casa dos homens que M₁₂₄ (que inverte M₁)
em interpretar certos aspectos obscuros do mito de Dona Mergulhão (e, transpõe o incesto real. Simetricamente, os mitos de Dona Mergulhão situam
consequentemente, o do desaninhador de pássaros, que ele inverte) a par- o incesto real no mato, mas o menino escondido fica na casa da família,
tir de uma transformação, irreconhecível à primeira vista, observável entre segundo as versões klamath-modoc, e na casa dos homens, na versão yana.
algonquinos orientais. Atentemos para a transformação que se opera entre M₁ e M₁₂₄, carac-
terizada, como acabamos de lembrar, pelo deslocamento do (ou dos) filho
! infrator da casa familiar — à qual o herói de M₁ permanece simbolicamente
ligado, manifestando assim suas predisposições incestuosas — para a casa
Voltando um pouco atrás. Para demonstrar a posição invertida ocupada dos homens, para a qual os de M₁₂₄ atraem sua mãe, para violentá-la. Essa
pelo mito yana M₅₄₆ no seio do grupo de Dona Mergulhão, argumentamos inversão, seguida, aliás, por várias outras, tinha-nos permitido postular, em
a partir do modo como ele transforma o palco da intriga. Em vez de come- O cru e o cozido (: 205-45), uma relação de simetria entre M₁ e M₁₂₄, relação
çar numa casa de família, M₅₄₆ situa os protagonistas numa casa comunal, essa que um uso “bem temperado” das referências astronômicas próprias a
ou estufa, onde residem também não parentes, e na qual as mulheres não cada mito permitiriam verificar. Com efeito, M₁ remete à origem da conste-
podem entrar. Como consta que os mitos yana chamam todas as constru- lação do Corvo, e M₁₂₄, à de Orion e das Plêiades. A demonstração externa
ções de estufa, Kroeber (1925: 340) concluiu que, na verdade, tratava-se de de todas as relações de correlação, simetria e oposição que uma análise
casas (supra, p. 95). É possível, mas do ponto de vista que nos interessa, a interna nos tinha levado a postular entre esses mitos e os que eles transfor-
questão não é essa. O próprio Kroeber salientou o papel das estufas nas mam ou que os transformam dependeria de duas condições: que a marcha
sociedades californianas: “Os homens ali praticavam sudações cotidianas, dessas constelações se prestasse a uma codificação sazonal e que a etnogra-
um uso social mais do que terapêutico; era lá que se reuniam, para conver- fia confirmasse que o pensamento indígena as utilizava com essa finalidade.
sar, e muitas vezes, para dormir... as estufas eram para eles como clubes... Essa foi, com efeito, nossa demonstração.
Eram aquecidas com fogo, nunca com vapor emanado por pedras em brasa Porém, se isso é verdade para os mitos da América do Sul, e se os da Amé-
molhadas com água... As mulheres não podiam entrar, exceto ocasional- rica do Norte que comparamos com eles por sua vez os transformam, não
mente, em certas cerimônias, nas quais os ritos de sudação, quando não esta- teremos completado nossa tarefa se não apresentarmos a mesma demons-
vam completamente ausentes, tinham uma importância secundária” (l.c.: tração no tocante aos mitos norte-americanos. Mitos da América do Sul que
810-11). Ainda que, para os Yana, todos esses locais pudessem servir para se transformam mutuamente de modo simétrico, referem-se ao Corvo ou às
vários usos, fica claro que M₅₄₆ define a estufa hic et nunc, por referência à Plêiades e Orion. Ou mais precisamente, o desaninhador de pássaros, herói
oposição, fundamental no pensamento californiano, entre casa dos homens do mito bororo M₁, se transforma na constelação do Corvo e em dono da
e casas de família. O local em que transcorre a ação é, do ponto de vista do estação das chuvas, ao passo que os heróis do mito xerente M₁₂₄ se trans-
mito, uma casa dos homens ne plena acepção do termo; desde o início, esse formam nas Plêiades ou numa estrela da constelação de Orion, e donos da
traço opõe o mito yana aos que insistem no caráter familiar da casa onde estação seca. Supondo — o que tentamos demonstrar pela análise interna —
vivem os mesmos protagonistas. Em compensação, todos os mitos concor- que a história do desaninhador de pássaros na América do Sul e na América
dam em situar no mato a tentativa incestuosa de Dona Mergulhão em rela- do Norte constitui um único mito, deve resultar a inversão de sua mensagem
ção a seu adorado irmão. entre um hemisfério e outro, do mesmo modo que, no mesmo hemisfério, um

182 | Terceira parte: Cenas da vida privada Pela vida toda | 183
mito que lhe é simétrico exprime sua mensagem invertida. Entre um hemis- M 575A WABANAKI: ORIGEM DA CONSTELAÇÃO DE ORION
fério e outro, inverno e verão se invertem, de modo que o conteúdo dos mitos
tem de ser igualmente invertido, se quiserem conotar a mesma estação em Um irmão e uma irmã, apaixonados um pelo outro, resolveram fugir juntos. Os paren-
ambos os casos. Ou, caso os mitos permaneçam os mesmos — como cons- tes foram atrás deles, para castigá-los. Os infratores estavam quase sendo alcançados
tatamos em relação à história do desaninhador de pássaros —, é preciso que num lago congelado que estavam atravessando quando o gelo cedeu sob seus pés;
ocorra uma inversão de sua conotação sazonal. Em outras palavras, dado eles desapareceram. Um pouco mais tarde, viram-nos emergir em forma de mergu-
que, no hemisfério sul, M₁ conota o Corvo, e M₁₂₄ — que se pode represen- lhão, emitindo seu misterioso grito. Os amantes subiram para o céu nessa forma, e se
tar por 1/M₁ —, Orion e as Plêiades, deve seguir-se que, no hemisfério norte, transformaram na constelação de Orion (Speck 1921: 352).
mitos iguais a M₁ conotam estas duas últimas constelações. O simbolismo
desses constelações reproduziria, assim, o que possuíam no Velho Mundo, de A variante penobscot (M₅₇₅b, Speck 1935: 20; 10: 52) se refere às Plêiades,
acordo com os dados da cosmografia, já que a área em que se concentra este segundo alguns, a uma constelação vizinha, segundo outros. A existência
livro se situa, como o mundo greco-romano, entre 40° e 50° lat. N. de um nome diferente para as Plêiades, /mnábasuwak/, “agrupadas”, torna
Já possuímos indícios de que é exatamente isso o que ocorre. Desde as mais plausível a segunda interpretação, que poderia designar Orion: “Alguns
primeiras versões utilizadas, o desaninhador de pássaros norte-americano chamam-na de /meda’wile/, “mergulhão”, por causa de um mito sobre um
aparecia como dono da água. Nas versões klamath (supra, p. 31), Aishísh homem apaixonado pela prima, e que se casou com ela, violando as regras.
consegue apagar o fogo provocado por seu pai hostil. De modo ainda mais Os irmãos da moça o perseguiram e, no momento em que iam matá-lo, ele
claro, o herói dos mitos yurok, wiyot e makah (M₅₅₇-M₅₅₈, supra, p. 134-38), se enfiou debaixo do gelo e depois subiu ao céu, primeiro na forma de um
autor ou anunciador da chuva e da tempestade, lembra o nimbosus Orion mergulhão, e depois, de uma constelação”.
que reina no céu noturno de janeiro, a época mais chuvosa no Oregon Da região oeste do lago Superior, praticamente à mesma distância do
(Frachtenberg 1915: 232 n. 1). Mas nenhum desses mitos o designa como uma Atlântico e do Pacífico, provém uma versão ojibwa (M₅₇₆, Josselin de Jong 1913:
constelação. Para mostrar que pelo menos ele desempenha o papel dessas 1), que inverte as duas formas extremas assumidas pelo mito a leste e a oeste
constelações, procederemos indiretamente. Sabemos que o mito de Dona do continente: em lugar de serem irmão e irmã, os amantes são um Sioux e
Mergulhão inverte, na América do Norte, o do desaninhador de pássaros. Se uma Peoria, ou seja, pertencem a povos inimigos. Resolvem fugir juntos de
existir nalgum lugar um mito que inverte o de Dona Mergulhão e cujo herói canoa, mas a tribo do rapaz se recusa a recebê-los. Indesejados nas duas mar-
é uma constelação, será possível deduzir que esse é também o papel do herói gens do lago que separa seus povos antagonistas, permanecem no meio do
do mito em relação de inversão, ainda que num outro eixo, com o de Dona lago, onde são pegos de surpresa por uma tempestade que causa sua morte:
Mergulhão. Tal demonstração elucidará simultaneamente alguns detalhes “Antes de afundarem definitivamente, subiram pela última vez à superfície e
ainda obscuros dos mitos anteriormente examinados; além de conferir-lhes lançaram seu grito, que desde então pode ser ouvido no lago Peoria”.
uma conotação astronômica, ela mesma terá sua validade reforçada. Fica claro, portanto, que nas duas extremidades do continente o mito de
Confiando em tais promessas, perdoe-nos o leitor por transportá-lo bru- Dona Mergulhão e o dos amantes incestuosos ecoam um ao outro. Um se
talmente para a outra ponta da América do Norte, mas sempre na mesma passa no inverno, já que os lagos estão congelados. O outro, no verão, já que
latitude, conforme requer nosso propósito. Os representantes mais orien- os irmãos amantes acampam inicialmente ao ar livre, e quando ela adquire a
tais da família linguística algonquina no litoral atlântico formavam o grupo natureza de pássaro aquático, a infratora se instala nos lagos, onde pode ser
chamado Wabanaki, “gente do sol nascente”, que compreendia quatro tribos vista nadando e mergulhando todos os dias, o que significa que a superfície
principais, Penobscot e Passamaquoddy no Maine, Micmac na Nova Escócia da água não pode estar congelada. Aliás, sabe-se que no momento em que esse
e Saint-Francis ou Abenaki, na atual fronteira entre o Canadá e os Estados fenômeno ocorre o Mergulhão migra para a costa, onde as águas não conge-
Unidos. Conhece-se um de seus mitos que associa o motivo do incesto, o lam. Num grupo de mitos, o incesto reúne um casal de irmãos que serão ainda
pássaro mergulhão e a origem de uma constelação: mais unidos pela morte, confundidos num único animal e, posteriormente,
numa única constelação. No outro grupo, a transformação da irmã no mesmo

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animal e o casamento do irmão numa terra longínqua os afasta, também de e principalmente a descrição da plumagem, designam sem ambiguidade o
modo duplamente definitivo. Frustrada em seus desejos condenáveis, a irmã mergulhão de colar.
incestuosa persegue os parentes no eixo vertical, em que eles tentam escapar Vimos que, nos mitos do oeste, a transformação da irmã infratora em
dela, e os destrói pelo fogo. Ao contrário, no mito wabanaki, o irmão e a irmã, mergulhão é, para ela, um castigo. Dizem que essa ave é “feia” e sua carne,
uma vez realizado seu desejo, fogem dos parentes no eixo horizontal, no qual intragável, é cuspida assim que colocada na boca (M₅₃₉, 540). Mas os algon-
estes tentam alcançá-los para destruí-los, e morrem na água congelada. Ape- quinos do leste têm uma visão diametralmente oposta do Mergulhão:
nas as conclusões coincidem, embora sejam opostas de outro modo. O mito “Dentre as aves aquáticas, é a ele que cabe o lugar de honra. Seu nome, que
wabanaki explica uma configuração astronômica na forma de uma constela- significa ‘pássaro escolhido, ou admirado’, em penobscot e em malecite, já
ção, rosário de estrelas que se destacam no céu noturno. O mito de Dona Mer- indica o quanto é estimado como anunciador das mudanças de tempo, por
gulhão explica uma configuração zoológica, as manchas brancas formando sua esplêndida plumagem e seu grito pungente... Matar um mergulhão seria
um colar que se destaca sobre a plumagem escura de uma ave aquática. Ora, um sacrilégio” (Speck 1921: 352). Um grupo de mitos discutidos no volume
se a constelação de Orion enfeita com contas luminosas o céu de inverno no anterior (M₄₄₄, omm: 200-03) chamam de Mergulhão um personagem de
registro do alto, o mergulhão (Gavia immer) que é a ave do mito apresenta incrível beleza e luxuosamente ornamentado. Para os Passamaquoddy e os
sua plumagem característica no verão, enfeitando assim a água, no registro do Micmac, os mergulhões são os caçadores e mensageiros do demiurgo. Essas
baixo, de modo alterno, tanto no eixo espacial quanto no eixo sazonal. aves proféticas e prestativas permaneceram entre os homens mesmo depois
Diante disso, é ainda mais fácil reconhecer o Mergulhão wabanaki — de ele os ter deixado. Quando lançam seu grito característico — “mergu-
“modelo de constância segundo a lenda e a realidade”, e cujo grito os índios lhoneiam”, como dizem os Passamaquoddy —, é porque estão chamando.
comparam a “um triste lamento pela morte de um amante” (Speck 1921: E os homens que, através deles, fazem pedidos ao demiurgo ausente são
352-53) — na irmã virtuosa e esposa inconsolável da versão modoc (M₅₄₁), atendidos (Rand 1894: 288-89, 378-82; Leland 1884: 19, 26, 50-51, 68; Prince
que inverte Dona Mergulhão em seu aspecto local de irmã incestuosa e 1921: 26-27, 51). Nos ritos dos Ojibwa, um bastão esculpido em forma de
parricida. E, finalmente, visto que Aishísh, o desaninhador de pássaros kla- mergulhão é usado para bater no tambor de água, para chamar os espíritos
math, é filho de irmãos incestuosos (M₅₃₁, M₅₃₈), ele pode ser identificado, (Densmore 1929: 96). Saladin d’Anglure, grande especialista dos Esquimó,
como confirma a função meteorológica de seu homólogo em M₅₅₇-M₅₅₈, confirmou-nos o apreço e respeito que eles, vizinhos dos algonquinos a leste
talvez não a Orion em si, mas ao menos a parte de Orion. Para estabelecer a da baía de Hudson, têm pelo Grande
unidade da personagem da irmã que funciona como pivô para todos esses Mergulhão. E comprovou seus dizeres
mitos, basta, com efeito, transformar: presenteando-nos com uma bolsa de
acessórios de costura feita da pele de um
M₅₇₅ (irmã, fiel até a morte ao amante, que é seu irmão) mergulhão de colar, com todas as suas
—Y M₅₄₆ etc. (irmã, assassina do irmão, que não quer ser seu amante) penas, um artigo muito valorizado.
—Y M₅₄₁ (irmã, fiel até a morte ao amante, que não é seu irmão) etc. Contudo, mesmo entre os Micmac [ 1 6 ] Adorno de cabelo
e os Passamaquoddy, o personagem esquimó de Kotzebue Sound,
! do Mergulhão parece estar ameaçado feito de pele de mergulhão.
pela instabilidade. Esposo infeliz das (Cf. Nelson 1899: 417)
A simetria entre os mitos “de mergulhão” que se observa nas duas pontas mulheres Doninhas, apaixonadas
da América do Norte é acompanhada por uma inversão radical dos valores pelos Patos marinhos, ele assassina seus rivais e depois se suicida. Ou então
atribuídos, em casa caso, a essa ave. Existem quatro tipos de mergulhão, que é enganado pelos sobrinhos, que são mergulhões de uma outra espécie, e
o francês canadense agrupa na denominação “huard” ou “huart”: o de colar se vinga fingindo o suicídio, para ressuscitar em seguida (M₅₇₇a, b; Leland
(Gavia immer), o de bico amarelo (Gavia adamsii), o ártico (Gavia arctica), 1884: 164-69). Os Iroqueses enfatizam mais ainda essa ambivalência. Na ver-
e o de pescoço vermelho (Gavia stellata). Vários detalhes de nossos mitos, são onondaga do mito de origem, foi Mergulhão que deu o aviso para salvar

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a mulher celeste no momento em que ela, despencando do alto do céu, estava diversas tribos indígenas da costa noroeste e do interior, até os Arapaho e
prestes a se afogar na água primordial, mas, na versão mohawk, ele se enganou os Osage, foi realizado por Boas (1916: 825-29) e Savard (1966: 126-54). As
e, ao ver o reflexo da coitada, pensou que ela estava subindo das profundezas, versões esquimó, que são as mais ricas, são particularmente interessantes,
de modo que coube ao Alcaravão, uma espécie de garça cujo nome em iroquês porque retransformam, de modo evidente, o ciclo da avó libertina, ele mesmo
significa “aquele cujos olhos sempre olham para cima”, que corrigiu a perspec- uma transformação do ciclo de Dona Mergulhão, para voltar a este último
tiva e tomou as medidas de salvamento apropriadas. Ou, ainda, o Mergulhão ciclo, mas mudando a polaridade do principal personagem:
guardou debaixo da asa direita os corações de perigosos canibais, mas acabou
concordando em entregá-los. Os Iroqueses diziam que a carne do mergulhão M 580A ESQUIMÓ (POINT BARROW): O CEGO E O MERGULHÃO
era carne de bruxa, e não a consumiam (M₅₇₈a, b; Hewitt 1903: 179, 285; Curtin
& Hewitt: 136-37; Waugh: 135). A oposição entre Mergulhão e Alcaravão parece Uma velha, seu neto e sua neta eram os únicos sobreviventes de uma epidemia, e
ser atenuada entre os Blackfoot, embora cada um desses pássaros tenha, entre dependiam, para sobreviver, da caça do menino. Ele trazia tanta caça que a avó se can-
eles, uma posição bem marcada. Consideram o Alcaravão uma ave sagrada, sou de secar e preparar toda a carne. Cegou o neto, que não pode mais caçar. As pro-
talvez porque seu nome signifique “bico apontando para o sol”, e chamam o visões se esgotaram, e foi preciso comer até o que estava completamente estragado.
Mergulhão de “belo corcel”, devido ao modo como ele bate as asas, como se Quando veio a primavera, um urso se aproximou da casa, e o cego, guiado pela
estivesse num desfile de guerra (Schaeffer 1950: 39). Seus vizinhos Kutenai não avó, conseguiu matá-lo. Mas ela disse a ele que ele tinha errado, guardou a carne
comiam mergulhão (Turney-High 1892: 42). A julgar pelos mitos, a mesma fresca para si e para a neta, e continuou dando carne podre ao neto. Ela também
proibição devia prevalecer na área de distribuição do ciclo de Dona Mergu- dava a ele água ruim (cf. Mf).
lhão, isto é, no norte da Califórnia e no sul do Oregon, e também se verifica Certo dia, o cego começou a conversar com um mergulhão, que teve pena dele e
mais ao norte, entre os Tanaina e os Ingalik, que são atabascanos ocidentais: o mergulhou na água de um lago. Esse tratamento lhe devolveu a visão. Curado, ele
“Eles preferem não comer mergulhão, cuja carne escura tem, dizem, um gosto afogou a avó durante uma caça à beluga. Aconselhados pelo mergulhão, ele e a irmã
suspeito” (Osgood 1937: 40, 44; 1959: 36). Os Chippewyan, atabascanos do leste tomaram cônjuges na mesma aldeia, e todos viveram juntos, ricos e felizes (Spencer
em contato com os algonquinos, ao contrário, não tinham a mesma prevenção & Carter 1954: 65-68).
(Seton 1911: 172-73), e os Salish costeiros também comiam carne de mergulhão
(Eells 1887: 214; 1964: 619; Olson 1967: 50). Apesar das circunstâncias serem favoráveis a isso, já que o irmão e a irmã
De modo geral, chama a atenção o fato de as valências, positivas ou nega- tinham ficado sós no mundo, não houve incesto e ambos se casaram. A não
tivas, do mergulhão se inverterem entre um grupo e outro, em toda a zona ser por algumas versões que o invertem (infra, p. 189), o mito se apega tanto
noroeste, e serem sempre muito marcadas. Os Lilloet e os Snohomish, que a essa conclusão que variantes orientais a reforçam, atribuindo à irmã um
são respectivamente Salish do baixo Fraser e de Puget Sound, por exemplo, casamento perigoso e exógamo; às vezes, ela chega a morrer entre estran-
possuem mitos que vão, por assim dizer, na contramão do de Dona Mergu- geiros (M₅₈₀b,c, Boas 1916: 828-29; Kroeber 1899: 167-70). Junto com essa
lhão, cuja área de distribuição se encontra, entretanto, bem afastada, ao sul. passagem da endogamia para a exogamia ocorre uma inversão da polari-
Uns apresentam o mergulhão como subornador de uma jovem, e os outros, dade do mergulhão, que passa de maléfico a benéfico. O mesmo acontece
como um casto adolescente que se deixa seduzir e capturar por uma ogra num mito atabascano:
(M₅₇₉a-e; Teit 1912a: 334-35; Ballard 1929: 101-02; Haeberlin 1924: 435-37).
Bem ao lado deles, os Squamish e os Klallam fazem dele o cúmplice de um M 581 CHILCOTIN: A MULHER CASADA COM UM URSO
sogro assassino que quer fazer o genro se perder em alto mar (M₅₇₉f, Hill-
Tout 1900: 527-28; M₅₇₉g, Gunther 1925: 137). Uma mulher cometeu a imprudência de se casar com um estrangeiro, que na verdade
Para evitar incluir toda a mitologia esquimó na discussão, não fare- era um urso. Ele a levou para hibernar em sua toca. Um irmão da mulher achou-os,
mos o estudo detalhado do conjunto de mitos cujo inventário provisó- matou a fera e libertou a irmã. Mas ela logo depois se transformou em ursa e mas-
rio, incluindo todos os grupos esquimó, do Alasca à Groenlândia, as mais sacrou todos os familiares, exceto o irmão e a irmã caçula que, sozinhos no mundo,

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tornaram-se um casal incestuoso. A ursa os alcançou e matou a mulher. O irmão mais facilmente do que as dos Esquimó fornece um indício suplementar em
sobrevivente conseguiu livrar-se da ogra com a ajuda de um mergulhão e de outra favor do sentido da derivação que sugerimos.
ave mergulhadora (black diver) que a levaram em sua canoa para afogá-la (Farrand Se o neto cego é tapado em cima, versões provenientes da terra de Baffin
1900: 19-22; cf. Bella Coola, Boas 1900: 111-14, para uma narrativa muito semelhante). e da Groenlândia (M₅₈₀d,e; Boas 1888: 625; 1901-07: 168; e M₅₈₀f, Holm, apud
Boas 1916: 829) contam o casamento da irmã com um homem do povo sem
Aparentemente, para essas populações setentrionais, o Mergulhão não tem ânus, ou seja, um personagem tapado em baixo. O que indica que talvez não
exclusivamente o papel de impedir o incesto, em prol do casamento exogâmico, seja um acaso o fato de os Esquimó, a leste da baía de Hudson, conservarem
contrariamente ao que ocorre no ciclo de Dona Mergulhão. Ele também atua a pele do mergulhão para usá-la como bolsa para seus acessórios de costura,
em sentido contrário, para neutralizar os riscos de um casamento afastado fio e agulhas, que são objetos perfurantes, mas que também permitem juntar
demais, mas que ainda é possível nessa parte do mundo, onde vários povos de modo duradouro peças antes separadas, do mesmo modo que o casa-
acreditam descender da união de uma humana com um urso ou um cão. mento, contanto que os cônjuges não estejam nem próximos nem afastados
Como a avó bororo de M₅, a avó esquimó de M₅₈₀ comete com o neto um demais. Às vezes, em recompensa por seus esforços, o mergulhão recebe do
incesto às avessas; no primeiro caso, ela o empesteia com exalações tóxicas herói de M₅₈₀ um bico bem fino, próprio para espetar suas presas. Em puni-
e, no segundo, cega-o estragando seus óculos de neve, para que não possam ção por sua maldade, a avó é transformada, por várias versões, em narval
proteger os olhos dele; em ambos os casos, ela o contamina com alimentos macho, dotando-a, portanto, de uma presa afiada.
podres, quer seja na forma de carne estragada ou de gases intestinais. O mais frequente é o pássaro receber em recompensa um precioso
Isso não é tudo. Vimos que a transformação que permite passar de M₂ adorno de conchas dentalia, que seus congêneres usam em torno do pescoço
para M₅ é a de um incesto “horizontal” em incesto não apenas “vertical”, mas desde então (Ilustração iii). O episódio confirma que esse mito inverte, de
às avessas (supra, p. 152), e que a transformação que permite passar de Dona fato, o de Dona Mergulhão, no qual o colar de corações de parentes constitui
Mergulhão para a avó libertina também é a de um incesto “horizontal”, pro- o símbolo do anti-adorno e inclusive se opõe, no interior do próprio mito,
vocado por uma gulodice sexual, em incesto “vertical”, resultante de gulodice aos braceletes de espinhos de porco-espinho, que representam adornos de
alimentar. E quando se passa do grupo da avó libertina para o do cego e do verdade (supra, p. 44-45, 77). Já tivemos a oportunidade de salientar que os
mergulhão, esta última fórmula se transforma em gulodice alimentar alterada mitos dessa região da América do Norte frequentemente transformam espi-
em seu contrário (a avó prefere a penúria a muito trabalho doméstico), e que nhos de porco-espinho em conchas dentalia (omm: 222).
provoca o inverso de um incesto, já que, ao cegar o neto, ela o tapa em cima, Entretanto, no que diz respeito ao aspecto estético da plumagem, curiosas
em vez de ele a perfurar em baixo.5 O desleixo dessa avó, num povo tão sujeito variações se verificam entre as diversas tribos. No mito de Dona Mergulhão,
à fome, é tão paradoxal que se pode postular com toda a segurança que o tudo indica que as penas do pássaro são feias, e o texto chega a dizê-lo expres-
grupo do cego e do mergulhão é derivado em relação ao da avó libertina. samente (M₅₃₉). Contudo, os Klamath, que conhecem o mito numa forma
Além disso, seria fácil mostrar, graças a versões provenientes dos Lou- que difere por não mencionar o Mergulhão, contam algures (M₅₈₂, Gatschet
cheux e dos Peaux de Lièvre (M₅₈₀g, h; Petitot 1886: 84-88, 226-29) em que 1890, i: 132-33) que o demiurgo encarregou essa ave de destruir a barragem
o cego é um velho que recupera a juventude junto com a visão, que a visão graças à qual os donos dos salmões prendiam todos os peixes, e só cediam
recuperada forma um par de oposição com a dentição perdida. O fato de as aos vizinhos os peixes podres (comparar com a avó de M₅₈₀a). O Mergu-
versões indígenas permitirem voltar de um grupo de mitos para o outro lhão cumpriu sua missão e, em recompensa, o demiurgo cuspiu creta sobre
seu corpo, formando as manchas brancas da cabeça e do dorso. Note-se que
essa descrição dos adornos ganhos pelo animal não menciona o peito, que
5 . Savard (1966: 105) assinala na língua e no pensamento esquimó uma interessante
equivalência entre a boa visão e a virilidade. Em favor da argumentação precedente, é a parte principal segundo o mito de Dona Mergulhão. Para que não nos
notaremos também que a avó libertina é privada de carne pelo neto, que guarda tudo censurem por dar atenção demasiada aos termos de um texto exposto, por
para si mesmo alegando que a avó está menstruada (= perfurada em baixo), ao passo natureza, a todos os tipos de alterações, invocamos o testemunho dos Peaux
que, no outro ciclo, a avó faz o mesmo com o neto cego (= tapado em cima). de Lièvre, que também atribuem as manchas brancas da cabeça à creta, mas

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nesse caso lançada por Corvo por ciúme, portanto mais com a intenção de Os gaviiformes de fato possuem o torso achatado (Thomson 1964: 212), mas
enfeiar do que de embelezar o rival (M₅₈₃, Petitot 1886: 223, 296-97). Bem, é menos fácil entender porque, de cada lado da baía de Hudson, o mesmo
os Esquimó da baía de Hudson desenvolvem a oposição entre Mergulhão e mito que opõe o Mergulhão ao Corvo inverte a descrição da plumagem con-
Corvo e, em relação ao primeiro, entre as manchas do dorso e as do peito: trastada do primeiro, branco sobre fundo preto em M₅₈₄a, preto sobre fundo
branco em M₅₈₄d, um procedimento do qual já encontramos outros exem-
M 584A ESQUIMÓ (UNGAVA): ORIGEM DAS MANCHAS DO MERGULHÃO plos (supra, p. 103, 132, 151). Não nos é possível interpretar a inversão no caso
presente, mas notamos que vem acompanhada de uma outra, entre roupas
Havia um homem que queria que seus dois filhos ficassem bem parecidos. Pintou o novas ou pintura fresca (M₅₈₄a,d) e roupas usadas (M₅₈₄b,c).
peito de um deles de branco e fez quadrados brancos em seu dorso. O outro achou Em compensação, a maioria das tribos de língua salish e atabascana
isso muito engraçado e riu tanto do irmão que ele foi se refugiar na água. Desde parece concordar em comparar o peito do mergulhão aos mais belos ador-
então, o Mergulhão só mostra o peito branco e esconde as manchas ridículas de seu nos. Os Chilcotin lhe dão um colar em recompensa por ter devolvido a
dorso. Corvo, que era o segundo filho, prevenido pela desventura do irmão, não se visão a um cego (M₅₈₀i, Farrand 1900: 36), ou por ter surpreendido um
deixou pintar, e permaneceu todo preto (Turner 1894: 262-63). ladrão de túmulos que pegava as jóias deixadas sobre os cadáveres (ibid.:
47). Segundo os Shuswap e os Thompson (M₅₈₅a, Teit 1909: 667-68), o
Os Esquimó polares (M₅₈₄b, Holtved 1951: 99) situam a origem do Mergu- Mergulhão foi, antigamente, um jogador desonesto que apostou e per-
lhão num pequeno órfão vestindo roupas esfarrapadas. Os da terra de Baffin deu todos os seus ornamentos, e então fugiu com seus colares de dentalia;
(M₅₈₄c, Boas 1901-07: 218-19, 343), numa avó com roupas esfarrapadas e como punição, foi transformado em uma ave que os leva pendurados no
ensanguentadas; mas, nesse caso, pode ser que se trate do mergulhão de gar- pescoço o tempo todo. A decoração incrustada de um cachimbo de xamã
ganta vermelha, que tem penas encarnadas no peito.6 thompson representa o colar do mergulhão, e lembra, por sua vez, o colar
Um mito esquimó da costa ocidental da baía de Hudson, que associa o às vezes usados pelos xamãs, com um pendentif em forma de cabeça de
Mergulhão à bolsa de costura (supra, p. 178), por sua vez, opõe, como M₅₈₄a, mergulhão (Teit 1900: 381).
sua plumagem bicolor à do Corvo: Essas rápidas indicações, às quais poderíamos acrescentar muitas
outras, mostram que, de leste a oeste e também do sul (relativamente
M 584D ESQUIMÓ (BAÍA DE HUDSON): ORIGEM DAS MANCHAS DO MERGULHÃO falando) ao extremo norte, o valor atribuído ao Mergulhão oscila em três
planos. Do ponto de vista estético e do vestuário, o pássaro possui pre-
Corvo e Mergulhão eram excelentes costureiras que certo dia decidiram trocar entre ciosos colares, roupas estragadas ou então corações humanos, horrendos
si mostras de seu talento. Cada uma delas faria para a outra uma roupa de peles cos- adornos. Estamos aqui no plano da cultura. Do ponto de vista sexual, que
turadas com fio enegrecido com fuligem. Corvo pegou a agulha primeiro e costurou é também o da vida em sociedade, o Mergulhão pode desempenhar três
a roupa no corpo de Mergulhão, e por isso sua plumagem é pintada com pontos pre- papéis distintos: irmã incestuosa para sempre separada do amado no mito
tos. Quando foi a vez de Mergulhão por mãos à obra, Corvo não queria parar quieto de Dona Mergulhão, a ele unida até a morte no que passaremos a chamar
durante a prova. Mergulhão, irritada, despejou toda a fuligem na companheira, que de “transformação wabanaki” (M₅₇₅), ou ainda de espírito sobrenatural de
ficou toda preta. Para se vingar, Corvo, com pedradas, quebrou e amassou as pernas sexo não marcado, árbitro da união endogâmica e do casamento afastado
de Mergulhão (Boas 1901-07: 320). (M₅₈₀). E finalmente, no terceiro plano, que é o alimentar, e diz portanto
respeito à natureza, a carne de mergulhão pode ser declarada incomestível
devido ao gosto ruim que se lhe atribui, ou porque a ave é considerada
6 . A não ser que com isso o mito faça alusão a uma técnica de caça igual à verificada entre
os Micmac (Rand 1894: 378-79), baseada na atração que o mergulhão supostamente
sagrada. Um pequeno mito dos Micmac, que compartilham essa venera-
sente por cores fortes, e especialmente pelo vermelho. Uma incerteza adicional provém ção (M₅₈₅c, Parsons 1925: 82-83), introduz um aspecto adicional. Como
do fato de o texto de M₅₈₄c chamar a ave de “web-footed loon”, quando todos os entre os Esquimó, ele opõe o Corvo ao Mergulhão, mas do ponto de vista
mergulhões possuem quatro dedos, dos quais três são espalmados (Godfrey 1967: 11). do alimento, em vez do vestuário: Pica-Pau casou suas duas filhas com

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Corvo e Mergulhão e, nas bodas de um, serviu-se alimento fresco, nas do salgada” (Ballard 1929: 101-03). Os Siciatl (Seechelt) dão ao mês de maio o
outro, coisas podres. Esses algonquinos orientais opõem Corvo e Mergu- nome do mergulhão, pois é nessa época que o pássaro faz ninho e põe ovos
lhão, portanto, ativamente, no tocante à alimentação, no sentido de que o (Hill-Tout 1904a: 34).
primeiro consome alimento infecto, como fariam os humanos — segundo A ascendência supracitada do Mergulhão se afasta da crença dos Assi-
tribos vizinhas do Pacífico — se comessem mergulhão. niboine, segundo os quais o Mergulhão brigou com a Águia-Calva, que se
É tentador relacionar essa instabilidade característica do mitema aos transformou em Trovão e matou seu adversário com um raio (M₅₈₅b, Lowie
hábitos do mergulhão, variáveis em cada lugar, e até mesmo em lugares bas- 1909: 202-03). Voltando aos Salish costeiros, observaremos que os Twana
tante próximos. Os Tanaina, que são atabascanos do noroeste, descrevem- “possuíam uma lenda segundo a qual o mergulhão hibernava até a pri-
no como uma ave sazonal, “exceto em Kachemac Bay, onde a temperatura é mavera. Quando saía de seu refúgio para pousar nos lagos e gritar muito,
mais clemente” (Osgood 1937: 40). Os gaviiformes nidificam até nas regiões sabia-se que o mês chamado ‘do mergulhão de dorso manchado’ tinha che-
árticas, emigram para o sul no inverno ou, caso as condições locais permi- gado, e ajustava-se o calendário em consequência” (Elmendorf 1960: 27). Os
tam, permanecem na mesma latitude, e apenas se deslocam dos rios e lagos Thompson, que são Salish do interior, acreditam que o mergulhão grita forte
congelados no interior para o litoral marinho. e muito quando vai chover. “Seria possível fazer chover imitando o grito
Pois bem, todos os mitos que consideramos até o momento fazem do do pássaro” (Teit 1900: 374). Um mito esquimó da costa ocidental da baía
Mergulhão uma criatura sazonal, mas, para fixarem seu papel, não selecio- de Hudson conta (M₅₈₆, Boas 1901-07: 320) que homens martirizaram um
nam os mesmos traços distintivos, ou não os interpretam do mesmo modo. mergulhão depenando-o vivo e, para vingar-se, ele fez cair uma nevasca
A valência sazonal já era perceptível em certos mitos do ciclo de Dona Mer- tão densa que ninguém conseguiu chegar às reservas de carne enterradas
gulhão. O mito yana M₅₄₇ começa em Shipa (supra, p. 85), “S.īp’a”, ‘lugar debaixo de pedras e todos morreram de fome.
onde as pessoas vão beber’ (?), num promontório a aproximadamente meia Vê-se que as crenças relativas ao mergulhão variam radicalmente de um
milha acima da nascente do Oak Run; havia ali um lago onde paravam anti- grupo a outro. Segundo uns, o pássaro hiberna; segundo outros, migra, mas
gamente os gansos e patos a caminho do norte, na primavera” (Sapir & Spier ora do leste para o oeste, ora do norte para o sul. Às vezes, sua mera apari-
1943: 245). Para a versão a atsugewi (M₅₅₀), o grito ou o “riso” do pássaro é ção, ou o modo como grita ou se comporta, possui uma função significante.
o sinal da chegada da primavera. No outro extremo do continente, os Mic- Esta diz respeito ora às mudanças de tempo — chuva ou neve, dependendo
mac, que também falam do “riso” do mergulhão, o interpretam como sinal do caso — ora à volta de uma estação, que pode ser o inverno ou o verão.
de vento, crença compartilhada pelos Naskapi (Parsons 1925: 84 n. 3; Speck Não obstante tais flutuações, que caberia analisar com maior cuidado (mas
1921: 126). Os algonquinos orientais atribuem a seu demiurgo, Glooskap, um munido de um conhecimento maior do que o nosso acerca da etologia das
séquito numeroso de serviçais, dentre os quais os mergulhões (supra, p. 175), quatro espécies de Gavia, e das condições meteorológicas dominantes em
ao lado de um personagem chamado Kulpejotei, que personifica o movi- cada ponto do território), verifica-se uma oposição central em todas elas,
mento do sol e das estações (Leland 1884: 22-23). Os da região do lago Supe- que, nos dois extremos da América setentrional, desemboca numa inversão
rior também associam o mergulhão ao vento que, segundo eles, é indispen- radical dos valores e funções que os mitos de cada região — vertente do
sável para que o pássaro alce vôo (Kohl 1956: 185). É fato que a constituição Pacífico e costa do Atlântico — atribuem ao Mergulhão.
anatômica do mergulhão o torna desajeitado, tanto para voar quanto para Se fosse preciso apresentar mais uma prova, esta seria fácil de encontrar
andar no solo (cf. M₅₈₄d); mas assim que ele consegue decolar, voa com vigor nos modos diversos como os mitos tratam o par formado por Mergulhão
e segurança (Thomson 1964: 212). Os Sweet-Grass Cree dizem que a chegada e uma outra ave aquática, que é o P. auritus*, nas versões provenientes dos
do mergulhão anuncia o degelo (Bloomfield 1930: 82). Os Kutenai observam algonquinos orientais. Infelizmente, sua identidade não pode ser clara-
seu comportamento para saber da aproximação de uma tempestade (Turnay mente determinada nos mitos ocidentais; no máximo, é possível dizer que
& High 1892: 42). Os Salish de Puget Sound dizem que “quando o tempo vira se trata de um pássaro mergulhador. É possível que as tribos envolvidas não
e vem uma tempestade, o Mergulhão, cujo avô é o Trovão, vai para os lagos Ú
de água tranquila. Retorna para o litoral em abril; é o chefe do povo da água *
Ver nota a respeito, omm: xxxxx. [n.t.]

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distingam, como os Blackfoot, os patos do gênero Mergus, os podicipedí- empírica. Pois um mito, ou conjunto de mitos, longe de constituir um corpo
deos e os ciconiídeos (Schaeffer 1950: 40).7 inerte, sujeito a influências de ordem puramente mecânica, operando por
Numa das versões yana do mito de Dona Mergulhão, ela morre sob os acréscimo ou subtração de elementos, deve ser definido numa perspectiva
golpes de uma ave mergulhadora (diver), movida por forte antipatia con- dinâmica, como um estado de um grupo de transformação provisoriamente
tra a outra espécie (M₅₄₇, Sapir 1910: 232). Na versão registrada por Curtin em equilíbrio com outros estados, mas cuja aparente estabilidade depende,
(1899: 412-15, M₅₄₆), esse papel de justiceiro cabe a aves pescadoras, certa- num plano superficial, do grau no qual as tensões prevalecentes entre os dois
mente maçaricos kildir. Pois bem, os mitos algonquinos acerca das esposas estados se anulam. Se uma delas se tornar forte demais num determinado
dos astros (que já invertem o personagem de Dona Mergulhão, no sentido ponto, todo o sistema bascula em direção a um novo equilíbrio entre estados
de que em vez de desejarem uma união incestuosa, as heroínas querem des- modificados. Tais crises devem ter ocorrido numerosas vezes ao longo da
posar estrelas, isto é, maridos afastados) também colocam em cena um par história, antes da morte dos mitos e de seus contadores, proferindo um dis-
composto por Mergulhão e um pássaro aquático menos imponente, por curso derradeiro, paralisados para sempre, como os habitantes de Pompeia
quem as heroínas sobreviventes de uma aventura celeste se deixam seduzir, que, nas palavras de Proust, foram surpreendidos por um outro cataclisma e
tomando-o pelo outro pássaro. Portanto, este muda de sexo: tiveram seus gestos eternizados ao serem interrompidos.
Se agora sabemos que, contrariamente ao que se costumava crer, a área
a) (mergulhão õ) —Y (mergulhão ∆), de distribuição do ciclo de Dona Mergulhão se estende até os algonquinos
orientais, não é porque os mitos se pareçam na região das Cascades e na
e, ao mesmo tempo, invertem-se as respectivas hierarquias dos dois pássaros: costa Atlântica. Eles não se parecem em nada, ou melhor, se parecem na
medida em que diferem de vários modos, e são esses modos de diferir que
b) (mergulhão < pássaro mergulhador) —Y (pássaro mergulhador < mergulhão); se parecem (Lévi-Strauss 1962a: 111). Para percebermos isso, era preciso ini-
cialmente admitir que todos os mitos dizem; e verificar, em seguida, que os
o que não impede, aliás, o pássaro menos imponente de matar o outro no final, mitos wabanaki (M₅₇₅) não dizem apenas coisas diferentes das que dizem os
em ambos os casos. Vale lembrar que mitos chilcotin e bella coola já mencio- mitos de Dona Mergulhão desde os Klamath até os Maidu e Wintu, eles os
nados (M₅₈₁a, b, supra, p. 177) ilustram um terceiro estado da transformação: contradizem, e para tanto, invertem meios de expressão que são, entretanto,
compartilhadps por ambas as regiões. Decorre daí, primeiramente, que
c) (mergulhão + pássaro mergulhador) > (esposa exógama de um urso = Dona Mergulhão-1). narrativas que ninguém imaginara aproximar constituem, na verdade, um
único mito, e ilustram vários estados de uma mesma transformação. E, em
! seguida, que tais estados complementares podem esclarecer uns aos outros.
Pois, supondo que tivéssemos partido do negativo, de que certos aspectos
As considerações acima levam a uma primeira conclusão: o ciclo de Dona teriam permanecido indecifráveis por esse motivo, assim que temos acesso
Mergulhão possui uma extensão muito mais vasta do que supuseram os ao positivo, a comparação das duas imagens permitirá interpretar detalhes
adeptos do método chamado “histórico” que, como Demetracopoulou, pre- até então obscuros ou confusos. Vejamos como isso acontece.
tendem constituir um sistema mitológico baseando-se exclusivamente nos Comecemos por definir a estrutura da permutação. Quando analisamos
traços comuns a várias versões que podem ser percebidos por uma análise a segunda parte do ciclo de Dona Mergulhão, percebemos que um incesto
disjuntivo — no sentido de que separa para toda a vida um irmão e uma irmã,
ele bem casado com uma esposa distante, ela transformada em ave — permite
7 . Consequentemente, seria imprudente explorar uma eventual correlação entre a
plumagem do Mergulhão, caracterizada, no verão, pela oposição entre preto e branco, e a
ao mito colocar o problema da ressurreição dos mortos e da periodicidade
de certos patos, que sofre um “eclipse” sazonal, durante o qual penas escuras substituem da vida humana. Na outra ponta da área, a transformação wabanaki emprega
quase que totalmente as claras. Ou seja, para uma das categorias de pássaros, o contraste a noção de um incesto conjuntivo — unindo na morte um irmão e uma irmã
entre preto e branco é de ordem sincrônica e, para a outra, de ordem diacrônica. que preferem morrer juntos a serem separados — para explicar a existência

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de uma constelação cujo curso acompanha o das estações. De fato, em toda Sem saber da morte do irmão, a moça estranhava que ele não viesse mais aos encon-
essa região da América, Orion e as Plêiades presidem ao calendário. Entre os tros. Sua irmãzinha lhe trazia comida, e ela acabou contando. Então, ela disse que sua
Iroqueses (Fenton 1936: 7), o ano novo começa em janeiro-fevereiro, quando reclusão tinha acabado, pediu suas mais belas roupas, e correu para o lugar onde jazia o
as Plêiades culminam ao cair da noite, seguidas de perto por Orion. No outro corpo do irmão. Tentaram pegá-la pelas roupas, ela as tirou rapidamente e se lançou no
extremo da área que nos interessa, os Shasta sabiam que o inverno tinha che- abismo. Unidos pela morte, os dois amantes triunfaram: “Quisemos ficar juntos e agora,
gado “quando as Plêiades apareciam ao amanhecer acima das colinas; seu estamos unidos para sempre. No futuro, outros irmãos e irmãs farão o mesmo que nós”.
desaparecimento marcava a chegada do verão” (Holt 1946: 341). Entenda-se: O pai sentiu remorsos. Quis ressuscitar seus filhos decretando que a morte não
quando elas eram visíveis no horizonte ocidental, no momento do nascer do seria definitva. Seus conselheiros se opuseram e ele desistiu. Mas como era um pode-
dia, pois, nessas latitudes, as Plêiades surgem de manhã a leste no finalzinho roso feiticeiro, fez morrer os filhos dos que discordaram dele. Então, foi a vez de eles
da primavera, razão pela qual não são visíveis no verão. defenderem a possibilidade de ressurreição, ao que o chefe respondeu: “Não. Os cadá-
Se os Klamath, vizinhos dos Shasta, chamam de “Mergulhões” a Grande veres de meus filhos já estão decompostos, não posso devolver-lhes a vida. Doravante,
Ursa, cuja posição no céu contrasta com a de Orion e a das Plêiades, é digno a morte será definitiva”. É a origem da feitiçaria (Ray 1933: 133-35; Boas 1917a: 106).
de nota que eles possuam em relação a Gêmeos, constelação vizinha às ante-
riores, crenças que lembram bastante os mitos wabanaki relativos a irmãos Como nas versões wabanaki, portanto, o incesto conjuntivo surge ligado
incestuosos, afogados na água gelada de um lago antes de se tornarem as Plêia- à periodicidade, considerada do ponto de vista astronômico ou biológico.
des ou Orion: “Os Gêmeos representam um irmão e sua irmã gêmea. Quando Mas os Sanpoil, que associam o incesto cojuntivo à segunda forma, contra-
eles saem à noite a leste, seu olhar congela a água dos lagos (dezembro); mais riamente aos Wabanaki, simplesmente viram o tema do avesso para explicar
adiante no ano, eles sobem no céu e anunciam a chegada da primavera” (Spier o surgimento da primeira:
1930: 221). Como vimos, o irmão e irmã incestuosos de M₅₇₄a se afogam num
lago gelado, no inverno, portanto; são primeiramente transformados em M 588 SANPOIL: ORIGEM DO SOL E DA LUA
mergulhão e, em seguida, sobem ao céu e culminam na forma de Orion, que
ocupa essa posição ao crepúsculo, pouco antes da volta da primavera. Um irmão e uma irmã viviam sózinhos no mundo, e o rapaz pescava para os dois.
Ora, mitos provenientes do noroeste da América do Norte tratam o Certo dia, porém, ele ficou egoista e começou a comer todo o peixe no local da pes-
incesto conjuntivo de um modo em tudo comparável ao dos algonquinos caria; chegou até a esconder ovas de salmão nas perneiras, para que a irmã não as
orientais. O melhor exemplo se encontra entre os Sanpoil, que são Salish do pudesse encontrar. Mas ela as descobriu fazendo a faxina. Injuriada diante da atitude
interior, bastante afastados da área principal do mito de Dona Mergulhão, do irmão, saiu pelo mundo, sem aceitar suas desculpas nem escutar suas súplicas.
mas próximos da região em que prevalece sua transformação ilustrada pelo Para alimentar-se, ela ia recolhendo resina comestível pelo caminho, e a trans-
ciclo da avó libertina: portava numa espécie de berço improvisado. A resina se transformou em criança, e
cresceu depressa. O menino logo tornou-se capaz de pescar para a mãe, mas não de
M 587A , B SANPOIL: ORIGEM DO INCESTO E DA MORTE andar. Todas as manhãs, ela tinha de instalá-lo na margem de um rio. Um dia, ela o
esqueceu lá. Quando finalmente chegou, atrasada, só encontrou um monte de resina.
Era uma vez um irmão e uma irmã, que se apaixonaram um pelo outro na época em A mulher resolveu fabricar outra criança. Primeiro, fabricou cinco berços de palha
que a moça estava isolada na cabana de puberdade. O rapaz ia encontrá-la ali todas trançada e os empilhou um dentro do outro. Depois, fez explodir uma pedra expondo-a
as noites. Desconfiada, a mãe descobriu sobre o corpo do filho traços de tintura idên- ao fogo. Um fragmento dela saltou e caiu no primeiro berço, queimou-lhe o fundo e caiu
tica à que ela própria aplicava todos os dias na reclusa. Ela contou ao marido que, no berço seguinte, e assim por diante. Quando atingiu o quarto berço, a lasca já estava
preocupado em evitar o falatório dos habitantes da aldeia, de que ele era o chefe, resfriada, e ficou. Rapidamente, a mulher a colocou no quinto e último berço, onde ele se
resolveu, com a concordância da mulher, matar o filho. Apunhalou-o com um osso transformou num menino caolho. “Tudo bem — disse a mulher —, ele vai cuidar de mim”.
pontudo enquanto ele dormia e comunicou discretamente o falecimento. No dia O menino revelou-se bom caçador e pescador, mas ficou cheio de estar só e exi-
seguinte, o corpo foi enterrado no fundo de um despenhadeiro. giu um irmão. A mãe, sempre prevenida, cozinhou raízes selvagens sob as cinzas.

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Tirou a primeira, nem bem ficou cozida. Era uma menina, ela não quis, e jogou fora. produz um resultado imperfeito quando é prematuramente interrompido: a
A segunda era um lindo menino. filha, que a mãe joga fora. Somente o cozimento “no ponto” dará um resul-
Os irmãos sempre caçavam e pescavam juntos. Um dia, ficaram sabendo que tado satisfatório: um filho, que o mito qualifica como “um lindo menino”.
alguém estava tentando criar o sol e a lua, e resolveram se candidatar. Disseram De modo que, depois de M₅₈₇ e M₅₈₈ terem eliminado, respectivamente, o
adeus à mãe. Se tivessem sucesso, ela nunca mais os reveria, mas poderia vê-los no podre e o cru, como símbolos de uma periodicidade viável, o segundo mito
céu, um de dia, e o outro, de noite. inicialmente lança mão do fogo terrestre ou culinário, encarado em suas
Apresentaram-se ao concurso, e todos acharam que eram belos rapazes. Uma duas formas, intensa e lenta. Para compreender o modo como o mito for-
mulher-sapo que vivia longe dali teve vontade de ver os jovens estrangeiros. Ela urinou mula essa oposição, é preciso saber que os Sanpoil chamavam de cozimento
em direção ao céu, começou a chover muito, e o dilúvio apagou todos os fogos. Eles não “sem fogo” aquele em que certos alimentos eram guisados por dois ou três
sabiam para onde ir, quando viram a fumaça que saía da casa da sapa e entraram. Um dias num forno de terra com pedras aquecidas (Ray 1954: 106). Portanto, para
fogo agradável ardia dentro da casa, e eles pediram à “tia” permissão para se aquecerem. eles havia dois tipos de cozimento, diferenciados em relação ao fogo; mas
Mas a sapa não queria ser chamada assim, disse que não tinha família. Saltou no eles também praticavam outros, diferenciados em relação à água, já que suas
rosto do mais jovem e cruzou os braços em torno do pescoço dele, suplicando: “Faça de técnicas culinárias incluiam o cozimento por ebulição ou no vapor, de um
mim sua mulher”. Não houve meio de fazê-la sair dali, e mesmo chegando bem perto lado, e, do outro, a assadura e ressecamento sobre brasas, podendo ou não
do fogo, para queimá-la, o rapaz conseguiu apenas provocar as bolhas do dorso da sapa. ser levada ao estágio do grelhado (ibid.). Consequentemente, para perfazer
Enquanto isso, os animais eram postos à prova para servirem de sol e de lua, mas o emprego dos símbolos culinários, é preciso que os heróis, saídos de dois
sempre havia algo errado: nuvens demais, frio demais, calor demais. No papel de sol, cozimentos, com fogo ou “sem fogo”, também sejam mediatizados pela água.
pica-pau por pouco não queimou tudo, e todos tiveram de se refugiar na água. O A água, como o fogo doméstico, intervém sob dois aspectos. Água celeste
grou (ou a garça) produziu um dia interminável. Quando foi a vez de coiote, ele logo inicialmente, provocada pela sapa, que apaga todos os fogos exceto o seu,
começou a contar tudo o que via lá do céu, e todos acharam que a vida privada das junto ao qual os heróis se beneficiam de um calor tanto mais indispensável na
pessoas tinha se ser protegida contra tais indiscrições. medida em que dele nasceram. A primeira água desempenha, portanto, um
Finalmente, chamaram os estrangeiros. “Está bem — disse o caçula. Eu serei a papel destruidor. O mito lhe opõe uma água terrestre e protetora, no episódio
lua, apesar dessa sapa grudada no meu rosto; e você, meu irmão, será o sol, e bri- seguinte, em que o pica-pau — dono do fogo celeste e destruidor (veja-se cc:
lhará tanto que ninguém notará que você tem um olho só” (Ray 1933: 135-37; cf. Mdhb, 298 quanto ao caráter panamericano desse mitema) — provoca um incêndio
omm: 46 e o grupo de mitos Mdhf e Mdic, ao qual este evidentemente se liga). que obriga a população a se refugiar na água. Torna-se assim necessário que
quatro termos formando uma espécie de grupo de Klein (cf. omm: 293-95 e
M₅₈₇ e M₅₈₈ formam um grupo, como evidencia a complementaridade entre 332) — fogo terrestre e construtor, fogo celeste e destruidor, água terrestre e
os símbolos culinários com que operam. Para justificar o fato de os mortos protetora, água celeste e destruidora — se organizem em sistema e se ponham
nãos ressuscitarem e de a duração da vida humana estar sujeita à periodici- em equilíbrio para que uma periodicidade empírica possa se instaurar. E esta
dade, M₅₈₇ invoca o fenômeno da putrefação. Não se trata disso em M₅₈₈, que se opõe a uma ausência utópica de periodicidade, assim como se opõem a
se atém exclusivamente aos dois outros vértices do triângulo culinário, o cru utopia de um casamento incestuoso que só pode ser concluído com a morte
e o cozido, cujas propriedades analisa metodicamente. Assim como, em M₅₈₇, compartilhada, e o reverso de um incesto no plano alimentar (pois o herói de
os mortos não podem reviver por pertencerem à categoria do podre, tam- M₅₈₈ se desliga da própria irmã a ponto de se recusar a alimentá-la) que, por
pouco pode um nascituro viver se, como o primeiro filho da protagonista de intermédio de uma verdadeira recriação empregando os símbolos metafóri-
M₅₈₈, mantiver-se na categoria do cru, a resina comestível que sua mãe come cos da cultura, desemboca finalmente numa ordem natural regida pela perio-
diretamente nas árvores, e a cuja natureza ele, após uma existência efêmera, dicidade. Pois se é impossível aos mortos ressuscitarem, mas revoltante que
retorna irrevogavelmente. Os filhos seguintes, em compensação, nascem mesmo aqueles que falecem na flor da idade não retornem à vida, a alternân-
do cozimento. Porém, um cozimento violento produz um resultado incom- cia regular entre o sol e a lua, e a duração razoável da vida humana a que ela
pleto: o segundo filho é caolho. O cozimento lento sob as cinzas, por sua vez, imprime seu ritmo, fornecem um meio termo entre esses dois destinos.

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Percebe-se qual o interesse dos mitos sanpoil. Pela dupla homologia que iii. ... Esses espelhos gêmeos
estabelecem entre o plano alimentar e o plano sexual, e entre a periodicidade
biológica e a periodicidade astronômica, eles tocam o ciclo adjacente da avó
libertina. Mas ao mesmo tempo o retransformam, em dois sentidos: um que
leva ao ciclo de Dona Mergulhão, ao restituir a relação incestuosa entre irmão
e irmã, e outro, que faz da periodicidade biológica uma função do surgimento
das artes da civilização, cujo símbolo é, em todos os casos, a culinária. E, final-
mente, M₅₈₇, que transforma M₅₈₈ (ou o contrário), e que emprega o mitema Edward — Dazzle mine eyes or do I see three suns?
do incesto conjuntivo (duplamente invertido por M₅₈₈ para dar conta da Richard — Three glorious suns, each one a perfect sun;
origem do sol e da lua), se liga tanto ao ciclo de Dona Mergulhão, em que o Nor separated with the racking clouds,
incesto desempenha um papel disjuntivo, como à transformação wabanaki que, But sever’d in a pale clear-shining sky.
por meio do primeiro mitema, explica a periodicidade noturna, e não diurna, See, see! they join, embrace and seem to kiss,
com o surgimento da constelação de Orion. Mostramos (supra, p. 176-80) que As if they vow’d some league inviolable:
o ciclo do cego e do mergulhão também se insere no sistema; o que é confir- Now are they but one lamp, one light, one sun.
mado por um detalhe de M₅₈₈: o estratagema do irmão que esconde ovas de In this the heaven figures some event.
salmão em suas perneiras para não dá-las à irmã inverte o da irmã que, no w. shakespeare, King Henry the Sixth, Third Part, Act ii, Scene 1.
ciclo esquimó do cego e do mergulhão, consegue alimentar o irmão esfomeado
fingindo comer alimentos que esconde debaixo de suas roupas, junto à pele.
Ela comete assim uma espécie de incesto, por um bom motivo, como parece Podemos agora iniciar a segunda etapa da demonstração. Para tanto, será
confirmar o texto do mito, que nesse momento emprega o termo /uuinik/, apa- novamente preciso voltar para trás. Vimos que os mitos klamath e modoc
rentado a outros que evocam casamento (cf. Savard 1966: 128). sobre Dona Mergulhão (M₅₃₈, M₅₃₉) contam uma estranha história de
Constata-se, portanto, que toda a parte setentrional da América do Norte gêmeos póstumos, primeiro colados e unificados pela avó, que posterior-
é palco de uma vasta permutação. Da transformação wabanaki no extremo mente se desdobram, para dar lugar a um par de crianças de mesmo sexo
leste passa-se para o ciclo de Dona Mergulhão, no extremo oeste; depois, ou de sexos diferentes. Mas os mitos não se preocupam absolutamente em
subindo de lá para o norte, ao ciclo da avó libertina, que conduz à dupla motivar essas manobras sucessivas, e a fábula parece ser gratuita e incoe-
transformação sanpoil sobre a origem da morte e a do sol e da lua. Pros- rente, ou até contraditória. Para que soldar duas crianças numa só, já que
seguindo para o norte, encontra-se o ciclo do cego e do mergulhão, que se esse estado tem de ser provisório, visto que tudo o que o personagem bipar-
desenvolve do oeste para o leste, levando finalmente de volta à transforma- tido deseja é restabelecer sua dualidade? Antes, porém, de taxarmos os mitos
ção wabanaki. Porém, nessa ponta, as coisas se complicam em razão de uma de arbitrários, perguntemo-nos qual seria a situação na hipótese (verificada
torsão adicional. Com efeito, os mitos esquimó (cf. M₁₆₅, M₁₆₈; cc: 302-03), com tanta frequência em outros casos) de os mitos klamath e modoc con-
que situam a origem do sol e da lua no suicídio ou na fuga de um casal de tarem ao contrário uma história cujo sentido só se encontra la versão reta.
irmãos incestuosos, invertem, por assim dizer in loco, o ciclo do cego e Pois a segunda lei da termodinâmica não se aplica ao campo das operações
do mergulhão (em que irmão e irmã contraem uniões exogâmicas) e, ao míticas, onde os processos são reversíveis e a informação que veiculam não
mesmo tempo, se opõem diametralmente à transformação wabanaki, em se degrada, simplesmente passa para o estado de latência. Mas permanece
que os amantes se unem na morte, em vez de um tentar fugir do outro per- sempre recuperável, e o papel da análise estrutural é restaurar, para além da
petuamente, e em que estão na origem de uma constelação. Assim, à relação aparente desordem dos fenômenos, essa ordem subjacente.
de transformação virtual, que o inventário dos estados intermediários nos Tomemos como ponto de partida aquilo que chamamos de transforma-
permitiu evidenciar entre os estados extremos do grupo, acrescenta-se, nas ção wabanaki. Ela conta uma história inteiramente satisfatória do ponto de
regiões em que estes se encontram, uma relação de transformação atual. vista lógico, se não do ponto de vista da experiência. Tristão e Isolda exóticos,

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um irmão e uma irmã apaixonados um pelo outro se unem fisicamente na informe, em M₅₆₅a, uma menina, que nem é uma irmã, e que mesmo assim
morte, apesar de seus familiares, que se esforçam por mantê-los separados. não se casará com o rapaz, tem o rosto golpeado pelo falso irmão porque
Consolidados num ser único, eles reaparecem primeiro com o aspecto de ela o informa; e ela por isso se transforma em toupeira, criatura subterrâ-
um mergulhão, depois com o da constelação de Orion. Supondo-se que, nea, em oposição diametral não só com o irmão adotivo que voa pelos ares,
para inverter a mensagem desse grupo de mitos, deva-se também inverter o como também com o o astro que brilha no firmamento. Aliás, o herói irá
curso da narrativa, seria preciso partir de um irmão e uma irmã unificados separar-se definitivamente dela, subindo ao céu, onde se casa com a filha do
por vontade de seus familiares, e que realizem eles próprios sua separação. Trovão, num casamento dos mais afastados.
Meio de um incesto conjuntivo no primeiro caso, o mergulhão torna-se Portanto, M₅₆₅a fornece a contrario a prova de que o incidente do sol
causa de um incesto disjuntivo no outro. ferido em M₅₃₈ desempenha uma função pertinente, que não pode ser ape-
Se essa interpretação for correta, deveria decorrer disso que versões tais nas a de explicar a origem das manchas solares, visíveis a olho nu pelos
como M₅₃₉, em que o personagem bipartido se desdobra em dois irmãos, em índios, observadores extremamente treinados, quando o astro é encoberto
vez de um irmão e uma irmã, possuem um caráter derivado e constituem por uma bruma leve (cf. Reichard 1947: 63 n. 1). Sendo um fenômeno diurno
uma estapa subsidiária na cadeia de transformações. Voltaremos a isso (infra, em vez de noturno, que consiste em marcas escuras sobre fundo claro, em
p. 205ss). Contudo, antes de deduzir as consequências de uma hipótese, é pre- lugar de marcas claras sobre fundo escuro, as manchas do sol invertem, efe-
ciso firmar suas bases. No caso específico de que estamos tratando, a prova tivamente, uma constelação.
depende inteiramente de duas condições: que os gêmeos desdobrados das ver- Porém, pelo menos em relação ao primeiro ponto, elas também invertem
sões ocidentais tenham, como os irmãos unificados da transformação waba- as manchas da lua, igualmente escuras em fundo claro e inscritas na orbe de
naki, uma conotação astronômica e, em seguida, que tal conotação se oponha um corpo celeste, mas pertencente ao dia num caso, e à noite, no outro.
à outra do mesmo modo que os dois grupos de mitos se opõem entre si. Não é difícil, aliás, efetuar a retransformação:
Consideremos inicialmente o mito klamath M₅₃₈. Nele, os gêmeos cola-
dos se desdobram em um irmão e uma irmã, atormentados pela ignorância M₅₃₈ (origem das o sol, marcado no rosto pela
em que se encontram quanto à própria origem. A irmã persegue o irmão manchas do sol) irmã, informa os irmãos de
com perguntas e, como ele não tem respostas, ela resolve interrogar o sol. sua condição isolada
Para obrigar o astro a falar, ela dispara uma flecha que lhe perfura o rosto,
M₃₅₈, ₃₉₂ etc. (origem das o homem, marcado no corpo
deixando uma marca escura que permanece visível (supra, p. 42, 46). O
—Y manchas da lua) por sua irmã, informa-a do grau
mesmo incidente aparece em forma invertida numa versão tillamook que,
de proximidade entre eles.
como mostramos, ilustra um estado limite do mito de Dona Mergulhão
(M₅₆₅a; supra, p. 150). Nela, o filho orfão de um casal incestuoso é aco-
lhido por uma família que o mantém sem saber a própria origem. Mas a Essa observação coloca em evidência um fato de capital importância. Desde
filha da casa não gosta dele, e multiplica as alusões desagradáveis, até que o extremo norte até o extremo sul do Novo Mundo, existe um grupo de mitos
o menino, exasperado, joga sua bola no rosto dela. Tentanto se proteger, a a que nos referimos muitas vezes (cc: 302; mc: 172; omm: 73, 321; supra, p. 189),
menina, choramingando, esfrega o nariz, que vai crescendo, e os olhos, que cuja função é explicar, concomitantemente, a origem do sol e da lua e a das
vão diminuindo, e seus punhos ficam colados no pescoço. Ela acaba se trans- manchas desta. Conta-se que elas provêm das marcas escuras feitas por uma
formando em toupeira, enquanto o menino obtém o Pássaro-Trovão como jovem no rosto de um visitante noturno cuja identidade ignorava, e que era seu
espírito guardião. Então, os dois associam seus respectivos talentos — ela, o próprio irmão. A moça, revoltada, foge para o céu e torna-se o sol; seu irmão,
de andar por debaixo da terra, ele, o de voar nos céus — e assim conseguem transformado em lua, se esforça em vão por alcançá-la. Agora compreende-se
matar a ogra responsável pelo comportamento incestuoso e pela morte sub- porque esse vasto grupo, que situa o surgimento de uma configuração astro-
sequente dos pais do menino (E.D. Jacobs 1959: 45-54). De modo que, se em nômica num incesto disjuntivo, faz parte do mesmo conjunto daqueles que
M₅₃₈, uma gêmea, futura incestuosa, perfura o rosto do sol para que ele a discutimos até o momento. Poder-se-ia até dizer que ele constitui o estado

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inicial mais plausível para toda a série de transformações, devido à sua vasta cada um deles descreve as manchas da lua ou do sol, do irmão ou da irmã
difusão, e também à sua armação rígida, que limita sua plasticidade. incestuosos, ou ainda as da plumagem do pássaro. Como prova de que o
Basta uma só transformação, com efeito, para gerar a partir desse grupo mito sobre a origem do sol e da lua se inverte no de Dona Mergulhão, já invo-
de mitos o que isolamos entre os Wabanaki. O incesto disjuntivo devido à camos um argumento: as manchas que revelam o infrator aparecem ora no
vontade de um só torna-se conjuntivo, de comum acordo, e resulta daí ou irmão, ora na irmã, e no primeiro caso, são escuras em fundo claro (homó-
a origem do sol e da lua com suas manchas, ou a de Orion e das Plêiades. logas às manchas da lua), e no segundo, claras em fundo escuro (homólogas
Vê-se, ao mesmo tempo, por que razão os mitos colocam Orion e as Plêiades às do Mergulhão tal como os próprios mitos as descrevem). Notamos tam-
em oposição diametral para com os dois astros. Essas constelações são visí- bém (cf. supra, p. 66, 85, 105, 108, 121) que várias versões do mito de Dona
veis: 1) somente à noite, 2) durante metade do ano, 3) mas sempre juntas. Em Mergulhão precisam que o irmão e a irmã, caminhando do leste para o oeste,
compensação, sol e lua são visíveis: 1) um de dia, a outra à noite, 2) durante estavam juntos, e voltaram separadamente na direção oposta. Ora, o sol e a
o ano todo (ainda que de modo descontínuo, devido às nuvens e noites sem lua também caminham do leste para o oeste, mas separados.
lua), 3) mas, ainda assim, raramente juntos. Da Califórnia ao Oregon, não Consequentemente, um detalhe do mito de referência M₁, que pode-
faltam mitos para explicar como um astro primitivamente único e que ilu- ria parecer insignificante, adquire uma grande importância. Depois de ter
minava continuamente o céu se desdobrou para gerar o sol e a lua, ou foi cometido o incesto, o herói é delatado pelas penas de seu adorno que ficam
morto por dois irmãos que se tornaram sol e lua e, desde então, garantem a coladas no cinturão escuro de casca da mãe (cc: 43). Isso quase bastaria para
alternância entre dia e noite (Sapir 1909a: 171-73, 307-11; Boas 1893: 157; etc.). inserir o mito bororo na mesma coluna dos de Dona Mergulhão, mas não
A versão wintu enfatiza a incompatibilidade entre os dois astros: “Agora — no mesmo nível, em razão do caráter periódico da transformação. Como
diz o Ser supremo ao sol — você pode ir para o leste e começar seu labor. uma tabela periódica, esta segue vários eixos, um denotando o lugar que
Você irá deslocar-se o tempo todo, dia após dia, sem parar. Todos os seres cabe a cada mito no seio de uma série contínua, outro invertendo a codifica-
vivos irão vê-lo, com seu bastão ardente. E você irá ver tudo o que se passa ção, alternadamente astronômica e meterológica, dos estados consecutivos
no mundo, mas será solitário. Ninguém jamais poderá fazer-lhe companhia para cada mudança de hemisfério, devido ao fato de as mesmas conjunturas
ou acompanhá-lo em suas andanças.” É, portanto, significativo que um mito astronômicas conotarem estações opostas em cada caso.
esquimó do Alasca (M₅₉₀; Spencer 1959: 258) tome o sentido oposto ao da Nos dois volumes anteriores (mc: 239; omm: 29-30), mitos da Guiana
problemática habitual e deva fazer dos dois astros cônjuges em desacordo que parecem fazer de Orion uma espécie de contrapartida noturna do sol já
para explicar como, de modo totalmente excepcional, é possível que sejam tinham chamado nossa atenção. Os Kaliña dizem que a constelação “chama
vistos ao mesmo tempo. e apóia” o astro do dia. Um personagem “pervertido” a incarna; gostaríamos
O mito klamath M₅₃₈ ilustra o terceiro estado de uma transformação que, de saber se, como entre os Wabanaki, deve-se entender nisso um herói inces-
tendo partido de um incesto disjuntivo para explicar, em conformidade com tuoso. A constelação das Plêiades trava relações análogas com a lua: variante
os dados da observação, a existência da marcha do sol e da lua com suas combinatória da auréola lunar segundo os Tukuna (M₈₂; cc: 166), em corre-
manchas, tinha primeiramente revirado a proposição inicial e explicado, por lação negativa com a lua com respeito ao mel na mitologia do Chaco (mc:
um incesto conjuntivo, a existência da marcha das Plêiades e de Orion. No 94-96). Na América do Norte, os Blackfoot (infra, M₅₉₁) colocam em cor-
segundo estado, essas constelações tinham-se apresentado sob a aparência relação a lua e as Plêiades. Para os Thompson (M₄₀₀b) estas são “amigas
do Mergulhão, pássaro manchado de branco em fundo escuro (ao contrário íntimas” daquela, mas também responsáveis por suas manchas e, portanto,
da lua). Com M₅₃₈, uma nova torsão leva de volta ao incesto disjuntivo, por por sua luminosidade diminuída. Tais correspondências nos pareceram, a
intermédio do mesmo Mergulhão, mas para explicar a origem das manchas princípio, enigmáticas, mas agora percebemos que se baseiam numa trans-
do outro astro, uma questão que o primeiro estado do grupo tinha deixado formação que permite gerar toda uma série de mitos:
em suspenso.
Para determinar o lugar que cabe a cada mito no conjunto das transfor- (céu diurno) [sol//lua] —Y (céu noturno) [Orion ∪ Plêiades].
mações, dispomos portanto de um elemento diagnóstico, no modo como

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Cabe, notar, entretanto, que a fórmula é desequilibrada, já que cada um dos também sua identidade moral, provocam o aparecimento das manchas sola-
termos pode ser analisado do seguinte modo: res, fenômeno astronômico. Os mesmos irmãos então contraem uma união
incestuosa, a que a avó põe fim matando o marido; ela depois morre, em
a) (Orion, noturno) ≡ (sol, diurno) decorrência de um plano totalmente orquestrado pela neta, que aproxima a
b) (Plêiades, noturnas) ≡ (lua, noturna) água e o fogo terrestres. No final, a jovem viúva se junta ao esposo na morte.
Pode-se dizer, portanto, que esse segundo incesto, ao contrário do anterior,
ou seja, três termos noturnos, e apenas um diurno. Não seria exatamente apresenta um caráter conjuntivo, como o da transformação wabanaki; tanto
para superar essa dificuldade que os Tukuna aproximam as Plêiades da mais que, também nesse caso, ele acarreta indiretamente a fusão de dois per-
auréola lunar, em vez do próprio astro? Veremos em breve (205ss) emer- sonagens, não mais o irmão e a irmã, pois que M₅₃₈ já mobilizou esse motivo
gir na série de transformações uma família de fenômenos celestes mais ou ao invertê-lo, mas o filho da moça e o demiurgo, que o introduz no próprio
menos diretamente associados aos dois astros; eles enriquecerão o reper- corpo. Sua posterior separação possibilita um terceiro incesto, real como o
tório com termos que transcendem ou seccionam as categorias demasiado segundo, em forma atenuada (não envolve consanguíneos, mas um sogro e
simples de diurno e noturno. Mas podemos desde já conceber que as man- as esposas de seu suposto filho), e disjuntivo como o primeiro, pois provoca
chas do sol possam constituir um aspecto noturno do dia, e a auréola lunar, a separação das esposas infratoras, transformadas em pássaros selvagens
um aspecto diurno da noite. segundo várias versões. A não ser pelo incesto conjuntivo, desejado pelos
Para validarmos provisoriamente as proposições acima e confirmarmos dois protagonistas do mito wabanaki, e do qual resulta a incomporação do
que seu campo de aplicação cobre ambos os hemisférios, determinaremos bebê pelo demiurgo klamath, tudo opõe os dois pares de indivíduos que
a realidade de uma transformação bastante simples, que permite passar acabamos de mencionar: parentes em linha colateral versus direta, de sexo
dos mitos wabanaki aos da região amazônica discutidos em Do mel às cin- oposto versus do mesmo sexo, parceiros versus rivais... O que é compreen-
zas (pp. 232-33). Nestes, um irmão condena a irmã à vingindade e ao celi- sível, considerando-se que a transformação wabanaki destina seus dois
bato e, para melhor proteger sua virtude, exila-a no céu, onde ela se torna heróis a se tornarem a constelação de Orion e (ou) a das Plêiades, e sabemos
a Plêiade. Ou seja, um não-incesto disjuntivo, que acarreta a metamorfose (supra, p. 39-40, 61, 70) que os mitos klamath colocam o demiurgo e seu filho
da irmã pelo irmão, em Plêiade (M₂₇₆), em vez de um incesto, conjuntivo, em correlação com o sol e a lua. Mas não se trata aqui de uma verdadeira
que metamorfoseia o irmão e a irmã na mesma constelação, ou na conste- equivalência, ou melhor, esta permanece em estado virtual, já que M₅₃₈ não
lação vizinha, Orion (M₅₇₅a, b). Independentemente, cada uma das versões especifica em lugar algum tais conotações. Basta-lhe que os dois persona-
transforma, aliás, o mito gerador do grupo, sempre presente, aquele que, a gens ajam de acordo com suas respectivas vocações astronômicas: volun-
partir do incesto disjuntivo entre um irmão e uma irmã, faz aparecer a lua e tariamente segundo M₅₃₀, involuntariamente segundo M₅₃₈, o demiurgo
o sol, cuja alternância, nos curtos períodos diurno e noturno, se situa a meio provoca um incêndio de origem celeste, do qual o filho protege a si mesmo
caminho entre a periodicidade sazonal e a mera ausência de periodicidade. e a seus familiares por meio de uma intervenção que o assimila a uma água
também de origem celeste.
! Recorrendo sucessivamente a três modalidades distintas de incesto (dois
incestos entre colaterais, um estéril e outro fértil, e um incesto às expensas
Tudo estaria muito bem se M₅₃₈ se contentasse em alinhar um único incesto de um descendente, que envolve suas esposas estéreis e deixa a esposa fértil
àquele mencionado pela transformação wabanaki e, antes dela, pelos mitos de fora), M₅₃₈ realiza três operações. A primeira engendra as manchas sola-
sobre a origem do sol e da lua. Porém, em M₅₃₈, não há um incesto, mas res, ignoradas pelo primeiro estado do grupo (M₁₆₅-M₁₆₈, M₃₅₈ etc., inte-
três. O primeiro, disjuntivo embora não realizado, envolve uma mulher ressam-se sobretudo pelas manchas da lua), e para o qual elas representam
empreendedora e seu irmão reticente. Provoca um incêndio terrestre e o nas- o que seria chamado em inglês de unfinished business. A segunda inverte o
cimento póstumo de duas crianças que são coladas uma à outra pela avó. As segundo estado do grupo (M₅₇₅a, b), relativo a Orion e às Plêiades, ao resti-
crianças conseguem recuperar sua identidade física e, buscando recuperar tuir personificações do sol e da lua cuja identidade astronômica permanece

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subentendida. A terceira, finalmente, qualifica duas divindades antropomor- código astronômico código meterológico
fas que substituem os astros em termos exclusivamente meterológicos, mas
ainda por intermédio de metáforas. américa 1/ M₁₆₅ etc. (incesto disjuntivo)
De tal modo que é o terceiro incesto de M₅₃₈ que, ao imprimir o derra- do norte Y sol, lua e suas manchas
deiro movimento à intriga, gera a sequência de transformações que, para
simplificar, chamaremos de primárias, com o intuito de deixar um lugar 2/ M₅₇₅a, b (incesto conjuntivo)
para outras, que lhes estão subordinadas (infra, p. 205ss). Passa-se facil- Y Orion, Plêiades
mente do episódio final de M₅₃₈ para a transformação ilustrada pelos mitos
yurok, wiyot e makah (M₅₅₇-M₅₅₈), em que os demiurgos, anteriormente 3/ M₅₃₈ (1) (incesto disjuntivo)
Y manchas do sol
congruentes ao sol e à lua, se invertem em direção às constelações noturnas
e invernais, Orion e Plêiades, cuja identidade astronômica eles continuam
4/ M₅₃₈ (2) (incesto conjuntivo)
não assumindo, mas cujas prerrogativas meterológicas igualmente exercem,
Y [sol, lua] (sentido figurado)
como anunciadores de chuva e tempestade.
Mas também se passa para o mito de Dona Mergulhão (M₅₄₆-M₅₅₅), que
5/ M₅₃₈ (3) (incesto disjuntivo)
inverte o do desaninhador, de que certas variantes (M₅₅₀) fazem o ritmo
Y [fogo, água celeste] (sentido
sazonal derivar da busca de um irmão pela irmã (metáfora de um incesto figurado)
conjuntivo, ainda que inspirado por sentimentos puros) e da execução,
desejada pela mesma irmã, da verdadeira incestuosa, metamorfoseada em 6/ M₅₅₈b,c (incesto ausente, pai e
pássaro anunciador da primavera. Uma outra transformação primária, esta filhos aliados)
envolvendo mudança de hemisfério, conduz ao mito bororo de referência Y [Orion], estação das chuvas
M₁, no qual a configuração incestuosa é revirada, em relação ao desaninha-
dor norte-americano: filho com esposa do pai em lugar de pai com esposa 7/ M₅₅₇-M₅₅₈a (incesto disjuntivo)
do filho. E, ao mesmo tempo, por razões de ordem cosmográfica, o mesmo Y [Orion], estação das chuvas
significado meterológico, a estação das chuvas, recebe por significante tácito
a constelação do Corvo, em vez de Orion. Mostramos, em O cru e o cozido 8/ M₅₄₆-M₅₅₅ (incesto conjuntivo)
(p. 205-45), como essa transformação se encadeia na última, sempre na Amé- (sentido figurado, irmã e irmão
rica do Sul. O mito xerente (M₁₂₄) que a ilustra impõe ao mito de referência aliados) Y bom tempo
M₁ uma série de inversões radicais, para poder explicar a origem de Orion e
das Plêiades, de um lado como significados astronômicos e, do outro, como
significantes da estação seca. Toda essa argumentação pode ser resumida no
quadro da página seguinte.
américa 1/ M₂₅₃, M₃₅₈ etc.(incesto disjuntivo)
Se deixarmos de lado seu lado esquemático e suas lacunas, esse qua- do sul Y sol, lua e suas manchas
dro coloca duas questões. A difusão panamericana do mito sobre a origem
incestuosa do sol e da lua autorizaria plenamente a considerar o grupo como 2/ M₁ (incesto disjuntivo)
fehcado. Resta a saber se seria possível efetivar tal fechamento, voltando de Y [Corvo], estação das chuvas
M₁₂₄ a mitos norte-americanos. Em segundo lugar, seria preciso localizar, no
hemisfério norte, pelo menos sinais de uma transformação que engendre a 3/ M₁₂₄ (incesto disjuntivo)
constelação do Corvo, como faz o mito de referência sul-americano. Exami- Y Orion, Plêiades . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . estação seca.
nemos essas duas questões, uma após a outra.

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Existe na América um mito sobre a origem das Plêiades em que um já que abusam da mãe, atraindo-a para a casa dos homens com um pretexto
bando de crianças gulosas ou mal-nutridas, cheias de rancor para com seus da ordem do vestuário (para ajudá-los a se pentearem e adornarem, dizem
pais, resolvem subir ao céu e transformar-se em constelação (cc: 246-49). eles), e, em M₅₉₁, realmente por um caso de roupa. Também nos dois casos
Esse grupo está claramente articulado com M₁₂₄, no qual realiza uma dupla as consequências são as mesmas, a origem da água terrestre e a da estação
transformação, passando do código sexual para o código alimentar, e da seca, que é água celeste negada. A mudança de hemisfério deixa a armação
satisfação para a frustração. intacta, afeta apenas o momento em que ocorre a transformação dos heróis
O caráter panamericano desse mito, demonstrado nos volumes anterio- em Plêiades, ou no início ou no fim de um período de seca.
res (cc: 246-52; mc: 95, 111; omm: 39), prova que o grupo também se fecha em Não se pode deixar de notar o papel dos cães, mediadores entre a huma-
M₁₂₄. É inclusive possível mostrar que, nesse ponto do ciclo, o fechamento nidade e as forças celestes e também donos da água potável, pois esse duplo
tem um caráter real, e não apenas virtual. Pois os Blackfoot que, ao pé das papel ao mesmo tempo reproduz e inverte o papel que lhes atribuem, mais a
Rochosas, são os representantes mais ocidentais da família linguística algon- oeste, os mitos de pequenos grupos algonquinos isolados na costa do Pacífico,
quina, possuem um mito das Plêiades a que já nos referimos (cc: 248 n. 2), de donos do fogo de cozinha. São mitos (M₅₅₉) que transformam os de origem
no qual é perceptível uma interseção dos dois outros: da chuva, oposta ao fogo doméstico, ao passo que aqui, a chuva apresenta uma
relação de complementaridade para com a água de fonte. Esse não é, aliás, o
M 591 BLACKFOOT: ORIGEM DAS PLÊIADES único caso em que os mitos dos Blackfoot e de seus vizinhos de língua sioux,
os Assiniboine, apresentam notáveis afinidades com os da região das Casca-
O pelo dos jovens bisões, na primavera, era especialmente apreciado pelos índios des. Ainda a respeito da origem das Plêiades, outras versões blackfoot (M₅₉₁b,
por sua cor e maciez, e os que tinham posses buscavam-nos para vestir seus filhos. McClintock 1910: 49; cf. também M₅₉₁c-d, Uhlenbeck 1911-12: 112-13; Josselin
Houve, outrora, seis irmãos, que infernizavam os pais para terem essas peles, mas os de Jong 1914: 37-38) explicam porque os meninos não conseguiram as peles
pais ou eram pobres demais, ou negligentes demais, ou estavam ocupados demais que queriam: os jovens bisões as vestem somente na primavera, período em
para poderem satisfazer a vontade de seus rebentos. Quando acabou a caça de pri- que as Plêiades não são visíveis. Consequentemente, quando a constelação
mavera, os jovens, contrariados, resolveram ir embora para o céu. Logo chegaram à está presente no céu noturno, a bela pele está ausente, e quando os bisões a
casa de um velho casal, Sol e Lua, e expuseram-lhes suas queixas. Pediram ao Sol, que possuem, é a constelação que desaparece. As peles de primavera, na terra, e as
parecia compreendê-los, que os vingasse, privando as pessoas de água. O astro no Plêiades, no céu, são regidas por uma relação de incompatibilidade.
início hesitou, mas, instigado pela esposa, acabou concordando. Essa problemática das Plêiades se encontra igualmente na região das Cas-
A terra passou a sofrer um calor tórrido durante o dia; e, durante a noite, o luar cades. Os Shasta (M₅₉₁e, Dixon 1910: 35-36) ligam o nascimento da constela-
era tão intenso que o tempo não ficava mais fresco. Os lagos e rios começaram a ção a um incidente entre Coiote e Guaxinim. O primeiro matou o segundo
ferver. Toda a água do mundo evaporou. Os homens foram salvos pelos cães, animais por descuido e o deu de comer a seus filhos. Mas esqueceram de servir o
domésticos, que cavaram os leitos ressecados até a água jorrar das profundezas. É a caçula que, para vingar-se, disse aos pequenos guaxinins o que tinha acon-
origem das fontes, e a razão do respeito que os homens demonstram para com seus tecido com o pai deles, e eles mataram todos os filhos de Coiote, exceto seu
cães. No sétimo dia, os cães começaram a uivar para a lua, na esperança de que ela, cúmplice, que levaram consigo para o céu. Hoje, são eles que se vê nas Plêia-
que não tinha piedade de seus donos, pelo menos tivesse piedade deles. Os astros des. No inverno, quando os guaxinins hibernam, essas estrelas são continua-
aceitaram fazer chover. Os rapazes ficaram no céu, e se tornaram as Plêiades (Wissler mente visíveis e brilham muito. Mas quando os guaxinins saem, no verão, as
& Duvall 1908: 71-72). Plêiades se retiram. Também nesse caso, o esquema etiológico se baseia na
incompatibilidade das duas conjunturas, uma terrestre, a outra celeste.
É digno de nota que, para evocar um período em que falta água celeste, tanto Percebe-se que a mitologia dos Blackfoot lança uma ponte entre con-
M₅₉₁ como M₁₂₄ precisem introduzir o motivo de uma água de origem sub- juntos muito afastados, mas cujo confronto, levado a cabo por meios mais
terrânea, como a única capaz de suprir à ausência da outra. Em ambos os diretos, já nos tinha levado a aproximar, os mitos da região das Cascades,
casos, os irmãos são culpados de descomedimento, no plano sexual em M₁₂₄, de um lado, e, do outro, os das regiões tropicais da América do Sul. Nesse

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sentido, convém assinalar uma outra transformação também operada por trouxeram consigo, ao lado da história dos gêmeos desdobrados (supra,
essa mitologia, pois permite articular com os demais um último grupo de p. 36), motivos bastante arcaicos (cf. infra, p. 499), conhecem bem a cons-
mitos sobre a origem de Orion e das Plêiades, cujo lugar no quadro geral telação do Corvo, que analisam o quadrilátero irregular em “pés afastados”,
que estamos montando ainda não determinamos. São os mitos guianenses “sua pena”, “seu corpo”, “seu bastão”, “seu fogo” (Franciscan Fathers 1910: 43).
(M₂₈, M₁₃₅-M₃₆, M₃₆₂ etc.) que derivam essas constelações de um persona- Seu habitat atual se situa, a bem dizer, ainda mais ao sul, por volta do 37°.
gem mutilado. Num mito blackfoot (M₅₉₂, Wissler & Duvall 1908: 72-73), Além disso, ainda que os índios do noroeste norte-americano tivessem
uma mulher adúltera que abandonou os seus para ir viver com um perso- conhecido e nomeado o Corvo, não haveria razão alguma para que lhe tives-
nagem lunar se disfarça de homem para rever os filhos. Eles a reconhecem, sem dado o mesmo nome que nós lhe damos desde a Antiguidade. O que
e depois o pai quer matar a infiel, mas ela escapa pelo buraco da fumaça, torna ainda mais intrigante o fato de encontrar entre eles um mito que não
como um meteoro, e o homem só consegue cortar-lhe a perna com um facão. relaciona o pássaro a uma constelação, mas contam a seu respeito uma his-
A mulher volta para junto da lua e seu amante. Ainda é possível perceber sua tória quase idêntica à que os gregos invocavam para explicar a origem da
forma mutilada sobre o astro. constelação do Corvo:
Esse mito transforma os das Guianas em dois sentidos. O mitema do per-
sonagem de perna cortada nele conota as manchas da lua (escuras em fundo M 593 TAKELMA: O CORVO SEDENTO
claro), em vez de uma constelação (clara em fundo escuro). Essa revirada do
código astronômico é função de uma outra, expressa em termos sociológicos: Faltava água na aldeia. Os lagos e rios estavam secos. Mandaram Gralha e Corvo, duas
em vez de um incesto entre irmãos, trata-se aqui de um adultério com um per- moças que passavam pela primeira menstruação, pegar água no oceano. Corvo achou
sonagem celeste, afastado, portanto. E esse motivo do adultério, que inverte ou o caminho longo demais, e resolveu urinar no balde que levava.8 Não enganou nin-
abranda o incesto, caso o parceiro seja um estrangeiro ou um próximo, per- guém e levou uma bronca. Gralha retornou muito depois, trazendo água potável.
mite ligar o mito blackfoot às versões guianenses em que ora é uma mulher Como punição, Corvo foi condenada a passar sede durante o verão e só encontrar
que mata o marido para ficar com o irmão dele, ora um homem que mata o o que beber no inverno. Por isso, os corvos não bebem durante a estação quente e
irmão para ficar com a esposa dele. Em Do mel às cinzas (p. 225-28, 235-36), são roucos por causa da garganta seca (Sapir 1909b: 163).
mostramos que a heroína lasciva dos mitos guianenses transforma a gulosa de
mel do Chaco. Seria portanto lícito buscar, na escala do continente, um novo As analogias entre o mito grego (cc: 243) e o mito americano são impressio-
fechamento na série de transformações que levasse da moça louca por mel nantes. Em ambos os casos, corvo é mandado buscar de beber. Por avidez ou
na América do Sul para Dona Mergulhão, louca por seu delicioso irmão nos por preguiça, deixa de cumprir sua missão, que é a de compensar a falta de
mitos do noroeste da América do Norte, com mais rapidez do que esperado. água celeste com a água terrestre que é a única disponível, em fontes ou no
oceano. Também nos dois casos o corvo recebe o mesmo castigo, ter sede
! durante o verão e ficar com a voz rouca, devido à garganta ressecada. Mos-
tramos, em O cru e o cozido, que o mito grego, relativo ao verão, coincidia
A segunda das questões que colocamos dizia respeito à constelação do Corvo. com um mito sul-americano sobre a origem de Orion e das Plêiades (M₁₂₄),
Embora pertencente ao céu austral, ela permanece teoricamente visível constelações estivais na América do Sul, dada a mudança de hemisfério, mas
durante os meses de verão em altas latitudes, dificilmente visível, é verdade, que evocam o início, e não o fim, da estação seca. E vimos que os Blackfoot
menos em função de sua posição muito baixa no horizonte do que da longa têm um mito (M₅₉₁) muito semelhante a M₁₂₄ para explicar a origem das
duração dos dias árticos. Corvo não parece, de fato, ter lugar nas represen- Plêiades, nesse caso anunciadoras da período das chuvas. Em tais condições,
tações e crenças dessa parte da América, carência essa talvez relacionada à não é inconcebível que, invertendo-se sem mudar de hemisfério, esse mito
observação de Spier (1930: 221) de que os Klamath, que vivem mais ao sul,
nas vizinhanças de 43° lat. N, só denominavam as constelações de inverno. 8 . Invertendo o comportamento da Sapa de M₅₈₈ (supra, p. 187), que urina em direção
Mas os Navajo, que são atabascanos vindos do norte e que possivelmente ao céu para fazer chover.

214 | Terceira parte: Cenas da vida privada ... Esses espelhos gêmeos | 215
ou outros do mesmo tipo tenham tomado uma forma muito próxima à do este fez o ladrão passar sede: á água escorria pelos lábios dele, e tudo à sua
mito que, em latitudes comparáveis, servia, no Velho Mundo, para explicar a volta secava. Ele acabou se transformando em pássaro. Os Tillamook con-
origem de uma constelação ligada à estação seca. tam (M₅₉₇a, Boas 1898a: 140) que a Gralha deu sua voz ao Pássaro-Trovão
Faltaria ainda que M₅₉₃ fosse passível de receber uma conotação astro- em troca da maré baixa, para poder pescar caranguejos e peixes. Mas aquela
nômica, além da conotação meterológica, que o texto deixa evidente. A maré sobrenatural era baixa demais e, assustada com os monstros marinhos
história do corvo sedento pertence a um vasto conjunto mitológico regis- que ela deixava aparecer, Gralha pediu que a água recuasse menos.
trado em toda a costa do Pacífico, dos Tlingit ao norte até os Coos, de que Os Coos também contam (M₅₉₇b-f, Frachtenberg 1913: 14-19; 1914: 34-38;
Boas (1916: 656-57) fez um inventário parcial e provisório. As versões tlingit Jacobs 1940: 234-35, 241-42) como Corvo trocou sua voz, antigamente pode-
(M₅₉₄a, Swanton 1909: 9-10, 120-21, 418) contam que tempestades contínuas rosa, com o Trovão, “pai dos alimentos”, pela dele e por uma das duas marés
provocaram inundações e fome. Corvo, demiurgo e enganador, conseguiu diárias. Em seguida, ele conseguiu a outra em troca do raio, que era capaz
escapar das águas subindo até o teto do mundo, ao qual ficou pendurado de produzir piscando os olhos. Graças a ele, duas vezes por dia, os homens
pelo bico. Quando a água baixou à metade, ele desceu de volta à terra e che- podem se precaver contra a fome recolhendo frutos do mar.
gou à casa de uma velha, que era a dona das marés. Ela não podia acreditar Os Squamish (M₅₉₇g, Hill-Tout 1900: 544-45) transpõem o esquema
que houvesse ouriços para comer pois, naquele tempo, a maré sempre estava espacial da alternância das marés para o registro temporal, e assim restituem,
alta e não era possível pegar os produtos do mar, que nunca recuava. Irri- graças a uma transformação simples, mar —Y céu, a função meterológica que
tado com a incredulidade de sua anfitriã, ele enfiou-lhe no corpo espinhos, cabe ao pássaro no Velho Mundo: para salvar os seus de uma seca persistente,
restos de sua refeição, e ordenou ao mar que recuasse. “Toda a costa secou, Corvo roubou o filho do dono da chuva, e só concordou em devolvê-lo em
nunca dantes fora vista maré tão baixa. Salmões de todas as espécies, baleias, troca de chuvas ocasionais. “Por isso há dias em que chove, e outros em que
focas e outras criaturas marinhas jaziam na areia. Juntaram provisões que não chove. Agora, o tempo seco e o tempo úmido se alternam.”
duraram muito, muito tempo”. É a origem das marés. Swanton (2: 120 n. a, Como esse mito salish [salish? ou seria squamish?], os dos Coos mos-
M₅₉₄b) faz alusão a uma outra versão, em que a egoísta dona dos alimentos tram que, no pensamento indígena, a alternância das marés é também
se vê obrigada a entregá-los por intervenção de alguém. O marido dela, que a alternância entre seca e umidade, entre abundância e penúria.9 E assim
a controlava de perto, provocou um dilúvio para vingar-se. Ele se chamava traduz, por intermédio de formas curtas de periodicidade, oposições mais
Mergulhão, o que nos permitiria certamente traçar, através da mitologia da fundamentais. Trovão, pai do alimento, tem a lua por serviçal. Quando não
costa noroeste, um itinerário que levasse de volta ao ciclo mais meridional há nada para comer, os pássaros atacam o astro da noite e provocam um
que discutimos longamente, cuja protagonista, de mesmo nome, era mulher eclipse; a abundância então retorna (Jacobs 1939: 68). O mito evoca, a esse
e não homem e provocava um incêndio em vez de uma inundação. Contudo, respeito, a barulheira que os homens fazem para torcer pelos pássaros no
deixaremos essa questão para nos concentrarmos na da origem das marés. combate; o que mostra que tínhamos razão quando, em O cru e o cozido,
A versão tsimshian (M₅₉₅, Boas 1916: 64-65) evoca o tempo em que elas criticávamos a interpretação corrente do charivari por ocasião dos eclip-
eram mensais. As pessoas, privadas de mariscos e outros frutos do mar, pas- ses, segundo a qual ele expulsaria o ogro que devora o astro. Pois aqui, o
savam fome durante longos períodos. O demiurgo, personificando um corvo, ogro é o próprio astro, e o ruído contribui para sua derrota. Essa notável
enfrentou a dona das marés e instituiu sua alternância. A velha, para vingar- reviravolta é acompanhada por uma outra, relativa ao raio, que simboliza o
se, provocou uma grande seca. Bem longe do litoral, no interior, o demiurgo, fogo celeste com valor positivo e não, como acontece com tanta frequência,
sedento, conseguiu finalmente encontrar água sob as raízes de um amieiro, o causa de incêndio, de penúria e de ruína; ao contrário, ele é moeda de troca
que confirma duplamente a origem subterrânea dessa água. E isso nos apro- para obter uma segunda maré, ou seja, a abundância dobrada. Ressaltamos
xima das versões mais meridionais. (M₃₃₇, mc: 381) uma inversão do mesmo tipo na América do Sul, e a analogia
A dos Takelma, inicialmente, e também as variantes hoh e quileute (M₅₉₆a,
b, Reagan 1935: 48-50; Reagan & Walters 1933: 315-16): Corvo comeu os 9 . Barnett (1937-39a: 13) cita o provérbio que os Brancos criaram inspirados na
mariscos de um rival, às vezes identificado ao vento sudoeste. Para vingar-se, economia indígena: “Quando a maré está baixa, a mesa é posta”.

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merece ser aprofundada. Ainda que nos limitássemos aos mitos sobre a ori- alhures (mc: 31 n. 1; Lévi-Strauss 1971c) de dedução empírica. A voz rouca do
gem das marés, as comutações são tão numerosas de um grupo tribal a outro corvo seria certamente suficiente para que grupos humanos diferentes con-
que exigiriam um estudo exclusivo. siderassem que ele tem sede, ainda que a etologia animal não confirmasse
Por exemplo, segundo o mito tsimshian (M₅₉₅), nos tempos antigos a que essa ave não bebe ou bebe muito pouco durante o verão, como afirmam
maré baixa e a abundância alimentar voltavam com a lua nova, ao passo que os mitos do Velho e do Novo Mundo. Com ou sem razão, os Antigos acredi-
os Coos responsabilizam o astro pela penúria. Para o nosso propósito, basta tavam que, nessa estação, uma doença crônica atingia os corvos, sobretudo
notar que os mitos que ligam a origem das marés ao Corvo — condenado a durante os dois meses que precedem o outono, antes do amadurecimento
passar sede por ter duas vezes reivindicado o papel de dono da seca; no eixo dos figos (Plínio 1584, x, xii e xxix, iii; Esopo, fábula 134, O corvo doente). De
vertical, quando domina a inundação, e no eixo horizontal, quando seca as todo modo, para justificar a configuração norte-americana sem apelar para
praias — referem-se insistentemente a conjunturas lunares, isto é, astronô- a Grécia antiga, bastaria registrar o fato de que os mitos frequentemente
micas. É verdade que mito blackfoot (M₅₉₁) que serviu de ponto de partida colocam Mergulhão e Corvo em oposição diametral (M₅₈₄a,d, supra, p. 179).
para a presente discussão alia a lua e os meninos frustrados que irão tornar- E, como associam o primeiro pássaro a uma constelação que prenuncia a
se as Plêiades. Contudo, de um ponto de vista meterológico, ele os opõe: para estação das chuvas, “produzisse” um mito análogo ao que o Velho Mundo, de
vingar seus jovens protegidos, a lua colabora com o sol para secar a terra e modo independente, dedica à constelação estival, em oposição de fase para
causar sofrimento aos humanos e só depois disso os astros mandam chuva, com a outra em ambos os casos. Com efeito, o mito americano também se
e então os heróis se transformam na constelação das Plêiades. De modo que, refere a uma seca periódica, não a de verão, sem gravidade nessa região lito-
no primeiro papel, a lua cheia ocupa um lugar comparável ao que cabe à rânea onde a oposição entre estação seca e chuvosa é pouco marcada, mas
constelação do Corvo nos mitos do Velho Mundo. Finalmente, não se pode a seca — muito mais importante da perspectiva de populações costeiras —
deixar de notar que o mito takelma, transformando os mitos sobre a origem que desnuda o litoral a cada 24 horas, e permite a coleta de frutos do mar,
das marés, reproduz um incidente de um mito dos Modoc (M₅₄₁, supra, p. 58, base de sua alimentação.
62) que, no entanto, vivem longe do mar, no qual as duas carregadoras de
água, que são moças à procura de maridos em vez de virgens que atingem !
a puberdade, querem se casar com o demiurgo Aishísh. Bem, vimos que ele
possui uma conotação lunar. Na transformação geradora de objetos ou fenômenos astronômicos a partir
Seria possível explicar uma confluência tão inesperada entre os mitos do de um ou vários incestos, reservamos lugar para dois estados do grupo que
Velho e do Novo Mundo evitando as voltas que propusemos (supra, p. 202)? estão intimamente ligados (supra, p. 196). Comecemos pelo primeiro.
Outra opção, satisfatória do ponto de vista lógico, todavia enfrentaria uma O mito modoc M₅₃₉ sobre Dona Mergulhão ao mesmo tempo se parece
dificuldade de ordem histórica: a América foi povoada do norte em direção com seu homólogo klamath M₅₃₈ e difere dele. Parece-se com o outro pelo
ao sul, o que torna mais provável que mitos do hemisfério sul transformem incesto que uma moça quer cometer com o irmão, pelas violências que ela
os do hemisfério norte do que o contrário. É evidente que não se pode postu- perpetra quando se vê frustrada em seus projetos e, finalmente, pela sobre-
lar, mas nem por isso se pode descartar, que certos mitos sobre a origem das vivência miraculosa de gêmeos póstumos que a avó tenta em vão “colar”.
constelações ou que lhes foram associados posteriormente tenham surgido A partir daí, como observamos (supra, p. 56, 144), as duas versões diver-
no paleolítico superior ou até antes. As primeiras levas de imigrantes vindos gem; e a mola mestra dessa diversidade reside essencialmente no fato de os
da Ásia para a América os teriam trazido consigo, enquanto, propagando-se gêmeos de M₅₃₉ serem de mesmo sexo, ao passo que os de M₅₃₈ são de sexo
na direção oposta, outros deslocamentos de população explicariam a difu- oposto. Além disso, à diferença de seus congêneres de M₅₃₈, eles não se preo-
são ocidental desses mesmos mitos até a bacia do Mediterrâneo. Encontra- cupam à mínima com a questão da própria origem. Em vez de interrogarem
ríamos, em ambas as regiões, seus vestígios, testemunhando em favor de o céu, proclamam que pertencem à terra. Longe de desafiarem e ferirem o
uma origem comum num passado muito recuado. Mas também poderia se sol, declaram-se seus serviçais e buscam juntar-se a ele; ainda que também
tratar de um mero fenômeno de convergência, devido ao que chamamos seja, como veremos, para “marcá-lo”, de outro modo.

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O fato de os gêmeos serem de mesmo sexo significa que, contrariamente Esses índios viviam no curso inferior do Columbia e de seus afluentes, o
aos que eles transformam, eles não podem cometer incesto. Consequente- que lhes permitia controlar as grandes feiras e os locais de pesca nos quais
mente, serão poupados de separar-se um do outro como o irmão e irmã todas as tribos das vizinhanças se encontravam periodicamente. Por esse
incestuosos de M₁₆₅-M₆₈ (origem do sol e da lua), mas proibidos de juntar- motivo, os mitos chinook muitas vezes possuem um caráter eclético. Cada
se um ao outro como os de M₅₇₅ (origem de Orion e das Plêiades). Terão de um deles representa como uma espécie de denominador comum, em que
ficar juntos, mas separados. Partindo de uma base puramente dedutiva, já se fundem versões que, tomadas isoladamente, poderiam parecer difíceis
poderíamos afirmar que esse estado intermediário requer um significante de conciliar, o que significa certamente uma vantagem. Por outro lado, as
astronômico que satisfaça a três condições: 1) se o incesto disjuntivo conota referências múltiplas que acumulam e sua tendência à síntese complicam
a imcompatibilidade entre dia e noite, e o incesto conjuntivo, a compatibili- especialmente a tarefa do analista.10 É o que ocorre especialmente com uma
dade entre duas constelações em relação à noite, mas não ao dia, é preciso narrativa de que são conhecidas várias versões, nem sempre coincidentes,
que a transformação intermediária conote a interseção entre dia e noite; 2) que ao reutilizar praticamente todos os mitos que consideramos até agora
se as constelações conotadas pelo incesto conjuntivo são de inverno, deve- assume ares de uma espécie de pot-pourri ou, se preferirem, de um grande
se postular categoricamente que os astros conotados pelo incesto disjuntivo recital de mitologia norte-americana. Devido à sua complexidade, esse mito
possuem uma conotação estival (embora os mitos não o digam, talvez sim- reaparecerá várias vezes em nosso caminho. Começaremos por apresentar
plesmente porque a lua e o sol, devido à maior limpidez do céu, brilham um breve resumo dele, para depois, sem levar a cabo uma análise exaustiva,
mais durante o verão), de onde resulta que a transformação intermediária assinalar apenas alguns de seus aspectos:
deve situar-se num ponto de transição entre as duas estações; 3) se o incesto
disjuntivo está na origem do surgimento de astros solitários, e o incesto con- M 598A CLACKAMAS (CHINOOK): O ESPOSO DO ASTRO
juntivo, na origem de constelações, é preciso que a transformação interme-
diária implique simultaneamente os dois tipos de objetos celestes. A expe- Um chefe e sua mulher, divorciados, continuavam morando na mesma aldeia. Ela
riência, isto é, o texto do mito, preenche integralmente as duas primeiras tinha um filho pequeno, e várias escravas, que se indignaram no dia em que ela quis
condições. Os gêmeos de M₅₃₉ se transformam em estrelas 1) visíveis logo ir a uma festa, onde corria o risco de encontrar o ex-marido. Mas a vontade de assistir
antes da aurora e 2) “entre o verão e o inverno”, como espacifica o texto do ao espetáculo foi mais forte do que a preocupação com o decoro. E apesar de ter pro-
mito. Veremos em breve que uma outra transformação permite ao mesmo metido voltar cedo e não participar das danças, ela foi arrastada pela multidão para
tempo satisfazer a terceira condição e compreender porque M₅₃₉ acrescenta bem perto do homem como quem tinha sido casada.
que ao verem as duas estrelas em que os irmãos se metamorfoseiam “os Durante a noite, o bebê acordou e chorou pela mãe. As escravas tentaram
humanos guerrearão”. acalmá-lo e, desesperadas, foram avisar a patroa, e pedir-lhe para voltar para casa,
Gostaríamos de poder identificar esses corpos celestes. Segundo o mito uma depois da outra. Porém, eram sempre levadas pela multidão para o lado oposto.
modoc, seu surgimento logo antes da aurora anuncia a chegada da prima- Como ninguém voltava, a última escrava que tinha ficado partiu, por sua vez, e dei-
vera. Uma indicação de Spier já mencionada (supra, p. 185) sugere que pode- xou o bebê sozinho. “Ele está quase morto de tanto chorar”, disse ela à mãe, junto
ria tratar-se de Gêmeos, pois quando eles sobem no céu, dizem os Klamath, com críticas. Brutalmente lembrada de suas responsabilidades, ela se apressou em
é sinal de que a primavera se aproxima. De fato, naquelas latitudes, a culmi- voltar para casa. Mas encontrou o berço vazio. Ou melhor, só viu nele um pedaço
nação de Gêmeos ocorre em março-abril, ao cair da noite. Mas o mito fala
da aurora e, a essa hora, os Gêmeos sobem em julho, culminando em outu-
10 . Foi por esse motivo que deixamos de lado uma versão chinook do mito do
bro e se pondo em janeiro. Mesmo levando em conta diferenças decorren-
desaninhador (Curtis 1907-30, v. 8: 132-35), em que o herói, chamado Salmão, tem quatro
tes de horizontes montanhosos, é difícil fazer coincidir as duas informações. esposas (Camundongo e Tentilhão, infiéis; Rola e Gafanhoto, fiéis) e desempenha o
Talvez o mito tenha em vista planetas, e não uma constelação. É o que sugere, papel de dono da chuva. Essa versão também apresenta um caráter eclético e o sistema
em todo caso, a notável transformação que ocorre entre os Chinook, e à qual só poderia ser definido a partir de um estudo, a partir dela, da mitologia chinook em
passaremos agora. suas relações com as dos povos circundantes.

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de madeira podre, deixado por uma ogra que tinha roubado o bebê, aproveitando Logo a moça deu à luz dois irmãos siameses. O pai dela lhe tinha recomendado
uma bruma espessa. A raptora alimantava o cativo com cobras, pererecas e sapos. E para nunca deixar o marido se deitar de bruços quando estivesse tirando seus pio-
o levava num cesto para onde ia. lhos. Mas um dia ela esqueceu a precaução. O homem começou a raspar sem razão
Não longe dali vivia um homem chamado Grou (certamente uma Garça). o solo abaixo de si, furou a abóbada celeste e avistou sua aldeia e seu irmão, nascido
O menino cresceu e, certo dia, quis ir visitá-lo, apesar de a mãe adotiva tê-lo proibido depois de sua partida, e que, como todos os seus familiares, tinha ficado cego de
de fazê-lo. Com uma voz tonitruante — explicando que só assim não seria ouvido tanto chorar a perda do parente querido. Foi tomado por uma profunda melancolia,
— o homem explicou a seu visitante que ele era alimentado com coisas impróprias cuja causa o sogro adivinhou. Conseguiu fazer a filha e o genro confessarem, e aca-
para o consumo humano, e ensinou-lhe a comer trutas grelhadas. A partir de então, bou se conformando em deixá-los partir. As aranhas fizeram-nos descer até a terra
o herói passou a recusar as refeições da ogra. Ela acusou o vizinho, que afirmava não num cesto pendurado na ponta de uma corda.
ter dito nada, a não ser, talvez, um comentário maroto a respeito do modo como ela O herói reencontrou seus familiares, e sua mulher lhes devolveu a visão com
teria dado à luz seu suposto filho. Seduzida pelo senso de humor do vizinho, a ogra uma água milagrosa. As casas passaram por uma limpeza em regra antes de o casal
passou a tratá-lo de irmão. entrar nelas. A vida retomou seu curso normal. Vivia na aldeia o enganador Gaio-
O herói tinha contado a seu protetor que muitas vezes, quando a ogra o trans- Azul, que se irritava ao ver os siameses. Ele cortou a membrana que os unia, o que
portava em seu cesto, ele, por brincadeira, se agarrava aos galhos das árvores até provocou em ambos uma ferida por onde as entranhas saíram. Os dois morreram.
que o percoço elástico da mulher, esticado ao limite, ficasse fino como um fio. Grou A mãe deles explicou que, se tivessem deixado que eles vivessem e crescessem,
aconselhou-o a aproveitar a ocasião para decapitá-la, com uma lâmina de pedra que eles teriam se separado sem nenhuma intervenção. Mas agora era tarde, não havia
lhe deu. Disse também que todas as árvores, que eram parentes da ogra, cairiam mais nada a fazer. Ela pegou os pequenos cadáveres, cada um debaixo de um braço,
sobre ele para vingá-la. Ele deveria subir para o alto de um pinheiro branco [Abies e subiu ao céu na forma do sol visível. Anunciou que, quando vissem seus filhos,
concolor], que seria o único a não reagir ao assassinato, e em seguida, usando seu cada um de um lado dela, ao amanhecer, isso seria o presságio da morte de alguém
arco e suas flechas alinhados, chegar até o céu. importante, e se só um deles fosse visível, de uma pessoa menos importante. Os
Dito e feito. No mundo celeste, o herói encontrou primeiro parasitas canibais, habitantes da aldeia choraram tanto a morte dos gêmeos que ficaram cegos nova-
piolhos cinzentos, piolhos pretos, larvas de piolhos e pulgas, e ordenou-lhes que inco- mente (Jacobs 1959, ii: 388-409).
modassem os humanos com moderação. Contra a vontade da dona da escuridão, ele
instituiu a alternância regular entre dia e noite. Depois encontrou dois caçadores O que é notável nesse mito, é o fato de construir uma cadeia sintagmática
perseguindo suas presas, um após o outro. Perguntou-lhes o caminho e obteve indi- coerente encadeando paradigmas tomados de empréstimo a todos os mitos
cações contraditórias. Seguindo as do primeiro, deu-se mal e foi dar na casa canibais. que consideramos até o momento, mas invertendo-os todos, metodica-
A casa estava vazia, e ele não conseguiu encontrar nem o pote de urina reservada mente. O paradigma de Dona Mergulhão gera a situação inicial, mas uma
para molhar os cabelos antes da lavagem. Teve de se contentar com água e, procu- irmã casada porém incestuosa, atenciosa demais para com o irmão, se trans-
rando um pente numa bolsa pendurada numa trave, achou uma menina. O pai e os forma em mãe divorciada, negligente demais para com o filho e despreo-
irmãos dela lhe ofereceram a mão da moça assim que chegaram. Ele se recusou a cupada com as conveniências a ponto de se mostrar em público ao lado do
participar da refeição de carne humana deles, mas aceitou a moça. Sem vantagem ex-marido, cometendo assim uma espécie de incesto social. Decorre daí que
nenhuma, aliás, porque ela não tinha orifícios inferiores, e portanto, não tinha vagina. em lugar de a irmã levar o irmão para longe (eixo horizontal) e ele procurar
Decepcionado, o herói resolveu seguir o outro caminho, que o levou a uma casa desesperadamente fugir subindo para o ceú (eixo vertical), a criança, captu-
bem aparelhada, com pote de urina e um pente de cobre, que lhe foi emprestado por rada por uma completa estranha (eixo horizontal), consegue fugir, também
uma moça encontrada dentro da bolsa de objetos de toucador. Não hesitou em casar- tomando a direção vertical, e chega ao céu.
se com ela, após um excelente jantar em família. Ela possuía todos os atributos de seu Estrangeira e não-parente, a ogra reproduz e transforma a avó libertina
sexo. Furiosos por terem sido desdenhados, os habitantes da primeira casa apareceram, (por sua vez transformação de Dona Mergulhão), exceto, justamente, por
com as piores intenções, chamando os donos da casa de “furados e rachados”. Estes os não ser uma ascendente e por deixar-se seduzir pelo vizinho em vez de se
expulsaram, queimando ossos de cervídeos, que provocaram uma densa fumaça preta. zangar com ele por causa de uma brincadeira de gosto duvidoso a respeito

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da procriação, e não da cópula, mas que também visa seu aparelho genital. de vaginas. Porém, se a interpretação que propomos estiver correta, nesse
Em consequência disso, ela o trata castamente como um irmão, em vez de caso, a aplicação de carne crua e sanguinolenta determina o aparecimento da
fazer dele seu amante. menstruação, que só exigem uma perfuração, digamos, mensal. Destinada a
Depois de Dona Mergulhão e da avó libertina, o mito se refere a um ter- permitir as relações conjugais, a perfuração das filhas canibais de M₅₉₈a teria,
ceiro personagem. Salvo por um demiurgo macho da mãe, uma viúva aos portanto, de ser mais frequente, senão permanente. Entretanto, o procedi-
prantos que queria levá-lo consigo para a morte, o menino que irá tornar-se mento inverso ao outro, empregado pela gente do sol para afastar seus adver-
desaninhador de pássaros, inicialmente incorporado ao pai adotivo, depois sários, com fumaça de ossos queimados, não acarreta nenhuma modificação
se separa dele e renasce graças a um parto pelo joelho, mas muito real. Rou- anatômica. De modo que M₅₉₈a responde à periodicidade relativamente lenta
bado de uma mãe, divorciada alegre que descuidava dele para viver a sua instituída por M₅₇₁ por uma periodicidade do mesmo tipo, mas mais curta,
própria vida, o outro menino, primeiro preso no cesto de um demônio que a ordem da narrativa anunciava. Aliás, ao xingarem os do sol de “furados
fêmea, se livra cortando o pescoço exageradamente esticado daquela que e rachados”, os canibais expressam sua vontade de permanecerem tampados.
o carrega, um verdadeiro cordão umbilical, que transfere o local do parto, O episódio das duas esposas encontradas numa bolsa também remete
agora metafórico, para a parte superior do corpo, em lugar de se produzir ao ciclo de Dona Mergulhão, cujo herói é inicialmente um menino escon-
no sentido próprio pela parte de baixo. O desaninhador de pássaros quase dido. Mas aqui são meninas, em vez de um menino, que fazem esse papel, e
morre por ter subido ao topo de uma árvore. O herói de M₅₉₈a se salva gra- o herói se casa com elas, quando o menino era escondido para não poder ser
ças ao mesmo procedimento,11, mas deve percorrer a distância restante até desposado. Em segundo lugar, as moças, colocadas numa bolsa pendurada
o céu por uma cadeia de flechas, um detalhe que encontraremos bem mais como o cesto ou bolsa (M₅₅₅a, b) em que fica o menino, ilustram uma situ-
adiante (quinta parte) e cuja interpretação adiaremos. ação inversa: estão tão pouco escondidas que a bolsa em que se encontram
Deixaremos igualmente para mais tarde o episódio seguinte, relativo à é aquela em que todo o visitante cansado vai imediatamente buscar o aces-
origem dos parasitas do corpo, não sem notar que ele evoca uma inevitável sório mais indispensável para arrumar-se, ao chegar de uma longa viagem.
concessão da cultura à natureza. E também o episódio que vem imediata- É significativo que esse acessório seja um pente, pois que Dona Mergulhão
mente depois, no qual a alternância entre luz e escuridão, instaurada pelo acha o irmão escondido graças a um longo fio de cabelo que ele perdeu ao
herói, explica e justifica o lugar que o dia deve ceder à noite. O fato de essa pentear-se (quanto ao significado desse episódio, ver infra, p. 347-48).
periodicidade diária ser a mais curta que se possa observar aproxima mais Como no mito tillamook M₅₆₅a, que também combina e transforma para-
uma vez M₅₉₈a do ciclo da avó libertina, também dedicado à periodicidade, digmas emprestados de outros mitos (supra, p. 150), o herói finalmente con-
mas em sua forma mais longa, medida pela passagem das gerações sucessi- trai com uma criatura celeste um casamento dos mais afastados, o oposto,
vas. Mitos nez-percé (M₅₇₁a-c) — cuja forma a intriga de M₅₉₈a vai agora portanto, de uma união incestuosa. Esse casamento mais que exogâmico
adotar — se referem a uma periodicidade intermediária, a do ritmo sazonal. produz gêmeos colados desde o nascimento, que correspondem aos gêmeos
Finalmente, M₅₉₈a se opõe a M₅₇₁ de um outro modo, que conecta os de M₅₃₈-M₅₃₉, colados após o nascimento, em consequência indireta de uma
dois grupos ao ciclo do cego e do mergulhão, ciclo no qual a irmã do herói união incestuosa. Mas é preciso notar outra coisa: o esposo terrestre de uma
contrai um casamento afastado, no povo canibal das gentes sem ânus nem mulher solar, que perfura a abóbada celeste e revê sua aldeia, transforma
vagina, como faz o herói de M₅₉₈a em sua primeira experiência conjugal fra- diretamente, por efeito de uma simples inversão de sexo, a esposa terrestre de
cassada. Bem, um incidente de M₅₇₁, que já comentamos (supra, p. 169), leva um astro, à qual se dedicou longamente o volume anterior. Compreender-se-
a supor que as filhas de inverno, as primeiras a serem visitadas pelos heróis á mais adiante (infra, p. 529-34) o significado desse elo, que junta quase que
(igualmente em busca de um pente para se pentearem) eram desprovidas sem intermediário a esposa do astro e o desaninhador de pássaros. Depois
do episódio dos cegos que recuperam a visão, que evoca mais uma vez o
11 . Porém, nesse caso, trata-se de uma árvore, o pinheiro branco, cuja madeira é ciclo esquimó sobre o mesmo tema e que voltaremos a encontrar (infra, p. v,
desvalorizada: “imprópria para qualquer uso e úmida demais para servir como lenha” ii), embora os gêmeos sejam desdobrados por uma intervenção mal-inten-
(Adamson 1934: 162). cionada, em vez de eles mesmos se desdobrarem — M₅₃₉ — para poderem

224 | Terceira parte: Cenas da vida privada ... Esses espelhos gêmeos | 225
cumprir seu destino, transformam-se, em ambos os casos, em estrelas da de um círculo claro, que por sua vez se destaca em fundo escuro, ao passo
manhã, não anunciadoras da primavera, segundo M₅₉₈a, mas de morte vio- que a última configuração consiste em duas marcas claras que se destacam
lenta e, às vezes, de guerra (Jacobs 1959, i: 281 n. 128a). O que não exclui M₅₃₉, num fundo escuro, fora de um círculo a que o último mito não atribui marca
em que as estrelas gêmeas também pressagiam combates (supra, p. 206). escura interna. Pode-se até dizer que ele a exclui por preterição, na medida
Sobretudo, o mito chinook completa o dos Modoc, no sentido de que em que o irmão caçula, cego no sentido próprio, também exterioriza em
tomadas em conjunto, suas conclusões verificam integralmente as quatro relação ao herói a cegueira de ordem moral que o caracteriza em M₅₃₈, e da
condições que postulamos dedutivamente para justificar a transformação qual, justamente, ele tenta escapar ferindo o sol e provocando suas manchas,
que ambos operam, de um casal de irmão e irmã incestuosos posterior- para que ele concorde em iluminar.
mente separados ou reunidos num par de irmãos que, sendo de mesmo sexo,
não podem cometer incesto, o que leva a postular que, consequentemente, !
uma vez transformados também em astros, eles não serão nem separados
nem reunidos. O fato de tal condição intermediária se refletir na oposição Se as estrelas de M₅₃₉ anunciam a primavera, a ausência de conotação sazo-
ora entre verão e inverno, ora entre aliados e inimigos, não deveria surpre- nal em M₅₉₈a, que as associa a ocorrências menos regulares, como as mortes
ender, considerando-se o desenvolvimento que dedicamos a essa transfor- violentas e as guerras, sugere que os corpos celestes envolvidos aqui possuem
mação, em A origem dos modos à mesa (sexta parte). Mas o mito chinook uma periodicidade menos marcada. A possibilidade de supormos que se trata
precisa, ainda com mais clareza que M₅₃₉, que as estrelas gêmeas podem de planetas é reforçada pelo fato de os Blackfoot (cuja mitologia, como mos-
ser vistas uma de cada lado do sol; ele as descreve, portanto, no momento tramos, era aparentada à das regiões mais a oeste) atribuírem grande impor-
do nascer helíaco, que ilustra bem a interseção entre noite e dia. Finalmente, tância à conjunção de dois planetas, talvez Vênus e Júpiter, logo antes do
essa conjuntura astronômica, que aproxima o astro do dia, geralmente soli- nascer do sol. Eles os identificavam, além do mais, a dois personagens mito-
tário, de duas estrelas, restitui o equivalente de uma constelação, o que veri- lógicos, o filho de uma Estrela e a Estrela d’Alva, respectivamente (McClin-
fica nossa terceira condição. Mas há mais: pois esta última configuração, a tock 1910: 490, 523-24; cf. M₄₈₂a-c, omm: 302). A conjunção de dois planetas
que chegamos depois de termos inventoriado toda uma série de estados que no momento de seu nascer helíaco constitui um fenômeno recorrente, mas
se transformam uns aos outros e que ela mesma, por sua vez, transforma de periodicidade muito mais longa, e portanto menos facilmente notada do
(fig. 17), apresenta antisimetrias em vários eixos com relação à que ilustrava que a das constelações. De modo que, entre M₅₃₉ e M₅₉₈a, passa-se de uma
o grupo em seu estado inicial. Tratava-se, então, da lua e do sol, ou seja, da periodicidade empírica a uma periodicidade não menos real, mas que dela se
noite incompatível com o dia; agora, trata-se de uma aurora indecisa, em diferencia pelo fato de, ao contrário dos antigos mexicanos, os índios da Amé-
que a luz do sol ainda não apaga a das estrelas, e que tolera, portanto, uma rica do Norte certamente não a conhecerem. Bem, as demais versões chinook
certa compatibilidade entre a luz e a escuridão. Por outro lado, o estado ini- do mesmo mito dão um passo a mais em direção à ausência de periodicidade.
cial dava mais atenção às manchas da lua, isto é, uma marca escura dentro Depois de terem operado a transformação de estrelas em planetas (se é que os
astros do mito modoc M₅₃₉ já não o eram), eles transformam os planetas em
paraélios ou outros fenômenos celestes do mesmo tipo.
É o caso das versões kathlamet (M₅₉₈b,c, Boas 1893: 192-93; 1901: 9-19),
que chamam de Estrela da Noite o pai dos canibais e da Lua, e Estrela da
Manhã o pai da senhorita Sol desposada pelo herói. Ao subir ao céu com
seus filhos mortos, esta última os transforma em paraélios; se um deles for
visto, morre um chefe, se ambos forem vistos, morrem dois chefes.
Mbgflbgi, Mcfd, dfi etc Mfdi Mfji
Os paraélios, também chamados de falso-sol ou meteoro, são brilhos
às vezes visíveis ao lado do sol quando está baixo no horizonte e as nuvens
[ 1 7 ] Transformações celestes. refletem seus raios. Existem paraélios simples, duplos e múltiplos. O mesmo

226 | Terceira parte: Cenas da vida privada ... Esses espelhos gêmeos | 227
fenômeno observável nas imediações da lua recebe o nome de parasselênio. vimos, em vez de sinal de nascimento por uma mulher. Além disso, as con-
As versões wishram e wasco (M₅₉₈d-g, Sapir 1909a: 171-73, 276-79, 303-07; junções de tipo lunar ou solar conotam respectivamente mortes femininas
Sapir & Spier 1930: 277) buscam explicar, além da origem dos paraélios, por- ou masculinas. E assim, vemos tomar forma um sistema:
que as formigas e vespas têm cintura fina. Os moradores da aldeia tinham
amarrado em torno da cintura os ricos presentes recebidos da dama celeste, nascimento morte
que quis retomá-los ao partir, e puxou com tanta força que seus portadores (chuva, arco-íris)
quase foram cortados ao meio. Como vimos, em M₅₉₈a, eles voltaram a ser
cegos. A dialética do grupo gera, portanto, personagens tapados em baixo fêmea macho
(sem ânus e sem vagina) ou em cima (cegos), e também personagens corta- (conjunções (conjunções
dos em dois, na altura do pescoço (a ogra), ao longo do corpo (os gêmeos) lunares, solares,
paraélios) parasselênios)
ou na altura da cintura (os insetos). Estes últimos têm como contrapartida
parasitas de origem celeste que passarão a “furar” os humanos. Esse ponto
resulta, a contrario, de um mito nootka que discutiremos mais adiante Os Yana, cujo léxico junta, de modo significativo, nascimento e arco-íris,
(M₆₀₀f, infra, p. 361), cujo herói, que inverte o de M₅₉₈a por ser o único entre atribuem aos paraélios um papel funesto, como anunciadores de morte imi-
seus irmãos e irmãs a não ser roubado pela ogra, tendo por missão libertá- nente (Sapir & Spier 1943: 285). Pois bem, um de seus mitos ilustra com tanta
los, encontra primeiramente no céu, para onde vai em busca deles, em vez fidelidade o sistema triádico que acabamos de esboçar que de certo modo o
de parasitas canibais, graciosas moças-caracol cegas, a quem ele dá a visão comprova experimentalmente (M₅₉₉a, Curtin 1899: 281-94; para uma forma
perfurando-lhes olhos com a ponta do pênis. Por outro lado, nos mitos fraca do mesmo mito M₅₉₉b, Sapir 1910: 233-35). No tempo em que a noite
correspondentes dos Salish de Puget Sound (M₆₀₀i-m, Ballard 1929: 106-12), ainda não existia, o povo celeste se dividia em três grupos. O primeiro com-
as ogras terrestres e ladras de crianças são mulheres-caracol, infestadas de posto pelos dois Arco-Iris, pai e filho, e seu cunhado ou tio materno, dono
parasitas que as atormentam cruelmente. da chuva e da tempestade, o segundo por Lua e sua mulher, Puma, com suas
O comentário indígena inclui entre os fenômenos premonitórios as con- filhas, as Estrelas, e seus maridos, e o terceiro, por Sol e sua esposa, Paraélio
junções de uma ou duas estrelas com a lua. A primeira significa que uma (Curtin, /utjamhji/, cf. Sapir & Spier 1943, /utdja’m’djisi/, “paraélio”; Sapir &
mulher logo irá enviuvar, e a segunda, que ela própria morrerá, bem como
seus dois filhos. O arco-íris próximo da lua no crepúsculo pressagia um vida vida/morte morte
assassinato (Sapir 1909a: 193; Sapir & Spier 1930: 277). Trata-se certamente
de um parasselênio cujas cores, como a dos paraélios, às vezes se asseme- Arco-íris
lham às do arco-íris.
∆ õ = ∆ õ = ∆ ∆ = õ
Todas as tribos dessa região que dão um valor sinistro aos paraélios pare-
Dono Puma Lua Sol Paraélio
cem, efetivamente, opo-los ao arco-íris que, assim, conota a vida. A mesma da chuva
palavra yana, /lakiyaa/, significa “recém-nascido” e “arco-íris” (Sapir &
Swadesh 1960: 114). Os Shasta garantem que, em qualquer estação, sempre ∆ = õ õ õ õ õ õ
chove após um parto (Dixon 1902-07c: 454-55). Os Coos veem no arco-íris Arco-íris Estrela Estrelas Meteoros
um sinal de que ocorrerá, numa família importante, um nascimento, acom- d’Alva
panhado de chuva (Jacobs 1939: 101). Os Wishram acreditam que, quando
aparece um arco-íris, isso quer dizer que uma mulher está prestes a dar à luz, dia noite dia
e se o arco-íris for duplo, ela dará à luz gêmeos (Sapir 1909a: 191, 193). Para (+) (+ / —) (—)
todos esses índios, portanto, o arco-íris se opõe à conjunção entre a lua e
uma ou duas estrelas (ou planetas), sinal de morte para uma mulher, como [ 1 8 ] Estrutura triádica do mito yana Mfjj.

228 | Terceira parte: Cenas da vida privada ... Esses espelhos gêmeos | 229
Swadesh 1960, /udzamxzi-/, “há um paraélio”), com suas três filhas Meteoros. vai fazer a partir do número de paraélios existentes ao norte e ao sul do astro
O jovem arco-íris desejava se casar com uma das três filhas solteiras de Lua, (Cline 1938: 178-79). Seus vizinhos Sanpoil e Nespelem crêem que os paraé-
que se chamava Estrela d’Alva (a única, portanto, que não é incompatível lios pressagiam calor, e os antélios, frio (Ray 1954: 213).
com o dia). Mas Lua costumava levar os pretendentes de suas filhas para Do outro lado das Rochosas, os Blackfoot, de língua algonquina, veem
seu irmão, Sol, que lhes impunha testes mortais. O herói conseguiu passar um sinal de perigo nos paraélios ao crepúsculo: “Quando o sol pinta as faces,
pelos testes, graças à ajuda do tio, dono da tempestade e da chuva. Lua, con- em outras palavras, quando se vê um paraélio (icksi) de cada lado do astro,
tudo, não se deu por vencido, e tentou ele mesmo destruir o genro, mas este é um aviso de que tempestades violentas se aproximam, com muito vento
livrou-se do adversário despachando-o, juntamente com as Estrelas suas e brusca queda de temperatura. E se o sol pinta a testa, o queixo e as duas
filhas, para o céu noturno, onde, a partir de então, ele morrerá e renascerá faces (paraélio quádruplo), isso é presságio da morte iminente de um chefe
periodicamente (fig. 18). (McClintock 1910: 56; Grinnell 1892: 64). A importância que os Algonqui-
Embora resultante, segundo dizem, da formação de cristais de gelo na nos dos Grandes Lagos davam aos paraélios foram notadas pelos antigos
atmosfera, o fenômeno dos paraélios não parece estar ligado a uma latitude viajantes: “Eles também possuem expressões variadas para designar... o halo,
específica. No entanto, chama a atenção a diferença no interesse que demons- os sóis duplos e outros eventos no céu; o que prova que prestavam bastante
tram por ele os povos do mundo. Na América do Norte, notadamente, todas atenção nas coisas do firmamento” (Kohl 1956: 119).
as observações relativas às crenças indígenas se concentram numa área As crenças relativas aos paraélios se estendem para além das Planícies
setentrional, praticamente contínua, que se estende da costa do Pacífico à do centrais, mas entre tribos da família linguística algonquina, sabidamente de
Atlântico, se concordarmos em colocar a transformação wabanaki no mesmo origem setentrional, ou entre tribos adjacentes de língua sioux. Entre estes
grupo que os mitos do ciclo de Dona Mergulhão (Ilustração iv). últimos, os Assiniboine, vizinhos dos Blackfoot, ecoam em seus mitos o de
A razão de tal distribuição talvez se deva ao fato de o fenômeno assu- Dona Mergulhão. A irmã incestuosa mata todos os familiares com raios e se
mir, segundo testemunhos fidedignos, formas mais imponentes nas pro- transforma em pássaro, seu irmão ressuscita os parentes mortos, que se divi-
ximidades do círculo ártico: “Não há como ficar insensível ao charme dos dem em dois grupos e se dispersam em direções opostas (M₆₀₉a, Lowie 1909:
dias curtos em que o sol brilhante recebe um séquito de dois, quatro ou 160-61; compare-se com a versão achomawi, supra, p. 105). Ainda segundo
até oito satélites, pelo misterioso efeito do paraélio” (Morice 1906-10: 253). eles, o aparecimento de paraélios no inverno pressagia tempestades dura-
Mas o interesse pelos paraélios persiste para além das terras ocupadas pelos douras (ibid.: 56). Os Arapaho, de língua algonquina e vindos do norte, acre-
Esquimós e pelos atabascanos. Para os Tlingit, paraélios que se põem com o ditam que os paraélios anunciam muito frio: “Os velhos diziam que o sol
sol anunciam bom tempo, e se desaparecerem antes, mau tempo (Swanton acendia fogueiras, uma de cada lado, e, diante disso, eles se preparavam para
1908a: 452-53). Segundo os Kwakiutl (Boas 1932a: 218), os paraélios signifi- aguentar um inverno rigoroso” (Hilger 1952: 93). Os Santee Dakota, vizinhos
cam que a alma de um chefe chegou ao céu na forma de um brinco de nácar; imediatos dos Ojibwa a sudeste dos Grandes Lagos, chamam os paraélios e
um paraélio único pressagia a morte de um homem comum. Os parasselê- parasselênios, /wi-a-cé-i-çi-ti/, de /a-cé-ti/, “acender uma fogueira” (Riggs
nios recebem a mesma interpretação. Um duplo anel em torno do sol anun- 1890: 8, 565). Segundo os Oglala Dakota, um círculo em torno do sol pre-
cia um acontecimento desagradável, e os meteoros pressagiam a morte. cedia o retorno dos guerreiros vitoriosos; era também um incentivo para
Os Bella Coola chamam de “pintura facial de nosso pai” o paraélio situado a celebração da dança do sol, que simboliza o sucesso de uma expedição
a oeste do disco solar; se cair na terra, provocará uma epidemia (Boas 1900: guerreira (Beckwith 1930: 404-05).
36). Os Lilloet dizem que os paraélios são filhos do sol e anunciam mau Voltemos, após esse rápido circuito, a nosso ponto de partida. Os Modoc
tempo (Teit 1912a: 275). No mesmo estilo, os Thompson crêem que o sol, chamam de /wänämsäkätsaliyis/ um círculo verde ao redor do sol que anun-
cansado de um certo tipo de tempo, “joga os filhos para fora”; é assim que cia tempestade (Curtin 1912: 302). A locução klamath que designa o halo
eles chamam os paraélios, sinal de que o tempo vai mudar (Teit 1900: 341). solar, /wanam shakatchalish/, remete à raposa, /wan/, fiel companheiro de
Um de seus mitos (M₅₉₈h, Teit 1898: 54-55) explica a origem dos paraélios de Kmúkamch (Gatschet 1890, ii: 474), aproximação que lembra a das línguas
um modo que lembra o dos Chinook. Os Okanagon prevêem o tempo que das Guianas, entre o sariguê e o arco-íris (supra, pp. 37, 39; cc: 255; omm: 136).

230 | Terceira parte: Cenas da vida privada ... Esses espelhos gêmeos | 231
É digno de nota o fato de os Klamath atribuírem ao grito do Mergulhão o & Swadesh 1939: 89-101; cf. Chinook, M₅₉₈a-g). Ele finalmente conseguiu
mesmo significado que os Modoc e os Chinook dão ao nascer helíaco de libertá-los e matou a ogra. Nas versões klallam, a ogra é substituída por uma
duas estrelas ou dois planetas, e os Chinook, aos paraélios: “Quando se ouve fera que fez da irmã do herói sua esposa; um marido subterrâneo de uma
o grito do mergulhão ao amanhecer, é presságio de assassinato” (Spier 1930: humana, que inverte a esposa celeste de um humano, o que é reforçado pelo
138). Se nos transportarmos para o outro extremo da área, entre os algon- fato de, nas versões chinook, a mulher sempre dá à luz uma criança dupla,
quinos orientais, onde a transformação wabanaki nos forneceu a chave para irmãos siameses ou, como aqui, criança de duas cabeças ou duas caras, que
interpretar um vastíssimo conjunto mítico e consolidá-lo, a noção de um não para de provocar o tio, chamando-o de “Ranho”. Furioso e humilhado,
paralelismo entre os paraélios e o grito do mergulhão é ainda mais evidente. ele sobe ao céu, onde se transforma na lua, ou nas manchas do astro noturno.12
Segundo os Penobscot, “os paraélios, /abas.éndan/, ‘meio’ (certamente para Portanto, em vez de a criança dupla dar origem diretamente aos planetas
indicar a origem central dos reflexos do sol), ou ‘a porta’, anunciam a tem- conjugados ou paraélios, cujas características podemos resumir numa
pestade, chuva no verão, neve no inverno. A tempestade virá do mesmo setor forma simplificada,
em que o anel em torno do sol está rompido”. Eis agora o que os mesmos
índios dizem do mergulhão: “Quando ele grita à noite, o vento vai soprar a) 2 claros externos sobre escuro / sol,
no dia seguinte, vindo do setor oposto àquele de onde vinha o grito do pás-
saro. Quando vem do outro lado de um lago, o vento vai soprar de lá, pois ela dá indiretamente origem às manchas da lua, cuja fórmula simplificada é
os mergulhões buscam se abrigar sob o vento” (Speck 1935: 33). Os Shasta, antisimétrica em relação à outra,
vizinhos imediatos dos Klamath, parecem estender aos paraélios o mesmo
tipo de raciocínio: “Se forem vistos ao amanhecer, pressagiam guerra; e se b) 1 escuro interno sobre claro / lua.
um deles se dissipa antes do outro, o que resta mostra de que lado estarão
os vencidos” (Dixon 1902-07c: 471). De modo que, do Atlântico ao Pacífico, Diante disso, é fundamental notar que o mito do Filho-de-Ranho repro-
estamos diante da mesma problemática que, ora no campo da meterologia, duz e inverte em vários detalhes o mito das Planícies chamado do Menino-
ora no da ordem social e política, utiliza de modo comparável os paraélios e de-Pedra. Bastaria, para comprovar que ele o inverte, a origem de cada um
o mergulhão. Não surpreende, portanto, que uma longa série de transforma- dos heróis. Mas eles nascem, ambos, de uma mulher cujos filhos ou irmãos
ções nos tenha levado do Mergulhão para Orion, e então para as manchas desapareceram, um após o outro, vítimas de uma bruxa má. O herói, nas-
do sol, e para estrelas ou planetas em relação ou em conjunção com o sol e, cido de um milagre, sempre os liberta, mas em seguida deve se separar de
finalmente, aos paraélios. Mais uma vez, o ciclo das transformações míticas seus familiares para escapar das intenções negativas — ou positivas demais,
se fecha: os paraélios levam de volta ao mergulhão. no caso do incesto, cf. M₄₆₆ — de um parente próximo. A não ser que con-
Aliás, os Klallam, de língua salish, e os Nootka, de língua wakashan, ins- siga, como na versão nootka, casar-se com uma mulher de longe, que então
talados uns diante dos outros nas duas margens do estreito de Juan de Fuca, se torna o sol visível. Nos dois outros casos, é ele mesmo que se transforma
compartilham um mito que retransforma os paraélios, certamente assimila- na lua ou em suas manchas, ou ainda numa pedra clara no alto de uma
dos aos parasselênios, nas manchas da lua, com que começou nossa série de colina que, como mostramos (omm: 321), é uma contrapartida terrestre da
operações. As versões klallam (M₆₀₀a-c, Gunther 1925: 125-31) contam que lua, exigida por um contexto que já invertia ponto por ponto o do mito
uma mulher, cujos filhos tinham todos desaparecido, um após o outro, cho- panamericano sobre a origem incestuosa da lua com suas manchas e do
rava muito e teve de assoar o nariz; o muco nasal, ao cair no chão, adquiriu sol. O retorno à pedra, da qual nasce, afinal das contas, a lua celeste, acon-
vida na forma de uma criancinha que cresceu depressa e que, em referência tece aliás ali mesmo, nos mitos dos Salish costeiros cujo herói é o demiurgo
à sua origem, recebeu o nome de “Filho-de-Ranho” ou “Feito-de-Ranho”. Ao
tornar-se adulto, tratou de reencontrar seus irmãos e irmãs, que tinham sido 12 . Ele é filho do sol e se reune ao pai na versão bella coola (M₆₀₀h, Boas 1900: 83-86).
roubados por uma ogra e que ela mantinha presos, depois de tê-los cegado Acerca do conjunto desse grupo, que se estende dos Tlingit, ao norte, até os Coos, ao
colando suas pálpebras com resina (Nootka, 600f, Boas 1891-95: 117; Sapir sul, e do qual selecionamos aqui apenas um dos estados, veja-se Boas 1916: 734-38.

232 | Terceira parte: Cenas da vida privada ... Esses espelhos gêmeos | 233
Lua, criança concebida de uma pedra engolida pela mãe, depois roubada no
berço e libertada por intervenção dos familiares, em vez de ser ele que os
liberta (M₃₇₅a-o, M₃₈₂, cf. Adamson 1934: 380 et passim). Uma versão salish
da ilha de Vancouver (M₆₀₀g, Hill-Tout 1907a: 331-36) atesta a realidade
dessa transformação. Depois de ter ressuscitado seus dez irmãos mortos
por um ogro, e libertado a irmã raptada, ao voltar para sua aldeia, o herói,
ofendido por uma alusão indelicada à sua origem, se retransforma em
ranho. O ciclo pedra —Y lua, lua —Y ranho, se fecha, portanto, pela comuta-
ção entre pedra e ranho, origem do herói. Voltaremos mais adiante (p. 297)
ao conjunto da transformação.

Q U A R TA PA R T E

Cenas da vida de província

234 | Terceira parte: Cenas da vida privada | 235


i. Peixes solúveis

Insolubilidade é a propriedade de um corpo que não


pode ser dissolvido, ou, o que dá no mesmo, que resiste
invencivelmente à ação menstrual. Ver Mênstruo.
Enciclopédia..., publicada por m. diderot... e
m. d’alembert, art. “insolubilidade”

A sociedade não faz do homem, dependendo dos meios em que ele atua, tantos homens Ao norte do território dos Klamath, o planalto e a cadeia das Cascades dei-
diferentes quanto variedades há em zoologia? As diferenças entre um soldado, um operá- xam fluir o rio Columbia, aparentemente anterior aos grandes acidentes geo-
rio, um administrador, um advogado, um desocupado, um especialista, um político, um lógicos, que não foram capazes de obstruir seu curso e dão à paisagem seu
comerciante, um marinheiro, um poeta, um pobre, um padre, ainda que mais difíceis de aspecto atual. Pequenos grupos indígenas, rapidamente extintos e sobre os
perceber, são tão consideráveis quanto as que distinguem um lobo, um leão, um asno, quais não se sabe grande coisa, Takelma e Molala, constituíam um tampão
um corvo, um tubarão, um filhote de baleia, um cordeiro etc. Portanto, houve, e sempre entre os Klamath e os Kalapuya. Estes últimos, cuja língua é relacionada ao
haverá, Espécies Sociais, assim como há Espécies Zoológicas. takelma (Swadesh 1965; Shipley 1969), ocupavam o curso superior do rio. O
curso inferior e a confluência, quase no estuário do Columbia, pertenciam a
h. de balzac, Prólogo, A Comédia Humana tribos chinook instaladas nas duas margens do rio e na zona costeira, desde
as quedas no início da travessia das Cascades até o mar. Essas tribos chi-
nook — Clatsop. Kathlamet, Clackamas, Wishram, Wasco etc. — confina-
vam, por sua vez, a leste, com um conglomerado de populações de língua
sahaptin, no qual podem ser distinguidos vários grupos, os Sahaptin do
rio Columbia, cujos principais representantes eram os Tenino, os Sahaptin
setentrionais, compreendendo os Yakima, Klikitat, Cowlitz, Walla, Palouse
etc., e, finalmente, os Nez-Percé, nos contrafortes das Rochosas, ocupavam
as marcas orientais dessa família linguística, a cujas formas arcaicas estão
ligados. Classificados outrora entre os Sahaptin, os Molala e os Cayuse são
atualmente considerados como ramos distintos do grande tronco Penutiano,
a que pertenceria também o conjunto Sahaptin-Nez Percé (Rigsby 1965,
1966; Voegelin 1964).

236 | Peixes solúveis | 237


Na terceira parte, insistimos no caráter frequentemente sincrético da
carrier
mitologia dos Chinook, certamente decorrente de sua posição geográfica,
nessa região do estuário do Columbia que forma a fronteira comum entre
as tribos salish, ao norte, e sahaptin, ao sul e a leste, além de vários grupos
bella
falantes de línguas isoladas. Mas é preciso também levar em conta o papel

blackfoot
in
coola

ot
político dos Chinook, dos Wishram e Wasco sobretudo, que ocupavam per-

ilc
shuswap

ch
manentemente os grandes locais de pesca no curso inferior do Columbia,
e por essa razão organizavam as feiras intertribais que reuniam periodica-
kwakiutl mente os povos vizinhos, e até outros, vindos de mais longe.
Pois bem, certas versões chinook do mito do desaninhador de pássaros

oet

on
noo

atl apresentam um interesse duplo e considerável, não só porque fazem a ponte

ps
sici
lill

thom
tka

comox com as versões mais setentrionais, a que estudaremos na quinta parte, como

on
squamish
também em razão de um problema teórico colocado a seu respeito, para o
co

kutenai

ag
wi

chehalis (b. c.)

an
qual iremos sugerir uma solução muito diferente daquela que foi inicial-
ch
an

ok
h
songis mente proposta.
lummi
makah skagit kalispel
klallam

le
snuqualmi
a sanpoil M 601A WASCO: A LIBERTAÇÃO DOS SALMÕES.

eil
quileute a n
tw puyallup

’or
quinault

dd
nisqually
humptulips cœur Era uma vez um grande caçador, chamado Águia, que vivia com seu avô, Coiote. Este fez o

pen
chehalis (wash.) d’alêne
neto subir no alto de um rochedo, para pegar águias no ninho, cujas penas serviriam para
cowlitz-sahaptin
chinook cowlitz empenar suas flechas. Antes, ele o tinha convencido a despir-se, para não estragar suas
tillamook klikitat
flathead belas roupas bordadas com contas e enfeitadas com conchas. Água cumpriu sua missão
alsea
nez percé mas, quando quis descer, percebeu que o rochedo tinha se elevado e seu topo quase
puy
a tocava no céu. O que ele tomara por penas de águia não passava de tripas de coiote.
kala
coos Coiote vestiu as roupas do neto e assumiu sua aparência. Para enganar melhor
as esposas do neto, fingiu que estava preocupado com a ausência do velho avô, e
um
pq

dormiu com duas delas, que se chamavam Camundongo e Pica-Pau. Levantou acam-
ua

pamento no dia seguinte, e fez isso dia após dia.


klamath Águia permaneceu muito tempo preso no rochedo. Passou fome e emagreceu.
takelma
Finalmente, o velho Trovão apareceu e fendeu a rocha. Nasceu mato na fenda, Águia
modoc
te

yurok desceu por ele e foi procurar a família. Duas de suas mulheres tinham permanecido
ta
paiu

as
wiyot sh achomawi fiéis a ele. Quando Coiote mudava de acampamento, elas seguiam as outras de longe,
wintu atsugewi chorando. Guiado pelo calor crescente das fogueiras abandonadas, Águia conseguiu
yana
alcançá-las, e elas lhe contaram tudo o que tinha acontecido. Na mesma noite, o
herói se apresentou. Choramingando, Coiote quis devolver-lhe as roupas roubadas.
o
pom

maidu “Pode ficar com elas — respondeu Águia — e com minhas duas mulheres também”.
A vida voltou a ser como era antes.
Certo dia, Águia pediu ao avô para ir limpar dois cervos que ele tinha matado e
[ 1 9 ] Distribuição tribal no oeste da América do Norte. trazer a carne. O caminho de volta era longo, e Coiote passou a noite perto da caça.

238 | Quarta parte: Cenas da vida de província Peixes solúveis | 239


Começou a chover sem parar. Na manhã seguinte, o velho constatou que os bichos contingente e arbirtária: “Dois mitos completamente diferentes foram reu-
tinham-se transformado em ramos. “Bem feito para mim — pensou. Meu neto se nidos num só”. A história do desaninhador de pássaros, continua o autor,
vingou”. Na volta para o acampamento, ele teve de atravessar vários barrancos que existe isoladamente entre os Klamath, ao sul, e também entre os Thompson
tinham virado rios por causa da chuva. Perdeu o pé na forte correnteza do quinto e Shuswap, ao norte (examinaremos as versões dessas tribos salish na quinta
deles e foi levado para o alto mar. parte, a partir de M₆₆₇). Isso prova, afirma Sapir, “que esse é um mito próprio
Lá, avistou duas mulheres numa grande barca. Elas brilhavam mais do que o pró- da região do Planalto, que os Wasco provavelmente adaptaram ao ciclo de
prio sol e moviam belíssimos remos de madeira branca. Seu papel era impedir que os Águia e Coiote”. A área do segundo mito, consagrado à libertação dos sal-
peixes deixassem o oceano e subissem os rios. Para chamar a atenção delas, Coiote mões, estaria, por sua vez, situada na bacia do Columbia, pois é conhecido
tomou sucessivamente a forma de vários pedaços de madeira boiando. A mais velha em estado isolado entre os Wishram e os Nez Percé (Sapir 1909a: 264 n. 2).
das irmãs queria pegá-lo, mas a caçula sempre a dissuadia. Finalmente, Coiote se A última afirmação deve ser corrigida. Na verdade, a versão nez percé
transformou num bebê dentro do berço e as irmãs, com pena, recolheram-no a bordo. invocada por Sapir (M₆₀₂a, Spinden 1908a: 15-16) também contém uma
Como elas possuíam todos os tipos de peixe, Coiote se aproveitava da ausência referência implícita à história do desaninhador de pássaros. Ela começa
delas para se empanturrar. Logo antes de elas voltarem, ele retomava a aparência pela vingança do herói, que surge sem motivo, na ausência de um conflito
de bebê bonzinho, chupando tranquilamente o rabo de enguia que elas lhe tinham anterior que o mito não menciona, porque supõe que seja conhecido. A nar-
dado como chupeta. rativa completa, iniciada com a história do desaninhador de pássaros e ter-
Coiote fabricou uma cavadeira de madeira dura e com ela furou a barragem das minando com a libertação dos salmões, ressurgiria duas décadas mais tarde
duas irmãs. Todos os salmões escaparam e invadiram o rio Columbia, ficando a par- (M₆₀₂b, Phinney 1934: 376-81), da boca de uma velha informante, cuja fideli-
tir de então à disposição da humanidade futura. Em seguida, Coiote soprou cinzas dade à tradição e inspiração arcaica é, aliás, sublinhada (ibid.: vii). As outras
sobre as mulheres e as transformou em aves (versão registrada por Curtin em 1885, versões nez percé publicadas por Boas (1917a: 135-44, M₆₀₂c-h) mantêm as
in Sapir 1909a: 264-67). duas histórias separadas, porém — certamente não por acaso — colocadas
uma após a outra. De modo que a conexão tachada de arbitrária por Sapir
Segundo uma versão wishram mais recente (M₆₀₁b, Sapir 1909a: 4-5), as aves se encontra em populações muito diferentes pela língua, pela cultura e pelo
em questão poderiam ser andorinhas do mar, que acompanham a subida modo de vida, ainda que a distância entre elas não passasse de trezentos
dos salmões. Donas dos salmões na origem, num local de água parada onde ou quatrocentos quilômetros. Já seria razão suficiente para reconhecer aos
elas os mantinham presos, as mulheres se transformam portanto, em suas mitos uma lógica interna. Mas podemos demonstrá-lo de forma mais direta.
mensageiras, a partir do momento em que os peixes ficam livres para se des-
locarem na água corrente dos rios. Voltaremos a esses temas contrastados. !
Por ora, concentraremos nossa atenção no comentário feito por Sapir abaixo
da transcrição do mito. Diga-se desde já, em favor do grande linguista, que À primeira vista, a mitologia dos Kalapuya, limítrofes dos Chinook ao sul,
ele era muito jovem quando trabalhou entre os Wishram e que, mais tarde, confirma a tese de Sapir, já que eles contam a história da libertação dos sal-
ele talvez não se tivesse sentido tão limitado por um historicismo míope — mões mas aparentemente não a do desaninhador. Mas eles dão à primeira
aliás indispensável naquela época, e produtivo na medida em que obrigava uma forma bastante particular, embora não tenham exclusividade nela:
a reduzir o campo de investigação em favor de seu aprofundamento — que
representava um lado dos ensinamentos de Boas. M 603A KALAPUYA: A LIBERTAÇÃO DOS SALMÕES
Em relação às versões anteriormente examinadas, a originalidade de
M₆₀₁a consiste em unir no mesmo mito a história do desaninhador de pás- Muito antigamente, as Rãs eram donas de toda a água potável. Sempre que alguém
saros tal como a temos encontrado até agora, e um episódio que, à primeira queria beber, elas exigiam um preço exorbitante por cada gole. Um dia, Coiote, com
vista, parece ser totalmente novo, o da libertação dos salmões. Sapir não sede, fabricou um simulacro de moeda, para parecer muito rico, e protegeu a cabeça
poderia ter deixado de notar essa construção sintética, mas considerou-a com um capacete. Insensível aos golpes das Rãs, ele bebeu com calma e aproveitou para

240 | Quarta parte: Cenas da vida de província Peixes solúveis | 241


furar o reservatório. A água escorreu, levando os salmões e os outros peixes. “De agora Naquela noite, Puma sonhou que o irmão lhe tinha tomado a mulher. Jun-
em diante — disse Coiote — ninguém mais terá de pagar pela água para beber. Todos tou seus guerreiros, e liderou-os até a beira da água. Em lugar do Peixe, chamou a
beberão livremente. As rãs viverão perto das margens, mas não mais controlarão a água” “mulher de Coiote”, antes sua, para servir-lhe de passador. Ela finalmente apareceu,
(Jacobs 1945: 135-36, 236-37. Para narrativas semelhantes, ver Nez Percé, Mgadb, Boas apesar de estar grávida e à beira do parto. O pai Baleia, que evidentemente era cla-
1917a: 187-88; Tillamook, Mgadc, E.D. Jacobs 1959: 147; Nootka, Mgadd, Boas 1916: 892-94). rividente, pois que pressentia o que estava para acontecer, mandou o Peixe empalar
Coiote com uma vara afiada, aproveitando enquanto o falso genro estava ocupado
Como se vê, essa versão enfatiza a liberação da água/potável muito mais no teto consertando a saída de fumaça. Enquanto isso, a barca chegava à outra mar-
do que a dos peixes/comestíveis. Seria possível mostrar a razão disso? Sim, gem. Puma saltou, abriu o ventre da mulher e tirou os dois bebês, um seu e o outro
claro, se notarmos que esse mito diz respeito à obtenção da água potável pela do irmão. Entregou o primeiro ao maior de dois gaviões (“chicken-hawk”; Accipiter sp.),
demolição de uma barragem, e que os Kalapuya possuem um mito exata- para que o levasse para o ceú, e jogou o outro no rio. Também cortou as duas tranças
mente simétrico sobre a perda do fogo de cozinha em decorrência da edifica- da mulher e as deu ao segundo pássaro.
ção de uma outra barragem: As águas começaram a subir. As pessoas, correndo, nadando ou sendo transporta-
das por aves piedosas, fugiram para o alto das montanhas. A serpente trigonocáfala
M 604A KALAPUYA: O FOGO PERDIDO E RECUPERADO (“copper snake”) tinha levado o fogo. Puma foi censurado: “A água não quer baixar!
O que foi que você pegou e não devia?”. “Só meu filho e os cabelos dessa mulher”,
Puma (“Pantera”, termo que designa o Felis concolor [= suçuarana, n.t.] nessa parte respondia ele. Mas eram justamente os cabelos que a água perseguia. Mandaram o
do continente) e seu irmão Coiote viviam juntos. Enquanto um caçava, o outro cui- gavião pequeno soltar as tranças, e a água baixou.
dava da casa. Um dia, a filha de Baleia se apresentou para casar com Puma. Ele não Perceberam então que não havia fogo. A serpente mandou dizer que estava com
estava. Coiote a recebeu e lhe disse para sentar na cama do irmão. A partir de então, ele na garganta, que desde então queimava. Puma propos comprar o fogo. Depois de
cada um teria seu próprio trabalho: Puma garantiria a comida, Coiote cuidaria do muita barganha, a serpente concordou em entregá-lo em troca de uma manta de
fogo e a mulher cozinharia. couro curtido, que é a causa do ruído que o réptil faz atualmente quando se desloca.
Certo dia, Puma resolveu ir visitar os sogros em companhia da esposa. Coiote Acenderam uma grande fogueira, mas as pessoas ricas e bem nascidas reservaram
guardaria a casa na ausência do casal. Os viajantes partiram, e chegaram perto de para si seu usufruto. Os outros tiritavam de frio.
um rio ao cair da noite. Um passador, que devia ser chamado sem fazer ruído algum, Incitados por Coiote, eles arquitetaram um estratagema, e propuseram um
ou não ouviria nada, os fez atravessar em sua barca; era um peixe silurídeo (mudfish). espetáculo aos ricos. Mas, em vez de penas, enfeitaram-se com galhos de madeira
A mulher apresentou o marido ao pai. Puma caçou para os sogros e despediu-se. Pro- resinosa, que se inflamavam quando os dançarinos chegavam perto do fogo. Come-
meteram voltar a se ver logo. çaram a ser perseguidos, e correram para todos os lados. Desde então, até os pobres
Algum tempo depois, Puma pediu ao irmão que acompanhasse sua esposa à podem acender belas fogueiras (Jacobs 1945: 103-13; comparar Nootka, Mgaec, Boas
casa dos pais dela. No caminho, ela teve vontade de descansar e abriu as pernas ao 1916: 894).
sentar-se. Coiote ficou cheio de desejo com o que viu. Disse que estava doente e que
tinha de voltar para casa, e que a cunhada podia ficar ali mesmo esperando pelo Uma outra versão (M₆₀₄b, ibid.: 215-21) atribui a Coiote cinco filhos prema-
marido, que viria ao seu encontro logo depois de ter sido avisado. turos em vez de um, e acrescenta que ele construiu uma barragem rio abaixo,
Mas Coiote parou perto de um pequeno brejo e mergulhou nele várias vezes, até na esperança de recuperar sua prole lançada às águas. O que provocou a
seus excrementos, que ele ia depositando na margem, lhe darem a certeza de que inundação que também aparece em M₆₀₄a, que não especifica sua causa.
estava com a aparência de um puma. Então voltou para junto da mulher dizendo Não insistiremos aqui nos protagonistas do mito. Formam um par de
que era seu marido. Ela não ficou muito convencida, mas cedeu. Todos os gestos de animais complementares, um carniceiro e o outro predador, e transpõem
Coiote, no entanto, davam a ver quem ele era: ele não conseguia fazer com que a essa dualidade para o plano da cultura, dividindo os papéis: ambos são pro-
bagagem andasse por conta própria, como o irmão, gritava inutilmente para chamar vedores do lar, um de lenha para o fogo, o outro de caça. Voltaremos a encon-
o passador, e a única coisa que conseguiu caçar para os sogros foi uma rã. trar uma dupla semelhante (M₆₄₄ e seguintes, p. 265ss) e compreenderemos

242 | Quarta parte: Cenas da vida de província Peixes solúveis | 243


melhor a razão de sua primeira aparição, num mito que evoca uma era em vizinhos Salish. Como veremos mais adiante (infra, p. 415-21), estes últimos
que mesmo os bens mais indispensáveis, como o fogo, podiam ser mono- situam a origem do fogo de cozinha numa guerra movida pelo povo ter-
polizados por uma minoria egoísta, e seu usufruto tinha de ser negociado. restre contra o povo celeste. Para eles, portanto, e à diferença dos Kalapuya,
Esse traço já bastaria para evidenciar a relação de simetria entre M₆₀₃ e M₆₀₄, o fogo foi conquistado, não perdido e recuperado; e sua presença entre os
já que o primeiro mito evoca exatamente a mesma situação quanto à água homens atualmente resulta de uma transferência cosmológica do céu para
potável, em lugar do fogo doméstico. Mas a simetria aparece também em a terra, não de uma repartição sociológica entre grupos humanos desiguais.
outros planos. Em M₆₀₃, o demiurgo enganador provê a futura humanidade A partir dessas considerações, notaremos inicialmente que o caso dos
de água potável; em M₆₀₄, ela inicialmente perde o fogo, por causa dele. Para Kalapuya ilustra a reorganização geral de um sistema que existe — não há
que se possa beber à vontade, é preciso que uma água parada (contida num como deixar de reconhecer —, pelo menos em estado virtual e de forma
reservatório) se torne corrente. Inversamente, um particular é capaz de esquemática, em toda a área que estamos examinando. Há mais. Essa reorga-
subtrair ao uso comum o fogo, e apropriar-se dele, porque uma barragem nização resulta, aqui, do fato de um dos elementos do sistema, a história do
recém construída impede o livre curso da água, retendo-a e provocando desaninhador de pássaros, estar ausente, ou só aparecer, numa forma quase
uma inundação. irreconhecível, entre os Kalapuya: Coiote transforma as entranhas da caça
O incidente das tranças cortadas, entregues ao gavião e depois entregues em uma moça, com quem vários animais querem se casar, mas que foge;
à água, é bastante misterioso. Como aparece num mito sobre a origem do um deles se vinga fazendo-a subir numa árvore, para pegar e colher frutos
fogo, somos tentados a aproximá-lo de um detalhe comparável de mitos adstringentes que a sufocam; ela morre e vai para o céu, onde fica a terra dos
salish com o mesmo tema (M₆₅₀a, infra, p. 282), em que a egoísta dona do mortos (M₆₀₅, Jacobs 1945: 199-201). Quer essa /colhedora/de frutos/ seja ou
fogo o guarda em suas tranças feitas de cinco troncos ardentes entrelaçados.1 não inversão do /desaninhador/ de pássaros/, é notável que esse herói não
Note-se que a heroína [“pai Baleia”?!] de M₆₀₄ é uma Baleia, e dona da água, apareça nunca em pessoa na coletânea de Jacobs, embora ela reuna quase
já que conhece o segredo para atravessá-la na barca do passador, sem se todo o material disponível a respeito dos Kalapuya. Deveríamos concluir,
molhar, portanto. No mito salish, ao contrário, a dona do fogo é incapaz de como Sapir, que se dois mitos, A e B, fundidos num só pelos Wasco e pelos
atravessar um rio, porque suas roupas não podem ficar molhadas (Adamson Nez-Percé, podem existir independentemente alhures e inclusive excluir um
1934: 203-04). Deixaremos a outros a tarefa de elucidar essa transformação. ao outro, isso prova que sua justaposição possui um caráter contingente? De
O gavião, por sua vez, também forma um par de opostos com a cobra nos modo algum.
mitos chinook (Boas 1894: 195); é o dono do dilúvio entre os Kutenai (Boas Em primeiro lugar, não é possível discutir a mitologia dos Kalapuya, ou
1918: 41); e trata de conquistar o fogo em mitos tlingit (Swanton 1909: 11,83). qualquer outra, aliás, sem levar em conta a infra-estrutura. E esses índios,
A extensão desse motivo até o Alasca é ainda mais significativa na medida que vivem no curso superior do Willamette, certamente conhecem o salmão.
em que, como indicam os mitos, os Kalapuya possuíam uma estrutura social Mas não podiam pescar dentro do território da tribo, porque os peixes não
hierarquizada em classes, o que os aproxima indiscutivelmente, ao lado de subiam acima das quedas, obstáculo para eles intransponível (Farrand 1907,
outras tribos vizinhas, das sociedades da costa noroeste, cuja vasta e com- i: 645). De modo que, para eles, a questão da origem do salmão apresentava
plicada mitologia só pode ser tratada por amostras (cf. Lévi-Strauss 1958b). um interesse sobretudo especulativo, não dizia respeito à sua existência prá-
Essa afinidade setentrional distingue os Kalapuya e os Chinook de seus tica. É compreensível, portanto, que seu mito a esse respeito saia, de certo
modo, pela tangente, contentando-se com uma breve alusão aos peixes, e
concentrando-se no outro aspecto dietético dos rios, como produtores de
1 . Comparar com o procedimento empregado pelo herói animal que se encarrega de
água potável, em vez de alimento.
roubar o fogo pelo bem da humanidade futura, na maioria dos mitos da mesma região.
Como entre os Wishram, por exemplo (Sapir 1909a: 295): “ele pegou dois tições e...
Duas consequências decorrem daí. Primeiramente, por transformar-se
prendeu-os na vertical nas próprias orelhas, que ficaram de pé, parecendo orelhas de em mito de origem da água (potável), o mito sobre a origem dos salmões
asno...”. Seria tentador tentar resolver assim o enigma dos personagens de longas orelhas pode integrar-se num sistema mais vasto no qual um mito sobre a origem
cuja ocorrência em petroglifos de várias regiões da América assinalados (omm: 56). do fogo, com a mesma armação, é seu simétrico oposto. É essa a relação que

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vimos entre M₆₀₃ e M₆₀₄. Ora, o paradigma mítico que conjuga e opõe a ori- tipo de interpretação aos Sahaptin, a coalescência de três ou quatro mitos,
gem do fogo à da água não é senão aquele que, em O cru e o cozido, nos per- em vez de dois. Essas explicações preguiçosas tiram da mitologia toda a sua
mitiu construir o grupo do desaninhador de pássaros, cujo mito, entretanto, riqueza, reduzindo-a a um empilhamento de peças avulsas, todas elas des-
os Kalapuya não conhecem. providas de significado.
Ausência essa que não deve surpreender, já que, no novo sistema, a fun-
ção etiológica do desaninhador de pássaros se encontra de certo modo M 606A KLIKITAT: A LIBERAÇÃO DOS SALMÕES
mobilizada em prol de outros mitos. Se chamarmos de A o mito do desa-
ninhador e de B o da liberação dos salmões (aqui mudado em mito sobre a Um homem chamado Arco tinha duas esposas, Grizzly e Ursa (de uma espécie dife-
origem da água), podemos dizer que, entre os Kalapuya, B exclui A devido rente da primeira, urso negro ou pardo, dependendo da versão). Certo dia, Grizzly
ao fato de B preservar seu próprio código, mas utilizá-lo para transmitir avisou que estava incomodada e devia se isolar até o final de seu período menstrual.
a mesma mensagem de que os povos vizinhos (e, na América do Sul, os Quando acabou, pediu a seus dois filhos que lhe trouxessem suas roupas normais. O
Bororo) encarregam o mito A. irmão e a irmã assistiram enquanto a mãe se vestia e vieram que ela assumia pouco
Sabemos que a armação panamericana de A lhe permite evocar alterna- a pouco a aparência de uma ursa grizzly. Voltaram correndo para avisar. Para esca-
damente a origem da água (M₁) ou do fogo (M₇-M₁₂). Como A é eliminado par da fera, Ursa subiu no alto de uma árvore, Abutre transformou-se em cortina de
pelos Kalapuya, essa dupla função etiológica passa para B, por razões que a porta, e Arco tornou-se a arma com esse nome. As crianças, enquanto isso, fugiram,
infra-estrutura tecno-econômica revelou. Ao mesmo tempo, B se desdobra ajudadas por seu cão.
em duas formas, uma reta e a outra invertida. De modo que {A, A-1} e {B, B-1}, Chegando à aldeia, Grizzly destruiu todos os objetos que haviam sido pessoas. Só
que cumprem funções idênticas, não são objetos realmente distintos. poupou Coiote, transformado num pedaço de madeira bichada, porque ele ameaçou
Na verdade, o problema colocado por Sapir quanto a M₆₀₁ é ilusório. Os enfiar um monte de larvas no ânus dela. Grizzly encheu o cão de perguntas. Ele aca-
mitos não são comparáveis a coisas cuja identidade possa ser reconhecida bou dizendo para que lado eles tinham fugido e ela saiu correndo atrás deles.
quando são encontradas isoladamente ou combinadas umas às outras. E não Os dois já estavam bem longe, e o menino, que se tornara adulto, vivia marital-
existe em lugar algum um sortimento de peças que, escolhidas de vários mente com a irmã. Certo dia, ele sentiu vontade de explorar uma região na qual ela
modos e dispostas como um mosaico, pudessem ser a causa da criação de tinha dito para ele não entrar. Lá encontrou a mãe, que lhe propôs catarem os piolhos
novos mitos, cujo nascimento fosse sempre regido pela arbitrariedade. Nosso um do outro, e aproveitou para matá-lo.
postulado é que todo mito, pelo simples fato de existir, enuncia um discurso Em seguida, Grizzly foi ao acampamento da filha. Ao vê-la chegando, esta colo-
coerente. Os elementos com que opera não possuem valor autônomo, adqui- cou o bebê de lado e fez jorrar uma fonte. Grizzly, justamente, tinha sede, mas cada
rem sua função significante no seio das combinações em que são mobiliza- vez que tentava beber, a água baixava. Ela foi obrigada a rastejar, e a filha então a
dos, e só a conservam em relação a tais combinações. Sendo assim, um mito matou, jogando-a no fundo do barranco seco. Coiote logo apareceu por ali, pois que-
pode ser homogêneo do ponto de vista semântico mesmo quando as partes ria se casar e lhe haviam dito que uma mulher completamente livre lá vivia. Mas a
que o compõem podem ser localizadas alhures isoladamente. Sua associação jovem viúva preferia a morte àquele pretendente. Ela ateou fogo à comida e jogou-se
no discurso mítico exclui a arbitrariedade, sem ser por isso obrigatória. nas chamas. Coiote procurou-a por toda parte, mas só achou o bebê no berço.
Perplexo, recorreu a suas informantes habituais, suas duas irmãs, que ele levava
! nas tripas e excretava sempre que precisava de alguma informação. E sempre, assim
que elas diziam o que ele queria saber, ele retrucava que não precisava daquela infor-
Quisemos começar esta parte pela refutação de um empirismo fora de moda mação, que já sabia aquilo fazia muito tempo. [Às vezes, as irmãs-excremento se
porque o mito do desaninhador de pássaros apresenta, entre os Sahaptin, chamam Pinhão e Mirtilo; cf. Jacobs 1934: 88 n.5].
uma construção ainda mais complexa do que a das versões chinook. Se Por isso as irmãs, no começo, disseram que estavam cansadas de responder, e
tivéssemos seguido Sapir, admitindo que a versão wasco seria feita de dois Coiote teve de ameaçá-las com uma chuva que iria desintegrá-las. Então, elas lhe
mitos distintos e justapostos, teríamos agora de invocar, estendendo esse contaram em detalhes tudo o que tinha acontecido. Como sempre, Coiote disse

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que já sabia. Fez com que elas voltassem para dentro de suas entranhas e adotou o Chegou a uma região onde viviam cinco moças solteiras, que eram aves aquáticas,
pequeno órfão. e para que elas se apiedassem dele, Coiote assumiu o aspecto de um ancião da tribo
O menino cresceu depressa, tornou-se um bom caçador, e se casou com sete que voltava para casa depois de uma longa ausência. Essas mulheres mantinham os
mulheres, cinco que se chamavam Camundongo (Mice), uma Gafanhoto (Cricket) e a salmões presos num lago. Como elas iam coletar raízes comestíveis todos os dias, ele
última Rola (Turtle-Dove). Coiote gostava de se deitar perto das noras. Acendia uma fabricou para elas cavadeiras de sabugueiro, madeira frágil, e fez para si mesmo cava-
fogueira crepitante e ficava se deleitando com o espetáculo das mulheres que levan- deiras de carvalho. Assim equipado, e com a cabeça protegida por cuias de osso empi-
tavam as roupas para evitar que as faíscas as queimassem e se expunham. Foi assim lhadas umas sobre as outras como capacetes, ele começou a escavar a beira do lago
que ele percebeu que Gafanhoto e Rola, de quem seu filho parecia gostar especial- para liberar a água. As mulheres foram alertadas por um presságio, saíram correndo e
mente, tinham a vulva negra, ao passo que a das cinco Camundongo era branca. O bateram em Coiote. Mas não adiantou, a água escorreu para o rio, com todos os peixes.
filho desprezava esse grupo de esposas, e Coiote resolveu apossar-se delas. Coiote andou rio abaixo por muito tempo. Tinha fome, mas não sabia pescar.
Foi defecar no alto de um rochedo e transformou seus excrementos em dois Excretou as irmãs, e elas lhe disseram como pegar um salmão grande. Coiote o
filhotes de águia. Depois mandou o filho ir pegá-los, para ter penas, convencendo-o colocou num espeto sobre o fogo. Enquanto esperava o peixe ficar no ponto, Coiote
de que precisava delas para empenar suas flechas. Mas antes o fez trocar de roupa adormeceu. Vieram lobos que comeram o peixe e, para zombar dele, lambuzaram
com ele, dizendo que as suas roupas aguentavam qualquer coisa. Quando o filho de gordura a boca do dorminhoco. Ao acordar, Coiote não entendeu porque sentia
chegou ao ninho, só encontrou excrementos. E o rochedo tinha aumentado tanto fome, já que os restos de peixe espalhados e a sua boca gordurenta indicavam que
que já não era mais possível descer. Vestindo as roupas do filho, Coiote tentou fazer- ele já tinha comido. Foi de novo pegar um salmão e colocá-lo no espeto. Cinco vezes
se passar por ele. As cinco Camundongo receberam-no sem problemas. Gafanhoto e seguidas. Mas o resultado era sempre o mesmo.
Rola, ele tratava muito mal e só deixava comer restos. Novamente convocadas, as irmãs-excremento denunciaram os lobos e fizeram
Enquanto isso, o herói, que se chamava Águia, estava preso no alto do rochedo. Coiote prometer que faria o mesmo com eles, enquanto eles dormiam, esperando
A aranha ajudou-o a descer por uma corda, em troca da promessa, que ele manteve, que os ovos de pato que tinham pegado ficassem cozidos. Pois, acrescentaram elas,
de lhe dar uma corda de cipó (vine). Águia partiu em busca das esposas, porque maus comportamentos devem ser retribuídos e não é bom dormir em vez de comer.
Coiote mudava de acampamento todos os dias. Finalmente, alcançou as duas de que Coiote então enganou os lobos, cinco vezes seguidas. Todos aprenderam que se deve
gostava mais. O bebê de Rola o reconheceu de longe, mas as mulheres não quise- vigiar e consumir a própria comida.
ram acreditar, e continuaram andando. O herói acabou conseguindo fazê-las parar, A partir de então, Coiote conseguiu viver de sua pesca. Circulando pelo território,
pisando numa corda que elas arrastavam atrás de si. ele criou as cascatas e fixou a localização dos sítios de pesca e daqueles onde o peixe
As mulheres então lhe contaram o péssimo tratamento a que eram submetidas. seria posto a secar. Também determinou os lugares onde os salmões viriam desovar
Águia se fez bem pequeno, para que elas pudessem transportá-lo com sua carga. e suas ovas seriam coletadas. Em seguida, criou todos os rios e as várias espécies
Retomou sua aparência quando chegaram ao acampamento. Coiote devolveu-lhe as de salmão. “Aqui — decretou — ocorrerão pescarias e haverá povos falantes de lín-
roupas e as mulheres infiéis, e voltou a ser o velho de antes. guas diferentes. As pessoas que viverão aqui pescarão e trocarão todos os tipos de
Certo dia, Águia pediu ao pai para ajudá-lo a carregar os animais que tinha alimento. Trocarão vários artigos por salmões. E graças a essas trocas, os habitantes
caçado, mas deu-lhe tripas de veado em vez de corda. Começou a chover, e os rios das pradarias secas poderão obter alimentos variados. Neste local, haverá um grande
foram subindo a olhos vistos. Outras versões dizem que Coiote se atrasou, para mercado onde o salmão será redistribuído. Os humanos praticarão o escambo com
amarrar sua carga, já que as cordas, frágeis, arrebentavam. Foi arrastado por uma prazer e generosidade. Logo eles vão aparecer. Os peixes irão até onde for o rio,
correnteza maior do que as outras. quando voltar a primavera e os dias se tornarem mais quentes. Haverá várias espé-
Coiote conseguiu fabricar uma canoa improvisada, mas ela não resistiu. Então cies de salmão no rio. Assim serão as coisas, porque eu decidi” (Jacobs 1934: 79-91; cf.
ele se transformou em bebê, depois em carcaça, na esperança de ser recolhido por p. 91-93, 103-07, 191-202).
uma velha que vivia com a neta perto dali. Mas a avó não se deixou enganar pela
carcaça que a convidava a transar (cf. Mfga-Mfgf). Ela quis dar uma sova em Coiote, Muitas variantes desse longo mito são conhecidas, mas os velhos informan-
que deixou-se novamente levar pela correnteza. tes que as contaram aparentemente já não sabiam dizer exatamente qual

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a identidade zoológica das moças-ave donas dos peixes. Os Klikitat cha- obriga o filho a se despir para ir desaninhar uma suposta águia, dizendo a
mam-nas /wi’dwid/ e traduzem essa onomatopeia por “maçarico”, “ando- ele: “Tire os seus mocassins. Se quiser conseguir, dispa-se dos pés à cabeça,
rinha” ou “pato selvagem” (Jacobs 1934: 86 n. 3; cf. p. 197). Talvez devamos tire tudo o que está vestindo, até os brincos” (l.c.: 144). Salvo pela aranha,
aproximá-la da palavra klamath /čwi.did(ig)/, também uma onomatopeia que ele paga com cordames de boa qualidade, o herói alcança as duas
(Barker 1963b: 99), “maçarico kildir, ou maçarico”. Vimos que os Chinook mulheres que se mantiveram fiéis e as faz parar pisando na longa corda tran-
mencionam, no mesmo contexto, as andorinhas do mar, anunciadoras da çada que a jovem mãe arrasta atrás de si. De volta ao acampamento, manda
subida dos salmões. De modo que sempre se trata de aves aquáticas, que têm o pai lhe devolver suas roupas antes que fiquem completamente fedorentas.
com os peixes uma relação de contiguidade, espacial ou temporal. Depois provoca chuvas diluvianas que metamorfoseiam as mulheres infiéis
Nas várias versões, observa-se uma flutuação comparável no que diz res- em patos. Coiote, carregado pela correnteza, chega à casa das irmãs /witso-
peito à identidade zoológica das esposas do herói. As tribos do rio Cowlitz wits/ (cf. supra, p. 235), nome do maçarico (sandpiper) em que ele as trans-
(M₆₀₇a, b; Jacobs 1934: 103-07, 191-202) dão a ele dois pares de esposas, as de forma depois de liberar os salmões. Os lobos que Coiote acaba superando,
vulva preta, que são rolas ou pombas, e as irmãs camundongo, de vulva branca, por sua vez, se declaram vencidos e decidem adotar a partir de então a vida
às vezes substituídas por uma camundongo e uma gafanhoto. Em M₆₀₇a, as de bichos selvagens. Coiote segue caminho rio acima e se transforma em
chuvas diluvianas provocadas pelo herói desempenham um duplo papel: rochedo, marco natural que assinala o ponto para além do qual os salmões
encarregam-se do castigo de Coiote, e também do das esposas infiéis, que não podem subir, ou seja, uma maneira negativa (em vez de positiva, como
não conseguem atravessar a corrente e, de humanas que eram, viram camun- em M₆₀₆a), de tornar indispensáveis as trocas comerciais, já que nem todas
dongos (l.c.: 105). Coiote se salva graças a duas espécies de madeira resinosa as tribos têm acesso ao salmão, de modo que as que não têm devem con-
(pinheiro de Douglas e tuia), cujos galhos o auxiliam a se alçar até a margem a segui-lo de outro modo. Para apoiar essa interpretação, à qual voltaremos,
aos quais, em agradecimento, ele confere virtudes medicinais e utilidade como citaremos uma versão mais oriental. Os Flathead, tribo salish do Idaho, con-
madeira para construção (ibid.). Voltaremos a encontrar este último aspecto tam (M₆₀₈; McDermott 1901: 240) que Coiote criou as quedas do Spokane
em mitos chinook (M₆₁₈, ₆₂₀; infra, p. 262) que começam como os que esta- para impedir que os salmões subam o rio Columbia até o território dos Pend
mos analisando e que nos ajudarão a interpretar a sequência inicial comum d’Oreilles, para puni-los por se recusarem a dar suas filhas em casamento
a todo o grupo. Segundo M₆₀₇a, Coiote também se transforma em bebê para a estrangeiros. Mas antes de discutirmos o modo como se fecha esse novo
obter a ajuda das cinco irmãs donas dos salmões. Mas esse bebê, que inverte o grupo de mitos, convém nos debruçarmos com atenção sobre a sequência
ancião que volta ao lar em M₆₀₆a, se comporta de modo libidinoso para com inicial de M₆₀₆a, que constitui o que poderíamos chamar de “quarta abertura”
as mulheres. A mais nova delas, por essa razão, implica com ele, mas as outras do ciclo norte-americano do desaninhador de pássaros.
quatro o acham bonitinho e se alternam para dormir com ele. Descobrire-
mos o sentido desse episódio quando analisarmos as versões salish do interior !
(infra, pp. 390ss). Por enquanto, apenas notaremos a dupla dicotomia:
Recordemos rapidamente a sequência. Um homem chamado Arco tem duas
velho (M₆₀₆a) esposas, Ursa e Grizzly. Esta última, menstruada, se isola e se transforma no
Coiote bicho de que já tem o nome. Para escapar dela, os habitantes da aldeia se
libidinoso (M₆₀₇a)
bebê transformam em objetos domésticos e seus filhos fogem, tornando-se um
comportado (M₆₀₁) casal incestuoso. Ela os persegue e mata o filho. A filha a mata, por sua vez,
num barranco seco em que Grizzly queria beber, e depois ela mesma se sui-
Ballard (1929: 144-50; M₆₀₆b,c) coletou entre os Salish costeiros variantes cida numa fogueira. Coiote salva e adota o orfão. A partir daí, a narrativa
provenientes de seus vizinhos Klikitat, que atribuem ao herói dois pares de engata na história do desaninhador de pássaros.
esposas, umas Rolas (ring-doves) e as outras Patas bico-de-serra (saw-bill Por se mostrar comutável, em posição inicial, com outros personagens,
ducks), ou então Rolas tristes (mourning doves) e Leitas de salmão. Coiote essa mãe que vira ogra quando fica menstruada (“abertura iv”) transforma

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claramente a irmã incestuosa de M₅₃₈ (“abertura i”), sua casta contrária de uma mulher a esposa (a mais exogâmica possível) de um urso, assassina de
M₅₄₁ (“abertura ii”) e, finalmente, a avó libertina de M₅₆₀ e seguintes (“aber- seus próprios irmãos que viraram cônjuges incestuosos; e é um Mergulhão
tura iii”). A mesma constatação se impõe igualmente por outras vias. que a mata. Inversamente, os Assiniboine contam, quase nos mesmos ter-
Primeiro, a transformação de ums ascendente mulher em ogra, e mais mos do mito de Dona Mergulhão, que irmãs com tendências incestuosas
precisamente em ursa grizzly, não afeta apenas um grupo de variantes que se transformaram em ursas que mataram toda a população, cegaram seus
só se distinguiriam das demais por esse traço. Ela também ocorre dentro parentes e provocaram-lhes queimaduras no corpo todo (M₆₀₉b, Lowie 9:
de mitos cuja heroína principal pertencia inicialmente aos outros tipos que 161-62; cf. supra, p. 217).
enumeramos. Nesse caso, por conseguinte, a transformação não tem apenas Mais perto da área principal de difusão do mito, encontramos entre os
valor de hipótese, é diretamente observável como atributo empírico de um Wintu (M₅₄₅b; supra, p. 122) uma versão em que a irmã transgressora tam-
determinado personagem. Vimos que, na maior parte das versões do mito bém se transforma em monstro canibal, e na qual esse “incesto alimentar”
de Dona Mergulhão que, nesse aspecto, pertencem à abertura i, a mãe da que representa a homofagia é portanto acrescentado ao incesto sexual; em
heroína vai ocupando, no decorrer da narrativa, o lugar antes ocupado por M₆₀₆a, ele o substitui. Ora, a maioria das versões meridionais do ciclo de
sua filha (supra, p. 47). Depois da morte desta, a mãe assume o lugar dela Dona Mergulhão agravam o crime da protagonista fazendo com que ela o
e assume a aparência de uma ursa grizzly para vingá-la. Tal como é con- cometa estando menstruada, condição igualmente da protagonista de M₆₀₆a
tado pelos mitos desse grupo, M₅₃₁ e M₅₃₈, por exemplo, o episódio que a no momento em que ela vira uma ogra. Os mitos postulam, portanto, uma
opõe ao casal incestuoso reproduz exatamente o episódio correspondente correlação implícita entre as regras femininas, as tendências incestuosas e
de M₆₀₆a: assassinato do filho ou neto pela ursa, depois da ursa sedenta pela o apetite canibal; e desse modo vão ao encontro de nossas considerações
filha ou neta e, finalmente, suicídio desta última numa fogueira. O mesmo no volume anterior (omm: 325-32) a respeito das estreitas relações existentes
acontece em M₅₆₀, que pertence à abertura iii, no qual se assiste à transfor- entre a caça às cabeças e o sexo feminino. Como já tinha percebido Deme-
mação do personagem da avó libertina no de ogra que assumiu a aparência tracopoulou (1933: 121-22), eles também assimilam as investidas incestuosas
de um grizzly (supra, p. 145). Enquanto operação interna, a transformação de uma irmã e a violação dos tabus — tão severos na Califórnia e mais ao
parece estar ausente do mito M₅₄₁, pertencente à abertura ii, de que ele, aliás, norte — a que estão sujeitas as meninas impúberes e as mulheres menstru-
é a única ilustração. Mas essa aparente carência se epxlica pelo fato de M₅₄₁ adas. Mas a abertura iv, tal como ilustrada por M₆₀₆c, permite generalizar
inverter a história de Dona Mergulhão em vários eixos. O personagem da 1/ o paradigma mais restrito que aquele autor tinha utilizado. Por estar mens-
ascendente mulher/, 2/que se transforma em ogra canibal/ para melhor per- truada, uma virgem ameaça transformar-se em irmã incestuosa, e uma mãe
petrar 3/a destruição de seu filho ou neto 4/tornado esposo incestuoso da em ogra devoradora dos seus, como acontece com a própria irmã quando
própria irmã/ só parece irreconhecível porque se realiza na forma de 1/cola- seus desejos são frustrados. E se a avó libertina da abertura iii se transforma
teral homem (irmão da heroína), 2/que permanece o bom pescador que ora em ogra canibal (M₅₆₀), ora em parente incestuosa (M₅₆₄), é porque ela
sempre foi, 3/embora o salmão que ele mata para se alimentar 4/seja, na ver- pretende ter ainda atividade sexual embora — pode-se conjecturar, a partir
dade, o marido exógamo de sua própria irmã. Aqui, por conseguinte, o per- do único traço pertinente capaz de distinguir uma avó ao mesmo tempo de
seguidor conserva sua natureza humana diante de uma vítima que assumiu uma mãe e de uma virgem púbere — ela não possa mais menstruar.
a aparência de um alimento animal bom para os humanos, ao passo que, lá, O caráter de grupo de transformação que apresentam as quatro aberturas
a vítima conserva sua natureza humana diante de uma perseguidora animal resulta, em última análise, da correspondência que se estabelece entre cada
que faz dos humanos seu alimento. A identidade do personagem muda, mas uma delas e mitos sul-americanos que, como mostramos em O cru e o cozido
todas as relações de simetria são preservadas. e relembramos aqui repetidas vezes, constituem eles mesmos um grupo de
Em segundo lugar, os mitos periféricos nos quais é possível reconhe- transformação. Ao longo das partes que precedem, estabelecemos a existência
cer formas limite do ciclo de Dona Mergulhão ilustram a inversão da irmã de uma relação de homologia entre o ciclo norte-americano do desaninhador
incestuosa em ursa, ou da própria ursa em contrário de uma irmã incestu- de pássaros e o de Dona Mergulhão, de um lado, e do outro, o ciclo sul-ameri-
osa. Um mito chilcotin que já utilizamos (M₅₈₁a, p. 177), com efeito, faz de cano do desaninhador de pássaros e o que se refere à introdução da vida breve.

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Mostramos igualmente que essa correspondência global podia ser analisada vários modos. Mas essa diversidade atesta justamente que, para conseguir
isolando caso a caso equivalências mais precisas no nível dos estados homó- fazê-lo, não basta realizar uma operação simples com cada um dos termos.
logos de cada transformação. Assim, os mitos norte-americanos de abertura i, Exceto no caso das duas irmãs, a passagem exige uma cadeia de operações.
que tem como tema o incesto, remetem, na América do Sul, a M₁ e M₂. Ainda Formulada desse modo, a dificuldade apresenta um interesse meto-
na América do Norte, a abertura ii inverte a precedente e a abertura iii, que dológico. Como sempre se observa em circunstâncias desse tipo, não são
também a inverte, mas num outro eixo, remete, na América do Sul, a M₅, de um os mitos que devem ser responsabilizados, mas a análise imperfeita a que
lado, e a {M₈₇-M₉₂}, do outro. Ou seja, a um mito e a um grupo de mitos que, foram submetidos. A anomalia que nos paralisa decorre de uma formali-
cada um a seu modo, transformam independentemente {M₁, M₂} e {M₇-M₁₂}, zação apressada demais. Quando definimos as quatro aberturas como o
que transformam um ao outro. Ora, vemos agora que a abertura iv remete, na fizemos, deixamos de lado duas questões que é preciso enfrentar. Primeiro,
América do Sul, a um grupo de mitos {M₂₂-M₂₄} que, como mostramos nos atendo-nos demais ao conteúdo aparente dos mitos, tratamos de construir
volumes anteriores (cc: 114-15; mc: 29, 375 et passim; omm: 352) também trans- um sistema de quatro termos por meio de apenas três relações de parentesco,
forma {M₁, M₂, M₇-M₁₂}. Excetuando-se a substituição do jaguar pelo urso devido ao fato de que, pelo menos na aparência, os mitos ilustram quatro
(animal que não vive nos trópicos), em ambos os casos os mitos introduzem a empregos distintos de três relações, que são as de avó, mãe e irmã. Resultava
história do desaninhador de pássaros após um episódio em que uma mãe, que daí que cada uma das duas primeiras era utilizada uma vez, ao passo que era
aliás mantém com os filhos uma relação ambígua, aparece inicialmente como preciso recorrer duas vezes à terceira, para definir a abertura i (irmã inces-
mulher menstruada, se transforma em canibal e acaba morrendo — num tuosa) e a abertura ii (irmã casta). Esse modo de proceder já introduzia um
buraco seco, dizem os mitos norte-americanos ou, segundo outras versões, desequilíbrio no sistema das quatro aberturas.
cozida por dentro —, ao passo que no mito sul-americano M₂₄ a ogra morre Além disso, e principalmente, não levamos suficientemente em conta o
primeiro numa fossa e depois é cremada numa fogueira. fato de, dependendo dos mitos considerados, ora uma única dessas três rela-
ções cumprir uma função pertinente, ora várias delas. O mito klamath M₅₃₈,
! que serviu de ponto de partida para a nossa análise, porque ilustra melhor
do que os demais o que conviemos chamar de abertura i, por exemplo, não
Os argumentos acima mostram que as quatro aberturas do ciclo norte- pode ser definido exclusivamente por uma referência ao personagem da
americano do desaninhador de pássaros estão em relação de transforma- irmã incestuosa, pois também põe em cena os dois outros personagens femi-
ção. Contudo, coloca-se uma outra questão: qual é a natureza dessa relação e, ninos, uma avó que age como ogra com seus netos e uma jovem casada que
quando se a encara de um ponto de vista formal, como pode ser analisada? protege os filhos que carrega no ventre a ponto de sacrificar a própria vida
Pelo que vimos até agora, parece que estamos diante de um sistema de qua- para salvá-los. Até agora, o interesse dessa personagem, chamada Cotovia
tro termos, cada um deles definível pela função semântica do personagem pareceu-nos anedótico, e é fato que ocupa uma posição bem modesta nos
principal: irmã incestuosa, irmã casta, avó libertina, mãe transformada em mitos do ciclo de Dona Mergulhão. Mas logo a veremos resusrgir com uma
ogra quando está menstruada. Mas essa recapitulação basta para convencer regularidade que não pode ser atribuída ao acaso, numa série mítica paralela
que, de um ponto de vista lógico, esses quatro termos não são homogêneos. (M₆₁₆-M₆₄₂; infra, p. 255-64) e, além disso, reconhecer que a mãe protetora
Uma irmã casta (abertura ii) pode ser vista como o oposto de uma irmã cumpre uma função pertinente na abertura i, tanto quanto a avó canibal
incestuosa (abertura i), mas percebe-se dificilmente o que seria preciso fazer e a irmã incestuosa, é condição sine qua non para que seja possível colocar
para reduzir as outras duas personagens a um par de opostos tão claro, e seu personagem em correlação e oposição com o da mãe transformada em
para evidenciar entre esse par e o outro alguma simetria. É evidente que ogra (=destruidora) da abertura iv. Com efeito, trata-se de uma mãe nos
existem relações entre os quatro termos, porém mais complexas do que dois casos, mas grávida num e menstruada no outro, ou seja, duas situa-
permitiria uma estrutura quadripartite que se assemelhasse, ainda que de ções igualmente possíveis para uma mãe, mas que se excluem mutuamente
modo aproximativo, à de um grupo de Klein (cf. omm: 293-95). Pode-se sem do mesmo como que se excluem as atitudes de proteção e crueldade que os
dúvida passar de um termo a outro; nas últimas páginas, temos feito isso de mitos associam a cada um dos estados.

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Até os mínimos detalhes dos mitos, encarados dessa perspectiva, escla- reduzir uma estrutura, não se perde sentido, como afirma frequentemente
recem uns aos outros. A mãe de M₅₃₈, M₅₃₉ salva do incêndio os filhos que uma crítica obtusa; obtém-se uma ferramenta conceitual que, operando sobre
carrega deitando-se no chão, para que seu corpo os proteja; as crianças a matéria prima do mito, permite extrair dele mais sentido do que se pen-
ainda estão em seu ventre, que funciona para eles como um abrigo. Simetri- sava no início. Mas toda simplificação supõe que se tenha recuperado, para
camente, enquanto a mãe de M₆₀₆a fica na cabana menstrual, esta funciona integrá-los no quadro de uma explicação geral, certos detalhes dos mitos que,
como um abrigo para os outros (que a mãe irá massacrar ao sair); e quando considerados insignificantes, supunha-se poder desconsiderar impunemente.
o mito precisa que seus filhos foram vê-la lá, ressalta implicitamente que eles Verificamos este último preceito a respeito da personagem de Cotovia.
estavam fora, e não dentro. Grávida, ela incarna o modo fecundo da juventude fisiológica, como a per-
Uma análise superficial nos tinha bastado para decompor o personagem sonagem da mãe menstruada — que lhe é correlativa — incarna (já que
da irmã em duas funções simétricas, irmã incestuosa e canibal (abertura i) e se trata, precisamente, de uma mãe) a mesma juventude num modo tem-
irmã casta e protetora (abertura ii). Agora constatamos que o personagem da porariamente estéril. Portanto, ela cumpre a abertura iv a mesma função
mãe também recobre duas funções do mesmo tipo, por meio das quais apa- semântica que, na abertura i, cabe à irmã incestuosa, também menstruada
rece uma relação de correlação e oposição entre a abertura i e a abertura iv. E segundo várias versões, e às vezes casada, mas nunca mãe, já que a abertura
quanto ao personagem da avó, de que a abertura i seleciona apenas o aspecto i coloca em oposição Dona Mergulhão e Dona Cotovia, assumindo esta a
canibal? O próprio título que demos à abertura iii fornece a resposta: essa avó função maternal na condição de mulher grávida e que, consequentemente,
é às vezes libertina, forma fraca das inclinações incestuosas que ela manifesta não pode estar menstruada. Que não nos acusem de atribuir aos índios
abertamente num grupo de mitos que — como mostramos (supra, pp. 143-66) noções de fisiologia que eles não possuem. Para validar essa interpretação,
— também pertencem à abertura iii. De modo que, para construirmos nosso basta considerar um fato da experiência: uma mulher grávida nunca está
sistema de quatro termos, não dispomos de três relações simples de parentesco, menstruada e uma mulher menstruada nunca está grávida.
como acreditávamos inicialmente, embora tomássemos a liberdade de desdo- Tratemos agora de interpretar no mesmo espírito a personagem da avó.
brar o personagem da irmã (procedimento que logo se mostraria equivocado, Já aventamos (p. 239) uma razão de ordem formal para ver nela uma mulher
já que esse era o único personagem a ser desdobrado), mas de três relações das que já passou da menopausa, e a mesma conclusão resulta de mitos per-
quais cada uma recobre um par de opostos. A irmã pode ser incestuosa ou casta, tencentes à abertura iii que só contradizem essa tese na aparência. Pois se
a mãe, canibal ou protetora, e a avó, canibal ou incestuosa. Afinal, a combina- o herói de M₅₀₁b, M₅₇₂-M₅₇₄ (supra, pp. 168-69) acusa falsamente a avó de
tória mítica não opera com termos, mas com os afastamentos diferenciais que estar menstruada, o episódio se situa no mundo primordial e ao contrário
prevalecem entre pares, cada um deles extraído do lote inicial de seis termos. em que, mesmo jovens, as mulheres ainda não ficavam menstruadas. Esta-
Agora podemos construir as quatro aberturas em forma de sistema coerente: mos portanto diante de mais um exemplo do senso de humor característico
do demiurgo enganador. Ao obrigar a velha a respeitar um tabu alimentar
aberturas: i ii iii iv que já não é da idade dela, ele apenas procura garantir para si toda a carne, já
irmã incestuosa protetora
que o estado que atribui comicamente à avó o dispensa de lhe dar um pedaço.
Bem, é evidente que uma mulher que não fica mais menstruada forma
avó canibal incestuosa sistema com uma mulher grávida e uma mãe menstruada: como a primeira,
mãe protetora canibal ela não pode ficar menstruada e, como a outra, ela não pode ficar grávida.
Longe de a definirem em relação à juventude fisiológica, os mitos da aber-
tura iii encarregam-na de um envelhecimento que, como tratam de mostrar,
Esse sistema, satisfatório do ponto de vista formal, não o é contudo do ponto avança irreversivelmente (supra, pp. 153-61), oposto, portanto, às duas outras
de vista semântico. Ele explica como os mitos são feitos, mas não nos ensina condições, que são eminentemente reversíveis, já que, enquanto persistirem
nada sobre o que dizem. Tentemos, então, simplificar o esquema, ainda que suas capacidades geradoras, uma mulher fica alternadamente grávida ou
seja apenas para aprender novamente nossa lição: sempre que se consegue não, disponível ou menstruada.

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Para obtermos um sistema quadripartite com valor explicativo, só falta Assim, ao mesmo tempo que temos acesso a uma dialética latente que
portanto podermos caracterizar a partir do mesmo ponto de vista a irmã opõe, no interior dos mitos, a juventude à velhice, a fecundidade à esterili-
casta e protetora, heroína da abertura ii. Mas assim que essa necessidade dade, a periodicidade curta à periodicidade longa, e a vida à morte, captamos
lógica surge, a matéria mítica fornece o motivo exigido na forma de um o esquema que rege sua geração. Apesar de, ou por causa de, sua simplicidade,
detalhe, desconsiderado por parecer ser de pouco interesse ou, como é o esse esquema possui simultaneamente estrutura lógica e eficácia semântica.
caso aqui, por ter sido interpretado de modo incompleto, em função unica- Reduz-se a uma fórmula quadripartite em que a mulher grávida se opõe
mente da cadeia sistagmática, porque no momento em que o consideramos, à mãe menstruada como se opõem entre si a avó incapaz de rejuvenescer,
ainda não dispúnhamos do conjunto paradigmático necessário para fazer apesar de libertina, e a irmã que pede uma velhice revogável como meio de
emergir seu significado, sob essa iluminação diferencial na ausência da qual salvaguardar sua virgindade. Afinal das contas, a oposição entre juventude
qualquer esforço para captar o sentido não passa de uma ilusão. fecunda e velhice estéril, bem como aquela entre velhice reversível e velhice
Voltemos, pois, ao texto de M₅₄₁. Sua heroína possui uma notável capa- irreversível, que lhe é simétrica, podem ser expressas por uma forma que não
cidade, a de assumir quando quer a aparência de uma jovem radiosa ou de é a primeira vez que encontramos (cf. omm: 332): x, —x, 1 , — 1 .
x x
uma velha seca e curvada pela idade. Ao citarmos e comentarmos esse traço
(supra, p. 56 e 61), nos contentamos em usá-lo como argumento em favor da
afinidade lunar da mãe do demiurgo. Agora percebemos que significa muito
mais do que isso, pois opõe a irmã casta à avó libertina do mesmo modo que
a mulher grávida se opõe à mãe menstruada. Estas duas últimas conotam a
juventude fisiológica, uma fecunda e a outra estéril. As duas primeiras, por
sua vez, conotam a velhice, uma reversível (≡ fecunda) e a outra irreversível
(≡ estéril). Mas a interpretação referente à lua não deixa de contar. Ao contrá-
rio, toma seu lugar num sistema de explicação mais inclusivo, e permite esta-
belecer outras ligações entre os termos. A afinidade da protagonista alter-
nadamente jovem e velha com a lua é de ordem metafórica, e se levarmos
em conta que os índios da América do Norte superestimavam mais do que
subestimavam a conexão entre a menstruação e as fases da lua (omm: 182-
83), surge uma afinidade de ordem metonímica entre a mulher menstruada
e o astro noturno. De modo que se trata, nos dois casos, de uma periodici-
dade de ciclo curto, cujo caráter serial ressaltamos no volume anterior (omm:
90-91), colocando-a em correlação e oposição com uma periodicidade mais
longa e de caráter estrutural, ilustrada aqui mesmo pelos dois outros termos.
Com efeito, estes estão em relação de complementaridade em relação um ao
outro: uma mulher que morre grávida, mas dá à luz filhos póstumos, atesta
o poder irreprimível da vida, assim como uma velha a quem se mostra que,
apesar de seus esforços para manter uma vida sexual, é proibido rejuvenes-
cer, atesta o poder irreversível da morte. Pois é preciso que as velhas gera-
ções desapareçam para que as mais jovens tomem seu lugar. Toda a filosofia
norte-americana a respeito da morte gira em torno desse tema: se os mortos
pudessem ressuscitar, ou os velhos rejuvenescer, logo a terra ficaria superpo-
voada; não haveria lugar para todos.

258 | Quarta parte: Cenas da vida de província Peixes solúveis | 259


ii. A praça do mercado

Ali, como tudo está previsto, a venda, a compra, o


lucro, os comerciantes acabam dispondo de dez horas
sobre doze para empregar em alegres partidas, obser-
vações, comentários e constantes espionagens.
h. de balzac, eugénie grandet, A comédia humana,
Ed. da Pleiade, iii, p. 482

Acabamos de alargar o campo de investigação, incluindo nele as versões


sahaptin do mito do desaninhador de pássaros, e esse alargamento permi-
tiu simplificar sensivelmente nosso modelo. Em sua nova forma, ele contém
os quatro diferentes modos pelos quais um mito pode começar, revela suas
interrelações lógicas e desvela seu significado compartilhado. Porém, como
havíamos indicado (supra, p. 232), essas versões sahaptin colocam outros
problemas. Num certo sentido, elas complicam o modelo, por acrescentarem
novos episódios a uma história que parece ir se alongando progressivamente.
As versões chinook já apresentavam um desenvolvimento imprevisto, com a
liberação dos salmões, razão pela qual Sapir quis fazer dele um mito distinto,
arbitrariamente colado à primeira parte da narrativa por efeito de contin-
gências históricas. Mostramos que não é nada disso. O episódio da liberação
dos salmões explicita, a seu modo, o conteúdo latente de um esquema mítico
que, tanto na América do Norte como na América do Sul, remete à origem
do fogo ou da água. No entanto, as versões sahaptin não se limitam a manter
esse episódio, inclusive no mesmo lugar que as versões chinook, e acrescen-
tam dois episódios suplementares, o do roubo recíproco do alimento e o da
organização do mundo físico e social pelo demiurgo (supra, p. 234-35).
De modo que tudo se passa como se as formas norte-americanas do
mito fossem compostas de cubos, como os brinquedos de construção infan-
tis. Uma vez colocado o bloco central, que corresponde ao episódio do

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desaninhador de pássaros (cf. M₅₂₉-M₅₃₁), cada narrador teria a liberdade que engloba bens materiais e mulheres. Consequentemente, o mesmo mito
de juntar, de cada lado, um número variável de blocos. De um lado, o episó- que, na América do Sul, permite a tribos de baixo nível técnico e econômico
dio da mãe ou avó transformada em ursa grizzly e, eventualmente, o da irmã fundar a existência de uma culinária reduzida a seus dados elementares,
incestuosa. Do outro lado, e sempre segundo a vontade do narrador, os epi- fogo, água e carne, desempenha um papel comparável na América do Norte.
sódios da liberação dos salmões, do roubo de alimentos e da ordenação do Mas seu esquema se altera, e seu centro de gravidade se desloca, nas mãos de
mundo. Ou seja, um total de seis elementos, de que os Klamath e os Modoc populações que viviam mais da pesca do que da caça, e que foram capazes
utilizariam de um a três, dependendo da versão: o elemento central e depois, de criar essas instituições elaboradas que eram as grandes feiras comerciais
eventualmente, o segundo e o primeiro. As versões chinook empregariam e internacionais realizadas no curso inferior do rio Columbia.
apenas o terceiro e o quarto elementos, as versões kalapuya apenas o quarto Para que o leitor possa apreciar o alcance e a complexidade dessas trocas,
(correspondente à liberação dos salmões em forma modificada) e, final- é preciso citar quase que na íntegra a descrição que Teit (1928: 121-22), no iní-
mente, as versões sahaptin utilizariam todos, do segundo ao sexto, exceto o cio do século xx, colheu da boca de velhos informantes. Tendo explicado que
primeiro, que corresponde ao ciclo de Dona Mergulhão. a introdução do cavalo deu um impulso considerável ao comércio indígena,
Mostramos, entretanto, que a inserção do quarto elemento nas versões ao permitir transportar até os mercados cestos cheios de preparados a base
chinook não é fortuita, e agora convém resolver a mesma dificuldade no que de raízes e tubérculos comestíveis e pastas de bagas secadas ao sol, anterior-
concerne os dois últimos elementos. O que trazem eles de novo ao desen- mente pesadas e volumosas demais para serem transportadas, ele conta que
rolar da narrativa? Depois de ter enchido os rios de peixes e inventado as o antigo comércio envolvia sobretudo artigos preciosos e leves: “Os povos
técnicas de pesca, Coiote aprende, à sua própria custa, que ainda não obteve do interior vendiam às tribos costeiras cachimbos, tabaco, vários tipos de
a segurança alimentar. Pois não basta existirem o alimento e os meios prá- ornamento, cânhamo nativo [Apocynum], peles curtidas, arcos e outros obje-
ticos de obtê-lo, é ainda preciso que seres, próximos pela espécie como o tos, em troca dos quais recebiam sobretudo conchas de vários tipos. Os da
são o lobo e o coiote, concordem em consumir cada um por si a fração costa também compravam cavalos. Em Dalles, eram negociados couros, peles,
dos recursos naturais que lhe cabe, em vez de a roubarem uns dos outros; peixe, óleo, raízes, carne seca, penas, roupas, conchas, escravos e cavalos. De
e mesmo que esses alimentos destinados a quadrúpedes terrestres e muito modo geral, os produtos do baixo Columbia, da costa e do Oregon, mais ao
semelhantes sejam tão diferentes quanto peixes de origem aquática e ovos sul, eram trocados pelos do interior, provenientes do leste e do norte.
de aves de origem celeste. Um microcosmo definido em termos de dietas ali- Em Dalles e a oeste das Cascades, os Salish do Columbia juntavam pro-
mentares reflete, assim, a imagem de um universo ainda mergulhado no caos. dutos que transportavam por montanhas e vales, para vendê-los com lucro
Após ter experimentado os inconvenientes dessa situação, Coiote põe nela aos Sanpoil, aos Okanagon e a outras populações. Vendiam-lhes também
um ponto final, editando sua lei: os peixes não serão pescados em qualquer cavalos e grandes quantidades de conchas brutas ou trabalhas e contas de
lugar; como as espécies zoológicas, os humanos se repartirão em tribos pela osso. Essas contas de osso ou de concha, bem como as conchas dentalia,
superfície da terra; e falarão línguas diferentes, e se encontrarão em feiras, eram enfiadas e vendidas por unidades de comprimento. As conchas de água
onde trocarão entre si víveres, matérias primas e objetos manufaturados. doce serviam para fazer pendentes de colares, brincos etc., ornamentos apre-
Uma diversidade ordenada irá substituir a confusão dos gêneros, a guerra e ciados por todos. Mas o valor mais alto era atribuído a duas ou três espécies
o roubo desaparecerão, em prol do mercado. de conchas grandes brilhantes e irisadas, provenientes da costa. Os Sanpoil
Os dois novos episódios introduzidos pelas versões sahaptin estão, por- e os Okanagon aparentemente obtinham dos Salish do Columbia a maior
tanto, ligados por uma relação necessária, pois juntos cumprem a mesma e parte de seu cobre, vários instrumentos de pedra, como machados de pedra
complexa função etiológica. Depois da origem do salmão e da pesca, eles verde, enxós, maças etc., e também cestaria espiralada e cobertores de lã de
primeiro fundam a diversidade espacial das espécies de peixes e a periodici- cabra montanhesa. O comércio com os Thompson se fazia principalmente
dade temporal de seus hábitos, em seguida, a diversidade cultural dos povos, por intermédio dos Okanagon; havia pequenos mercados locais, perto da
tal como se manifesta na pluralidade de línguas e, finalmente, a solução de foz dos rios Okanagon e Snake. Os do Columbia também trocavam com os
ordem ao mesmo tempo econômica e social trazida pela troca intertribal, Spokane. Produtos vindos de lugares afastados, como o território modoc, o

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rio Rogue e o território chasta chegavam, assim, a Dalles, assim como pro- do sul e sudeste e gente do norte e nordeste. Os Wishram, todos os outros
dutos de regiões distantes da costa, ao sul e ao norte, e da região das Planí- residentes em Dalles e os Kalapuya sempre foram mais ou menos hostis
cies. Segundo Revais [um dos informantes de Teit], a maior feira intertribal aos comerciantes brancos. Ressentiam-se do fato de eles negociarem dire-
era a de Dalles. Os que ali residiam viviam exclusivamente da pesca e do tamente com as tribos vizinhas, pois consideravam-se como intermediários
comércio. Compravam, para revendê-la, quase toda a mercadoria que lhes de pleno direito.
traziam. Uma outra feira era realizada no rio Grande Ronde, no leste do Ore- Como um sistema assim reverbera nos mitos inicialmente encontrados
gon, outras na foz do rio Cowlitz, perto de Scappoose, e na frente da foz do entre povos da América tropical, cuja organização econômica é muito mais
rio Lewis, perto de Oregon City, na Grande Ronde a oeste, no médio curso rudimentar? Essencialmente de dois modos. Por um lado, o peixe assume o
do Nisqually, no curso superior do Puyallup, na foz do Okanagon, nas proxi- lugar da carne como principal matéria prima culinária e, além disso, a passa-
midades de Colville e na foz do Snake. Havia mercados secundários no ter- gem da natureza à c.ultura é menos significada pelo ato culinário em estado
ritório da maioria das tribos. Um tráfico considerável, vindo do oeste ou do bruto, que transforma cru em cozido, do que pelas transações comerciais que
sudoeste do Oregon e das terras (ou do rio) Klamath, passava pelo território permitem a passagem de uma alimentação monótona a um menu variado.
kalapuya, por Oregon City, e chegava a Dalles. Um velho caminho partia da Um pouco do mesmo modo que nós, que com um nível de vida melhorado,
costa e das terras nehalem, ia até as vizinhanças de Scappoose e em seguida pensamos mais em inventoriar o que os economistas chamam de “cesta básica”
bifurcava para o norte, até o rio Cowlitz, e para o leste, subindo o vale do do que em invocar, como nossos pais, a benção do “pão de cada dia”. Num
Columbia até um ponto onde os Nehalem, os Cowlitz, os Tlatskanai, os Chi- sistema em que as relações originais que cada povo mantém com a natureza
nook e outras tribos se encontravam para comerciar. Desse modo, artigos se encontram, de algum modo, multiplicados pelas relações complementares
comprados lá pelos lados dos rios Grande Ronde e Okanagon eram reven- que povos diferentes tratam de travar entre si, tudo está ligado. A troca de
didos em Dalles, onde chegavam também artigos provenientes da costa de mensagens, graças ao uso corrente de várias línguas e do jargão chinook —
Oregon e Washington, de Puget Sound, dos planaltos do interior a norte e a meio de comunicação intertribal muito antes de os brancos o adotarem em
leste, das Planícies, do interior do Oregon e da Califórnia. suas relações com os índios e estenderem seu uso do litoral da Califórnia
Antigamente, encontrava-se muitos escravos no baixo Columbia e em Dal- até o do Alasca (Ray 1938: 36 n.9, 99; Jacobs 1932). A troca de bens, como
les, meninos, meninas, e alguns adultos. Todas as tribos do Oregon e da costa alimentos em conserva, dos quais o principal era o peixe seco inteiro ou na
se dedicavam a esse tráfico. As pessoas de Dalles compravam os escravos para forma de farinha, óleo de peixe, peles, artigos de cestaria, conchas marinhas,
revendê-los; havia entre eles índios Snake e outros da costa da Califórnia. Os cavalos, escravos. E, finalmente, a troca de mulheres. A esse respeito, testemu-
Klamath e os Kalapuya compravam de outras tribos ou capturavam eles mes- nhos provenientes dos Kalapuya, tribo vizinha dos Chinook e dos Sahaptin
mos na guerra escravos shasta ou do rio Rogue. Todos os escravos eram cer- ao sul do rio Columbia, mostram bem que no pensamento dos povos dessa
tamente prisioneiros de guerra ou crianças já nascidas na servidão. Nem em região, ainda mais do que alhures, os casamentos eram indissociáveis das
Dalles nem em nenhum outro lugar os Salish do Planalto ou pessoas de língua transações comerciais, de que constituíam ao mesmo tempo uma fase e um
sahaptin eram mantidas, vendidas ou compradas como escravos. aspecto. “Antigamente — conta um informante — quando um índio queria
Os artigos oferecidos no mercado eram principalmente conchas, contas, uma mulher, sempre tinha de comprá-la. Não podia simplesmente incor-
cobertores da Companhia da Baía de Hudson, roupas diversas, cavalos, pei- porá-la ao círculo familiar, precisava comprá-la de alguém com dinheiro
xes; além de escravos, canoas, couros curtidos e peles... As que os habitantes vivo”. O marido de uma mulher adúltera requeria do rival uma indenização
de Dalles vendiam à Companhia da Baía de Hudson provinham todas de em espécie, e se ela tivesse sido violentada, exigia do culpado o reembolso
outras tribos; mais tarde, elas ficaram raras, porque os caçadores de peles as integral do que havia pago por ela, pois era preciso que “ninguém pudesse ter
entregavam diretamente aos agentes locais. Na estação das feiras, visitantes uma mulher de graça”. Consequentemente, pais de muitas filhas contavam
de todas as origens vinham a Dalles: Columbia, Spokane, Yakima, Klikitat, em enriquecer ao casá-las. A cerimônia de casamento atingia uma intensi-
Tyighpam, Wallawalla, Umatilla, Cauyse, às vezes Palouse, Nez-Percé, Kla- dade dramática quando a moça, carregada nas costas por um homem, era
math, Molala e Kalapuya. De modo geral, as trocas eram feitas entre gente levada ao local onde tinham sido amontoadas as riquezas que representavam

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seu preço. Se o pai considerasse que a pilha era suficientemente alta, ordenava Note-se que essa transformação de uma mulher em salmão para escapar
que se pusesse a jovem no chão; se não, o carregador a levantava ainda mais de um homem que ela não ama se aproxima daquela que encontramos em
sobre os ombros. Em caso de acordo, a família do noivo recebia a prometida M₅₄₁, em que um homem se transforma em salmão para seguir a mulher por
e a da noiva, o dinheiro, “bens de valor”, que consistiam em conchas mari- quem está apaixonado (supra, p. 57, 67). Ora, assim como M₅₄₁, ainda que
nhas enfiadas em cordões cujo comprimento podiam ser facilmente medido de outro modo e em outros eixos, M₆₁₀ inverte o mito do desaninhador de
graças a uma marca tatuada no antebraço. Quando se dizia que um homem pássaros. Em M₆₁₀, Águia é mais velho que Coiote e rejeita a única mulher
era rico, isso significava ao mesmo tempo que tinha muito dinheiro, perten- que se oferece em vez de ter várias esposas. E Coiote nem de longe pensa
cia à mais alta sociedade, podia facilmente casar-se e possuía muitos escra- em roubá-la, tanto que começa se propondo a intermediar o casamento do
vos (Jacobs 1945: 43-47). Atitudes do mesmo tipo podem ser encontradas em irmão com ela.
toda a área que consideramos até agora. Entre os Nez-Percé, primos orien- Em M₆₀₆a, versão sahaptin do desaninhador, Coiote propõe casamento
tais dos Sahaptin, a “visita de casamento” que os parentes e amigos do pre- a uma mulher que prefere se jogar numa fogueira de comida; de modo
tendente faziam aos da prometida implicava uma troca solene de presentes, que a comida desaparece junto com ela. Aqui, é o contrário, a mulher que
carne seca dentro de sacolas de couro e roupas novas, contra raízes e bagas Coiote gostaria de ter se afoga voluntariamente e, por isso, o alimento apa-
comestíveis dentro de cestos trançados e roupas usadas. A família do marido rece. Trata-se, portanto, da criação do salmão por uma mulher que quer
também dava cavalos, objetos manufaturados e armas. E a da esposa, contas escapar de Coiote, em vez de, como em M₆₀₆a e outros mitos (M₆₀₁-M₆₀₂,
raras, ornamentos e bordados (Phinney 1934: 41 n. 1). Na outra ponta dessa M₆₀₇), os salmões serem liberados contra a vontade de mulheres que acolhe-
mesma área, os Modoc expressavam com vigorosa concisão sua filosofia da ram Coiote como descendente ou ascendente adotivo, sem que ele se tenha
aliança matrimonial. O pai satisfeito de uma jovem que, logo depois de se oferecido como marido.
casar, se empenha em abastecer sua família de origem exclama: “É para isso A que correspondem, afinal, essas reviravoltas? Aparentemente, os dois
que servem as filhas e irmãs, para que sejamos alimentados pela família dos mitos possuem a mesma função etiológica, pois M₆₁₀ também começa expli-
que se casaram com elas” (Curtin 1912: 264). cando a origem dos salmões, depois a da diversidade dos povos e línguas, e
Um mito sahaptin cujos protagonistas, como no do desaninhador finalmente a da vida social bem regrada. Porém, justamente, as regras não
(M₆₀₆a) são Águia e Coiote — mas neste caso respectivamente irmão mais são as mesmas nos dois casos. M₆₀₆a trata da instituição das feiras e trocas
velho e caçula, um caçador e o outro mero carregador de caça — conecta comerciais das quais, como vimos, a compra de mulheres não pode ser sepa-
ainda mais diretamente a pesca e e busca de uma esposa. Conta (M₆₁₀, rada (cf. supra, M₆₀₈ e infra, M₆₁₄, p. 252). Todos esses assuntos dizem respeito
Jacobs 1929: 223-25) que Coiote encontrou uma mulher jovem e bela, a qual à vida relacional, já que é preciso adquirir de grupos estrangeiros os bens
lhe disse que queria se casar com um homem de alta estirpe. Coiote sugeriu que não se produz e, como expressam com tanto vigor os Kalapuya, ao faze-
seu irmão Águia e a mulher, encantada, pediu-lhe que o sondasse. Descon- rem da exogamia uma função do casamento por compra, deve-se desposar
fiado, Águia disse não e Coiote pensou que poderia ele mesmo tentar. Mas não-parentes em consequência da regra que inclui as mulheres entre as coisas
a mulher preferiu virar um salmão. Ela sabia que logo os humanos surgi- que se compram. Mas M₆₁₀ considera menos as diferenças externas entre os
riam na terra e que ela seria para eles um alimento de qualidade superior. grupos do que as diferenças internas aos grupos, entre homens e mulheres,
Coiote fabricou a primeira nassa de pesca, e decretou que sempre seria assim que não podem observar as mesmas regras de conduta, e entre nobres e ple-
quando os humanos viessem, e acrescentou: “Agora, irei até onde vai a terra e beus ou pessoas de status indeterminado, que não podem casar entre si. Essas
para todos os diversos lugares. Pois diversos também serão os povos e as lín- regras internas agem no sentido contrário do da troca, pois prescrevem a
guas. E doravante, nenhuma mulher tomará a iniciativa de se casar com um manutenção de distâncias que o espírito da troca convida a superar. Compre-
homem de alta estirpe. No futuro, serão os homens que irão buscar esposas, ende-se, assim, porque Coiote acolhe com entusiasmo a ideia de seu irmão
e não o contrário... Eis a lei que Coiote decretou a Dona Salmão e que é res- se casar com a bela estrangeira. Nos mitos, ele se comporta como um verda-
peitada até hoje. Nunca mais aconteceu de uma mulher tomar a dianteira e deiro maníaco pela troca: “Aonde ia, encontrava todos os tipos de coisas boas;
pedir a um nobre que se casasse com ela”. comprava-as, e elas ficavam sendo suas” (Jacobs 1934: 100). Infelizmente para

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ele, ele nem sempre sabe onde parar. Troca, por exemplo, o próprio pênis por qual o demiurgo poupa apenas os mais ricos. Nós já a tínhamos encontrado,
um outro, cuja especialidade é cortar árvores como um machado, mas Coiote bem no início do primeiro volume destas Mitológicas, num mito Bororo (M₂,
se vê num terreno sem árvores, e o membro se volta contra ele; Coiote tem de cc: 56-58) cuja conclusão devemos relembrar: “Ele não matou os que tinham
devolvê-lo rapidamente ao antigo proprietário. “Esse é o tipo de negociante trazido muitos adornos, mas matou os que tinham trazido poucos”. Por um
que ele era” (M₆₁₁a, Jacobs 1934: 74-76; cf. Chinook, M₆₁₁b, infra, p. 393). Ou movimento dialético inverso ao que acabamos de descrever na América do
então ele não resiste à vontade de trocar seus olhos pelos de um malabarista Norte (supra, p. 251), tratava-se, ali, da instituição de uma ordem interna, a
que lança e recupera os seus à vontade, mas quando tenta fazer o mesmo, o que, no interior do próprio grupo social, permite estabelecer uma distinção
abutre pega os olhos no ar e os leva embora. Coiote fabrica olhos postiços entre superiores e inferiores, nobres e plebeus. Para fundar a existência da
com flores que estão murchando, e fica cego. Acaba finalmente conseguindo ordem externa, tal como expressa nas diferenças físicas entre povos vizinhos,
trocar seus olhos com um pássaro que vive perto do chão porque ficou míope, os Bororo utilizam um outro mito, construído a partir do mesmo esquema
e com o caracol, que desde então é cego (M₆₁₂a, b, c, Jacobs 1934: 100-01, 109, (M₃, cc: 59). Seu herói escapa de uma morte de origem cósmica porque é
208-09; e M₃₇₅b, Adamson 1934: 173-74). manco, o que faz com que ande devagar, ao passo que, nos mitos sahaptin, o
A paixão de Coiote pelo escambo é comparável à sua paixão pela diver- herói incumbido da missão simétrica começa sofrendo uma morte de ori-
sidade. É ele que vai dispersar as raízes, frutos e grãos comestíveis que um gem humana porque não é capaz de correr depressa o bastante. Vê-se que
menino guloso tinha armazenado no próprio ventre (M₆₁₃a, b, Jacobs 1934: os sistemas míticos das duas Américas também se intersectam nesse ponto.
62-64) ou, segundo os Nez-Percé, um monstro cujo corpo ele despedaça,
espalhando os pedaços em todas as direções, que dão origem às diversas !
tribos (M₆₁₃c, Phinney 1934: 26-29). Os Sahaptin ocidentais contavam que
Coiote “fez todos os tipos de coisas diferentes... povos... línguas... Desde Se a análise acima estiver correta, resulta daí que os mesmos mitos que ser-
então, essa é a lei” (Jacobs 1934: 59). Uma série de mitos da mesma pro- vem aos índios do Brasil central para fundar a origem da culinária servem
veniência ou de origem salish têm por herói Coiote em posição de irmão aos da bacia do Columbia para fundar a origem das trocas comerciais. Os
mais velho, e Raposa como caçula (M₆₁₄a, b, c, d, Jacobs 1934: 96-98, 112- mitos sul-americanos sobre a origem da cozinha se transformam, ali, em
13, 169-71). Essa nova transformação afeta a função etiológica dos mitos, mitos da origem da carne, de um lado, e das plantas cultivadas, do outro. Pelo
que nesse caso concernem não só à origem dos povos estrangeiros como menos era isso que o primeiro volume tentava demonstrar. Numa região da
também à dos inimigos (“os Sioux”, diz M₆₁₄a), a origem de uma compe- América do Norte onde se vivia mais de pesca do que de caça, e onde não se
tição como a corrida, em vez das trocas comerciais e, finalmente, a origem praticava a agricultura, são os mitos sobre a origem dos peixes que se trans-
do inverno, ao passo que as feiras eram realizadas no verão. Voltaremos a formam em mitos sobre a origem da troca, que permite obter peixe quando
isso (infra, p. 288-89). Por enquanto, basta notar que os estrangeiros a quem não se dispõe dele ou, caso contrário, obter bagas, grãos e raízes em troca de
Coiote e Raposa fazem uma visita exigem que eles enfrentem numa corrida peixe. A existência de uma economia de mercado gera uma transformação
a filha de seu chefe. Essa Atalante se casará com quem a vencer, mas o con- no plano das superestruturas. Em vez de a passagem da natureza à cultura se
corrente derrotado será decapitado. Coiote perde a corrida e a cabeça, mas expressar por intermédio de uma oposição simples entre as categorias cru e
Raposa ganha, e ressuscita o irmão mais velho. Depois, continua M₆₁₄c, os cozido, lança mão de recursos de uma ideologia mais complexa, que eleva a
heróis mataram todo mundo, exceto alguns de que eles apenas exigiram um oposição pertinente ao nível das máximas: cada um por si ou toma lá, dá cá.
resgate, extorquindo-lhes vários tipos de objetos preciosos. Coiote levou-os Tudo isso pode ser demonstrado de outro modo, com a introdução de
embora cantando: “Isso servirá para adquirir uma esposa, isso será o pre- um grupo de mitos também provenientes dos Sahaptin, cuja sequência ini-
sente de abertura, para iniciar as trocas, isso é para os cunhados e cunhadas, cial reproduz literalmente a abertura iv, própria das versões sahaptin da his-
aquilo para as sobrinhas, isso para a família da esposa falecida. E isso aqui tória do desaninhador de pássaros:
será para pagar os amores ilícitos”. É notável que se reencontre aqui a noção
de afastamentos diferenciais criados no seio de uma população dizimada, da

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M 615 KLIKITAT: AS DUAS URSAS que são, nos dois casos, uma Dona Ursa e uma Dona Grizzly, desemboca,
num caso, no surgimento da humanidade, possibilitado pela instauração
Um homem (chamado Arco, como em Mgaga, segundo uma das versões; Jacobs 1934: das feiras e mercados que permitirão aos humanos se alimentarem segundo
159) tinha se casado com duas irmãs. A mais velha, chamada Grizzly, era mãe de uma a cultura, trocando seus respectivos meios de subsistência. No outro caso, o
menina. A mais nova, chamada Ursa, não tinha filhos. Ambas coletavam raízes e fru- mesmo conflito se encerra com a transformação definitiva dos seres míti-
tos selvagens, mas sempre em direções diferentes. Grizzly tinha determinado que cos em animais. Destinados a se alimentarem segundo a natureza, a partir
assim fosse. de então cada um deles comerá por conta própria. Exceto em alguns casos,
Certo dia, Ursa zangou-se com a sobrinha e bateu nela. A menina, com medo, que os mitos também consideram e para os quais elaboram soluções espe-
não ousou se queixar. Diante dessa timidez, Ursa ficou ousada, e foi estudar os terre- cíficas, como veremos em breve (quarta parte, iii), a troca não ocorre na
nos que a irmã tinha reservado para si. Lá encontrou grandes quantidades de bagas natureza, onde não existe meio termo entre o ensimesmamento e a agressão
(huckleberries, termo que designa diversas espécies, cf. Gunther 1945: 43-44). Desde contra outrem.
que vira a filha chorando, Grizzly andava desconfiada; ficou furiosa quando encon- Mas antes de passarmos para este último aspecto teórico da troca tal
trou os rastros da coletora. Mas Ursa se adiantou: fez suas necessidades em todos os como é concebida pelos mitos, convém enfrentarmos uma dificuldade.
lugares onde os frutos estavam maduros, voltou para casa, matou a sobrinha, des- M₆₁₅, além de pertencer ao grupo que estamos discutindo, pertence a um
tripou o cadáver, enterrou-o e fez uma espécie de boneca com a pele. Depois fugiu, outro que, desde o inventário sumário de Dangel (1929), os mitólogos
decidida a nunca mais rever a irmã. norte-americanos chamam “dos veadinhos e dos ursinhos”. Sua área de
Quando Grizzly voltou, no começo achou que sua filha estava de pé à beira da distribuição é ao mesmo tempo restrita e compacta. Vai dos Kwakiutl da
água, mas logo percebeu que estava morta. Seguiu os rastros de Ursa até os terre- Colúmbia Britânica, ao norte, até os Pomo e Miwok da Califórnia central,
nos de coleta, onde os excrementos depositados pela irmã começaram a chamá-la ao sul.2 Vamos dedicar um instante a esse ponto. Embora os protagonis-
de todos os lados. Desnorteada, Grizzly corria para todos os lados, até ficar exausta. tas variem, esses mitos sempre descrevem um estado primitivo em que os
Acabou desistindo da perseguição. Ursa, que tinha conseguido apagar seus rastros, animais de espécies diferentes e antitéticos (às vezes até um animal e uma
nunca mais foi vista (Jacobs 1934: 45-47; cf. supra, p. 159-63 e Mgfe, p. 186-88???). planta) vivem numa proximidade anti-natural: eram irmãos, afins ou ami-
gos. Sua combinação logo descamba em desastre: a criatura mais forte mata
Quase todos os mitos pertencentes a esse grupo enfatizam uma diferença a mais fraca, e os filhos desta a vingam massacrando seus companheiros de
entre as duas mulheres: uma delas só escolhe os frutos maduros, e a outra brincadeira. Os assassinos fogem, perseguidos pela mãe de suas vítimas, e
colhe também os verdes, junto com as folhas e galhos, o que deprecia sua conseguem escapar.
colheita (M₆₁₈, M₆₂₀, M₆₃₀ etc.). No começo, as mulheres tomam o cuidado
de não invadir o terreno uma da outra (M₆₁₅, M₆₂₈), mas as coisas se com-
2 . Segue o inventário, certamente incompleto, das variantes: Clackamas, M₆₁₆-M₆₁₉,
plicam quando elas brigam e esquecem essa regra de comportamento. Na Jacobs 1959, i: 130-66. Kathlamet, M₆₂₀, Boas 1901: 118. Thompson, M₆₂₁a-d, Boas 1891-
maioria das versões, o resultado é um massacre recíproco, depois do qual 95: 16, Hill-Tout 1899a: 95, Teit 1898: 69-72, 1912b: 218-24. Lilloet, M₆₂₂, Teit 1912a: 321-323.
os sobreviventes se separam definitivamente. Mas essa separação carrega Shuswap, M₆₂₃, Teit 1909: 681-84. Chehalis, M₆₂₄, Hill-Tout 1904b: 360-62. Snohomish,
uma lição, que o narrador de M₆₁₅ extrai com lucidez: “Esse é o mito kli- M₆₂₅, Haeberlin 1924: 422. Comox, M₆₂₆, Boas 1891-95: 81. Kwakiutl, M₆₂₇a, b, Boas 1891-
kitat. Agora, são só o urso e o grizzly, não são mais pessoas. O mito não vai 95: 168, Boas & Hunt 1906: 15. Kalapuya, M₆₂₈, Jacobs 1945: 115. Coos, M₆₂₉, Jacobs 1940:
além daí. Atualmente, esses bichos nunca comem a comida um do outro. 152. Takelma, M₆₃₀, Sapir 1909b: 117. Klamath, M₆₃₁a-c, Gatschet 1890, i: 118, Stern 1963: 37,
Barker 1963a: 7. Sinkyone, M₆₃₂, Kroeber 1919: 349. Lassik, M₆₃₃, Goddard 1906: 135. Kato,
E quando um deles, por acaso, descobre o lugar onde o outro se alimenta,
M₆₃₄, Goddard 1909: 221. Yana, M₆₃₅, Sapir 1910: 203-08. Maidu, M₆₃₆a, b, Powers 1877:
evita-o. É assim que são as coisas desde então” (Jacobs 1934: 47). 341, Dixon 1902-07a: 79. Wappo, M₆₃₇, Radin 1924: 47. Pomo, M₆₂₈-M₆₄₀, Barrett 1933:
É de pouca importância saber se a etologia dos ursídeos confirma ou 327-354. Miwok, M₆₄₁a-c, Gifford 1917: 286-333, Kroeber 1907b: 203-04, C.H. Merriam
não a conclusão do mito. Como M₆₀₆a, ele começa na época em que os 1910: 103. Shoshone, M₆₄₂, Lowie 1908: 253. Cf. também Klamath-Modoc, M₃₇₃b,c, Barker
humanos não se distinguiam dos animais. Um conflito entre seres míticos, 1963a: 50-57, Stern 1963: 39-40, Curtin 1912: 249-53. Discurssão geral em Boas 1916: 586-88.

270 | Quarta parte: Cenas da vida de província A praça do mercado | 271


As famílias que se tornam inimigas são compostas de ursos de espécies bondade de nos auxiliar, começando por chamar a atenção para uma excla-
difertentes (M₆₁₅, M₆₁₆-M₆₁₉, M₆₂₁, M₆₂₄-M₆₂₅, M₆₂₈, M₆₂₉, M₆₃₀), ou de mação de Coiote num mito wasco: /xalxalaep walxalaep/ (Hymes 1953).
ursos e cervídeos. Esta última forma parece ser periférica em relação à outra, Segundo ele, a fórmula kathlamet não poderia ser analisada, embora pareça
já que se encontra tanto entre os Kwakiutl, ao norte (M₆₂₇) quanto, no sul, aproximar-se de expressões que denotam a ação de respirar ou fazer um
entre os Klamath (M₆₃₁), os Atabascanos da Califórnia (M₆₃₂-M₆₃₄), os Yana chamado. Por outro lado, Hymes considera que a fórmula clackamas signi-
(M₆₃₅), Maidu (M₆₃₆), Wappo (M₆₃₇), Pomo (M₆₃₈-M₆₄₀) e Miwok (M₆₄₁) e, fica “fazer ferver” repetido várias vezes seguidas. Para explicar a recorrência,
finalmente, a leste, entre os Shoshone (M₆₄₂). Mas o motivo pode ser seguido no mesmo contexto, de formas verbais foneticamente semelhantes em kla-
para além de sua área de difusão principal, até os Assiniboine e os Ojibwa, math e em clackamas (mas que não têm o mesmo sentido nos dois casos),
onde já o encontramos (M₃₇₃a, M₃₇₄, omm: 47-49). O conjunto do ciclo nosso colaborador aventa, não sem algumas dúvidas, a hipótese de que um
poderia, portanto, ser formalizado assim: (Grizzly: Urso):: (Urso: Cervídeo):: simbolismo fonético muito antigo teria sido conservado nas duas línguas,
(Cervídeo: Rã):: (Rã: Humano), se algumas versões aberrantes não compli- ambas do tronco penutiano, mas atualmente muito afastadas.
cassem. Uma delas, proveniente dos Shuswap (M₆₂₃), opõe ursos a castores, Mas isso só resolveria parte do problema, pois um mito thompson, da
e uma outra, dos Kathlamet (M₆₂₀), o Tordo (“robin”, Turdus migratorius) família salish, portanto, que não pertence ao tronco penutiano, uma ursa
a Dona Framboesa (“salmonberry”, Rubus spectabilis). Como não preten- grizzly tenta apagar o fogo com terra, gritando /lîpa lîpa lîpa/, fórmula que
demos fazer o estudo exaustivo do grupo, deixaremos de lado esses casos Teit (1898: 61, 113 n. 205) comenta nos seguintes termos: “Os ursos fazem um
particulares, que não afetam a unidade do sistema. ruído que lembra essa expressão, comparado à palavra LîpLîp ou LûpLûpt,
Essa unidade se evidencia em várias coincidências, que é o acaso não pode ‘sombrio’ “. O mesmo grupo fonético associado ao urso reaparece, portanto,
explicar, e que ocorrem em distâncias às vezes bastante grandes. Começaremos a centenas de quilômetros de distância, em três línguas, das quais uma pelo
por assinalar uma delas, de natureza linguística. Gatschet (1890, i: 124) e Barker menos é completamente diferente das duas outras.
(1963a: 9 n.5), cujas pesquisas estão separadas por quase um século, parecem Eis agora uma outra confluência, que ocorre a uma distância tão grande
encontrado a mesma dificuldade em traduzir uma fórmula que é reproduzida quanto a que separa os Klamath dos Thompson, senão mais. Uma das
por cada um deles independentemente, em sua respectiva versão do mesmo variantes clackamas (M₆₁₆, Jacobs 1959, i: 130-41) se apresenta à primeira
mito. Depois do assassinato de sua mãe, os jovens “antílopes” (ou cervos, cf. vista como uma inversão no seio do grupo, que afeta o sexo dos protagonis-
Stern 1963: 39-40) trataram de sufocar seus camaradas ursinhos. Durante toda a tas (ursos machos se apoderam de esposas humanas) e a ordem de sucessão
operação, eles não paravam de cantar /lepleputea/ (Gatschet) ou /leplep p’ot’e/ da narrativa (episódio da mãe que se transforma em grizzly quando está
(Barker). O primeiro autor considera que é uma expressão arcaica, que signi- menstruada passa para o fim do mito, em vez de estar no começo). Nessa
fica algo como “para dois pares de adversários, tentar sufocar-se mutuamente versão, o urso grizzly fura os olhos de sua mulher e o outro tapa o ânus da
com fumaça”. Barker traduz do mesmo modo, mas assinala alguns problemas dele.3 De modo que uma das mulheres fica tapada em cima e a outra em
de ordem filológica. Não se trata evidentemente de questionar a competência baixo, mas a narrativa não esclarece as razões do comportamento do gri-
de um ou de outro, mas é notável que, a quatrocentos quilômetros ao norte, os zzly, e as inversões que apontamos alteram a intriga tão profundamente que
Clackamas Chinook, que falam uma língua diferente, contam numa de suas chega-se quase a duvidar que se trate do mesmo mito. Bem, a setecentos
versões do mesmo mito (Jacobs 1959, i: 148) que Dona Grizzly, imaginando que ou oitocentos quilômetros de lá, os Pomo, de língua hokan, contam numa
eram os filhos de sua inimiga e não os seus que estavam sendo cozinhados na versão composta de modo totalmente regular (M₆₃₈a, Barrett 1933: 327-34)
panela, alegrou-se e cantou, mais de doze vezes seguidas, /lepleplepleplep/, fór- que os filhos da mulher-cervídeo a encontraram muito longe, a leste, quando
mula que não foi traduzida mas que, do ponto de vista fonético, parece idêntica
à do mito klamath e muito próxima da que Boas (1901: 124-25) transcreveu / 3 . Que, consequentemente, não pode mais defecar, invertendo nesse aspecto a ursa
waLotEp helatep/ na versão do mito kathlamet. grizzly de uma versão lilloet (M₆₂₂, Teit 1912a: 321-23) que se afoga ao cair pelo buraco
Consultado a respeito do alcance e significado dessas confluências, o da canoa em que estava. O texto chama o buraco de “reto da canoa”, o que assimila a
professor Dell Hymes, eminente especialista das línguas chinook, teve a própria ursa ao excremento.

272 | Quarta parte: Cenas da vida de província A praça do mercado | 273


achavam que ela tinha sido morta pela cunhada ursa. Ela tinha se tornado do mito do desaninhador de pássaros, apesar de pertencer a uma outra
esposa do Sol canibal e agora só tinha um olho. Uma variante (M₆₃₈b, ibid.: camada; é o que ocorre com o motivo da mãe transformada em ogra quando
334-44) chega a privá-la de cabeça. De modo que o monstro canibal, antes está menstruada. Do mesmo modo, a versão shuswap (M₆₂₃, Teit 1909: 681-
subterrâneo, é permutado em celeste, e sabemos que nos mitos dessa região 84) se junta a M₆₀₆a com um episódio colocado na última parte em vez da
da América, as criaturas celestes são cegas ou zarolhas (omm: 123-24 e supra, primeira: o cadáver da ursa grizzly fornece a carne da refeição de Coiote que
p. 38). O ogro solar tem como serviçal a mosca azul ou “mosca de urso”, é roubada pelos coletores de ovos de aves (cf. também M₆₇₁, Teit 1912a: 306).
que logo se alia aos assassinos de seu patrão e à viúva. Na versão kalapuya De modo mais geral, a coabitação de espécies animais de hábitos incom-
(M₆₂₈, Jacobs 1945: 119-25), a mosca de carne informa Grizzly que são seus patíveis representa, na linguagem da taxinomia, um escândalo comparável
próprios filhos, e não os de sua vítima, que ela está comendo. Mas quase ao que as outras camadas mitológicas significam por intermédio do incesto
sempre (Pomo, Clackamas, Thompson, Shuswap) é à cotovia que cabe dar entre irmãos. Num caso, o bicho mais feroz mata o que desempenha junto a
essa ou outra informação, para estimular um comportamento maternal um ele o papel de companheira, cunhada ou co-esposa, durante uma sessão de
tanto vacilante; missão análoga, portanto, à de que o ciclo de Dona Mergu- catação de piolhos mútua. Mas antes, a vítima tinha montado um disposi-
lhão encarrega o mesmo personagem, que incita um comportamento mater- tivo para alertar seus filhos caso morresse. Esses detalhes se encontram em
nal que vai até o sacrifício da própria vida (cf. supra, p. 42, 46, 94, 241). Um mitos pertencentes a outras camadas: a mulher transformada em fera mata,
estudo exaustivo do mito dos veadinhos e dos ursinhos deveria portanto nas mesmas circunstâncias, seu filho ou neto, que tinha tomado precauções
considerar também o papel dos mergulhões como pássaros machos e pres- semelhantes para que sua esposa e irmã ficasse sabendo de sua morte.
tativos numa das versões pomo (M₆₃₈a, Barrett 1933: 332). Entre um grupo e outro, observa-se, portanto, a transformação:
As observações acima sugerem que, em certos casos, estamos diante do
mesmo mito emprestado de uma tribo por outra, e não de variantes que Grizzly õ =
se teriam desenvolvido independentemente em dois lugares. Como no caso [Grizzly õ = ∆ = ursa] —Y

dos Chinook, por exemplo, que podiam muito bem conhecer as narrativas
dos Klamath, que frequentvam as margens do Columbia; o que é atestado õ = ∆
por textos chinook (Sapir 1909a: 292-94). Por outro lado, a recorrência de
temas idênticos nas versões pomo e chinook parece ser mais atribuível em que o filho (neto) de Grizzly substitui Dona Ursa e, já que a ogra será
a um esquema latente, capaz de operar em toda a área de difusão do mito. vítima de sua filha ou neta, onde esta substitui os filhos da ursa que também
Mas acabamos de constatar que a influência desse esquema não se limita vingam o parente. A versão sinkoyne (M₆₃₂, Kroeber 1919: 349-51) contém,
ao ciclo “dos veadinhos e dos ursinhos” definido no sentido estrito; pois aliás, o motivo do incesto, que é consumado, como no mito de Dona Mergu-
os mitos desse ciclo cruzam constantemente com os do de Dona Mergu- lhão, no momento em que a irmã tem sua primeira menstruação. Ela é aban-
lhão e do desaninhador de pássaros. Suspeitamos, portanto, que esses ciclos, donada pelo irmão, mas encontra seus congêneres cervídeos graças à mirta
cuja extensão geográfica é aproximadamente a mesma, constituem cama- com que se perfuma, que atrai irresistivelmente esses animais. É a origem
das mitológicas paralelas e superpostas: nem bem se decapa uma e aparece dos ritos de puberdade. A versão wappo (M₆₃₇, Radin 1924: 47-49) intersecta
outra que, uma vez retirada, deixa ver uma terceira... Embora a matéria que o grupo do desaninhador em M₂₄: Dona Ursa mata o marido que subiu
compõe cada uma das camadas seja diferente, elas possuem uma estrutura numa árvore para colher glandes, devora-lhe o corpo e coloca a cabeça num
comum, que resulta das contingências locais e da natureza do embasamento. cesto. Várias outras versões convertem essa disjunção vertical característica
Às vezes, o embasamento chega a aflorar em pontos onde as camadas se do ciclo do desaninhador, para fazer dela um meio de salvação, e não de
estiram e se afinam, e acabam cedendo sob o efeito das pressões que sofrem. perdição. Os Shuswap (M₆₂₃), ao norte, os Sinkoyne (M₆₃₂), no centro, e
Já demos um exemplo disso com a versão clackamas, M₆₁₆, que deforma ao os Maidu (M₆₃₆) e Miwok (M₆₄₁), ao sul, contam que as crianças persegui-
mito das duas ursas ao submetê-lo a várias torções e assim deixa entrever, das escaparam da ogra subindo no alto de um rochedo. Em alguns casos se
através das malhas distendidas da narrativa, certos detalhes característicos acrescenta que o rochedo foi subindo e elas chegaram ao céu onde, segundo

274 | Quarta parte: Cenas da vida de província A praça do mercado | 275


os Thompson do baixo Fraser (M₆₂₁, Boas 1916: 615, 1917a: 16, Reichard 1947: particular de um motivo que discutimos longamente alhures (omm, sétima
184, Teit 1912b: 218-24), viraram estrelas, e podem ser vistas repelindo o gri- parte, i) parece ser coextensivo ao grupo (cf. infra, p. 284).
zzly feroz na constelação que nós mesmos chamamos de Ursa Maior. Vão se tornando mais precisos, pouco a pouco, os contornos de um novo
Como o ciclo do desaninhador, o dos veadinhos e ursinhos traz, pois, itinerário que, seguindo por outras camadas estratigráficas, nos levaria a
uma codificação astronômica. Encarados pelo ângulo de uma função cos- percorrer todo o campo da mitologia americana. Não pretendemos levar a
mológica entendida em sentido amplo, os dois grupos se encontram de empreitada até esse ponto, pois seriam necessários tantos volumes quanto os
modo ainda mais claro. Pois assim como o mito do desaninhador se refere que já dedicamos a ela. Para encerrar esta discussão, que teria sido impos-
à origem de certas constelações — Corvo ou Plêiades — tanto quanto à da sível evitar, dada a convergência de dois ciclos mitológicos, o do desaninha-
água ou do fogo, os jovens protagonistas do outro grupo, às vezes transfor- dor e o do combate dos veadinhos contra os ursinhos, apenas esboçaremos
mados em constelação, encerram suas aventuras ou no mundo subterrâneo, a estrutura de conjunto deste último grupo de mitos, mostrando que suas
onde morrem queimados (Wappo, M₆₃₇), ou no mundo celeste, onde mor- variantes dividem as mesmas funções que reconhecemos no primeiro.
rem afogados e se tornam, como o desaninhador dos mitos bororo, wiyot,
yurok e makah (supra, p. 134-38), donos da chuva e da tempestade (M₆₃₆, !
Maidu; M₆₄₁, Miwok). A conexão com o trovão também aparece, numa das
versões pomo (M₆₄₀, Barrett 1933: 344-49). As versões dos Thompson do Começaremos por repartir as variantes em duas categorias principais, as que
delta (M₆₂₁, Boas 1891-95: 16, Teit 1912b: 218-24) atribuem aos protagonis- se concentram nas aventuras dos fugitivos e as que se interessam mais pelas
tas, antes de subirem ao céu, uma série de peregrinações ao longo das quais de sua perseguidora. No primeiro caso, as crianças que ficam orfãs com o
ordenam o universo de um modo muito semelhante ao demiurgo Lua dos assassinato de sua mãe e que se vingam, matando seus companheiros de
mitos salish (M₃₇₅). Ora, vimos que o desaninhador das versões klamath e brincadeiras, que são filhos da assassina, vão buscar a falecida no além, ou
modoc apresenta afinidades lunares que contrastam com as afinidades sola- então resolvem sair pelo mundo. Quando fazem a primeira opção, chegam
res de seu perseguidor, e que a mesma oposição existe na América do Sul, à terra dos mortos, onde morrem queimados (M₆₃₇), ou ao céu, de onde
entre os Bororo, e mais ainda entre os Jê, cujos protagonistas pertencem a não conseguem trazer a mãe de volta para o mundo dos vivos (M₆₃₈); ou
metades diferentes, respectivamente associadas aos dois astros. O que nos então morrem afogados e tornam-se os donos da chuva e da tempestade
leva a evocar a estrutura social dualista dos Miwok, que dão um alcance cós- (M₆₃₆, M₆₄₁). Quando optam pela segunda possibilidade, primeiro arrumam
mico ao conflito entre veadinhos e ursinhos. Essa estrutura acompanha, com a terra e depois sobem ao céu e viram as estrelas da Ursa Maior (M₆₂₁, Teit:
efeito, uma dipartição geral das coisas e dos seres que, como entre os Yokuts 218-24, Boas 1917a: 16).
e os Mono, estende ao universo inteiro a fórmula sociológica das metades. A segunda categoria de variantes esquece as crianças fugitivas assim que
No sistema miwok, o sol e o urso estão do lado da terra e o veado, do lado elas ficam fora de perigo, e se concentra no destino da ogra. Nesse caso, há
da água (Kroeber 1925: 455). Por conseguinte, quer se trate de sol e lua ou também duas possibilidades: ou ela morre ou ela sobrevive. Quando morre,
de personagens que os incarnam, de constelações em oposição de fase, de seu cadáver fornece a Coiote a carne que será roubada por raposas (M₆₂₁c)
afins opostos como doadores e tomadores de mulheres, ou ainda de animais ou outros coletores de ovos; para vingar-se, o filho do demiurgo violenta suas
pertencentes a espécies antagônicas, o mesmo esquema começa por apro- mulheres e rouba os ovos (M₆₂₃, cf. também M₆₇₁). No segundo caso, que é
ximar termos incompatíveis. Essa proximidade desencadeia uma crise, de próprio das versões chinook, a ogra, primeiro enfraquecida por uma diarreia
que resulta uma primeira disjunção, com valor negativo. Levada até o fim, e depois afogada pelo passador suscetível, volta a si quando as gralhas atacam
ou não, ela deixa o campo livre para uma nova disjunção, dessa vez de valor sua vulva para comê-la. Ela lambuza a barriga ou a cara com o sangue que
positivo. O estudo exaustivo do grupo dos veadinhos e ursinhos teria de dar escorre e pergunta a todas as árvores como acham que ela está. Dependendo
a devida atenção ao fato de que essa segunda disjunção é operada por inter- de a resposta ser elogiosa ou não, ela atribui a cada madeira valor como lenha
médio de um passador suscetível que desempenha um papel que chama- ou como madeira útil: “Ela deu nomes e funções a tudo o que existe em maté-
ríamos de semi-condutor: transporta uns e intercepta outros. Esse emprego ria de árvore” (M₆₁₈, M₆₂₉, cf. Tillamook in E.D. Jacobs 1959: 148-50).

276 | Quarta parte: Cenas da vida de província A praça do mercado | 277


Esse último episódio constitui a forma fraca de um outro, ao qual os
mitos dos Salish costeiros, sobre a origem do sol e da lua e a ordenação do

(zoológico)
universo (M₃₇₅b, M₃₈₂, Adamson 1934: 158-77), dão uma importância muito

botânico
Qualificação
das espécies
maior. Quando o demiurgo Lua, roubado após o nascimento pelas filhas da

Chinook
vegetais
(fogo)
leita, que o criam e se casam com ele, resolve voltar para junto dos seus, pri-
meiro ele transforma os filhos que teve da mais velha em árvores, e os que
perseguidora

teve da caçula em peixes. E dá a cada espécie vegetal e animal seu nome e sua
Ogra

função. De modo que se trata de uma criação que enfatiza, no universo zoo-
lógico e botânico, seres especialmente valorizados por povos essencialmente
e das mulheres

Thompson do
pescadores, artesãos da madeira e da cestaria.

sociológico
Roubo dos
alimentos

Shuswap
interior,
(água) Façamos aqui um breve parêntese. Em seus mitos, os Salish descre-
vem a ordenação do universo de um modo que pode parecer estranho. O
demiurgo executa um programa de três pontos, começando por transfor-
mar parte de seus filhos em árvores de madeiras diferentes e a outra parte,
em peixes de todas as espécies. Depois disso, o demiurgo inicia uma longa
viagem, durante a qual vai se ocupando de outras tarefas, que são a criação
dos quadrúpedes, de técnicas artesanais, de instituições sociais e até de brin-

astronômico
cadeiras infantis, tudo isso aparentemente na mais completa desordem. As
Thompson do
Ursa Maior

árvores e os peixes ocupam, portanto, o primeiro lugar, elas na terra e eles


(céu)

delta

na água. Em relação a esses dois aspectos centrais da criação, todo o resto


forma uma massa confusa que os mitos deixam em último plano. O que
se explica, se levarmos em conta que o peixe era o alimento por excelência
dessas populações costeiras ou fluviais, e os mitos sublinham a importância
meterológico
das árvores como lenha para o fogo, que permite cozinhar ou defumar os
Maidu, Miwok
tempestade e
e arrumação

Origem da
do mundo

peixes. Esse par de termos culinários, madeira e peixes, tinha certamente


Aventuras

da chuva

um valor tópico para povos cujos vizinhos, ou às vezes eles mesmos, nos
acampamentos de inverno, sofriam com a falta de madeira e eram obriga-
dos a recorrer a combustíveis substitutos. Nesses casos, os salmões serviam
Crianças
fugitivas

(água)
Mundo
celeste

ao mesmo tempo de comida e de combustível (Teit 1928: 114, Strong 1959:


76, Heizer 1963: 188). Práticas como essa, que neutraliza a oposição entre
o alimento e o meio de cozinhá-lo, devem ter sido mais frequentes do que
Ressurreição

(vida breve)
Impossível

se supõe nas regiões pobres em vegetação arbustiva, como o planalto do


biológico
Pomo
Busca

mãe
pela

Columbia, semi-desértico em alguns locais devido à serra das Cascades, que


bloqueia os ventos úmidos vindos do mar. Mitos sahaptin evocam o cheiro
Terra dos
Mortos
(fogo)
Wappo

horrível de um fogo alimentado por ossadas humanas (Jacobs 1929: 237). O


emprego de óleo animal e de ossos gordos como combustível era generali-
zado no extremo norte, desde os Esquimó até os Chuckchee; Heródoto fazia
código:

menção a isso entre os Citas (Hough 1924: 57, 188). De todo modo, aos olhos
dos povos limítrofes, e talvez para os próprios envolvidos, essa culinária
[ 2 0 ] Estrutura do grupo dos veadinhos e dos ursinhos.

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paradoxal devia colocar problemas de ordem filosófica e lógica comparáveis hemisfério sobre as diferenças específicas entre as madeiras das árvores
a outros que já encontramos (cc: 157-60), e cujo eco valeria a pena buscar se aproximem muito de outros sobre a origem da cor dos pássaros (M₆₁₂b,
nos mitos de um modo mais sistemático do que nos é possível fazer aqui. Jacobs 1934: 109; M₆₄₃a-e, Dixon 1910: 33-34, Goddard 1904: 131, Jacobs 1959,
Por outro lado, é numa forma extremamente enfraquecida que o episó- i: 92, Adamson 1934: 252, 254-55). O argumento deles, aliás, é exatamente o
dio relativo às árvores reaparece numa versão sahaptin do mito do desani- mesmo que no Chaco (M₁₇₅, cc: 311-12).
nhador (M₆₀₇a, supra, p. 236) em que Coiote, levado pela correnteza, é salvo Há mais. A taxinomia botânica dos mitos chinook concerne essencial-
pelos galhos das árvores que consegue agarrar e, em agradecimento, con- mente as virtudes específicas de cada madeira utilizada como lenha, e por-
cede-lhes virtudes medicinais ou boa madeira para utilização técnica. Nem é tanto também na culinária. Por conseguinte, a rede da figura 20 se dobra
preciso lembrar que na falta de peixes na água e de árvores na terra a indús- sobre si mesma seguindo seu eixo mediano: o fogo construtor da extrema
tria humana ver-se-ia privada da matéria prima que garante seus alimentos direita encontra-se com o fogo destruidor da extrema esquerda (os Wappo
em conserva e os objetos manufaturados trocados nos mercados. As con- e os Pomo cremavam os mortos). Do mesmo modo, a desordem social evo-
dições naturais das transações comerciais são aqui criadas, portanto, mas cada pelos mitos thompson, shuswap e lilloet, que é duplamente o contrário
nas versões simétricas, são suas condições sociais que faltam. Assim como de uma ordem natural, se manifesta depois de Coiote ter tirado da água a
o episódio das árvores só aparece em M₆₀₆-M₆₀₇ de forma alusiva, os mitos carcaça putrefata do grizzly (que inverte duplamente o salmão fresco que
thompson (M₆₂₁c) e shuswap (M₆₂₃) que tomam emprestado a M₆₀₆ o epi- ele prepara para comer nas versões chinook e sahaptin do desaninhador).
sódio do roubo dos alimentos acabam de repente. Não só eles não põem um Essa indicação de M₆₂₃ e M₆₇₁ parece ainda menos fortuita na medida que
fim ao caos social pela instituição da troca, como M₆₂₃ o agrava, acrescen- M₆₁₈ provoca uma diarreia em Dona Grizzly, por ter consumido o peixe
tando ao roubo dos alimentos o das mulheres. estragado que os fugitivos puseram de propósito em seu caminho, e que, no
O que se deve sobretudo reter é que o ciclo dos veadinhos e ursinhos se outro extremo da área de difusão do mito, entre os Pomo (M₆₃₈ b, Barrett
organiza logicamente como uma árvore (fig. 20), em cujas ramificações se ins- 1933: 334-35), Dona Ursa tem por pai o espírito da podridão.
creve a série completa das transformações de que os volumes anteriores fize- A ursa da versão shoshone (M₆₄₂, Lowie 1908: 253-54) cai na água, per-
ram o inventário, e que nos permitiram construir o grupo do desaninhador manece lá por um mês e perde todos os pelos; vimos (supra, p. 257) que uma
de pássaros. À esquerda, três ramos principais remetem ao fogo, à água e ao metáfora do mito lilloet M₆₂₂ equipara a mesma personagem a um excre-
céu. O ramo aquático se subdivide e bifurca, de um lado com o motivo da mento. Fica claro, portanto, que a versão shuswap, em que Coiote pesca
ressurreição impossível, origem da vida breve (cf. M₈₇-M₉₂), que envolve no rio um bicho podre em lugar de um peixe fresco, evoca a água em seu
uma estrela transformada em mulher, responsável pela abreviação da vida aspecto destrutivo ou corruptor; quando se dobra a rede, ela se une à ramifi-
humana ou vítima dela; e, do outro, com a origem da chuva e da tempestade, cação do galho da esquerda que corresponde à água com valor positivo. Essa
que os mitos sul-americanos correspondentes associam estreitamente ao operação, finalmente, aproxima a carência de ordem social (côngrua à água
primeiro tema (cf. M₉₁, 125, cc: 213-14), quando não atribuem a chuva dire- destrutiva), significada pelo roubo das mulheres e dos alimentos (represen-
tamente à influência de uma constelação (cf. M₁). Ora, aqui, a ramificação tados pela carcaça podre), à presença de ordem natural, que os heróis fazem
celeste leva à origem de uma constelação. O que nos põe diante de três modos surgir durante suas peregrinações: “As tribos do delta do Fraser dizem que
da periodicidade, traduzida em termos biológicos (vida breve), meterológi- os filhos da ursa preta foram os grandes ordenadores da criação” (Boas 1916:
cos (estação das chuvas) ou astronômicos (Ursa Maior). 586; cf. Teit 1912b: 218-24, 295, 315-19; Hill-Tout 1904b: 360-62). O conjunto
À direita, uma ramificação principal bifurca em outras formas de perio- das variantes forma, assim, um grupo fechado.
dicidade, traduzidas em termos sociológicos ou botânicos. Vimos, em O cru
e o cozido, que a instituição das diferenças específicas transpõe para o modo
espacial a diversidade temporal. Mitos sul-americanos que tratam a ques-
tão em função da origem da cor dos pássaros transformam levemente os do
desaninhador (cc: 319-24). É significativo, portanto, que os mitos do outro

280 | Quarta parte: Cenas da vida de província A praça do mercado | 281


iii. O ajudante barulhento

Senhor Diafoirus. — Com certeza ele lhe man-


dou comer tudo bem assado?
Argan. — Não, só ensopado.
Senhor Diafoirius. — É! Isso, assado, ensopado,
tudo a mesma coisa. Ele lhe dá ordens sensatas e
você não poderia estar em melhores mãos!
molière, O doente imaginário¸ato ii, cena ix.

Os mitos que acabamos de discutir põem fim à confusão dos gêneros, ins-
taurando uma ordem ao mesmo tempo social, econômica e culinária. É a
troca, tal como praticada nas feiras e mercados, que torna essa ordem mani-
festa, envolvendo então gêneros alimentícios, matérias primas e objetos
manufaturados; mas escravos também se compram, e até o casamento é uma
transação. Tudo se passa portanto como se o mercado condensasse, como
um espelho redutor, o conjunto dos mecanismos que garantem o funciona-
mento do corpo social e colocam pessoas e coisas praticamente no mesmo
plano. Ao instituir a troca, dizem os mitos, o demiurgo fixou definitivamente
a fronteira entre cultura e natureza, humanidade e animalidade.
No entanto, existem coisas que não se trocam, pois apresentam o caráter
de bem comum; é o caso da água potável e do fogo de cozinha (M₆₀₃-M₆₀₄).
E outras coisas se prestam ao compartilhamento, fora de qualquer transa-
ção comercial. E se Grizzly e Urso preto ou pardo evitam invadir os terrenos
de coleta um do outro, embora esses animais pertençam a espécies vizinhas,
outros são aproximados na busca pelo alimento, como acontece com os carni-
ceiros, que aproveitam a carne não consumida que os predadores deixam como
que para eles. Para uma filosofia que vê na troca uma espécie de pedra de toque
na qual é possível reconhecer a passagem da natureza à cultura, as relações
econômicas de felinos de diversos tamanhos têm algo de escabroso. Deveriam
ser postos do lado da natureza, embora seus hábitos de compartilhamento

282 | O ajudante barulhento | 283


contrastem com a reserva mútua do urso e do grizzly? Ou do lado da cultura, mais aterrotizado, Lince correu para casa e avisou a todos. Puma disse aos irmãos
mas, nesse caso, desconsiderando o fato de as transações entre predadores e para fugirem e deixá-lo esperar pelo ogro sozinho com o caçula. Este apressou-se em
carniceiros serem de mão única e de que, ao contrário dos parceiros de troca, por para cozinhar enormes quantidades de carne. O ogro apareceu, devorou o jan-
um recebe sem dar, e o outro dá sem receber? Pois a mitologia dos Sahaptin e tar numa bocada e foi deitar. Era um curioso personagem, ficava de olhos fechados
de seus vizinhos — apesar de só dispormos de fragmentos dela — considera quando acordado e dormia de olhos abertos.
todas essas possibilidades, uma após a outra e, o que é ainda mais notável, a Lince aproveitou enquanto o ogro dormia e cortou-lhe a cabeça com uma faca de
cada vez encarrega um par de animais diferente de ilustrá-las. Já conhecemos pedra. Depois, os dois irmãos fugiram, cada um para um lado, porque sabiam que os
três desses pares. Ao par formado por Coiote e Lobo, cabe fundar a origem pedaços do corpo do ogro viriam atrás deles. Lince correu rio abaixo, com a cabeça ao
da troca; o que é formado por Urso e Grizzly age no sentido oposto. Entre os seu encalço. Puma, perseguido pelo corpo decapitado, subiu no alto de uma árvore,
Kalapuya, um terceiro par, formado por Puma e Coiote, rege o caso particular onde a bruma o escondeu. A cabeça, enquanto isso, despencou numa cachoeira e
de elementos que, como a água e o fogo, são de todos e ninguém pode, portanto, Lince escapou. Antes de se separarem, os irmãos tinham combinado de se encontra-
vender ou reservar para si. Um outro grupo de mitos se dedica, finalmente, a rem na montanha se ambos sobrevivessem.
resolver a dificuldade que assinalamos no início, ilustrada pelas confusões que Quando Lince chegou ao local do encontro, Puma lhe disse que estava cheio de
fazem parte da ordem natural. Certos animais, embora de espécies diferentes, suas imprudências e dos perigos que causava. Nunca mais eles viveriam juntos. O
costumam compartilhar o alimento. Opõem-se, assim, ao par formado por menino suplicou ao mais velho que reconsiderasse a sua decisão. Abandonado à pró-
Urso e Grizzly. E como esse compartilhamento de um alimento exatamente pria sorte, como ele iria conseguir comer? Mas Puma não voltou atrás. Consentiu
igual para ambos exclui o roubo, eles também se opõem, duplamente, ao par apenas em ceder suas armas sobressalentes ao irmão, uma pequena flecha de caça
formado por Lobo e Coiote, que não comem as mesmas coisas (ovos, num caso, e um arpão de pesca. Com elas, Lince conseguiria caçar pequenos animais e pescar.
e salmões, no outro) e que ficam tentando roubá-las uns dos outros: Puma também prometeu ao irmão que sempre o convidaria a comer quando fizesse
uma boa caça. E o mito conclui provisoriamente: “É assim desde então. Cada um
M 644A , B KLIKITAT: O LINCE E O PUMA segue o seu caminho. Mas quando Puma caça, vai procurar Lince para que ele venha
comer. Quando Lince termina, ele vai embora. E sempre que Puma faz uma boa caça,
Cinco irmãos viviam juntos. Do mais velho ao mais novo, chamavam-se Puma, Lobo, reserva-a para o irmão e vai procurá-lo. É assim que eles se comportam, esses dois
Marta, Doninha e Lince, que ainda era um menino. Puma caçava para os irmãos e, irmãos” (Jacobs 1929: 194).
quando voltava com a caça, mandava Lince descascar um tronco de árvore para fazer Depois que Puma foi embora, Lince resolveu comportar-se, digamos, “como gente
o recipiente onde a carne seria cozinhada (por imersão de pedras quentes), o balde grande”: caçou esquilo e lebre, pescou vários tipos de peixe e comeu bem. Então,
para pegar água e — segundo uma das duas versões que reunimos neste resumo — encontrou Guaxinim e roubou-lhe os peixes que tinha pescado, e em seguida, ven-
um terceiro utensílio, o prato para servir a carne cozida. Puma recomendava a Lince ceu na luta Lebre-da-Floresta (timber-rabbit), que desde então é sua caça predileta.
que trabalhasse em silêncio, porque eles viviam perto de um espírito terrível, e era Enquanto isso, Puma tinha matado um veado e foi procurar o irmão para convidá-lo.
melhor não chamar sua atenção. Encontrou-o comendo, certamente uma lebre, que ele considerava como boa caça.
Lince pôs mãos à obra, mas o mutismo o incomodava. Para realizar sua tarefa a Uma versão kathlamet (Mgegd, Boas 1901: 109-11) insere um certo humor nesse epi-
contento, e tirar a casca sem que ela quebrasse, ele precisava cantar; se não, ficava sódio: Visão, que faz o papel de Lince, toma um camundongo, depois um caracol e
desajeitado. Começou bem baixinho, mas foi subindo cada vez mais o volume. O finalmente uma lebre por um grande veado. Aí, Puma deixa o irmão terminar tran-
ogro ouviu e perguntou porque ele estava tão alegre. Lince explicou: “É que meu quilamente o seu lanche e o leva até o prato principal: “Com eles, é sempre assim. No
irmão trouxe caça grande. — Ótimo — respondeu o ogro — vou comer a caça, e lugar onde Puma caçou, invariavelmente está Lince, comendo a carne que o irmão
vocês junto.” Consciente do erro que tinha cometido, o menino se retirou, arrasado. mais velho reservou para consumirem juntos” (Jacobs 1929: 192-96, 219-23).
O ogro, que tinha a aparência de um velho, foi encontrá-lo no rio, onde ele tinha
colocado sua nassa de pesca. Para grande espanto de Lince, ele estava cheio de peda- O Puma (Felis concolor), que vive nos dois hemisférios, é o maior felino da
ços de madeira, em vez de peixes, o que não impediu o ogro de engoli-los. Ainda América do Norte. As transcrições em inglês de nossos mitos chamam-no

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tanto de “cougar” como de “pantera” (cf. supra, p. 228). Do mesmo modo, a para transações comerciais envolvendo gêneros alimentícios em geral secos
expressão inglesa wild cat, literalmente “gato selvagem”, designa o Lince, e ou em conserva, que já passaram, portanto, pelo preparo culinário. Outros
nem sempre fica claro se se trata do Lynx canadensis ou do Lynx rufus, igual- significados igualmente presentes seriam mais difíceis de perceber se não
mente espalhados pela região. Tanto a Doninha (weasel) como a Marta pudéssemos apreendê-los, como sempre se deve fazer, na forma de afas-
(fisher) pertencem à família dos mustelídeos. tamentos diferenciais entre versões que respeitam o argumento de M₆₄₄ e
Ao atribuir aos dois protagonistas duas funções distintas, bem antes de invertem ou desdobram certos detalhes ou episódios de um modo que,
eles assumirem sua natureza animal, M₆₄₄ coloca uma equivalência implícita: como veremos, nada tem de arbitrário, antes resulta da necessidade inerente
ao pensamento mítico de, assim que elabora um tema, explorar-lhe a estru-
(cultura) (natureza) tura lógica para construir o grupo completo de suas transformações. Essas
cozinheiro: caçador :: carniceiro: predador , variantes simétricas de M₆₄₄ provêm dos Sahaptin do rio Cowlitz, vizinhos
imediados dos Klikitat a oeste, e dos Salish costeiros, ao sul, cujos mitos ilus-
tram outros estados da mesma transformação.
na qual o a primeira ocupação de cada termo está subordinada à segunda. De
fato, como já aprendemos em relação aos povos dessa região, é a troca de ali- !
mento, e não seu preparo culinário, que marca a articulação essencial entre a
cultura e a natureza. Entre os Sahaptin do vale do Columbia, a culinária, mera As variantes cowlitz (M₆₄₅a, b, Jacobs 1934: 113-21, 133-39) se parecem com
função da busca pelo alimento, cabia geralmente aos homens (Garth 1964: 52; M₆₄₄, a não ser pelo fato de reduzirem a família de cinco irmãos a Puma e
cf. omm: 401), mas não sabemos se essa prática incomum, mas compartilhada Lince, e de uma delas (M₆₄₅b) atribuir ao mais velho uma mulher, de quem
por certos atabascanos do norte, não obstante condições sociais e econômicas ele vive afastado e que, no início do mito, ele se prepara para ir visitar. “Você
muito diversas, se explica pela posição não marcada da cozinha no sistema ou não pode me abandonar”, protesta Lince, que exige acompanhar o irmão.
porque eram escravos homens os encarregados dela.4 Nesse caso, a ausência de Puma faz uma boa caça e, enquanto a põe para cozinhar, manda Lince bus-
marca continuaria sendo pertinente, mas passaria da ação para o agente. car, não casca de árvore, como em M₆₄₄, mas folhas para usarem como prato.
No entanto, o mito não se contenta em reduzir um caso de compatibili- O interesse dessa transformação, que poderia parecer sem consequência,
dade natural, que coloca um problema pelas razões acima expostas, a uma aparecerá mais tarde (infra, p. 273, 281).
compatibilidade cultural, que o pensamento indígena considera como dada, Lince se afasta cantando a abundância da refeição que está sendo prepa-
já que coloca do mesmo lado a caça, a pesca e a culinária, e reserva o outro rada e lança convites imaginários sem destinatário definido. Um velho de
aparência miserável escuta e aceita. Apiedado do início, Lince muda de opi-
nião quando vê seu convidado devorando pedaços de madeira e outros res-
4 . No comecinho do século xix, Lewis e Clark (1953) se surpreenderam ao verem
homens chinook cozinhando; mas talvez fossem escravos (Ray 1938: 128). Em tos como se fossem peixes, e mais ainda quando o ogro se senta à mesa com
relação aos Salish do interior, citaremos algumas indicações, provenientes de mitos os dois irmãos e engole um veado inteiro, junto com os chifres e a toalha.
respectivamente dos Sanpoil, Okanagon e Thompson. Raposa, que planeja roubar o A história continua como em M₆₄₄, mas é Puma, e não Lince, que decapita
peixe de Coiote, diz a ele: “Você é um chefe, seus antepassados eram todos chefes. Você o ogro e é preseguido pela cabeça. Alcança o irmão caçula que já tinha fugido
não deve cozinhar. Deixe-me cuidar disso e vá descansar. Vou cozinhar o salmão e para um rio, pega-o debaixo do braço e depois de outras peripécias do mesmo
irei chamá-lo quando estiver pronto” (Ray 1933: 174). Tentando esconder sua origem gênero, provoca uma bruma e uma forte chuva, graças às quais a cabeça os perde
humilde, Cangambá protesta: “Você está enganado. Não sou cozinheiro, sou um chefe.”
de vista. Bem na hora, porque Puma já estava sem forças. Note-se, a respeito
E alhures Coiote se dirige a um espírito malvado nos seguintes termos: “Que é isso?
Mas você não vai cozinhar a carne! Chefes não cozinham, isso é trabalho de mulheres, desse episódio, que em relação a M₆₄₄ os papéis dos dois irmãos se invertem
escravos e gente como eu. Deixe-me cozinhar em seu lugar” (Teit 1912b: 312). E sobre os e, em vez de um deles fugir para baixo (mas perseguido pela cabeça, parte alta)
Lummi, que são Salish costeiros, diz-se que “eles não consideram humilhante para os e o outro para o alto (mas perseguido pelo corpo, parte baixa), ambos correm
homens ajudar na cozinha, principalmente nas cerimônias” (B. Stern 1934: 32). para um rio, para baixo portanto, e perseguidos apenas pela parte alta do corpo,

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a cabeça. O texto ligeiramente diferente de M₆₄₅b não invalida essa análise, pois uma presa grande. Lince se esforçou por caçar como o irmão, mas se equivocava
embora os dois irmãos nele sigam o rio em direção da cabeceira (upstream), a quanto ao tamanho de suas presas desprezíveis. Puma apareceu, mostrou os fatos ao
oposição entre o vale e a montanha, tão forte em M₆₄₄, também está ausente, de irmão e lhe ofereceu um menu mais consistente. Os dois se distanciaram novamente.
modo que é para o vale que ambos fogem. Finalmente, se Puma se aproveita Puma encontrou um menino chamado Vison, que insistiu para acompanhá-lo.
passivamente da cerração nas versões klikitat, aqui ele a provoca com seus Mas isso causou-lhe todos os tipos de problema. Primeiro, ele teve de secar um lago
poderes mágicos e acrescenta uma chuva torrencial. O sentido dessas transfor- para tirar Vison da barriga de um monstro que o tinha engolido durante uma caça
mações ainda não está claro, mas já se vê que elas são coerentes do ponto de ao pato. Em seguida, Vison insistiu em saber o nome do lugar onde os dois tinham
vista formal. A partir daí, M₆₄₄ e M₆₄₅ divergem, pelo menos na aparência: parado para pernoitar, embora fosse proibido pronunciá-lo. Insistiu tanto, que Puma
sussurou “Tyigh” (ta’ix). Vison começou a berrar o nome proibido, o que provocou
M 645A COWLITZ: CONTINUAÇÃO DAS AVENTURAS DE LINCE E PUMA uma chuva torrencial que o deixou molhado até os ossos. Começou a tremer de frio
e Puma teve de protegê-lo dentro do estojo em que guardava sua broca de fogo.
Os irmãos fizeram uma parada perto de um rio. Antes de sair para caçar, Puma acen- Na manhã seguinte, Puma disse a Vison para ir “à casa de suas duas esposas”
deu um fogo e recomendou a Lince que cuidasse bem dele. Mas Lince começou a buscar comida. As esposas eram poços naturais que só sabiam gorgolejar quando
brincar e se esqueceu do fogo, que apagou. se falava com elas, mas entregavam pratos de comida bem quente e bem preparada
Com medo de apanhar, ele resolveu ir roubar fogo do outro lado do rio, onde se a quem esperasse por eles de olhos fechados depois de pedi-los. Depois de come-
via uma fumaça. Atravessou a nado, pegou sem dificuldade um dos cinco tocos em rem e devolverem a louça às proprietárias, Puma quis seguir viagem, para procurar
brasa de uma velha e voltou. A pelagem de Lince ainda carrega as marcas das quei- uma outra esposa. Tinha em vista a filha de um velho que fingiu recebê-lo bem mas
maduras que sofreu nessa expedição. Quando a velha percebeu que estava faltando tentou matá-lo enquanto ele dormia várias vezes. Puma era sempre alertado por
um toco, foi atrás do ladrão, tentando atravessar o rio a pé. Mas logo a água lhe subiu Vison a tempo.
até os joelhos e, com medo de molhar as roupas de baixo, ela desistiu. O velho então concentrou-se no menino e despachou-o em missões perigosas, mas
Puma pressentiu uma catástrofe. Desistiu da caça e voltou às pressas. Cinco gigan- ele sempre escapava. Uma cotovia (cf. supra, p. 257; infra, p. 282) revelou a Puma que sua
tes nus, que tinham atravessado o rio a nado, se apresentaram em sequência para vin- mulher era uma ursa grizzly, ele a matou, assou-lhe os seios e serviu-os ao sogro. Depois
gar a avó. Cada um deles trazia no ombro uma presa diferente (na ordem, segundo os dois irmãos fugiram, mas Puma continuava sem mulher... (Jacobs 1934: 113-21).
Mgefa: veado, urso pardo, puma, grizzly e humano; segundo Mgefb: grizzly, urso, veado,
puma e humano; cf. infra, p. 273). Graças a um estratagema, os irmãos derrotaram os A outra versão (M₆₄₅b; ibid.: 133-39) não contém o episódio do nome proi-
quatro primeiros adversários. Enquanto Puma, que os tinha desafiado, lutava com eles, bido; ela assemelha as esposas nutrizes a fontes e não a poços naturais, mas
Lince lhes cortava os tendões de aquiles. Mas o último, que não tinha tirado a roupa aqui se trata certamente de uma mera variação de terminologia, pois em
para entrar no rio, foi mais resistente. Enquanto lutavam, ele e Puma iam subindo inglês uma fonte pode ser chamada de “well” ou “waterhole” quando se
pelos ares pouco a pouco, e despedaçavam-se mutuamente. Nacos de carne caíam e parece com um olho d’água. Uma versão tillamook diz “lago” (E.D. Jacobs
Lince os ia recolhendo. Guardava apenas os brancos e jogava fora os pretos, porque os 1959: 135-36). De modo mais significativo, M₆₄₅ especifica que o pai de Dona
primeiros pertenciam ao irmão, que ele deveria reconstituir após o final da luta. Mas Grizzly é o Trovão, e os irmãos têm mais dificuldade em livrar-se de seus pro-
enganou-se ao recolocar o fígado (ou as entranhas, segundo Mgefb). Puma achou que jetos assassinos. Uma variante invertida, proveniente dos Clackamas (M₆₄₆a,
fosse morrer. Lince explicou: “Não, nada disso. É melhor assim: você agora será um ser Jacobs 1959, i: 256-67) explica que a esposa humana do Trovão recebeu o
temível”. A outra versão é ainda mais explícita: “Isso não tem importância — diz Lince. privilégio de sair na chuva (água celeste) sem se molhar, ao passo que, em
Não se atormente por causa dessas entranhas. No futuro, se você for morto e comido, M₆₄₅, uma velha (que não pode, portanto, ser uma esposa), dona de um fogo
as entranhas serão jogadas fora.” E Puma concluiu: “Que seja, ficarei com as entranhas terrestre (em vez de celeste, como o raio), se mostra incapaz de atravessar
do ser perigoso. Assim, eu mesmo me tornarei um. Perfeito!” (Jacobs 1934: 117, 136). um rio (água terrestre) a pé sem se molhar. Já evocamos (supra, p. 230) esse
Então Puma decidiu separar-se definitivamente do irmão e, como este estava deso- grupo de transformação, e voltaremos a ele ao tratarmos das versões salish.
lado, deu-lhe armas de caça e prometeu que o convidaria a comer sempre que matasse O estado que acabamos de evidenciar já sugere que o fato de a construção

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de M₆₄₅ parecer tão complexa decorre de encadear sequências homólogas Atenhamo-nos ao aspecto formal dos mitos, que já coloca problemas sufi-
que deverão ser superpostas para poderem ser corretamente interpretadas. cientes. Três diferenças fundamentais separam as versões klikitat (M₆₄₅) e
Quanto ao lugar de nome proibido, as informações que possuímos são cowlitz (M₆₄₅). Primeiro, a missão de Lince consiste, num caso, em recolher
contraditórias. Para Jacobs (1934: 23, 118 n. 2), seria o vale do Tyigh, afluente cascas de árvore para confeccionar diversos utensílios de cozinha e, no outro,
do Deschutes a leste das Cascades, no norte do Oregon. Em correspondência simplesmente em pegar folhas para servir de prato. Em seguida, as versões
pessoal, o professor Rigsby, grande especialista nessa região e nas línguas aí cowlitz encarregam Lince de uma segunda missão, a de cuidar do fogo e
faladas, teve a gentileza de nos confirmar que a aldeia sahaptin localizada evitar que se apague. As mesmas versões além disso redobram as desventu-
naquele vale era conhecida por seus vizinhos ao sul e ao norte pelo nome ras de Lince com as também duas de Vison, personagem que substitui Lince
de /tayxláma/ ou /táyxpam/, “gente de Tayx”. Segundo o testemunho mais como irmão caçula de Puma na segunda parte da narrativa.
antigo de Teit (1928: 100, 108), os Tenino poderiam provir dessa “gente de Pegar folhas verdes para servir de prato improvisado exige menos com-
Tayx” habitante do vale de mesmo nome, embora o autor a considere inós- petência do que destacar pedaços de casca sem quebrá-la e fazer três tipos
pita demais, ou mais ao sul. O nome em si remontaria a um irmão caçula distintos de recipientes. As versões cowlitz depreciam, portanto, a contribui-
que o teria gritado várias vezes seguidas enquanto subia para o céu. ção de Lince, e vão mais além nesse sentido ao mostrá-lo incapaz de cui-
Mas o que significa esse grito? Rigsby desconhece-lhe qualquer etimologia dar do fogo, obrigação primeira de qualquer cozinheiro. Entre um grupo e
em sahaptin; se algum dia significou algo, hoje é apenas o nome de um lugar. o outro, o valor profissional de Lince declina, portanto, e ao mesmo tempo,
Na correspondência mencionada acima (supra, p. 256), Dell Hymes garante o do irmão Puma se inverte. Pois se as versões klikitat o definem apenas
que a palavra tampouco tem significado em chinook mas, citando o dicionário como caçador e irmão provedor, as outras relatam, no episódio da troca de
de J. K. Gills, aponta para um morfema ta bastante recorrente no vocabulário, fígados, como ele se tornou um ser perigoso e, ainda por cima, parcialmente
talvez derivado do sahaptin, que conota a ideia de poder sobrenatural. incomestível, restrição de seu valor nutritivo (“nutriente”), decorrente da
Pois bem, quando se olha para o lado dos Chinook, a coisa se complica. proibição alimentar relativa às vísceras do puma, que esse episódio explica.
O mito possui, entre eles, a mesma função etiológica que a das versões sahaptin, A versão wasco do mesmo mito (M₆₄₆e, Sapir 1909a: 294-98) vai ainda
como evidencia uma variante baixo-chinook (M₆₄₆b, Ray 1938: 151-56) em que mais longe, pois Lince ali se mostra um caçador mais precoce (menos exclu-
Puma promete ao irmão caçula Lince, para recompensá-lo por ter livrado a sivamente cozinheiro, portanto). Assim, quando os dois irmãos se separam,
irmã deles das garras de um urso, que sempre reservará para ele parte do que Lince anuncia que será o patrono dos caçadores e Puma, o dos caçadores e
caçar. O episódio do lugar de nome proibido e o próprio nome reaparecem dos guerreiros. Cada personagem se define, pois, por um vetor que podería-
numa outra versão chinook proveniente dos Kathlamet (M₆₄₆d, Boas 1901: mos chamar de profissional, unindo cozinha e caça num caso, caça e guerra
103-17) que explica (id. ibid.: 112 n. 1) que Tā’îx designa um lago de montanha no outro, cujos respectivos tamanhos variam correlativamente em várias
próximo da nascente do rio Cowlitz. O nome também aparece numa versão versões. Como a maioria das versões chinook, M₆₄₆e identifica os donos do
salish (M₆₅₀a, Adamson 1934: 206) proveniente do rio Cowlitz, mas a jusante. fogo roubado a ursos grizzly. As dos Sahaptin do Cowlitz são menos explíci-
De modo que haveria dois “Taix”, a uns cem quilômetros um do outro. tas, mas dir-se-ia que, ao ordenarem diferentemente as presas transportadas
Como todos os mitos que mencionam o nome vêm de populações de línguas pelos inimigos dos dois irmãos, M₆₄₅a e M₆₄₅b tendem a aproximar ou afas-
diferentes, mas todas habitantes do vale do Cowlitz ou das proximidades, a tar grizzlys e humanos:
localização proposta por Boas parece ser a mais verossímil. O que nos levaria
a tentar buscar a origem do nome nas línguas salish, em que poderia existir, se M₆₄₅a: veado, urso pardo, puma, {grizzly, humano};
a fonologia o confirmasse, uma curiosa homofonia entre o nome de lugar Taix,
que o Vison está proibido de pronunciar, e o nome próprio desse mesmo perso- M₆₄₅b: grizzly}, urso, veado, puma, {humano.
nagem, que é Sqaix em tilloet e Qaix nos dialetos costeiros (Teit 1912a: 292 e n.4).
Essa conjunção funesta é ilustrada antecipadamente, mas de modo ainda
! puramente simbólico, por M₆₄₅a, ao passo que M₆₄₅b a mantém em reserva,

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por assim dizer, para dar-lhe um tratamento especial na última parte da nar- entrar em cena e de também ser responsável pelos dois erros, que invertem a
rativa, o episódio em que Puma (que participa da natureza humana nesse ordem na qual Lince tinha cometido os seus, e ao mesmo tempo lhes são antisi-
período mítico em que os reinos ainda eram indistintos) tenta a experiência métricos, num novo registro, não mais o do fogo, mas o da água.
concreta de uma aproximação de ordem conjugal com uma moça-grizzly. De fato, Vison começa se comportanto como caçador excessivo, ao passo
O que mostra que a posição do puma nas duas séries não é menos perti- que Lince se revelara cozinheiro deficiente. Tendo chegado à margem de um
nente do que a do humano e do grizzly, e a permutação dos demais termos lago coalhado de patos, Vison insiste para que o irmão atire neles, e Puma
— veado, urso/urso, veado — aparece como reflexo da que afeta os três outros. responde inicialmente: “Não, eles estão longe demais, você não vai conseguir
Dependendo da versão considerada, o único ou primeiro erro de Lince ir pegá-los”. Mas acaba cedendo e Vison nada até os patos abatidos. Surgem
consiste em cantar enquanto desempenha sua função de ajudante de cozinha. monstros aquáticos que o agarram no caminho e o engolem. Puma tem de
Reencontramos aqui o tema do ruído antitético à cozinha, que desempenha um secar o lago e matar todos os monstros, um por um, até achar Vison, bran-
papel de primeira importância nestas Mitológicas, já que a partir do momento dindo seu pato, na barriga do menor (Jacobs 1967: 117-18; cf. M₂₁₆-M₂₁₇ e
em que o percebemos pela primeira vez (cc: 156-57), foi preciso lhe dar cada M₂₅₇). Consequentemente, assim como Lince começara por juntar-se a uma
vez mais atenção (mc: passim; omm: 250-52, 265-66, 412-14). No caso de que escuridão personificada por um ogro e que era o oposto da luz do dia, fogo
estamos tratando, qual é o resultado da algazarra? Ela provoca a reunião entre celeste, Vison começa se juntando a ogros aquáticos que, vivendo no fundo
os heróis e um ogro que devora todas as suas provisões e quase os devora tam- do lago, representam a água terrestre em seu aspecto negativo.
bém. O ogro fica acordado de olhos fechados e dorme de olhos abertos, como A mesma relação de simetria persiste quando examinamos o erro
os gênios da escuridão descritos pelos Kalapuya em sua versão do mesmo mito seguinte de nossos dois protagonistas. Para Lince, consiste em deixar apagar
(M₆₄₇, Jacobs 1945: 244-51). M₆₄₄b, por sua vez, explica que as trevas se dissi- o fogo doméstico, ou seja, um fogo terrestre, e, para Vison, em provocar uma
param depois do desaparecimento do ogro (Jacobs 1929: 222). O que indica chuva torrencial, isto é, uma água
tratar-se aqui do mesmo charivari que acompanha alhures os eclipses ou, num celeste. Ao transportar nas costas lince vison

outro contexto, é produzido por instrumentos chamados, justamente, “das tre- o toco em brasa roubado dos gri- 1. fogo celeste 3. água terrestre
vas”; e que, também nos dois casos, marca ou determina uma regressão dos zzlys, que contém o fogo em estado
humanos a um estágio pré-culinário, já que se deve jogar fora a comida e jejuar selvagem, Lince sofre queimadu-
durante o eclipse, e o ofício das trevas ocorre no momento mais rigoroso da ras cujas marcas permanecem em 2. fogo terrestre 4. água celeste
quaresma; e, finalmente, em ambas as circunstâncias, todos os fogos devam ser sua pelagem. Molhado até os ossos
apagados (cc: 304-05; mc: 355-57). Bem, os mitos sahaptin começam revelando e tiritando de frio, Vison encontra erro alimentar erro linguístico
a natureza do gênio da escuridão ao atribuir-lhe um comportamento regres- abrigo e proteção no estojo que
sivo na ordem culinária: ele aterroriza o jovem herói quando engole pedaços contém o fogo civilizado, o que em [ 2 1 ] Armação do mito Mgef.
de madeira como se fossem peixes (cf. supra, p. 267, 269). vez de se roubar dos ogros, se pro-
Responsável pelo reinado da noite e da penúria, Lince comete, portanto, um duz pelo manejo técnico da broca. Os respectivos erros de Lince e Vison se
erro que apenas renova nas versões cowlitz quando, mais tarde, deixa extin- correspondem, portanto, e formam um quiasma. O primeiro erro de um e o
guir-se o fogo doméstico. Convém no entanto notar uma diferença: a escuridão segundo do outro resultam de um comportamento desmedido, por excesso
é uma carência de fogo celeste, ao passo que, na segunda vez, é a carência de ou por falta, em relação à caça ou à culinária; e o segundo erro de um e o pri-
um fogo terrestre que impede o cozinheiro de cumprir sua tarefa. Após o roubo meiro do outro se originam igualmente de um comportamento desmedido,
do fogo dos grizzlys ou dos personagens que fazem o papel deles, os irmãos se do ponto de vista linguístico: Lince canta alto quando devia ficar em silêncio,
saparam e poder-se-ia pensar que, como nas versões klikitat, essa disjunção e Vison diz aos gritos o nome de lugar que estava proibido de pronunciar.
temperada pelo compartilhamento ocasional do alimento põe fim às conjun- As quatro primeiras sequências das versões cowlitz explicitam, portanto, a
ções abusivas pelas quais Lince é responsável. Mas depois da saída de Lince, sequência única das versões klikitat; equilibram umas as outras e formam
as versões cowlitz ainda possuem uma sequência reservada. É a vez de Vison um sistema coerente (fig. 21).

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Até aqui, os mitos parecem operar com uma matriz quadridimensional. compensação, cumprem conscienciosamente os deveres culinários que cabem
Os herós agem 1) por excesso ou por falta, 2) em relação ao fogo ou à água, às esposas. E as mulheres-excremento são irmãs, cuja natureza física exclui (ao
tomados 3) nas modalidades terrestre ou celeste, e os erros que cometem inverso das filhas-da-leita, que são sexualmente desejadas pelo pai) a possibi-
referem-se 4) ao registro alimentar ou ao registro linguístico. Veremos que a lidade de se tornarem incestuosas, pelo simples fato de tal natureza pressupor
sequência seguinte dos mitos cowlitz intriduz uma quinta dimensão, em que uma relação íntima com o corpo do irmão, mas de ordem digestiva e não sexual.
a narrativa irá manter-se até o final. Finalmente, os três pares são diferentemente qualificados em relação
No decorrer dessa sequência, Puma é alimentado, junto com o irmão, por ao código linguístico. As filhas-da-leita subentendem o que seu pai insinua
duas “esposas”, que é o modo como nomeia olhos d’água que, quando solici- quando finge enganar-se ao chamá-las de esposas, as irmãs-excremento
tados, fazem emergir à superfície pratos de comida fumegante e bem prepa- desempenham o eloquente papel de conselheiras e informantes, e as espo-
rada. Para ouvintes indígenas bem familiarizados com seus mitos, esse par de sas-do-poço se calam, ou melhor, e ao contrário do par anterior, sofrem
mulheres sobrenaturais não podia deixar de evocar outros que, tomados em de uma tara linguística. Vison fica tentando entabular uma conversa, e elas
conjunto, constituem um sistema paradigmático no nível do qual convém nos apenas respondem com gargulhos: “ma’lalalalalal” (M₆₄₅a), “blebleblebleble”
situarmos se quisermos interpretar esse episódio à primeira vista absurdo e (M₆₄₅b), “belelubelu” (M₆₅₀a); segundo a versão tillamook (E.D. Jacobs
carente de significação. Na mitologia dos Sahaptin e de seus vizinhos, pode-se 1959: 135-36), elas fazem bolhas; segundo a dos Clackamas, elas só sabem
distinguir três pares de mulheres sobrenaturais: as filhas-da-leita que Coiote emitir “risinhos de menina” (M₆₄₆a, Jacobs 1959, i: 265-66). Vison se espanta:
faz nascer da leita de um salmão (M₃₇₅), as irmãs-excremento que ele expele “Que mulheres engraçadas vocês são! Não sabem falar!” Vemos, assim, que
e reintegra às próprias entranhas à vontade (M₆₀₆a) e aquelas que doravante uma série de oposições pertinentes qualificam os três pares dois a dois: as
chamaremos, por comodidade, de esposas-do-poço, atribuídas por M₆₄₅ a esposas-do-poço e as filhas-da-leita são respectivamente conjugais e não-
Puma. Uma rede de relações complexas surge entre esses três pares. conjugais, as irmãs-excremento e as esposas-do-poço são, respectivamente,
As esposas-do-poço remetem inicialmente a uma água terrestre que linguísticas e não-linguísticas, por assim dizer (fig. 22):
os mitos evocam em estado de estagnação (ainda que sejam fontes, têm o
água parada:
aspecto de poços naturais ou olhos d’água sem escoamento visível). Os dois esposas-do-poço,
(+) (–)
outros pares remetem à água corrente, terrestre num caso, já que as filhas- produtoras de
pratos cozidos
da-leita pertencem ao mundo dos peixes, e celeste no outro, mas no modo

“li
is”
negativo, visto que Coiote ameaça constantemente suas irmãs-excremento

ng
ga

u
ju

íst
com uma chuva que as desintegrará (note-se que, inversamente, a leita per-

on

ica
“c

s”
manece incólume dentro da água). Consequentemente, prevalece uma rela-
ção de compatibilidade entre as esposas-do-poço e a água parada, e entre as filhas-da-leita, irmãs-excremento,
(–) produtos do produtos do (+)
filhas-da-leita e a água corrente; essa água é de origem terrestre em ambos os alimento cru alimento cozido
casos, ao passo que entre as irmãs-excremento e a água corrente de origem água corrente: terrestre (+) celeste (–)
celeste prevalece uma relação de incompatibilidade.
Os três pares de mulheres possuem uma afinidade com o alimento. As
[ 2 2 ] Tríade das mulheres sobrenaturais.
esposas-do-poço produzem pratos cozidos, as irmãs-excremento são elas
mesmas produto digerido do alimento cozido, e as filhas-da-leita são pro-
esposas-do-poço: filhas-da-leita: irmãs-excremento:
duto de um alimento cru não consumido, pois nasceram da leita do salmão água corrente/parada – + +
que Coiote não conseguia cozinhar por achá-las “brancas e belas”. água terrestre/celeste + + –
Cada par de mulheres mantém com seu autor uma relação especial de alimento cru/cozido + – +
mulheres produtoras/produtos + – –
parentesco. As nascidas da leita são filhas que se recusam a ser esposas: quando mulheres conjugais/não-conjugais + – –
Coiote as chama assim, elas se zangam e desaparecem. As mulheres do poço, em mulheres linguísticas/não-linguísticas – + +

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Não obstante sua esquisitice e seu aspecto gratuito, a história das esposas- Cowlitz ou Humptulips. Porém, até entre os Chehalis convém distinguir
do-poço cumpre, como se vê, uma função precisa. Ela reúne todos os eixos duas variantes, que os informantes consideram como mitos totalmente dis-
semânticos que o mito tinha sucessivamente introduzido, excesso/falta, fogo/ tintos (Adamson 1934: 64 n. 1). Sem chegarmos a tal ponto, respeitaremos a
água, terrestre/celeste, alimentar/linguístico, e acrescenta um outro, conju- divisão entre um tipo I e um tipo II.
gal/não-conjugal, no qual se inscreve a última parte. Nas partes anteriores,
o comportamento de Vison se apresentava como simétrico e inverso ao de M 648 CHEHALIS (WASHINGTON): O LINCE E O PUMA.
Lince, mas sempre cabia a Puma consertar a situação. A partir do momento
em que o código muda, os papéis também se invertem. Ao querer desposar Puma caçava e cozinhava para si mesmo e para o irmãozinho Lince, que ele só dei-
uma Dona Grizzly filha do Trovão, Puma se expõe, junto com seu compa- xava cuidar do fogo. Apesar de todas as recomendações, este, quando estava só,
nheiro, aos riscos de uma conjunção não menos perigosa do que as outras, insistia em colocar os pedaços de carne diretamente no fogo. Certo dia, o que Puma
ainda que o mito a formule em termos sociológicos; e o papel de salvador previa aconteceu: o suco da carne molhou a lenha,o fogo baixou e apagou. Lince não
passa para Vison. Antes de abordarmos essa última fase da análise, é indis- sabia como acendê-lo novamente, pois o irmão tinha levado a broca de fogo. Apesar
pensável introduzirmos as versões salish. de Puma tê-lo proibido de fazer isso, Lince resolveu ir roubar fogo do outro lado do
rio, e conseguiu trazer um tição, mesmo sofrendo queimaduras da cabeça ao rabo.
! Puma, ao retornar, ficou zangado. Lince argumentou que preferia a carne grelhada
diretamente no fogo, o irmão insistiu para que ele usasse um espeto. Transformado
As tribos de língua salish chamadas “costeiras” — para diferenciá-las das do em pedaço de madeira flutuante, o velho dono do fogo atravessou o rio e retomou
planalto — ocupavam uma zona que vai da vertente ocidental das Cascades seu aspecto normal para atacar Puma. Os adversários se despedaçaram mutuamente
até o mar. No vale do rio Cowlitz e também alhures, eram limítrofes dos enquanto subiam pelos ares. Lince recolhia e triava os pedaços para poder refazer o
Sahaptin setentrionais, com quem mantinham relações pacíficas, fundadas irmão, mas enganou-se de fígado. Puma venceu, e teve de se conformar, porque Lince
na boa vizinhança, visitas recíprocas, intercasamentos e trocas comerciais. já tinha queimado o corpo do velho, de que só restavam cinzas. Puma então delcarou
Assim, as duas famílias linguísticas compartilhavam vários mitos, que apre- que “no futuro, essas coisas não voltarão a acontecer; quando alguém deixar seu fogo
sentam contrastes entre um grupo e o outro, manifestando a necessidade apagar, poderá conseguir fogo sem problemas junto aos vizinhos”.
que povos vizinhos têm de se mostrarem ao mesmo tempo como semelhan- Os irmãos foram se instalar em outro lugar. Certo dia, Puma caçou um veado
tes e diferentes entre si. Fenômenos de reflexo, inversão e simetria demons- grande e mandou Lince procurar bastões pontiagudos para espetar os pedaços. Ape-
tram um esforço inconsciente para enfrentar exigências contraditórias, de sar de ter-lhe sido recomendado que ficasse em silêncio, Lince começou a cantar
um lado as que resultam da proximidade territorial e das vantagens políti- palavras imprudentes. Um ogro chamado Pescocinho escutou, convidou-se, comeu
cas e econômicas inerentes à colaboração e, do outro, o paroquialismo e o tudo e adormeceu. Puma cortou a cabeça do ogro, o que não o impediu de perseguir
desejo de afirmar uma personalidade original. Entre essas tendências anta- os “cinco irmãos pumas” que aparecem de repente na narrativa. E desaparecem, aliás,
gônicas, estabelece-se um equilíbrio instável, que imprime dinamismo ao também de uma hora para a outra, pois os quatro mais velhos morrem e, na pes-
pensamento mítico. Aí deve geralmente ser buscada a chave das relações de soa do único sobrevivente, nosso herói recupera sua unidade. Lince, enquanto isso,
transformação que regem os diferentes estados de um mesmo mito e que, levantava montanhas que o ogro conseguia atravessar, até se transformar, diante da
entre um grupo e outro ou em setores ou períodos distintos no seio de um última, em ciclone. Desde então, diz o mito, acordou-se que “nenhuma pessoa convi-
mesmo grupo, respondem à dupla necessidade de conciliar e opor o que se dada a compartilhar uma refeição molestaria seu anfitrião”.
conhece do outro e o que se supõe possuir de próprio. Ilustramos algures Os irmãos se reencontraram e fizeram um outro acampamento. Lince prometeu
esses mecanismos (Lévi-Strauss [1958a] 2008, cap. 12; 1971a), de que os mitos ficar lá e se comportar. Mas foi passear, e encontrou duas mulheres-gruas que canta-
salish e sahaptin fornecem um exemplo não menos probante. vam enquanto procuravam bulbos de liliácea comestíveis [Camassia quamash]. Lince
Como as versões sahaptin, as dos Salish costeiros formam um sistema trocou o que as desconhecidas tinham coletado por sua capa de couro de veado, que
complexo. Primeiro, diferem segundo o vale de que provêm, Chehalis, elas queriam comer. Cozinhou os bulbos e, sem mencionar as mulheres, serviu a

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Puma um prato de que ele gostou muito e pelo qual cumprimentou o irmão. Numa a natureza, M₆₄₈ faz uma marcha regressiva; fenômeno atestado também
outra ocasião, ele trocou a coleta das desconhecidas por um cobertor. Finalmente, numa das versões humptulips (M₆₅₁a, Adamson 1934: 310-15), que diz que
elas se convidaram e propuseram casamento a Puma, que desconversou mas deixou após todas as suas tribulações, os dois irmãos resolveram só comer alimento
que elas ficassem em sua casa. Nos dias seguintes, ele não conseguiu caçar nada, cru e assim assumiram sua condição animal. A mesma versão diz ainda que
porque as mulheres faziam tanto barulho com sua cantoria que espantavam a caça. a parte da caça deixada para Lince por seus irmãos suscitou a cobiça do urso
“Se elas continuarem assim — disse Puma — vamos morrer de fome!” Os irmãos que, desde então, não perde uma ocasião de roubá-la.
abandonaram as mulheres e foram embora. De modo que M₆₄₈ faz da partilha social (aplicada ao fogo, à refeição e às
Mas Puma estava cheio e resolveu separar-se do irmão, que chorou, dizendo que relações entre cônjuges) o fundamento da partilha natural. E também realiza
se ficasse por conta própria não conseguiria sobreviver. Puma deu-lhe seu arco mais uma notável transformação ao substituir os recipientes de casca de que fala
velho e aconselhou-o a caçar. Lince só conseguia caçar animais insignificantes, como a versão klikitat por espetos de madeira, na medida em que cada um desses
camundongos, ratos, toupeiras, lebres. Puma ficou com dó, deu a ele o veado que aca- tipos de utensílio remete a um modo de cozimento diferente, guisado num
bara de matar e permitiu que ele o seguisse de longe. Sempre deixaria alguma carne caso e assado no outro. Há diversos indícios de que os índios do noroeste
para Lince. “É assim desde então: o puma sempre esconde os restos de suas presas da América tinham cuidados especiais com seus espetos de assar. Um mito
debaixo de folhagens, para o lince que o segue” (Adamson 1934: 60-64). nez percé que analisaremos mais adiante (M₆₅₅a, p. 292) gira parcialmente
em torno desse tema. Os Chehalis da Colúmbia Britânica, distintos daqueles
Poucos mitos se mostram tão conscientes de sua função etiológica quanto de onde provém o mito que estamos discutindo, falam de uma dança ritual
esse M₆₄₈, que toma o cuidado de expor o significado de cada um dos epi- com espetos para o retorno da pesca à solha (um peixe chato; cf. Hill-Tout
sódios que o compõem. Em todos os casos, trata-se de fundar a regra do 1904b: 371). Os Cowlitz procuravam saber a duração de suas vidas lançando
compartilhamento, que o mito aplica inicialmente ao fogo e depois estende o mais longe possível um espeto com a cabeça da enguia que acabara de ser
sucessivamente às refeições, às relações entre cônjuges e, finalmente, ao assada nele (Adamson 1934: 191). Entre os Alsea, os Chinook e outros grupos,
reino natural. Nenhum problema nos dois primeiros casos: dizem-nos que o primeiro salmão do ano devia ser assado no espeto (Frachtenberg 1920:
o fogo é algo que se empresta, e que as refeições são feitas para serem com- 107; Boas 1894: 101-02). Os Kalapuya, que conjugam a fervura e a assadura
partilhadas. O episódio que trata das relações conjugais é mais complexo, em sua versão do mito (M₆₄₇, Jacobs 1945: 246), contam que, nos tempos
pois as mulheres-gruas (ou gansos selvagens segundo M₆₄₉b, Adamson 1934: antigos, os espetos eram guardados após o uso e muito bem cuidados. Ao
67-79) se desqualificam de três modos diferentes: vendem sua coleta em norte, os Bella Coola, grupo salish isolado, acreditavam que uma mulher
vez de a darem, tomam a iniciativa no pedido de casamento e fazem tanto daria à luz gêmeos se comesse salmão assado no próprio espeto (Gunther
barulho que fica impossível caçar. Deixaremos o último aspecto de lado 1928: 171). Mais longe, um mito tlingit (Swanton 1909: 313-14) menciona uma
por enquanto. Fica evidente que os dois primeiros se completam, pois que lavagem ritual desse utensílio culinário.
ambos enunciam, um no plano econômico e o outro no plano sociológico, a A casca de árvore, por sua vez, tem tanta importância das técnicas e cren-
mesma verdade: à diferença das transações comerciais, as que criam e per- ças desssa região da América quanto na Amazônia (mc: 313-18, 334-37), se
petuam os casais não são reversíveis. O homem corteja a mulher, e não o não mais. Para os Sahaptin e seus vizinhos, a casca servia primeiramente de
contrário (cf. M₆₁₀), e a mulher contribui com sua coleta para a subsistência combustível. Conta uma informante: “Antigamente, os Cowlitz não tinham
do casal sem esperar algo em troca. De modo que se pode dizer que o mito fósforos... Pegavam casca de cedro, ateavam fogo aos pedaços onde estava
tira de seus três primeiros episódios, sucessivamente, uma moral do lar, uma começando a se desfazer e os levavam consigo nas viagens. Quando acampa-
moral da mesa e uma moral doméstica. A originalidade do quarto episódio vam à noite, assopravam na região incandescente até surgirem chamas que
reside, portanto, em fundar um aspecto da ordem natural — o compartilha- permitissem acender o fogo” (Jacobs 1934: 226). Mas a casca era também um
mento da comida entre um predador e um carniceiro — em três casos parti- alimento: em todos os lugares onde havia coníferas, os índios comiam, na
culares que dizem respeito à vida em sociedade mas nos quais, excepcional- primavera, a entrecasca de várias espécies e raspavam os troncos do “sugar
mente, a norma da partilha prevalece sobre a da troca. Indo da cultura para pine” (Pinus lambertiana) para obter sua resina açucarada. Vêm em seguida

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os empregos técnicos: todos os povos da região fabricavam ou utilizavam Mas por que o mito salish substitui o recipiente pelo espeto, e o guisado pelo
cestos de fibras trançadas, geralmente de casca de “cedro” (Thuja gigantea), assado? Uma versão do rio Cowlitz, que volta à fórmula do recipiente de casca
tingida de vermelho com casca de amieiro (Alnus rubra; Haeberlin, Teit & em vez do espeto, permite compreender porque. Essa versão, bem como uma
Roberts 1919-24: 138-39), a mesma que Coiote mastiga, nas versões karok e outra menos completa (M₆₅₀a, b, Adamson 1934: 202-09), são quase idênticas
clackamas dos mitos sobre a liberação dos salmões, para ficar com a boca às dos Sahaptin residentes mais alto no mesmo vale (M₆₄₅a, b). Ressaltare-
vermelha, como se estivesse cheia de salmões, que têm a mesma cor; fin- mos apenas as diferenças.5 É dito no início que Puma vive só com seus irmãos,
gir que já possui os salmões irá ajudá-lo a liberá-los mais facilmente. Todas embora tenha numerosas esposas espalhadas por vários lugares. Todas
as tribos sabiam fabricar recipientes com a casca dobrada. E, finalmente, as as aventuras dele ocorrem enquanto ele viaja para ir visitar a mais recente
mulheres rasgavam a casca de cedro e torciam as fibras para fazer cordões, delas, Bisão (M₆₅₀a) ou Ursa Grizzly filha do Trovão (M₆₅₀b), e este procura
além de usarem saias curtas de casca tecida. Ao mesmo tempo combustí- destruir Puma e o irmão. Pois bem, essa animosidade, que não é explicada
vel e alimento, vestimenta e utensílio culinário, a casca se apresenta como alhures, tem aqui uma razão, enunciada por Cotovia: “Está vendo?”, diz ela a
uma matéria-prima que, apesar de ser uma substância natural, recobre todo Puma, “você comprou essas moças há muito tempo, mas não veio imediata-
o domínio da cultura. No início dos tempos, contam os Sahaptin (M₃₇₅p, mente. Isso desagradou o velho. Ele é viúvo, e poderia ter encontrado outros
Jacobs 1934: 139-42), a casca vermelha constituía todo o equipamento do maridos para suas filhas”. A segunda versão diz mais: “Puma não vinha ver
demiurgo; bastava que ele a mostrasse para que a caça caísse morta de terror. a mulher havia três anos, e aliás, tinha outras esposas. A família dela estava
Quando seu segredo foi descoberto, o demiurgo se retirou: “Agora que me irritada e com ciúme e, por isso, preferiu matá-lo a deixá-lo ir encontrar com
viram e sabem como eu faço, só me resta ir embora”. Com efeito, uma vez as outras” (Adamson 1934: 208-09). Puma e Vison escaparam de todas as ten-
obtida a casca, a humanidade nada mais tem a esperar da criação. tativas de assassinato, mas resolveram separar-se e virar animais: “Doravante,
Vimos que as versões sahaptin operam com uma oposição pertinente visões acasalarão com visões e pumas com pumas. Espécies diferentes não
entre a casca (M₆₄₄) e as folhas verdes (M₆₄₅). A casca serve para fabricar se unirão”. E o Trovão virou uma nuvem no céu: “no tempo em que ele tinha
três tipos de utensílios, panela, balde e prato, ao passo que as folhas só ser- natureza humana, era realmente malvado demais” (M₆₅₀b, ibid.: 211).
vem para fabricar pratos. O fato de a utilização da casca e das folhas coin- Percebe-se onde está a originalidade dessas variantes. Uma intriga quase
cidir apenas no tocante ao último ponto certamente explica porque uma idêntica à do mito sahaptin recebe a função etiológica inversa, que por sua
das versões (M₆₄₄) reforça o contraste salientando apenas os dois primeiros vez é a mesma de que os Sahaptin encarregam o mito das duas ursas (M₆₁₅),
usos da casca: “para ferventar”, diz o mito, e “para pegar água”. Desse modo, cuja intriga inverte essa. Em vez de justificar, como fazia M₆₄₅, o fato de cer-
sobressai a função mediadora que o recipiente assume, por intermédio da tas espécies zoológicas viverem em regime comunitário, M₆₅₀ pronuncia
água e das pedras aquecidas que nele são colocadas, entre a carne e o fogo, uma série de divórcios, comparáveis à separação dos ursos em espécies de
contrariamente à relação de contiguidade imediata ilustrada pela carne cabia a M₆₁₅ consumar. Mas, para realizar-se sem que seu resultado se anule
colocada diretamente no prato. Por conseguinte, a mesma oposição perti- levando o grupo de volta ao ponto de partida, essa transformação muda de
nente que as versões sahaptin traduzem por meio da casca e das folhas é registro. A desunião de que falava o mito das duas ursas remetia ao registro
significada, nas versões salish, pela presença ou ausência de espeto. Ao afas- alimentar, a de que se trata aqui, ao registro sexual: urso e grizzly não come-
tar a carne do fogo, o espeto também cumpre uma função mediadora, que rão a comida um do outro, puma e vison não acasalarão entre si. Eles nunca
o ajudante de cozinha anula, não por fazer barulho, como no outro episó-
dio, mas com uma culinária suja, colocando a carne diretamente no fogo. Os
5 . Um detalhe de M₆₅₀a, M₆₅₁a (Adamson 1934: 203, 312-313) é relevante num outro
mitos do noroeste da América atestam, portanto, que entre a má culinária e
contexto, a que já nos referimos (supra, p. 230): a dona do fogo roubado por Lince
a algazarra existe a mesma correlação cuja generalidade e alcance os mitos o mantinha escondido nas próprias tranças, cada uma delas feita de cinco toras
do outro hemisfério já nos tinham feito pressentir (cc: 299-302). trançadas. É esse detalhe que permite incorporar ao mesmo grupo de mitos as versões
kalapuya sobre a origem do fogo e a variante tillamook (M₆₅₂a, E.D. Jacobs 1959: 110-
! 12; cf. M₆₅₂b, c, Edel 1944: 121-24), nas quais as toras são de madeira trançada.

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o tinham feito, é verdade, mas quase morreram porque Puma se expôs (e ao suscetível. As variantes chehalis M₆₄₉a, b e certas versões humptulips (M₆₅₁b),
irmão) às tentações e riscos de uniões tão afastadas que já não conseguia de que voltaremos a falar, dão esse papel ao Trovão. Em compensação, M₆₄₈,
cumprir suas obrigações de afim. De modo que a função dos mitos é, em que não contém esse detalhe, põe ao lado de Puma mulheres-gruas insupor-
ambos os casos, a mesma, delimitar na ordem social ou na ordem natural táveis por causa da algazarra que fazem, e M₆₄₉, que o contém, substitui as
os setores em que a máxima do “onde come um, comem dois” cede lugar ao gruas por gansos igualmente barulhentos, mas que aparentemente não exer-
“cada um por si”. Porém, enquanto os Sahaptin encarregam Puma e Lince cem o papel de passador nos mitos americanos. Chamamos anteriormente
de defender a primeira e Ursa e Grizzly de defender a segunda, os Salish do (supra, p. 260) a atenção para o papel específico do passador nos mitos que
rio Cowlitz empregam o primeiro par, mas num outro registro, para fazer estamos examinando. Trata-se, dizíamos, de um semi-condutor, cujos servi-
a demonstração de que seus vizinhos a montante encarregam o segundo. ços não são reversíveis: transporta em segurança uma categoria de clientes,
Isso posto, e tendo em vista que já registramos a inversão das mensagens mas intercepta e afoga a outra. As mulheres-gruas, por sua vez, não se mos-
e a dos códigos, resta apenas inverter os léxicos para que a transformação tram nada suscetíveis: seu amor-próprio tolera que façam propostas de casa-
possa prosseguir. É justamente o que acontece com o tipo I dos Chehalis mento e sua delicadeza moral não as impede de exigir um pagamento pelo
(M₆₄₈), em que código e mensagem se restabelecem, mas o léxico se inverte. que coletaram. M₆₄₈ as oferece como exemplo a demonstrar que, contraria-
Voltando da máxima do “onde come um, comem dois” para a do “cada um mente ao que elas parecem pensar, o protocolo matrimonial não é reversível.
por si”, o mito de Lince e Puma tem de mudar de vocabulário, mas sem que Nesse campo, só pode haver trâmites num sentido, do homem para a mulher
o andamento geral da narrativa se altere. Os termos se transformam, pois, e não da mulher para o homem. De modo que tal protocolo também se apre-
em seus contrários: guisado em assado, recipiente de casca em espeto de senta como um semi-condutor, e a intervenção das mulheres-gruas não é
madeira. Como postulamos até agora de modo implícito, uma outra trans- fortuita. Essas criaturas barulhentas que se instalam complacentemente num
formação atesta que o retorno efetuado pelo mito chehalis (M₆₄₈) para a fór- papel de, por assim dizer, “passadas não suscetíveis”, simplesmente inver-
mula do mito sahaptin do alto Cowlitz (M₆₄₅) não resulta de uma conexão tem o Trovão das outras versões, igualmente barulhento mas suscetível (não
direta entre os dois, mas passa necessariamente pelo intermédio do mito suporta que lhe toquem a perna quando a estende de uma margem à outra
salish do baixo Cowlitz (M₆₅₀). Atenhamo-nos a esse ponto. para servir de passarela) e que duro na negociação do preço de seus ser-
Sabemos, pelo que foi apresentado, que o mito do lince e do puma e o viços; no que se mostra tão interesseiro quanto as mulheres-gruas quando
das duas ursas pertencem ao mesmo grupo de transformação. Mostramos, Lince lhes pede o fruto de sua coleta. Como passador suscetível, o Trovão
por outro lado (supra, p. 255-64), que o mito das duas ursas também per- das versões salish transforma um outro velho que, no ciclo dos veadinhos e
tence ao ciclo chamado dos veadinhos e dos ursinhos. Podemos fornecer dos ursinhos, é uma Grua ou Garça. E o grupo também se fecha aqui.
mais uma prova disso. Na extremidade sul da área ocupada por esse ciclo, O episódio do casamento com a filha do Trovão, que já encontramos em
uma versão proveniente dos Pomo (M₆₃₉, Barrett 1933: 344-49) reconstitui a M₆₅₀b, distingue o tipo chehalis ii do tipo i (supra, p. 278):
armação do episódio consagrado ao casamento de Puma, apenas deslocado
do final para o começo. A simetria que prevalece entre todos esses mitos se M 649A CHEHALIS (WASHINGTON): O LINCE E O PUMA
manifesta igualmente de outros modos: num caso, uma Corça é casada com
um Trovão, filho de uma Ursa, e no outro, a esposa de Puma é uma Ursa, Lince procurava gravetos para servir de espetos, e cantava alegremente pensando
filha do Trovão. E sempre eclode um conflito entre o afim e o ascendente de na boa refeição que faria. Um ogro ouviu-o, convidou-se, comeu toda a carne e ador-
seu cônjuge. Em quase todas as versões do mito dos veadinhos e dos ursi- meceu. Puma o decapitou e fugiu com o irmão. O ogro os perseguiu e matou quatro
nhos, um personagem chamado Grua ou Garça6 faz o papel de passador dos cinco pumas que o mito menciona de repente (cf. M648). O quinto escapou, mas
o ogro preferiu correr atrás de Linceº, que primeiro se transformou em várias colinas
6 . É muito difícil distinguir esses dois pássaros, tanto mais que, como notam Ballard e depois pediu a um velho que o ajudasse a atravessar o rio. Trovão (era esse o nome
(1929: 77 n.42) e Godfrey (1967: 43), a linguagem popular aplica correntemente o termo dele) concordou, por um bom preço. O ogro apareceu, pediu o mesmo serviço e o
crane à Garça-Real. obteve. Mas em vez de transportá-lo em sua canoa, Trovão esticou as pernas até a

302 | Quarta parte: Cenas da vida de província O ajudante barulhento | 303


outra margem e ofereceu-as como passarela ao ogro, que começou a travessia. No iv. Do bom uso dos excrementos
meio do caminho, Trovão sacudiu as pernas, o ogro caiu na água e se afogou. Desde
então, sua cabeça vai de um lado para o outro e sabe-se o tempo que vai fazer pelo
barulho que ela faz cá ou lá.
Trovão deu a filha em casamento a Lince, mas tentou matá-lo com todo o tipo
de maquinação. O genro conseguiu escapar de todas. Trovão acabou desistindo de
persegui-lo (Adamson 1934: 64-67).

Uma outra versão, que junta os tipos i e ii (M₆₄₉b, ibid.: 67-69), coloca o
episódio das mulheres barulhentas depois do do ogro, e continua com a his-
tória do fogo roubado e da troca de fígados. Como em outras, os irmãos se
separam e Puma promete a Lince que sempre reservará para ele parte de Nem mesmo a noite podia separá-los; encontrava-os
frequentemente deitados no mesmo berço, de rosto
sua presa. Enquanto isso, o ogro continua a perseguir Puma e ele se refugia
e peito colados, ambos com as mãos em volta do pes-
na casa de Trovão, que o prende e finalmente o libera mediante pagamento coço do outro, dormindo nos braços um do outro.
pelo serviço prestado. Uma última e brevíssima versão (M₆₄₉c, ibid.: 69-71) j.h. bernardin de saint-pierre, Paulo e Virgínia,
pertence ao tipo ii; ela identifica o ruído produzido pela cabeça do ogro ao Paris, edição de 1789, p. 19-20
barulho do oceano: conforme ele parecer vir do norte ou do sul, o tempo
será bom ou ruim.
Desse modo reencontramos o motivo da partilha, mas transposto em Qualquer que seja o plano em que os mitos se situem — cósmico, meteoro-
termos meterológicos. É significativo que o equilíbrio que se estabelece lógico, zoológico ou botânico, técnico, econômico, sexual, social, etc. —, são
nessas versões entre os ventos e os tipos de tempo, a partir de então regi- dominados pelas ideias de partilha, troca e transação. Opõem-se às espécies
dos pela alternância, ponha também um ponto final num conflito entre que não acasalam entre si e evitam invadir os territórios umas das outras as
afins. As variantes humptulips insistem duplamente nessa correlação. De que praticam, como os predadores e carniceiros, uma certa forma de colabo-
um lado, afirmam a precariedade da partilha alimentar: mesmo destruído ração. Opõem-se aos bens ou pessoas que são adquiridos nas feiras e merca-
como ser cósmico nas versões em que Puma consegue matar sua mulher dos ou em consequência de transações matrimoniais uma categoria de rique-
grizzly, o urso, diz M₆₅₁a (Adamson 1934: 310-15), sobrevive na condição de zas que, como o fogo de cozinha e a água potável, pertencem a todos. Assim,
espécie zoológica, sempre presente e sem dar a mínima importância à regra os mitos que acabamos de passar em revista estabelecem uma verdadeira
da partilha entre pumas e linces, roubando sempre que pode a porção que tipologia das modalidades que a vida em relação é passível de assumir. Eles
os primeiros destinam ao irmão caçula. Por outro lado, uma outra variante analisam e distinguem os casos nos quais nem se troca nem se compartilha,
humptulips (M₆₅₁b, ibid.: 315-24) desenvolve paralelamente o aspecto mete- em que se troca sem compartilhar, em que se compartilha sem trocar, ou em
rológico e o aspecto matrimonial: os diferentes ruídos emitidos pela cabeça que partilha e troca se confundem. Cada um dos mitos faz, a seu modo, a teo-
do ogro e sua proveniência explicam três tipos de tempo em vez de dois, e o ria de um estilo de vida possível entre outros, ilustrados por provérbios como
herói, além de enfrentar a malevolência do sogro, sofre também a da sogra. “cada um por si”, “toma lá, dá cá”, “onde come um, comem dois” ou “cada um
Acaba conseguindo apaziguar a ambos, dando o raio ao Trovão, que aceita o por todos”. E em cada caso, a responsabilidade da demonstração recai sobre
presente em troca, como declara, da filha. Porque até então, conclui o mito, o uma dupla animal diferente, cujos componentes se encontram, um em rela-
trovão era ruído sem luz. De fato, não confirmam nossas análises que apenas ção ao outro, na posição de parceiros, adversários ou rivais.
na tempestade a algazarra incompatível com o fogo de cozinha e a luz, apesar Melville Jacobs, que empenhou-se em salvar tudo o que podia ser salvo,
de também ser fogo, ainda que celeste e não terrestre, podem conviver bem e sublinhou várias vezes que os mitos coletados por ele e por seus antecesso-
seguirem juntas a máxima do “onde cabe um, cabem dois”? res representavam apenas uma fração ínfima de um vasto conjunto perdido

304 | Quarta parte: Cenas da vida de província Do bom uso dos excrementos | 305
para sempre. Seria portanto inútil tentar estabelecer um quadro sistemático num único personagem. Ouve-se o canto da ave na época do ano em que as
das duplas animais e de suas funções. Mas podemos ao menos listar as mais provisões terminaram e reina a penúria, o que às vezes obriga a comer os
importantes, as que vemos operar em mitos de que temos várias versões. próprios mocassins. Atribui-se ao espírito do tetraz as pesadas nevascas que
Distinguiremos, pois, as duplas formados por termos antitéticos (águia e retardam a chegada da primavera (Jacobs 1945: 34). Já os Bez Percé situam
coiote, águia e cangambá etc.) das formadas por termos análogos mas desi- as aventuras de Coiote e Raposa nos tempos de fome do final do inverno
gualmente marcados. Nesta última categoria, identificamos as três duplas (M₆₁₄e, Phinney 1934: 301-06; cf. Boas 1917a: 184-95).
formadas por coiote e lobo, urso pardo (ou preto) e grizzly, e lince e puma. Seria possível localizar as mesmas correlações sazonais nos outros mitos
Em todos os casos, os animais vivem uma relação de intimidade de que um do grupo? Certamente sim para o das duas ursas coletoras de bagas, já que
deles abusa. Resulta daí um drama, cujo desenlace é a instituição da troca essa é uma atividade estival e os plantigrados dormem no inverno. Para
no primeiro caso, a da não-partilha no segundo, e a da partilha no terceiro. fechar o ciclo, seria portanto necessário que o mito de Lince e Puma trans-
Para completar o grupo, seria preciso acrescentar uma quarta dupla, ao corresse no outono, o que é sem dúvida possível em se tratando de animais
qual já aludimos (M₆₁₄a-d; supra, p. 252). Essa dupla, formado por Coiote que vivem basicamente da caça. Ao que se adiciona uma indicação mais clara:
e Raposa em posição de irmão mais velho e irmão mais novo, respectiva- no final de M₆₄₄a (Jacobs 1929: 194-95), Lince encontra um pescador da espé-
mente, transforma a que é formada por um ou vários coiotes e lobos, estra- cie de salmão chamada de truta steelhead, “cabeça de aço” (Salmo gairdnerii),
nhos entre si que roubam a comida uns dos outros. Não obstante, trata-se devido à resistência de sua pele. Esse peixe sobe os rios entre novembro e
sempre de fundar a origem da troca, encarada pelo ângulo ora das transa- maio. Vários mitos ressaltam que ele é pescado no inverno (Adamson 1934:
ções comerciais, ora matrimoniais. Mas uma diferença significativa aparece 163-64; E.D. Jacobs 1959: 167, 177), e inclusive o colocam em oposição dia-
entre os dois grupos. metral com o salmão da primavera (M₆₅₃a-e, Adamson 1934: 72-74, Ballard
O conflito entre o coiote e os lobos deve ocorrer na primavera ou no 1929: 133-34). Quando se considera os mitos sahaptin do ponto de vista sazo-
começo do verão, já que em quase todas as versões os lobos comem ovos de nal, eles parecem, portanto, organizar-se num grupo quadripartite, em que
aves, e é essa a época da postura. Por outro lado, uma versão salish (M₆₁₄c, o verão se opõe ao inverno, do mesmo modo que a discreta reserva que o
Jacobs 1934: 169-71) do outro mito termina com uma sequência que evoca Urso e o Grizzly respeitam um em relação ao outro se opõe à aliança entre
o inverno. Nela, depois de ter instituído o uso da moeda nas transações Coiote e Raposa contra um inimigo comum. Esse primeiro par de duplas de
matrimoniais, Coiote encontra crianças que declaram ter por mãe “aquela termos contrastados é invertido num outro, que opõe o outono à primavera
que provoca sustos repentinos”. Incrédulo, o demiurgo rapta as crianças do mesmo modo que se opõem a partilha de alimento de mão única entre o
mas, logo depois, uma ave escondida alça vôo tão subitamente sob os seus Puma e o Lince e o roubo recíproco praticado por Lobos e Coiotes.
pés que ele cai para trás e desmaia. A ave retorna e liberta as crianças. Em Se a codificação sazonal parece verossímil para as versões salish, sua
seguida, aparece o espírito do gelo, que se aproveita do sono de Coiote para aplicação é mais difícil no caso das versões cowlitz, chehalis e humptu-
roubar o saco cheio de riquezas que ele tinha pegado. No interior do grupo lips. Com efeito, o fato de a coleta de lacamas (palavra chinook para camá-
M₆₁₄, observamos, assim, a transformação: cia, Camassia quamash) feita pelas mulheres-gruas de M₆₄₈ se situar na
primavera é reforçado pelo texto, que especifica serem “button lacamas”
[maus vizinhos —Y mau tempo] (Adamson 1934: 62), ou seja, os primeiros bulbos, que os Chinook situa-
: : [inimigo espacial = “Sioux” —Y inimigo temporal = “Gelo”. dos um pouco mais ao sul colhiam no mês de março (Jacobs 1959, i: 75).
Por outro lado, uma das provas a que o velho Trovão submete seu genro,
O pássaro assustador é um tetraz. Na América do Norte, o termo inclui em M₆₅₁b, consiste em juntar enormes quantidades de neve. Mas sabemos
vários gêneros distintos, mas nessa parte do continente ele parece aplicar-se (supra, p. 285-86) que essas versões salish, longe de remeterem a um deter-
sobretudo aos gêneros Canachites e Bonasa, ou seja, diferentes espécies de minado período do ano, se propõem a dar conta das mudanças de tempo
tetrazes e frangas (infra, p. 352ss). Se o mito salish faz intervirem o tetraz e o que ocorrem em todas as estações. O que significa que quando passamos
espírito do gelo um após o outro, os Kalapuya, por sua vez, fundem os dois dos Sahaptin para os Salish, uma transformação global interioriza, num

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mito único e mais complexo, modalidades meterológicas ou climáticas que contrario da interpretação acima. O mito em questão pertence a um pequeno
os Sahaptin tratam separadamente, remetendo cada qual a um mito dife- grupo de contornos imprecisos7 ao qual, sem investigarem seu significado
rente. A mesma transformação desloca a máxima do “cada um por si” do ou seu alcance, os mitógrafos americanos deram o prosaico nome de “Anus
plano alimentar para o plano sexual, e a do “onde come um, comem dois”, wiper”. Mas quem se expressa na língua que foi a de Rabelais certamente
da ordem da natureza para a da cultura. Mas isso não é tudo, pois a ordem pode caracterizar com mais franqueza a personalidade do herói:
em que os mitos se distribuíram espontaneamente — pelo simples fato de
que a interpretação de cada um deles exigiu a intervenção de um outro M 654 SAHAPTIN (RIO COWLITZ): AVENTURAS DE LIMPA-BUNDA E DE PIPI-NA-CAMA
— oscila constantemente entre dois tipos de transações, ora matrimoniais
ora econômicas, mas sempre concebidas segundo o modelo de uma troca No tempo de antigamente, havia um casal de grizzlys. O marido tinha uma irmã-
permitida ou proibida. E com efeito, o pensamento indígena não sepa- zinha e a melhor amiga da mulher era uma Ursa. O homem Gizzly foi pouco a
rava os dois tipos; não distinguia claramente, do ponto de vista jurídico, pouco deixando de gostar da esposa e resolveu deixá-la. Fingiu uma doença, fez
a aquisição de uma esposa da de bens de subsistência. Acontecia até de crer que tinha morrido e deu um jeito para que enterrassem em seu lugar o cão
mulheres serem diretamente trocadas por produtos de consumo corrente; de seu pai, que ele mesmo tinha matado. Quando a mulher descobriu o engodo,
os Salish do Cowlitz, por exemplo, “não sem se sentirem envergonhados ele já estava longe.
disso”, observa a informante, às vezes pagavam com uma mulher os ali- A esposa Grizzly foi tomada de ódio e devorou todos os moradores da aldeia,
mentos frescos e variados recoltados para a venda pelos Sahaptin instala- exceto a pequena cunhada, de quem fez seu saco de pancada. Sempre que ela defe-
dos a montante (Jacobs 1934: 224). cava, usava os cabelos da pobre menina para se limpar. O irmão desta, que tinha
Tendo partido de M₆₀₆, que abre com um drama familiar de que resulta vindo buscá-la, encontrou-a num estado lamentável, com a cabeça coberta de excre-
um incesto e termina com a instituição das feiras e mercados, fomos leva- mentos. Entrou na casa sem ser reconhecido pela ex-mulher. As duas mulheres esta-
dos a mitos relativos a outras formas de troca. À medida que esses mitos vam sentadas uma diante da outra, com o alimento canibal da ogra colocado no
as inventoriavam e analisavam, trouxeram-nos a problemas matrimoniais chão, entre suas pernas afastadas. Ao verem o visitante, assumiram uma postura
opostos aos que eram considerados no início: o mito de Lince e Puma não mais decente. O homem não quis compartilhar a medonha refeição mas, ainda sem
trata de incesto, mas dos riscos associados a matrimônios afastados demais. ser reconhecido, naquela noite ele dormiu com a mulher.
Irrealizáveis segundo M₆₄₅, que faz do herói um celibatário, tais matrimô- No dia seguinte, inventou um pretexto para fazê-la cavar um buraco tão fundo
nios são bem sucedidos no final da versão humptulips M₆₅₁, que assim ilus- que ela não conseguiu sair dele. Pegou seu arco e suas flechas e a matou. Depois,
tra o último estado de uma única e mesma transformação. Simplificando deu uma bordunada na Ursa amiga da defunta. Decretou que, dali em diante, esses
bastante, pode-se portanto dizer que M₆₀₆ abre com a derrocada sangrenta bichos seriam caçados assim.
do casamento de um personagem chamado Arco com uma Ursa Grizzly, ao O homem queria ir para bem longe com a irmã. Mas ela tinha vivido tempo
passo que M₆₅₁ termina com o sucesso desse mesmo casamento; pois que demais com a ogra e, no caminho, transformou-se em Grizzly e começou a perseguir
é também um caçador que o contrai, com a filha do Trovão, que as versões o irmão, que saiu correndo. Ela estava prestes a alcançá-lo quando ele se refugiou
intermediárias descrevem como um grizzly. O personagem da mulher e os numa casa. Lá havia um menininho. O homem pediu-lhe ajuda mas, em vez de res-
eventos de que ela toma parte passam progressivamente do início do mito ponder, ele repetia ironicamente as suas palavras. A brincadeira acabou quando o
(M₆₀₆) para o meio (M₆₁₅-M₆₄₂), mas é sempre a mesma mulher e os mes- homem chamou seu interlocutor de cunhado. O menino, que aqui se chama Pipizi-
mos eventos que encontramos, a partir de M₆₄₅ e até M₆₅₁b, no final. nho, escondeu-o nos cabelos e também miniaturizou magicamente a casa. A irmã

! 7 . Que poderia ser estendido até a bacia do Missouri, mediante a inversão do personagem
de Pipi-na-Cama num outro que os Mandan chamam de “Esterno” ou “Osso-ruim” (M₄₆₃,
Em tais condições, possui um interesse especial o mito sahaptin que inverte M₄₆₉b, Bowers 1950: 291-93, 320. Cf. infra, p. 301). Mais perto dos Sahaptin, ver Kutenai,
o conjunto do sistema e permite, assim, apresentar uma demonstração a M₆₉₅b, Boas 1918: 125, e Okanagon, M₆₉₆c, d, Cline 1938: 201-04, 244-47.

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Grizzly chegou e perguntou a Pipizinho “se ele tinha visto a comida dela que ela de M₆₀₆ desce num buraco natural, levada pela falta de água (falta de ali-
estava perseguindo”. O outro apenas ecoou suas palavras. O tom foi subindo, e ele mento umido), e a de M₆₅₄ cava um buraco artificial para nele depositar,
urinou no corpo e na boca da ursa. A urina era venenosa. A ursa morreu. conforme o mito, suas reservas de ossadas humanas (excesso de alimento
Ao anoitecer, as cinco irmãs de Pipizinho, todas mais velhas que ele, voltaram seco); 5) em M₆₀₆, a mãe transformada em grizzly mata o filho sob pretexto
para casa carregadas de raízes comestíveis. O menino pediu permissão para dormir de tirar-lhe os piolhos, ou seja, de limpar-lhe a cabeça, procedimento inverso
com cada uma delas, a uma de cada vez. As quatro mais velhas recusaram, com medo ao da mulher-grizzly para com a cunhada, que ela não mata, mas usa para
de que ele urinasse nelas durante a noite, mas a caçula consintiu. Ela sabia que ele limpar-se, enchendo-lhe os cabelos com o próprio excremento em vez de
tinha um homem escondido no cabelo. Quando ele fez o homem sair, as irmãs quise- extrair os parasitas — espécie de sujeira — que neles havia.
ram que o estrangeiro se tornasse marido de todas. “Não!”, disse o menino às quatro Após o assassinato da ogra, M₆₀₆ encadeia com a história do desaninhador
mais velhas, “vocês me repeliram, só a caçula vai tê-lo” (Jacobs 1934: 186-88). de pássaros, e M₆₅₄, com a de Pipi-na-Cama. Para prosseguirmos de modo
proveitoso a comparação, convém contudo introduzirmos algumas variantes:
Essa estranha história seria incompreensível, se não reconhecêssemos nela
o produto de uma inversão metódica. Toda a sua primeira parte pode ser M 655A NEZ-PERCÉ: AVENTURAS DE LIMPA-BUNDA E DE PIPI-NA-CAMA
reconstruída virando do avesso uma a uma cada célula narrativa do mito
klikitat M₆₀₆. Nesse mito, um personagem chamado Arco (arma de caça da Uma menina querida por toda a aldeia foi raptada por cinco irmãs Ursas. Seu irmão,
humanidade futura) tem, por essa razão, uma relação de complementari- que se chamava Pica-Pau-de-Cabeça-Vermelha, foi procurá-la. Encontrou-a num
dade com suas duas esposas, Grizzly e Ursa (que levam os nomes de futuras estado lastimável. Ela explicou que as ursas a obrigavam a trabalhar duro, limpavam
presas). Aqui, é o contrário. Ursa e Grizzly não são co-esposas que se hosti- o traseiro em sua cabeça e não lhe davam nada para comer. Pica-Pau deu-lhe um
lizam, mas amigas, e a relação entre Grizzly e seu marido é suplementar, em pássaro que ele tinha matado para ela fingir que tinha caçado, e encheu a cabeça
vez de complementar, já que ele próprio é um Grizzly. Em M₆₀₆, ocorre uma da irmã de plantas cortantes, que machucaram as ursas quando elas se limparam.
separação temporária entre a mulher Grizzly e o marido, por uma razão Como de costume, elas ficaram nuas para a refeição da noite; e faziam muito baru-
natural, que é o fato de ela estar menstruada. Em M₆₅₄, o marido quer se lho para comer. Quando Pica-Pau fez sua entrada, elas se vestiram às pressas. Ele
separar da esposa definitivamente, e para isso inventa um artifício. Ou seja, aceitou comer com elas e passou a noite com uma delas, mas ficou falando sem
a tripla transformação: parar, para mantê-las bem acordadas. Esgotadas, elas acabaram adormecendo. Pica-
Pau pos fogo na casa e saiu com a irmã, proibindo-a de pegar qualquer coisa. Mas ela
a) M₆₀₆ (co-esposas inimigas) —Y M₆₅₄ (amigas não co-esposas) não pode resistir ao espetáculo dos cadáveres das ursas explodindo no fogo, nem à
b) M₆₀₆ (marido/mulher) —Y M₆₅₄ (mulher ≡ marido) vontade de pegar os dentes delas. Gesto fatal, pois assim contaminada, ela virou ursa
c) M₆₀₆ (disjunção natural, temporária) —Y M₆₅₄ (disjunção artificial, definitiva) e começou a perseguir o irmão.
Ele buscou refúgio na casa de cinco mulheres, que chamou de primas, depois
A mulher Grizzly de M₆₀₆ tem um filho e uma filha; do marido, logo meta- de cunhadas, e que só lhe deram atenção quando ele as chamou de esposas. Elas
morfoseado em arco, não se ouve mais falar. A mulher Grizzly de M₆₅₄ não o esconderam e conseguiram enganar a ursa com palavras de duplo sentido. Essas
tem filhos, e sim dois afins, o marido e a pequena cunhada. De sua amiga mulheres eram perigosos cabritos-monteses (“mountain sheep”, Ovis canadensis),
Ursa não se ouve mais falar, a não ser para fazê-la morrer sob uma borduna, que deixaram o herói cozinhar sua refeição mas proibiram-no de tocar em seus
que forma com o arco um par de termos correlativos e opostos. Os afins de bastões (espetos?) de madeira de tuia. Mas ele os usou para atiçar o fogo. Os bas-
Grizzly desempenham, em M₆₅₄, um papel simétrico inverso do que cabe tões eram os “filhos” das mulheres, e ele os tinha destruído. Furiosas, elas saíram
aos filhos de Grizzly em M₆₀₆. Vejamos: 1) sua relação, de incestuosa (M₆₀₆), atrás dele. Ele se refugiou numa casa cujo ocupante era um menino, chamado
se transforma em canibal (M₆₅₄); tal relação é travada após o assassinato da Pipi-na-Cama, que concordou em escondê-lo atrás de sua nuca, contanto que ele
ogra, e não antes; 3) o autor do assassinato é a mulher num caso, o homem o chamasse de cunhado. Quando as Cabritas chegaram, ele as borrifou com urina
no outro; 4) cá e lá um buraco é o instrumento do assassinato, mas a ogra e elas morreram.

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Logo depois as cinco irmãs de Pipi-na-Cama voltaram da caça. Repreenderam- conseguem comer os vermes que proliferam no peixe podre (Haeberlin 1924:
no por ter matado suas “primas” e as ressuscitaram, pisoteando os cadáveres.8 Em 429). Aliás, em toda a região são frequentes as menções a seres sobrenaturais
seguida, prepararam o jantar. Uma após a outra, todas as irmãs se recusaram a tapados em cima ou em baixo, na frente ou atrás, às vezes de vários lados
compartilhar suas porções com Pipi-na-Cama, exceto a mais nova, que exclamou: ao mesmo tempo; ocorrem, por exemplo, entre os Chinook (Sapir & Spier
“Por que você pede? Alguma vez elas dividiram alguma coisa com você? Venha, ande, 1930: 279; Jacobs 1959, i: 80-105; ii: 388-409, cf. M₅₉₈) e os Tillamook (E.D.
coma! Só nós dois temos pena um do outro!” A mesma cena se repetiu quando o Jacobs 1959: 3-9). Em geral, esses personagens participam na qualidade de
menino pediu a cada uma das irmãs para domir com elas. Todas disseram que ele sujeitos passivos da ordenação do mundo pelo demiurgo, que lhes dá uma
fedia a urina. Mas a mais jovem disse: “Como se fosse a primeira vez que urinamos vida normal perfurando os orifícios ausentes. O fato de uma intervenção
um no outro! Venha dormir comigo!” Aí, ele mostrou o belo rapaz que escondia atrás da mesma ordem ser aqui apresentada como destrutiva, e de acontecer no
da nuca. Apesar dos protestos de Pipi-na-Cama, as irmãs pegaram Pica-Pau para ser momento em que o herói, refugiado no topo de uma árvore para escapar de
o marido delas. um perigo de origem terrestre ou até mesmo subterrânea, simultaneamente
Certo dia, Pica-Pau quis ir caçar. Suas mulheres recomendaram-lhe que não ultra- imita e contradiz o personagem do desaninhador de pássaros, basta para
passasse um certo penhasco, mas ele foi levado para o outro lado atrás de um animal convencer de que essa família de mitos reflete os que consideramos até o
ferido. Repentinamente, foi cercado por um bando de anões, que no começo foram momento, mas apresenta deles uma imagem invertida. E não é o excremento
intimidados pelo fogo dele. Ele queimou toda a sua reserva de lenha, e o animal que o inverso do alimento?
tinha caçado. À medida que o fogo diminuía, os anões fechavam o cerco. Pica-Pau
subiu ao topo de um grande pinheiro que havia ali. Os anões foram subindo uns em !
cima dos outros e quase chegaram até ele, que quebrou um galho e usou-o como
lança, para furar e fazer explodir seus corpos. Os anões caíram mordendo uns aos Não se trata de retomar o estudo nesse nível, ainda mais na medida em que
outros. Quando amanheceu, os anões resolveram costurar-se uns nos outros para o grupo que acabamos de ilustrar com dois exemplos compenetra, do modo
formar no pé da árvore um círculo compacto e intransponível. Mas dormiram tão mais insidioso, toda a mitologia do noroeste da América e se estende para
profundamente que Pica-Pau conseguiu escapar pisoteando e furando os corpos. além dali. Sabemos que os Salish, os Chinook e seus vizinhos imediatos
Quando chegou à casa, encontrou Pipi-na-Cama com os olhos inchados e encharca- atribuem a organização do mundo às obras de um demiurgo chamado Lua
dos de lágrimas (Phinney 1934: 106-12). (M₃₇₅, M₃₈₂, M₅₀₆). Ele as realiza durante uma longa peregrinação de retorno
para junto dos seus, partindo da terra dos salmões, onde as duas filhas-da-
leita, que o tinham raptado no berço, criaram-no e casaram-se com ele. Pois
Essa versão coloca vários problemas, a começar pelo título com que o filho bem, certas versões informam que Lua foi concebido no céu por uma mulher
da informante a registrou e publicou. Ele o intitula “Jovens estrelas”. No que desejava ter uma estrela por marido. À diferença de sua análoga das Pla-
entanto, o texto não menciona nenhum astro. Deveríamos supor que, como nícies, ela consegue voltar para a terra, mas a corda ou escada que tinha uti-
ocorre entre os Kalapuya ao sul (Jacobs 1945: 173-75) e os Coeurs d’Alêne ao lizado se quebra e, desde então, tornou-se impossível a comunicação entre o
norte (Boas 1917a: 125-26), os protagonistas do mito se transformaram, após céu e a terra (infra, p. 368). Nessa forma integral, que a conecta a mitos lon-
a cena final, em constelação? A hipótese é plausível, mas só teria interesse gamente discutidos no volume anterior (quarta e quinta partes), a gesta do
se pudéssemos identificar os astros em questão e esse não é, infelizmente, o demiurgo coloca, sob dois aspectos sucessivos, a questão da mediação entre
caso. Quanto aos anões que se costuram uns aos outros com esmero, mas os mundos natural e sobrenatural, entre natureza e sociedade. Uma primeira
que o herói fura, é tentador lembrar os pigmeus de que falam os mitos salish tentativa de conjunção no eixo vertical fracassa, e os humanos nunca mais
da região de Puget Sound, que são mudos, e cuja boca é tão pequena que só poderão se comunicar com o céu; mas uma segunda tentativa, no eixo hori-
zontal, será bem sucedida graças à atuação do demiurgo, e a subida dos pei-
8 . Sobre a ressureição por pisoteamento, cf. Spinden 1908a: 153; McDermott 1901: 242, xes, de que os homens dependem para sobreviver, confirma periodicamente
244ss. a veracidade do mito.

312 | Quarta parte: Cenas da vida de província Do bom uso dos excrementos | 313
Percebe-se claramente que, reduzida a esses contornos essenciais, a gesta numa aldeia e se impôs como co-esposa a um de seus habitantes. Ao oferecer
do demiurgo pode ser transformada na história do desaninhador de pássa- carne a famílias de parasitas que até então eram vegetarianos, ela gerou neles
ros. Ambas começam operando num eixo vertical, certamente com vistas a o apetite por sangue.
uma disjunção e não uma conjunção, nas versões do desaninhador que dis- Convém fazer aqui duas observações. Primeiramente, M₆₅₄ e M₆₅₅, que
cutimos até agora; porém, entre as tribos do interior (Nez Percé e Salish do tratam da origem da caça ao urso e suas técnicas (supra, p. 291), poderiam
Planalto), logo voltaremos a encontrar a fórmula inicial, já que o herói preso inverter o motivo dos parasitas no episódio de M₆₅₅ em que o herói sobe até
no topo de uma árvore consegue chegar ao céu, onde vive diversas aventuras o cume de um pinheiro, não para chegar ao céu e lá encontrar criaturas per-
antes de retornar à terra. Por outro lado, as peregrinações que conduzem o furantes, como em M₅₉₈a, mas para fugir da terra tomada por criaturas anãs
enganador, à sua revelia, até o mar, invertem as do demiurgo, tanto pelo seu que ele mesmo tratará de perfurar. Por que esses mitos fundam a caça aos
caráter involuntário como pela direção que tomam, mas também prenun- ursos pelos humanos em vez da caça aos humanos pelas pulgas e piolhos,
ciam a libertação (ou mesmo a criação) dos peixes. estes assumiriam a forma de parasitas invertidos.
Ora, quando os mitos do desaninhador se atêm ao aspecto disjuntivo, No mesmo sentido, mencionaremos um mito thompson (M₆₅₅b, Teit
sabemos o que aguarda o herói, em sua posição exaltada: sofre de fome e 1898: 35, 1912b: 362-65) em que uma mãe e seu filho, que se salvam passando
sede, definha, as aves o cobrem de excrementos, enquanto suas esposas, que por um arco feito de um jato de urina do menino (invertendo o personagem
ficaram na terra, só recebem de seu novo senhor, Coiote, alimento em pouca de Pipi-na-Cama), são perseguidos e acuados no topo de uma árvore por
quantidade e poluto. Do mesmo modo, contam os Salish e os Chinook, o um povo de parasitas. A versão nootka (M₆₀₀f) do filho do ranho também
demiurgo Lua, ao retornar para casa, encontra seu irmãozinho (feito da confirma essa interpretação, pois em vez de ser roubado por uma ogra, esse
urina do mais velho, e que mais tarde se tornará o sol) submetido aos maus- herói é, ao contrário, o único dentre várias crianças a escapar disso, o que
tratos de um enganador doméstico, Gaio-azul, que o usa como limpa-bunda. lhe permite partir em busca de seus irmãos e irmãs e, mais tarde, libertá-los.
Os mitos não se contentam, pois, com encarar operações simples, tais como Bem, como o herói clackamas, de quem ele é a contraparte, esse herói sobe
a conjunção e a disjunção, situadas num eixo horizontal ou vertical. Eles ao céu e também se casa com a filha do sol. Porém, em lugar de parasitas
também distinguem as direções tomadas pela realização dessas operações, e perfurantes, ele lá encontra inicialmente moças-caracol, lindas mas cegas,
os graus. Responde ao desaninhador de pássaros, forma fraca e incompleta cujos olhos ele abre usando o próprio pênis como perfurador (supra, p. 214,
de um personagem que consegue subir ao céu, o coveiro de ursos de M₆₅₄, 251; infra, p. 361). Convém não esquecermos que numa versão wishram do
complementar de seu parente limpa-bunda, personagem soterrado por um mito do cônjuge do astro (M₅₉₈g) também aparece, mas dessa vez na terra,
urso, que é umaincarnação animal do mundo subterrâneo. a contrapartida igualmente perfuradora dos parasitas, na forma de formi-
Que as desventuras de Limpa-Bunda — personagem masculino ou gas, zangões e vespas. E finalmente, introduziremos mais adiante um mito
feminino — representam uma contrapartida subterrânea da visita ao céu, thompson (M₆₅₈b, infra, p. 299) que inverte os que acabamos de discutir e
durante a qual um terráquio, homem ou mulher, torna-se esposo de um cuja heróina possui um cãozinho chamado Parasita, que assim passa do
astro, resulta também de uma função etiológica compartilhada pelos dois papel de parasita do homem para o de animal doméstico.
grupos, que explicam a origem dos parasitas, na medida em que sua relação Se o mito da criança roubada que foge para o céu e desposa um astro é,
com o homem (que eles comem) é a mesma que prevalece entre o próprio como mostramos, simétrico ao das esposas dos astros, o mito contrário da
homem e sua presa. O jovem herói chinook, roubado por uma ogra (M₅₉₈a) criança que não é roubada (nascida do ranho expelido por uma mulher, ou
que o cria com carinho e o alimenta com bichos imundos que constituem de uma pedra ingerida por ela) é, na primeira dessas duas formas, simétrico
sua alimentação costumeira (fórmula simétrica à de Limpa-Bunda), mata ao importante grupo estudado no volume anterior sob o título de “menino
a mãe adotiva e foge subindo numa árvore até o céu. Lá, ele encontra povos de pedra” (M₄₆₆, M₄₇₀, M₄₈₇, M₄₈₉) e que, por outras vias, já tínhamos conec-
que iriam virar as várias espécies de parasitas, piolhos, lêndeas, pulgas etc. tado ao das esposas dos astros. Ora, na gesta salish do demiurgo Lua, este
Simetricamente, a versão clackamas do mito do limpa-bunda (M₆₅₆a, Jacobs também aparece como uma criança roubada, mas pelas filhas-da-leita, que
1959, ii: 315-31) conta que uma mulher já grizzly e em breve ogra apareceu são em tudo o contrário de ogras, já que elas mesmas são alimento e dão

314 | Quarta parte: Cenas da vida de província Do bom uso dos excrementos | 315
origem, umas às árvores úteis para os humanos (≠ cúmplices da ogra em 1915: 305-11, Bloomfield 1928: 395-409), menino em vez de menina, nascido
M₅₉₈a), outras aos peixes comestíveis (cujo valor alimentar é ignorado pela da união entre um humano e uma ursa e por algum tempo reduzido pelas
ogra de M₅₉₈a). Entrevê-se assim um meio de consolidar um apanhado raposas ao papel de limpa-bunda. O mito termina com a disjunção hori-
incrivelmente complexo de mitos num único grupo (fig. 23). zontal dos protagonistas, que vão uns para o norte e os outros para o sul,
como os da versão clackamas (M₆₅₆a), que partem em direções diferentes,
Herói indo a mulher para a água, e portanto para o oeste, e seus filhos junto com
o tio para o leste, para as montanhas, enquanto o marido parte sozinho
numa terceira direção.
Intermediário entre o grupo do limpa-bunda e o dos veadinhos contra
os ursinhos, um outro mito clackamas (M₆₁₉, Jacobs 1959, i: 156-66) também
único que não
roubado desemboca numa tripartição do povo mítico: uns foram para os rios, outros
é roubado
para as montanhas, outros ainda para os ares, e viraram peixes, quadrúpe-
des e aves. De modo que estamos sempre diante do mesmo esquema.
Ficaremos por aqui. Essas rápidas indicações bastam para mostrar que,
menino de filho do por uma ogra pelas filhas da leita apesar de sua estranheza, a história do limpa-bunda não se reduz a uma
pedra ranho (come-cru) (cruas não comidas) fantasia surgida in loco da imaginação brincalhona de algum narrador.
(M₄₆₆ etc.) (M₆₀₀ etc.) (M₅₉₈ etc.) (M₃₇₅ etc.) Aliás, seria fácil estender seu paradigma a toda a América do Norte, mos-
trando que o motivo, tão difundido na região dos Grandes Lagos e mais a
[ 2 3 ] Estrutura do grupo do menino roubado.
leste, de uma esposa martirizada pelo marido que lhe queima o rosto com
brasas transforma o da vítima com a cabeça coberta de excrementos (infra,
p. 463, 465).
Todos os personagens do gráfico têm uma conotação ou uma contrapartida Interrompemos temporariamente a análise na versão nez percé em que a
celeste, lua ou suas manchas, parélios, a que corresponde uma contrapartida irmã caçula de um herói que sofre de incontinência o convida cordialmente
subterrânea ou uma prova infernal (nos dois sentidos do termo) imposta a compartilhar sua refeição e sua cama. Esse episódio se esclarece à luz de
a personagens destinados a voltar a ser celestes, ilustrada pela história de uma outra versão:
limpa-bunda. O desaninhador se move num plano intermediário, bloque-
ado a uma altura mediana, sujado por aves em vez de ursos. M 658A COWLITZ: HISTÓRIA DE PIPI-NA-CAMA
Quando esboçamos (supra, p. 218-19) os primeiros contornos desse
sistema, chamávamos a atenção para variantes klallam de M₆₀₀ em que o Pipi-na-Cama tinha cinco irmãs. Um dia, ele matou uma criatura temível que per-
filho do ranho liberta a irmã, que um urso tinha raptado e desposado. Ela seguia um rapaz e o escondeu nos cabelos. O mesmo incidente repetiu-se cinco
volta para casa com a criança gerada por essa união, uma menina de duas vezes seguidas com personagens diferentes, e o herói conseguiu, assim, arrumar
cabeças ou duas caras, e muito insolente, que ofende o tio lembrando-o um marido para cada uma de suas irmãs. A mais velha teve dois filhos, um menino
que ele é feito de ranho e provoca a partida dele para o céu. Essa menina e uma menina, que se apaixonaram um pelo outro e fugiram juntos. A mãe saiu
meio ursa, ainda mais perigosa por ter olhos na frente e atrás e não poder correndo atrás deles mas não conseguiu alcançá-los. O casal incestuoso se refugiou
ser atacada de nenhum lado, faz uma breve intervenção num mito chinook em terra estrangeira. Tiveram um filho. Todos os dias, ele dançava e cantava “minha
já mencionado (M₆₄₆a, Jacobs 1959, i: 262-64) em que o filho do Trovão e mãe também é minha tia, meu pai também é meu tio...”. O pai ficou com medo que
de uma humana a encontra e livra a futura humanidade do perigo hiper- alguém escutasse e o matou. O demiurgo enganador apareceu e mandou o casal
bólico que ela encarna. Mas também a encontramos bem mais longe, entre incestuoso se separar, obrigando o homem e a mulher a encontrarem cônjuges entre
os Menomini da região dos Grandes Lagos (M₆₅₇a, b, Skinner & Satterlee os estrangeiros: “Assim será feito doravante: ao atingirem a idade da razão, os irmãos,

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irmãs e primos saberão que não devem dormir juntos. Agora é assim: é ruim irmão e do sentido em que a revelação é feita). A mais velha das irmãs Grizzly, que
irmã virarem amantes” (Adamson 1934: 226). continuava procurando o marido, ouve a mulher, mata-a e come-a junto
com o bebê. O homem volta e reconhece a voz da ogra. Junta toda a água dos
Pelo motivo dos irmãos incestuosos perseguidos pela mãe que quer castigá- rios num poço, perto da casa. Entra em casa, reclama de sede e pede água à
los9 esse mito se junta ao dos Klikitat (M₆₀₆), de que partimos. E este, por mulher, mas ela lhe diz que os rios estão secos. Ele a encaminha ao poço. Ela
sua vez, esclarece reciprocamente o outro, pois se a mãe de M₆₅₈a é uma se debruça e ele aproveita para empurrá-la por trás. Ela morre afogada e ele
réplica enfraquecida da que se transforma em grizzly (mas, transferido para restaura a rede hidrográfica.
a geração seguinte, o infanticídio subsiste), os casamentos das cinco irmãs Vê-se que se a primeira parte do mito inverte M₆₅₈a, a segunda inverte
com humanos ocorrem entre cônjuges demasiado afastados. Em compensa- M₆₀₆, já que aqui a irmã e seu bebê morrem e o irmão escapa ileso, ao con-
ção, um casamento posterior une irmão e irmã, ou seja, cônjuges demasiado trário do que acontecia no outro mito. Além disso, a ursa canibal aparece
próximos. Resulta desse duplo abuso, uma disjunção atual que teria sido como esposa em vez de mãe. E, finalmente, a ogra se afoga numa água tor-
preciso respeitar e uma conjunção potencial que teria sido preciso evitar, a nada superabundante, ao passo que a de M₆₀₆ morre em decorrência de falta
proibição do incesto e a instituição de uma exogamia razoável, unindo côn- de água, caindo num barranco seco.
juges igualmente humanos, mas estrangeiros. Entre o grupo das duas ursas, A versão shuswap (M₆₅₈c) diverge a partir do incidente dos pelos enfei-
de que faz parte M₆₀₆, e o de Limpa-Bunda, ao qual se conecta M₆₅₈a, mitos tiçantes. Em vez de se deixarem seduzir, os irmãos resolvem matar as ursas,
thompson e shuswap (M₆₅₈b,c, Teit 1898: 72-74, 1909: 707-09) ilustram um mas morrem na luta. A jovem irmã, aos prantos, assoa o nariz sobre o fogo,
estado intermediário. A heroína, irmãzinha de quatro homens que passam o onde seu ranho vira um menininho. Seu nome, “Pedra-de-Ranho”, sintetiza
tempo todo caçando, é o inverso de um limpa-bunda, já que, longe de a mar- por si só os dois grupos do “filho do ranho” e do “menino de pedra”, cuja
tirizarem do modo que conhecemos, as quatro irmãs Grizzly que ela encon- afinidade tínhamos estabelecido independentemente (supra, p. 218, 297). Ao
tra no campo a mimam e cobrem de presentes. Na verdade, elas queriam crescer, ele mata as ursas e ressuscita os tios.
casar-se com os irmãos da menina e, conforme M₆₅₈b, conseguem seduzi-los Todos esses mitos pertencem, portanto, ao mesmo grupo de transforma-
misturando às escondidas seus pelos púbicos com as raízes que constituem ção, e todos tratam do incesto, comparando-o com outros tipos de união
sua alimentação habitual, e que convencem a pequena a servir no próximo entre cônjuges afastados demais ou na justa medida. Porém, como lembrá-
jantar. Ou seja, uma tripla transformação: vamos há pouco (supra, p. 289-90), para conectá-los, foi preciso passar por
mitos que colocam em termos de relações entre espécies animais distintas a
a) (excremento de ursa) —Y (alimento de ursa) questão a que M₆₅₈ confere sua expressão sociológica, e que, principalmente,
b) (cabeleira de humana) —Y (pelos púbicos de animais) recorrem a um código alimentar para enunciar as diversas soluções que a
c) (irmã maculada) —Y (irmãos seduzidos) sociedade pode dar à questão do casamento. Não é surpreendente, pois, que
o grupo do limpa-bunda, que inverte esses mitos e particularmente, como
Nem bem se casam, e as ursas só querem matar e comer seus maridos o vimos na p. 292, o das duas ursas, transforme o código alimentar destes em
mais rápido possível. Só o mais velho consegue fugir com a irmãzinha. Não código, digamos, excrementar. Num novo registro, ele também permite dis-
obstante a diferença de idade, que agrava a relação incestuosa, ele a toma por tinguir entre o que é lícito ou proibido trocar.
esposa. Ela logo tem um bebê, que nina cantando “Ah, Seu tio está caçando! Quanto a isso, o uso de outrem, ainda que escravo, para os fins que
Ah, seu pai está caçando!” (cf. M₆₅₈a e a inversão, correlativa às precedentes, M₆₅₄-M₆₅₇ descrevem com uma espécie de fascínio horrorizado parece
representar, para o pensamento indígena, um limite para além do qual nada
9 . O estudo do grupo salish dos irmãos incestuosos se encaixaria melhor num
se pode conceber de mais abjeto. Os mitos dessa região dão provas de uma
contexto diferente, que foi o de nosso curso no Collège de France em 1968-1969. Aqui real delicadeza no exercício das funções naturais. Coiote, por exemplo, avisa
mal o afloramos, e remetemos, para pesquisas mais amplas, a Teit 1912a: 340-41, 5: 287- seu companheiro de estrada: “Tenho dor de barriga, preciso me aliviar; não
88, Hill-Tout 1907a: 336-38, 1899b: 566-74, Cline 1938: 212-13, entre outros. me espere, o cheiro poderia incomodá-lo” (M₆₄₆a, Jacobs 1959, i: 264). Mas

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para essas populações do noroeste, a urina pertencia a uma categoria dife- Mas esse desenrolar num eixo linear gera também fenômenos de resso-
rente da das fezes.10 Era coletada em penicos e utilizada na higiene corporal. nância. Como uma melodia que seguisse sua própria curvatura enquanto
Em suas peregrinações celestes, a primeira coisa que o herói de M₅₉₈a-c faz cada nota, ao ser ouvida, evocasse a série de seus harmônicos, a cada estado
ao entrar numa casa cujos ocupantes estão ausentes é encontrar um reci- da transformação, percebida como uma série de estados, corresponde um
piente cheio de urina para lavar os cabelos. Esse emprego da urina como conjunto de elementos míticos superpostos e que formam acordes entre si.
loção capilar ou corporal, bem atestado pela etnografia, coloca-a em opo- Ao personagem que faz o papel de mediador, garantindo a transição entre
sição particularmente marcada com os excrementos de ursa, já que a urina dois estados ou dois mundos, responde um anti-mediador, impotente ou
serve para limpar os cabelos e, conforme os mitos, é sempre a cabeça que os mesmo dotado de uma eficácia negativa. O herói de M₆₅₄-M₆₅₅ e sua irmã,
excrementos sujam. No plano das funções de excreção, o comportamento da inicialmente rebaixada ao papel de limpa-bunda e depois transformada em
ursa para com seu escravo exibe uma promiscuidade tão revoltante quanto ogra, repartem entre eles as duas funções. O anti-mediador se inverte, por
seria um incesto no plano sexual. Ora, a caçula entre as irmãs de Pipi-na- sua vez, no personagem de Pipi-na-Cama que vem socorrer o mediador
Cama assume um comportamento que, no plano das excreções, beira obje- inicial, e reverte contra seu antagonista a potência antes maléfica do excre-
tivamente o incesto; mas seu comportamento diz respeito à urina, não às mento, que invertia a potência benéfica do alimento. Esse duplo caráter,
fezes, e no plano da vida sexual, trará à heroína um belo rapaz que também ao um tempo melódico e contrapontístico, de uma transformação que se
será para ela um bom marido. Quer seja em relação ao alimento ou ao excre- opera em dois eixos, o das sucessões e o das simultaneidades, e que assim
mento, todos os mitos tratam de delimitar as fronteiras entre o que se deve se projeta como encadeamento de sintagmas e como sistema de paradig-
ou não se deve compartilhar. mas, permite a ocorrência de atrasos ou antecipações ao modo do que os
músicos chamam de cadências rompidas ou evitadas. Com efeito, no inte-
! rior de um mesmo mito, mas em segundo plano, ou na forma de mitos dis-
tintos situados em estágios diferentes, motivos ou incidentes se justapõem,
Os desenvolvimentos acima decorrem da observação de que, entre os Sahap- pertencentes a estados anteriores ou posteriores do grupo de transforma-
tin, tanto o mito do desaninhador de pássaros como o de Lince e Puma pos- ção. Quando tais estados são distribuídos numa ordem que, por comodi-
suem funções etiológicas correlatas e opostas. Em suas formas norte-ame- dade, pode ser chamada de “natural”, os mitos de limpa-bunda vêm bem
ricanas examinadas até o momento, o primeiro pretende explicar a origem depois dos do desaninhador; pois é mais econômico, passando pela série
das feiras e mercados, da troca portanto, e os define em relação à cultura. de tipos intermediários, transformar estes naqueles do que buscar o mesmo
O segundo funda a origem da partilha, definindo-a em relação à natureza. resultado no sentido inverso. No entanto, já notamos (supra, p. 295) que
Cada mito ilustra, portanto, um estado simétrico de uma transformação que o motivo do limpa-bunda estava implicitamente presente na história do
se desenvolve progressivamente ao percorrer uma gama de estados. desaninhador. Quase sempre, ele marca uma fase crítica que o herói atra-
vessa na diacronia, e se manifesta ainda mais claramente quando o herói se
10 . É certamente aí que deve ser buscada a chave da inversão do grupo já assinalada desdobra, no plano sincrônico, em dois personagens, o seu próprio e o de
(supra, p. 299) entre os Mandan. Pois a mulher canibal dos mitos mandan, em vez seu jovem filho, que encarna a neutralização de sua função mediadora. É o
de limpar o traseiro em sua vítima, possui um osso protuberante que ficará entalado caso das versões yurok (M₅₅₇) em que o filho do herói vira saco de panca-
numa fenda (≡ ânus) cavada intencionalmente por um jovem herói chamado “Esterno” das do avô, que o cega com seu esperma e assim se livra de uma testemunha
ou “Osso-Ruim”, enquanto que o nome de seu homólogo sahaptin ou salish, se incômoda, para melhor saciar seus desejos incestuosos. Uma transforma-
nossa interpretação estiver correta, denotaria o “bom excremento”. A pertinência da
ção tanto mais evidente do limpa-bunda na medida em que permite passar
transformação que aqui ocorre no sentido urina —Y osso, em outras palavras, excreção
líquida —Y “increção” sólida, é confirmada pelo ciclo de Cabeça Vermelha das Planícies
da história do desaninhador para a (M₅₉₈) do herói também trepado no
(M₄₆₃, M₄₆₉ etc.), em que o braço ou perna anormalmente fortes de um homem vestido alto de uma árvore, mas que de lá chega ao céu, para tornar-se esposo de
de mulher revelam sua identidade, por sua vez revelada, na versão chinook do mesmo uma criatura solar. Ao retornar à terra com sua esposa, encontra o irmão-
mito (Jacobs 1959, ii: 340-41, Hymes s/d), por seu modo masculino de urinar. zinho martirizado e cegado por Gaio-Azul. A transição entre um mito e

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o outro é modulada por um terceiro, também proveniente dos Chinook Jacobs 1934: 42-43) põe em cena Lobo e Cangambá. Eles são irmãos, Can-
(M₆₅₉, Boas 1894: 130-32; cf. infra, p. 400, M₇₁₂-M₇₁₃): o herói é abando- gambá é casado, Lobo deseja a cunhada e a rapta. Cangambá os persegue
nado por seus companheiros numa ilha em pleno mar, a que tinham ido em através de um terreno acidentado (eixo vertical —Y eixo horizontal), tropeça
busca de moluscos (disjunção, vertical —Y conjunção, vertical —Y disjunção, e perde a glândula anal. Furado, não pode mais se alimentar, porque tudo o
horizontal). Na aldeia, Gaio-Azul, enganador doméstico (≠ Coiote, engana- que come escapa de seu corpo. Ele tapa o reto escancarado com um tampão
dor exótico) se apropria de duas das quatro mulheres do herói. Como na de palha e consegue, finalmente, se alimentar.
história do desaninhador de pássaros, aqui mudado em coletor de molus- Os leitores do primeiro volume destas Mitológicas certamente se lembrarão
cos, as duas outras mulheres permanecem fiéis ao marido. Mas Gaio-Azul de que o herói do mito bororo M₁, afastado para o alto em vez de para baixo
também vem defecar na casa de suas vítimas, obrigando o menino da casa ou para longe, mas também em decorrência de um incesto, sofre a mesma
a limpá-lo com seu casaco e martirizando-o tanto que quando seu pai o desventura que Cangambá: privado de fundilhos, seu tubo digestivo não pode
encontra, ele já está cego e careca (cf. M₇₆₇a, infra, p. 461). Vemos, assim, que mais reter o alimento e o herói passa fome até ter a ideia de tapar a abertura
certas variantes do mito do desaninhador precipitam o movimento de tal com um tampão (cc: 44, 55-56). Mas há mais, já que tínhamos imediatamente
modo que o baixo de sua harmonia alcança, por assim dizer, uma parte alta transformado esse herói furado por baixo no de M₂, achatado por cima pelo
reservada por outros mitos para uma fase ulterior da mensagem que de peso de uma grande árvore que lhe nascera do corpo. Depois de livrar-se
ambos os lados é desenrolada por sua melodia comum. dela, ele se transforma em juiz, como Cangambá em M₆₆₀a-b, poupando ou
Do mesmo modo, o mito do desaninhador, que se situa antes da série dos matando seus compatriotas (em vez de povos estrangeiros), conforme estes
pares animais à qual está ligada pelo que chamamos de abertura iv (mãe lhe dão ou não ricos presentes; de modo antissimétrico, pois, com o compor-
que vira grizzly quando está menstruada), possui ainda assim, transposto tamento de Cangambá, que se apodera das riquezas daqueles que mata mas
na série dos pares animais, um equivalente que lhe dá a réplica exata. Águia respeita as pessoas e os bens dos demais, que o trataram com cortesia.
se apossa da mulher de seu irmão Cangambá e a leva para o céu. Cangambá
descobre seu paradeiro, consegue ser içado até eles, mas Águia corta a corda. !
Cangambá cai e, na queda, perde a glândula anal que secreta o fluido com
que ele ataca e se defende. Ele parte em busca dela e a encontra em posse de Retornemos agora ao contraste mais simples que a inversão de suas respecti-
estrangeiros que a utilizam como um brinquedo. Recupera o que é seu gra- vas funções etiológicas permitia (supra, p. 301) perceber entre o mito do desa-
ças a uma esperteza, mata e pilha os povos que lhe faltaram com a considera- ninhador e o de Lince e Puma. Tal inversão etiológica acompanha uma outra,
ção, e poupa os que demonstraram respeito para com ele. Levando as muitas relativa às cores. As mulheres de pele escura do desaninhador são virtuosas e
riquezas que pegou, primeiro ele enfrenta Puma, e escapa; em seguida, roe- as de pele clara, infiéis. No mito de Lince e Puma, ao contrário, é a carne clara
dores chamados “cães da pradaria” (Cynomys gen.) tiram-lhe tudo e o redu- que é boa, e a escura, ruim. A pertinência dessa inversão se evidencia num
zem à condição atual de animal repugnante mas inofensivo para o homem, e outro grupo de mitos cuja armação toda, e não mais apenas a mensagem, é
que um mero assobio espanta (M₆₆₀a, Jacobs 1929: 207-15). rigorosamente simétrica à da história do desaninhador de pássaros:
Uma outra versão (M₆₆₀b, Jacobs 1934: 202-06) informa que a mulher
raptada por Águia lhe era previamente destinada; Cangambá tinha ficado M 661A , B NEZ-PERCÉ: OS DOIS IRMÃOS
com ela graças a um estratagema. O espírito assobiador que faz Cangambá
fugir e lhe rouba todos os tesouros é aqui o congelamento, o que permite Numa aldeia cujo chefe principal era Coiote, e Águia seu braço direito, viviam dois
situar esse grupo de mitos, na série das transformações, bem perto dos que irmãos, caçadores ricos e respeitados que mantinham distância dos demais habi-
têm Coiote e Raposa por heróis (M₆₁₄), e que também destinam as riquezas tantes. O mais velho era casado. O mais novo, solteiro, tinha um urso grizzly como
roubadas às transações matrimoniais: “Isto será para meus aliados por casa- cão. A mulher se apaixonou pelo cunhado, que resistiu às suas investidas. Certo dia,
mento; isto aqui para minha sogra, e isto aqui para o meu genro. E isto para quando eles estavam sozinhos, ela arranhou propositadamente o próprio rosto com
a minha roupa de casamento” (Jacobs 1929: 213). Uma terceira versão (M₆₆₀c, as patas de um passarinho que tinha pedido a ele para matar. Quando o marido dela

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voltou, ela alegou que aquelas eram as marcas de uma luta contra o jovem, para Transformado em cãozinho, acompanhado por alguns companheiros diversa-
proteger a própria virtude. mente transformados, o herói conseguiu ser recolhido pela filha de Corvo. Ela o levou
Louco de raiva, o homem quebrou e jogou no fogo as flechas que o irmão tinha até a tenda onde seus pais mantinham os animais presos. O cão latiu tão alto que
ficado fabricando em casa, e cobriu-o de censuras. O outro saiu sem dizer uma pala- eles ficaram com medo e fugiram (Boas 1917a: 157-64; Phinney 1934: 163-72. Cf. Boas
vra. Seguido por seu cão, atravessou quatro montanhas, despiu-se no topo da quinta, 1917a: 85-90; Cline 1938: 212-13).
que era a mais alta, subiu numa árvore e desapareceu no céu (graças à ação mágica
do cão, M661B). Nunca mais foi visto. Cansado de tanto esperar (M661A), seu cão-urso Quais são as relações entre esse mito e o do desaninhador de pássaros? Pri-
resolveu ficar vivendo nas montanhas. meiro, ele ilustra o que poderíamos chamar de sua “transformação Putifar”,
Enquanto isso, o marido se arrependera de ter sido tão duro com o irmão e resol- registrada na América do Sul (Wagley & Galvão 1949: 146-47; Murphy 1958:
veu ir à sua procura. Guiado pelos uivos do cão, encontrou o animal, que lhe revelou 87-88; e M₁₃₅, Koch-Grunberg 1916: 56-60, cf. mc: 235) e tão difundida na
a verdade, pois tinha testemunhado as tramóias da mulher. O homem transformou América do Norte que todo o estudo do grupo poderia ser retomado por
o cão em urso grizzly e lhe disse que a partir de então ele seria um bicho perigoso, esse viés (cf. infra, pp. 454-63, 474-75; S. Thompson 1929: 326-27).
assassino até. Ele então voltou para a aldeia e sem uma palavra de explicação, matou Contentemo-nos com verificar em que ela consiste nesse caso em foco,
a mulher a flechadas. Depois comeu todos os seus adornos (as roupas e adornos de pois alhures ela assume outras formas. Em vez de o mais velho de dois
seu irmão, da sua mulher e dele mesmo, M661B). Era um homem grande e belo, mas homens tentar seduzir a ou as mulheres do mais novo, é a mulher do mais
sua estranha refeição teve por efeito torná-lo pequeno, horroroso e barrigudo. Foi velho (pai ou irmão) que tenta seduzir o caçula. Meio ou consequência do
enfeiando ainda mais ao andar. Consequentemente, todas as mulheres que encon- ato transgressor, a árvore na qual o herói sobe o separa dos seus, tempo-
trou zombaram dele, exceto uma filha de Águia que caridosamente o levou à casa de rariamente num caso, definitivamente no outro. A volta à terra, quando
uma velha, que era avó dele. ocorre, requer a intervenção de animais prestativos que podem ser tão
No dia seguinte, Águia organizou uma competição de arco e flecha e prometeu inofensivos quanto as borboletas ou a aranha das versões norte-ameri-
suas duas filhas ao vencedor. Como ninguém acertava o alvo, Coiote convidou o herói canas, ou ferozes como o jaguar das versões jê. É, pois, significativo que
feioso a atirar ao mesmo tempo que ele. A flecha do monstrinho foi certeira. Coiote M₆₆₁, mito norte-americano que vira ponto por ponto a história do desa-
dizia que era a sua, mas ninguém acreditou. Águia mandou as filhas para junto de ninhador e dele apresenta a imagem simétrica, faça do grizzly (a fera mais
seu novo marido. A caçula obedeceu de boa vontade, mas a mais velha, horrorizada temível dessas paragens setentrionais) um equivalente do jaguar, mas com
com a feiúra do moço, resolveu se casar com Corvo. Após uma noite durante a qual inversão da função que os mitos brasileiros confiam ao segundo animal:
ele se manteve longe de sua jovem esposa, mandou-a sair. Pediu à avó que o pendu- em vez de facilitar a descida do herói, o cão-urso de M₆₆₁ faz surgir um
rasse no alto da tenda e, nessa posição, vomitou tudo o que tinha engolido. Quando pássaro comestível que seu dono tenta pegar, e que o leva até o céu, de onde
sua mulher voltou, ele estava bonito de novo. ele nunca mais retornará.
No dia seguinte houve uma caçada coletiva. O herói matou muitos bisões. Ao Como o jaguar sul-americano, até entã dono do fogo de cozinha e que,
retornar à aldeia, aceitou a água branqueada com argila que lhe oferecia a esposa tendo-o cedido aos humanos, passará a comer cru, o grizzly de M₆₆₁, até
e recusou a água escurecida com carvão que a cunhada tinha preparado a pedido então animal doméstico, viverá a partir de então em regiões selvagens.
de Corvo, seu marido. Este tinha apenas catado as cabeças de bisão deixadas pelos Segundo uma versão yurok do mesmo mito (M₆₆₁c, Erikson 1943: 287), a
caçadores. O sogro preferiu a carne boa do outro genro. Vexado, Corvo prendeu toda gralha enegrecida pelo fogo de cozinha não mais comerá carne fresca e terá
a caça, de que era o dono. Veio a fome. Só o herói ainda conseguia caçar. de contentar-se com lixo.
Tentaram descobrir onde Corvo tinha escondido os animais, mas como naquele Entre os Salish da costa, os Chinook e os Sahaptin limítrofes, a histó-
tempo sua plumagem era toda branca, sua cor se confundia com o céu assim que ele ria do desaninhador desemboca num episódio no qual um personagem
alçava vôo. Castor teve então a ideia de assumir a aparência de carniça. Corvo pousou semi-humano chamado Coiote, antes de assumir sua forma animal defini-
nele, foi capturado e suspenso sobre o fogo para ser defumado. Agora negro, tinha-se tiva, liberta em benefício da humanidade futura os peixes que eram man-
tornado visível, mas alçou vôo e desapareceu no horizonte. tidos presos pelas andorinhas do mar (ou outras aves marinhas). Em M₆₆₁,

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simétrico ao outro mito, um personagem semi-humano assume tempora- de fora — pois que as roupas envolvem o corpo — enquanto o desaninha-
riamente a forma animal para libertar, em benefício de seus companheiros, a dor, que definha e não tem nada para comer a não ser a própria substância,
caça que é mantida presa por um casal de corvos, aves terrestres. se alimenta do de dentro.11
Mas o episódio mais notável de M₆₆₁ é certamente aquele no qual o Como anti-alimento, as vestimentas ingeridas transformam, portanto,
herói ingere roupas e adornos, o que o faz transformar-se de adulto grande as vestimentas retiradas pelo desaninhador. Correspondem menos à falta
e bem feito em criatura infantil e disforme. Para interpretá-lo, convém de alimento de que sofre um herói nu e esfomeado do que à condição de
começar notando que o episódio seguinte, no qual o herói é pendurado crueza, ou até mesmo de podridão, a que se vê reduzido o mesmo herói, nos
pelos pés no alto da tenda — perto da saída de fumaça, diz o mito — e mitos homólogos sul-americanos, antes de obter o fogo de cozinha e dá-lo
regurgita, na fogueira portanto, tudo o que tinha engolido, antecipa a cena aos humanos. Em M₁, o herói cobre o próprio corpo de lagartos putrifica-
que mostra Corvo colocado na mesma situação e enegrecido pela fumaça. dos, os urubus tomam-no por carniça e começam a devorá-lo. O mesmo
Neste caso, um movimento ascendente que parte da fogueira, análogo à motivo reaparece, com a função inversa, em M₆₆₁, em que um comparsa (em
defumação, que é um procedimento culinário, ao mesmo tempo enegrece lugar do herói) se transforma em carniça para capturar o corvo. No outro
e enfeia um personagem anteriormente branco e belo. No outro caso, um extremo da área geográfica percorrida por este livro, os Wintu (M₆₆₂, Du
movimento em sentido inverso, análogo ao vômito, que é o contrário de Bois & Demetrecopoulou: 288-89) têm um mito que associa a origem, não
um processo alimentar, devolve sua antiga beleza a um personagem que dos salmões, mas de seu consumo ritual pelo menos, à das “panelas” naturais
tinha ficado feio. fabircadas nas rochas pela erosão, de que M₁ também se ocupa (cc: 146).
Contudo, a conduta alimentar cujos efeitos são anulados pela suspen- Por uma curiosa coincidência, nele também aparece o motivo da caça aos
são do herói possui um caráter anormal: diz respeito não a alimento, mas a lagartos, invertendo uma caça verdadeira (pois que ali eles são batizados de
vestimentas. Simetricamente, a suspensão do corvo acima da fogueira tam- “veados”), e que os protagonistas amarram à cintura, como o herói de M₁.
bém possui um caráter anormal, já que em vez de um animal ser cozido, ele A conversão do código culinário em código vestimentar obviamente não
recebe uma nova roupagem. Essa conversão do código culinário em código representa um fenômeno próprio das culturas da América do Norte. Várias
vestimentar permaneceria incompreensível se não notássemos que sua ori- outras línguas, entre as quais o francês, dão mostras disso e, dessa perspec-
gem se encontra nas versões norte-americanas do mito do desaninhador de tiva geral, já o discutimos (cc: 340-45). Mas parece estar claro que um papel
pássaros, cuja transformação é rematada por M₆₆₁. estratégico lhe cabe nesses mitos de que estamos falando, nos quais a passa-
Empanturrado de vestimentas, o herói de M₆₆₁ ganha um barrigão e gem de um código para o outro determina toda a série de transformações.
regride para um estágio infantil. Privado de vestimentas e de alimento, o Como começamos a demonstrar às páginas 281-82, esse fenômeno resulta de
desaninhador de pássaros sofre de fome e de frio; emagrece, saltam-lhe os duas ordens de fatos. Primeiro, o recobrimento do universo da cultura pela
ossos, chega bem perto da morte. E, efetivamente, basta percorrer todas entrecasca, cujos múltiplos empregos vão do combustível ao vestuário, pas-
as versões norte-americanas do mito do desaninhador de pássaros que sando pelo alimento e os utensílios de cozinha. E ainda a função ambígua
resumimos até agora para constatar que a retirada do vestuário pelo herói das conchas brutas ou trabalhadas, que de um lado são adornos costurados
representa um traço invariante. Ao obrigar Águia a se despir, Coiote o faz às roupas e, do outro, mercadorias oferecidas nas feiras em troca de gêneros
regredir da cultura para a natureza e, metaforicamente falando, do cozi- alimentícios ou meio de pagamento para adquiri-los, bem como a outros
mento para a crueza, como os companheiros de Corvo, ao obrigarem-no bens. Por intermédio da entrecasca e das conchas ao mesmo tempo enfeite
a deixar-se cozer, transformando sua branca nudez primitiva, que o con- e moeda, as ordens vestimentar e culinária eram objeto, nas culturas indíge-
fundia com o céu, numa veste cujo negrume será doravante característico. nas, de uma união não apenas metafórica, mas real.
Além desses dois estados extremos de uma mesma transformação, o herói
de M₆₆₁ ilustra um terceiro: pelo fato de ingerir suas próprias roupas, pode- 11 . Sem prejuízo de uma oposição explicitada mais ao norte entre corvo, larápio de
se dizer que ele se veste por dentro, ao passo que o desaninhador, que tira as alimento, e o outro parasita do homem que é o camundongo, em que se transforma entre
suas, se despe por fora. E pela mesma razão, o herói de M₆₆₁ se alimenta do os Atabascanos setentrionais o homem que comeu suas roupas (Jetté 1909: 485-86).

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Mencionaremos um último argumento em favor dessa interpretação. Águia punha a ferventar as presas grandes que matava, e Coiote pegava
Ao lado da “transformação Putifar” do mito do desaninhador de pássaros, camundongos e os punha sob as cinzas para assar. Invejoso, Coiote matou o
existe uma outra, que examinaremos mais adiante (infra, p. 385ss), em que irmão e passou a levar uma vida errante: “Pouco importa, disse ele, irei para a
Coiote, em vez de se apropriar de afins, procura seduzir a própria filha (sobre mata, pois se aproxima o tempo em que os índios povoarão esta terra”.
o grupo como um todo, cf. Schmerler 1931). Notemos apenas que, na maior O mito não é interessante apenas por proclamar a superioridade implí-
parte dos mitos desse grupo, Coiote deseja pela primeira vez a filha quando cita do ensopado sobre o assado, e do recipiente de entrecasca sobre uma
ela está no alto da casa, para apagar um incêndio, e dá a ver suas partes ínti- técnica culinária tão rudimentar que prescinde do uso do espeto (cf. supra,
mas ao pai, que ficou em baixo. Esse incidente inverte claramente aquele p. 279). Por meio do par formado por águia e coiote,12
no qual Coiote, na série do desaninhador, põe fogo às roupas de suas noras
para obrigá-las a se exporem. Seu homólogo Corvo procede de modo ainda (águia: coiote):: (ensopado: assado),
mais direto nos mitos bella coola e kwakiutl que retomam o mesmo episódio
(Boas 1900: 90-91; Boas & Hunt 1906, ii: 288-91). Por conseguinte, a mulher ele exprime o que poderia ser chamado de universo culinário:
desejada, agente de uma extinção num caso, torna-se sujeito passivo de um
atiçamento no outro. Ora, numerosas versões do mito em que Coiote seduz (águia + coiote) = culinária.
a própria filha explicam que ele recorreu ao fogo para alcançar seu intento:
fingiu morrer depois de ter mandado queimarem seu cadáver, de modo que, Mas, se é assim, resulta que em M₆₆₁, o Corvo revoltado que priva do meio de
quando ele reapareceu, tomaram-no por um estrangeiro e ele pode se casar praticar a culinária (prendendo a caça) todos os habitantes de uma aldeia cujos
com a filha, que era a única, como ele disse para se justificar, que sabia acen- chefes são, justamente, Coiote e Águia, representa sua contraparte negativa:
der corretamente o seu cachimbo. Versões paiute e shoshone fazem-no comer
o próprio pênis cozido debaixo das cinzas, como castigo. Portanto, se pelas corvo = (águia + coiote)-1.
razões expostas essa sequência de eventos constantemente referidos ao fogo
inverte aquela em que consiste o mito do desaninhador, é necessário, a con- E, com efeito, a conotação culinária negativa do Corvo está na defuma-
trario, que o meio empregado pelo mesmo personagem — forçando o filho a ção que ele sofre passivamente quando é enegrecido, ao passo que Águia e
despir-se para apropriar-se de suas roupas, sua aparência física e suas esposas Coiote têm uma relação ao mesmo tempo positiva e ativa, um com o enso-
— esteja fundado numa relação de congruência entre nu e cru. pado, e o outro com o assado. Mas isso não é tudo. A Águia e o Coiote podem
formar um par de termos em correlação e oposição porque seu constraste se
! manifesta duplamente: a águia é celeste e predadora, o coiote é terrestre e car-
niceiro. O corvo, por sua vez, se qualifica para formar uma tríade com os dois
A construção de M₆₆₁a ilustra admiravelmente as relações de simetria que ao outros animais porque é celeste como um e carniceiro como o outro. Esse
mesmo tempo o unem e o opõem ao mito do desaninhador. Em ambos os sistema aparentemente triangular guarda reservado um quarto lugar para
casos, atuam Águia e Coiote, mas ao mesmo tempo em que se inverte a ordem animais definíveis pelas duas relações ainda livres, predador como a águia e
de precedência entre eles [(Águia > Coiote) —Y (Coiote > Águia)], os dois terrestre como o coiote. Tais animais, que os mitos também põem em cena,
personagens passam juntos do nível de protagonistas para o de comparsas. são o puma e o grizzly, um provedor e o outro canibal, ou seja, investidos
Sempre presentes, mas em segundo plano na narrativa, eles atestam com essa respectivamente de conotação positiva e negativa em relação à culinária.
mudança de perspectiva que o mito girou, por assim dizer, sobre si mesmo. E
não é indiferente notar que, numa narrativa wasco que também lhes dá um 12 . O mito thompson sobre a origem do fogo (M₆₆₃b, Teit 1912b: 338-39) reparte os
papel secundário (M₆₆₃a, Sapir 1909a: 233), Coiote e seu jovem irmão Águia papéis entre três animais. O castor rouba o fogo da gente de Lytton e o dá aos do rio
têm uma conotação culinária. Os dois irmãos viviam juntos, Águia caçava, Nicola e de Spences Bridge. Águia lhes ensina a assar, e doninha a ferventar. De modo
enquanto Coiote ficava em casa. Cada um preparava sua própria comida: que, para essa versão, o universo da culinária consiste de fogo, mais assado e ensopado.

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Vê-se pelo exposto acima que o mito dos dois irmãos e o de Lince e Puma, Tentemos, pois, encarar a questão de um outro ângulo. Em toda a Amé-
que invertem em eixos diferentes o do desaninhador, são coerentes consigo rica do Norte, a oposição entre claro e escuro é mais comumente associada
mesmos quando invertem também os valores respectivos das cores, branco e à oposição entre dia e noite, de um lado, e entre gênero masculino e femi-
preto ou claro e escuro, que os três mitos selecionam para formar uma opo- nino, do outro. Um mito salish da costa (M₇₁₆b, Adamson 1934: 85) opõem as
sição pertinente. No que diz respeito a M₆₆₁ em particular, essa oposição cro- “escuras” filhas do crepúsculo às “cinzentas” filhas da aurora. Do outro lado
mática aparece duas vezes, na água branqueada com argila que é boa e na do continente, as tribos do nordeste opõem o bebê preto e feio, “nascido de
enegrecida com carvão que é ruim, e no Corvo que, antes branco, fica preto. noite”, ao bebê branco e belo, “nascido de dia” (Speck 1925: 24-25). À mesma
Como esse escurecimento se apresenta como uma punição e faz Corvo regre- distância dos dois grupos, os Mandan associam a artemísia branca ao sol e
dir do estágio de predador para o de carniceiro e como, finalmente, M₆₆₃a o veado de cauda branca ao dia, a artemísia negra à lua, e o veado de cauda
estabelece a superioridade do primeiro sobre o segundo, pode-se admitir: preta à noite (Maximiliano 1843: 366; Bowers 1950: 304-05). Seus vizinhos
Omaha dizem que na puberdade a alma do rapaz fica branca, renasce então
claro escuro da escuridão, pois a noite é mãe do dia (Fletcher & La Flesche 1911: 128).
mito do desaninhador: – + Além disso, os Wiyot da costa da Califórnia, cujos mitos já foram aqui
mito de Lince e Puma: + – aproveitados (supra, p. 135-36), distinguem os bojos de seus cachimbos pela
mito dos dois irmãos: + _ pedra clara ou escura de que são feitos. Chamam de machos os cachimbos
do primeiro tipo, e de fêmeas os do outro. Esses índios crêem, ademais, que
Surge aí um problema: por que o desaninhador de pássaros dos mitos norte- as estrelas são mulheres tornadas cegas durante o dia (Kroeber 1908: 39).
americanos prefere entre suas mulheres as que têm a pele escura? Pois essa A mesma conotação sexual do branco e do preto está presente no centro do
predileção constitui um traço invariante do grupo, desde os Klamath ao sul continente, entre os Kansa (Skinner 1915: 760) e os Omaha, que invertem
até os Thompson ao norte, passando pelos Sahaptin setentrionais, os Chi- a fórmula californiana: os membros da confraria da Concha consideravam
nook, os Salish do rio Cowlitz e os de Puget Sound. Conforme as versões, as fêmea a concha branca de Olivia nobilis e macho a mais escura, de Olivia
mulheres claras se chamam Esquilo ou Peixe, Camundongo, Gafanhoto, Lei- elegans (Fletcher & La Flesche 1911: 519-20). Mas essa classificação se insere
tas, Pato, Cisne, Andorinha do Mar, Tentilhão; e as mulheres escuras, Pica- num sistema simbólico muito complexo, de que ilustra apenas um aspecto;
Pau, Rola, Besouro, Gafanhoto, Cisne Negro, Mergulhão, Pato-Selvagem. no mito de origem, o céu diurno (claro, macho) forma com o céu noturno
Empregando um vocabulário moderno, seríamos tentados a interpretar sua (escuro, macho) um par correlato ao que uma outra modalidade de céu
oposição como uma entre animais tecnófobos e animais tecnófilos, pelo fato noturno (escuro, fêmea) forma com a terra (macho). Além disso, no registro
duplo de que, em várias versões, o castigo das infiéis de pele clara consiste do baixo, as conchas correspondem às estrelas, no registro do alto, e juntas
em sua transformação em aves selvagens que passarão a viver longe dos remetem, assim, ao céu noturno. Ainda segundo o mito de origem, o homem
humanos, e que a mesma transformação afeta, em M₆₆₁, o cão do herói, ani- encontrou a concha escura, e a mulher, a clara. A relação para com o sexo
mal doméstico, quando vira grizzly. Mas seria muito difícil, quiçá impossível, dos inventores de cada uma poderia, pois, tanto ser de complementaridade
dar base empírica a essa interpretação, pois entre um grupo e o outro, às quanto de homologia (ibid.: 513-14).
vezes os mesmos animais mudam de lado. Como por exemplo o gafanhoto Não é preciso multiplicar os exemplos. Mostramos, em Do mel às cin-
e a rola, que são negros nas versões sahaptin e salish de Puget Sound, que os zas (mc: 363), que a relação das mulheres com a noite e dos homens com
opõem a camundongos brancos, ao passo que, em versões cowlitz, camun- o dia apresenta, no pensamento americano e certamente também alhures,
dongo e gafanhoto se opõem, juntos, a rolas negras. No máximo se pode um valor operatório em que se encontra a chave de ritos bastante difundi-
notar que os camundongos são sempre brancos, e as rolas, sempre negras, dos mas avessos a qualquer outra interpretação, como a proibição feita às
mas reina uma tamanha incerteza quanto à identidade das espécies, prin- mulheres de ver os instrumentos musicais [rhombes-verificar em mc]. Bem,
cipalmente quando se trata de aves, que a via de interpretação baseada nos vimos que na região de Puget Sound, versões da história do desaninhador
hábitos dos animais parece bloqueada. (M₆₀₆c, supra, p. 236) identificam suas esposas brancas e infiéis às filhas da

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leita, qualificadas por outros mitos como “muito belas e brancas” (Boas 1893: mais escuras — são aquelas em que ela não está no céu. Em compensação,
156), “brancas e bonitas” (Jacobs 1934: 139) etc. Aliás, é por causa da cor que contam os mitos, no tempo em que a lua pretendia ser o astro do dia, ela
os Chinook chamavam ironicamente os brancos de “leitas” (Jacobs 1959, ressecava e queimava a terra, e tornava impossível para os humanos viver.
ii: 560). Os termos empregados pelos mitos salish para descrever as filhas À diferença da lua, o sol pode presidir ao dia sem que resultem seme-
da leita, futuras mães de todos os peixes, aparecem praticamente idênticos lhantes desastres; mas também à diferença da lua, a experiência atesta que
num mito wasco (M₆₀₁a) que os aplica às egoístas donas dos salmões: “elas ele é incompatível com a noite. Sendo apenas do dia, ele só tem direito a
eram muito brilhantes, brilhavam mais do que o sol, e seguravam remos de um lugar subalterno na cosmologia, réplica enfraquecida da lua, que só ela
madeira branca, muito bonitos” (Sapir 1909a: 266). O elo entre a brancura e reúne os dois aspectos. Por isso os mitos salish fazem com que ele nasça
o caráter diurno ou solar também se evidencia aí. da urina espremida dos cueiros de seu irmão Lua, depois de este ter sido
Porém, se ao contrário dessas irmãs maléficas, as mulheres em geral têm roubado (M₃₇₅). Essa problemática permaneceria impenetrável se não com-
uma afinidade com o escuro, disso resulta que a tez clara, por mais atraente preendêssemos que, como tão frequentemente acontece nos mitos, de um
que seja, constitui um atributo contraditório com sua verdadeira natureza. ponto de vista lógico, se não histórico, a relação de oposição é anterior às
Retomando uma distinção outrora utilizada num contexto diferente (Lévi- coisas opostas.
Strauss [1949] 1967, cap. 13), diremos que as mulheres de pele escura são Num tal sistema, por conseguinte, o personagem do mau demiurgo solar
harmônicas, e as de pele clara, desarmônicas.13 Razão que já bastaria para se eclipsa, ou, mais exatamente, os Salish o transformam em enganador cujos
entender porque o herói prefere as primeiras, e que só elas sejam férteis e atos e gestos parodiam a obra civilizadora do bom demiurgo Lua, ordenador
fiéis a seus votos conjugais. Mas por que o Coiote dos mitos salish e sahaptin do mundo e da sociedade, de modo que, como enganador, Coiote vira uma
manifesta a preferência inversa, e acha “escurinhas e feias” as mulheres de espécie de Lua invertida. Um realiza sua obra com sabedoria e generosidade,
quem o filho mais gosta? o outro a completa à revelia, por assim dizer, já que suas contribuições posi-
Para responder a essa pergunta, é preciso lembrar que, entre os Klamath tivas resultam de acidentes, imprevistos ou malogros. Entretanto, a mesma
e os Modoc, junto a quem começou nossa investigação, os papéis do desa- estrutura de oposição que os Klamath e os Modoc concebem entre o desa-
ninhador e de seu pai cabem respectivamente aos dois demiurgos Aishísh ninhador e seu pai continua existindo nessas versões setentrionais. De sua
e Kmúkamch, sendo que o primeiro possui uma marcada afinidade com afinidade solar reduzida a uma expressão negativa, Coiote conserva uma
a lua e o segundo com o sol. Essa afinidade persiste nos mitos que substi- predileção pelas mulheres de pele clara. De seu paralelismo com o demiurgo
tuem essas divindades supremas por seus duplos animais, Marta e Doninha ordenador od universo, de quem ele continua sendo discretamente a réplica,
(supra, p. 37), e continua sendo afirmada entre os Chinook e os Sahaptin, o desaninhador mantém uma afinidade com a lua e com as trevas, que
onde os papéis do desaninhador e de seu pai passam para Águia e Coiote. explica que as mulheres de pele escura sejam suas preferidas.
Contudo, a oposição simples, concebida pelos Klamath e Modoc entre um É significativo que, para finalizar a interpretação desse vasto grupo de
mau demiurgo solar e um bom demiurgo lunar, torna-se aqui mais com- mitos, sejamos obrigados a voltar aos exemplos que nos serviram de ponto
plexa. Para os Salish e alguns de seus vizinhos, a ordem e o bom andamento de partida e que nos seja preciso apreender, de um só golpe de vista, o con-
do mundo dependem de um equilíbrio satisfatório entre forças antagôni- junto como totalidade. De fato, a história do desaninhador — compartilhada
cas de que o dia e a noite expressam apenas um aspecto. Só a lua, quando por todo o grupo — constitui o que poderíamos chamar de sua célula regu-
ilumina levemente as trevas, ilustra essa temperança recíproca entre a luz e ladora. A partir daí, os Salish e os Sahaptin engatam em dois aspectos para
a escuridão. Ela é, portanto, da noite e do dia, pois a experiência comprova eles essenciais da ordem do mundo, a liberação dos salmões e a instituição
que não é exclusivamente da noite, já que as noites mais noturnas — porque das trocas comerciais. Mas os Klamath, e mais ainda os Modoc, viviam longe
das grandes feiras do rio Columbia. Quando as frequentavam, era princi-
13 . De onde o charme muitas vezes pérfido das louras, a quem se atribui, como se sabe, palmente para negociar suas presas de guerra, prisioneiros condenados a
a destruição de lares. Charme esse a que o herói de nossos mitos, no entanto, mesmo serem escravos, capturados pelos Klamath e seus aliados Modoc entre as
em seu lar, fica insensível, ele que é o modelo de todas as virtudes sociais e domésticas. tribos do rio Pit ou que os Klamath sozinhos, agindo como intermediários,

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compravam de seus vizinhos meridionais para depois vendê-los ao norte e ocorre muito mais cedo na ordem de sucessão da narrativa. De fato, vimos
(Spier 1930: 38-43; Ray 1963: 134, 144). Sendo função da guerra mais do que (supra, p. 77, 85-93, 128) que é à origem da caça, e não da pesca, que os Kla-
condição e meio de garantir a paz entre os homens, e dissociada das ativida- math e os Modoc remetem a história do desaninhador. Ora, por seu caráter
des de produção, compreende-se que a troca não possa nesse caso oferecer combativo e aventureiro, no plano da busca pelo alimento a caça se opõe à
um modelo plausível das relações intertribais, e menos ainda fornecer uma pesca do mesmo modo que, no plano das relações intertribais, os jogos com-
solução para os problemas que toda ordem social tem de resolver. Bem longe petitivos, que são um modo de guerra, se opõem aos pacíficos intercêmbios
de se abrir para a fórmula da troca, a célula reguladora dos mitos klamath comerciais. Chega-se assim a uma imagem de conjunto em que se inscre-
e modoc desemboca na fórmula simétrica àquela dos jogos de competição vem os valores e as funções simétricas, sempre ligadas à infraestrutura, que
entre tribos, que também permitem desviar da guerra, não por transformá- o mito do desaninhador recebe, de um lado, entre os Klamath e os Modoc e,
la dialeticamente em seu contrário, mas porque, com uma virulência atenu- do outro, entre os Salish da costa e os Sahaptin (fig. 24).
ada, propiciam-lhe um substituto.
Afora isso, os Modoc viviam sobretudo de caça e coleta. Também pesca-
vam na primavera e em outras épocas do ano, mas os salmões não subiam
seus rios e eles tinham de se contentar com espécies de menor valor alimen-
tar (Ray 1963: 192). Não era o caso dos Klamath, pois os salmões e outros pei-
xes invadiam várias vezes ao ano o seu rio epônimo e afluentes. No entanto,
eles aparentemente não se incomodaram com um ritual de pesca tão com-
plexo quanto seus vizinhos a oeste a ao norte. E seus mitos empurram a cria-
ção dos peixes para a origem dos tempos, bem antes de o demiurgo entrar
em conflito com seu filho e transformá-lo em desaninhador: “Primeiro,
Kmúkamch criou as coisas e os seres, e decidiu que todas as espécies de pei-
xes existiriam... Depois, e tendo realizado tudo isso, Kmúkamch fez o filho
subir numa árvore para, alegava ele, desaninhar águias...” (Gatschet 1890, i:
94). Consequentemente, a criação dos peixes toma o lugar de sua libertação,

Origem Origem
dos jogos da caça
competitivos

klamath-
modoc
Desaninhador
salish- de pássaros
sahaptin

Origem Origem dos


da pesca intercâmbios
comerciais

[ 2 4 ] Construções invertidas do mito do desaninhador.

334 | Quarta parte: Cenas da vida de província Do bom uso dos excrementos | 335
Q U I N TA PA R T E

Amargos saberes

336 | | 337
i. A visita ao céu

Crescerás sempre, grande árvore mais vivaz


Que o cipreste? — E no entanto nós, cuidadosamente,
Colhemos alguns esboços para vosso álbum voraz,
Irmãos que achais belo tudo o que vem de longe!
c. baudelaire, “A viagem”, As Flores do Mal, cxxvi, iv.

Eζθ’ ὤφελ’ ’Aργοῦς μἠ бιαπτάσθαι σϰάφοϚ No decorrer das discussões precedentes, centradas na mitologia dos Sahap-
Kόλχων ές αῖαν ϰυαέαϚ Συμπληγάδας. tin e de seus primos Nez Percé, não hesitamos, sempre que se fazia necessá-
eurípides, Medeia, v. 1-2. rio, em servir-nos à vontade de mitos dos Salish meridionais, tanto da costa
como do interior, cujo território confinava com o dos Sahaptin, e que man-
tinham com eles relações tão próximas, no comércio e nas alianças matri-
moniais, que é muitas vezes difícil atribuir determinadas versões do mesmo
mito a uma das duas famílias linguísticas.
Tais discussões foram nos levando à história do desaninhador de pássa-
ros. Cumpre, portanto, examinar a forma que ela assume ao norte da área
sahaptin, into é, na vasta família linguística salish que — à exceção de dois
postos avançados isolados, que eram os Tillamook ao sul e os Bella Coolla
ao norte — ocupava um território contínuo desde a parte oriental da ilha de
Vancouver até o piemonte das Rochosas, incluindo a maior parte das bacias
dos rios Columbia e Fraser.
Essa investigação enfrentará dificuldades específicas, não apenas liga-
das ao fato de que, apesar do volume já considerável que ela representa, só
conhecemos fragmentos da mitologia salish; pois nesse particular, a situação
não se distingue em nada daquela encontrada entre os Sahaptin e seus vizi-
Ú nhos. Na verdade, a história e a etnografia dos Salish conspiram para com-
*
“Ah!, Se jamais os céus tivessem consentido/ que Argó singrasse o mar profundamente plicar a tarefa do analista. Cristianizados desde a primeira metade do século
azul/ entre as Simplégades, num voo em direção/ à Cólquida [...].” [n.e.] xix, em certos casos por iniciativa própria (como os Flathead, que lançaram

338 | A visita ao céu | 339


expedições perigosas atravessando o território de tribos hostis para chegar de sua atual área de difusão, que se considera ter ocorrido para o leste e para
a Saint-Louis do Missouri e solicitar o envio de missionários, dos quais o o sul. Mas a área em si, tomada como um todo, se apresenta repleta e emol-
primeiro foi o célebre de Smet), os Salish do planalto, graças a seu tempera- durada por sítios muito antigos de idades comparáveis, nos quais a presença
mento pacífico e suas disposições amigáveis para com os brancos, viveram humana foi ininterrupta por um longo período. Por mais que devamos ser
em relativa tranquilidade, a não ser pela devastação causada pelas epidemias, prudentes diante das reconstituições da escola gloto-cronológica, parece ser
até por volta de 1870.1 Quando, nessa época, foram sendo progressivamente significativo que ela estabeleça lapsos de seis a sete mil anos para a diferen-
confinados em reservas, sua cultura tradicional tinha sido bastante alterada, ciação interna das línguas salish (Swadesh 1949, 1950, 1952, 1954, 1959, cf. Kro-
ainda mais porque influências vindas das tribos das Planícies tinham-se eber 1955, Suttles & Elmendorf 1963, Elmendorf 1965). As tribos atuais teriam
adiantado em pelo menos um século às dos colonos. Os etnólogos, assim, podido, portanto, alargar seu território sem deixarem de permanecer mais
reconstituíram essa cultura tradicional a partir dos testemunhos dos infor- ou menos na mesma região, como herdeiras de seus ocupantes muito antigos.
mantes mais velhos e os relatos dos primeiros viajantes e missionários, mas Se os Salish, e talvez com eles os Chimakuan da costa que formam um
não a observaram realmente. enclave linguístico isolado, proviessem de uma antiga onda de povoamento
Apesar da diversidade das línguas no seio da mesma família, e a dos cos- da América, mantida por muito tempo protegida do contato pela dupla bar-
tumes, instituições e modos de vida, entre os Salish da costa e os do interior, reira das Rochosas a leste e do oceano a oeste, seria mais fácil compreender
concorda-se em reconhecer (Sapir 1915; Ray 1939) a originalidade de uma que tivesse sobrevivido entre eles, apesar das distâncias e tomando cami-
cultura cujas diferenciações internas foram se instalando progressivamente, nhos divergentes, um fundo mítico que outras vagas de migração mais ou
no contato com tribos das Planícies, de um lado, e com as da costa noroeste menos contemporâneas, mas passando a leste das Rochosas, teriam poste-
do Pacífico, do outro; e não se deve subestimar o papel dos Iroqueses que, riormente levado até o coração da América do Sul. Como sugerem tantos
desde o final do século xviii, acompanhavam como guias os traficantes de exemplos, poderíamos portanto esperar encontrar nessa região recuada da
peles, e que despertaram a curiosidade dos Flathead em relação ao catoli- América do Norte um terreno ideal de comparação entre versões dos mes-
cismo e à Bíblia, e ao mesmo tempo certamente introduziam elementos de mos mitos provenientes de ambos os hemisférios. Fica patente, e não para-
mitos indígenas vindos do leste. mos de verificar isso, seguindo Ehrenreich (1905), desde o início deste livro,
Lembramos, no prólogo, e não voltaremos a isso aqui, que essa região da que nenhumas outras regiões do Novo Mundo parecem apresentar mitolo-
América está entre as de povoamento mais antigo e contínuo, desde aproxi- gias tão aparentadas, apesar dos aproximadamente dez mil quilômetros em
madamente 12.000-13.000 a.C. até a época histórica. Entre o mar e as Rocho- linha reta que as separam, quanto o Brasil central e meridional e a zona que
sas, ela forma uma espécie de corredor, cuja configuração poderia ter contri- estamos explorando, entre os rios Klamath e Fraser.
buído para afastar, e posteriormente isolar de modo duradouro, um ou vários Infelizmente, e mais ainda do que entre os Sahaptin e os Chinook, onde o
grupos de imigrantes vindos pelo estreito de Bering dos vales do interior.2 problema já se colocava, num plano muito diferente do da geografia e da his-
Originariamente, os Salish teriam sem dúvida habitado apenas uma parte tória, a análise dos mitos salish enfrenta enormes dificuldades. Não apenas
ligadas aos modos de vida, técnicas, instituições sociais e crenças religiosas,
tão diversas entre a ilha de Vancouver e a costa, entre a costa norte e Puget
1 . Não foi assim nas proximidades da costa, onde, para dar apenas um exemplo, os Sound, entre a beira-mar, o estreito da Geórgia e o interior, entre os vales
Nisqually de Puget Sound, cuja população teria possivelmente atingido o total de duas fluviais e o planalto. Muito pelo contrário, já que é lícito esperar que tais
mil pessoas, e não era certamente inferior a várias centenas, foram massacrados pelos variações permitam verificar, com base em numerosos exemplos, o modo
colonos em 1855-56. Em 1910, não passavam de dezenove.
como os mesmos mitos se transformam em função de conjunturas econô-
2 . Supondo que, como afirma Bryan (1969: 399), eles não tivessem podido passar
pela costa: “Os que crêem que pedestres possam ter se deslocado para o sul seguindo
micas e sociais diferentes. As populações do oeste, por exemplo, respeitavam
a costa do Alasca e da Colúmbia Britânica nunca viram essas regiões, todas de fiordes uma rígida hierarquia na qual a riqueza, ligada ao nascimento e à ordem de
abruptos e na qual muitas vezes, sem praia, as montanhas acabam diretamente no primogenitura, contribuía para traçar uma linha de demarcação entre aris-
mar”. Cf. supra, p. 11) tocratas, plebeus e escravos, ao passo que as do interior eram amorfas com

340 | Quinta parte: Amargos saberes A visita ao céu | 341


respeito a todos esses pontos. Várias delas não teriam nem mesmo podido
conceber noções como hereditariedade, categoria ou escravidão. Outras, a
leste e ao sul, por influência das Planícies, fundavam sua hierarquia social
no mérito, cívico ou guerreiro. Do mesmo modo, as gentes da ilha de Van-
couver — e, em menor grau, os da costa do estreito e os de Puget Sound —
construíam o que certamente são as maiores casas jamais observadas entre
povos ditos primitivos: hangares irregulares, com paredes e teto de tábuas
que podiam atingir centenas de metros de comprimento. As habitações do
interior eram bem diferentes: no verão, eram abrigos rústicos cobertos com
esteiras e entrecasca e, no inverno, cabanas de forma aproximadamente
piramidal enterradas até a metade, cuja armação era recoberta de terra e
desmontada a cada primavera. Dependendo de onde viviam, perto ou não
do mar aberto, de estreitos, rios ou lagos, as populações tinham na pesca ou
na caça — além da coleta de bulbos, raízes e bagas selvagens, sempre pra-
ticada com fervor — sua atividade econômica principal. E ainda é preciso
distinguir entre peixes do mar, como arenques e candlefish (Thaleichthys), e
peixes de rio. As cinco principais espécies de salmão (Oncorhynchus), que
constituíam o principal recurso, só subiam até bem longe no interior os rios
de água fria, e enquanto as cachoeiras não lhes apresentavam um obstáculo
intransponível. Alhures, e por toda parte durante o inverno, era preciso se
contentar com a steelhead trout (Salmo gairdnerii), menos apreciada.
Apesar dessas diferenças consideráveis, transparece um caráter comum,
que imprime sua marca a toda a mitologia da região. À exceção dos grupos
do leste — Indios dos Lagos, Flathead e Coeur d’Alêne — entre os quais se
observa algo que se assemelha, em graus diversos, a uma organização tribal
claramente emprestada das Planícies, os Salish não conheciam tribo nem
Estado. Certamente sentiam uma vaga solidariedade entre gentes falantes da
mesma língua ou do mesmo dialeto, mas afora isso, a família extensa entre
os povos do oeste, o bando semi-nômade ou a aldeia semi-permanente entre
os do norte e os do centro, e o grupo local ao sul, forneciam a única base à
ordem social. A chefia, hereditária ou eletiva, raramente conferia real autori-
dade. Até mesmo em relação às sociedades aristocráticas de Vancouver, onde
a ordem de precedência e o prestígio da família tinham de ser constantemente
reafirmados à custa de festas suntuárias e distribuição de riquezas, foi possível
dizer (Barnett 1955) que, na ausência de poderes públicos e de estado, o único
governo eram as regras, inculcadas desde a infância e estritamente observadas.
Quer se trate de linhagens, de famílias, de bandos ou de aldeias, sempre
estamos lidando, portanto, com pequenas unidades sociais autônomas que,
pelo menos na zona central (pois os povos da ilha e da costa e os vizinhos

342 | Quinta parte: Amargos saberes


dos povos das Planícies possuíam, por si ou por força de outrem, uma índole
mais guerreira) coexistiam pacificamente e se frequentavam, ao sabor de
um temperamento sociável frequentemente atribuído as gentes do Planalto.
Esse particularismo local e essa mobilidade geral não podiam ter deixado
de ecoar nos mitos, de que possuímos, para cada grupo dialetal e apesar do
caráter incompleto de nossos documentos, múltiplas versões que diferem
umas das outras, bem mais e de um modo outro do que geralmente acon-
tece. Pois aqui tudo se passa, à primeira vista, como se a matéria-prima dos
mitos, fragmentada em pedacinhos, se recompusesse como um mosaico
caprichoso, em que os mesmos elementos podem entrar em diversas com-
binações. Decorre daí que a fronteira entre os tipos de mitos costuma ser
difícil, se não impossível, de traçar; hesita-se o tempo todo em decidir se se
passou de uma variante para outra do mesmo mito, ou de um tipo de mito a
um outro, que inicialmente nos parecera distinto.
Tal instabilidade da matéria mítica também pode ser explicada por outros
fatores. Tanto na costa como no interior, os Salish costumavam contrair casa-
mentos com grupos vizinhos ou afastados, ou para estender a rede de alianças
políticas, ou porque a pax selica que reinava no interior tornava esse tipo de
casamento tão fácil quanto outros, ou até mais, em razão de um sistema de
parentesco fundado na filiação bilinear e na proibição do casamento entre pri-
mos próximos. Como as transações comerciais eram tão ativas quanto as tran-
sações matrimoniais, e com uma ou outra intenção, as pessoas se visitavam
muito, é razoável pensar que, de uma ponta à outra da área salish, cada mito,
onde quer que tivesse surgido, logo se tornava uma coisa de todos, mas a que
cada pequena unidade social sabia dar um sabor local. De modo que a inves-
tigação que estamos para iniciar possui um duplo interesse, teórico e metodo-
lógico. É ou não é possível discernir regras de transformação e uma estrutura
num complexo de mitos que é ainda reconhecível, mas que parece ter sido
decomposto e recomposto sem trégua por pequeninas sociedades cujo caráter
politicamente amorfo e a permeabilidade mútua poderiam levar a crer que, à
sua imagem, os grandes temas míticos que elas compartilham com as outras
culturas sul-americanas só subsistem, nelas, em estado atomizado?

É por uma breve volta aos mitos nez percé que convém, entretanto, dar início
à discussão. Vizinhos imediatos dos Salish ao norte, os Nez Percé são primos
dos Sahaptin pela língua, e fornecem uma transição apropriada entre essas
duas famílias. Aliás, o modo como eles contam a história do desaninhador de

A visita ao céu | 347


pássaros apresenta vários pontos em comum com as versões coeur d’alêne, Está ardendo desde então, para aquecer os humanos...” (M₆₀₂c). “Coiote-
no que revela influências salish. Já evocamos as versões nez percé (M₆₀₂a-h, Filho era o chefe de caça. Ele determinava para os companheiros o local do
p. 227). para demonstrar, contrariando Sapir, que engatam o mito do desani- encontro. Assim que chegava, corria para um tronco caído e o atingia com
nhador no da liberação dos salmões. A diferença capital, e em que as narra- o pé. As chamas brotavam e a madeira pegava fogo. Os caçadores se aque-
tivas nez percé anunciam as dos Salish, onde esse traço atinge seu mais alto ciam em torno da fogueira enquanto Coiote-Filho distribuía suas instruções”
grau de importância, reside no fato de, pela primeira vez desde que começa- (M₆₀₂b). Também nisso nos aproximamos das versões salish, exceto que o
mos a examinar a história do desaninhador, ele não fica preso no alto de uma episódio, ausente da história do desaninhador, consta, entre os Thompson,
árvore ou de um rochedo antes de descer de volta à terra. No intervalo, seu numa outra narrativa em que pai e filho também têm o nome de Coiote, e o
poleiro foi-se elevando consideravelmente, ele atinge o mundo celeste, visita- jovem herói possui o mesmo poder milagroso (Teit 1898: 38).3
o e lá vive várias aventuras. Esse traço é particularmente nítido em M₆₀₂b De modo que, no exato momento em que a história do desaninhador
(Phinney 1934: 360-81) e M₆₀₂c (Boas 1917a: 135-37), que contam, ambos, que abandona definitivamente o gênero prosaico no qual primeiro a encontra-
o herói, chamado Jovem-Coiote, primeiro atravessou as nuvens e pos o pé mos na América do Sul, para assumir, com o episódio da visita ao céu, uma
num mundo “igualzinho à nossa terra” segundo M₆₀₂c, onde fazia muito frio. feição épica e significação cosmológica (mas, afinal, todo o nosso trabalho
Os primeiros habitantes encontrados se mostram hostis. Os últimos, que consistiu desde o início em percebê-la, incluída no que poderia ser tomado
são aranhas, gentis, pois que esses animais fabricam uma corda que o herói por uma mera “just so story”, como dizem os ingleses, “história assim”, no sen-
utiliza para descer de volta. Na outra versão, são as mesmas aranhas que, tido de que conta porque as coisas são assim), nesse momento, pois, o tema
hostis no início, depois ficam prestativas. De volta à terra, o herói recupera da origem do fogo ressoa, grave e solenemente, nos primeiros compassos da
sua mulher de pele escura — Gafanhoto ou Besouro — que lhe tinha per- sinfonia (quando entre os Jê do Brasil Central — M₇-M₁₂ — ele só aparecia
manecido fiel, e transforma a de pele clara — Pata ou Cisne — em pássaro no fim), atestando assim que se trata do mesmo drama, mas captado numa
selvagem. Em seguida, ele se vinga do pai, Coiote, mandando-o arrastar a etapa de seu desenvolvimento em que a origem do fogo está prestes a passar
caça com uma corda quebradiça e criando acidentes no terreno, pois a terra de terrestre para celeste. Nesse instante crítico, em que o fogo não pode mais
era antes plana. Ainda mais retardado pelos obstáculos que é obrigado a ser uma coisa e ainda não pode ser a outra — ardendo, pois, no topo de uma
transpor com dificuldade, Coiote fica cansado, sofre com o calor, tem sede, e montanha — o resultado final deve permanecer em suspenso, e o único lugar
se deixa seduzir pela água refrescante de um rio que o leva até as donas dos disponível para o tema se encontra, consequentemente, no começo. Note-se
salmões. Elas o recolhem e adotam, depois de ele ter assumido a aparên- ainda que as versões nez percé e thompson não qualificam o fogo no que toca
cia de um bebê. Mas Coiote fura a barragem e libera os peixes (M₆₀₂e, Boas a culinária, mas exclusivamente no que se refere ao aquecimento para comba-
1917a: 138-39; M₆₀₂b). Segue o episódio que discutimos longamente na parte ter o frio, tratando, não de um fogo doméstico, mas de fogueiras ocasionais
precedente, do roubo recíproco de alimento (M₆₀₂f, g, h, Boas 1917a: 139-44), exigidas por temperaturas inclementes e acendidas em pleno mato.
que as narrativas nez percé sancionam com a atribuição de suas peles carac- Verifica-se assim, mais uma vez, a tese ilustrada ao longo de todos os
terísticas aos lobos, às raposas, aos cangambás ou aos guaxinins; proprieda- nossos livros, de que os mínimos detalhes dos mitos importam. Dos Kla-
des naturais que, ao contrário dos bens e serviços do âmbito da cultura, não math aos Salish meridionais, teremos na verdade seguido a pista do mito do
podem ser intercambiadas (cf. supra, p. 254).
Posto que veremos aparecer progressivamente um elo entre o motivo da
visita ao céu e a origem do fogo de cozinha, cabe ressaltar, sobretudo para 3 . Dedicamos nosso curso de 1968-1969 no Collège de France à análise do grupo em
que se insere essa narrativa, e tentamos mostrar como ele se liga ao do desaninhador
os leitores familiarizados com os volumes anteriores destas Mitológicas, que
por uma série de transformações. Para não sobrecarregar este volume, resignamo-
os Nez Percé fazem questão de afirmar o desaninhador, mesmo antes de nos a excluir essa demonstração, que esperamos poder retomar na forma de uma
começarem suas aventuras, como inventor da fogueira. “Coiote tinha um publicação à parte. Cf. Annuaire du Collège de France, ano 69, 1969, p. 285-89.
filho, que era chefe e homem corajoso. Ele subiu numa montanha perto do Lévi-Strauss retornaria a essa região da América, retomando sua reflexão acerca desses
rio Snake. Certa manhã, ele deu um pontapé num tronco caído e o fogo saiu. mitos, em História de Lince [n.t.]

Flor, checar se faz parte dessa nota, não tem a chamada


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desaninhador de pássaros para constatar que, em toda essa área, ele sofre pela origem dos seismos porque a superfície da terra se dilata e se contrai
uma transformação que o distingue das versões sul-americanas (nas quais, periodicamente (Adamson 1934: 160, 172, 175; Jacobs 1934: 140). Essa mitolo-
contudo, ela é também perceptível, mas em estado latente, cf. cc: 84). Ela gia dos tremores de terra exiria um estudo à parte; talvez um dia o façamos.
consiste na passagem da categoria de cru para a de nu, e associa a cultura As versões nez percé, dizíamos, operam a transição entre as dos demais
menos à origem da culinária do que à do vestuário (supra, p. 44, 307). As Sahaptin e os mitos dos grupos salish seus vizinhos, que vamos abordar com
versões nez percé, aliás, estão entre as que mais insistem nas belas roupas do os Coeur d’Alêne, cujo território confinava com o dos Nez Percé ao norte.
herói, que seu pai obriga a tirar; de modo que, dono do fogo que aquece no
início do mito, o herói vira um homem nu e tremendo de frio no meio. M 664A COEUR D’ALÊNE: O DESANINHADOR DE PÁSSAROS
Acabamos de ver como se manifesta a correlação entre os mitos nez percé
e os mitos jê. Já que estes últimos transformam o mito bororo de referên- O filho de Coiote tinha duas mulheres. Uma delas, de pele escura, mãe de um menini-
cia M₁ de que partiu toda a nossa análise, é preciso que também os mitos nho, chamava-se Cisne Negro. A outra, de pele clara e sem filhos, chamava-se Andori-
nez percé mantenham com M₁ uma relação simétrica à que detectamos nha-do-Mar (uma pequena gaivota). Apesar de todos gostarem da primeira e não gos-
entre eles e M₇-M₁₂. E eles o fazem. O herói, autor do fogo que protege do tarem nada da segunda, foi por ela que Coiote se apaixonou, seduzido por sua brancura.
frio, mais tarde se vinga do pai provocando calor e falta de água (quando Então, pediu ao filho que trepasse no alto de um pinheiro para pegar no ninho
o velho Coiote passa sede), ao passo que em M₁, ele se vinga provocando filhotes de águia, e piscando, com a ajuda de seus poderes mágicos, fez com que a
chuva, abundância de água portanto, que priva o pai de fogo ao molhar e árvore se erguesse até o céu, a que chegou o herói, que achou-o “igualzinho à terra”
apagar todos os fogos domésticos. Também nesse particular, os mitos nez (cf. M602c).
percé preservam sua originalidade, invertendo uma mensagem inalterada Avistou um veado, matou-o, esquertejou-o e por a carne para secar. Anoiteceu.
dos Klamath-Modoc até os Salish, os quais todos, e de modo homólogo a M₁, Mas ele não conseguia dormir, por causa do barulho de uma conversa. Entendeu que
calam ou subentendem a origem do fogo, mas fazem da chuva, da inundação ocorria entre dois irmãos, ambos caçadores; o mais velho matava a caça com seus
ou de seu equivalente funcional o meio empregado pelo herói para se prote- excrementos, e o mais novo, que ainda por cima era canibal, caçava presas huma-
ger ou se vingar (supra, p. 31). nas do mesmo modo. Os dois irmãos estavam brigando, e começaram a lutar com
A aproximação com as versões salish, ilustradas pelas dos Nez Percé, não bastões emfeitados com os ossos de suas vítimas. O herói se apresentou. Viu que o
impede portanto (antes requer) que oposições se manifestem em outros pla- irmão mais velho parecia uma aranha, com um pequeno corpo arredondado e lon-
nos. Uma das versões nez percé (M₆₀₂f), por exemplo, conta que os salmões gas pernas. Em troca da carne do veado, Aranha prometeu a ele sua proteção contra
retidos pelas cinco irmãs eram humanos metamorfoseados aos quais Coiote o Canibal e ensinou-lhe um estratagema que permitiria aos dois juntos cortarem
devolveu sua natureza primeira, ao libertá-los, por inversão dos mitos salish sua perna, caso fossem atacados.
(M₃₇₅ etc.) e sahaptin (M₆₁₀), segundo os quais, para obter salmões para Começou a chover. Mulheres Castores, que caçavam e comiam essa espécie de
os humanos, foi preciso mudar criaturas antropomorfas em peixes. Outra roador, acharam o herói abrigado sob uma árvore, mas mesmo assim molhado até os
inversão característica concerne à relação entre mundo terrestre e mundo ossos. Levaram-no para a casa delas e se casaram com ele. O herói caçava cervídeos
celeste. A criação do relevo pelo herói nez percé (que caberia comparar com para as mulheres, mas Aranha roubava-lhe as presas. Matou-o e então ficou sabendo,
a ação análoga da heroína no ciclo de Dona Mergulhão, cf. supra, p. 103-05, pelas mulheres aos prantos, que era o pai delas. Então ele tratou logo de ressuscitá-lo.
109, 115, 118-20, 133) implica que a terra era anteriormente plana, aspecto que Passou a sempre reservar parte de sua caça para o sogro.
os Salish ocidentais atribuíam antes ao mundo celeste, descrito, pelos Bella Apesar de ter-se tornado pai de família no céu, o herói sentia saudades de sua
Coola (Boas 1900: 28), os Thompson e os Klallam (infra, p. 330, 366) como esposa terrestre Cisne Negro. Saiu andando sem rumo, e deu com duas velhas fian-
plano, sem relevo nem vegetação rasteira e perpetuamente varrido pelo deiras que disputavam pela posse de um caule de cânhamo do Canadá (Apocynum
vento. Por outro lado, se os Nez Percé afirmam que a terra foi antes plana cannabinum) que crescia horizontalmente debaixo da terra e unia os pontos onde
e depois franzida, os Salish da costa e seus vizinhos sahaptin encarregam o elas se encontravam. Elas deviam ser cegas, porque a narrativa conta que elas procu-
ciclo do demiurgo Lua, a que nos referimos várias vezes (M₃₇₅) de explicar ravam a planta apalpando.

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O herói chamou-as de avó (mãe do pai) e pediu que o ajudassem a voltar para a terra. Vimos que, conforme as versões, os Nez Percé distinguem também duas
Em pagamento pela ajuda, ele lhes ofereceu suas roupas, depois carne, que elas não categorias, uma hostil, outra gentil, ou evocam apenas uma, hostil no início
quiseram. Somente a oferta de cânhamo interessou-as: “Você estava falando como se e depois gentil (supra, p. 322). Porém, mesmo no primeiro caso, mais pró-
usássemos roupas, mas só nos interessamos a essa coisa para o cordame”. Colocaram- ximo das versões coeur d’alêne, a oposição parece ser menos fortemente
no numa caixa com tampa, e avisaram que durante a descida haveria quatro paradas e, marcada. Os primeiros habitantes do mundo celeste encontrados pelo herói
para continuar descendo, ele tinha de rolar sobre si mesmo no fundo da caixa a cada vez. adotam para com ele um comportamento guerreiro (atacam-no com lan-
De volta à terra, o herói encontrou sua casa destruída e o local deserto. Aca- ças, M₆₀₂b,c) mais do que canibal (M₆₆₄a). E, principalmente, o episódio dos
bou encontrando a mulher fiel e o filho; ela contou-lhe como tinha sido mandada encontros hostis é consideravelmente menos desenvolvido pelos Nez Percé
embora pelo sogro, depois de ele ter-se unido a Andorinha do Mar. O herói foi trans- do que pelos Coeur d’Alêne, que imputam aos primeiros habitantes do céu
portado por Cisne Negro até o acampamento, onde matou seu pai Coiote, sua mãe, vários tipos de comportamento monstruoso — caçada por meio da defe-
seus irmãos e sua esposa infiel (Reichard 1947: 77-80). cação e antropofagia quanto aos irmãos Aranha, homofagia quanto a suas
filhas ou sobrinhas — a que o herói põe fim fornecendo às mulheres Casto-
Uma versão mais antiga, apesar de menos rica (M₆₆₄b, Boas 1917a: 120-21), res, canibais em relação à própria espécie, um alimento mais decente e a seu
informa o nome do herói, que é Tô’rtôsemstem, forma frequentativa cujo pai, caça, o que lhe possibilita abandonar sua técnica de caça que representa
sentido evocaria a subida ou a descida. Faltam os episódios das Aranhas uma conjunção abusiva entre alimento e excremento.
caçadoras ou canibais e das mulheres Castores. Em compensação, M₆₆₄b São diferenças importantes, porque permitem resolver um enigma colo-
descreve as duas fiandeiras como Aranhas que o herói chama de netas, em cado por uma das versões nez percé (M₆₀₂c): a disjunção do herói, alçado
vez de avós, a quem ele oferece primeiro contas, depois colares, mas que tam- ao papel de chefe de caça desde o princípio, não ocorre, como em todos os
bém só querem cânhamo. outros casos, quando ele vai desaninhar filhotes de águia, mas quando ele
Com relação às versões nez percé, notaremos o que, à primeira vista, sobe na árvore para recuperar a caça que tinha deixado pendurada num
parece ser um enfraquecimento da oposição denotada pelos nomes das galho alto. Bem, as versões nez percé também diferem das demais pela natu-
duas mulheres, que se chamam Cisne e Gafanhoto ou Besouro em M₆₀₂, e reza da remuneração oferecida às aranhas prestativas. M₆₀₂b e M₆₀₂c expli-
Andorinha-do-Mar e Cisne em M₆₆₄a, ou seja, duas aves aquáticos aqui, uma cam que as fiandeiras tinham as mãos feridas pelo trabalho e que o herói
ave aquática e um inseto terrestre lá. Ao mesmo tempo, invertem-se as valên- pagou-as com carne ou gordura de cervídeo que, como M₆₀₂c explica, ser-
cias semânticas da mulher Cisne, que é branca, estéril e má entre os Nez viriam para que elas tratassem suas escoriações. De modo que versões que
Percé e negra, fértil e boa entre os Coeur d’Alêne.4 Mas é mesmo um enfra- colocam a caça em primeiro plano no entanto calam sua função alimentar
quecimento? Se tivéssemos mais informações a respeito da identidade das e reduzem a caça ao papel de auxiliar de uma outra atividade técnica — a
aves que, na maioria dos mitos da região, eram originariamente as egoístas fiação do cânhamo — que diz respeito ao reino vegetal, e não animal.
donas dos salmões e, principalmente, se a transliteração inglesa swallow que Se os Nez Percé procuram reduzir ao mínimo a distância entre a caça
encontramos frequentemente designasse andorinhas-do-mar, como sugere e o trabalho das fibras têxteis, fazem-no, pois, tornando a primeira menos
seu papel subsequente de acompanhantes dos salmões quando estes sobem uma atividade do âmbito da alimentação que fornece os meios da culinária
os rios, determinado por Coiote como castigo, apareceria uma correlação do que um meio de obter a gordura indispensável na condição de unguento.
significativa entre a oposição entre as duas esposas e aquela, muito mais Fica claro que os mitos coeur d’alêne adotam uma perspectiva exatamente
marcada entre os Coeur d’Alêne do que entre os Nez Percé, entre as duas inversa: em vez de ganhar a ajuda de aranhas prestativas com um presente
categorias de aranhas que o herói visita no céu. de carne ou gordura, nem bem chega ao céu e o herói entra em conflito com
aranhas hostis, em torno do que acaba de caçar. Por outro lado, surge uma
4 . É provável que as andorinhas, que acompanham a subida dos salmões ao longo dupla oposição entre a caça e o trabalho das fibras têxteis. Para começar, a
dos rios, ocupem no pensamento indígena uma posição mais “baixa” do que os cisnes, primeira atividade serve para qualificar aranhas hostis, e a segunda, aranhas
grandes migradores aéreos. gentis. Além disso, a caça em questão se manifesta nas formas mais abjetas

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que se possa imaginar, assassinato por defecação, antropofagia, homofagia. Os Nez Percé, ao contrário, diante de seus vizinhos orientais, podiam consi-
De modo que os Nez Percé conjugam caça e trabalho têxtil, ao passo que os derar-se campeões das artes têxteis, já que eram cesteiros reputados e, além
Coeur d’Alêne as separam, reforçando inclusive a disjunção ao conjugarem disso, as principais fibras que serviam de matéria-prima — Apocynum e
noutro ponto o alimento animal e os excrementos. Xerophyllum — eram mais abundantes em suas terras do que alhures. Suas
A etnografia contribui para esclarecer tais diferenças. Elas se manifestam bolsas chatas, que tanto interessavam aos Flathead, e os chapéus troncôni-
menos entre os Nez Percé e os Coeur d’Alêne que, como os demais povos cos de suas mulheres eram merecidamente célebres pela perfeição que se
a oeste das Rochosas, destacavam-se na tecelagem e no trançado de fibras reconhecia em sua feitura. É compreensível, pois, que tenham tratado de
vegetais (cf. Teit 1900: 47-48), e mais entre os Nez Percé e seus vizinhos das subordinar en seus mitos técnicas como a caça e o curtume de peles, em que
Planícies, que desconheciam as artes têxteis. Na verdade, a fronteira é atra- não se destacavam, àquelas cujo monopólio podiam reivindicar, em relação
vessada assim que chegamos aos Flathead (Teit 1930a: 328-30), apesar de a seus parceiros comerciais, os Flathead, e mais ainda em relação a seus vizi-
serem ainda Salish, vivendo imediatamente a leste dos Nez Percé. Um texto nhos orientais das Planícies, que também eram seus inimigos tradicionais
significativo pode ser citado a respeito: “Eles (os Nez Percé) quase sempre (Spinden 1908b: 226-27), e cuja presença ou ausência se prestavam mais,
estavam em paz com os Flathead, que reconheciam como melhores caçado- para eles, para marcar a separação entre a barbárie e a civilização.
res. Podiam contar com os Flathead para partir para as Planícies no inverno Mas nisso, como observamos diversas vezes, os Nez Percé seguiam a ten-
e voltar com mais carne do que precisavam. Sendo assim, pensavam os Nez dência comum a todos os Sahaptin e, como veremos em breve, dos Salish.
Percé, para que ir tão longe e correr riscos, já que a carne podia ser adquirida Numa região da América tão completamente ignorante da cerâmica, o tran-
dos Flathead? Não que os Nez Percé não apreciassem carne; muito pelo con- çado de fibras pode merecidamente aparecer como coextensivo à cultura. Os
trário, “eram loucos por carne”, disse um informante. Mas era bem melhor Nez Percé não teciam cobertas, como os Salish da costa, mas tinham algu-
comerciar do que ir combater os Blackfoot. Os Nez Percé também gostavam mas delas e, embora suas roupas fossem geralmente de couro, o uso dos cha-
das peles de cervídeo provenientes das montanhas das terras flathead, mais péus de fibra trançada mostra que, mesmo entre eles, essa arte tinha uma
belas e mais numerosas do que as suas... Aliás, era apenas no curtume das relação com a vestimenta. Participava também na habitação, com as esteiras
peles que a indústria dos Flathead sobrepujava a deles. de Typha e de Scirpus que recobriam as casas, na caça e na coleta, com as bol-
“Consequentemente, os Nez Percé consideravam os Flathead melhores sas e cestos, e ainda na culinária, com os cestos impermeáveis que serviam
caçadores e curtidores de peles do que eles próprios. Em compensação, os para cozer os alimentos por imersão de pedras em brasa. Nesse sentido, na
Flathead consideravam, e ainda consideram, os Nez Percé os melhores ces- hierarquia das operações culturais, a prioridade do trançado de fibras sobre
teiros. Sempre admiraram as bolsas de trançado fino de seus vizinhos, flexí- a culinária podia legitimamente se afirmar.
veis e impermeáveis, e queriam muito possuí-las, pois apreciavam bastante A mitologia dos povos situados entre os Coeur d’Alêne e os Thompson
sua praticidade para proteger e transportar vários produtos. Como reconhe- não é suficientemente conhecida para que se possa afirmar que, como suge-
ciam a superioridade artesanal dos Nez Percé e estes sempre estavam dispos- rem os raros documentos de que dispomos, esses povos só conheceram a
tos a vender, os Flathead não sentiam nenhuma necessidade de aprender o história do desaninhador numa forma curiosamente invertida. Primeiro
ofício” (Turney-High 1937: 136-37). quanto às idades ou gerações, já que seus protagonistas não dois irmãos em
Os Nez Percé, eram, portanto, o posto oriental mais avançado, por assim vez de pai e filho, e é o caçula que deseja a mulher do mais velho e tenta
dizer, de uma técnica que caracteriza a costa do Pacífico (Spinden 1908b: sumir com ele. Também quanto às direções, pois o ninho de águia sempre
190). Nesse aspecto, os Coeur d’Alêne se pareciam com todos os seus vizi- está numa parede rochosa ao longo da qual o irmão traidor ajuda o outro a
nhos, a norte, a sul, a oeste e a leste; na ordem: Índios dos Lagos, Palouse e descer e depois corta a corda, para que ele não possa subir de volta (Sanpoil,
Nez Percé, Colville e Spokane, finalmente, Kalispel ou Pend d’Oreilles. “Os M₆₆₅a, Boas 1917a: 108; M₆₆₅b, Ray 1933: 147-49. Okanagon, M₆₆₆, Cline 1938:
Coeur d’Alêne não tinham nada que não tivessem as tribos vizinhas e, para 239-40). Apesar dos elementos incontestavelmente indígenas (como o nome
eles, o comércio costumava reduzir-se a uma troca de artigos sempre iguais, do herói em M₆₆₅a, que é Tempestade de Granizo, lembrando sua função
em função das necessidades ou das vontades de cada um” (Teit 1930a: 112). meterológica em versões provenientes de ambos os hemisférios, cf. M₁, M₅₅₇

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e nossa discussão, supra, pp. 136-38), a comparação com certas narrativas seus primeiros galhos tão longe do solo, que o herói não conseguiu descer de volta,
dos Shuswap e dos Thompson (Teit 1909: 702-07; 1898: 63, 87; 1912b: 371-72) mesmo porque Coiote fez a árvore crescer até o céu, onde o rapaz ficou exilado.
basta para convencer de que essa forma particular que o mito assume resulta Ele saiu sem destino. O mundo celeste pareceu-lhe uma vasta planície sem árvo-
de um encontro com o velho folclore francês, difundido entre esses índios res varrida por um vento glacial. Como o herói estava completamente nu, passou
desde o final do século xviii pelos coureurs de bois canadenses.* muito frio. E tinha fome, ainda por cima. Arrancou algo que tomou por caules comes-
A questão que se coloca aí não é tanto a da inversão, considerada do ponto tíveis de uma espécie de beldroega (Claytonia), na esperança de matar a fome, e sen-
de vista de suas implicações formais, portanto, e mais a de saber porque tra- tiu o vento da terra que era tragado pelos buracos que acabara de fazer na abóbada
dições tão distantes umas da outras puderam tão facilmente convergir e se celeste, pois, na verdade, tinha desenraizado estrelas. Esfomeado ainda, visitou uma
unir em torno de um motivo preciso. Tratamos dela numa apresentação oral casa confortável. Não tinha habitantes, mas estava cheia de cestos que o atacaram
e expusemos (supra, p. 322 n. 1) as razões que nos levam a deixá-la de lado.** assim que ele tentou despendurar um deles para pegar água e preparar um banho
de vapor. Ele acalmou os cestos e depois lançou sobre eles uma maldição: “Doravante
! vocês serão serviçais dos homens”. Nas outras casas que visitou depois teve as mes-
mas desventuras com esteiras, furadores, pentes e recipientes de casca, que conde-
Retornemos, pois, a formas míticas mais francamente americanas, e que os nou do mesmo modo.
índios Thompson do vale do rio Fraser ilustram com um alcance e uma riqueza Ao atingir a ponta do imenso planalto desolado que era o mundo celeste, o herói
de detalhes que justificam toda a atenção que seremos levados a lhes dar: desceu por uma encosta em que vegetação esparsa começava a aparecer. Aproxi-
mou-se de duas velhas cegas, sentadas cada uma de um lado de uma fogueira. Uma
M 667A THOMPSON: O DESANINHADOR DE PÁSSAROS dava à companheira madeira podre, pois era esse seu único alimento, que o herói
surrupiou de passagem. Seguiu-se uma querela entre elas, que desconfiaram da pre-
Na origem dos tempos, Coiote vivia sozinho no mundo, sem mulher nem filhos, e sença de um homem, por causa do fedor de suas partes sexuais e mais ainda porque,
queria muito ter um filho. Ele fez com uma bola de argila um filho, que foi tomar segundo alguns narradores, o herói tinha colocado na mão de uma das velhas seu
banho contrariando a proibição do pai, e se dissolveu. Coiote então fez um menino pênis em lugar da comida que roubara. Ofendido pelos comentários, ele pegou uma
de resina e recomendou-lhe que ficasse na sombra, mas o menino desobediente dei- das mulheres e jogou-a no meio de coníferas, onde ela se transformou em tetraz
tou ao sol e derreteu. Para sua terceira tentativa, Coiote escolheu uma pedra branca, das pradarias (fool hen ou Franklin goose), que o herói maldisse assim: “Doravante,
certamente um quartzo (Hill-Tout 1899b, jade), à prova de calor e de água. O menino você será uma ave tão estúpida que as mulheres e crianças conseguirão pegá-la com
cresceu depressa e, como era bom em tudo, Mergulhão e Pato-Selvagem lhe deram um mero bastão com um laço na ponta”. Jogou a outra velha no meio dos troncos
as filhas em casamento; a primeira tinha a pele escura, e a segunda, a pele clara. caídos e em apodrecimento, e transformou-a em galinha de crista (ruffed grouse),
Coiote se apaixonou pelas noras e resolveu livrar-se do filho. Despachou-o, pre- dizendo-lhe algo que a pudicícia americana do final do século xix só ousou impri-
viamente despido, para o topo de uma árvore, para pegar filhotes de águia. Mas mir em latim: “et si quando pruris stipite alis tunso gravida fies”. Pouco familiariza-
ali só havia seus excrementos transformados, e o tronco da árvore era tão liso, e dos com os manuais confessionais, só podemos traduzir a fórmula por “e se, quando
você estiver no cio, um tronco de árvore for atingifo por asas (ablativo absoluto), você
Ú engravidará”, mas sem entender porque uma observação tão inocente e, como vere-
*
Coureurs de bois eram caçadores e coletores de peles que, desde o século xvii, partiam mos mais adiante (p. 353), tão conforme aos dados da etologia animal, pode provocar
dos estabelecimentos franceses no vale do rio São Lourenço, coração da colônia semelhante discrição.
francesa, para o interior do continente. Foram frequentemente os primeiros europeus
Seguindo seu caminho, o herói azul de frio e morto de fome recebeu, finalmente,
a entrar em contato com povos indígenas de regiões que a colonização efetiva (inglesa
a hospitalidade de um casal de Aranhas que o vestiram e almentaram. O marido e
ou norte-americana) só atingiria no século xix. [n.t.]
**
Lévi-Strauss dedica um capítulo de História de Lince a esses intercâmbios de histórias a mulher lhe disseram que eram seus avós. Passavam o tempo todo fiando fibras
entre coureurs de bois franceses e caçadores indígenas ao pé do fogo, intitulado “Mitos vegetais curtas e grosseiras (Apocynum androsaemifolium, cf. Teit 1930b: 497). Na
indígenas, contos franceses”. [n.t.] verdade, faltavam-lhes carne e matéria-prima para seu ofício. Ao que parece, durante

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sua estadia junto às Aranhas o herói foi iniciado a todos os seus mistérios. Ganhou Na volta, Coiote, todo contente, quis atravessar o rio. As tripas se romperam,
muita sabedoria e matou vários cervídeos para dar a seus protetores. E transformou Coiote largou seu carregamento e caiu na forte corrente que o arrastou até a con-
alguns de seus pelos púbicos jogados no chão numa densa cobertura de plantas que fluência com o rio Thompson e depois no rio Fraser, em que ele deságua. Para não se
dão fibra da melhor qualidade (Apocynum cannabinum, cf. Teit 1930b: 498). As Ara- afogar, Coiote tinha-se transformado em tábua de madeira flutuante.
nhas mal sabiam como agradecer. Foi dar à terra no estuário, perto de uma barragem de pesca cujas donas eram
Enquanto isso, Coiote, que tinha vestido as roupas e adornos do filho, se fez pas- duas velhas. Uma delas pegou o pedaço de madeira e trabalhou-o em forma de reci-
sar por ele junto a suas esposas. Só a de pele escura desconfiou. Coiote deu um jeito piente, mas quando tentou utilizá-lo, o prato devorava os peixes tão depressa que as
de inspecionar as partes íntimas das duas noras. Ficou com aquela cuja brancura lhe duas ficaram sem ter o que comer. Furiosas, jogaram o prato no fogo, onde Coiote se
agradou e expulsou a outra, que sobreviveu graças à caridade das pessoas e logo deu transformou imediatamente em bebê. Uma das mulheres ficou tocada com o choro do
à luz um menino que já trazia no ventre quando do desaparecimento do marido, que bebê, pegou-o e adotou-o. O menino cresceu depressa, mas era insuportável. Durante
julgava morto. Quando foi chegando o verão, todos deixaram a aldeia para caçar e uma ausência das mulheres, descobriu que atrás da barragem o rio estave cheio de sal-
coletar raízes selvagens. mões, peixes que até então ele e os seus não conheciam. Furou a barragem, e também
Nosso herói sentia muita falta da terra. As Aranhas fizeram-no descer dentro de abriu quatro caixas das mulheres que elas o tinham proibido de tocar. Das caixas saí-
um cesto com tampa amarrado na ponta de uma corda e avisaram que, quatro vezes ram, na ordem, fumaça, vespas, moscas (salmon-flies, bluebottle-flies, blow-flies) e uma
seguidas, ele deveria girar sobre si mesmo sem abrir os olhos quando o cesto fizesse outra variedade de insetos (meat-bugs) que, desde então, se multiplicam na estação
uma parada, primeiro sobre as nuvens, depois sobre o nevoeiro, o topo das árvores dos salmões. Conduzidos por Coiote, os peixes começaram a subir os rios.
e, finalmente, a parte de cima das plantas. Teria tocado o solo no momento em que Depois de um certo tempo, Coiote sentou na margem para descansar. Avistou do
ouvisse o canto das gralhas ou das cotovias. outro lado do rio três ou quatro moças, virgens dizem alguns, tomando banho. Cha-
O herói aterrissou sobre uma grande pedra chata que marca o centro do mundo, mou-as e ofereceu-lhes espinhas de salmão. A mais jovem gritou “sim!” e foi repre-
perto do lugar onde atualmente se encontra a cidade de Lytton. Partiu para o norte, endida pelas companheiras: “Você não devia ter respondido!” Coiote mandou-as se
em busca da família, e como não tinha canoa para atravessar o rio Fraser, fez uma de alinharem na margem e disse ainda, conta-se às vezes, que deviam afastar as pernas.
cavalinha (Equisetum, cf. Teit 1930b: 510), que afundou assim que ele atingiu a outra Então ele esticou o pênis, que atravessou o rio, alcançou a penetrou a mais jovem.
margem. A planta ainda cresce naquele lugar. No caminho que levava a Beta’ni, onde As companheiras tiveram dificuldade em arrancá-la do rio, pois ela parecia muito
ele esperava encontrar toda a sua gente, foi ultrapassando a Formiga, o Besouro, a doente; mas nenhum dos xamãs convocados por seus parentes conseguiu curá-la.
Lagarta e outros viajantes lentos. Disse à Formiga que ia acabar se cortando ao meio Coiote foi introduzir os salmões no rio Columbia. Guiou-os em seguida até a nas-
de tanto apertar a cintura. Essas criaturas lhe disseram que sua família não estava cente do rio Okanagon e, no caminho de volta, ao longo do rio Similkameen. Lá ele
longe, ele apertou o passo e viu a esposa que tinha permanecido fiel a ele com o viu moças se banhando na outra margem, ofereceu-lhes espinhas de salmão, mas
menino. Foi ele que o reconheceu primeiro. Eles fizeram um acampamento à parte. elas recusaram. Disseram que preferiam um certo pedaço (as cabeças, dizem outras
Coiote e o pessoal da aldeia não estavam conseguindo matar nada e, só lhes res- versões, cf. M668A) de cabrito-montês. Coiote concluiu que não era um povo apre-
tando comer raízes, logo começaram a passar fome. ciador de salmão.5 Cortou o rio com uma grande cachoeira impossível de atravessar
O Corvo acabou descobrindo que o herói e sua mulher viviam na abundância, para os peixes e multiplicou os cabritos-monteses nas montanhas vizinhas. Por isso
enquanto todos os outros passavam fome. Obrigado a dizer de onde vinha a gordura as pessoas dessa região têm de ir até o rio Columbia ou os rios Thompson e Okana-
de cervídeo que seus filhos disputavam, confessou a origem de suas provisões. Todos gon para conseguir salmões. Coiote seguiu o curso dos rios Nicola e Thompson e
foram para a casa do herói, comprimentá-lo pelo retorno e festejar com sua comida. finalmente voltou para Lytton.
Só Coiote, envergonhado de seu comportamento, ficou isolado. O filho foi ter Vestiu-se como um xamã ou, segundo outras versões, fabricou uma roupa com a
com ele, dizendo que vinha lhe oferecer um cervídeo que tinha matado e pendurado palha de uma gramínea (Elymus triticoïdes) para visitar a aldeia das primeiras moças
numa árvore do outro lado de um rio. Disse ainda que tinha lá deixado também
uma correia de transporte luxuosamente decorada, mas na verdade não passava das 5 . Convém notar que a bacia do rio Similkameen era outrora ocupada por grupos
tripas da presa. atabascanos.

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que tinha encontrado. Acharam que ele era xamã e puseram a doente sob seus cui- porque era de madeira. Ao se despedirem do herói, as Aranhas prestativas
dados. Ele se fechou com ela numa estufa e se pôs a copular, na esperança de que deram-lhe vários presentes: quatro pedras — que ele deveria jogar, uma de
seu pênis se soldasse com a ponta que tinha ficado na vagina da moça, e que era a cada vez, a cada parada do cesto na descida —, quatro peças de roupa de
causa de sua doença. Pelos gritos da paciente, todos entenderam o que estava acon- couro — casaco, túnica, perneiras e mocassins — e quatro espécies de raízes
tecendo, mas Coiote conseguiu fugir e a moça ficou curada. ou bulbos comestíveis (das quais uma portulácea, Claytonia sp. e uma lili-
Quando Coiote estava no rio Columbia, jogou nele a própria filha, que virou ácea, Erythronium sp.) que ele espalhou, originando-as na terra. A história
um rochedo cuja forma lembra a posição dela ao cair, com os braços e pernas bem prossegue com a volta e a vingança do herói, o episódio do longo pênis, a
afastados. repartição dos cabritos e dos salmões, o casamento de Coiote com a filha
Coiote realizou muitas outras maravilhas. Metamorfoseou a palha de Elymus de Texugo. Quando ele foi visitar a aldeia de sua vítima, a moça adoecida,
e cerejas selvagens em conchas preciosas, peles de peixe em salmões, gravetos em Coiote, usando roupas luxuosíssimas, fingiu não entender a língua local.
arbustos carregados de frutinhas. Certo dia, ele dispôs os falsos peixes e as falsas Chamaram o Camundongo de rabo curto, que era poliglota, para servir de
frutinhas diante da casa em que Dona Grizzly estava hibernando, e convidou-a a intérprete, mas Coiote só aceitava conversar por meio de sinais. Quando ele
fazer um festim, primeiro com as provisões dela e depois com as que ele tinha tra- foi pego com a moça, saiu correndo e deixou as belas roupas, que se transfor-
zido. Quando todas as reservas de Dona Grizzly se esgotaram, Coiote se esquivou. No maram em palha, gravetos e excremento. M₆₆₈b conta que Coiote, disfarçado
dia seguinte, na frente da casa, havia apenas peles de peixe encarquilhadas e ramos de xamã, alegou só saber falar kalispel, língua de um grupo salish distante.
secos... (Teit 1898: 21-29). Perseguido pelo Colibri, escapou graças a um denso nevoeiro que tinha pro-
vocado por magia, rolando no chão.
Uma outra versão (M₆₆₇b, Teit 1912b: 205-06), proveniente do cânion do Uma terceira versão (M₆₆₈c) situa no verão o episódio das banhistas.
Fraser, omite o episódio dos filhos artificiais e começa quando o herói já Cada vez que uma delas aceitava sua oferta de salmão, Coite fazia os peixes
está casado. Os narradores às vezes substituem a árvore dos filhotes de subirem o rio e seu pênis imediatamente o cruzava para penetrar a moça,
águia (madeira “crua”) por uma falésia abrupta (rocha “crua”). Aqui, em ondulando na água como uma serpente. Sempre que sua oferta era recusada,
vez de madeira podre, é pedra podre o alimento das velhas cegas. Essa ver- ele barrava o rio com pedras ou o cortava com quedas d’água que impe-
são se mostra mais explícita que a outra no episódio do longo pênis de diam os peixes de passar. Certo dia, quando ele estava levando os salmões
Coiote, explicando que a jovem, penetrada pelo membro enorme de que por um pequeno afluente do Columbia, encontrou uma família composta
não conseguia se desfazer, nem conseguia andar. Suas companheiras ten- de pai, mãe e duas filhas, que pescavam peixinhos minúsculos ao pé de uma
taram livrá-la, mas não conseguiram cortar o pênis com facas e pedras barragem improvisada. Eles receberam bem Coiote que, em agradecimento,
afiadas; para terem sucesso, foi preciso que Coiote as aconselhasse a usar revelou-lhes a presença de salmões a jusante e ensinou-os a pescá-los. Ele
uma planta dos brejos. Um outro incidente aliás anunciava esse: segundo decretou que, naquele lugar, a pesca seria abundante todos os anos. Coiote
M₆₆₇b, Coiote, que participou da festa de reconciliação (ao contrário do pediu as moças em casamento, foi aceito, e cada uma delas logo deu à luz
que relata M₆₆₇a), quis limpar a faca na própria testa, mas virou-a do lado um bebê, um menino e uma menina, ambos capazes de andar ao nascerem.
errado e fez um corte profundo. Coiote decidiu partir em viagem levando a mais jovem de suas esposas
M₆₆₇b explica também como Coiote tornou-se pai de uma filha, depois e a filha. Porém, assim que chegaram, ele lembrou-se da moça que tinha
de ter sido aceito como genro por Carcaju, que encontrou para os lados do feito adoecer em Lytton e resolveu ir visitá-la. Achou que a família estava
rio Okanagon ou do Similkameen. Em compensação, faltam os episódios da atrapalhando, então jogou a esposa no Columbia, onde ainda pode ser vista,
cura da doente e da visita a Dona Grizzly. transformada em rochedo, com as costas inclinadas e os joelhos saindo da
Devemos a Teit outras versões, mais fragmentares, colhidas entre os água que corre por sobre suas coxas e em seguida se junta numa espécie de
Thompson dos rios Nicola e Fraser (M₆₆₈a-d, Teit 1912b: 296-300). M₆₆₈a tanque natural. “Aqui, decretou ele, haverá um conhecido local de pescaria,
enumera quatro filhos artificiais em vez de três; o de argila dissolveu-se na e tirarão alimento em abundância do meio das pernas de minha mulher”.
água, o de resina derreteu ao sol, o de pedra afundou e o quarto sobreviveu, Transformou a filha também num rochedo, que hoje se vê na margem.

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M₆₆₈d descreve Coiote ricamente paramentado como xamã, com cochas segundo Hill-Tout, mas, cf. Teit 1930b: 498, spa’tsen, Apocynum cannabinum).6
dentalia. Nem o Camundongo de rabo curto, que falava todas as línguas por- Como essa fibra é a de melhor qualidade, para agradecer a seus protetores, o
que tinha tido maridos de várias tribos, conseguia entendê-lo. Pediram-lhe herói não pode, como em M₆₆₇a, criar uma outra que lhe seja preferível. Por
por meio de sinais para curar a moça. Coiote foi pego nu copulando com a isso ele se contenta em fazer crescer, graças a seus pelos púbicos, campos mais
paciente, saiu correndo e, para grande decepção dos moradores da aldeia, as próximos do que aqueles aonde as Aranhas tinham de ir para colhê-la. Provido
luxuosas roupas que ele deixara para trás viraram um monte de palha. de carne e de cobertas tecidas em pelo de cabra, e munido de um punhal de
Duas outras versões (M₆₆₉a, b, Teit 1912b: 301-04) transpõem a história pedra, o herói começou a descida, interrompida três vezes pela travessia dos
da liberação dos salmões do Fraser para o Columbia. As quatro misterioras mundos intermediários, o país das nuvens, o país da água, de onde vem a chuva,
caixas que pertencem às feiticeiras contêm, respectivamente, três espécies de e o país do nevoeiro. Mas como o cesto não podia se mover, por causa do vento
moscas (blow-flies, sand-flies, horse-flies) e vespas (M₆₆₉a); ou moscas, ves- que soprava desses mundos, a esposa de Aranha escarificou as próprias coxas e
pas, fumaça e vento (M₆₆₉b). Conforme M₆₆₉a, as feiticeiras eram jovens e pernas; o sangue virou neve e seu peso sobre o cesto o fez descer.7
Coiote, transformado em bebê e que elas deixaram dormir com elas, apro- Depois de aterrissar perto de Lytton e deixar seu punhal enfiado numa
veitava para abusar delas durante a noite. Mais tarde, ele se tornou genro de árvore (onde ainda pode ser visto, na forma de uma saliência que atravessa
Cervo; depois de sua mulher o abandonar, ele transformou a filha de ambos o tronco) para viajar mais leve, o herói seguiu muitas pegadas que iam
em rochedo no meio do Columbia, e deu-lhe o mesmo aspecto e as mesmas na mesma direção. E encontrou duas velhas, que caminhavam agitando à
propriedades que M₆₆₈c reserva para sua esposa. esquerda e à direita galhos de pinheiro. Intrigado, perguntou a elas porque
Devemos a Hill-Tout (1899b: 551-61, M₆₇₀a) uma versão tão rica quanto faziam aquilo, e elas lhe explicaram que era uma marca de simpatia por uma
M₆₆₇a, da qual só apontaremos as diferenças. O coiote Snikia’p fez sucessiva- viúva inconsolável, na qual o herói reconheceu sua esposa Águia. Ele revelou
mente três filhos, de resina, de jade e de fibras vegetais. Só o último sobreviveu. sua identidade, mas as mulheres disseram que não podiam vê-lo, embora
O pai levou-o consigo para visitar vizinhos poderosos e temíveis que, como não fossem cegas. Ele fez passes de magia diante dos olhos delas e tor-
ele explicou, tentariam destruir a ambos. Sabendo as precauções a serem nou-se visível. “Vocês fizeram mal — disse-lhes ele — em caminhar desse
tomadas, o jovem herói conseguiu escapar do afogamento e depois, junto com jeito, mas irei dar-lhes uma leve punição, já que era por minha mulher”. E
o pai, de um grande incêndio; neste último caso, deitando-se num caminho
limpo que o fogo não atingiu por falta de matéria combustível. Junto a anfitri-
ões mais hospitaleiros, ele se casou com as filhas de Águia e de Pato. Uma tinha 6 . Teit (1930b: 470, 498, 513) não desconhece a Asclepias speciosa que, segundo ele,
os cabelos e a tez vermelhos, a outra, pretos. O herói viajou muito e tornou-se os Thompson chamavam de /spetsenêlp, spetsenilp/, nome que o grupo Utãmqt
— o que se encontrava ao sul de Lytton, no baixo Fraser — estenderia à Apocynum
um grande caçador, dono de roupas luxuosas e conchas preciosas.
androsaemifolium. Embora os gêneros sejam distintos, suas flores têm em comum
O episódio do desaninhador segue como nas outras versões, mas esta afirma
a propriedade de reter pela trompa insetos indesejáveis, cujos cadáveres ficam
que Coiote queria as belas roupas do filho tanto quanto suas esposas, e que o pendurados (Fournier 1961: 865 e 867, a respeito desses dois gêneros originários da
herói, nu e tiritando no alto da árvore, lutava contra o frio cobrindo o corpo América do Norte introduzidos na França no século xvii). De modo que poderia haver
com sua longa cabeleira. Voltaremos a esse detalhe (infra, p. 347). No céu, ele uma relação significativa entre a destruição dos insetos por plantas têxteis, símbolos
primeiro ouviu, e depois viu, duas velhas cegas que socavam no pilão madeira da cultura, e sua proliferação, concebida de certo modo como o preço a ser pago
de pinheiro para comer a polpa. Elas se transformam em tetraonídeos, aqui pela humanidade, no plano da natureza, para obter salmões. Como enfatiza M₆₇₀a:
willow-grouse (talvez o Lagópode dos salgueiros, Lagopus sp.) e black-grouse “Ele (Coiote) estava todo feliz e tinha boa consciência; graças a ele, os salmões agora
subiam os rios e as populações instaladas a montante poderiam obtê-los. Uma única
(o Tetraz escuro, Dendragapus obscurus), o que lhea valerá ao menos ver a pró-
desvantagem temperava sua satisfação: a fumaça e as moscas são incômodas, as vespas
pria comida, em troca de se deixarem facilmente pegar pelos caçadores, na falta mais ainda... “ (Hill-Tout 1899b: 560; cf. supra, p. 332 e 335).
de presas maiores. Depois, o herói, ainda nu, arrancou flores bonitas que lhe 7 . Comparar com Cline (1938: 159): “(Entre os Okanagon meridionais) uma técnica
agradavam e assim furou a abóbada celeste. Em seguida chegou à casa das Ara- mágica para acabar com o mau tempo consistia em escarificar a própria cabeça e
nhas prestativas, muito ocupadas fiando fibra de spat’tzin (Asclepias speciosa deixar o sangue escorrer na neve... (até que) o vento sul trouxesse a chuva”.

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transformou-as em larvas de mosca (maggot). Vem em seguida a cena do nomeia suas filhas, mas logo depois tenta seduzi-las. Elas lhe dão uma sova e o
reencontro, durante a qual o herói fez jorrar uma fonte para que ele e sua abandonam. Mais tarde, elas se casam com estrangeiros e dão origem às gentes
mulher pudessem lavar o rosto coberto de lágrimas. do rio Cowlitz, que têm a pele clara, como as fundadoras de sua linhagem.
Apesar de o casal ter-se instalado num local isolado, e de o herói ter proibido É interessante que, apesar de suas afinidades com as versões sahaptin limí-
as mulheres transformadas em larvas de anunciar seu retorno, Corvo, que era trofes que já discutimos, M₆₇₂ conclua com a tentativa incestuosa de Coiote
serviçal da esposa infiel, descobriu a presença do herói e contou a todos. Ele com suas filhas postiças, invertendo os filhos postiços que as versões thompson
concordou em se apresentar; no dia seguinte, ofereceu um banquete aos mora- situam no começo. Na verdade, vários mitos salish do baixo Fraser e da costa
dores da aldeia e distribuiu as cobertas que tinha trazido. Foi proclamado chefe (Chehalis, M₆₇₃, Boas 1891-95: 37-40; Comox, M₆₇₄, ibid.: 65-68; Bella-Coola,
e tornou-se célebre. Mas continuava na intenção de se vingar do pai e conseguiu, M₆₇₅, ibid.: 262-63) preservam o motivo da visita ao céu e do encontro com
como nas outras versões. Segue o episódio da liberação dos salmões e da aber- as velhas cegas, mas atribuem-no a um herói que desejava obter uma esposa
tura das quatro caixas, que contêm o vento, a fumaça, as moscas e as vespas. Essa celeste, filha do sol segundo M₆₇₃, sendo que o herói nascera de um casal de
versão não motiva o episódio da mulher doente e de sua suposta cura, pois falta irmãos incestuosos. Consideraremos mais adiante essa questão (infra, p. 520).
a história do longo pênis, mas acrescenta que Coiote, para ser perdoado por Os Siciatl, que são Salish da costa, também intitulam “mito do sol” sua
sua impostura, argumentou que tinha dado aos humanos os salmões e a brisa versão da história do desaninhador, que transformam de outro modo:
fresca que hoje sobe pelo vale do Fraser e ameniza o intenso calor. Para constar,
mencionaremos duas curtas versões antigas (M₆₇₀b, Dawson 1892: 30-31; M₆₇₀c, M 676 SICIATL: O DESANINHADOR DE PÁSSAROS
Boas 1891-95: 17-18), ambas provenientes dos Thompson. M₆₇₀b designa os qua-
tro patamares que o herói atravessa no transcurso de sua descida do céu como Um velho tinha um filho casado com duas mulheres. Era um grande caçador que, para
mundo do molhado, mundo do frio, mundo do nevoeiro e mundo terrestre. aquecer seus companheiros enregelados, fazia brotar fogo de um tronco de árvore com
Citaremos, finalmente, a versão lilloet (M₆₇₁, Teit 1912a: 306-09), na qual um pontapé (cf. M602B,C; M694). Certo dia, caçou muito, e mandou o pai buscar a caça,
o episódio do roubo recíproco de alimento precede o do desaninhador. No mas na volta a correia de transporte se rompeu. Tentando pegá-la, o velho caiu na água
começo dela, Coiote faz para si quatro filhos artificiais, de argila, de resina, e foi levado pela corrente. Transformou-se em pedaço de madeira flutuante e foi encon-
de pedra e de casca do álamo balsâmico (Populus tacamahacca, Teit 1930b: trado por uma mulher que quis fazer dele um prato, mas o prato devorava a comida. Por
497) e o relato termina com a vingança do herói, com Coiote morrendo afo- isso ela o jogou fora. Ele se transformou em bebê, foi criado pela mulher e cresceu em
gado num rio torrencial; e não poderá, portanto, liberar os salmões. quatro dias. Já homem feito, despediu-se de sua protetora e voltou para casa.
Para vingar-se, Coiote transformou seus excrementos em filhotes de pássaro e
! mandou o filho pegá-los no ninho no alto de uma árvore, que cresceu a atingiu o
mundo do sol. Logo ele ouviu um ruído estranho e achou duas velhas que prepa-
No extremo sul da área salish, os Cowlitz (M₆₇₂, Adamson 1934: 243-49) con- ravam sua refeição. Como elas eram cegas, ele não teve dificuldade em surrupiar a
tam a história de modo bastante diferente. As esposas do herói são quatro, duas comida que uma oferecia à outra. Foi recebido como “neto” pelas velhas, tratou-as
“pretas” e duas “brancas”, sendo que estas últimas, infiéis, serão transformadas com folhas medicinais e devolveu-lhes a visão. Depois revelou a elas a existência de
em camundongos. Como em M₁, o herói se vinga provocando chuva e inunda- salmões em abundância no rio próximo, e ensinou-lhes a pescar com uma rede que
ção. Levado pelas águas que sobem, Coiote tenta se agarrar aos galhos e, con- ele fabricou esticando e atando nós num pelo de sua perna.
forme eles se mostram acessíveis ou não, designa-lhes lugares específicos na Alguns dias depois, as velhas fizeram o herói descer de volta à terra num cesto.
hierarquia das madeiras (cf. Chinook, M₆₁₈, 620; supra, p. 255). Depois de libe- Sem olhar, ele deveria virar-se sobre si mesmo a cada vez que o cesto parasse. O grito
rar os salmões, Coiote não sabe como pegá-los, e suas irmãs-excremento (supra, da gralha anunciaria a aterrissagem. O herói desobedeceu, o cesto subiu de volta,
p. 276) lhe ensinam as técnicas de pesca e a arte culinária. Segue o episódio do mas ele acabou chegando ao chão.
roubo recíproco de alimento (supra, p. 288). Depois de se vingar de seus adver- O herói encontrou uma de suas esposas, a que tinha-se tornado mãe, e ficou
sários, Coiote transforma duas leitas de salmão em moças (supra, p. 276) e as sabendo que o pai tinha se apropriado da outra (Hill-Tout 1: 39-45).

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O autor a quem devemos essa versão considera, não sem alguma probabili- butterball (Bucephala albeola?), que ele amava muito, e a outra uma ave de espécie
dade, que essa narrativa tão imperfeita resulte de um empréstimo feito pelos indeterminada que não lhe agradava nada. Raposa cobiçava as mulheres do filho e
Siciatl dos Thompson; mas não se questiona quanto às alterações introdu- levou-o até uma árvore onde havia dois pássaros brancos empoleirados. O herói se
zidas. Contudo, ele mesmo fornece a provável razão delas, ao notar algures despiu completamente e subiu. Acabou chegando ao céu e os falsos pássaros, que
(Hill-Tout 1904b: 316) que, nessa região, só se podia pescar salmão em terri- eram na verdade as filhas-excremento, voltaram para dentro do corpo de Raposa.
tório chehalis.8 As tribos costeiras, entre as quais os Siciatl que ele menciona Este vestiu as roupas do filho e usurpou-lhe a identidade. Só a segunda mulher
expressamente a esse respeito, invadiam os Chehalis na época da pesca, e às se deixou enganar. Raposa levantou acampamento e partiu com sua conquista,
vezes surgiam conflitos sangrentos. Portanto, se os Siciatl não tinham salmão, enquanto a Pata os seguia chorando a morte do esposo.
não podiam atribuir sua liberação a um de seus heróis culturais; e se o fizes- Enquanto isso, o herói errava pelo céu sem encontrar vivalma. Chegou final-
sem, tal liberação não poderia ocorrer na terra, e sim no céu. Essa inversão mente à casa de um velho peludo e taciturno que fabricava redes de pesca. O herói
básica certamente determinou todas as outras: vingança do pai precedendo se apresentou e ficou sabendo que seu anfitrião era uma Aranha que de bom grado
sua perseguição, visita do pai às damas do rio sem liberação dos salmões e o mandaria de volta para a terra. Mas ele teria de atravessar dois mundos interme-
descoberta deles pelo filho (que os encontra, mas não os libera), transfor- diários, e de romper esses patamares rolando sobre si mesmo até que o solo desgas-
mação do pelo em rede de pesca em vez de plantas têxteis... Esse mito deve, tado cedesse. Fazendo isso, o herói perdeu todos os cabelos. Quando chegou à terra,
portanto, ser aproximado daqueles estudados no volume anterior (omm: onde fazia mais calor do que no céu, não se esqueceu de amarrar na corda as quatro
219-24) nos quais tínhamos explicado pela ausência empírica de um animal, peles curtidas que tinha prometido a Aranha como remuneração.
real alhures, ao nível de criatura celeste e sobrenatural. O herói encontrou o local de sua aldeia deserto. Ainda completamente nu, e
Com os Salish de Puget Sound, voltamos a versões mais clássicas. Não ainda por cima careca, seguiu os rastros dos seus e alcançou primeiro a esposa que
nos deteremos nas versões colhidas ao sul por Ballard, que na verdade são tinha-se mantido fiel. As correias de transporte de seu fardo se arrastavam pelo chão.
klikitat, sahaptin portanto (Ballard 1929: 144-50; cf. p. 147 n. 160); elas não Ele pisou nelas várias vezes e, a cada vez, a mulher tinha um sobressalto. Finalmente,
contêm o episódio da visita ao céu e consequentemente não interessam para ela reconheceu o marido e, magicamente, fez crescer novamente os seus cabelos.
a presente discussão. Mas eis uma versão autenticamente salish, proveniente Seguindo as instruções do herói, ela o escondeu em seu cesto, chegou ao acam-
do nordeste da mesma região: pamento e disse que queria dormir com Raposa. O herói apareceu de repente e recu-
sou as roupas que o pai queria lhe devolver. Mandou o pai junto com a esposa infiel
M 677 SNOHOMISH: O DESANINHADOR DE PÁSSAROS buscar a caça, e deu um jeito para que a carne se transformasse em madeira podre
e para que a correia de transporte se rompesse. Os culpados, enganados, tentaram
No tempo em que os animais não se distinguiam dos homens, havia dois amigos, atravessar um rio a nado e a corrente os levou. A mulher desapareceu, mas Coiote
Raposa e Vison, que passavam o tempo todo pregando peças um no outro. Certo conseguiu chegar à margem e consultou suas filhas-excremento. Elas lhe revela-
dia, eles estavam viajando juntos, quando Vison se afastou, a pretexto de reconhecer ram a presença, a jusante, das damas witlwitl, donas dos salmões (cf. Ballard 1929:
o terreno. Urinou num córrego e transformou sua urina em truta. Depois, chamou 146, witsowits, espécie de frango d’água). Mudado em prancha de madeira, Raposa
Raposa, sempre esfomeado, que se precipitou sobre o que esperava ser uma boa presa. deixou-se levar até lá. As mulheres quiseram utilizar o prato, mas ele devorava os sal-
Logo depois de comer o peixe, Raposa sentiu-se mal e desconfiou que estava grávido. mões cozidos antes delas. Por isso elas o jogaram fora, ele se transformou em bebê e
Suas irmãs ou filhas-excremento confirmaram suas supeitas e revelaram-lhe a disse que era o irmãozinho delas. Certo dia, enquanto as mulheres, como de costume,
causa. Logo ele deu à luz um filho que cresceu depressa e tornou-se bom caçador. tinham ido procurar bulbos comestíveis (Indian potatoes: Claytonia), Raposa comeu
Este casou-se com duas mulheres. Uma era um pato pequeno e gorducho chamado os salmões delas e consultou suas filhas-excremento, que o aconselharam a rom-
per a barragem, para que os salmões pudessem subir o rio e as pessoas a montante,
8 . Entenda-se os Chehalis do baixo Fraser, na Colúmbia Britânica, cujo nome Hill- especialmente uma mulher e sua filha, não mais passassem fome. Mas as donas dos
Tout transcreve como “Stseelis”, e Swanton (1952), “Stalo”. Eles têm uma homônima, salmões os defenderiam com brio. Raposa, que era vulnerável na cabeça e no ânus,
outra tribo salish da costa do estado de Washington, cujos mitos também utilizamos. deveria proteger esses dois pontos sensíveis com cestos.

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Raposa venceu as feiticeiras e subiu orgulhosamente o rio conduzindo os peixes. dos Salish da costa com a breve evocação das formas vestigiais do mesmo
Chegou à casa da mulher com a filha, de que lhe tinham falado suas conselheiras, e mito que se encontram entre os Tillamook, ramo da família linguística salish
fingiu que só sabia se expressar em yakima (língua sahaptin da região montanhosa isolado na costa, bem ao sul do estuário do Columbia (M₆₇₈, E.D. Jacobs 1959:
a leste de Puget Sound), pois queria que pensassem que ele era um grande chefe de 139-44). A história do desaninhador ali aparece numa forma reconhecível, nas
um povo exótico. Encantada com seu porte e não menos com os salmões que ele aventuras do enganador Vento-Sul que deseja se vingar de um personagem
trazia, a mulher deu-lhe a filha, apesar da diferença de idade. Ao cabo de alguns dias, do qual insiste — não obstante suas advertências — em pegar um cinturão
os salmões começaram a rarear e a jovem esposa abandonou Raposa com a filhinha feito de duas cobras, que por pouco não o asfixia e devora. O interesse dessa
que acabara de dar à luz. Ela cresceu depressa, o chefe dos Cabritos a pediu para o transformação reside no fato de que já encontramos (supra, p. 251) e voltare-
filho e Raposa a deixou ir para as montanhas (onde vivem os cabritos) com o marido. mos a encontrar (infra, p. 393) Coiote emprestando um longo pênis que se
Como ele estava entediado sozinho, resolveu ir visitá-la. Fez-se passar por grande volta imediatamente contra ele, em relação ao qual o cinturão de cobras exibe
chefe junto aos Cabritos, que eram uma raça de senhores. Esfomeado como sempre, uma evidente simetria. Bem, o enganador se vinga com o mesmo procedi-
teve a ideia de comer os cueiros do neto, que eram feitos de gordura fina. “Está sujo, mento de que se vale algures para livrar-se do filho e tomar-lhe as esposas, a
cheio de xixi”, disse a mãe. Mas Raposa alegou que apenas fingia estar comendo os saber, metaforicamente, tomar-lhe emprestado um pênis que se pode supor
cueiros, em demonstração de afeto pelo bebê, e para mostrar que não tinha nojo de — já que Coiote costuma ser descrito como um velho — mais imponente do
suas evacuações. A filha teve vergonha dele. que o dele. O visitante forçado do céu, por sua vez, vinga-se fazendo com que
Raposa entendeu que era melhor partir e sumiu na noite, levando um malhete Vento-Sul seja raptado por uma baleia. Ele escapa e mora algum tempo com
de pedra. Achava que estava bem longe, quando deu de cara com a filha, que o acu- um Serpente pescador que lhe ensina os ritos do preparo e cozimento do sal-
sou de ladrão. Pois ele tinha girado em círculos dentro da casa a noite toda. Ao ama- mão. Depois, chega ao Columbia, transforma um desconhecido em rochedo,
nhecer, a filha o expulsou de vez. e é engolido por um monstro aquático, sendo libertado pelos donos das bro-
Raposa em seguida perdeu os olhos, numa competição ridícula (cf. M375). Para cas de fogo, que provocam um incêndio no estômago do monstro. Sem saber
recuperá-los, fez-se passar por uma velha chamada Doença, cuja pele vestiu depois como nem porque, Vento-Sul se vê grávido e dá à luz uma filha, da qual tenta
de matá-la. Disfarçado e alegando a fraqueza da idade, pediu às netas da vítima para se livrar repetidas vezes, mas ela sempre ressuscita. Ele acaba concordando
o carregarem nas costas. Finalmente, retomou seus olhos dos aldeões que os exi- em poupá-la, e a encarrega de espalhar as doenças (cf. a velha avó Doença
biam e fugiu provocando um denso nevoeiro. Resolveu voltar para o lugar de onde que mata Raposa em M₆₇₇). Certo dia, ele pesca um salmão e transforma as
viera e não mais tentar pregar peças (Haeberlin 1924: 399-411). ovas em duas gêmeas, que adota. Elas crescem e, como insistem em remar em
ziguezague ele fica enfurecido e as chama de “minhas mulheres” em vez de
Depois desse mito, que curiosamente junta três temas que também estão pre- “minhas filhas” (cf. M₆₇₂). Ofendidas, elas o abandonam e em seguida roubam
sentes no Chaco (Raposa fica doente por causa do pseudo-alimento ofere- o menino Lua, cuja gesta começa aí (cf. M₃₇₅).
cido por seu companheiro demiurgo [cf. M₂₁₀, mc: 81]; o demiurgo grávido E o que acontece com nossa história nos grupos salish que, no inte-
[cf. M₅₃₂, supra, p. 34]; e sua vã tentativa de copular por trás com a mulher rior, ocupam uma posição simétrica à das gentes da costa em relação aos
que o carrega nas costas [cf. M₂₁₈, mc: 92]),9 convém terminar essa revista Thompson? Os Shuswap conhecem o mito do desaninhador, mas numa
forma enfraquecida, que confirma nossa sensação primeira de que o verda-
deiro centro de gravidade, por assim dizer, das formas setentrionais do mito
9 . Em favor dessa aproximação, note-se que essa última aventura do enganador deve ser buscado entre os Thompson.
envolve, segundo M₂₁₈, a filha do Sol. Bem, o episódio de M₆₇₇ em que ele gira em
círculos a noite toda na casa dos cabritos-monteses, achando que está fugindo com
o que roubou, constitui a contrapartida terrestre, se não subterrânea, de mitos dos episódio se encaixaria melhor num outro contexto, ao qual já aludimos (supra, p. 322
Nez Percé em que Coiote, que subiu ao céu, comete o mesmo erro ao tentar fugir da n. 1, 329) e que deixaremos de lado, pelas razões já mencionadas. Sobre Coiote grávido,
casa de Lua, um canibal (enquanto que os cabritos são comida para os homens) que cf. Adamson 1934: 264; sobre Coiote copulando por trás: ibid.: 253; Jacobs 1934: 110,
ele acaba de matar, ou cujo filho matou (Boas 1917a: 173-74, 186-87). A discussão desse 209-10; 2, i: 90-91.

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Segundo os Shuswap do vale do Fraser (M₆₇₉a, Teit 1909: 622-23), Coiote contrário, como anfitrião desajeitado de uma série de criaturas, insiste em
vivia antigamente na casa de seu filho ou sobrinho Katlla’llst, “Três Pedras”, imitá-las como elas ainda eram nos tempos míticos, mas não podem con-
que tinha duas mulheres, uma jovem e a outra velha. Para conseguir ficar tinuar sendo. E assim ele tenta generalizar para outras espécies, e perpetuar
com elas, Coiote mandou Três Pedras ir ao topo de um penhasco para desa- no tempo, comportamentos ou modos aberrantes e, por conseguinte, faz
ninhar filhotes de águia, alegando que ele mesmo estava velho e fraco demais como se privilégios, exceções ou anomalias pudessem vir a ser a regra, con-
para isso. Em nome de um pretenso costume ancestral, obrigou o rapaz a trariamente ao demiurgo, cujo papel é por fim às singularidades e promulgar
vestir suas mais belas roupas, e depois a tirá-las antes de começar a escalada. regras universalmente aplicáveis a cada espécie e a cada categoria.
Depois Coiote fez subir o rochedo e, com o rapaz preso numa cavidade, sem A versão lilloet (M₆₇₁) e as versões shuswap (M₆₈₀a, b) ilustram admira-
poder descer nem subir, vestiu as roupas e esticou a pele, para parecer jovem velmente a simetria que prevalece entre os dois grupos de mitos. Antes ou
e poder tomar o lugar do filho. depois das diversas aventuras ao longo das quais Coiote fracassa ao tentar
Duas mulheres Roedores (Bush-tailed rat, Mouse), que colhiam cânhamo imitar técnicas extravagantes de produção que, como lhe explica cada um
em baixo, ouviram os lamentos do herói e, por meio de encantamentos dos que ele quer tomar por modelo, “lhe são próprias e como que de sua
mágicos, reduziram o tamanho do rochedo. O herói agradeceu fazendo sur- exclusiva propriedade”, ocorre um episódio que corresponde exatamente ao
gir um grande campo de cânhamo excelente, oriundo de seus pelos púbi- das velhas cegas. Esse episódio sucede na terra, e não no céu. Coiote pri-
cos. Ao retornar ao acampamento, Três Pedras retomou suas belas roupas e a meiro engana, e depois cega, criancinhas cujas mães são descritas como
esposa mais jovem ao pai. Deixou-lhe a velha e abandonou-os para sempre. tetraonídeos, em vez de enganar e depois devolver a visão a duas velhas
Uma outra versão shuswap, proveniente do curso superior do rio Thomp- cegas que logo irão virar aves dessa família. Aquelas se vingam, ao passo que
son (M₆₇₉b, Teit 1909: 737-38), atribui uma esposa a cada um dos homens. O — pelo menos em algumas versões — estas se mostram prestativas... E essa
tio se apaixona pela mulher do sobrinho, livra-se dele mandando-o desani- vingança, motivada pelos maus tratos infligidos por Coiote aos filhos das
nhar águias e toma o seu lugar junto da moça. As duas criaturas prestativas tetrazes ou galinhas do mato é idêntica à que o herói, filho de Coiote, na his-
chamam-se aqui Dona Aranha e Dona Camundongo. O herói agradece-lhes tória do desaninhador, perpetra contra o pai devido aos maus tratos que ele
obtendo para elas cânhamo de melhor qualidade do que o que elas possuíam. lhe infligiu. De um lado, mães que têm queixas por causa de seus filhos, do
Tais versões são fracas em vários aspectos: prendem o herói no topo outro, um filho que tem queixas por causa do pai, ambos conseguem que o
de um penhasco ou até na metade dele, em vez de despachá-lo para o céu; culpado — que é sempre Coiote — caia na água.10 A partir daí, os dois ciclos
fazem a ajuda vir de baixo e não de cima; e, finalmente, o herói se separa do evoluem do mesmo modo: liberação e repartição dos salmões, disposição
pai ou tio, e até lhe deixa uma de suas esposas, em vez de vingar-se dele. do leito dos rios, Dona Grizzly ridicularizada, ou episódio do longo pênis
O que não significa que os Shuswap desconheçam os outros episódios (M₆₈₀b), que M₆₈₀a transforma em “pênis curto” (pois Coiote nele copula na
que os Thompson e os grupos da costa articulam na forma de uma nar- forma de um bebê), enquanto consolida esse episódio com o da liberação
rativa mais rica e coerente. Porém, como também fazem os Lilloet (M₆₇₁) dos salmões. De onde uma série de questões, que convém agora abordar.
em menor grau, transpõem tais episódios para um outro contexto (M₆₈₀a, b,
Teit 1909: 627-30 e 739-41), bem conhecido pelos mitógrafos norte-america-
nos pela rubrica do “anfitrião desajeitado” (bungling host), que já encontra-
mos várias vezes em nosso caminho (cc: 180, 291 n. 1; mc: 68-69), quando
sublinhamos o caráter altamente sagrado que, para a maioria das tribos
norte-americanas, possuem essas narrativas de tom burlesco e muitas vezes
escatológico. Ora, é fácil compreender as razões disso, se as desventuras do
anfitrião desajeitado constituem proposições simétricas que invertem o 10 . Sobre esse episódio, bastante popular nos mitos do noroeste da América do Norte,
ciclo dos trabalhos do demiurgo. Este fez as criaturas animadas ou inani- que já encontramos, cf. supra, p. 288. Para outros exemplos, ver Boas 1891-95: 17, 57, 89,
madas passarem do que eram para o que passaram a ser. O enganador, ao 114 e Hill-Tout 1899b: 547.

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ii. As duas cegas

Li awgle venir l’oïrent,


Erraument d’une part se tindrent,
Si s’escrient, fetes-nous bien,
Povre somes sor toute rien:
Cil est moult povres qui ne voit
“Des trois aveugles de Compiengne” barbazan & méon,
Fabliaux et contes des poètes français, iii, p. 399, v. 30-37,
Paris, 1808

Apresentamos uma enxurrada de material mítico que, embora certamente


não esgote as variantes salish da história do desaninhador, já permite ter
uma ideia de sua economia interna e de sua distribuição. Várias observações
preliminares devem ser feitas a respeito dessas duas questões.
Tanto as versões do interior quanto as da costa atribuem quatro caracte-
rísticas ao herói: é senhor da caça, e portanto também da carne; senhor dos
belos adornos e luxuosas roupas; senhor do fogo que aquece; e, finalmente,
senhor de uma água destrutiva, elemento que ativa para se vingar. Como
senhor do fogo (que só ele sabe fazer ou manter) e como senhor da chuva
e da tempestade, o herói dos mitos salish lembra seu congênere sul-ameri-
cano, tal como nos foi apresentado no mito bororo de referência. Essa é uma
primeira semelhança, que leva imediatamente a voltar a atenção para uma
segunda, a saber, o papel de rolha que M₁ e M₆₆₇a atribuem a tubérculos
ou bulbos comestíveis. O herói de M₁, inicialmente perdido no alto de uma
chapada e vítima de urubus que lhe comem o traseiro, ao descer de volta ao
chão não consegue manter o alimento que ingere, até ter a ideia de tapar o
ânus aberto com uma pasta de tubérculos comestíveis.
Já apontamos a frequência desse motivo no noroeste da América do Norte
(supra, p. 303). O mito thompson (M₆₆₇a) que agora nos serve de referência
o inverte: ao arrancar algo que toma por bulbos comestíveis, e de que não
pode se alimentar, o herói perfura a abóbada celeste e o vento da terra é

372 | As duas cegas | 373


tragado pelos orifícios. Podemos afirmar que se trata de uma inversão por- que nunca, apesar da distância, das dos Klamath e dos Modoc, de que par-
que as pequenas tribos costeiras do Oregon, cujos mitos apresentam especial tiu nossa investigação. Em ambos os casos, um demiurgo, que é ao mesmo
interesse devido à sua posição isolada, favorável à preservação de temas arcai- tempo um enganador, trata de ter um filho por meios próprios: ou o incor-
cos, conjugam a forma reta e a forma invertida do motivo. Os Coos contam pora para novamente dá-lo à luz depois de sua mãe ter morrido numa
que o enganador, privado de intestinos e não podendo reter os frutos que fogueira (entre os Klamath-Modoc e entre os Salish mais próximos, cf. M₅₆₅);
comia, tentou tapar o ânus com raízes de pastinaca selvagem (Jacobs 1940: ou, depois de várias tentativas, consegue uma criança viável (M₆₆₇a, M₆₆₈a,
192; cf. infra, p. 506); mas foi um caule oco, também de pastinaca selvagem, M₆₇₀a, M₆₇₁); ou ainda o futuro pai é engravidado magicamente (M₅₃₂-M₅₃₃,
que o demiurgo utilizou, segundo os Tillamook, para evacuar um alimento M₆₇₇, M₆₇₈). Entre os Klamath e os Modoc, bem como entre vários grupos
nocivo que apenas fingia comer (E.D. Jacobs 1959: 9-10). Qualquer que seja a salish da costa, a criança foi gerada por um casamento incestuoso, conjun-
planta chamada de pastinaca selvagem nessa região da América, e que pode ção abusiva que é redobrada, agravada ou substituída, conforme o caso, por
ser um Sium, um Heracleum ou um Lomatium (= Peucedanum), sempre se outra, de ordem genital em vez de sexual, e que diz respeito a um homem só.
trata de uma umbelífera cujo protótipo sagrado é, na costa e até os Kwakiutl, o Vimos que o nome do herói klamath-modoc, Aishísh, significa “o con-
Peucedanum. Na família das portuláceas, uma relação análoga se verifica entre finado” e evoca sua inclusão temporária no corpo do demiurgo. Os Salish
Claytonia e Lewisia rediviva, que os Flathead, representantes mais orientais também lhe dão um nome, Tô’rtôsemstem em coeur d’alêne (supra, p. 325),
da família salish no interior, consideravam sagrada (A. P. Merriam 1967: 115). Nli’ksentem, Tl’ikse’mtem, N’tlikcu’mtum ou N-kik-sam-tam em thompson,
Parece surgir aí um sistema de plantas, diretamente representadas por seu pro- termos que, segundo nossas fontes (Boas 1917a: 120 n. 1; 1891-95: 18; Teit 1898:
tótipo ou por variantes combinatórias que ocupam um lugar mais modesto 103 n. 43; Hill-Tout 1899b: 554 n. 1), significam “levantado, erguido, elevado”
no seio do gênero ou da família. Tratamos disso em nosso curso de 1968-1969; ou “o escalador”, e remetem à desventura do herói despachado para o céu
retomá-lo sobrecarregaria desnecessariamente nossa discussão aqui. pelo pai. De modo que os dois nomes ou famílias de nomes se correspon-
Outra aproximação aparece, esta própria da América do Norte, entre dem simetricamente: um evoca a conjunção com o corpo do pai, o outro a
os mitos salish que exilam o desaninhador no céu, e os do ciclo chamado disjunção em relação ao mesmo pai, de quem o herói se vê, em dois momen-
de do marido-estrela, ao qual o volume anterior foi em grande parte dedi- tos cruciais da narrativa, abusivamente aproximado ou afastado.
cado. Em ambos os casos, um herói terrestre, homem ou mulher, visita o Já fica claro, pela simetria onomástica, que no seio do vasto grupo pana-
céu e, segundo as versões algonquinas (M₄₃₇,438), desce de volta à terra na mericano que é o mito do desaninhador de pássaros, as versões que inven-
ponta de uma corda, graças a protetores sobrenaturais que lhe recomendam tariamos desde a bacia do rio Klamath até a do Fraser constituem um sub-
manter os olhos fechados até que um pássaro de uma espécie expressamente conjunto, com características de um grupo fechado. A impressão é reforçada
designada seja ouvido. O herói salish aterrissa sobre uma laje de pedra que quando se nota, em ambos os casos, a recorrência de uma sequência ini-
marca o centro do mundo, termo que deve portanto ser tomado numa acep- ciática (supra, p. 58, 60, 101 e M₆₆₇a, p. 331). É definitivamente confirmada
ção espacial; pois bem, pelo menos uma versão ojibwa do mito do marido- quando se constata que somente as versões salish permitem resolver um
estrela precisa que o buraco da abóbada celeste pelo qual as esposas dos enigma próprio do ciclo de Dona Mergulhão que, como mostramos, trans-
astros desceram de volta à terra correspondia ao lugar das Plêiades, cuja cul- forma o do desaninhador.
minação no começo da noite marca a mudança de ano; ou seja, um centro No estudo que dedicou ao primeiro desses ciclos e que discutimos (supra,
do mundo também, mas dessa vez numa acepção temporal (M₄₄₄b, cf. omm: p. 52-53), Demetracopoulou se interroga quanto à recorrência, em quase
202). A importância dessas confluências se revelará quando discutirmos as todas as versões, de um detalhe cuja aparência gratuita intriga: a heroína
versões salish e vizinhas do ciclo do marido-estrela juntamente com as do incestuosa descobre o irmão mais novo, que os pais mantinham escondido,
desaninhador em que o herói desposa uma criatura celeste (infra, p. 505-26). graças a um cabelo que encontra, que é mais longo do que os de todos os
Por ora, preferimos concentrar a atenção na região mais restrita que outros membros da família. Em desespero de causa, nossa autora decreta
estamos percorrendo desde o início deste livro, mas agora considerada em que o detalhe é arbitrário: “nem explica nem justifica a série de episódios de
sua totalidade. Com as versões thompson e lilloet, chegamos mais perto do que faz parte” (Demetracopoulou 1933: 121).

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Ora, as versões setentrionais do mito do desaninhador também insistem Mergulhão, simétrico ao do desaninhador, um rapaz ricamente vestido seja
na longa cabeleira do herói, e dão a ela uma função pertinente na narrativa. afastado pela família dos desejos anti-sociais de sua irmã, que só podem se
M₆₇₀a, por exemplo, descreve o herói gelado no topo da árvore usando os manifestar abertamente quando a contrapartida natural da conotação ves-
longos cabelos para cobrir o corpo como um casaco, para se proteger do frio. tuária do herói — sua longa cabeleira — revela sua presença.11
M₆₇₇, em compensação, faz com que ele os perca, e volte para a terra careca;
o primeiro cuidado de sua esposa fiel será restituir-lhe a cabeleira perdida. !
Entre os Chilcotin, índios de língua atabascana vizinhos dos Lilloet e dos
Shuswap, o mito do desaninhador se enfraquece como antes de desaparecer, Passemos agora à consideração do mito salish em detalhes. As versões salish
mas o incidente é cuidadosamente preservado: o herói entrelaça as penas mais ricas começam com as tentativas do enganador de fabricar um filho,
encontradas no ninho e seus próprios cabelos para improvisar um casaco em número de três ou quatro, conforme o caso:
contra o frio (M₆₈₁, Farrand 1900: 29-30). O que pode isso querer dizer, a
não ser que o herói, sempre descrito como dono de belas roupas, conserva M₆₆₇a: argila resina pedra
em seguida sua conotação ligada ao vestuário ainda que, no estado de nudez Thompson M₆₆₈a: argila resina pedra madeira
em que se encontra no topo da árvore ou do penhasco, só esteja vestido sub M₆₇₀a: resina pedra fibras vegetais
specie naturae? A longa cabeleira, vestimenta natural, opõe-se assim às rou- Lilloet M₆₇₁: argila resina pedra casca de álamo
pas manufaturadas como cru se opõe a cozido, confirmando mais uma vez
a passagem do código alimentar ao código do vestuário, para a qual temos Se desconsiderarmos as ligeiras diferenças na quarta coluna, que podem
constantemente chamado a atenção. Entretanto, vimos que algo análogo já estar ligadas a dificuldades de tradução, apenas a ausência do filho “lenhoso”
transparecia em M₁, em que o herói colocado na mesma situação começa em M₆₆₇a e a do filho “terroso” em M₆₇₀a colocam um problema. É claro que
caçando lagartos para aplacar a fome e prende o excedente no cinturão e nas pode se tratar de esquecimentos em ambos os casos mas, por desencargo
braçadeiras. Logo os bichos começam a apodrecer, e ei-lo vestido de podri- de consciência e ainda que o exercício possa ser fútil, vamos ver se é possí-
dão, também ela atinente à ordem natural, e que apresenta uma indubitável vel colocar esse traço em correlação com outros. A intriga qualifica três dos
analogia com a calvície que afeta o herói de M₆₇₇, uma condição que, como filhos em relação à água: o primeiro se desfaz, o terceiro afunda (exceto em
mostramos há tempos (omm: 149-50), o pensamento americano costuma M₆₆₇a, que o poupa dessa prova) e o quarto flutua. Apenas o filho de resina
associar ao apodrecimento. é qualificado em relação ao calor do sol. A oposição pertinente é, portanto,
Tudo isso também já existia, implicitamente, nos mitos dos Klamath e aquela entre céu e água. Mas a própria água apresenta diversas conotações,
dos Modoc. Não apenas porque o herói neles inventa os ornamentos de positiva ou negativa, conforme permite ou não que a criatura sobreviva, e é
espinhos de porco-espinho, peças marcantes do vestuário, assim como seu qualificada em termos de baixo, meio e alto, conforme a criatura afunda, se
homólogo dos mitos salish cria as fibras têxteis (também para recompensar dissolve no elemento líquido ou permanece na superfície. Em M₆₆₇a — sem
as criaturas que o fizeram descer de volta à terra), mas porque esses mitos filho de madeira e na qual o filho de pedra é viável — faltam as funções “alta”
meridionais se empenham em insistir na cabeleira excepcionalmente longa e “baixa” da água, permanecendo apenas a função “média” que, na ausência
de seu herói. Segundo M₅₃₉ (Curtin 1912: 95-117), os cabelos do menino do filho de argila, é a que falta em M₆₇₀a.
escondido vão até o chão, e M₅₄₃ (ibid.: 28) contém uma observação revela- Ora, existe uma outra diferença entre essas versões: elas atribuem ao
dora, no sentido de opor como termos homogêneos de um par, a usurpação herói, como esposas, ora Mergulhão e Pato Selvagem, ora Águia e Pato. Já
das belas roupas e a abundância de caça: “O velho Kumush (=Kmúkamch)
vive com Isis (=Aishísh) e, às vezes, finge ser ele mesmo Isis. Veste as roupas 11 . Estendendo o mesmo raciocínio a um outro mito (M₆₅₀a; supra, p. 282), deduz-se
de Isis e tenta cantar como ele. Mas não há como se enganar, pois quando da assimilação dos cabelos e uma vestimenta natural e das equivalências já assentadas
Isis está presente, sempre há carne fresca de cervídeo pendurada nas árvo- entre nu e cru e vestido e cozido, que o fogo em estado selvagem deve situar-se na
res em torno da casa”. Consequentemente, é normal que, no ciclo de Dona cabeleira de sua primeira detentora.

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que a esposa Pato tem sempre o papel de má, a oposição pertinente se trans- quanto às esposas assim como, num modo maior, invertem-se os mitos
fere para a outra esposa, Águia ou Mergulhão. São ambas aves, de modo que thompson (Hill-Tout) e nez percé.
podemos desconsiderar essa característica invariante e operar mais uma Voltemos aos filhos artificiais. Se a identidade das esposas é pertinente
redução, chegando então a uma oposição entre céu e água. Sabemos que, em nossos mitos, como sugere a discussão acima, poderia ser significativo
entre as aves aquáticas, o mergulhão ocupa uma posição eminente, e que o que, naquele em que falta o filho de madeira, as esposas se chamem Mergu-
mesmo ocorre com a águia entre as do céu supraterrestre. lhão e Pato, e que se chamem Águia e Pato naquele em que falta o filho de
Alargando o paradigma das esposas, tal como ilustrado pelos mitos que argila. Pois, em relação à água, o filho de madeira ocupa a posição alta, que
esta quinta parte se dedica a comparar, obtém-se: é também a da águia em relação ao céu, e ambos faltam na mesma versão.
Simetricamente, o filho de argila ocupa a posição mediana em relação à água,
(+) (–) e falta naquela das duas versões que tampouco menciona, na categoria das
Nez Percé: Besouro, Gafanhoto Cisne, Pata aves aquáticas, as que são tributárias da rede hidrográfica e que, em relação
Coeur d’Alêne: Cisne Andorinha-do-Mar às aves migratórias, podem ser qualificadas de “médias”. É possível, portanto,
Thompson (Teit): Mergulhão Pata, Marreco [aparece aqui pela ₁a. vez?] que tais anomalias nos detalhes estejam ligadas.
Thompson (Hill-Tout): Águia Pata
!
Infelizmente, não é possível incluir a versão lilloet, em que nada permite
identificar as esposas do herói, das quais só se sabe que provêm de um povo Passaremos agora para a visita ao céu, que nos reterá por algum tempo.
de cesteiros. Não obstante essa lacuna, fica evidente que as esposas nez percé, A descrição que dela fazem os mitos corresponde bem à imagem que os
de um lado, e as esposas thompson da versão Hill-Tout, do outro, ilustram Salish tinham do mundo celeste: uma vasta planície nua incessantemente
um afastamento máximo, entre inseto subterrâneo e ave aquática ou ave varrida pelo vento e onde faz muito frio. Para melhor captar os mecanismos
supraterrestre e ave aquática. Além disso, essas versões também se opõem das transformações míticas, vale a pena notar que os vizinhos imediatos dos
uma à outra na medida em que a boa esposa é num caso a subterrânea e, no Salish de Vancouver a oeste, isto é, os Nootka, invertem metodicamente essa
outro, a celeste; de modo que prevalece um afastamento entre elas, maior do imagem: segundo eles, o mundo celeste se beneficia de uma perpétua sere-
que o que distingue cada uma delas de sua companheira em ambos os casos. nidade, as canoas vogam elegantemente por águas tranquilas e não há gelo
Em compensação, as versões coeur d’alêne e thompson (Teit) ocupam nem neve (Sproat 1868: 209). Os Salish, por sua vez, opõem ao frio celeste o
uma posição mediana em relação às precedentes, pois têm em comum o calor intenso que outrora reinava sobre a terra (Teit 1930a: 176; 1900: 377). Os
fato de oporem esposas que são, ambas, aves aquáticas: Cisne e Andorinha- Tsesaut, pequena população de língua atabascana encravada na costa, acha-
do-Mar ou Mergulhão e Pato. Cisnes e patos são migratórios, partem em vam o mesmo (Boas 1895: 569). Na origem, portanto, de um ponto de vista
direção ao sul no inverno. Mas os mitos nos ensinam que, migratórios ou climático, a terra e o céu eram completamente um ou completamente outro,
não, andorinhas-do-mar e mergulhões interessam ao pensamento indígena e o papel do ou dos demiurgos consiste em tornar a terra alternadamente
por outros comportamentos: as andorinhas-do-mar sobem os rios acompa- um e outro, enquanto o céu, tornado para sempre inacessível, já não precisa
nhando os salmões, enquanto que os mergulhões circulam entre os lagos do mais ser imaginado, liberando para o mundo terrestre a posição semântica
interior e da costa, em função das mudanças de tempo. Consequentemente, que, no tempo em que se podia ir até lá, o qualificava de modo distintivo em
Mergulhão e Andorinha-do-Mar formam um par no eixo leste-oeste e rela- relação à terra cá embaixo.
tivamente baixo, ao passo que Cisne e Pato formam outro no eixo norte- A planície celeste, dizem os Thompson, possui o aspecto de um planalto
sul, no qual também voam mais alto quando das migrações sazonais. Porém, que termina abruptamente, exceto, ao que parece, ao norte, pois esses índios
como os mitos coeur d’alêne e thompson invertem as valências semânticas concebem a terra como um plano inclinado que se aproxima do céu e se
das esposas dentro do par (Cisne: Andorinha-do-Mar:: Mergulhão: Pato), une a ele no setentrião (Teit 1898: 23, 25, 104; 1900: 337, 341). Também neste
pode-se dizer que, de um modo menor, esses mitos se invertem entre si caso uma outra tribo inverte a imagem cosmológica: segundo os Twana,

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população salish de Puget Sound, é o céu que pende e se aproxima da terra sabe bem por onde começar. Apresentaremos, pois, desordenadamente, uma
até tocá-la, a oeste e ao sul (Eells 1964: 681). série de considerações, na esperança de que encontrem seus lugares por si sós.
No céu, os primeiros encontros do herói são marcados pela hostilidade, A palavra grouse [animal em que as velhas se transformam, aqui traduzida
aranhas canibais ou guerreiras, objetos manufaturados que se revoltam con- por tetraz; n.t.], emprestada pelo francês do inglês, designa na América do
tra seus usuários. Já analisamos a transformação tocante à caça e ao caniba- Norte várias aves da família dos tetraonídeos, e mais comumente os tetrazes
lismo de um lado e à indústria têxtil do outro (supra, p. 326). De modo que e galinhas-do-mato. A locução fool-hen parece ser indistintamente aplicável
basta aqui acrescentar que, se as hipóteses que formulamos naquela ocasião aos jovens tetrazes e a uma espécie em particular, o Canachite canadensis
estiverem corretas, as primeiras sequências celestes significam que, disjunto ou franklini, “assim nomeado devido à sua despreocupação em relação ao
da humanidade pela malvadeza de seu pai, o enganador, o herói regride homem... e que se deixa matar a pedradas ou pauladas...; às vezes, pode-se até
para uma condição pré- ou anti-cultural, definida pela equivalência entre pegá-las por uma pata” (Bent 1963, Gallinaceous Birds: 136, 140; Pearson 1936,
cru e nu. A partir desse grau zero, começa sua obra própria, que é a de um II: 16). As mulheres okanagon capturavam essas aves com um bastão munido
mediador, inaugurada por ele ao decretar que os objetos técnicos não mais de um simples laço de fio na ponta, e as davam de comer aos filhos pequenos
poderão manifestar insubordinação. Não seria esse, efetivamente, um auge para torná-los dóceis (Cline 1938: 24, 120). Os Thompson, mais altivos, faziam
no estado de cultura, cujo terminus ad quem se encontra assim delimitado? o raciocínio inverso, e proibiam os maridos de mulheres grávidas de comê-las,
Resta a preencher o quadro em si, uma vez traçados seus contornos. para evitar que a criança viesse a ser pusilânime como a ave (Teit 1900: 304).
Como veremos mais adiante, o episódio seguinte, centrado no encontro A mesma técnica de captura descrita para os Okanagon e os Thompson existia
com as duas cegas, é extremamente difundido na América do Norte. Porém, entre os Flathead (Turney-High 1937: 113), e devia ser ainda mais amplamente
antes de alargarmos o campo de visão, convém examinar o motivo no con- empregada, já que foi também observada entre os índios do Similkameen
texto reduzido em que primeiro o encontramos. Uma versão particular- (Allison 1892: 307) e entre os povos atabascanos ainda mais ao norte (Morice
mente concisa (M₆₇₀c, Boas 1891-95: 17-18) retém o essencial: no céu, o filho 1906-10, t. 5: 124). Mitos salish descrevem mulheres fugitivas abandonadas à
de Coiote visita duas velhas que são tetrazes; uma delas reclama que o herói própria sorte, que conseguem sobreviver comendo bagas e fool-hens (Boas
cheira mal, ele se irrita, joga-as longe e as transforma em pássaros. 1917a: 39). Outros mitos explicam que a ave ficou medrosa porque, humana
As velhas estão uma diante da outra, cada qual de um lado de uma na origem, foi mantida prisioneira por um longo tempo (Elliott 1931: 174-75).
fogueira, disputam um talo de cânhamo ruim que cresce ao longo do solo e É atribuindo a ela essa natureza de caça fácil e ao alcance da mão, até mesmo
vai de uma à outra (M₆₆₇a), ou então passam uma para a outra (ou melhor, para mulheres e crianças, que M₆₆₇a sela o destino de uma das velhas, mudada
não passam, devido à intervenção malandra do herói) um alimento ruim, em Tetraz de Franklin nas forestas em que a ave passa o inverno (Bent 1963,
consistindo de madeira ou pedra podre. O herói surrupia esse alimento na l.c.: 141). Em seguida, o herói transforma a segunda velha em ruffed grouse,
passagem, de mulheres que não podem ver porque são cegas, e acusam-se Bonasa umbellus ou Galinha-do-mato de crista que, como confirma a orni-
mutuamente de inabilidade ou má vontade (M₆₆₇a, b; M₆₇₀a; M₆₇₆). Porém, tologia, se distingue da outra espécie por ser mais desconfiada dos homens
se não podem ver, cheiram, e principalmente nas versões menos pudicas, em (Godfrey 1967: 129). Por isso o herói lhe dá um destino diferente: ela engravi-
que o herói coloca o próprio pênis na mão da lograda em lugar da comida, dará ao escutar asas batendo contra um tronco. Com efeito, o macho da espé-
esta protesta porque o orgão fede. Sente-se desde aqui que o episódio opera cie, também chamado de drumming grouse, “era chamado por certos índios de
simultaneamente com vários registros, tecnológico, visual, alimentar, sexual, ‘ave carpinteira’, pois achava-se que batia as assas em troncos para produzir o
olfativo etc. Irritado com o comentário desagradável das velhas, o herói as barulho de tambor” (Bent 1963, l.c.: 143). Audubon, que também fala do tam-
joga em arbustos onde, conforme M₆₇₇a, elas se transformam em duas espé- bor de madeira (drumming log), precisa que só o macho tamborila (1868: 146),
cies de tetrazes, uma fácil de capturar e a outra sujeita a um modo muito e Seton (1911, cap. ii) descreve uma galinha-do-mato de crista “numa pose
particular de fecundação (supra, p. 330). soberba... tamborilando sobre um tronco caído”.
Todos esses elementos estão tão intimamente imbricados e a interpretação Embora a tamborilagem em questão faça parte unicamente da parada
de cada um deles é solidária da de todos os demais a tal ponto que não se nupcial e os autores supramencionados tivessem plena consciência quanto

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ao seu mecanismo, em que o tronco não desempenha papel algum, a não essa pessoa ao risco de queimadura. Um mito, em cujos detalhes não entra-
ser o de poleiro, vê-se que, também nesse caso, a característica distintiva remos, e de que existem numerosas versões (M₆₈₂a-e; Boas 1917a: 22-25; Teit
invocada pelo mito corresponde a crenças indígenas bem atestadas, que se 1898: 64-66; 1909: 673-77; Hill-Tout 1911: 158-61; Farrand 1900: 41-42) põe em
baseiam, pelo menos em parte, em dados da observação. Mas por que o mito cena dois irmãos, Marta e Marta-Pecã, às voltas com uma mulher misteriosa
escolhe apenas duas características, tão diferentes uma da outra, para definir que lhes oferece alimento por cima de uma fogueira; no momento em que
aves muito próximas e que, na forma humana que lhes atribui inicialmente, se inclinam para pegá-lo, ela os puxa pelas mãos e os joga no fogo. Um dos
eram exatamente iguais uma à outra? irmãos não consegue evitar a manobra, mas o outro salta por cima da fogueira,
No primeiro caso, trata-se de uma presa que, de modo anormal, tolera a derruba a mulher e toca-lhe as partes sexuais; e será a vez dela, vencida, de se
contiguidade física com o caçador, e, no segundo caso, de uma fêmea que, de apresentar no acampamento dos dois irmãos para se casar com o vencedor.
modo não menos anormal, não requer a contiguidade física com o macho Portanto, se a contiguidade direta entre o alimento e o fogo de cozinha
para ser fecundada, pois que concebe à distância, pela audição, suprema- tem para o consumidor consequências maléficas, benéficas são, ao contrá-
mente eficaz no caso dela mas, ao passo que a outra deixa-se capturar facil- rio, as consequências da contiguidade física entre um homem e uma mulher.
mente, pois que nem mesmo ouve a aproximação do caçador. De modo Todos os Salish conheciam um modo particular de casamento chamado de
que, quer no plano alimentar, quer no sexual, ambas as aves sofrem de um “por toque”. Os da costa organizavam danças de caráter religioso durante as
transtorno que afeta a categoria da contiguidade. Quando o transtorno se quais um homem podia tocar a mão de uma dançarina; o casamento seguia
manifesta por excesso, como ocorre na fecundação auditiva, leva a espécie automaticamente (Barnett 1955: 206). O mesmo ocorria, no interior, entre
a se reproduzir, a propagar a vida, portanto. Quando se manifesta pela falta, os Lilloet onde a touching dance era um prelúdio ao casamento (Teit 1906:
como ocorre na caçada aproximada, acarreta para a outra espécie o resul- 268, 284), e entre os Thompson (Teit 1900: 323-24; Hill-Tout 1907b: 191-92),
tado inverso, ou seja, a morte. para quem qualquer contato acidental acarretava o mesmo resultado; e tam-
Confirmaremos mais adiante (infra, p. 481-86) essa interpretação mos- bém entre os Flathead (Turney-High 1937: 88-89), e os Okanagon: “Se um
trando que, nessa região da América setentrional, a ave chamada de faisão homem visse uma jovem púbere despida ou se a tocasse, tinha de se casar
(pheasant), mas que na verdade é uma galinha-do-mato,12 desempenha o com ela imediatamente... caso contrário, ela não tinha outra escolha que não
papel de intermediário entre o mundo dos vivos e o dos mortos, pois per- o suicídio, mesmo que apenas suas pernas tivessem sido vislumbradas... Às
tence a ambos e é, em si mesma, literalmente, meio viva e meio morta. Em vezes, rapazes recorriam a esse meio para obterem em casamento moças que
O cru e o cozido (cc: 209-13), tínhamos obtido dedutivamente o mesmo teriam recusado suas propostas” (Cline 1938: 114).
esquema quando procurávamos determinar, por uma série de comutações, A presença, entre os Salish, de toda uma filosofia da contiguidade tam-
o lugar que cabe à “perdiz” sul-americana — também um galináceo — no bém resulta, a contrario, de outras indicações. Um mito chehalis da Colúm-
campo semântico formado pelos animais prestativos; não é pouca a satis- bia Britânica (M₆₈₂f-g, Hill-Tout 1904b: 340; 1907b: 217) conta que um jovem
fação com que encontramos o mesmo esquema a milhares de quilômetros, viúvo tomado pela dor foi até o país dos mortos para procurar a mulher e
verificado pelos mitos salish de modo atual e não mais virtual, como na trazê-la de volta para entre os vivos. Os mortos concordaram, contanto que
América do Sul. na viagem de volta ele se abstivesse de qualquer contato sexual e acendesse
Sentadas cada uma de um lado de um fogo, as velhas cegas disputam uma todas as noites uma grande fogueira, e os dois se deitassem cada um de um
planta textil de baixa qualidade que cresce longitudinalmente por baixo, ou lado, sem tentarem se unir. Na realidade, os esposos squamish não dormiam
um alimento podre que uma estende à outra por cima. Ora, para os mitos próximos, e sim em ângulo reto, com os pés se tocando, a menos que a falta
dessa região, oferecer a alguém alimento por cima da fogueira significa expor de espaço os obrigasse a se deitarem um no sentido oposto do outro, mas era
raramente o caso (Hill-Tout 1900: 486).
12 . “Os colonos ingleses na América às vezes chamavam de ‘faisão’ a galinha-do-mato Pois bem, a cegueira é uma condição que obriga à contiguidade aque-
de crista” (Bent 1963, l.c.: 310). “Propriamente falando, a galinha-do-mato de crista les que sofrem dela, já que, sem poder ver, é preciso tocar. De modo que já
(Bonasa umbellus sabini), mais comumente chamada de faisão” (Ballard 1929: 92 n. 80). pressentimos que a transferência de um pseudo-alimento através do fogo

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entre cegas constitui a forma mínima — ultra-curta, e por isso negativa — bem ao norte (M₆₈₃a, Boas 1891-95: 241), a especiação — em outras pala-
da periodicidade espaço-temporal, dando sequência à disjunção máxima, vras, a não-contiguidade introduzida no seio do reino animal — precedeu à
na ordem espacial, que representa a transferência do herói da terra para o dissipação do nevoeiro original que unia o céu e a terra confundindo a luz
céu. Essa formulação permite fundir num único esquema os dois episódios e a escuridão, e ao aparecimento do sol visível. Os Thompson (M₆₈₃b, Teit
consecutivos dos objetos revoltados contra seus donos e das velhas cegas em 1912b: 313-14) tornam o aparecimento de uma descontinuidade anatômica
M₆₆₇a, e, em M₆₆₄a, a caça por defecação das aranhas hostis, outro exemplo (diferenciação dos grupos indígenas pela cor da pele) consecutivo ao roubo
de curto-circuito, que conjuga alimento e excremento. É mais tarde, junto do sol visível por Coiote e Antílope, prelúdio de sua própria separação (a
das aranhas prestativas, que assistimos à recuperação da periodicidade tem- segunda espécie, Antilocapra, frequentava a encosta oriental das Rochosas).
poral pelo herói; mas com a condição de que ele, ao descer do céu de volta Por outro lado, vários povos salish da costa (M₃₄₉, Adamson 1934: 71, 233, 346,
para a terra (e ao contrário do que aconteceu na viagem de ida) respeite 370) afirmam que o nevoeiro permitiu que o ladrão do disco solar fugisse,
quatro pausas e em cada uma delas permaneça algum tempo. ao tornar seus perseguidores praticamente cegos, já que não conseguiam ver
Outros mitos da região contribuem para evidenciar a mesma problemá- nada. Vislumbra-se aqui uma equivalência entre várias formas de disjunção
tica. No início de M₃₆₅a e M₃₈₂, mitos salish da costa, Coiote, solitário, separa ou conjunção anatômica — traseiro separado do dianteiro, baixo unido ao
de seu corpo o próprio traseiro, a fim de ter um assistente para vigiar sua alto, olhos alternadamente separados ou unidos — e, entre o alto e o baixo, o
barragem de pesca enquanto ele mesmo fabrica uma canoa. Mas o traseiro céu e a terra, o papel alternadamente disjuntivo ou conjuntivo do nevoeiro,
se mostra incapaz de distinguir um salmão de um monte de espuma, depois termo mediador que conjuga extremos e os torna indiscerníveis ou se inter-
de folhas mortas ou de um pedaço de madeira boiando. Quando ele final- põe entre eles de modo que não podem mais se aproximar. O nevoeiro se
mente consegue pegar um peixe, Coiote, em represália, come-o sem ofere- apresenta, portanto, como o contrário de uma fogueira (cc: 299).
cer nada a seu auxiliar que, descepcionado, franze os lábios. Daí provém o No caso específico que nos ocupa, ilustrado entre os Salish pela histó-
aspecto franzido do ânus, depois de Coiote o ter reposto no lugar, a partir ria do desaninhador de pássaros, a cegueira, comparável por seu efeito ao
de então diferente da boca, quando antes eram completamente iguais, já que, nevoeiro, que torna praticamente cegos os que são por ele envolvidos — a
na origem, o ânus possuía, como a boca, o dom da palavra (Adamson 1934: menos que, sem poderem se ver, possam se tocar — constitui uma mani-
158-59). Uma segunda versão do mesmo mito (M₃₇₅b, Adamson 1934: 173-74) festação entre outras da contiguidade. Ora benéfica, ora maléfica, a conti-
substitui esse episódio por um no qual Coiote, que ficou cego, fabrica olhos guidade mantém nos mitos uma relação correlativa com diversos modos da
de flor que não valem grande coisa, e os troca pelos do caramujo, que desde especiação, isto é, com a introdução de um princípio de descontinuidade
então ficou cego. De modo que ou Coiote separa a parte inferior da superior, entre as espécies vegetais ou animais, entre as raças humanas, ou mesmo no
que antes eram equivalentes no sentido de que ambas falavam, e resulta daí seio de um meio qualquer ainda homogêneo, tal como o espaço ou o tempo.
a diferenciação anatômica entre a boca e o ânus, ou ele efetua uma troca de É notável que, nas muitas variantes de que dispomos para M₆₈₃, um traço
olhos, da qual resulta a diferenciação zoológica entre espécies dotadas ou seja constante desde os Thompson (Teit 1898: 32-34) até os Wishram (Sapir
não de visão. Ora, essa disjunção inicial corresponde, nos mitos chinook que 1909a: 67-75): os filhos de Coiote, que morrem um após o outro ao se reveza-
já discutimos (M₆₁₈ e M₆₂₀, supra, p. 262), à conjunção terminal que ocorre rem para carregar o sol visível depois de tê-lo roubado, têm nome, mas os de
quando Dona Grizzly, ao pintar o próprio rosto com seu sangue menstrual Antílope, que logram realizar a operação, não. 13 No tocante à individuação,
une, por assim dizer, sua parte de baixo à sua parte de cima. Em ambos os os primeiros são distinguidos, os outros, confundidos.
casos, surge uma consequência mediata ou imediata, na forma de separação
anatômica, zoológica ou botânica: diferenciação entre as partes do corpo e,
13 . Sobre esse contraste, que os mitos sublinham insistentemente, ver Cowlitz: M₃₄₈,
um pouco mais tarde, das espécies de peixes em M₃₇₅ (supra, p. 262); dife- Jacobs 1934: 168-69; Thompson: M₆₆₈a, Teit 1912b: 296; Coeur d’Alêne, Reichard 1947:
renciação entre as espécies de madeira em M₆₁₈, um motivo que ressurge, 73; Sanpoil, Ray 1933: 177. Segundo os Shuswap (Teit 1909: 597), as estrelas sem nome
de modo significativo, no grupo de mitos que agora estamos discutindo são terráquios que subiram ao céu e foram mortos pelo povo de cima. A questão será
(cf. M₆₇₂, supra, p. 337). Segundo os Bella Coola, de língua salish mas isolados retomada sob esse ângulo, infra, p. 419-21.

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A contiguidade se apresenta no pensamento salish, portanto, como modo pescadores de baleia davam uma quantidade invariável de carne, um pouco
de uma categoria mais ampla, a de continuidade, cuja teoria esboçamos menos para uma do que para a outra, o que alimentava sua irritação.
várias vezes nos volumes anteriores (ver índices remissivos, em “croma- De modo que, ao termo de um deslocamento horizontal em vez de uma
tismo” e “contínuo”). A conexão concebida pelos Salish entre contiguidade ascensão vertical, o herói tillamook também encontra duas velhas cegas
e cegueira também é ilustrada pelos ritos: os Thompson prescreviam que se entre as quais reina o desentendimento. A diferença em relação às versões
mantivesse os olhos fechados durante as invocações às primícias — salmões, salish mais ao norte reside no fato de as velhas aqui serem desiguais de saída
frutos ou raízes comestíveis — e durante as orações cotidianas. Referindo-se (pois que recebem quantidades diferentes de alimento), quando entre os
aos Steelis (= Chehalis da Colúmbia Britânica), Hill-Tout observa (1904b: Thompson, elas o são na chegada, transformadas em duas espécies distin-
330; 1907b: 169-70): “Manter os olhos fechados durante as encantações e os tas de tetrazes, mas que são igualmente, como mostramos, qualificadas pelo
ritos mágicos era, para os Salish, uma regra essencial da liturgia. O fracasso excesso ou pela falta, mas quanto à audição, na forma passiva. Pois uma ouve
resultaria inevitavelmente se não fosse respeitada. Por isso, havia ‘vigias de tão bem que basta uma batida de asas para emprenhá-la, e a outra, tão mal
olhos’, armados com longas varetas, prontos para bater em qualquer pessoa que nem percebe a chegada do caçador. Aqui, a relação acústica é ativa: uma
que levantasse as pálpebras durante os ritos para o primeiro salmão”. das mulheres fala muito depressa e por isso se torna inabordável, ao passo
que a outra, que fala lentamente é, como o primeiro tetraz, fácil de abordar.
! As crenças dos Puyallup-Nisqually, que são Salish do sul de Puget Sound,
preservam o contraste aplicando-o a animais como corujas, esquilos e gaios.
Outros aspectos do episódio das velhas cegas, não menos importantes, emer- Estes últimos pressagiam acontecimentos funestos quando falam colérica
gem quando se o aborda a partir das versões tillamook. Esse grupo de língua e precipitadamente, ou eventos favoráveis, quando falam lentamente, num
salish, separado do restante da família e isolado ao sul do estuário do Colúm- tom calmo e alegre (M.W. Smith 1940: 218).
bia, preservou elementos certamente arcaicos de um patrimônio mítico O motivo das portas que abrem e fecham, ou symplégades, pertence a um
comum, e ao mesmo tempo elaborou-os seguindo vias que lhe são próprias. considerável paradigma mítico cujo inventário foi realizado por S. Thomp-
Contam os Tillamook (M₆₈₄a, Boas 1898a: 30) que seis homens resolve- son (1919: 298), e que se estende por uma vasta área da América, exatamente
ram correr o mundo. Certo dia, chegaram diante de uma porta que ficava na forma em que o encontramos. Entre os Apache Jicarilla e Lipan (M₆₈₅a, b,
abrindo e fechando com a rapidez de um raio. Um dos homens conseguiu Russell 1898: 256-71), por exemplo: duas velhas cegas, sentadas cada uma de
atravessar o obstáculo saltando e, do outro lado, encontrou duas mulhe- um lado de uma fogueira, agitavam um bastão acima da panela para proteger
res cegas que possuíam grandes provisões de carne de baleia. O homem as seu cozido, mas apesar disso meninos conseguem roubá-lo; colocam uma
pegou e lançou pela porta; um pedaço chegou até seus companheiros, outro panela vazia no lugar e, como ela soa oca, elas acham que a água evaporou
ficou preso no batente. Ele quis voltar, mas, na passagem, metade de seu tra- e que o cozido está pronto; resolvem fumar enquanto esperam que esfrie,
seiro foi cortada. A ferida foi tratada com emplastros de argila. mas seu cachimbo também é surrupiado; as velhas acusam uma à outra de
Segundo uma versão mais recente (M₆₈₄b, E.D. Jacobs 1959: 6-7), no ter fumado todo o tabaco e comido todo o cozido; brigam e batem uma na
decorrer de suas peregrinações, o demiurgo Gelo, esfomeado, encontrou um outra... Mesmo em mitologia, duas negações valem uma afirmação. O ou os
povo de cestos repletos de víveres que lhe deram uma surra (cf. M₆₆₇a). Em heróis conseguem neutralizar as duas velhas porque elas introduzem no sis-
seguida chegou diante de duas casinhas; a porta da primeira abria e fechava tema dois termos negativos: opondo-se uma à outra devido à sua negaivi-
rapidamente, no ritmo vocal da proprietária, que falava muito depressa e se dade, elas não podem se opor juntas ao herói, como as portas que abrem e
gabava de ter mais carne de baleia do que a vizinha que, por sua vez, falava fecham que, também porque são duas folhas, são menos intransponíveis do
lentamente, porque estava desgostosa, e sua porta batia nesse ritmo. Gelo que seria uma folha única que não “batesse” na outra e ficasse sempre fechada.
conseguiu entrar, comeu tudo o que pode e levou o resto da carne para Esse caráter de reciprocidade negativa inerente ao mitema das duas cegas,
os companheiros. Ao atravessar a porta, perdeu parte da nédega e fez um e que permite reconhecer nele uma forma limite das portas que abrem e
curativo com folhas. As mulheres eram duas velhas solteiras, a quem os fecham, também sobressai em outras versões, nas quais aparece isoladamente.

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Mencionaremos apenas dois exemplos. Os Menomini, a quem já recorremos Na série mítica M₃₇₅ etc. o enganador Gaio-Azul (Cyanocitta sp.) conse-
(M₆₅₇a, b, supra, p. 298), contam a história de dois cegos que são transporta- gue passar pelas portas que abrem e fecham. Porém, a depender das versões
das, para protegê-las de ataques inimigos, para a margem afastada de um lago. — que nesse aspecto se repartem em vários grupos — deixa nelas penas da
Como viviam isolados e sozinhos, havia uma corda estendida entre a casa e a cauda (Adamson 1934: 161), danifica a crista, que amassada para a frente
margem do lago, para guiá-los quando fossem pegar água. “Um dia, um dos (ibid.: 358), ou é atingido por uma das folhas da porta, que lhe achata a nuca
cegos cozinhava enquanto o outro pegava água e, no dia seguinte, invertiam os (ibid.: 375; Ballard 1929: 73; Haeberlin 1924: 372-75). Em certos casos, ele
papéis, para que o trabalho fosse repartido equitativamente. Sabiam exatamente consegue imobilizar as portas colocando uma estaca atravessada entre elas
a quantidade de comida de que precisavam em cada refeição, de modo que a (Adamson 1934: 175; Ballard 1929: 73).
dividiam em duas porções iguais, que comiam no mesmo prato”. Surge Guaxi- Se aceitarmos a hipótese de que as duas velhas cegas são uma forma
nim, personagem enganador que se diverte perseguindo-os, deslocando a corda limite das portas que abrem e fecham, será significativo o fato de seu visi-
que um estava usando como guia, comendo toda a comida do outro, e batendo tante poder impunemente colocar o próprio pênis na mão de uma delas.
nos dois. Tanto fez que os dois cegos acabaram brigando um com o outro, e Com efeito, na série simétrica M₃₇₅ etc. — que substitui um exílio no céu
Guaxinim os repreende: “Vocês não deveriam acusar um ao outro com tanta por uma abdução no mar, e uma ascensão no eixo vertical por uma trans-
pressa” (M₆₈₆a, Hoffman 1893: 211-12; cf. M₆₈₆b, Saulteaux, Young 1903: 26-29; lação no eixo horizontal — pelo menos uma versão (M₃₇₅f, Haeberlin 1924:
M₆₈₆c, Ojibwa, Radin 1914: 80; M₆₈₆d, Arapaho, Dorsey & Kroeber 1903: 277). 372) descreve Gaio-Azul com o aspecto de uma velha avó de nuca achatada,
Os Paviotso, que são Paiute setentrionais instalados no norte e oeste de ou seja, uma imagem que inverte em três planos a de um pênis — criatura
Nevada, situam os dois personagens cegos entre as estrelas: “postados cada feminina, não marcada quanto à capacidade geradora em razão de sua idade
um de um lado de uma rede para pegar lebres e da qual pendiam fios que e, finalmente, avó atingida no occipício, que por isso perdeu sua saliência
eles amarravam nas orelhas para perceberem os movimentos da presa assim natural —, ao passo que, entregue a uma avó, o pênis do herói, saliência
que era capturada... Nas refeições, passavam a comida um para o outro”. natural dianteira no baixo-ventre, não é atingido.
Dona Águia apareceu e roubou-lhes a ração. Reconhecida pelo toque, ela Note-se ainda que, se na série M₆₆₇ etc. as cegas visitadas pelo herói
cuidou deles e os curou temporariamente, mas eles voltaram a ficar cegos recuperam a visão, na série simétrica M₃₇₅ etc. Gaio-Azul, visitante do herói,
(M₆₈₇, Lowie 1924: 238-39). tendo conseguido passar pelas portas que abrem e fecham, recebe deste las-
Na forma de uma porta de duas folhas que alternadamente permite e cas de pedra nos olhos; fica cego, depois é curado pelo demiurgo, mas con-
impede a passagem entre dois mundos, o motivo das symplégades espalha-se servará contudo uma espécie de belida que encobre sua visão.
por toda a América do Norte, dos Esquimó às tribos das Planícies, dos Grandes Entre os dois estados extremos da transformação, as versões tillamook
Lagos, do sudoeste e do sudeste, e inclusive a costa da Louisiana. Também é (M₆₈₄a, b) ocupam uma posição intermediária. Primeiro, porque nelas os
conhecido na América do Sul, notadamente entre os Tupinambá e os Bororo, motivos das mulheres cegas e da porta que abre e fecha coexistem; em seguida,
que colocam o obstáculo no caminho para o além (E.B., i: 101). As sympléga- porque as mulheres possuem alimento verdadeiro (carne de baleia) em vez
des desempenham um papel central na mitologia dos Salish da costa (M₃₇₅a-i; de falso (areia, pedra ou madeira podre); e, finalmente, porque o herói deixa
M₃₈₂; M₅₀₆, Adamson 1934: 158-57, 276-84, 356-60; Ballard 1929: 69-80; Haeber- na porta uma parte de seu traseiro, o que o opõe ao mesmo tempo ao dos
lin 1924: 372-77; Boas 1893: 155 etc.), na qual rochas que abrem e fecham defen- mitos thompson que entrega impunemente seu pênis (pedaço da dianteira),
dem a entrada do mundo ocidental que, para eles, é o reino dos mortos. Foi e a Gaio-Azul dos mitos salish da costa, que danifica a ponta da cauda (tra-
para lá que as filhas da leita (supra, p. 262, 297) conduziram o demiurgo Lua seira da traseira) ou a crista ou a nuca (ambas no alto em vez de em baixo).
depois de tê-lo roubado, ainda bebê, de duas mulheres, das quais uma era cega Portanto, às vezes o herói se vê de certo modo “castrado” de uma parte
e a outra virgem (ainda que mãe do menino, que concebera milagrosamente), posterior, alta ou baixa. Quando o dano o atinge na parte inferior (o que
ou seja, duas condições comparáveis às que são reservadas às velhas cegas pelos jamais ocorre na série M₃₇₅ etc., exceto, justamente, nas versões tillamook),
mitos do interior, que tornam uma surda à aproximação dos caçadores e a ele se torna um “personagem perfurado”, teoricamente incapaz, como o
outra fértil sem contato físico com o macho, em troca de ter recuperado a visão. do mito de referência M₁, de guardar o alimento que ingere, a menos que

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consiga tapar novamente o orifício. Quando, ao contrário, ele expõe o pró- princesa arisca que repele todos os pretendentes, mas não consegue evitar
prio pênis, sem no entanto correr o risco de sofrer o que seria uma verda- um que insiste em ficar no seu caminho na forma de um caramujo: “Ah! Que
deira castração, cabe a seus interlocutores cegos cumprir a função de “perso- nojo! Não posso nem sair de casa sem ver esse caramujo!”. A respeito dos
nagens tampados”. Isso requer algumas explicações. Twana, salish de Puget Sound, Eells (1887: 217; 1964: 622) fornece uma infor-
Mitos dos quais já encontramos algumas versões (M₆₈₀, supra, p. 343) mação curiosa: “Até a chegada dos brancos, os índios não comiam tetra-
e que examinaremos mais adiante em sua forma mais desenvolvida — na zes nem patos-selvagens; estes últimos, porque se alimentam de caracóis”.
qual, significativamente para nós, remetem à origem do fogo (infra, p. 418) A proibição quanto aos tetrazes foi registrada esporadicamente na área cos-
— contam que Coiote cegou os filhos das mulheres tetrazes colando-lhes as teira (Drucker 1951: 61), bem como aquela relativa aos patos, sendo esta apa-
pálpebras com resina. Em outros mitos, muito difundidos entre os Salish e rentemente restrita aos momentos críticos da vida individual, como puber-
os Nootka, de que evocaremos apenas dois exemplos (M₆₀₀f, Sapir & Swa- dade, iniciação, paternidade e maternidade, viuvez (Barnett 1955: 138, 152, 154,
desh 1939: 89-101; M₆₈₈, Hill-Tout 1900: 546-48), uma ogra ladra de crianças 168, 225, 281). Fontes mais recentes (Elmendorf 1960: 144) não corroboram a
cola suas pálpebras com resina para impedi-las de verem seus preparativos informação de Eells, cujo interesse reside na associação, no seio da mesma
culinários. Esses exemplos já bastam para mostrar que, no pensamento tríade, dos animais nos quais as duas cegas são passíveis de se transformar.
salish, ser sego equivale a ter os olhos tapados.
Atente-se além disso para o fato de, entre os Salish de Puget Sound, as !
ogras ladras de crianças serem mulheres-caramujo (M₆₀₀i-m, Ballard 1929:
106-12). Conforme uma dialética que já conhecemos, os Nootka, vizinhos De fato, só conhecemos até agora seus avatares em forma de tetrazes e cara-
dos Salish da costa, desdobram-nas em ogras-de-resina que conservam a cóis. Porém, desde os Nootka da costa oeste de Vancouver até os Tlingit do
mesma função e jovens e belíssimas moças-caramujo, que o herói encontra Alasca, as mulheres cegas encontradas por um herói no céu e a quem ele
no céu, e que são cegas. A pedido delas, ele esfrega a ponta de seu pênis nos devolve a visão se transformam não em galináceos ou gastrópodes, criatu-
olhos das moças e assim lhes devolve a visão (M₆₀₀f, Boas 1891-95: 117; Sapir ras terrestres, mas em aves aquáticas, patos ou gansos (M₆₇₅a e seguintes;
& Swadesh 1939: 97). As criaturas lhe agradecem indicando-lhe o caminho inventário em Boas 1916: 842; ver também pp. 883, 907-08; 1891-95: 55, 135,
para a casa do Sol, com cuja filha ele deseja se casar. 202, 262-63; 1910: 203, 247; Boas & Hunt 1921, i: 95; ii: 215, 233-34; Krause 1956:
E assim, fechamos o círculo, reencontrando no mito nootka habitantes 275; Swanton 1908b: 498; etc.). A título de exemplo, citaremos a versão salish
do céu, jovens e bonitas e não velhas, é verdade, mas em relação às quais, por mais setentrional entre aquelas a que já nos referimos (supra, p. 338):
imposição do pênis em ambos os casos, o herói se comporta como “persona-
gem perfurador” — quando encosta a ponta de seu membro nos olhos delas, M 675A BELLA COOLA: AS VELHAS CEGAS
para lhes devolver a visão — tanto mais que, no começo do mito, as ogras
ladras de crianças as cegaram tapando-lhes os olhos com resina. Os mitos Na primavera, um homem foi caçar aves com uma flecha com um cordão feito de
salish (M₃₇₅b; cf. também Tillamook, E.D. Jacobs 1959: 129-30), por sua vez, cabelos de mulher pendurado. Vestiu-se com os despojos emplumados e pediu ao
explicam porque os caracóis terrestres (≠ celestes) são cegos. irmão caçula que batesse nele de modo ritmado com um bastão. Pouco a pouco, foi
Se as mulheres cegas dos mitos thompson podem se transformar em subindo pelos ares e finalmente desapareceu.
tetrazes, é, como vimos, porque sua enfermidade, como os hábitos dessas Chegando ao céu, encontrou mulheres-pato cegas, que se alimentavam de raízes
aves, denota o que chamamos (supra, p. 353) um transtorno de contiguidade. cozidas numa panela. Elas perceberam a presença do homem pelo cheiro. Assim que
É notável que esses mitos proponham uma conclusão da mesma ordem a ele experimentou a comida delas, começou a salivar abundantemente. Cuspiu nos
respeito dos caracóis. Pisar numa concha de caramujo e esmagá-la trans- olhos das mulheres e as curou. Como elas cheiravam mal, ele as livrou do fedor e as
forma o responsável primeiro em endo-canibal, em seguida em exo-cani- jogou na terra, para servirem de alimento para os humanos. O herói voltou para casa
bal, dizem os Coos (Jacobs 1939: 55-56). As tribos da costa noroeste falam e fez uma demonstração do poder que tinha recebido do céu, de pagar grandes quan-
em seus mitos (M₆₈₉a, b, Boas 1916: 161, cf. 747, 749; Seanton 2: 175) de uma tidades de patos usando apenas as mãos (Boas 1891-95: 262-63; cf. também p. 135).

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Patos ou tetrazes, trata-se sempre de presas que se deixam aproximar e tole- preparavam os patos para a conservação, comiam-nos assim que os pegavam
ram a contiguidade física com o caçador. No caso dos patos, os mitos tam- (B.J. Stern 1934: 42, 53). Os Nootka da ilha de Vancouver caçavam sobretudo
bém relacionam contiguidade e cegueira. Segundo os Kutenai (M₆₉₀a, Boas presas aquáticas durante as grandes migrações sazonais. No final da estação
1918: 163), Coiote pegou muitos patos numa rede que as aves não podiam do arenque, os patos que subiam para o norte, incomodados pela luz do fogo
ver, porque tinham recebido a ordem de fechar os olhos. Os Flathead (M₆₉₀b, nas canoas, procuravam a sombra projetada por uma cortina de esteiras que
Hoffman 1884: 25-26) imaginam um outro estratagema: Coiote convidou os um dos canoeiros segurava com os dentes. Era preciso que fosse uma noite
patos para uma dança, e inventou um pretexto para exigir que o fogo fosse bem escura e que a lua e as estrelas não iluminassem a embarcação. As aves,
apagado; aproveitando-se da escuridão, estrangulou todas as aves, uma após confusas mas não amedrontadas a ponto de alçarem vôo, se refugiavam na
a outra, sem ser visto. sombra à frente da canoa. Lançava-se a rede e restava então apenas torcer os
É digno de nota que esse esquema mítico, difundido por toda a América pescoços presos nas malhas. Alguns instantes bastavam para encher a canoa
do Norte, inverta uma prática real: os patos, que são como que cegados com a de patos, gansos e até cisnes (Drucker 1951: 34, 36-37, 42-43).
extinção do fogo, oferecem uma imagem simétrica à do caçador de patos que Finalmente, entre os Kwakiutl de Vancouver, “gansos selvagens eram
cega a si mesmo usando uma viseira sobre os olhos, para não ser ofuscado caçados... acendendo um fogo sobre uma plataforma recoberta de argila,
pelo fogo que acendeu em sua canoa para atrair as aves. Essa técnica de caça, colocada na dianteira da canoa. O homem que manobra fica diante do fogo e
bem como aquela com uma rede vertical que as aves não conseguem ver de segura com a boca um pedaço de madeira no qual fixa uma esteira, fazendo
madrugada, no crepúsculo ou sob nevoeiro (Hill-Tout 1907b: 106; Olson 1967: uma cortina. Os gansos ficam em plena luz, enquanto a canoa permanece na
49-50; Barnett 1955: 103), também foram descritas na região de Puget Sound sombra... e pode se aproximar facilmente... Lançam sobre as aves uma rede
(Haeberlin & Gunther 1930: 25-26; Gunther 1927: 205). Entre os Twana, “o que se mantém estendida, mas não tensionada, graças a uma armação de
canoeiro de trás usava um grande capuz de esteiras... que se apoiava em seus madeira... e torcem-lhes os pescoços. Para essas caçadas, as noites úmidas e
ombros e se elevava bem acima de sua cabeça... fazendo sombra sobre o com- escuras são as melhores” (Boas 1909: 515-16).
panheiro da frente e sobre a água ao redor... As aves aquáticas nadavam fora Quer o caçador cegue a si mesmo com uma viseira, para evitar o ofus-
dessa zona de sombra, atraídos pelo fogo aceso na canoa. Ofuscadas e ame- camento, ou as aves sejam cegadas porque ofuscadas ou ainda que não pos-
drontadas, voltavam rapidamente para a sombra, o que permitia juntar um sam ver as malhas da rede devido à claridade insuficiente, trata-se sempre
grande número de aves num pequeno espaço, ou isolar uma ave em particular de uma caça “às cegas”, que permite ao caçador entrar em contiguidade
na frente da canoa... Como precaução suplementar, a canoa era enegrecida, com sua presa. Entre alguns povos, como os Makah e os Lummi, e também
bem como os remos” (Elmendorf 1960: 112-13). Os Quinault da costa marítima certamente alhures, as aves aquáticas estavam destinadas ao consumo ime-
“caçavam patos em canoas, armados com grandes tochas de madeira resinada diato, contrariamente aos demais produtos de subsistência, como os peixes,
que cegavam e desnorteavam as aves, que eram então mortas a pauladas” moluscos, frutos e raízes selvagens, em relação aos quais uma série de pro-
(Olson 1967: 50). Os Salish da costa do estreito acendiam um fogo no meio da cedimentos de conservação eram empregados. De modo que se acrescen-
canoa e colocavam na frente uma cortina de esteiras, “aproximavam-se silen- tava à contiguidade espacial com o caçador um espaçamento mínimo, na
ciosamente dos patos, que se juntavam na zona sombreada, ao alcance dos ordem temporal, entre a fase da captura e a da ingestão. O grupo de mitos
caçadores. Dizem os informantes que, em noites escuras, era possível pegá-los relativos às duas cegas se apresenta, portanto, como homogêneo quanto a
com a mão” (Barnett 1955: 95-96). Sob nevoeiro, na região do cabo Flattery, os esse aspecto, em toda a sua área de distribuição: patos e tetrazes constituem
índios de língua nootka acendiam um fogo sobre uma plataforma montada na variantes combinatórias do mesmo mitema que, conforme as diferentes
ponta da canoa, e seu brilho parecia ofuscar ou atrair as aves... No outono, as características de seus respectivos habitats, os povos da costa qualificam
canoas costumavam voltar cheias de pelicanos, mergulhões, alcatrazes e várias quanto à água (os patos são aves aquáticas) e os do interior, quanto à terra
espécies de patos e outras aves mergulhadoras. Eram depenadas e limpas de (os tetrazes vivem nas matas ou nas imediações de regiões arborizadas).
modo sumário, antes de serem jogadas misturadas na panela, para um festim Contudo, de um outro ponto de vista, patos e tetrazes se opõem. Vimos
improvisado” (Swan 1964: 25). Os Lummi do estreito de Geórgia tampouco que estes últimos são espíritos do frio (supra, p. 288, 303), considerados

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como especialmente responsáveis pelas geadas e nevascas tardias que impe- É claro que ela poderia estar já no final da gestação quando o herói desa-
dem a chagada da primavera e prolongam a penúria invernal. Bem ao sul pareceu. Mas, para admiti-lo, seria preciso ignorar que esse filho nascido
da área que estamos considerando, os Kalapuya (Jacobs 1945: 275) também de uma terráquea quando seu marido se tornou temporariamente um ser
responsabilizam o Tetraz pelo surgimento das doenças, traço que se deve celeste corresponde simetricamente ao que a esposa do astro, também ela
sem dúvida aproximar da origem das doenças segundo os Snohomish e os terráquea, concebe, gera e dá à luz no céu, onde começa a criá-lo, antes
Tillamook, que a imputam à filha de Coiote, ou à velha avó cuja pele ele veste de descer de volta à terra, também na ponta de uma corda, o que implica
(M₆₇₇, M₆₇₈). uma estadia celeste de aproximadamente um ano (omm: 165). Com efeito,
Em compensação, no inverno, o Pato incarna a força da primavera: “Todo logo veremos que certas versões da gesta do demiurgo Lua, provenientes
mundo tem fé no Pato e sua esposa, que fazem vir a primavera”. Mesmo no de Puget Sound, fazem desse herói o filho da mulher que subiu ao céu para
meio do inverno, dizem os Okanagon, o Pato faz um furo no gelo, no qual se casar com uma estrela. Elas conjugam, portanto, em sequências conse-
“ele sempre sente calor” (Cline 1938: 202). Os Sanpoil (Ray 1954: 184-85, 199) cutivas mas superponíveis, o tema “vertical” da ascensão e da descida com
descrevem o Pato selvagem Anas boschas como um belo rapaz, dono das o tema “horizontal” da peregrinação (infra, p. 368).
brisas mornas chamadas de “vento chinook”, que põem fim ao inverno. Os Mesmo as versões construídas a partir do esquema do “anfitrião desajei-
Chinook (Jacobs 1959, nº 21) afirmam que o Pato sente frio no verão e calor tado”, que poderiam ser consideradas, à primeira vista, como formadas por
no inverno. Pode-se dizer que Tetraz e Pato se opõem diametralmente, no episódios juxtapostos arbitrariamente, cujo número variaria conforme os
sentido de que um incarna a persistência do inverno para além de seu termo caprichos de narradores livres para acrescentarem ou retirarem à vontade
e o outro, o retorno antecipado da primavera. No oeste da América do Norte, “capítulos” de suas narrativas, quando olhadas mais de perto, parecem estar
o Pato possui, portanto, a mesma função que os Algonquinos orientais atri- sujeitas ao calendário. A versão lilloet da história do desaninhador (M₆₇₁),
buem ao Mergulhão [Podiceps auritus], outra ave aquática (omm: 202-03). por exemplo, enumera em sequência cinco episódios que ocorrem antes
Note-se ainda que, no eixo horizontal leste-oeste que corresponde a interior- de Coiote dar a si mesmo um filho artificial: 1) ele acaba com as provisões
costa, terra-água, Pato e Tetraz se opõem um ao outro do mesmo modo que, de Dona Grizzly quando, lá fora, não há o que comer (inverno); 2) ele cega
para os Salish, opõem-se céu e terra que, nos tempos míticos, conotavam as crianças tetrazes cujas mães se vingam, como em M₆₁₄c, no qual, como
respectivamente o frio e o calor (supra, p. 351). mostramos (supra, p. 288ss), elas presidem às geadas e nevascas do final do
Não é possível afirmar categoricamente, mas tampouco descartar defi- inverno; 3) ele visita os cervídeos que, como declaram M₆₆₇a e M₆₇₀a, come-
nitivamente, que do mesmo modo que demonstramos quanto aos mitos çam a ser caçados na primavera; 4) ele é alimentado por seu anfitrião com
homólogos da região dos Grandes Lagos e das Planícies (omm: 197-215) leita ou ovas de salmão, um produto estival ou outonal; e 5) ele come salmões
os mitos salish relativos à visita ao céu possuam, além de sua dimensão pescados sob o gelo,o que indica a chegada do frio. Acompanhado pelo filho,
espacial, uma dimensão temporal assinalada pela observância de um Coiote em seguida tenta caçar cisnes, sem sucesso: 6) “Eles viram muitos
calendário. No planalto celeste varrido por um vento glacial, habitado por cisnes que passavam voando acima deles... Coiote lançou-lhes um sortilé-
Tetrazes que são espíritos do frio, parece reinar um eterno inverno. Mas gio... e eles caíram como granizo sobre o lago e ficaram imóveis, como mor-
o herói deixara a terra num momento em que seu pai pode fazê-lo crer tos... mas, assim que Coiote foi pegá-los, alçaram vôo e desapareceram” (Teit
que filhotes ainda no ninho se preparavam para voar, o que significa que 1912a: 306). Citamos esse trecho porque reproduz, quase que textualmente, o
era final da primavera ou começo do verão. Quando o herói volta à terra, de um mito shuswap (M₆₉₁, Teit 1909: 703) que situa o episódio em relação
M₆₆₇a precisa que o verão está começando, o que inaugura para os índios ao calendário: “Era o começo da primavera, e as aves aquáticas voavam para
um período de vida nômade, consagrada à caça e à coleta de raízes selva- o norte. Ainda havia gelo na beira dos lagos e faltava comida. Um dia, viram
gens (Teit 1898: 24). De modo que o herói deve ter passado um ano inteiro passar um grande bando de cisnes e as pessoas desejaram que alguém fosse
no céu, ou que lá permaneceu por apenas alguns dias. A segunda hipótese capaz de enfeitiçá-los e torná-los pesados, para que caíssem...”; 7) vem em
parece ser pouco verossímil, considerando-se o estágio iniciático junto às seguida, na versão lilloet, o episódio do desaninhador, que devemos situar
Aranhas prestativas e o nascimento do filho da esposa que se manteve fiel. no começo ou no meio do verão, pois os filhotes de águia ainda estão no

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ninho; 8) nessa versão, a esposa fiel já é mãe antes do desaparecimento do insuportável do sol é amenizado, ou o herói provoca uma chuva na terra que
marido, o que permite supor que ele permaneceu no céu por menos tempo os Salish do planalto imaginam ter sido, nos tempos míticos, quente, ventosa
e desceu de volta no outono, período em que todos estão ocupados com a e ressecada (Teit 1930a: 176; 1900: 337).
caça; 9) as chuvas e a subsequente inundação provocadas pelo herói corres-
ponderiam, então, à chegada do inverno. !
A versão shuswap (M₆₈₀b, Teit 1909: 739-40), menos rica em episódios, é
também muito mais clara. Começa “no inverno”, como diz, com uma pescaria Os leitores que conhecem os volumes anteriores certamente terão notado
no gelo; prossegue com uma visita ao Castor, que alimenta seu convidado com que M₆₉₂ lembra um mito warrau (M₄₀₆, omm: 111-12) em que uma união
câmbio de álamo, que só é comestível na primavera; e termina com uma visita distante (de um homem com uma beldade exótica, em vez de uma mulher
aos ursos, que servem uma refeição feita de sua própria gordura dorsal, que só com um personagem masculino e vegetativo nos dois sentidos do termo)
têm em grande quantidade logo antes do período de hibernação ou no começo precede ou prepara a explosão do corpo (pela cabeça ou pelo ventre) de um
dele, para saírem dele magros e secos, depois de terem esgotadas todas as reser- velho, de que resulta o abrandamento do calor do sol, antes excessivo. Os
vas, o que leva ao início de M₆₇₁ (supra, p. 365) e fecha o ciclo anual. dois mitos, cuja comparação será retomada mais adiante (infra, p. 401), dife-
Um mito klallam, do norte de Puget Sound, também sugere claramente a rem na medida em que a intriga de M₄₀₆ transcorre num eixo horizontal, e
presença latente de um código sazonal: a de M₆₉₂ num eixo vertical; trata-se de viagem para além-mar num caso,
de ascensão no outro. Mas já apontamos, diversas vezes, a mesma transfor-
M 692 KLALLAM: A VISITA AO CÉU mação no interior da mitologia salish, mostrando que no caso da visita ao
céu, isto é, a ascensão, o episódio das duas cegas atenua o motivo das sym-
Na origem, só havia na terra uma mulher, sozinha no mundo. Ela fabricou um marido plégades, do qual representa uma forma limite. Em compensação, uma série
de resina, mas como naquele tempo o sol era muito mais quente do que hoje em mítica simétrica (M₃₇₅ etc.) explora plenamente o motivo das symplégades,
dia, o homem derreteu. Seus filhos ficaram com raiva do sol por causa disso. Um para além das quais os mitos desse grupo situam um par de mulheres jovens
deles atirou uma flecha que se fincou na abóbada celeste, e depois muitas outras e férteis em lugar de velhas estéreis. Essa não é, aliás, a única diferença entre
em seguida, que foram se fixando umas nas outras e formaram uma espécie de os dois pares de mulheres, já que as primeiras agem em conjunto, ao passo
corrente, pela qual os filhos subiram até o céu, que se parecia com uma vasta pra- que as outras não perdem nenhuma ocasião de se desentenderem (cf. os
daria. Gansos, que então falavam, indicaram-lhes o caminho para a casa do sol. Em homens cegos de M₆₈₆ e a significativa admoestação de Guaxinim); além
seguida eles encontraram duas mulheres cegas, cuja comida um dos meninos sur- disso, umas foram geradas por alimento cru, pois que são filhas da leita, e as
rupiou enquanto uma a passava para a outra. Ele se apresentou às mulheres, que o velhas cegas comem um anti-alimento, cascalho ou pedra e madeira podres.
informaram quanto ao caminho a seguir e lhe deram um cestinho minúsculo com Corresponde à interceptação de um anti-alimento que uma das cegas
seis frutinhas de Rubus spectabilis. Após um último encontro, com as andorinhas, os passa para a outra, antes de discutirem e acabarem batendo uma na outra, na
irmãos chegaram à casa de Sol, um velho que estava amontoando madeira resinosa série simétrica M₃₇₅, a passagem de Gaio-Azul, que desde então ficou cego,
numa enorme fogueira, tão ardente que os visitantes acharam que fossem morrer, e entre duas portas que também batem uma na outra. Pois dessa passagem
de onde emanava o intenso calor que então reinava na terra. Sol comeu as seis fruti- bem sucedida resulta para a humanidade, afinal das contas, a obtenção do
nhas, que se multiplicaram dentro de seu corpo, tanto que ele explodiu. A virulência melhor alimento: o gesto do demiurgo Lua explica a origem dos salmões,
do fogo dominuiu e, desde então, não faz mais tanto calor na terra (Eells 1964: 653). frutos de sua união com as filhas da leita (M₃₇₅a, M₃₈₂). Inversamente, seu
pênis introduzido na mão de uma das velhas também evoca uma união
Por conseguinte, como nos mitos mais especificamente dedicados ao desani- sexual, mas num modo derisório e até negativo. O membro, logo liberado
nhador, a visita ao céu, que é sem dúvida uma aventura espacial, mas situada sem ter sofrido dano algum, tem por contrapartida as penas da cauda, a
num tempo em que reinavam nos dois mundos, celeste e terrestre, condições crista e a nuca de Gaio-Azul, ou ainda o pedaço de nádega do demiurgo
climáticas excessivas, desemboca numa mediação sazonal: ou o calor antes Gelo, arrancados ou deformados por terem sido atingidos pelas portas. O

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fato de os mitos tornarem as duas cegas idênticas, mas ao mesmo tempo As mulheres fabricaram uma longa escada de corda e foram embora. Quando
desiguais (pela quantidade de alimento que cada uma delas recebe em chegaram à aldeia, foram festejadas, e todos quiseram ver a escada celeste. Por diver-
M₆₈₄a, b; pelo destino diverso dos dois tetrazes em M₆₆₇a) pode ser expli- são, fizeram dela um balanço monumental, que ia de uma montanha a outra, do
cado de dois modos. Primeiro, as portas que abrem e fecham são elas mes- norte para o sul e do sul para o norte. Ao arrastar pelo chão, a ponta do balanço
mas a um só tempo iguais e desiguais: duas folhas idênticas, que oscilam no cavou os barrancos que existem até hoje.
mesmo ritmo mas que, quando se aproximam, são impelidas por movimen- Enquanto todos se divertiam, aquela das duas mulheres que era mãe tinha
tos opostos, de cima para baixo e de baixo para cima. Em seguida, determi- entregado o filho aos cuidados de uma velha sapa cega. Ele foi raptado por mulhe-
namos que o duplo motivo das symplégades e das cegas está estreitamente res-salmão. Quando se deram conta disso, todos largaram imediatamente o balanço
correlacionado a um terceiro, o da “caçada aproximada” ao tetraz ou ao pato, para ir à sua procura. Só o rato ficou lá, roeu a corda, e o balanço despencou, for-
na qual, como no caso das portas e das mulheres cegas, manifesta-se uma mando um grande rochedo no vale do rio Snuqualmi.
contiguidade física, mas que envolve de saída seres essencialmente diferentes, Após várias tentativas, Gaio-Azul conseguiu atravessar a formidável muralha,
o caçador e a presa. Entre o esquema das symplégades e o da caça aproxi- cortada horizontalmente em dois, cujas metades batiam uma contra a outra e que
mada, o esquema das duas cegas faz uma transição, por uma série (que se protegia o país dos mortos, onde vivia o menino roubado, agora já adulto. Este pro-
pode ordenar) de exemplos que vão da igualdade absoluta a uma desigual- meteu que logo voltaria para junto dos seus e mais tarde se fez reconhecer por pro-
dade que permanece sempre relativa. dígios, como a criação da rede hidrográfica e do relevo, a diferenciação dos animais,
Até agora, portanto, o motivo das symplégades se apresentou a nós de a invenção do fogo, a destruição dos monstros... No final, tornou-se a lua (Haeberlin
duas formas: uma forma máxima, associada à translação horizontal de um 1924: 373-77; cf. versão puyallup, Curtis 1907-30, v. 9: 117-21).
herói num eixo leste-oeste, terra-mar, e uma forma mínima, associada à ele-
vação vertical de um outro herói num eixo baixo-alto, terra-céu. Resta-nos Uma versão klallam (M₃₇₅l, Gunther 1925: 69-80) expõe as duas mulheres a
verificar se ao seguirmos a evolução do motivo para aquém de sua forma diversas aventuras no céu; elas atravessam uma barreira de chamas e depois,
mínima ele se inverte para reencontrar sua amplitude inicial, mas gerando portas que abrem e fecham. A corda pela qual desceram, que caiu enrolada em
de si mesmo uma imagem antisimétrica à das symplégades que tinha inicial- espiral, seria ainda visível na forma de um grande rochedo na ilha de Vancouver.
mente assumido: Uma outra versão snuqualmi (M₃₇₅j, Ballard 1929: 69-80) identifica
os arbustos comestíveis como Pteridium aquilinum pubescens, cuja coleta
M 375 g-h SNUQUALMI: O DEMIURGO RAPTADO E AS ESPOSAS DOS ASTROS constitui uma tarefa propriamente feminina. O balanço celeste oscila num
eixo norte-sul, entre montanhas a meio dia de caminhada uma da outra.
Quando a terra ainda era jovem e pouco arborizada, não havia lua nem sol. Reinava Após o rapto de Lua, sua mãe cria o futuro Sol com a urina espremida dos
um lusco-fusco perpétuo, humanos e animais falavam a mesma língua. Duas mulhe- cueiros do menino desaparecido. Gaio-Azul encontra o demiurgo, já pai
res, que estavam ocupadas extraindo rizomas de arbustos comestíveis, discutiam se de família, trabalhando pedras para fazer pontas de flecha. Irritado pelo
seria melhor para elas casar com pescadores ou com caçadores, e se seu ensopado aparecimento do intruso, Lua joga lascas de pedra nos olhos do pássaro,
de arbustos ficaria melhor acompanhado de carne ou de peixe. Acabaram achando que fica cego, e mais tarde, ao ser informado do motivo de sua visita, cura-
melhor desposar estrelas e foram para o céu com os maridos. Eles traziam muitas o. O mito em seguida descreve detalhadamente os prodígios realizados
presas, mas o esposo da mais velha tinha os olhos remelentos (cf. omm: 196). pelo demiurgo, que finalmente volta para junto dos familiares e sobe ao
O mundo celeste se parecia com a terra, a não ser pelo fato de não haver lá nem céu com o irmão, para lá se tornarem um lua e o outro sol. “Foi organizado
vento, nem chuva, nem temporal. Os homens estrelas permitiram que as esposas um concurso para escolher dentre todas as criaturas as mais aptas a servi-
continuassem extraindo rizomas de arbustos, contanto que não cavassem fundo rem de astros do dia e da noite. Antes, Lua tinha decidido que o balanço
demais. Logo a mais velha deu à luz um filho a quem deu o nome de Lua. As duas continuaria funcionando, para que no futuro todos pudessem subir ao céu
mulheres estavam entediadas, e por isso infringiram a proibição e furaram o céu. O e ter seus desejos satisfeitos. Contudo, enquanto as provas eram realiza-
vento foi tragado pelo orifício e elas avistaram a terra natal lá em baixo. das, o rato roeu o balanço, que caiu, com ele junto. Em decorrência desse

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acontecimento, Lua decretou que a partir de então os balanços serviriam real do aparelho, particularmente entre os Salish, cujas línguas distinguiam
para divertir, mas não seriam tão grandes. E maldisse o rato, que foi con- o berço-balanço — pendurado numa vara enfiada obliquamente no solo,
denado a roer e roubar tudo de que os humanos precisam e a destruir as a que o peso e os movimentos da criança imprimiam oscilações verticais,
melhores coisas. Os espectadores, por sua vez, foram transformados em às vezes alimentadas pela mãe ou por uma velha que puxava um cordão
rochas ainda visíveis, que parecem animadas, pois se levantam o tempo (Hill-Tout 1907b: 224; Barnett 1955: 132) — e o balanço verdadeiro que, pelo
todo. Cada clivagem nova pressagia a morte de um chefe”.14 menos em alguns grupos, era utilizado cerimonial ou ritualmente, aparente-
Eis aí portanto mitos que integram numa narrativa contínua a his- mente reservado às mulheres adultas, mas de que temos poucas informações
tória das esposas dos astros, longamente discutida no volume anterior (Elmendorf 1960: 228). O uso de redes-balanço foi também notado entre os
(M₄₂₅-M₄₃₈), e a gesta do demiurgo Lua (M₃₇₅a-p; M₃₈₂; M₅₀₆), à qual nos Lilloet (Teit 1906: 261). Associado à lua, como nos mitos salish, o motivo do
referimos muitas vezes. A gesta transcorre num eixo leste-oeste, terra-mar, balanço ressurge na América do Sul entre os Uitoto e os Tacana.
e o demiurgo sobe os rios ao longo de suas peregrinações. Entre a terra e Sem abordarmos a fundo a questão do lugar e do papel que cabem ao
o mar, entre os humanos e os salmões de que se alimentam, entre a terra balanço nos mitos e nos ritos, basta-nos ter determinado que esse motivo
dos vivos e a dos mortos, erguem-se as symplégades, que M₃₇₅h descreve forma com o das symplégades um par de termos em oposição e correlação.
com precisão como uma muralha dividida ao meio horizontalmente, cujas Os mitos de Puget Sound, que os reúnem, também consolidam numa única
metades sobem e descem sem parar. A história das esposas dos astros, em narrativa a história das esposas dos astros e a gesta do demiurgo, dando a
compensação, transcorre num eixo alto-baixo, céu-terra, e para se evadi- esta última uma dupla conclusão: rompimento da comunicação espacial
rem as mulheres se servem de uma escada de corda, depois utilizada como entre os mundos terrestre e celeste, por meio da qual, com o aparecimento
balanço que oscila longitudinalmente num eixo norte-sul e, como precisa do sol e da lua, é instaurada a periodicidade temporal.15
M₃₇₅j, através de um rio: “o ponto de chegada é uma montanha ao norte Quer os mitos de Puget Sound resultem da fusão de duas histórias que até
do rio, o ponto de partida, uma outra montanha ao sul” (Ballard 1929: 72). agora encontramos isoladamente — história das esposas dos astros e gesta
Entre o céu e a terra, mas para uni-los em vez de separá-los, encontra-se o do demiurgo Lua — ou, ao contrário, as duas narrativas subsistam como pro-
balanço, antes de o rapto do demiurgo, para longe (M₃₇₅g-h), ou sua elevação, dutos da fissão de um mito único cujo modelo original teria sido preservado
para o alto (M₃₇₅j), provoque o rompimento desse meio de acesso ao mundo pelos povos dessa parte do mundo, em qualquer uma das hipóteses o mito
celeste. Fica claro que o balanço, que se movimenta horizontalmente num do desaninhador se apresenta situado “no meio”, por assim dizer, fazendo
eixo de oscilação vertical e garante a comunicação entre o céu e a terra no o papel de dobradiça entre esses dois grandes ciclos da mitologia ameri-
final dos tempos míticos corresponde simetricamente às symplégades, que cana e estabelecendo sua articulação. Isso já se evidencia no modo como o
se movimentam verticalmente num eixo de oscilação horizontal e impedem herói, após peregrinações celestes que reproduzem em escala menor as do
a comunicação entre a terra e o mar antes da inauguração da era histórica, demiurgo na terra (comparar, por exemplo, o episódio dos objetos revoltados
com o dom dos salmões aos humanos. ou dos monstros vencidos em M₆₆₄a, M₆₆₇a e em M₃₇₅j), consegue, como as
esposas dos astros, descer de volta à terra graças a uma corda. Mas as moda-
! lidades, aparentemente gratuitas, que a intriga impõe a essa descida fazem
a transição entre as symplégades, animadas de um movimento oscilatório
Difundido pelo mundo todo, o tema das symplégades certamente pertence no plano vertical, e a escada de corda que vira um balanço, animada de um
ao mais antigo repertório mítico da humanidade. O mesmo provavelmente movimento oscilatório no plano horizontal. Pois esses dois tipos de movi-
ocorre com o balanço, em torno do qual a América construiu toda uma mento são alternativos, ao passo que a descida do desaninhador é progres-
mitologia (S. Thompson 1929: n° 169; Waterman 1914), aliás fundada no uso siva, e realizada em etapas. Enquanto a corda se desenrola, o herói se desloca

14 . Do mesmo modo que os parélios, assimiláveis a “clivagens” do sol, alhures (cf. supra, 15 . A fórmula enunciada em omm: 48 pode, pois, ser completada do seguinte modo:
p. 213-18). berço: balanço : : balanço: symplégades : : conjuntor: disjuntor.

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verticalmente de cima para baixo e, a cada vez que um patamar horizontal sido entregue aos cuidados ineficientes de uma velha cega. Por outro lado, os
o obriga a parar, ele deve rolar no mesmo lugar para que seu meio de trans- mitos de Puget Sound precisam que as esposas dos astros fabricaram uma
porte se ponha novamente em movimento. De modo que os mitos subordi- escada de corda, mais tarde utilizada como balanço, torcendo galhos de
nam o progresso da descida a condições que remetem aos dois aspectos. coníferas (“the sisters twisted the branches into a rope”, Ballard 1929: 71; “the
Para confirmar essa posição mediana, seria contudo preciso que, depois girls twisted cedar twigs”, Haeberlin 1924: 373).
de termos encontrado no mito do desaninhador o motivo das symplégades, Pode-se deduzir, dessas duas indicações, que balançando galhos de
levado ao limite no episódio das velhas cegas, ali encontrássemos também coníferas, em vez de se balançarem em cordas feitas desses mesmos galhos,
o motivo do balanço, igualmente levado ao limite. Basta colocar a questão mulheres que são cegas em relação ao herói retornado (tanto quanto os
para que a resposta se apresente, com todos os detalhes exigidos pela hipó- apreciadores do balanço o foram, a respeito do demiurgo raptado pelas cos-
tese. A versão thompson M₆₇₀a permite demonstrá-lo. tas deles, por assim dizer), cometem uma falta de tato, pois para demonstra-
No céu, o herói primeiro encontra duas velhas cegas que preparam sua rem sua simpatia para com uma jovem mãe cujo esposo desapareceu, ado-
refeição triturando num pilão galhos de pinheiro. Ao voltar para a terra, ele tam um comportamento que reflete, e inverte, um outro movimento do qual
também encontra primeiro duas velhas cegas, agitando galhos de pinheiro resultará, também para uma jovem mãe, a perda de seu filho.
enquanto seguem as pegadas dos aldeões que se distanciaram delas. Em Ao seguirmos a via que escolhemos, os mínimos detalhes de um episó-
si, a oposição entre os gestos de umas e outras, aplicados ao mesmo objeto, dio aparentemente absurdo se veem, portanto, explicados. E inclusive tere-
galhos de pinheiro, já parece ser reveladora; pois o primeiro envolve um mos, mais adiante, a oportunidade de mostrar, a propósito de um outro mito
movimento vertical de cima para baixo, que lembra as symplégades, e o (M₇₆₂, infra, p. 452ss), que o motivo do balanço, invertido para o eixo vertical
outro, um movimento horizontal da direita para a esquerda e da esquerda e levado, como aqui, a seu valor limite, integra um paradigma cujo campo de
para a direita, que lembra o balanço e que o texto, aliás, descreve como um operação se estende para muito além dos Salish, e que convém sempre inter-
balanço (a transcrição inglesa emprega a mesma palavra: “two old women pretar do mesmo modo. Mas ainda há o que dizer acerca das duas velhas,
who are swinging fir branches”). pois que a depender de serem terrestres ou celestes, sua cegueira não se tra-
Agitar galhos de pinheiro seguindo uma pista poderia certamente cor- duz do mesmo modo.
responder a um costume real, não descrito pela literatura. O emprego de À diferença das velhas celestes, que são realmente cegas, a cegueira das
galhos de pinheiro é mencionado apenas por rapazes púberes e culpados de velhas terrestres só se manifesta em relação ao herói. Ele está na picada,
assassinato, que com eles esfregavam o corpo à guisa de purificação (Barnett diante delas, mas elas não conseguem vê-lo, embora distingam perfeita-
1937-39b: 259, 267, 289), e por jovens púberes e mulheres menstruadas, que mente o rio Thompson, à sua direita, e o rio Fraser, à esquerda. Elas só veem,
durante o seu isolamento percorriam à noite distâncias consideráveis, arran- portanto, o que está de um lado e do outro de um plano mediano ao qual elas
cando ramos de coníferas e os espalhando ou prendendo a outras árvores mesmas são contíguas. A descrição das duas velhas celestes inverte essa ima-
(Dawson 1892: 13). Dada a presença de pequenos grupos iroqueses na região gem, pois que elas se situam de um lado e do outro da mesma fogueira, e não
do Fraser desde o século xviii (supra, p. 318), seria igualmente possível podem se ver, mas a fogueira que se encontra no meio delas — certamente
pensar num rito que teria sido introduzido por eles, que o chamavam de simétrica à picada, tanto mais que um episódio anterior de M₆₇₀a explica
“Waving of evergreen branches” (Hewitt 1910: 942), a respeito do qual, como porque as picadas são incombustíveis, supra, p. 335; cf. Hill-Tout 1899b:
teve a bondade de nos confirmar o eminente especialista dos Iroqueses, W.N. 552 —, que não podem ver, pelo menos percebem por contiguidade, já que
Fenton, depois de ter conversado acerca dele com seus informantes, infeliz- nela preparam sua refeição.
mente não se sabe nada além dessa alusão. Por conseguinte, assim como os respectivos comportamentos dos dois
Mas a dedução basta para interpretar, de modo muito mais satisfatório, o pares de mulheres, suas formas particulares de cegueira remetem, uma ao
comportamento misterioso das duas velhas. Se nossa hipótese inicial estiver balanço e a outra às symplégades (fig. 25); pois estas últimas se situam de
correta, começaremos por determinar que Lua bebê foi raptado enquanto a ambos os lados de um plano mediano, no qual vêm a juntar-se, ao passo que
população da aldeia estava toda fora, brincando com o balanço, e ele tinha o balanço, oscilando acima de um vale profundo, toca o solo apenas em dois

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pontos distantes um do outro, e é a meio-caminho que mais se afasta deles. estão cheias de vermes, que “lhe roíam o ânus, o rosto, o nariz e as orelhas, e
Mas as expressões metafóricas a que os mitos recorrem também provocam acabaram por devorá-lo”. Os Salish da costa possuem mitos, reminiscências
inversões internas. As velhas celestes são symplégades que não conseguem do Velho Mundo (M₆₉₃a, b, c, Haeberlin 1924: 428-30, Adamson 1934: 81-83;
se juntar para compartilhar um anti-alimento, ao passo que, ao se unirem, as cf. também Apache Lipan, Opler 1940: 46-47), em que homens injustamente
symplégades impedem os humanos de terem acesso ao verdadeiro alimento. acusados pela cunhada se perdem no mar e encontram um povo de pig-
As velhas terrestres só são capazes de perceber rios separados por monta- meus que são perseguidos por aves aquáticas. Com bocas minúsculas, esses
nhas, o balanço só permite atingir montanhas separadas por um rio. seres são mudos, e se alimentam de vermes que infestam o peixe podre ou
da carne de conchas dentalia, iguais a pequenos chifres curvos. Como os
tetrazes e patos, que toleram uma aproximação extrema entre o caçador e a
esposas dos astros desaninhador gesta do demiurgo presa, os vermes que vivem no peixe podre e em outras carniças, de que se
alimentam, também remetem à contiguidade:

(caçador) : (tetraz ou pato vivos) : : (verme) : (peixe morto, carniça).


cegas symplégades:
celestes movimento
balanço: oscilatório em Uma contiguidade do mesmo gênero, mas nesse caso entre alimento e orna-
movimento cegas eixo vertical mento, existe igualmente com respeito às conchas dentalia.
oscilatório em terrestres
eixo horizontal É possível avançar mais um pouco na interpretação graças a M₆₆₇a e
M₆₆₈a (Teit 1898: 25; 5: 297), em que outros personagens substituem as velhas
transformadas em vermes. No mesmo momento da narrativa, isto é, quando
corda de descida:
movimento progressivo o herói, de volta à terra, descobre as pegadas dos habitantes da aldeia a cami-
em eixo vertical, periódico nho de seus terrenos de caça e coleta, ele primeiro encontra os retardatários,
em eixo horizontal
entre os quais Formiga, Besouro e Lagarta. Ocupando exatamente a mesma
posição que as velhas cegas, esses animais são comutáveis com elas. Porém,
[ 2 5 ] Sistema das velhas cegas. o herói se comporta para com eles diferentemente, não os transforma em
bichos, mesmo porque eles já vestem essa forma na narrativa, e apenas
Resta a esclarecer um último ponto: se os dois pares de velhas são simétricos, admoesta Formiga: “Por que você aperta tanto a cintura? Assim, vai se partir
como a transformação em vermes (maggots) de umas corresponde à trans- em dois!” Observação críptica, que outros mitos permitem esclarecer.
formação em tetrazes ou patos das outras? Lembremos inicialmente que mitos chinook (M₅₉₈a-g, supra, p. 213), rela-
Os vermes de carne tinham um lugar considerável na vida e no pensa- tivos à origem dos parélios (= sol cortado em dois), nos quais um herói que
mento dos índios Thompson, como mostra um de seus ritos: “Quando um subira ao céu se casara com um astro, também explicavam porque as formi-
jovem queria se tornar um caçador resistente, no final da época de subida gas e vespas têm a cintura fina: sua cintura tornou-se estreita demais. Salish
dos salmões, ia para a beira dos rios, que ficavam cheios de restos de pei- do interior, que compartilham a mesma crença, fornecem uma precisão
xes mortos, cheios de vermes. Enfiava as mãos até os punhos na podridão e suplementar: “A formiga e a vespa quiseram que os humanos fossem mortais
assim permanecia durante horas. Acreditava-se que esse tratamento endure- porque elas mesmas eram coveiras, como mostra seu cinto bem apertado
cia as mãos e as tornava resistentes ao frio...” (Hill-Tout 1899b: 513). Encontra- em torno da cintura” (Cline 1938: 167). Também entre os Thompson a For-
mos, entre os Klikitat, um mito (M₆₀₆a) em que uma ogra ameaça Coiote de miga aparece, ao lado da Aranha e da Mosca, entre os animais instauradores
enfiar um monte de vermes em seu ânus. Mitos coos que resumiremos mais da morte. Como o herói de M₆₆₇a (que têm relações coniventes com as ara-
adiante (M₇₉₃, M₇₉₅, Frachtenberg 1913: 41, 173, Saint Clair & Frachtenberg nhas), a Aranha diz à Formiga: “Você vai se partir em dois de tanto apertar o
1909: 35-36, Jacobs 1940: 211, 245, 251) mencionam um doente cujas feridas cinto, e vai morrer logo”. A Formiga responde que não morrerá de verdade e

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ressuscitará logo depois. Segundo os índios de Puget Sound, a Formiga aper- a mitologia sul-americana faz dela uma função do ciclo da estrela esposa
tou demais o cinto quando se debatia a alternância entre o dia e a noite. O de um mortal, a qual reproduz, às custas de uma mera inversão dos sexos,
mesmo motivo pode ser encontrado em toda a área linguística e para além o ciclo norte-americano das esposas dos astros, por sua vez fundador da
dela, chegando até os Kutenai do piemonte das Rochosas, que contam que a periodicidade dos ritmos biológicos (cf. cc: 155-71; omm: 178-84). Versões
Formiga apertou demais o cinto quando se preparava para entrerrar o pri- salish do ciclo do desaninhador retomam mais uma vez o mesmo motivo,
meiro morto (Okanagon, Cline 1938: 167; Thompson, Teit 1912b: 329; Puget- transposto nas sequências que agora iremos discutir, com a origem das
Sound, Ballard 1929: 75; Kutenai, Boas 1918: 213). doenças personificada por uma velha cuja pele é vestida pelo enganador e
Como os parélios (supra, p. 213-18) e os galináceos (supra, p. 353; infra, que se chama Doença (M₆₇₇), ou com a missão patogênica que dá à própria
p. 481-86), as formigas e outros insetos são, portanto, seres divididos ao filha, encarregando-a de espalhar as epidemias (M₆₇₈).
meio, cuja cintura, reduzida ao mínimo, mantém as duas metades unidas. O fato de o mito do desaninhador fazer o papel de dobradiça entre os
No pensamento indígena, correspondem a outros pares, igualmente indis- mais importantes ciclos míticos compartilhados pelas duas Américas já bas-
sociáveis, embora seus termos se oponham um ao outro, como dia e noite e taria para explicar que ele se tenha imposto a nós como mito de referên-
vida e morte. Por outro lado, os patos ligados à água e os tetrazes ligados à cia, quando ainda não tínhamos consciência desse papel estratégico, que só
vegetação (cf. M₆₆₇a: coníferas para o Tetraz dos campos, álamos e amieiros uma longa análise estendida por quatro volumes nos permitiria evidenciar.
para a Galinha do campo de crista) se opõem ao grupo das velhas terres- Ora, o ciclo do desaninhador tem uma difusão panamericana, como os dois
tres, composto de animais que vivem todos ao rés do chão ou abaixo dele — outros que ele articula e entre os quais garante a transição. Na forma dupla
vermes, formigas, besouros, lagartas. O que reforça a crença dos Thompson de esposas dos astros e de estrela esposa de um mortal tínhamos localizado
num mundo subterrâneo onde vive um povo de formigas (Teit 1898: 78-79, um deles, e seguido as etapas de suas transformações. Quanto à gesta do
116 n. 253; 1912b: 214, 373). Compare-se esse aspecto ao papel desempenhado demiurgo Lua, que tínhamos encontrado pela primeira vez na América do
pelo Rato nas versões de Puget Sound, que também corta algo ao meio, no Sul, entre os Baré (M₂₄₇), é impressionante reencontrá-la em termos pratica-
caso a escada de corda que garantia a comunicação entre os dois mundos, e mente idênticos no noroeste da América do Norte, entre os Salish de Puget
para qualificar seu ato, M₃₇₅j recorre a uma terminologia que retoma, inver- Sound, os Klallam e os Nootka, por exemplo (M₃₇₅j-o, Ballard 1929: 69-80;
tendo-a, a que o mesmo mito aplica à definição do mundo celeste. Os huma- Gunther 1925: 143-44; Boas 1916: 903-913; Curtis 1907-30, v. 8: 116-23; Sapir
nos sobem ao céu pela escada porque lá “they can get whatever they want”. & Swadesh 1939: 45-51). Aí está, sem dúvida, a manifestação mais patente da
Em compensação, para maldizer o Rato, o herói lhe diz “you will gnaw and unidade profunda da mitologia americana.
steal what people want” e assim o opõe de modo especialmente vigoroso ao
céu, enquanto lugar onde todos os desejos serão satisfeitos, ao passo que o
papel subterrâneo do Rato será o de frustrá-los. Pois bem, o balanço tam-
bém está ligado à terra, pois suas oscilações criam nela o relevo. E as sym-
plégades, que pelo menos uma versão (M₃₇₅l) escolhe de situar no céu, estão
sempre associadas ao longínquo, de que o céu apresenta a realização mais
extrema, já que os salmões liberados garantirão a comunicação entre o mar
e a terra, mas, após o rompimento da escada de corda, a comunicação entre
a terra e o céu será para sempre abolida.
De modo que, na verdade, é a origem da vida breve (supra, p. 153) e da
periodicidade (entendida num sentido a um só tempo cosmológico e bio-
lógico) que vemos reaparecer aqui, evocadas ora pelas formigas coveiras,
ora por vermes, símbolos da deterioração orgânica. Contudo, essa origem
da vida breve é transferida para o ciclo do desaninhador, ao passo que

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iii. Cosmopolitismo e exogamia

Os jovens Cavaleiros, que fugiam dos laços do casamento


temendo serem desviados de sua profissão, conside-
ravam como um dever dedicar os primeiros anos de sua
instalação na Ordem a visitar países longínquos e cortes
estrangeiras, para se tornarem Cavaleiros perfeitos. O
verde que vestiam anunciava o verdor de sua primavera,
como o vigor de sua coragem.
la curne de sainte-palaye, Memórias sobre a antiga
Cavalaria, Paris, 1759, vol. ii, p. 8.

There once was a young man of Greenwich


Whose balls were all covered with spinach;
So long was his tool
That it wound round a spool
And he let it out inach by inach.
w. s. baring-gould, The Lure of Limerick, Nova York,
1967, p. 88.

O chefe de uma certa tribo tinha um jovem filho. Era um


preguiçoso, não tinha vontade de absolutamente nada
e ficava deitado o tempo todo. Então, seu pai lhe disse:
“Filho, quem quer ser um homem, viaja. É preciso viajar.
Parta para longe com camaradas da sua idade. Mostre-se
solícito para com todas as mulheres que encontrar, e
trate de trazer pelo menos uma como esposa”.
Mito omaha (M₆₄₉c), in J. O. Dorsey 1: 185.

Quase nos mesmos termos das versões chinook e nez percé já discutidas
(M₆₀₁-M₆₀₂, supra, p. 223), as versões salish do mito do desaninhador de pás-
saros incluem o episódio da liberação dos salmões. Em geral, ela ocorre depois
de Coiote, que caiu numa correnteza forte, vai parar perto da barragem vigiada
pelas mesquinhas donas dos peixes. Mas além dessa narrativa etiológica os
Salish conhecem outras, que explicam a seu modo a origem dos salmões.
Como foram evocados no final da seção anterior, comecemos voltando
rapidamente ao grupo de mitos {M₃₇₅, M₃₈₂, M₅₀₆} que os Salish da costa
dedicam à gesta do demiurgo Lua, ordenador do universo. Depois de

408 | Cosmopolitismo e exogamia | 409


Gaio-Azul ter conseguido transpor as symplégades e ter conseguido a pro- aparente desordem que a outros caberá elucidar, comparando todas as lis-
messa de que o demiurgo logo voltaria para junto dos seus, este, casado com tas de grandes feitos, à primeira vista heteróclitos, enumerados pelas várias
as filhas da leita, que o tinham raptado ainda bebê, e pai de uma família versões dessa gesta. Assim, em vez de dar um destino específico ao gênero
numerosa, instruiu os filhos quanto a suas respectivas missões. À irmã mais Oncorynchus, como faz o mito do desaninhador, é a diversidade das espécies,
velha couberam as árvores e arbustos; Lua atribuiu a cada tipo de madeira e mais ainda o fato de sua diversidade, que a gesta do demiurgo enfatiza,
uma função, como lenha, madeira para construção, casca ou fibra vegetal, sublinhando um paralelismo, nesse aspecto, entre os reinos vegetal e animal.
planta alimentícia etc. A mais nova tinha gerado os peixes, de que o mito Com efeito, longe de considerar o caso dos salmões à parte, M₃₈₂ o inclui
enumera sete ou oito gêneros além das cinco espécies de salmão. Lua deter- num conjunto que, de fato se não de direito, contém todas as espécies de
minou, para cada espécie ou gênero, a época de migração, a estação e as peixes, “all the fish on this world”, diz o texto; e o mesmo ocorre quanto às
técnicas de caça ou os modos de preparo culinário. Realizou, em seguida, plantas lenhosas. Uma outra diferença em relação ao mito do desaninhador:
longas viagens, no decorrer das quais modelou o relevo, instituiu diversas M₃₈₂ trata da origem dos peixes em geral, mas não se preocupa em explicar,
técnicas artesanais, criou várias espécies de plantas alimentícias e quadrúpe- em função de sua origem, porque os peixes estão desigualmente repartidos
des comestíveis, fez o balanço deixar de ser uma engenhoca assassina para se pelos rios, questão à qual o outro mito dedica especial atenção. Em vez disso,
tornar um divertimento, acabou com uma ogra que matava as crianças com M₃₈₂ levanta uma questão que, como veremos mais adiante, está estreita-
quem dizia querer brincar de boneca e tornou essa brincadeira inofensiva, mente ligada à primeira, a da origem dos casamentos descombinados e por-
fez o mesmo com o cozimento no vapor, até então reservado para refeições que acontece de mulheres feias terem homens bonitos como maridos. Desde
canibais, escapou de um incêndio provocado por mulheres que cuspiam já, percebe-se que, no plano sociológico, essa conjuntura é simétrica à outra.
fogo deitando ao longo de uma picada incombustível (cf. M₆₇₀a), derrotou Num caso, trata-se de explicar porque apenas alguns povos têm acesso ao
uma sedutora de vagina dentada e decretou que, a partir de então, as mulhe- salmão e no outro, porque todos os homens, e não apenas alguns deles, têm
res não seriam mais perigosas, exceto as viúvas, que os jovens não deveriam esposa (excetuando-se aqueles que farão bem em preferir o celibato ao casa-
desposar... Em seguida, criou os utensílios do lenhador e as armadilhas para mento com uma viúva), devido ao fato de ser possível escolher entre vários
peixes, antes fabricadas com vítimas humanas, venceu um eco malvado per- regimes alimentares, como carne ou peixe (supra, p. 332), mas haver apenas
sonificado por um verme platelminto (tape-worm), ordenou que os passado- um regime doméstico, a situação de casado, cuja necessidade, sentida por
res obedecessem quando fossem chamados para a travessia dos rios e colo- todos, impede de ser muito exigente na escolha, ainda que isso certamente
cou um chapéu mágico de entrecasca que grudou em sua cabeça e do qual fosse desejável.
só uma Sapa horrorosa conseguiu livrá-lo. Como tinha prometido casar-se
com sua salvadora, pode-se ainda perceber nas manchas do astro noturno !
o animal com seu balde. Essa desventura está na origem dos casamentos
descombinados (cf. M₃₉₉-M₄₀₀, omm: 59-62,83). Voltando à terra natal, Lua A mitologia dos Coeur d’Alêne levanta outras questões, pois cinde em duas
castigou Gaio-Azul por ter maltratado e humilhado seus parentes (cf. supra, narrativas distintas a história do desaninhador — seguida da visita ao céu e
p. 302) e depois subiu com o irmão mais novo ao céu, onde brilham desde do retorno à terra e vingança do herói (M₆₆₄a,b, supra, p. 324) — e a libera-
então sob a aparência dos astros noturno e diurno. A mãe do demiurgo, ção dos salmões — precedida, à guisa de abertura, por uma sequência que
enquanto isso, fica dando a volta na terra, e cada périplo é marcado por um não se encontra alhures:
sismo. As noites sem lua são provocadas pela esposa do astro que, de tempos
em tempos, cobre os olhos dele com as mãos; e os eclipses, por um monstro M 694 COEUR D’ALÊNE: A LIBERAÇÃO DOS SALMÕES
que tenta devorar a ele e ao irmão (M₃₈₂, cf. omm: 60; Adamson 1934: 158-72).
Atenhamo-nos à origem dos peixes. Note-se que o mito situa o episódio Um grande caçador chamado Grua vivia com a avó afastado de uma aldeia cujo
entre os primeiros prodígios realizados pelo demiurgo, ao lado do ordena- chefe era Coiote. Só ele tinha caça. Coiote então mandou as filhas lhe proporem
mento das plantas lenhosas. O resto vai-se amontoando na sequência, numa casamento. A porta da casa era coberta de camácias, sobre as quais as esfomeadas

410 | Quinta parte: Amargos saberes Cosmopolitismo e exogamia | 411


senhoritas se lançaram gulosamente. Grou convidou as visitantes a entrarem e (M₆₉₇a, Boas 1917a: 69) também atribui a Coiote a criação das quedas do
pediu à avó que lhes servisse um prato de carne bem gorda. rio Spokane, “em consequência do que os Coeur d’Alêne não têm salmão”.
Depois de cada uma delas ter dado à luz uma criança, foram visitar os pais com o Um mito flathead já utilizado (M₆₀₈) formula a questão nos mesmos termos,
marido. Grou juntou enormes provisões de carne, que reduziu magicamente a propor- afirmando que as quedas do Spokane foram criadas para impedir os sal-
ções mínimas. Graças à generosidade do genro, Coiote pode oferecer um banquete a mões de subirem o rio até os Pend d’Oreilles, “que proíbem suas filhas de se
seus administrados. No dia seguinte, Grou levou todos para caçar. Com um simples casar com homens de outras tribos”.
pontapé, ele punha fogo a um tronco de árvore (cf. Mgac, Mghg). Nessa circunstância, e Por conseguinte, os Coeur d’Alêne, assim como os Siciatl (supra, p. 338),
na sequência, Coiote tentou imitá-lo, mas só fazia besteiras, e voltou com pouca caça. obrigados a pescar em terra estrangeira, resolvem por outras vias a questão
Mas ficou cansado e teve sede no caminho. Foi para a água para refrescar-se e, por filosófica e moral que a ausência de salmões em suas terras não podia deixar de
diversão, deixou-se levar de corredeira em corredeira, até que escutou a conversa de colocar a ambos. Mas os Coeur d’Alêne descartavam a solução “celeste” ado-
umas pessoas na margem, a respeito de quatro meninas canibais, com nomes de aves tada pelos Siciatl; ao contrário, dão à liberação dos salmões um contorno ainda
aquáticas, donas de uma barragem que mantinha presos todos os peixes. mais decididamente terrestre, e compensam o reconhecimento de que ela se
A história animou Coiote, que teve a ideia de se transformar em bebê boiando fez em prol sobretudo de povos estrangeiros (tais como os Nez Percé) subordi-
sobre um pedaço de madeira no rio. As meninas o recolheram e o alimentaram com nando-a a uma caça milagrosa de que eles próprios se vangloriavam de serem
salmão ensopado. Assim que pode, Coiote retomou sua aparência, furou a barragem os patronos. Pois a liberação dos salmões e a arte da pesca são apresentados,
e conduziu todos os peixes rio acima. na versão coeur d’alêne, como mero substituto com o qual teve de se contentar
Logo ficou com fome, matou um salmão e o pôs para assar. Lobos e uma raposa um personagem que já tinha demonstrado sua incapacidade para a caça.
pegaram o peixe enquanto ele dormia, e depois queimaram-lhe o contorno da boca Em tais condições, torna-se significativo o fato de as versões “de mon-
e os olhos. Coiote ficou apavorado ao ver sua horrível aparência refletida na água, e tante”, que opõem os Coeur d’Alêne e os Pend d’Oreilles aos Nez Percé em
depois vingou-se dos ladrões colocando excremento em lugar dos ovos de pássaros relação aos salmões, não serem construídas segundo o modelo das demais
que eles tinham juntado. versões salish da história do desaninhador, mas antes contrastantes com ver-
Coiote levou os salmões a vários lugares, mas deu um jeito para que estivessem sões provenientes do curso inferior do Columbia, que podemos portanto
ausentes de todos os lugares cujos habitantes se recusavam a lhe dar uma de suas chamar de “de jusante”. Assim, em M₆₀₁, Coiote afasta num eixo vertical seu
filhas em casamento. Finalmente, conseguiu uma esposa nez percé e se transformou filho chamado Águia, movido pela concupiscência sexual que nele provo-
em rochedo (Reichard 1947: 98-105). cam suas noras. Na versão coeur d’alêne, em compensação, ele afasta as pró-
prias filhas num eixo horizontal, movido pela concupiscência alimentar que
Os Coeur d’Alêne separam, portanto, a história da visita ao céu e a da libera- nele provoca um eventual genro chamado Grou. Quer o termo designe real-
ção dos salmões, à qual dão além disso uma forma particular. Tinham boas mente um Grou ou, mais provavelmente, uma Garça (nessa região da Amé-
razões para isso: sendo a visita ao céu do âmbito do imaginário, qualquer rica, o termo crane se aplica menos ao Grou do Canadá, Grus canadensis, do
povo pode reivindicá-la e se orgulhar dela tanto quanto qualquer outro, ao que à Garça-Real azul, Ardea herodias, cf. supra, p. 284), de todo modo trata-
passo que a presença ou ausência de salmões diz respeito à experiência, com se de uma grande ave pernalta dotada de uma voz sonora, oposta enquanto
a qual não se pode trapacear tão facilmente. Ora, os Coeur d’Alêne ocupa- ave aquática à Águia, ave do céu empíreo. Mas o fato de se poder passar do
vam um território a montante das quedas do rio Spokane, consideradas filho ao genro, da Águia à Garça, por intermédio de uma simples comutação
intransponíveis pelos salmões. Eram portanto obrigados a ir buscar peixe resulta do poder idêntico que os Nez Percé (M₆₀₂b,c) atribuem a um e os
seco junto a seus vizinhos Spokan, ou a obter a permissão destes para pescar Coeur d’Alêne (M₆₉₄) ao outro, o de ser um chefe de caça capaz de fazer sur-
a jusante das quedas. Mas em tempos mais recuados, antes da introdução do gir de um tronco caído, com um pontapé, o fogo que aquece. A transforma-
cavalo ou contemporânea a esse acontecimento, os Coeur d’Alêne preferiam ção que afeta Coiote, que passa de pai sexualmente louco pelas noras para
pescar a sudeste, nas corredeiras de montanha da bacia do rio Clearwater, sogro alimentarmente louco pelo genro é, portanto, a mesma que estudamos
isto é, em território nez percé (Teit 1930a: 107, 112-13). Uma versão okanagon e discutimos longamente a respeito de mitos sul-americanos (mc: 192-97).

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Além disso, o motivo das moças esfomeadas em busca de um marido que as transformação a propósito das versões lilloet e shuswap (supra, p. 343), e não
alimente remete a uma transformação do mito do desaninhador já encon- voltaremos a isso, a não ser na observação de que o canibalismo atribuído às
trada no início deste livro, entre os Modoc (M₅₄₃, supra, p. 70). donas dos salmões, que são as últimas criaturas a serem encontradas no eixo
Para poder consumar o incesto com suas noras, nas versões “normais” da horizontal, também em M₆₆₄b, reproduz o canibalismo e a caça por defe-
história do desaninhador Coiote afasta o filho para o alto. Na versão coeur cação atribuídos, pelas versões coeur d’alêne, às Aranhas hostis, que são as
d’alêne, para poder consumir* a carne que possui seu genro, Coiote afasta as primeiras criaturas encontradas no eixo vertical.
filhas para longe. De fato, o texto precisa que o herói caçador mora a uma Um mito okanagon (M₆₉₇e, Cline: 237) evoca igualmente um herói que
grande distância da aldeia que Coiote chefia. Algumas indicações sugerem é um grande caçador, chamado Grou ou Garça, mas que, à diferença de seu
que poderia ser ao sul. Os Shuswap (M₆₉₅, Teit 1909: 723-724) falam dos homônimo coeur d’alêne, não consegue encontrar entre todas as que lhe
S ’tuen, um povo de grous ou garças que residem numa região meridional propõem casamento uma que lhe agrade, e insiste, consequentemente, em
e emigram todos os anos para o norte; vários mitos do grupo {M₃₇₅, M₃₈₂}, permanecer solteiro. Por que um personagem ora conjunto ora disjunto em
relativos à origem do sol e da lua, contam que a ave chamada Grou ou Garça, relação ao casamento na terra (a ave aqui é um caçador, e não um pesca-
que foi o primeiro a ser testado no papel do sol, foi recusada porque fazia dor) teria o mesmo nome daquele a quem os mitos da América setentrional
dias longos demais (Sanpoil, Ray 1933: 137; Okanagon, Cline: 178). A evi- geralmente atribuem o papel de passador suscetível (cf. omm: 367-68), ou
dência de que a viagem para o sul das filhas de Coiote, que têm nomes de seja, de conjuntor e disjuntor em relação à viagem por água? A resposta para
esquilos terrestres, reproduz a ascensão ao céu do filho de Coiote — cha- essa pequena dúvida surgirá em breve (infra, p. 399).
mado Águia, nome de uma ave celeste, pelas versões meridionais — é refor-
çada pelo fato de o incidente da casa coberta de camácias, bulbos comestí- !
veis sobre os quais as moças se lançam gulosamente sem poderem aplacar
a fome (pois querem mesmo é carne), reproduzir, transformando-o, o de No centro do Planalto, os Sanpoil e os Okanagon contam a história da libe-
M₆₆₇a no qual o herói, na vã esperança de matar a fome, arranca da abóbada ração dos salmões de formas tão similares que seria maçante discuti-las em
celeste outros bulbos comestíveis, que na verdade são estrelas16. detalhes. Contudo, emergem aqui e ali algumas diferenças curiosas, que
Recebidas na casa e regaladas com carne, as heroínas nunca tinham merecem ser brevemente inventoriadas. Os Sanpoil, cujas aldeias permanen-
estado num banquete como aquele; nem ousam comer a gordura, e querem tes ocupavam os terraços do médio Columbia, às vezes inseriam o episódio
guardá-la para usar como unguento. Também nesse caso a alusão à visita ao da liberação dos salmões numa série de aventuras (M₆₉₆a, Boas 1917a: 101-
céu é evidente, pois as versões coeur d’alêne atribuem a mesma reação às 03) que começam quando Coiote encontra e mata um guerreiro com belas
Aranhas prestativas, que em seguida ajudarão o herói a descer para a terra roupas chamado Tentilhão. Ele veste os despojos de sua vítima e segue cami-
e voltar à sua aldeia, ao passo que as filhas de Coiote, com vontade de rever nho rio abaixo pelas margens do rio Columbia, para poder ficar contem-
a família, levarão os maridos para uma aldeia que não é a deles, de modo plando o próprio reflexo na água e admirando sua majestosa aparência (cf.
que os deslocamentos no eixo horizontal e os no eixo vertical se refletem M₆₉₄, supra, p. 381, em que Coiote fica horrorizado quando vê pela primeira
invertidos. Em M₆₉₇, a liga com o episódio da liberação dos salmões é rea- vez refletida na água a imagem de sua face enfeiada). Logo ele avista uma
lizada por sequências que pertencem ao ciclo do anfitrião desajeitado, em casa e espera ser recebido por uma atraente admiradora, mas só encontra
substituição a uma vingança que aqui não teria motivos. Já discutimos essa nela os doze filhos do tetraz. Coiote os interpela, e eles respondem numa
língua incompreensível17. Coiote acha que foi injuriado, cega-os com resina
* O mesmo verbo em francês, consommer, se divide aqui, em português, em “consumar”
e “consumir” [n.t.]. 17 . As lições do mito permanecem homólogas, mesmo quando parecem ser divergentes
16 . Se o motivo da porta constelada de camácias pertence a um grupo de transformação ao extremo, como evidencia a simetria entre suas intrigas: [Coiote fura de longe, por
do qual conhecemos outros estados, é com ceticismo que recebemos a sugestão de baixo, criaturas para quem seu discurso é ininteligível] —Y [Coiote tapa de perto, por cima,
Reichard (3: 4 n.2) de que tratar-se-ia, no caso, de um empréstimo ao folclore europeu. criaturas cujo discurso é ininteligível para ele].

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e vai embora (cf. M₆₈₀, supra, pp. 344,360). Os pais retornam; para se vinga- “irmãozinho”), consegue liberar os salmões. Depois, ele foi buscar esposa em
rem, pegam Coiote numa emboscada e o amedrontam; ele, em pânico, cai na todos os povos, privou de salmões os que lhe recusaram as filhas ou que,
água e se transforma em cesto que flutua ao sabor da corrente. Irmãs, donas para despachá-lo sem ofendê-lo, disseram que não comiam peixe, só cabe-
dos salmões, recolhem-no, põem nele seu peixe cozido, e o cesto os devora. ças de cabritos-monteses. A cada vez que os pais concordavam, mesmo que
Então jogam-no no fogo, onde Coiote imediatamente vira um bebê, que as a filha resistisse, ele, ao contrário, estreitava o leito do rio e tornava a pesca
mulheres pegam para criar. Sem delongas, ele fura a barragem de suas mães mais fácil. Ou então o episódio da liberação dos salmões se engata naquele
adotivas e as transforma em maçarico e maçarico kildir, aves comedoras em que Coiote, graças a seu longo pênis, copula através do rio com as moças
de peixe. Mais tarde, Coiote oferece um salmão a uma bela moça e o toma na outra margem que, imprudentemente, aceitaram sua oferta de lombo de
de volta quando ela recusa sua proposta de casamento; em todos os lugares salmão. Oferta imediatamente retirada se as interlocutoras pedissem lombo
onde sofre a mesma afronta ele corta o rio com quedas que os salmões não de cabrito em vez de peixe.
conseguem atravessar. A versão Hill-Tout (8: 146-47; M₆₉₇c), mais ou menos da mesma época
Outras narrativas, limitadas à liberação dos salmões, constituem outras que as outras, faz Coiote ser levado pelos ventos em vez da correnteza, na
tantas variações sobre o mesmo tema (M₆₉₆b-e, Ray 1: 72-73; 2: 167-77). qual, metamorfoseado em prato de madeira, ele decide pousar delibera-
Coiote dá salmões aos que lhe dão uma filha em casamento e os nega aos damente; as donas dos salmões o adotam como irmãozinho depois de ele
outros recorrendo a diversos meios: ergue rio abaixo quedas instransponí- assumir a aparência de um bebê. Coiote destrói a barragem, libera os sal-
veis, destrói as barragens de pesca ou desvia o curso do rio. Uma variante mões, foge e mais tarde se casa com a filha de Carcaju (cf. M₆₆₇b, que situa
mais desenvolvida (M₆₉₆d) situa o roubo recíproco de alimentos, já discutido o mesmo incidente em território okanagon). Ele cria cachoeiras a montante
(supra, p. 246) após a liberação dos salmões, e engata num novo episódio: de sua nova residência, para que os salmões não possam atingir a terra dos
cabritos, e decreta que, no futuro, o rio Similkameen não teria peixes.
M 696D SANPOIL: COIOTE E SUA FILHA Mencionaremos, finalmente, duas versões mais recentes (M₆₉₇d,e, Cline:
214-18), uma das quais inclui o episódio do roubo recíproco de alimento,
Subindo o rio na esperança de conseguir uma esposa, Coiote vai erguendo sucessi- em seguida ao qual Lobo e Raposa, de um lado, e Coiote, do outro, deram
vamente várias barragens de pesca, e as destrói sempre que é recusado. Finalmente, uns aos outros suas aparências atuais (rabo, focinho e patas curtos ou lon-
ele consegue ser aceito, em Kettle Falls. Sua mulher, Rato-de-Bolsa (ou Spermophile) gos, nariz e olhos mais ou menos esticados). Coiote percorreu toda a rede
dá à luz uma filha pela qual Coiote sente uma tração incestuosa quando ela cresce. hidrográfica e concedeu o benefício dos salmões e de margens rochosas e
Ele finge estar morrendo e ordena que a filha se case com um estrangeiro originário planas, melhores para pescar, aos povos que lhe ofereceram suas filhas em
da terra kutenai depois que ele morrer. Ele não demora a se apresentar sob a aparên- casamento, e recusou os mesmos favores aos que o repeliram ou declararam
cia do estrangeiro e, como só fala kutenai, o Camundongo, que é poliglota, serve de preferir carne de cabrito selvagem a peixe; daí a presença das cachoeiras, que
intérprete. Coiote se casa com a filha, duas Frangas descobrem sua verdadeira iden- impedem a subida dos salmões, em determinados lugares. A outra versão
tidade e o humilham. A filha, de vergonha, se transforma em rochedo no meio do rio. continua com o incesto entre Coiote e a filha (cf. M₆₉₆d) que, de vergonha,
Desde então, acontece de se cometer incesto de tempos em tempos (Ray 1933: 173-75). jogou-se no rio e talvez tenha virado estrela.
Ao lado das versões “normais” M₆₆₇-M₆₇₀, que tomamos por referência,
Já encontramos os motivos de Coiote culpado de incesto com a própria filha as narrativas thompson evocam (M₆₉₈a, Teit 5: 347-50) o tempo em que os
(supra, p. 308) e da mulher ou filha que vira um rochedo no meio de um rio salmões ainda não subiam os rios e se passava fome. As aves lançaram uma
(supra, pp. 333-35). As razões que motivam sua junção nesse contexto aparecerão expedição de guerra contra um monstro aquático que mantinha os pei-
mais adiante. Antes é preciso prosseguir o inventário das versões do Planalto. xes presos. Foram engolidas pelo animal e conseguiram matá-lo de dentro
Os Okanagon (M₆₉₇a,b, Boas 1917a: 67-71) contam como Coiote, pri- (cf. M₆₇₈, supra, p. 342). De sua vitória resultaram a atual distribuição dos
meiro transformado em prato devorador e depois em bebê não libidinoso peixes na rede hidrográfica, o calendário das migrações sazonais e a inicia-
(à diferença da versão sanpoil M₆₉₆d, e as mulheres aqui o tratam como ção de todos os povos do interior à pesca com anzol e com rede. Essa guerra

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das aves contra os peixes se junta a outras histórias do mesmo tipo, como a e foi dar ao pé da barragem que mantinha os salmões prisioneiros. Um
da guerra entre peixes do interior e peixes da costa — trutas contra salmões homem o pegou e deu de presente à filha. Tudo o que ela punha no prato
e esturjões — cujas peripécias explicam porque os esturjões têm poucas desaparecia, mas ela não se importava com isso, já que aquela gente tinha
espinhas e os casamentos entre gente da costa e gente do interior são raros tanto peixe. Esse regime permitiu ao doente curar-se e engordar. Quando ele
(M₆₉₈b, Teit 5: 350-52). Ou a guerra entre peixes e quadrúpedes, vencida se restabeleceu totalmente, os dois irmãos romperam a barragem e libera-
por estes últimos, que provocaram uma debandada dos adversários numa ram os salmões, que invadiram os rios. Depois eles voltaram para as nascen-
desordem que está perpetuada na atual repartição dos peixes (M₆₉₈c, Teit 5: tes do Lilloet, na cadeia das Cascades, onde jorram águas muito quentes, nas
352-53), e a guerra dos peixes contra os Okanagon, com as mesmas consequ- quais cozinhavam suas refeições.
ências (M₆₉₈d, Teit 4: 77). Uma variante (M₆₉₈e, Teit 5: 231-32) relata um con- Esse mito inverte as formas normais, dada a natureza dos trabalhos atri-
flito triangular, que começou quando um salmão raptou uma humana, que buídos aos dois irmãos, que tornam os rios navegáveis, ao passo que Coiote
foi depois raptada pelos quadrúpedes quando voltou para visitar os parentes. interrompe com obstáculos os rios por que passa. Eles também colocam no
Por isso, os peixes declararam guerra aos quadrúpedes e foram derrotados; meio do rio uma muralha de pedra que os impedia de passar com a canoa;
sua atual distribuição resulta de sua retirada confusa. Como em M₆₉₈c, o esse arco de pedra que, dizem, ainda pode ser visto, apresenta uma imagem
filho sobrevivente do salmão quis vingar seu povo, matou muitos quadrúpe- simétrica à do rochedo pleno que, em várias versões normais, Coiote ergue no
des e libertou a mãe, que era prisioneira deles. meio do rio, obrigando a água a se separar em dois braços, um de cada lado.
Todos esses mitos postulam uma bipartição dos seres — peixes e aves, Se, em ambos os casos, trata-se da liberação dos salmões, cabe notar que M₆₉₉
peixes da costa e peixes do interior, peixes e quadrúpedes, peixes e humanos conclui com a origem de um meio de cozimento natural, na água fervente de
— ou uma tripartição do reino animal em humanos, quadrúpedes e peixes. algumas fontes que há em terras lilloet. O caráter retrógrado do mito é inten-
Ao mesmo tempo, explicam porque os peixes estão desigualmente distri- sificado pelo fato de os salmões deixarem de ser o alimento primordial de
buídos pelos rios. O estudo do grupo, do qual selecionamos apenas alguns humanos até então desprovidos de recursos alimentares, e passarem ao papel
estados característicos, resta por fazer. É no mínimo curioso que descreva de substâncias medicamentosas que permitem restabelecer a saúde abalada,
a ordem natural conforme um modelo análogo ao que alguns atabascanos apesar dos alimentos variados e copiosos de que dispunha um certo doente.
do norte utilizam para organizar sua sociedade. Os Atabascanos ocidentais Bem, o mito todo é marcado pela facilidade. Os heróis arrumam o leito
se dividiam em duas fratrias exogâmicas, chamadas os Ursos e os Peixes, os do rio para torná-lo navegável de ponta a ponta, ao contrário de Coiote, que
Kutchin e os Loucheux tinham três, os Pássaros, associados aos tons claros, nas versões simétricas o interrompe com quedas que impedem a passagem
os Quadrúpedes, associados aos tons escuros, e os Peixes, associados aos tanto dos peixes quanto das embarcações. Os donos dos salmões dão mos-
tons intermediários. Eram quatro e talvez antigamente cinco entre os Car- trar de liberalidade ao não se importarem, já que têm tanto, com o fato de
rier, onde tinham os nomes de Tetraz, Castor, Sapo, Urso Grizzly ou Corvo os dois irmãos (por sua vez pouco exigentes, pois que se contentam com
(Hill-Tout 6: 144-45). restos) se apropriarem das sobras de suas refeições. Os resíduos espalhados
Vimos que os Lilloet contam a história do desaninhador sem incluir o mais tarde servirão para encher de peixes “todos os riachos e rios”, diz o
episódio da liberação dos salmões (M₆₇₁, supra, p. 337), que constitui entre texto, como que preocupado em eludir as cláusulas restritivas que as versões
eles um mito distinto (M₆₉₉, Teit 1912a: 303-04), no qual é possível reconhe- “normais” fazem questão de enumerar. E finalmente, graças às fontes de água
cer uma influência dos Iroqueses, que possuem relatos do mesmo gênero. quente, será possível cozinhar sem fogo.
Dois irmãos viviam nas nascentes do rio Lilloet; um deles adoeceu; nenhum Tal como foi observada no final do século xix, a distribuição geográfica
alimento lhe convinha e, quatro anos passados, ele era só pele e osso. O dos grupos lilloet já não refletia uma situação antiga (Hill-Tout 3: 126-28).
irmão partiu com ele de canoa e desceram o rio, nomeando todos os luga- Mas um mito sugere que, antigamente, uma das duas principais divisões
res e arrumando o leito do rio para torná-lo navegável. Atingiram o Fraser, da tribo não tinha salmão. Depois de os deuses transformadores, cuja gesta
depois o oceano, e chagaram finalmente ao país do salmão. O irmão saudá- M₆₉₉ reproduz em escala reduzida, terem subido o rio Lilloet, dois deles se
vel se escondeu e o outro se transformou em prato ricamente ornamentado afastaram em direções opostas e retornaram depois, um do sul e o outro do

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leste. Os companheiros que tinham ficado saudaram o primeiro com o nome salmões desenvolvem o tema da penúria. Elas enfatizam menos a afluência
de Li’luet e o segundo com o nome de Sla’tlemux. Disseram que, a partir de de salmões em certos locais privilegiados do que sua ausência em outros. É
então, os Li’luet iriam ao rio Fraser, em terras Sla’tlemux, para comprar sal- principalmente essa ausência que elas se propõem a explicar.
mão e fibra de cânhamo. Depois, gravaram numa rocha um sinal marcando
a fronteira entre os dois grupos (M₇₀₀, Teit 1912a: 292-96). Mesmo que, como !
decorre do mito, os salmões não subissem até o alto Lilloet, a presença de
várias fontes quentes nas montanhas podia alimentar a utopia de uma terra Convém, pois, considerar em conjunto as duas sequências, que aliás se
de fartura e felicidade onde todos os problemas da vida material, a exemplo seguem, em que o tema da penúria toma formas exatamente opostas. Depois
da culinária, são resolvidos de modo inesperado. Assim como M₆₉₉ inverte, de ter liberado os salmões, Coiote se põe em busca de uma mulher, apre-
nesse mesmo espírito, mitos simétricos sobre a liberação dos salmões, M₇₀₀ senta sua solicitação aos povos ribeirinhos, um após o outro, concede sal-
inverte os da costa que tratam de sua origem (M₃₇₅, M₃₈₂, M₅₀₆) pelo modo mão aos que o aceitam como genro e o nega aos que o recusam. A partir daí,
particular com que narra o incidente da rocha furada, também presente as versões divergem: Coiote se apaixona pela filha e consegue se casar com
em M699: “dirigindo-se para o alto do lago, os Transformadores chegaram ela fazendo-se passar por morto e apresentando-se com a aparência de um
ou lugar onde desemboca o rio Lilloet. Viram uma espécie de brejo plano nobre estrangeiro falante de uma língua ininteligível (M₆₉₆d), ou então ele
que descia e subia sem parar e impedia as canoas de aceder ao rio. Fizeram interpela jovens banhistas e copula com elas através do rio quando elas acei-
com que o terreno continuasse pantanoso mas ficasse imóvel, com um canal tam sua oferta de salmão, mas priva de peixe as que declaram preferir carne.
navegável no meio, por onde as canoas podiam passar” (Teit 1912a: 295). Como seu pênis mutilado fica na vagina da vítima, ele recupera a parte fal-
Quer se trate de um arco de rocha através tante graças ao mesmo estratagema que, no outro caso, o ajuda a seduzir
do rio ou de um pântano atravessado por a própria filha, de modo que as duas versões se juntam nesse ponto. Elas
um canal no meio, em ambos os casos, a têm, contudo, conclusões diferentes. Uma explica porque os povos monta-
imagem de um obstáculo esvaziado no nheses e apreciadores de carne ficam a partir de então privados de salmão.
centro, que permite à corrente juntar-se, A outra, porque certos povos ribeirinhos poderão contar com pesca fácil e
opõe-se à imagem, nas versões simétricas, abundante, onde a filha de Coiote, transformada em rochedo no meio do rio,
[ 2 6 ] Os dois obstáculos.
de um obstáculo instalado no centro, que divide a corrente em dois braços que se reúnem logo adiante, formando uma
obriga a corrente a se dividir (fig. 26). bacia de água calma na parte correspondente à entreperna.
Essas formas não remetem apenas às que encontramos ao analisarmos, Distinguem-se, pois, dois tipos de mulheres para com as quais Coiote
no registro celeste, as relações de oposição e correlação entre, de um lado, adota a mesma tática de assumir a aparência de um nobre desconhecido.
as manchas solares e lunares e, do outro, os parélios e parasselênios (supra, A mulher pode ser sua própria filha, ou seja, uma esposa próxima demais, ou
p. 218). A situação descrita por M₇₀₀, antes de a mudarem os Transforma- uma completa estrangeira, cuja posição distante, enquanto esposa, resulta
dores ou os heróis de M₆₉₉, pelo meio ilustrado na figura à esquerda, evoca do fato de que Coiote a avista e fala com ela do outro lado do rio, numa lín-
diretamente as symplégades, que também impedem o acesso ao país do gua que ela, aliás, não compreende; e copula com ela através do rio, graças a
salmão (cf. M₆₉₉) e se movem na vertical (cf. M₇₀₀). De onde a hipótese de seu pênis desmesuradamente longo. Porém, para nos concentrarmos nessa
haver uma homologia também entre a figura da direita e o balanço subme- oposição simples, seria preciso desconsiderar o fato de Coiote já ter-se rela-
tido, como a corrente nesse caso, a um movimento divergente. Demonstrare- cionado com um outro tipo de mulher, as donas dos salmões.
mos esse ponto mais adiante (infra, p. 398). Por ora, basta termos mostrado Quase todas as versões de que dispomos fazem aparecer um contraste fun-
que as duas estruturas, opostas entre si, implicam que mitos nos quais uma damental entre as donas do salmão e as formosas banhistas: Coiote encontra
ou outra aparece, excluindo a outra, se opõem entre si. E como M₆₉₉ desen- as primeiras a jusante, em geral no mar, após uma longa descida do rio, mas vê
volve o tema da opulência, resulta daí que, como já tinha sugerido a aná- as outras depois de ter subido bastante rio acima, e na margem oposta àquela
lise sintagmática (supra, p. 380), as versões simétricas sobre a liberação dos em que ele faz uma parada para descansar. O inglês permite melhor do que o

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francês expressar esse contraste entre os dois tipos de mulheres. Umas seriam vertical, em cujo topo as Aranhas se encontram, e que encontra a terra na
mulheres along, e as outras, mulheres across. Convenhamos traduzir essas fór- outra ponta, em vez de um eixo horizontal, numa ponta do qual estão as
mulas concisas por “ao longo” e “de través”, termos que denotam respectiva- donas dos salmões, em pleno oceano, e que encontra a terra do outro lado.
mente uma orientação paralela ou perpendicular ao curso do rio. Assim como as velhas cegas estão “do lado das symplégades”, é preciso,
Uma vez notada essa diferença, outros detalhes vêm corroborá-la e portanto, que as Aranhas prestativas estejam “do lado do balanço”. E com
reforçá-la. Às formosas banhistas, Coiote propõe primeiro alimentá-las efeito, a longa corda que liga o céu à terra passa ao papel de balanço, nas
à distância, com alimentos que elas não possuem ou que não querem. Em versões de Puget Sound. Por conseguinte, do lado das symplégades, temos
seguida ele copula com uma delas graças a seu longo pênis. E em relação às um par de mulheres “de través” e um outro “ao longo”; o mesmo acontece
donas do salmão, ele tinha se comportado de modo ao mesmo tempo simi- do lado do balanço (fig. 27). Cada um dos dispositivos conjuga, na verdade,
lar e inverso: primeiro, transformado em prato devorador e se alimentando, ambos os aspectos, pois tanto as symplégades quanto o balanço oscilam “de
por contato direto, de um alimento que elas detêm e que ele cobiça; depois, través”, umas no plano vertical e a outra no horizontal, mas as primeiras em
transformado em bebê, casto ou libidinoso, conforme a versão, ou seja, sem pleno mar, na entrada do país longínquo dos salmões, e a outra ao rés da
pênis num caso e, no outro, dotado de um pênis que se pode presumir curto, terra, no centro do país que virá a ser o dos humanos comedores de salmão.
por duas razões, porque pertence a um bebê, e porque o coito ocorre não à
distância e em plena luz do dia, mas na intimidade noturna do leito que suas afinidade
symplégades
protetoras aceitam compartilhar com ele.
“de través” “ao longo”
Vamos dar um passo adiante, ou melhor, voltemos para o começo do
mito que estamos discutindo. A mesma relação de oposição e correlação que velhas, cegas aranhas prestativas,
separadas por fogo eixo vertical céu/terra
acabamos de evidenciar entre os dois grupos de mulheres encontradas por
Coiote no decorrer de suas aventuras aquáticas já existia entre os dois gru-
pos de personagens encontrados por seu filho, quando perambulava pelo céu. jovens, surdas donas dos salmões,
Sentadas uma de cada lado de uma fogueira através da qual passam uma à separadas por água eixo horizontal terra/água
outra uma comida ruim (cascalho, pedra ou madeira podre), as duas velhas
cegas prefiguram as posições de Coiote e da jovem banhista, situados nas afinidade
balanço
margens opostas de um rio através do qual a passagem de comida boa (lombo
de salmão) acarreta um consumo de ordem sexual e a amputação parcial do
pênis ruim (causa doença); ao passo que, no primeiro caso, a retirada parcial
da comida ruim era seguida da introdução direta, na mão de uma das velhas corda curta corda longa
— a curta distância, portanto — de um pênis bom (cura a cegueira). As
velhas celestes são cegas, as jovens banhistas ouvem mal; não compreendem,
pênis longo pênis curto
ou compreendem às avessas o que Coiote grita de longe, numa língua que
elas não conhecem (M₆₆₇a, M₆₆₈a-d, M₆₈₀b, M₆₉₆d-e): “Depois dessa desdita,
[ 2 7 ] Mulheres “ao longo” e “de través”.
as moças não mais se jogarão na frente dos viajantes para saber o que levam
na bagagem. As velhas podem fazer isso, a moças não” (Adamson 1934: 263).
Se as primeiras mulheres encontradas no céu estão “de través”, deveria Essa ambiguidade, própria dos dois esquemas geradores de nossos mitos, fica
resultar que as Aranhas gentis, visitadas em seguida pelo herói, e que o fazem ainda mais patente se notarmos que em M₃₈₂, versão da gesta do demiurgo
descer à terra na ponta de uma longa corda (oposta por M₆₆₄a ao caule curto, Lua, o episódio do balanço assassino, que passa a ser destinado exclusiva-
também de cânhamo, que liga horizontalmente as velhas cegas por debaixo mente para o lazer, vem pouco antes daquele em que o demiurgo vence uma
do fogo), estejam “ao longo”, embora a expressão aqui se aplique ao eixo criatura de vagina dentada e decreta que, a partir de então, o órgão feminino

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não será mais repleto de facas de pedra e será feito só de carne. Entre esses quando começou a faltar madeira. Esse pênis comedor de aparas de madeira
dois episódios se intercalam outros três, um dedicado às bonecas, e portanto é o mesmo com o qual Coiote quer copular através do rio, segundo os
a um outro divertimento (supra, p. 379), certamente por analogia com o do Chinook (M₆₁₁b, Jacobs 2, i: 87-89). Os Chehalis do estado de Washington
balanço, e os dois outros, de modo talvez significativo, explicando a origem (M₇₀₁c, Adamson 1934: 152-54) dizem que pertencia à cambaxirra, a menor
do cozimento e da fogueira doméstica. das aves. Coiote quis pegar o pênis emprestado, mas ele devorava todas as
Ora, uma mulher de vagina dentada constitui um equivalente anatômico suas refeições, então ele resolveu devolvê-lo ao proprietário e decretou que,
das symplégades, assim como o longo pênis é um equivalente anatômico da no futuro, o pênis não comeria a comida dos humanos, e lhes serviria apenas
corda que liga o céu e a terra, por sua vez transformável em balanço. Aliás, para urinar e copular. Segundo os Sahaptin do rio Cowlitz (M₇₀₁a,b, Jacobs 1:
percebe-se em M₇₀₀ uma equivalência mais direta, pois a mulher desejada 102-03, 243-44), foi com o pênis emprestado da cambaxirra, tão longo que
pelos heróis não se encontra na outra margem, “de través”, e sim no topo enchia cinco cestos, e que era alimentado com formigas odoríferas (cf. ibid.:
de uma falésia acima do rio, “no alto”, portanto; e o alto, como vimos, é um 76, 108, para formas invertidas) que Coiote copulou através do rio.18 Veremos
modo do longe. Eles se esforçam em vão para elevar seus pênis até ela, e o mais adiante (infra, p. 421) que essa Cambaxirra, aqui o proprietário de um
máximo que conseguem é respingar a parede vertical com esperma. É só longo pênis, é alhures o único capaz de prender na abóbada celeste a longa
depois de se empanturrarem de artemísia (o que confirma o caráter inver- cadeia de flechas graças à qual os animais conquistaram o fogo em prol da
tido desse mito, cf. Lévi-Strauss 9: 63-66) que eles conseguem erguer seus futura humanidade (Jacobs 1: 145-46; cf. 3: 175).
membros à altura requerida. Mas ainda não terminamos o inventário das transformações passíveis de
É revelador, portanto, que os mitos dessa região da América tomem o afetar o longo pênis. O de Cambaxirra às vezes fica curto e passa da cate-
cuidado de desdobrar o esquema do longo pênis e o da vagina dentada. Pro- goria do baixo para a do alto quando seu proprietário arranca um dente
põem imagens complementares de cada um deles, que ilustram respectiva- doente de um desconhecido que, em retribuição, arruma seu nariz, cortado
mente seu aspecto “symplégades” e seu aspecto “balanço”, ao mesmo tempo por acidente, que tinha a ponta pendurada, quase que totalmente seccionada
“ao longo” e “de través”. Se, como acabamos de ver, existem mulheres com (Siciatl, M₇₀₂, Hill-Tout 1904a: 38-39). Coiote, o que toma emprestado um
a vagina cheia de pedras cortantes à imagem das symplégades, as formo- pênis que devora a comida, às vezes devora o próprio pênis, como se fosse
sas banhistas com quem Coiote copula trans flumen certamente não fazem comida, quando tem fome e, ao contrário de Cambaxirra, legítimo proprie-
parte desse grupo. O pênis de Coiote só fica preso na vagina esticada devido tário do grande orgão, ele depois fracassa na tentativa de lançar suas flechas
à sua enormidade e peso. Ademais, todas as versões insistem num ponto: até o céu (Klikitat, M₇₀₃, Jacobs 1: 61-62). Encontra-se entre os Tahltan, ata-
nenhum objeto que se pareça de algum modo com uma vagina dentada bascanos setentrionais vizinhos dos Tlingit, um derradeiro estágio dessa
(como as facas e pedras afiadas que as companheiras da vítima experimen- mesma transformação: eles atribuem a um único orgão masculino um
tam sem sucesso) é eficaz para cortar o longo pênis. Para fazê-lo, é preciso comprimento desmesurado, dentes pontudos e apetite canibal (M₇₀₄, Teit 7:
que o próprio Coiote sugira o emprego de uma folha ou de uma erva de bor- 245-46), ou seja, um penis dentatus, simétrico à vagina dentata. Todas as
das cortantes. Seria difícil dizer mais claramente que a vagina da moça não transformações possíveis são tão metodicamente ilustradas que não parece
é dentada; aliás, é ela que fica seriamente doente devido a esse pênis enfiado, ser arriscado interpretar a longa corda que a mulher fiel, na história do desa-
quando no outro caso, seu parceiro macho é que teria morrido. ninhador, não se sabe bem por que razão, arrasta atrás de si e na qual o herói
O motivo da vagina dentada desempenha nos mitos, portanto, um papel
tão importante quanto seu contrário, de modo que a imagem de uma vagina
18 . Nosso colega Pierre Maranda, da Universidade de Vancouver, nota, a partir de
normal se situa entre os dois. A mesma observação pode ser feita a respeito
uma informação abtida do próprio Melville Jacobs, que essas formigas odoríferas,
do longo pênis, que precisa ser cortado nos exemplos que acabamos de
chamadas em inglês de pissing ants, quando são esmagadas exalam um forte odor
lembrar e é um órgão cortante em outras versões. Segundo o mito sahaptin de urina. O que certamente explica o apetite particular do pênis por elas. Segundo
M₆₁₁a (supra, p. 251), Coiote trocou seu pênis por um outro que derru- informantes indígenas, seu odor seria mais o de urso; fragmentos pilados de seus
bava árvores como um machado, mas voltou-se contra o próprio portador formigueiros eram colocados em volta das casas para afastar animais daninhos.

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pisa várias vezes para imobilizar a esposa e fazer com que ela note a sua pre- recentes, os mesmos Salish “se esforçavam por tomar mulheres no maior
sença (M₆₀₂b-c, M₆₀₆a-c, M₆₇₇ etc.), como uma imagem invertida do longo número possível de aldeias...; alianças diversificadas lhes garantiam pro-
pênis — indo da mulher para o homem — que Coiote utiliza ao cabo de teção e hospitalidade para além das fronteiras do grupo local” (Barnett 3:
aventuras na água, mas que permanecem estritamente paralelas às de seu 182). “Os casamentos exogêmicos... eram o método reconhecido oficialmente
filho, no céu e na terra. para superar a desconfiança que reinava entre as aldeias” (M. W. Smith 2: 42;
cf. 165-67). Os Chilcotin, que são atabascanos vizinhos dos Salish, costuma-
! vam contrair casamento com seus vizinhos Bella Coola, Shuswap e Lilloet;
por volta de 1855, estimava-se que metade dos Shuswap da região dos desfila-
Vimos que, na região do baixo Columbia, a história do desaninhador deiros do Fraser tivessem sangue chilcotin (Teit 1909: 762-763). Certos mitos
desemboca na liberação dos salmões, seguida da origem das feiras e mer- dos Salish do interior se manifestam no mesmo sentido. Os Thompson rela-
cados. Mais ao sul, a mesma história se inverte e se transforma no ciclo de tam a descoberta de povos desconhecidos, habitando nas redondezas, mas do
Dona Mergulhão, que trata de incesto e periodicidade, tomada a partir de outro lado de uma floresta que permaneceu impenetrável por muito tempo:
um ângulo temporal em vez de espacial. Se fazem sentido as considerações “Havia várias gerações que esses povos estavam separados por não mais de
acima, elas levam a crer que ao norte do Columbia, na bacia do Fraser, a um ou dois quilômetros, mas um ignorava a existência do outro”. Tampouco
história do dessninhador se mantém inalterada, mas associa o episódio compreendiam as línguas um do outro. Dois rapazes estabeleceram contato
da liberação dos salmões tanto à questão da repartição dos peixes na rede e logo cada um deles recebeu uma mulher dos anfitriões. Limparam o leito
hidrográfica quanto à da exogamia como propriedade característica da rede do rio e as margens e fizeram caminhos interligando as aldeias. Assim que a
de alianças matrimoniais. comunicação se tornou possível por água e por terra, os contatos se tornaram
Esse é o sentido literal dos mitos, quando explicam a presença ou ausên- frequentes, bem como as alianças matrimoniais (M₇₀₅a,b; Teit 5: 279-80).
cia de salmão pela acolhida positiva ou negativa que os povos visitados por Os povos em questão habitam as margens de rios ou lagos. Mas a linha
Coiote dão a suas propostas de casamento. É esse também o seu sentido sim- divisória entre as bacias fluviais marca os limites da política de exogamia.
bólico, ilustrado por imagens ordenadas em vários planos: symplégades e Os Nez Percé que, como observamos (supra, p. 328), eram o posto avançado
balanço como meio de oclusão ou livre circulação entre perto e longe, baixo das culturas do Planalto e da costa na direção das Rochosas, encaravam
e alto; vaginas carrascas ou vítimas, longos pênis mais ou menos dispostos a com pessimismo as alianças matrimoniais com seus vizinhos das Planícies,
atravessar o rio, respondendo a preferências descaradas por peixe ou carne; em cujos territórios às vezes se aventuravam para a caça ao bisão. Conta-se
e finalmente, a imagem do pretendente ideal, seguro de ganhar uma esposa que Coiote, em troca da promessa de uma esposa, ajudou um velho bisão
se conseguir se fazer passar por “pênis longo” matafórico, ou seja, um nobre a recuperar suas dez esposas, que haviam sido raptadas por um rival mais
estrangeiro falante de uma língua ininteligível, a não ser para o Camun- jovem. Recebeu sua recompensa, mas teve de prometer que se manteria
dongo poliglota que, em sua longa existência, teve sucessivamente esposos casto durante os dez dias de duração da viagem de volta. Porém, no oitavo
originários de todas as partes. dia, a bisão se transformou em coiote fêmea, o que aumentou a impaciência
De fato, os Salish, tanto os da costa como os do interior, apreciavam mui- de seu novo esposo. Na décima noite, ele não conseguia dormir e, ao alvo-
tíssimo as uniões exóticas: “De modo geral, esses índios buscam suas esposas recer, aproximou-se da esposa, que imediatamente retomou a forma animal
em tribos estrangeiras de preferência à sua própria. É difícil dizer se agem primeira e voltou para casa. “Será sempre assim, concluiu Coiote; se um
assim por razões políticas ou se movidos pela busca mais ou menos cons- homem quiser levar uma mulher desse país, ela o abandonará antes mesmo
ciente de vantagens biológicas; a primeira hipótese parece mais provável. de chegarem ao dele”. Coiote sofreu a mesma desventura com uma jovem
Eles se orgulham, com efeito, de reunir em si mesmos sangues de origens cabra-montanhesa que ele tinha curado e desposado: ela o trocou por outro.
diferentes. Expressões do tipo ‘sou metade snokwalmu e metade klikitat’ e Desde então, as mulheres originárias do país dos bisões costumam abando-
congêneres são correntes, e entre os chefes, quase unânimes” (Gibbs: 197; ver nar seus maridos (M₇₀₆a,b, Boas 1917a: 190-92). Indicações análogas provêm
também a réplica da avó, supra, p. 149). De acordo com testemunhos mais dos Okanagon (Cline: 236-37).

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Do mesmo modo, os Quileute da costa marítima temiam as uniões dis- ordem natural, de fazer como se a ausência de organização e o caráter amorfo
tantes e invocavam o exemplo de uma jovem de sua tribo que estava de visita dos grupos salish, para os quais chamamos a atenção no começo da discussão
entre os seus e se recusou a voltar para junto de seu marido demasiado exó- (supra, p. 320), refletissem contra todas as evidências uma ordem natural pela
tico: “Por isso os Quileute preferem casar-se entre eles. Quando se casam com qual sociedades sem consistência sentiam uma espécie de nostalgia.
mulheres de outras tribos e acontece de uma delas ir visitar sua aldeia natal, é Essa ordem social ideal, que reproduziria em vazio e até em suas lacu-
muito difícil mandá-la de volta para junto do marido” (Reagan: 58-60). nas os aspectos positivos da ordem natural, possui contudo limites exter-
Se o fervor exogâmico das gentes do Planalto e da costa para no casa- nos, quando topa com a incompatibilidade dos meios e dos modos de vida.
mento com quadrúpedes, ou mais realisticamente, com mulheres originá- Quanto a isso, a opção feita pelos Salish se opõe à de seus vizinhos mais ao
rias de povos que preferem a caça à pesca, não parece que o reino vegetal, sul que, como vimos, resolvem o mesmo problema com a instituição das
pelo menos na imaginação, lhes cause repulsa. Mitos salish relatam várias feiras e mercados, o que significa que admitem, e até prescrevem, a troca
uniões entre uma mulher e uma raiz, ou entre um homem e árvores. Não de mulheres entre pessoas que possuem modos de vida diferentes, mas se
os indexaremos, pois caberiam melhor numa análise do sistema de plantas encontram periodicamente para negociar suas matérias-primas, seus obje-
a que já aludimos (supra, p. 346), mas que este livro tem de deixar de lado. tos manufaturados e seus gêneros alimentícios. Mais distantes desses cen-
Lembraremos apenas que um ciclo mítico importante, compartilhado pelos tros comerciais, que às vezes frequentavam, os Salish do Planalto se querem
Coeur d’Alêne, Thompson, Shuswap e Lilloet, concerne um demiurgo, filho mais fechados sobre si mesmos, e trocam mulheres, como dizem seus mitos,
de uma humana e de uma raiz de Peucedanum (Teit 1909: 644, 651-52; 1898: sobretudo com povos que comem como eles.
95; Hill-Tout 1899b: 564-66; Dawson 1892: 31; Reichard 1947: 57-67 etc.) e que
um grupo de outros demiurgos deu a Coiote, em lugar de suas mulheres !
de galhos de árvores, esposas mais convenientes, de amieiro e álamo; suas
cores e cabeleiras diferenciadas são a origem das diferenças que atualmente Essas trocas, contudo, também enfrentam um limite interno, claramente
podem ser observadas na aparência física dos índios (Teit 1912a: 357-58; 1898: expresso no incesto entre Coiote e sua filha, e regulado de vários modos.
44; Boas 1917a: 19; 1928: 17, 23). Segundo os Salish do rio Cowlitz (M₇₀₇, Adamson 1934: 262-63), a moça
A importância desses temas, que ilustram uma exogamia vegetal, por assim fugiu com um rapaz para o lugar chamado The Falls, perto de Nesika: “Aqui
dizer, é explicada pela observação já feita (supra, p. 380) de que os mitos rela- sempre é assim, quando uma moça ama um rapaz, foge com ele e os pais
tivos à organização do mundo pelo demiurgo colocam em primeiro plano a dela não podem mais decidir quem será seu marido. Entre os Cowlitz, ao
origem (da diversidade) das plantas lenhosas e a (da diversidade) dos peixes. contrário, os homens têm de conseguir suas mulheres respeitando as regras...
Sublinhando, assim, uma homologia entre os dois reinos, eles insistem mais mas lá, os pais não escolhem os cônjuges de seus filhos”. Outras versões,
no fato da diversidade do que nas modalidades concretas que assume em cada mais numerosas, transformam a moça coberta de vergonha em rochedo no
caso. Postura compreensível numa região em que rios atravessam vastidões meio do rio, imobilizando-a, em vez de afastá-la: “Ela pulou no rio olhando
semi-desérticas, pobres em madeira e lenha e na qual, consequentemente, a para montante. Coiote mandou-a virar para jusante e afastar as pernas, para
repartição desigual da vegetação coloca a mesma questão que a repartição dos fazer uma passagem livre para os peixes”. Segundo outra versão, também
peixes. Porém, ao introduzirem uma terceira homologia, com a desigualdade proveniente dos Sanpoil, recusaram uma esposa a Coiote e ele destruiu
das trocas de mulheres entre os bandos ou tribos, conforme possuem ou não uma cachoeira: “Um grande rochedo rolou para o meio do rio, formando
salmão e vivem principalmente da caça ou da pesca, os mitos procuram resol- uma cascata de cada lado. Então, Coiote gritou ‘Filha! Ei, filha! Vire-se para
ver uma questão mais propriamente filosófica, pois equiparam a presença ou jusante, não para montante!’ “. O rochedo deu uma volta. A parte que saia da
ausência de alianças matrimoniais entre os grupos, ou as proporções desiguais água, a jusante, formava uma grande bacia alongada... De agora em diante
em que são seladas, isto é, dados de ordem quantitativa, à diversidade das — disse Coiote — quando os salmões subirem para a desova, saltarão na
espécies animais e vegetais, que é de ordem qualitativa. Em suma, trata-se para sua vagina tentando atravessar as cascatas” (M₆₉₆, Ray 1933: 173, 175). Uma
eles de transmutar carências da ordem social em propriedades positivas da variante nez percé (M₇₀₈, Boas 1917a: 189-90) transforma em banco de rocha

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a parte do meio do longo pênis de Coiote, que ele mesmo corta perto do os foneticistas), ilustrado pela configuração simétrica do esquema à esquerda,
próprio corpo, enquanto suas vítimas cortam a outra ponta. Os Okanagon p.388, em que a corrente entra numa passagem estreita que junta as águas,
(M₇₀₉, Boas 1917a: 72-74) explicam que as mulheres às vezes se suicidam por- devido às barreiras de pedra dos dois lados, em vez de chocar-se com um
que imitam a filha de Coiote, que se transformou em rochedo. Inversamente, obstáculo no meio que as separa em dois braços, como no esquema à direita.
os Kutenai atribuem às desventuras matrimoniais de Coiote a obliteração Em ambos os casos, trata-se de obstáculos que não são absolutos, como o são
das passagens que teriam existido antigamente entre os lagos e o rio Kutenai, as quedas, mas semiobstáculos, congruentes com as symplégades, no caso do
o que tornou obrigatório o sofrido transporte dos barcos por terra entre mitema fricativo, e com o balanço, no que concerne ao mitema lateral.
esses locais (M₇₁₀, Boas 1918: 81, 179). Como também diriam os linguistas, esses dois mitemas possuem a pro-
Os mitos demarcam, pois, três limites internos a uma exogamia que gos- priedade de serem vibrantes, um no eixo vertical e o outro no eixo horizontal.
tariam de erigir em sistema, o incesto, o amor súbito e o suicídio feminino. Por outro lado, distinguem-se por suas respectivas afinidades com a oclusão
Nos três casos, de fato, a moça é retirada ou retira a si mesma das transações pura e simples e a ausência de oclusão. Se levarmos ao limite o estreitamento
matrimoniais, e desregula o mecanismo das trocas conjugais. Contudo, ao de que resulta o mitema fricativo, estreito canal navegável atravessando uma
mesmo tempo, os mitos são extremamente cuidadosos em distinguir as ano- barreira de pedra ou um pântano, encontraremos as quedas como forma de
malias pouco importantes que podem intervir no sistema sem bloquear seu oclusão total. Nesses diversos graus, portanto, as quedas e o canal remetem
andamento de modo duradouro das desordens muito mais graves que ocor- efetivamente às symplégades. Conforme M₇₀₀, aliás, o canal navegável resul-
rem quando um grupo social insiste em recusar uma proposta de aliança tou de uma arrumação de symplégades pantanosas. As quedas impedem o
feita por outro grupo. Somente nesse caso estaria criada uma situação irre- acesso aos salmões às terras dos habitantes de montante, assim como longe,
mediável, que nada teria em comum com aqueles pequenos incidentes, uns a jusante, as symplégades de pedra obstroem o acasso ao país dos salmões.
de alcance bem restrito, quando dois jovens escolhem um ao outro à revelia O balanço cósmico, ao contrário, é não oclusivo; enquanto existia, ligava o
[formulação da política de alianças matrimoniais entre famílias ou tribos (M₇₀₇), outros céu à terra e, em terra, montanhas muito afastadas. Essa dupla função só era
diferente do final raros, como os surtos capazes de levar uma moça ao suicídio (M₇₀₉) e as possível graças ao movimento longitudinal que a animava e a fazia divergir,
do resumo do relações incestuosas, cujo caráter episódico M₆₉₆d, significativamente, faz em relação a seu ponto de origem, altarnadamente nos dois sentidos, assim
mito, também questão de sublinhar, afirmando que “acontecerá, de tempos em tempos, de como divergem simultaneamente os dois braços de um rio quando topam
no original] um homem querer viver com a própria filha...” (Ray 1933: 175). com um obstáculo situado no meio, que os obriga a passar pelas laterais.
Quer se trate de obstáculos dirimentes ou de meros defeitos que desor- E confirma-se, assim, a realidade do sistema que, à p.389, só podíamos pos-
ganizam temporariamente o jogo das alianças, todos esses fenômenos de tular. O conjunto das relações se inscreve num diagrama completo (fig. 28), que
ordem sociológica são codificados pelos mitos salish em termos de rede peço ao leitor para comparar com os de cc: 344 e mc: 211, para tirar as devidas
hidrográfica, repleta de acidentes naturais que provocam a abundância conclusões. Com efeito, os movimentos laterais do balanço e verticais das sym-
ou a falta de peixe, conforme as quedas d’água retardam seu avanço ou o plégades se diferenciam pela frequência, de modo que a oposição lento/rápido
impedem, para a grande alegria dos povos instalados a jusante, e ao mesmo é pertinente nos três casos.
tempo, frustrando os povos instalados a montante.
Tomando emprestado o vocabulário da fonologia, diríamos que as quedas
constituem mitemas oclusivos: sua posição relativa determina a presença ou mitema
ausência de peixe. Por outro lado, o rochedo originário de um incesto, que os não oclusivo oclusivo
mitos situam no meio do rio, obstruindo-o parcialmente e deixando a água
passar de ambos os lados, desacelera, sem interromper, e desvia em direção às lateral fricativo
margens a subida dos salmões. Utilizando a mesma terminologia, poderíamos (vibrantes)
reconhecer nele o caráter de mitema lateral, que contrasta, como no caso dos
(≅ balanço) (≅ symplégades) [ 2 8 ] Sistema dos obstáculos.
fonemas, com o mitema fricativo (“em que a língua forma um canal”, dizem

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O valor, no final das contas positivo, do semiobstáculo fica bem evidente Essa interpretação é confirmada por um importante grupo de mitos
num mito de Puget Sound (M₇₁₁, Haeberlin 1924: 396) que só considera das Planícies (registrado até a costa oeste, cf. M₆₅₉, M₇₁₂), já utilizado para
a completa ausência de obstáculo para descartá-la; os rios teriam podido resolver uma outra dificuldade (supra, p. 302). Ainda reconhecível por detrás
correr nos dois sentidos, o que teria facilitado a navegação. Porém, se fosse do que chamamos (supra, p. 305) de sua “transformação Putifar”, a histó-
assim, os salmões desceriam o rio nem bem o tivessem subido, e a pesca ria do desaninhador de pássaros ali passa de um eixo de disjunção verti-
seria impossível. É melhor, portanto, que os rios sejam de mão única. Em cal para um eixo de disjunção horizontal. Pedindo ao herói que colha ovos
mitos que estabelecem uma correspondência tão rigorosa entre as leis da de aves aquáticas em vez de filhotes de águia aninhados no topo de uma
pesca e as da exogamia, é notável que se encontre aplicado aos peixes o árvore, seu pai, irmãos ou companheiros o abandonam numa ilha distante
mesmo argumento que mitos sul-americanos, que também consideram a (cf. infra, M₆₇₂-M₆₇₆; M₇₆₉a-d. Cf. também Caddo, Dorsey 1905: 26-27; Biloxi,
possibilidade de rios de mão dupla, formulam em termos de trocas matri- Dorsey & Swanton 1912: 99-107). O herói retorna antes ou depois de várias
moniais (cf. omm: 130-142,148). aventuras, transportado por um monstro aquático que, como passador, se
A tentativa de síntese acima permite resolver uma outra questão, colo- mostra eminentemente suscetível às variações atmosféricas e, de resto, em
cada à p. 384 a respeito da reaparição, nesse grupo de mitos, de um perso- tudo conforme a um protótipo que, como sublinhamos (omm: 366-68), é
nagem chamado Grou ou Garça, mas desincumbido do papel de passador rigorosamente idêntico nos mitos das Planícies da América do Norte e nos
suscetível que os mitos da América setentrional costumam lhe atribuir. Já da bacia amazônica.
tínhamos deparado com o mesmo problema em relação a outros mitos Como já notamos, tais mitos só podem conjugar numa única narrativa as
(supra, p. 284), e notamos então que o passador operava como um semi-con- histórias do desaninhador de pássaros e do passador suscetível convertendo,
dutor, pois leva metade de sua clientela em segurança para a outra margem, da vertical para a horizontal, o eixo principal de disjunção. Sendo assim, retor-
e afoga a outra durante o trajeto. Ele também é, por conseguinte, um semio- nemos ao princípio destas Mitológicas. O jaguar prestativo de M₇-M₁₂, que
bstáculo, colocado num eixo perpendicular ao curso do rio. Nos mitos que auxilia o herói em sua descida, não pertenceria ao mesmo paradigma que
nos interessam agora, ao contrário, o eixo pertinente, que é o da subida dos o monstro aquático do grupo {M₄₆₀, M₄₆₉, M₅₀₃, M₇₆₆-M₇₆₉ etc.}, que auxi-
salmões e das visitas aos povos ribeirinhos, torna-se paralelo ao curso do rio. lia o herói em seu percurso? Precisamente em razão da mudança de eixo, o
É compreensível, pois, que o personagem de Grou ou Garça perca sua fun- “passador” que atua entre alto e baixo mudaria igualmente de natureza e, con-
ção de semiobstáculo, já que ela se inscreve num eixo oposto àquele em que trariamente a seu confrade associado ao eixo horizontal, mostrar-se-ia não
geralmente opera; e que, nesse eixo, o longo pênis de Coiote copulando trans suscetível; um traço que interpretamos como “profissão de indiferença” num
flumen o substitua, mas como um condutor pleno invertido em seu contrá- contexto paradigmático restrito (cc: 89-91) e que agora é possível alargar. No
rio quando as interlocutoras declinam a oferta ambígua de comunicação. Na mito bororo M₁, que inverte os mitos jê M₇-M₁₂ num outro eixo (do fogo à
versão thompson M₆₆₈c (Teit 1912b: 298), Coiote faz às formosas banhistas água, permanecendo constante o eixo vertical), o papel de “passador” cabe aos
uma proposta cujo objetivo é incompreensível: em caso de aceitação, copula urubus, que o exercem para com um cliente que assume a ausência de susce-
com elas através do rio e, em caso de recusa, ergue uma barreira rochosa, tibilidade, já que é incapaz de reagir quando as aves lhe devoram os fundilhos.
também de través no rio, que impede a subida dos salmões. Transferida para
um outro eixo e com outro suporte, a função de passador suscetível passa !
a só ser perceptível, em Grou ou Garça, na persistência de uma ambigui-
dade inerente à sua natureza primeira: ora é um grande caçador, que graças Mesmo sem voltar tão longe para trás, deve ser evidente para o leitor do
a esse talento apenas (inverso ao do pescador) obtém esposas exógamas vin- volume anterior que os mitos salish desenvolvem uma problemática muito
das de longe e que ele aceita assim que se apresentam (M₆₉₄) — vimos que próxima da que outrora destacamos ao estudarmos mitos amazônicos. Nos
os Coeur d’Alêne tinham de positivar o fato de não terem salmão; ora, ao dois casos, a rede hidrográfica, suas propriedades intrínsecas (tais como a
contrário, é um solteiro indeciso que não consegue escolher entre inúmeras oposição entre montante e jusante, com as consequências práticas que daí
moças casadoiras que a ele se apresentam in loco (M₆₉₆). decorrem) e os acidentes naturais que a pontuam fornecem uma espécie de

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grade que serve para codificar numa linguagem homogênea particularida- idêntico provém dos Lilloet (M₇₁₃b, Teit 1912a: 319-21), ao passo que os Bella
des de ordem técnica e econômica (navegação e pesca), entre povos em que Coola fazem seu herói vacilar entre o amor de uma loba e o de uma con-
prevalece um modo de vida ligado à água, e outras que dizem respeito mais terrânea (M₇₁₄a, Boas 1900: 103-08), ou então explicam pela infidelidade de
à ordem social, entre as quais se destacam em primeiro plano as relações Corvo para com sua mulher Peixe, trocada por uma conterrânea, o desapa-
políticas e as regras de exogamia. recimento dos salmões (M₇₁₄b, Boas 1891-95: 246).
Quando considerávamos esses fenômenos por intermédio dos mitos A viagem de canoa de lua e sol, que simboliza ao mesmo tempo a perio-
amazônicos, todos podiam ser subsumidos num mesmo esquema que opõe dicidade entre dia e noite, a periodicidade sazonal e o retorno periódico dos
dois tipos de casamento, um próximo (no limite incestuoso) e um outro peixes constitui, como vimos, o operador utilizado pelos mitos amazônicos
tão distante que, para ilustrá-lo, era preciso apelar para amores exóticos ou para arbitrar a antinomia entre casamento próximo e casamento distante
até mesmo encontros com criaturas sobrenaturais (cf. omm: 109-38). Desde (omm: 139-69). O mesmo motivo, com exatamente as mesmas características,
então, na América do Norte, encontramos várias vezes o mesmo esquema, emerge da mitologia e do ritual dos Salish. Na verdade, os mitos sul-ameri-
opondo, nas Planícies por exemplo, esposa próxima, associada à agricul- canos nunca se exprimiam de modo categórico e, baseados exclusivamente
tura, a esposa distante, associada à caça (omm: 259-60;306-309), ou, na costa neles, tínhamos podido apenas inferir que os passageiros da canoa deviam
noroeste, a esposa celeste de Asdiwal à conterrânea que ele tem a fraqueza de ter sol e lua por protótipos. Nesse sentido, os Salish vão muito mais longe do
lhe preferir (Lévi-Strauss 1958b). Bastará, portanto, apresentar alguns exem- que os índios da Amazônia.
plos para atestar o lugar considerável que os Salish e seus vizinhos dão a um Quando Simon Fraser, em 1808, desceu pela primeira vez o rio que hoje
herói que hesita entre duas esposas, uma distante e a outra próxima, e cujas leva seu nome, os índios Thompson, que nunca tinham visto um branco,
aventuras logo assumem proporções cosmológicas. pensaram que ele fosse o sol e o chamaram assim (Boas 1917a: 64). Existe uma
Como os Warrau da Venezuela (M₄₀₆, omm: 111-12), os Kwakiutl ligam o narrativa mítica do naufrágio em que faleceu o explorador, e Teit observa a
esquema das duas esposas ao que chamamos de “transformação Putifar”. A esse respeito (5: 416 e n. 1) que o acontecimento pode ter-se confundido, na
mulher próxima, nesse caso, é uma parenta, como a esposa do irmão mais mente dos índios, com um mito autêntico relativo à lua: “Quando a lua nova
velho com quem o caçula tem relações condenáveis. O marido sedento de aparece e seu crescente é quase imperceptível, eles dizem que o astro segura
vingança abandona o traidor às águas. Ele é recolhido por Pássaros-Trovão a canoa”. Com efeito, os Thompson contam o naufrágio de Simon Fraser
e se casa com a filha deles. Transformado em águia, mata o irmão mais velho do seguinte modo (M₇₁₅a,b,c, ibid.: 416): muito tempo depois de Coiote ter
e se fixa definitivamente entre os Pássaros-Trovão, tornando-se seu chefe participado da ordenação do universo, ele reapareceu de canoa no rio, com
(M₇₁₂, Boas & Hunt 1906, ii: 365-374). Os Comox fazem um relato muito seis companheiros, o Sol, a Lua, a Estrela d’Alva, Kokwela (demiurgo filho
parecido, em que o herói adúltero é condenado ao afogamento e milagro- de uma raiz de Peucedanum, cf. supra, p. 396), o Pássaro Mergulhador e o
samente salvo, e se casa com a filha das Águias. Leva-a para a sua aldeia e, Personagem de braços cobertos de flechas. Lua, que dirigia a embarcação
apesar das advertências, se deixa seduzir por uma conterrânea. Sua mulher sentado atrás, mergulhou com a canoa dentro da água (cf. M₃₅₄, omm: 19-30),
o deixa e ele vai atrás dela que, irritada com suas súplicas, vira-se e o ful- e os outros passageiros nadaram até um rochedo acima da água. À noite, Lua
mina com o olhar; dessa vez, ele morre mesmo afogado (M₇₁₃a, Hill-Tout reaparece com sua canoa. Outros dizem que a canoa afundou com todos os
1904a: 54-57). Por uma razão que logo será conhecida, convém notar que passageiros e que depois se viu surgirem a Estrela d’Alva ao amanhecer e
esse relato dramático transcorre entre o que poderíamos chamar de duas o Sol ao meio dia. Conforme uma última versão, havia duas canoas, a pri-
viagens de anti-canoa. No começo, o herói é jogado na água colado com meira transportando sete personagens celestes — Sol, Lua, Estrela d’Alva e
resina no leito em que cometeu adultério e flutua, até que o calor do sol der- quatro outros não nomeados, talvez estrelas — e a outra, sete personagens
reta a resina e o liberte da incômoda embarcação. No final, quando a esposa mitológicos — Coiote, Nli’kisentem (isto é, o desaninhador de pássaros de
Águia o deixa, ela se abstém de pegar uma canoa e caminha sobre as ondas. nossos mitos, cuja presença em tão boa companhia não é de surpreender),
O marido, desesperado, a segue, e é apenas quando ela se vira e olha para Kokwela já mencionado, um personagem chamado “o Antigo” e, finalmente,
ele que ele sente faltar-lhe sustentação na água e afunda. Um relato quase três indivíduos, chamados Ntcémka, Skwia’xenemux e Enmui’pem. Todos

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chegaram à margem e se sentaram num rochedo, olhando ao longe até o esse pênis ultra-curto — anatomicamente contíguo à boca que desempenha
anoitecer. Sabe-se, por outro lado (Boas 1917a: 49-50), que Ntcémka é um aí o papel de orifício de fecundação — opõe-se, portanto, ao longo pênis
gigante, caçador e guerreiro, e que Skwia’xenemux é o nome do Personagem que Coiote lança, em lugar da comida para a boca que anuncia, através do
de braços cobertos de flechas (também caçador e guerreiro, e capaz de voar rio, em direção a uma vagina distante. Além disso, o incidente envolve a filha
como um pássaro) mencionado na outra versão. Um mito lilloet (M₇₁₅d, Teit de um chefe, ao mesmo tempo apaixonada pela caçada (assim que atinge a
1912a: 350) faz referência a ele ao lado de Coiote, Sol, Lua e Muepen, certa- puberdade, aprende a atirar com arco) e pela companhia do irmão, de quem
mente o Enmui’pem thompson; como o termo significa “mergulhador” em não se afasta, mesmo na canoa. Tudo isso é totalmente contrário às conve-
lilloet, é provável que o personagem se confunda com o Pássaro Mergulha- niências, pois os Salish da costa montavam uma guarda severa em torno
dor da primeira versão (ver também Boas 1891-95: 19, 45, 56, 63, 76; Hill-Tout das moças núbeis e de alta estirpe; chegavam mesmo a trancafiá-las desde a
1904b: 360; 1900: 518).19 infância, num compartimento dentro da casa. Permanecendo o tempo todo
Quanto aos lugares ocupados pelos canoeiros, os mitos dão indica- sentadas ou agachadas e inativas, elas ficavam pálidas, fracas e incapazes de
ções ainda mais interessantes na medida em que os Salish da costa, como realizar qualquer atividade; quando saíam do isolamento, mal podiam andar.
os índios da Amazônia e os dos Grandes Lagos (omm: 121), concebiam Aos olhos dos pretendentes, a fraqueza lhes conferia um prestígio aristocrá-
com muita precisão os postos que convém a cada um assumir quando um tico, um charme lânguido e distinto (Barnett 1955: 180).
homem e uma mulher viajam na mesma embarcação: “conforme o costume, Consequentemente, mesmo uma intriga tão “excessiva” quanto a do mito
a mulher sempre fica atrás e cuida do leme” (Adamson 1934: 284). Contudo, humptulips mantém para a viagem de canoa o mesmo caráter que lhe reco-
os Lilloet subvertem a regra quando da viagem de núpcias que leva a noiva nhecemos na América do Sul. Ela continua sendo um símbolo da arbitragem
à aldeia de seu marido (Hill-Tout 1905: 132; 1907b: 184-85, 187). Um impor- entre próximo e distante. O procedimento regressivo do mito que devolve
tante mito humptulips, que não analisaremos em profundidade, e em rela- os protagonistas à condição animal, aquém da vida doméstica e da utili-
ção ao qual apenas notaremos que inverte os valores habituais da esposa zação do fogo de cozinha (congruente à canoa mediante a transformação
próxima e da esposa distante — pois que nele uma heroína se mostra mais terra/céu —Y perto/longe, cf. omm: 154, onde isso foi demonstrado) explica-se
ligada ao irmão do que a um amante exótico — começa com a fecunda- pelo fato de, nesse caso específico, o próximo estar aproximado demais —
ção na canoa, equivocadamente imputada ao irmão da moça, e acaba com irmã próxima do irmão em atividades impróprias para seu sexo — e o dis-
a transformação dos protagonistas em aves, de modo que eles regressam ao tante afastado demais — região setentrional coberta de gelo, habitada por
estado de natureza e renunciam, como declaram, a viver em casas e a comer matadores de homens, da qual a heroína, transformada em monstro aquá-
cozido (M₇₁₆a, Adamson 1934: 284-293). Ora, essa auto-fecundação foi tra- tico peludo e chifrudo, nunca mais voltou...
mada por um personagem sobrenatural, descrito como uma ave do norte, Em todos os outros casos, a viagem de canoa está ligada às manifesta-
que fez surgir um denso nevoeiro para provocá-la. As gotículas de água que ções normais da periodicidade espaço-temporal. Foi subindo o rio Fraser
se condensaram sobre um pendente de nácar de aliótida preso no nariz da numa canoa que os seis Transformadores lilloet realizaram seus trabalhos
moça escorreram até seus lábios e ela concebeu ao engoli-los. A forma sin- e colocaram o universo em ordem (M₇₀₀). Foi também de canoa que, com
gular dada ao incidente é esclarecida por um mito chehalis da costa em que seus quatro serviçais Minhoca, Pulga, Piolho e Piolhinho, Coiote, já dono da
o herói escapa das investidas amorosas das Filhas da Noite, “em cujo nariz luz do dia, foi pegar o fogo que estava com os peixes. De fato, sem luz ele não
está pendurado um corpo em forma de pênis” (M₇₁₆b, Adamson 1934: 85). teria podido ver a coluna de fumaça que subia à distância, marcando o local
Numa canoa que navega ao longo do rio (Chinoose Creek, especifica o texto), da fogueira. Em seguida, ele vendeu o fogo a todas as famílias que o queriam
e, como pagamento, obteve de cada uma delas uma jovem esposa (M₇₁₇a,
19 . Se levarmos em conta essas equivalências e as afinidades lunar e solar do desa-
Teit 1912a: 300-03). A exogamia em troca do fogo de cozinha tomado dos
ninhador e de seu perseguidor, respectivamente, deveria decorrer disso que o perso- peixes substitui aqui a exogamia em troca de peixe.
nagem chamado “o Antigo” só pode corresponder à Estrela d’Alva na outra canoa de O tema da periodicidade temporal que, como sabemos, está ligada à
M₇₁₅c e na canoa única de M₇₁₅a. periodicidade das trocas matrimoniais (omm: 129), reaparece num outro

436 | Quinta parte: Amargos saberes Cosmopolitismo e exogamia | 437


mito lilloet (M₇₁₈, Elliott 1931: 176-77) em que dois primos, filhos dos irmãos bastante complexo, Atlquntäm, era associado ao sol “no qual subia e que uti-
Sol e Lua, desceram à terra e fizeram uma viagem de canoa, durante a qual lizava como uma canoa... embarcação resplandecente que se movimentava
realizaram numerosos prodígios em companhia de um morto ressuscitado sozinha, com janelas para olhar para fora” (McIlwraith 1948: 33). Um mito
e de Castor, que se tinha encarregado de abrir para eles uma passagem atra- (M₇₂₀a, Boas 1900: 38-40) conta como os quadrúpedes e as aves partiram à
vés da abóbada celeste. Depois eles voltaram para junto dos progenitores, no conquista dos salmões numa canoa em cuja popa se encontrava uma divin-
céu. Os Coeur d’Alêne também têm um mito (M₇₁₉, Boas 1917a: 126) que dade chamada o Hermafrodita20. Cada ave pegou uma determinada espécie
transforma os canoeiros em corpos celestes. Cinco homens estavam fazendo de salmão, tomando o cuidado de sempre pegar um macho e uma fêmea, a
uma canoa. Um estava na frente, outro atrás, dois dos lados e o quinto a igual conselho de Vison. Na volta, os peixes foram soltos nos rios. Os índios creem
distância de uma ponta e de um lado. Nessa disposição eles foram todos que a canoa benfazeja retorna todos os anos do país dos salmões, perma-
transformados em constelação, possivelmente a que os Thompson chamam nece entre eles por aproximadamente nove meses e parte novamente. Nesse
de “Canoa de entrecasca”, isto é, Orion (confirmado por Teit 1930a: 179). Ora, momento chega a canoa que traz o cerimonial de inverno e todas as divin-
observamos na América do Sul, justamente a propósito de mitos dedicados à dades do panteão, que normalmente vivem na Casa dos Mitos. Quando a
canoa, a mesma transformação, levando da lua e do sol a Orion (omm: 71-73). segunda canoa parte, é hora de a primeira voltar do país dos salmões.
Na região de Puget Sound, vários grupos salish — Suquamish, Duwa- O eixo horizontal que leva ao país dos salmões e o eixo vertical no topo
mish, Snuqualmi, Snohomish e Skykomish — davam à viagem de canoa do qual, no céu, se encontra a Casa dos Mitos onde residem os deuses são
uma expressão ritual. Durante uma cerimônia celebrada no inverno, e que passíveis de conversão um no outro, como mostra uma outra versão (M₇₂₀b,
só conhecemos graças aos relatos dos informantes, os xamãs e seus auxilia- Boas 1891-95: 252-53). Cinco irmãos, fugindo de uma ogra que o mais novo
res plantavam verticalmente no solo painéis de madeira talhada pintados imprudentemente ajudou a atravessar o rio e que, durante a noite, tragava
com figuras emblemáticas, que demarcavam o perímetro de uma ou duas o cérebro das pessoas adormecidas usando sua boca extensível como um
canoas simbólicas, em que eles se colocavam e fingiam viajar por água até o longo tubo (imagem antissimétrica à do longo pênis, por: travessia do rio,
país dos mortos, para recuperar a força vital roubada de um azarado ou de ativa —Y passiva; homem —Y mulher; pênis “comido” —Y boca comendo), subi-
um doente pelos fantasmas (Dorsey 1901; Haeberlin 1918; Waterman 1930; ram ao céu, onde encontraram Atlkundam (sic), dono da canoa solar e filho
M. W. Smith 1940, 1946). A estação prescrita explica-se pela crença de que da ogra. Antes, tiveram de atravessar as symplégades que, situadas no céu,
no país dos mortos o dia e a noite, a maré cheia e a vazante, verão e inverno, também sofrem uma comutação de eixo. Ao saber das maldades cometidas
são invertidos em relação ao mundo dos vivos. Portanto, é no inverno que é pela mãe, Atlkundam matou-a, queimou seu corpo numa fogueira e fez sur-
verão no além, quando as almas e os espíritos-protetores, entregues ao prazer girem as moscas das cinzas. Enquanto o mais novo estava ocupado sedu-
de um período agradável, deixam-se capturar mais facilmente. Sem poder zindo a esposa do anfitrião e, contrariando a crença europeia, provocava
dar maiores precisões, Haeberlin (1918: 257) observa que “parece haver uma assim o azar deste no jogo, os outros irmãos desafiaram esse personagem
certa associação entre o curso do sol e a viagem de canoa dos xamãs ao país solar e ganharam dele os salmões. Ao mesmo tempo, obtiveram um elixir
dos mortos”. A imagem da canoa aplicada à celebração de um ritual deve ter da longevidade feito com a urina da mulher; de volta à terra, utilizaram-no
raízes muito profundas no pensamento americano, pois encontra-se tam- para ressuscitar os parentes mortos pela ogra.
bém entre os Ojibwa. Dois dos principais oficiantes da confraria chamada Resulta de todo esse conjunto que a canoa salish, veículo de divindades
Midewiwin eram referidos como /naganid/, “homem da frente” e /wedaged/, entre as quais se destacam sol e lua, pertence, enquanto mitema, a um eixo
“homem de trás”, termos comumente utilizados para designar os ocupantes horizontal unindo o perto e o longe e passível de conversão, como nos mitos
de canoas (Landes 1968: 54, 114-15, 119, 240-41; Hoffman 1893: 84).
Mas é principalmente entre os Bella Coola, grupo salish bem isolado 20 . Como a lua nas versões thompson M₇₁₅a,b,c. Acerca da lua hermafrodita, ver
ao norte, no meio dos demais povos da costa noroeste do Pacífico, que o omm: 144-45, 160 etc. O Hermafrodita bella coola poderia corresponder ao “morto
motivo da viagem de canoa atinge seu desenvolvimento máximo, tanto ressuscitado” — outro modo da ambivalência que a lua também ilustra — mencionado
nos mitos como nos ritos. Um dos principais personagens de um panteão no mito lilloet M₇₁₈, supra, p. 405.

438 | Quinta parte: Amargos saberes Cosmopolitismo e exogamia | 439


da América tropical, em eixo vertical unindo a terra e o céu. Note-se, em
favor dessa generalização, que M₇₂₀b reproduz uma sequência do mito war-
rau M₂₈ no qual, seguindo o leito de um rio em vez de atravessá-lo, uma ogra
devoradora de peixes também persegue irmãos, um dos quais enfiou o galho
de uma árvore por sobre o rio e tenta em vão capturar seu reflexo na água
(cc: 116-26). Ora, M₂₈ é um mito de origem das estrelas que povoam o alto,
assim como M₇₂₀a é um mito de origem dos salmões que povoam o longe,
comutado com o alto na variante M₇₂₀b.
E assim, esquemas míticos cujo papel se apresenta como fundamental
no pensamento indígena do Novo Mundo e aos quais só pudemos chegar
ao termo de uma longa análise consagrada a um conjunto de mitos sul-
americanos, mas que ainda permanecia em estágio de hipótese, tornam-se
diretamente verificáveis e assumem uma forma tangível em mitos do outro
hemisfério, que os exprimem “às claras”. De modo que o paralelo que acaba-
mos de traçar possui valor de experiência: confirma as virtudes do método e
atesta a pertinência de seus resultados.

S E X TA PA R T E

Volta às origens

440 | Quinta parte: Amargos saberes | 441


i. O fogo e a chuva

In tal guisa i primi poeti teologi si finsero la prima


favola divina, la più grande di quante mai se ne finsero
appresso, cioè Giove, re e padre degli uomini e degli
dèi, ed in atto di fulminante; si popolare, perturbante e
insegnativa, che’ssi stessi, che sel finsero, sel credettero
e con ispaventose religioni, le quali oppresso si mostre-
ranno, il temettero, il rivevirono e l’osservarono.
g. vico, La Scienza nuova seconda, ii, i, i, Ed. Nicolini,
Bari, 1967, p. 146

Wie macht’ ich den andren, Foi sufocando as chamas de uma fogueira doméstica que a ogra de M₇₂₀ espa-
der nicht mehr ich, lhou a escuridão para mais facilmente perpetrar seus crimes, e foi acendendo
und aus sich wirkte, uma fogueira que seu celeste filho, senhor da piroga solar, a fez morrer para
was ich nur will? castigá-la. Neutralizado na terra, o fogo de cozinha se inverte em fogo destrui-
r. wagner, Die Walkure, ato ii, cena ii dor no céu, num mito que atribui aos salmões uma origem celeste, portanto
imaginária e contrária à sua origem verdadeira, que outros mitos (M₃₇₅, M₃₈₂,
M₇₂₀a), mais de acordo com a experiência, situam ao longe no ocidente, no
mar de onde, efetivamente, os peixes retornam todos os anos. Simplificando
demais, poderíamos concluir que o pensamento salish estabelece uma relação
inversamente proporcional entre a origem do fogo de cozinha e a origem dos
peixes destinados à alimentação. Conforme os casos e os grupos, os salmões
proviriam de longe e o fogo, do alto. Ou então, ao contrário, o fogo proviria de
longe e os peixes, do alto. Veremos, contudo, que a realidade é mais complexa,
pois certos mitos atribuem a mesma origem longínqua ao fogo e aos salmões.
Já encontramos um exemplo dessa origem comum do fogo e dos peixes,
num mito lilloet (M₇₁₇a, supra, p. 404) no qual Corvo, agora dono da luz do
dia, que roubou de seu amigo Gaivota, avista uma coluna de fumaça que
revela o local onde arde o fogo primordial, zelosamente guardado pelos pei-
xes. Corvo se aproxima de canoa, captura uma menininha e exige o fogo à
guisa de resgate. Depois partilha o fogo com as famílias que consentem em
lhe dar em troca uma esposa.

442 | O fogo e a chuva | 443


Mencionaremos rapidamente uma série de variações sobre o mesmo Ao contrário do que ocorre no mito acima, a conquista do fogo se faz no
tema. Os índios do baixo Fraser contam (M₇₁₇b, Boas 1891-95: 43) como longínquo norte em certas versões thompson (M₆₆₃e, Hill-Tout: 561-63) que,
Castor e Pica-Pau roubaram do chefe dos peixes o fogo e a filhinha ainda de modo certamente significativo, atribuem ao Castor, e não ao Coiote, o
no berço; lançados no rio, o bebê e o berço originam os salmões. Castor mérito por ela, o que as aproxima dos mitos salish do planalto segundo os
em seguida deu aos espíritos o fogo, que Vison por sua vez roubou, depois quais a conquista do fogo se deu no céu (infra, p. 414-17), isto é, no alto, em
de decapitar-lhes o chefe, e devolveu, em troca da broca de fogo. Duas ver- vez de longe. Não é menos significativo que as versões mencionadas acima,
sões provenientes dos Nanaimo, Salish da ilha de Vancouver (M₇₁₇c,d; ibid.: contrariamente aos mitos sobre a conquista celeste, cuja função regressiva
54-55) atribuem a posse do primeiro fogo a um povo desconhecido, ou aos com respeito à continuidade primeira dos reinos naturais já sublinhamos
espíritos dos mortos. Em ambos os casos, Vison rapta um bebê exige o fogo e voltaremos a sublinhar (supra, p. 356; infra, p. 418-21), louvem Castor por
ou o intrumento que serve para produzi-lo para devolver a criança. Uma uma outra conquista após a do fogo, a (M₆₆₃f, ibid.: 563-64) de uma coberta
variante comox (M₇₁₇e; ibid.: 80-81) substitui Vison por um cervídeo que mágica ornada com pinturas representando todos os utensílios, instrumen-
conquista o fogo ou a broca de fogo depois de ter atravessado symplégades. tos e armas que viriam a constituir o arsenal da cultura indígena tal como
Os Kwakiutl (M₇₁₇f; ibid.: 158) dizem que Vison raptou o filho do chefe dos existia antes da chegada dos brancos. Castor recortou cuidadosamente os
espíritos e o trocou pelo fogo. Segundo os Klallam (M₇₁₇g, Gunther 1925: modelos e seus companheiros se inspiraram neles para fabricar cada tipo de
142, 146), o fogo e o tempo bom, propício à pesca, foram obtidos dos mor- objeto. Mas o proprietário da coberta se vingou, transformando Castor no
tos como resgate por uma ou várias crianças raptadas pelo demiurgo. Apro- animal que é desde então.
ximamo-nos da versão lilloet com os Skagit do norte do estreito de Puget De modo ainda mais claro que os Thompson (cf. M₆₉₈a-e, supra, p. 386-87),
(M₇₁₇h, Haeberlin 1924: 391-93): Corvo e Vison, dizem eles, roubaram a luz os Shuswap estabelecem uma ligação entre a conquista do fogo e a guerra
do dia do povo do leste. entre as espécies animais pela posse dos salmões. Como no mito lilloet
Os Thompson (M₆₆₃b, Teit 1912b: 338-39; cf. supra, p. 309) falam de tem- M₇₁₇a, os quadrúpedes heróis dos mitos shuswap (M₇₂₁a-b, Teit 1909: 669)
pos idos em que a madeira era incombustível e um povo que vivia perto roubaram o fogo dos peixes. Na mesma ocasião, raptaram uma mulher
do estuário do Fraser possuía o fogo. Os habitantes de montante enviaram grávida que tornaram sua escrava e que pouco depois deu à luz um filho.
Castor, Doninha e Águia para conquistá-lo com um estratagema (infra, Informado pela mãe de sua origem e das desgraças que vitimaram sua raça,
p. 435). Na volta, Castor ensinou como acender uma fogueira, Águia expli- o menino pediu a proteção do trovão e do raio e, com a ajuda desse fogo
cou a técnica da grelhagem, e Doninha a do cozimento por fervura, com celeste e destruidor, exterminou os assassinos dos seus.
pedras incandescentes colocadas na água. Uma parcela do fogo foi intro- Um vasto grupo de mitos, registrados desde os Chinook ao sul, aos Nez
duzida em cada madeira; desde então, a madeira queima. Uma outra versão Percé a leste e aos Thompson ao norte, também conhecido pelos Salish da
(M₆₆₃c, ibid.: 229-30) precisa que antes da conquista do fogo o sol era muito Costa, refere-se a um conflito triangular que opõe humanos, peixes e qua-
mais quente do que hoje em dia; o alimento era colocado sob o sol, a quem drúpedes, em torno de uma jovem índia raptada por um salmão e posterior-
imploravam que a cozesse (cf. cc: 295 n. 1). Os Thompson do rio Nicola con- mente pelos quadrúpedes — em geral os lobos — quando ela vai visitar sua
tam (M₆₆₃d, Boas 1917a: 2) que Coiote avistou do alto de uma montanha, na aldeia natal (Coeur d’Alêne, Reichard 1947: 119-21. Sanpoil, Ray 1933: 142-45.
direção sul, o longínquo clarão do fogo, que um povo desconhecido possuía. Thompson, Teit 1912b: 231-32, 236-41. Ver também Haeberlin 1924: 383-84,
Foi até lá com seus companheiros, deu um jeito para seu chapéu de lâminas Jacobs 1934: 159-63, Boas 1894: 77, Phinney 1934: 222, Adamson 1934: 110 etc.).
de madeira pegar fogo quando se aproximou da fogueira e fugiu. Os donos Finalmente vencidos, os lobos assumem sua natureza animal, tornam-se
do fogo provocaram uma ventania e toda a região foi tomada pelas chamas. inofensivos para os humanos, renunciam ao fogo e adotam o alimento cru
Coiote respondeu provocando chuvas torrenciais, que apagaram o incên- (Reichard, l.c.; Adamson 1934: 191, 307, 337).1
dio. Desde então, fogo e fumaça existem por toda parte como inseparáveis;
e como no mito o vento serviu para excitar as chamas, hoje se assopra sobre 1 . Fórmula que é invertida mais ao sul, entre os Tillamook (M₆₅₂), que fazem dos lobos
o fogo para atiçá-lo. os donos de um fogo que não se apaga.

444 | Sexta parte: Volta às origens O fogo e a chuva | 445


Infelizmente, não seria possível estudar a fundo esse grupo de mitos, de Juan de Fuca. Em todo o entorno dessa área, são conhecidos outros mitos
que apenas resvalamos a propósito de M₆₉₈e (supra, p. 386), sem introdu- segundo os quais a conquista do fogo ocorreu no céu. A relação de simetria
zir outras questões, a que aludimos diversas vezes (supra, p. 322 n. 1, 329, entre esses mitos e os precedentes é confirmada pelo fato de neles a falta ini-
341 n. 1, 346), explicando porque nos resignamos a deixá-las de lado, o que cial de fogo resultava de a madeira ser, antigamente, incombustível, ao passo
não impede que voltemos a elas um dia. De modo que aqui faremos apenas que nos outros prevalecia a situação inversa, já que os ancestrais contavam
duas observações. Primeiro, a guerra entre os protótipos das espécies ani- com um fogo contínuo que ardia sem madeira e que só perderam porque
mais e os humanos, consecutiva ao rapto de uma humana por um peixe, faz cometeram uma imprudência.
claramente eco à repartição pacífica das espécies animais entre os humanos, Os Tillamook, cuja posição isolada em relação ao restante da família
com a atribuição a cada grupo de seu alimento específico (salmões para uns, salish certamente explica a preservação, em seus mitos, de numerosos traços
cabras e cabritos para outros), após uma prova cujo objetivo é determinar arcaicos, situam esse fogo milagroso num tempo em que também as regras
os que aceitam e os que recusam a troca de suas filhas entre eles. Assim, ao de exogamia funcionavam ao contrário:
rapto de uma moça humana por um salmão se opõe a outorga dos salmões
aos humanos, contanto que concordem em passar a trocar suas filhas entre M 722 TILLAMOOK: O FOGO MILAGROSO
eles, em vez de roubá-las. Os mitos hipostasiam os termos dessa última alter-
nativa considerando casos extremos, um em que o roubo de uma mulher se “Nos tempos míticos, eram sempre as mulheres que saíam em busca de um marido”.
mostra ainda mais exorbitante na medida em que é praticado por animais Uma delas notou, certo dia, fumaça saindo pelo teto de uma casa. Concluiu que seu
contra humanos, e outro em que a troca matrimonial, contrária ao rapto, é ocupante possuía o fogo e decidiu casar-se com ele.
instaurada e mantida dentro dos próprios limites da humanidade. Na esperança de ser aceita, levou para ele um grande cesto cheio de raízes comes-
Em segundo lugar, esse esquema que opõe o roubo à troca se insere num tíveis. O homem devia ser um grande pescador, pois sua casa estava repleta de sal-
sistema mais vasto junto com outro, fazendo emergir uma correlação entre mões. Quando a visitante entrou, não viu ninguém, mas um peixe se desprendia o
os salmões e o fogo de cozinha, respectivamente matéria e meio da culinária, tempo todo de uma trave do telhado e caía na cabeça dela, apesar de ela tomar o cui-
ambos provenientes do mundo dos mortos ou dos espíritos. Nesse sistema, o dado de pendurá-lo de volta a cada vez. Ela não entendia que aquela era uma indi-
alimento e o fogo de cozinha são comutáveis: a obtenção de sua presença per- cação, por parte do fogo que ardia no meio da casa, de que ela podia assar o peixe
mite a troca, a sujeição a sua ausência obriga ao roubo como compensação. e comê-lo. O fogo era a mãe do habitante principal da casa. Como a moça tinha
Correspondendo simetricamente ao filho da humana entre os salmões [no fome, colocou suas raízes no fogo para cozinhar. Foi a vez de a mãe-fogo se enganar:
original, “filho do salmão e da humana”, mas ela já estava grávida quando foi achando que a forasteira lhe fazia uma oferenda, ela comeu as raízes, isto é, queimou-
raptada], dono de um fogo celeste e destruidor que provoca a morte de seus as. Furiosa, a mulher começou a bater na fogueira com o atiçador e quando o fogo
raptores, o filho dos donos do fogo terrestre (que são os espíritos dos mor- estava prestes a se apagar, conseguiu reanimá-lo. Foi então que o homem chegou, e
tos), ele próprio raptado e cujo preço do resgate é o fogo, parece portanto explicou a razão de todos aqueles mistérios. Casou-se com a visitante e ensinou-lhe
poder ser deduzido, por intermédio de uma série de transformações, de uma a obter refeições prontas mediante um mero pedido ao fogo. Disse-lhe também que
armação global na qual, tendo em vista a distribuição ao mesmo tempo com- ela poderia obter da mãe-fogo, sem trabalho algum, todas as obras de cestaria que
pacta e restrita desse motivo, pode-se lhe atribuir uma posição derivada em desejasse, bastando para isso queimar ramos e radículas de conífera, a matéria-prima
relação ao tema mais geral do fogo pura e simplesmente roubado. costumeira para a confecção de esteiras e cestos (E.D. Jacobs 1959: 93-95).

! Visto que o texto informa que, ao dispersar as brasas com o atiçador, a


mulher quase cegou a velha mãe-fogo, existe uma relação de simetria entre
Os mitos que situam ao longe a conquista do fogo que antes era dos espí- os mitos nos quais o herói — no céu, em vez de na terra — cura a cegueira
ritos dos mortos ou dos peixes estão, efetivamente, concentrados em sua de suas protetoras sobrenaturais furando-lhes os olhos com a ponta de seu
maior parte entre o norte do estreito de Geórgia e a margem sul do estreito pênis (M₆₀₀f, supra, p. 361; acerca da conotação fálica do atiçador, ver infra,

446 | Sexta parte: Volta às origens O fogo e a chuva | 447


p. 474). E, de fato, a situação que ele encontra no céu, onde passa frio e os Puma — outros mitos nomeiam as irmãs Ursa e Grizzly — ou então a uma
produtos de cestaria — símbolos da cultura do mesmo modo que o fogo dança da vitória um tanto enérgica demais dos quatro xamãs Urso Negro, Gri-
doméstico — o atacam quando ele tenta usá-los para preparar um banho zzly, Puma e Lince (M₇₂₄a, b; Haeberlin 1924: 389-91, 411-12). Voltaremos igual-
de vapor e se aquecer, contrasta radicalmente com aquela que é descrita por mente (infra, p. 489) ao episódio dos animais que foram detidos ou dispersa-
M₇₂₂, em que a cultura se cria por si mesma, graças a um fogo maternal que dos devido a esse acidente — cobra e lagarto, conforme M₇₂₄b — e a outras
aquece seus filhos, alimenta-os e, desobrigando-os de trabalhar, cobre-os de particularidades dessa mesma versão segundo os Snohomish, em que são os
objetos já prontos. Uma segunda correlação aparece, mas num outro eixo, habitantes do céu que iniciam as hostilidades ao capturarem o único carpin-
entre M₇₂₂ e um mito nez percé (M₆₅₅a) em que o herói se casa com mulhe- teiro fabricante de canoas que existia então na terra, porque ele insistia em
res-cabritas e, desinformado, causa a morte dos “filhos” delas, que são espe- trabalhar à noite e os incomodava com o barulho. Esse carpinteiro barulhento,
tos de madeira, ao tentar utilizá-los como atiçadores. Ora, esse mito também que perturba a alternância entre dia e noite, replica, portanto, o ajudante baru-
transforma o do desaninhador de pássaros (supra, p. 293). lhento que forneceu o tema e o título de uma seção de nossa quarta parte.
Os índios do estreito de Puget (Green River, Puyallup) contam histórias Uma primeira expedição ao céu para encontrar o artesão insubstituível
do mesmo tipo: revelou aos irmãos Melro-do-Verão e Melro-do-Inverno que os habitan-
tes daquela região possuíam o fogo, então desconhecido na terra. De onde
M 723A , B , C ESTREITO DE PUGET: A CONQUISTA DO FOGO uma segunda expedição para conquistar o fogo, montada em sequência à
primeira e, como ela, vitoriosa. Depois de libertarem o carpinteiro, contra a
No tempo de antigamente, as pessoas tinham um fogo que nunca se apagava, ardia promessa de que ele não mais trabalharia à noite, os animais míticos, prede-
sem madeira e era incarnado pela mãe de um grande pescador chamado Lontra- cessores da humanidade, conseguiram o fogo de cozinha e as embarcações
Terrestre. Uma jovem foi à casa dele e o desposou. Um dia, apesar da proibição que indispensáveis para os longos deslocamentos, a pesca e a caça das presas
lhe fizera o marido, ela usou um atiçador. O fogo se apagou imediatamente pois, sem aquáticas. Na versão skagit M₇₂₄a, as tarefas de fazer e depois reforçar a
saber, a mulher tinha matado a mãe de seu esposo. Todas as fogueiras do mundo tam- escada de flechas cabem respectivamente a Pica-Pau e a sua avó Caramujo.
bém se apagaram, ao mesmo tempo. Ninguém mais tinha fogo. Foi convocado um
grande conselho, que decidiu organizar uma expedição ao céu para conquistar o fogo. !
Um “passarinho” foi o único a conseguir acertar uma flecha na abóbada celeste,
e outras em sequência, que foram-se encaixando umas nas outras e formaram uma Falando apenas dos pássaros, já nos vemos confrontados a várias espécies.
espécie de corrente. Quando ela atingiu a terra, Corvo subiu nela e fez degraus, para As versões M₇₂₃b,c não esclarecem a identidade daquele que ajustou a cor-
que todos os companheiros pudessem segui-lo. Como Castor parecia ser o único rente de flechas; M₇₂₃c (Ballard 1929: 53) o nomeia /tistses/ e o descreve
capaz de não rir quando lhe faziam cócegas, disseram a ele que se fingisse de morto como “o menor de todos os passarinhos”.
e se deixasse capturar pelos donos do fogo. Enquanto eles se preparavam para lim- Um mito do rio Cowlitz, coletado em língua sahaptin mas, na verdade,
par a presa, foram atacados e massacrados. Castor pegou o fogo e depositou uma de origem salish (M₇₂₅, Jacobs 1934: 145-46) diz que a corrente de flechas
fração dele em cada tipo de madeira. Os animais vitoriosos voltaram para a terra, foi feita em conjunto por passarinhos muito parecidos, um deles chamado
mas a escada rompeu-se e duas cobras de espécies diferentes caíram, uma em terras /t’si’dadat/ e o outro a cambaxirra. Essa dualidade, já aparente em M₇₂₃b, mas
yakima, a outra do lado do estreito de Puget. Foi assim que a cascavel conseguiu menos marcada, também se manifesta entre o “passarinho” herói do mesmo
fabricar suas presas venenosas, com as pontas de flecha envenenadas, especialidade mito e Corvo, entre Pica-Pau e sua avó Caramujo em M₇₂₄a, e entre os dois
dos índios do estreito de Puget. Esses índios e as cobras dessa espécie se entendem. melros de M₇₂₄b. Os Klikitat, vizinhos dos Cowlitz, diferentemente, encarre-
Elas não os atacam, ao contrário do que acontece na outra região (Ballard 1929: 51-54). gam um só pássaro, o sapsucker — pequeno pica-pau do gênero Sphyrapicus
(Bent 1963, Woodpeckers: 145, 151, 154; Godfrey 1967: 278-80) — da tarefa de
Voltaremos (infra, p. 420) ao episódio da escada quebrada, que os mitos prender no céu duas correntes de flechas, paralelas como os lados de uma
imputam ao comportamento grotesco e desajeitado das mulheres Ursa e escada (M₇₂₆, Jacobs 1929: 175-81).

448 | Sexta parte: Volta às origens O fogo e a chuva | 449


Voltemo-nos para os Salish do Planalto. Os Kalispel ou Pend d’Oreilles prender na abóbada celeste a primeira das flechas da corrente, que os outros ani-
(M₇₂₇, Boas 1917a: 118) fazem da Cambaxirra o autor da corrente de fle- mais completaram.
chas, e o Urso Grizzly o responsável por sua ruptura, em consequência da Começou a grande ascensão. Grizzly foi o último a querer subir, mas quebrou
qual o Esquilo voador desenvolveu suas membranas, o peixe Catostomidae a escada, porque levava suas provisões, e teve de ficar em baixo. Os outros animais,
(“sucker”) teve os ossos quebrados em pedacinhos, o que o encheu de espi- menos previdentes, não encontraram nada para comer no céu.3 Esfomeados e sem
nhas, e um outro peixe (“whitefish”, Coregonus?) fez uma careta de medo, o a escada, assumiram a forma de diversos objetos e planaram até o solo. Só ficaram
que o deixou com a boca arredondada e franzida.2 no céu dois pares de amigos, Castor e Pica-Pau e Cão e Excremento. Cão comeu o
Segundo os Sanpoil (M₇₂₈, Boas 1917a: 107-08), foi na primavera seguinte companheiro e desceu de volta à terra. Os dois outros roubaram o fogo, mas uma
e um dilúvio que apagou todas as fogueiras que os animais subiram ao céu inundação o apagou. Sobrou apenas uma brasa que uma pega conseguiu proteger.
para conquistar o fogo. O Chapim (“chickadee”, Parus sp.) atirou as flechas, Para escapar de seus perseguidores, Pica-pau se escondeu atrás de um monte
o Hamster, o Castor e a Águia roubaram o fogo. Como o Grizzly tinha que- de galhos, onde foi descoberto por uma velha terrestre. Naquela época, Pica-pau era
brado a escada porque era pesado demais, cada um dos quadrúpedes voltou completamente vermelho, “era o rei dos passarinhos”. A velha o fez casar-se com sua
ao solo carregado por um pássaro. Coiote, que tinha ficado para trás, impro- neta, mas achava o genro bonito demais. Por isso, ela acendeu uma grande fogueira
visou asas e virou morcego. O peixe catostomídeo teve os ossos quebrados, com madeira resinosa e o vento levou a fumaça até o lugar onde Pica-pau estava
e por isso tem tantas espinhas. Variantes muito próximas (M₇₂₈b,c, Ray 1933: sentado. Logo ele ficou coberto de fuligem, a só conseguiu proteger a cabeça, para
152-57) acrescentam que o povo celeste urinou sobre os ladrões, tentando que algo restasse de sua beleza. A cabeça continuou vermelha, mas o corpo, desde
apagar o fogo que eles tinham pegado. Foi por essa razão que eles, que já então, ficou negro (Ray 1933: 157-60).
tinham o fogo, inventaram as roupas para proteger da chuva e a prática de
fazer reservas de alimento prevendo o mau tempo. O caráter regressivo dos mitos kalispel e sanpoil, evidenciado nesse último
Além de M₇₂₈, os Sanpoil têm uma versão mais complexa: episódio, também é revelado pelo comentário de que, na época em que estão
situados, as espécies animais não só eram mais belas como também eram
M 729 SANPOIL: A CONQUISTA DO FOGO mais numerosas do que no presente. Várias delas foram exterminadas pelo
povo celeste e viraram estrelas. Hoje em dia, na terra, estão apenas os sobre-
Chapim estava indo juntar-se aos que queriam atirar flechas até o céu, conforme viventes do combate (Boas 1917a: 118 n. 2). Os Okanagon pensavam o mesmo,
lhe tinham dito, quando Coiote zombou dele. Sentiu-se provocado e o matou, mas e também atribuíam a paternidade da corrente de flechas ao Chapim. Mas
Raposa logo ressuscitou o compadre. explicavam o rompimento dela como resultado de uma discussão acerca de
Num segundo encontro, Coiote desafiou Chapim numa competição e ganhou seus pesos respectivos entre Urso Negro e Grizzly (M₇₃₀a, b; Boas 1917a: 85, 92).
todas as suas armas e roupas. Pouco mais tarde, cozinhou os dois filhos das Frangas Uma terceira versão okanagon (M₇₃₁, Hill-Tout 1911: 146) chama de /
ou Galinhas dos campos, porque os pequenos só grunhiam em vez de responder a tsisk kena/ o pássaro que foi o autor da corrente de flechas. É novamente
suas perguntas. Chapim chegou nesse momento, e prometeu aos pais desesperados o Chapim, como confirmam versões mais recentes (M₇₃₂a, b; Cline 1938:
que ressuscitaria seus filhos se eles o ajudassem a recuperar tudo o que Coiote tinha 218-22), em que o nome do pássaro é transcrito /tcuckakína/. Nelas, dos dois
tirado dele.
As aves montaram uma emboscada no caminho pelo qual ia Coiote e o assus-
taram, voando de repente na sua frente. Ele perdeu o equilíbrio e morreu no fundo 3 . Essa versão parece, pois, evocar a origem das provisões de viagem, que convém
preparar em quantidade suficiente, mas não exagerada, contrariamente às provisões
do barranco. Raposa o ressuscitou mais uma vez. Chapim já tinha conseguido recu-
de inverno de que fala a outra versão sanpoil (M₇₂₈a, supra, p. 417), em relação às quais
perar suas armas e roupas, participou do concurso e foi o único que conseguiu
a questão da limitação simplesmente não se coloca. A oposição entre os dois tipos de
reserva alimentar pode certamente ser explicada pelo fato de o herói de uma versão ser
2 . Os Coregonus têm uma boca minúscula, devendo alimentar-se de animais mínimos a Cambaxirra, e o da outra, o Chapim, pássaros associados, respectivamente, à má e à
e de plâncton. boa estação (infra, p. 437, 445).

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pares que ficaram no céu, Cobra d’Água come Rã e Cão come Excremento. a escada, a qual é quebrada devido ao peso. Muitos morreram na queda e
Na outra, aparece apenas o primeiro par, com o mesmo desfecho. Em ambos outros, que estavam logo acima do lugar em que ela se rompeu, tiveram de
os casos, os peixes quebram os ossos ou a cabeça ao caírem, o que explica voltar apressadamente para o céu, onde foram mortos ou aprisionados. Por
suas espinhas e a estranha forma da boca do bagre (“catfish”) e da cabeça isso as espécies de mamíferos e de pássaros são muito menos numerosas na
do catostomídeo. terra do que no passado. A maioria delas pereceu no céu ou virou estrela.
Por outro lado, é possível que uma versão mais antiga (M₇₃₃a, Gatschet Uma curiosa versão proveniente do baixo Fraser (M₇₃₅, Boas 1891-95:
1887: 137-39) reservasse o papel de pássaro heróico à Cambaxirra. Pelo 31) lança uma ponte em direção à história do desaninhador de pássaros, e
menos é isso que escreve Boas (1918: 283), que devia ter suas razões. Contudo, a sequência deste livro mostrará melhor o porquê disso. Pica-pau e Águia,
o próprio texto de Gatschet identifica o pássaro ao Zonotrichia intermedia, dois irmãos, tinham cada um um filho (cf. M₇₁₈, supra, p. 405). Coiote, por
um tentilhão portanto. Por outro lado, o nome indígena /tskan/ ou /tseskan/ inveja, quis se livrar deles. Transformou os excrementos de sua mulher numa
se parece mais com o do chapim mencionado no parágrafo anterior, e a bela ave aquática, que os dois primos preseguiram até irem parar no céu.
descrição de Gatschet de “um pássaro de cabeça preta com marcas brancas Seus pais organizaram uma expedição para libertá-los, mas só o rapaz cuja
nas faces” caberia tanto ao chapim quanto a certos tentilhões que também avó era Pica-pau — que o ajudou marcando o compasso com seu canto
apresentam a oposição entre branco e preto, mas menos acentuada. Apesar mágico (cf. M₇₂₄a, em que uma avó divide o contínuo espacial finalizando a
da constância do nome dado na América do Norte ao chapim (infra, p. 437), escala cósmica) — conseguiu dirigir suas flechas até o céu. Todos os guer-
tais dúvidas convidam à prudência quando se quer identificar com precisão reiros subiram, venceram os habitantes do céu e libertaram os dois rapazes.
os animais dos mitos. Mas derrubaram a escada de flechas antes de Caramujo ter tocado o solo; o
Seja como for, o pássaro de M₇₃₃a possui, como o chapim segundo infeliz caiu e quebrou os ossos, o que explica sua atual lentidão. De modo
os Sanpoil (M₇₂₉), um arco e flechas de força prodigiosa, a que deve seu que, ao mesmo tempo que o episódio dos animais acidentados é invertido
sucesso; Coiote e as Frangas o envolvem nas mesmas aventuras que o mito (já que aqui Caramujo perde os ossos, em vez de certos peixes ganharem
sanpoil atribui ao Chapim. O mesmo ocorre em relação a um mito kalispel espinhas), o motivo da conquista do fogo dá lugar à libertação de heróis
(M₇₃₃b, Boas 1917a: 114-15) que conclui com a morte de Coiote provocada [“um herói” no original] cujas aventuras reproduzem as do desaninhador.
pelas Frangas e sua segunda ressureição. Terminaremos este inventário com os Shuswap (M₇₃₆, Teit 1909: 749).
Já comentamos os mitos dos Thompson relativos à conquista do fogo Urso Negro e Carcaju, um chefe dos Peixes, e o outro dos Pássaros,4 reuni-
realizada longe (M₆₃₃b,c; supra, p. 412). Esses índios também têm mitos em ram os povos da terra para guerrear contra os habitantes do céu. Só Cam-
que a conquista do fogo não aparece, mas nos quais os habitantes da terra baxirra, o menor dos passarinhos, conseguiu plantar sua flecha na abóbada
fazem guerra contra os do céu, embora por outros motivos, como o gosto celeste. Outros informantes atribuem o grande feito a Beija-Flor ou a Cha-
pela aventura, o temperamento belicoso (M₇₃₄a, Teit 1912b: 334) ou a intenção pim. Seja como for, cada um dos pássaros, por ordem de tamanho, atirou
de vingar o rapto de uma mulher (M₇₃₄b, ibid.: 246). Nesta última versão, os uma flecha. Encaixadas pelas extremidades, elas formaram uma escada que
terráquios contam com vários pássaros em suas fileiras, entre os quais Cisne ia até o chão. Os guerreiros subiram por ela, deixando em baixo dois chefes,
como marido ofendido e Cambaxirra como autor único da corrente de fle- para proteger sua retaguarda. Os dois começaram a discutir, depois empur-
chas. Uma versão mais curta (M₇₄₃c, Boas 1891-95: 17) chega a responsabilizar raram um ao outro contra a escada, e ela despencou.
os pássaros, membros do povo terrestre, pelas primeiras hostilidades. Os Terráqueos atacaram os Celestes. Começaram vencendo, mas a sorte
Em compensação, os habitantes do céu incluem Ursos Grizzly, Ursos mudou de lado e os Terráquios recuaram desordenadamente para a escada.
Negros e Cervos, o que implica uma inversão radical dos mitos anterior- Acuados, uns enfrentaram o inimigo, outros se jogaram no vazio. Entre
mente examinados, em que Urso Negro e Grizzly representam os terráqueos estes, os pássaros conseguiram voar até o solo e vários peixes erraram o lago
mais pesados, responsáveis pela ruptura da escada e impedidos, unicamente
por isso, de ir ao céu. As duas versões thompson concordam em enfatizar 4 . Acerca das razões pelas quais Carcaju é um dono dos pássaros, ver Lévi-Strauss
a derrota sofrida pelos Terráqueos, que recuam desordenadamente para 1962b: 67-72.

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que tinham em mira e se feriram ao caírem nas pedras. Desde então, uma e alto, como havíamos postulado, por outras razões. Mas há mais: o longo
espécie tem a cabeça achatada, outra a mandíbula quebrada e outra ainda pênis, conjuntor no eixo horizontal, é um corpo homogêneo de superfície lisa,
a garganta ensanguentada (sobre essa espécie de peixe, ver Adamson 1934: ao passo que a corrente de flechas, conjuntora no eixo vertical, é composta de
163); os da espécie Catostomidae quebraram todos os ossos, e ficaram com o elementos discretos que precisam, portanto, ser articulados. Os mitos insis-
corpo cheio de espinhas. Os Terráqueos que ficaram no céu foram mortos tem nesse segundo aspecto, quando precisam que um colaborador ou protetor
ou transformados em estrelas. teve de intervir para fazer degraus (M₇₂₃), amarrar os elementos solidamente
Várias indicações presentes nos mitos sugerem que essas estrelas, as uns aos outros (M₇₂₄a) ou ritmar o trabalho do construtor marcando o com-
menores entre as visíveis no céu, são também as que não pertencem a cons- passo com seu canto (M₇₃₅), e quando dizem que a corrente de flechas for-
telações nomeadas. No registro astronômico, elas representam, portanto, mava uma espécie de escada (M₇₂₆), e assim a descrevem, em quase todos os
uma espécie de contínuo residual que se opõe às constelações, para as quais casos. Diante do longo pênis, órgão natural que remete ao contínuo como a
os Salish dispõem não só de termos descritivos, como também de mitos própria natureza, a corrente de flechas, artefato artificial, ilustraria portanto
específicos, que explicam a origem e a configuração de cada uma delas, cor- o que há tempos chamamos de cromatismo (cc: 252-87, 325-33), verdadeira
respondendo a personagens terrestres que foram transportados para o céu categoria americana do entendimento: por acumulação de pequenos inter-
e imobilizados em poses características, como quadros vivos. Demos delas valos, a corrente de flechas cria contínuo com discreto. Parece ser significa-
alguns exemplos (supra, p. 294; cf. M₇₁₉, p. 405). Os pássaros, que podem tivo, portanto, que permita subir ao céu, mas não descer de volta — já que é
voar, saíram-se bem da aventura celeste, mas as espécies de mamíferos destruída antes — ao passo que, nos mitos do desaninhador, uma outra obra
foram reduzidas em número, de onde se pode inferir que os afastamentos cultural, a corda de cânhamo feita com o trançado — uma técnica pacífica, ao
diferenciais entre as que ficaram se tornaram mais pronunciados. No que diz contrário da caça ou da guerra, evocadas pelo emprego de flechas — permite
respeito aos peixes, os mitos parecem excluir as várias espécies de salmões e descer do céu sem ter antes servido para subir até lá. E com efeito, os mitos
trutas, base da alimentação indígena, e reter apenas três ou quatro gêneros, do estreito de Puget sobre as esposas dos astros, comemorando uma época
não consumidos, como o /tcoktci’tcin/, um peixinho de garganta vermelha em que era possível fazer o trajeto nos dois sentidos, referem-se a um artefato
(Teit 1909: 692 n. 1, 749 n.3), ou pouco apreciados, como os Catostomidae trançado como a corda reservada à descida, mas em forma de escada, como a
(“small, poor fish such as suckers”, diz o mito okanagon M₆₉₇a, Boas 1917a: corrente de flechas, que permite apenas a subida.
69). Também nesse caso, consequentemente, os mitos dão conta sobretudo Por que, afinal, certos mitos sentem a necessidade de substituir outros
dos aspectos privativos da criação. Do conjunto dos peixes, cuja origem é pássaros pela Cambaxirra, cujo emprego parece tão apropriado? Se descon-
retraçada na gesta do demiurgo Lua, consideram apenas os que não são sal- siderarmos o beija-flor citado por alguns informantes shuswap, certamente
mões, ao contrário do ciclo do desaninhador que, entre os Salish, só se inte- a título de passarinho muito pequeno (categoria que, como veremos, possui
ressa pelos salmões (supra, p. 380). em si mesma uma função pertinente), esses pássaros podem ser reduzidos a
dois tipos, de um lado, o Pica-pau de cabeça vermelha ou ainda o Sphyraphi-
! cus sp., gêneros vizinhos aos quais reconheceremos a mesma função semân-
tica5 e, do outro, o Chapim. Comecemos por este último, a que se referem
Mas a primeira questão colocada pelos mitos sobre a guerra dos mundos, com mitos que, como eles mesmos às vezes dizem, se passam antes da guerra no
ou sem conquista do fogo como objetivo, está ligada a suas divergências ou céu pela conquista do fogo.
obscuridades no que diz respeito à identidade do passarinho que é o único
capaz de prender no céu a corrente de flechas ou de construí-la na totalidade.
5 . Tanto mais que a identificação do primeiro é duvidosa, visto que o verdadeiro Pica-
Seria fácil explicar a escolha pela Cambaxirra, por comutação no eixo verti- pau de cabeça vermelha (Melanerpes erythrocephalus) não é um habitante costumeiro
cal do longo pênis, que vários mitos lhe atribuem (M₇₀₁a-c, supra, p. 393), em do extremo oeste do continente (cf. Godfrey 1967: 276-77), e o próprio gênero
escada de flechas, o que faria dela mais um argumento em favor da convertibi- Sphyraphicus inclui espécies de cabeça vermelha. Poderia tratar-se, consequentemente,
lidade recíproca dos eixos horizontal e vertical, que unem perto e longe, baixo de um único pássaro.

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M 737 SANPOIL: ORIGEM DO CHAPIM sobre a guerra celeste, certos peixes, em vez de quadrúpedes, têm a boca
ferida por terem caído do alto sobre pedras que estão em baixo e que, na
Uma velha vivia com seu neto perto de um rio. O menino quis atravessar a água e beira de um lago, remetem à água; de que decorre igualmente uma diferença
convenceu um velho cervídeo a levá-lo nas costas. Porém, no meio do rio, ele o dego- específica no seio de uma outra família de vertebrados.
lou e matou (inversão do passador suscetível, supra, p. 399-400). Os Shuswap e os Thompson colocam a origem do chapim num contexto
A avó começou a esquartejar o bicho. Atraídos pelo cheiro de carne, cinco lobos que se aproxima ainda mais do modo como os Salish do Planalto contam a
resolveram roubá-la. A velha fabricou um manequim de madeira podre à imagem história do desaninhador (referência: M₆₆₇a, b):
do neto e o colocou bem à vista. Depois, por magia, transportou-se com o neto e
suas provisões para uma saliência na parede de um rochedo escarpado. Os lobos M 738 SHUSWAP: ORIGEM DO CHAPIM
atacaram a casa e só encontraram a madeira podre do manqeuim. Tentaram saltar
até o refúgio, mas como era alto demais, não conseguiram. Deram-se por vencidos e Uma velha mulher grizzly que vivia no mais completo isolamento tentou fazer uma
pediram um pouco de carne. A velha disse ao neto para jogar na boca deles pedras filha de resina, que derreteu ao sol, depois uma de pedra, que afundou na água,
ardentes envoltas em gordura. Todos os lobos morreram, exceto o mais jovem, que uma de argila, que se dissolveu no rio de tanto se coçar e, finalmente, uma filha de
não conseguiu engolir uma pedra grande demais e apenas queimou os cantos da madeira, que sobreviveu, pois suportava o calor, flutuava na água e podia se coçar
boca. Daí as marcas escuras que os lobos têm nesse lugar. sem correr o risco de se destruir. Certo dia, enquanto se banhava, ela admirou uma
Os dois refugiados ficaram vivendo na saliência do rochedo. Quando todas as truta e quis tê-lo por marido. O peixe virou um belo rapaz e a levou para o fundo da
suas flechas acabaram, o rapaz procurou penas para empenar novas flechas. Provo- água, com bastante dificuldade, já que toda vez que tentava mergulhar com ela, a
cou uma briga entre duas águias e pegou as penas que caíam. Ele se transformou noiva de madeira voltava à superfície.
em chapim e deixou a avó, para ir ao encontro dos que estavam preparando a guerra Após muitos anos no país dos peixes, ela permitiu que seu filho e sua filha fos-
contra o céu (Boas 1917a: 107). sem visitar a avó materna. Mas as crianças se assustaram com sua aparência de ursa
grizzly e deram meia-volta três vezes, deixando pegadas que a avó reconheceu. Da
De modo menos claro do que o mito okanagon M₇₃₃a, em que o assassi- quarta vez, ela colocou um manequim à sua imagem bem visível sobre a colina e se
nato do cervídeo fornece ao herói a costela com que ele fabrica um arco, essa escondeu na casa. As crianças entraram, achando que ela estava ocupada coletando
versão sanpoil evoca a origem das armas mágicas graças às quais o herói raízes comestíveis longe dali. A avó surgiu e borrifou-os com uma droga mágica. O
conseguirá mais tarde atirar suas flechas até o céu. Mas aqui o herói é um menino, encharcado, assumiu forma humana, mas a menina, que só tinha recebido
chapim, e lá, um outro pássaro. Por outro lado, seu personagem inverte o do algumas gotas, virou uma cadelinha.
desaninhador, na medida em que a disjunção para o alto desempenha um A velha deu ao menino o nome de Chapim e o ensinou a caçar. Recomendou-lhe
papel salvador e permite ao herói conseguir realmente penas de águia. Con- que não batesse na cadela quando ela pegasse a sua parte da presa. Porém, certo
forme a versão okanagon supracitada, o pássaro /tskan/ inclusive conseguiu dia, ela devorou uma bela ave de rapina recém morta (“chicken-hawk”: Accipiter?),
as penas para flechas graças a um estratagema que combina as aventuras do ele ficou furioso e lhe deu uma surra. A cadela revelou sua identidade e fugiu para
desaninhador com um motivo ligado à conquista do fogo, disfarçando-se as montanhas, apesar dos apelos do herói, “oh! minha irmãzinha!”, que se ouve do
de carniça para poder ser levado por uma águia para o ninho no alto de um chapim desde então.
rochedo escarpado e lá pegar os filhotes. Pouco tempo depois, esquecendo as advertências da avó, o herói subiu no alto de
E finalmente, a sequência aqui narrada, anterior à guerra contra o povo uma árvore para recuperar uma flecha perdida. A árvore cresceu até o céu, uma vasta
celeste, lhe é simétrica, na medida em que o herói, depois de ter subido não planície erma coberta por uma fina camada de neve. O herói, sem saber para onde ir,
ao céu, mas muito alto, fere a boca dos lobos e assim introduz na aparência lançou uma flecha ao acaso para indicar-lhe a direção a seguir. Logo encontrou las-
física destes um afastamento distintivo próprio da espécie. Essa alteração cas frescas de madeira, que lhe revelaram a presença de lenhadores. Chegou a uma
significativa resulta do lançamento de pedras ardentes (remetendo ao fogo) casa, onde foi recebido por um velho doente que lhe disse que era seu avô (ou bisavô:
do alto, sobre corpos que se encontram em baixo, ao passo que nos mitos marido ou pai de avó, conforme a versão). Disse ainda que perto de lá havia gente

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vivendo numa casa enterrada, e que eram eles que o abasteciam. O chefe deles tinha malvada esposa; pode até ter sido levado ao céu, como o neto, enquanto bus-
uma filha bela e bem educada, mas que recusava todos os pretendentes. O velho cava uma flecha perdida. O herói caçou para o velho e o abasteceu de lenha
prometeu ajudar o herói a conquistá-la, mas impôs uma curiosa condição: que o e água. Surpresos ao vê-lo tão bem abastecido, os habitantes da aldeia vizi-
rapaz se incorporasse a ele. De dia, viveria na pele do velho e, à noite, sairia desse nha descobriram a presença do visitante e lhe ofereceram, inicialmente sem
invólucro e o velho lhe ensinaria sua magia. Assim viveram os dois, até o dia em que sucesso, todas as suas filhas em casamento. Ele acabou se casando com uma
o chefe convocou os pretendentes e prometeu a filha ao primeiro que flechasse uma delas, com quem teve quatro filhos. Uns dizem que ele nunca mais retornou
corujinha pousada no alto da escada interna da casa. Só o velho conseguiu atingir o à terra, outros, que voltou transformado em chapim, perpetuamente à pro-
alvo, apesar de ser cego e não conseguir ficar de pé sem ajuda. Mantendo sua palavra cura da irmã, que chama com seu grito.
e sem dar atenção às críticas, o chefe deu a filha ao lastimável vencedor. Todas as Verdadeiros pots-pourris de temas salish e sahaptin, esses mitos escapam
noites, o herói saía de seu horroroso invólucro carnal e a moça estava muito safis- em parte apresente discussão, pois a sequência da visita ao céu reproduz
feita com o marido. Por zombaria, os aldeões obrigaram aquele que continuavam em cada detalhe sequências de outros mitos que transcorrem na terra ou
tomando por um velho doente a acompanhá-los na caçada. Como ele não possuía no mundo subterrâneo, e que pertencem a séries paralelas, entre as quais
armas, cada um deles lhe deu uma flecha mais ou menos boa. O herói saiu da pele a que é consagrada à origem do vento ou do nevoeiro, a qual, por razões
às escondidas e matou todas as presas. Deu a cada um dos outros, que não tinham já indicadas (supra, p. 322), não podemos examinar aqui.6 Enquanto não se
conseguido caçar nada, o animal que matara com a sua flecha. Os que lhe tinham apresenta a ocasião de retomá-las, reteremos da sequência celeste apenas um
dado flechas boas receberam machos gordos e carnudos, e os outros, fêmeas. Coiote, aspecto em particular do tema da incorporação física, e apenas na medida
que tinha dado uma flecha de entrecasca empenada com folhas, só recebeu um em que ele remete ao ciclo do desaninhador, incorporado pelo demiurgo
filhote de cervo. Os caçadores, estupefatos, interrogaram a moça e lhe arrancaram segundo os Klamath e os Modoc, ou fabricado pelo enganador, segundo os
o segredo. Mataram o velho, abriram-no e conseguiram extrair o herói. Ele viveu por Thompson. Contudo, essas operações têm lugar na terra, antes da disjun-
muito tempo no mundo celeste com a mulher. Era um grande caçador de cervídeos. ção do herói para o céu, ao passo que aqui, a incorporação do herói ocorre
No final, se transformou em chapim (Teit 1909: 691-96). no céu, após sua disjunção, em circunstâncias que reproduzem as de que é
vítima o desaninhador de pássaros. Ao mesmo tempo, o papel de fabricante,
As versões thompson (M₇₃₉a-c, Dawson 1892: 34-35, Teit 1898: 77-78, 1912b: na terra, de uma criança artificial (aqui filha em vez de filho) passa do enga-
355-58) às vezes substituem as trutas por salmões e esclarecem o episódio nador Coiote para uma mulher grizzly que também figura nas versões salish
das crianças transformadas dizendo que, desde o nascimento, eram meio- do desaninhador, mas como vítima de Coiote, que a engana num começo
urso meio-peixe. Conforme a versão, a irmã transformada em cadela e sur- (M₆₇₁) ou num final (M₆₆₇a) de mito, ou ainda numa narrativa separada
rada depois assumiu forma humana, ou reassumiu sua antiga forma urso e (M₆₈₀c), sempre a propósito do calendário.
peixe, ou ainda se transformou em chapim. Depois subiu para o céu, onde Ora, os Thompson, Lilloet e Chehalis da Colúmbia Britânica têm mitos
o irmão foi procurá-la, em vão. Ou então o irmão chegou ao céu contra em que a mesma velha solitária, que de Grizzly vira Carcaju, também
a vontade, depois de ter perdido suas quatro flechas tentando atirar num
pica-pau de cabeça vermelha. Subiu numa árvore para buscá-las. As flechas 6 . Nesses mitos, um velho sarnento fecunda uma filha de chefe cuspindo ou urinando
tinham ficado fincadas perpendicularmente no tronco, ele usou as mais bai- sobre ela do alto de uma escada ao pé da qual ela adormecera (ver Lévi-Strauss 1971b).
xas como degraus de uma escada para alcançar a mais alta. Mas assim que Vê-se, portanto, que a flecha única que atinge o alvo — representação simbólica da
ele tirava os pés de uma flecha, ela se soltava sozinha e ia se fincar acima dele. moça — na primeira tentativa está relacionada à corrente de flechas da outra série
mítica do mesmo modo que o jato de urina, suprindo a impotência sexual de um velho,
O herói, obrigado a subir cada vez mais, acabou chegando ao mundo celeste.
doente ainda por cima, está relacionado ao longo pênis. Encontramos novamente, pois,
Montes de farpas de madeira ou cepos recém cortados se espalhavam ao pelo viés de uma demonstração indireta e a contrario, o princípio de convertibilidade
longo do caminho que o levou até um velho chamado Spetlamulâx, “Erva recíproca entre o longo pênis e a corrente de flechas, a que já tínhamos chegado por
daninha” (“weed”), como ele mesmo, aliás, que ficou surpreso ao notar outro caminho. Veremos adiante (infra, p. 436) que a relação entre a coruja e a heroína,
isso. O velho não era senão seu avô, exilado no céu por obra de Grizzly, sua aqui de ordem metafórica, passa alhures para a ordem da metonímia.

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substitui Coiote, mas duplamente, como autor das filhas da leita em relação A mãe do bebê roubado fez um outro com a urina espremida de seus
à série mítica M₃₇₅ sobre a gesta do demiurgo Lua e em relação ao grupo cueiros. Certo dia, quando esse segundo filho estava caçando nas montanhas,
M₆₉₆-M₆₉₇, em que Coiote quer se casar com a própria filha, cuja mãe é, às encontrou o irmão mais velho, que lhe revelou o parentesco entre eles. O
vezes, um Carcaju. mais velho, que tinha se casado com suas raptoras, as transformou em duas
ursas, uma preta e a outra grizzly. Pôs fogo em madeira resinosa para icendiar
M 740 THOMPSON: A AVÓ TRAVESTIDA sua casa e destruir todos os seus bens e depois voltou para junto dos seus.
As versões chehalis da Colúmbia Britânica (M₇₄₂a-b, Hill-Tout 1904b:
Uma velha mulher solitária chamada Skaiya- ’m fabricou para si netas com ovas de 342-54, Boas 1891-95: 30) permitem interpretar o nome do marido, /Skwásk-
peixe. Quando elas cresceram, quiseram maridos. A avó fingiu morrer, esticou a wustel/, quase igual na versão lilloet. Significa “pedras de cozer”, as que são
pele dos seios para ficar com o peito chato como um homem e pendurou entre as colocadas ardentes em recipientes de entrecasca ou cestaria cheios de água,
pernas um formão de chifre de veado e um martelo de pedra encabado no meio à para levá-la à ebulição, ou em fornos de terra. Depois de descobrirem a iden-
guisa de pênis e testículos. Fez-se passar por um jovem estrangeiro que, durante tidade de sua avó travestida — que tinha esticado a pele para parecer mais
a noite, dormiu com as donzelas. Elas, com dores devido à dureza do membro arti- jovem, mas que de qualquer modo não conseguia comer, porque não tinha
ficial, desconfiaram de algum engodo e fizeram cócegas no amante para fazê-lo dentes — as duas netas a mataram de cócegas: “Doravante — disseram elas
rir. Ele abriu a boca desdentada, e elas reconheceram a avó (Mheb, Mhec). Furiosas — quando essa história for contada, o tempo será tranquilo no lago”. Então
por terem sido enganadas, jogaram-na na água. A velha se afogou, sem parar de elas roubaram um bebê da avó cega mas, à diferença da versão lilloet, não foi
rir, produzindo bolhas de ar como as que se costuma ver na superfície da água seu marido, Pedra-de-Cozer, que a carregou nas costas, e sim sua filha, mãe
(cf. Gunther 1925: 166). do bebê roubado, na intenção de ir mais depressa e diminuir a distância que
As moças partiram para jusante e roubaram um bebê que tinha sido deixado aos os separava das raptoras. Mas a distância, ao contrário, aumentava quando
cuidados da avó cega. Colocaram no berço um pedaço de madeira podre em lugar a carregadora depositava a mãe no chão. Desesperada para acabar com
do bebê. Quando a velha percebeu, chamou o marido, que estava pescando, e o filho. aquilo, ela a transformou em planta comestível. Jogou o pai na água, onde
Os três saíram atrás das raptoras. De tempos em tempos, a velha achatava com as ele se transformou numa dessas pedras sob as quais os salmões se escon-
mãos a pele flácida dos seios contra o peito; a cada vez, a distância entre as ladras e dem. Então espremeu a urina dos cueiros e nasceu-lhe um filho. Mais tarde,
seu filho diminuía. E aumentava, sempre que a velha, cansada, parava de fazê-lo. A ele reencontrou o irmão nas montanhas e lhe contou sua origem. Sabendo
perseguição não deu em nada. das maldades cometidas pelas raptoras, que tinham-se tornado suas espo-
Com a madeira podre que ficou no berço, a velha fabricou uma outra criança, que sas, ele as matou numa fogueira de madeira resinosa e transformou a mais
cresceu depressa e aprendeu a caçar. Certo dia, ele encontrou o irmão mais velho, nova, que tinha bom temperamento, em nuvem branca de verão, e a mais
que tinha se casado com as raptoras. Depois de uma visita de adeus aos avós, os velha, desagradável, em nuvem preta de inverno. Também transformou o
irmãos voltaram juntos para as montanhas. O mais velho cedeu uma de suas mulhe- filho que tinha tido com a primeira em melro (“robin”, Turdus migratorius),
res ao caçula. E cada uma delas ficou com um marido (Teit 1912b: 283-85). pássaro belo e gracioso, e o filho da segunda em corvo, de plumagem negra
e voz rouca (à diferença de seu congênere europeu, o melro americano pos-
As diferentes versões desse mito são facilmente identificáveis graças ao nome sui o peitilho vermelho). Cada fagulha da fogueira virou uma ave da neve
da velha, Kayiam em lilloet e Kaiam em chahalis da Colúmbia Britânica, isto (cf. supra, p. 72-73). Os dois irmãos foram ao encontro da mãe, que decidiu
é, Carcaju. Na versão lilloet (M₇₄₁, Hill-Tout 1905: 177-89), seu marido, cha- metamorfoseá-los em astros. O caçula, que se chamava Sk.wumtcetl, virou
mado Skwaskwaset, no começo a carrega nas costas, mas irritado com o fato o sol, e o mais velho, a lua. Uma variante transforma as duas mulheres em
de as raptoras se afastarem mais cada vez que ele é obrigado pelo cansaço a catostomídeo e esturjão, e depois disso o irmão feito de urina se liquefaz
depositar seu fardo, ele transforma a mulher numa planta comestível cha- devido ao calor da fogueira.
mada /tsúkwa/, certamente o feto-aquilino Pteridium aquilinum, que tem o Vê-se claramente que esses mitos reproduzem em parte a gesta do
mesmo nome em thompson (cf. Teit 1930b: 482; supra, p. 368). demiurgo Lua, que também conclui com a metamorfose dos dois irmãos nos

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astros do dia e da noite. Mas estas são versões, por assim dizer, perpendicu- aparecera em nosso caminho, e que articulamos, graças a uma longa discus-
lares e não paralelas, em que se opera uma tripla transformação: Carcaju são (supra, p. 143-66), com outros que nos tinham levado até ele. Ora, nessa
fêmea em vez de Coiote macho, filhas nascidas das ovas e não da leita de primeira forma, a história da avó libertina existe entre os Thompson, os
peixe (o texto em inglês de M₇₄₂a é bem claro quanto a isso: /keleg/, “the roe Lilloet e os Shuswap (M₅₆₃b-e, Teit 1909: 678-79, 1904b: 323-25, 1899a: 66-67,
or eggs”; na hipótese de o termo salish excluir as leitas, o que não ousaríamos 1907a: 246-48). Esses Salish do planalto fazem dela uma narrativa isolada ou
afirmar, essa segunda transformação seria, aliás, redundante em relação à a inserem em outros contextos, mas sempre a remetem à vida breve, isto é, à
outra),7, e, finalmente e sobretudo, já que aqui não há duvida alguma, rapto impossibilidade de rejuvenescer os velhos ou de ressuscitar os mortos, o que
do filho mais velho nas montanhas em vez de no mar, para a terra firme e é evidenciado pelo motivo da boca desdentada, sempre presente, para ates-
não para a água, para o leste e não para o oeste, com a transformação con- tar que, a despeito de quaisquer estratagemas e artifícios, o envelhecimento
comitante de mulheres alhures próximas dos salmões em ursas, nuvens ou constitui um fenômeno irreversível.
peixes dos estuários e lagos. Contudo, por outro lado sabemos, pelas versões Além dessa função etiológica que passa ao estado latente, os mitos da
“normais” da gesta do demiurgo, que a mulher, mãe ou avó do bebê roubado, avó travestida que acabamos de introduzir possuem uma outra, mais explí-
capaz de fazer a terra se contrair ou se esticar, representa os sismos causa- cita, a origem dos fenômenos igualmente periódicos, mas de ordem telúrica
dores das dobras na crosta terrestre (supra, p. 379); a não ser quando, numa ou meterológica, ligados ao relevo terrestre e às condições atmosféricas, ou
versão proveniente dos Salish da costa (M₇₄₃, Boas 1893: 156), ela urina e cria seja, ao mundo intermediário, os seismos que remanejam periodicamente
os lagos, imagens úmidas em negativo do relevo montanhoso. o relevo, ou, como em M₇₄₂a, a origem do tempo calmo ou agitado (supra,
A transformação do coiote macho em carcaju fêmea, dois personagens p. 428), um tipo de acontecimento análogo àquele, mas relativo à atmosfera
que, para cometer incesto com a filha ou filhas — uma delas concebida em vez do solo. Apenas algumas versões mantêm o episódio sobre a origem
normalmente, as outras geradas por alimento cru — fingem morrer e assu- do sol e da lua, consequentemente menos solidamente ligado a esse grupo de
mem a aparência de um belo estrangeiro, remete à história da liberação dos mitos do que à gesta do demiurgo (M₃₇₅, M₃₈₂, M₅₀₆), da qual constitui um
salmões, em que as manobras incestuosas de Coiote visam a neta de uma traço invariante.
mulher que é sempre descrita como um quadrúpede das montanhas, às Visto isso, pode-se compreender as razões da emergência, entre a gesta
vezes até um carcaju, de quem ele se torna genro. Porém, nos mitos que esta- do demiurgo Lua e o ciclo da avó libertina, dessas formas míticas à pri-
mos vendo, essa Dona Carcaju sofre uma dupla transformação. Primeiro, de meira vista heteróclitas que têm algo de um e do outro, já que o principal
parente próximo para estrangeiro e, principalmente e por razões evidentes, protagonista é uma avó libertina mas que se transforma em homem para
de mulher em homem, pois quer seduzir as próprias filhas ou netas. Trata- poder, como Coiote, seduzir as filhas da leita. De fato, neste último caso, a
se, portanto, de uma avó libertina, o que nos traz de volta a um tema que já ação desemboca na origem do sol e da lua, em outras palavras, da periodi-
cidade encarada do ponto de vista astronômico. No caso da avó libertina,
7 . Por intermédio de nosso amável colega P. Maranda, a esposa de um professor da vimos que a ação desemboca na origem da periodicidade biológica, tornada
Universidade de Vancouver, a Sra. Kew, a quem agradecemos, explicou que a distinção inelutável pela impossibilidade de baixar a frequência do ritmo em que as
existe em sua língua materna, o cowichan, entre /galax/, “ovas de salmão” e /slgey?/, gerações devem se suceder, em prol de uma delas. Entre essas duas formas
“leitas”. O dicionário de Kuipers informa, em squamish, /t’amk’o/, “ovas de salmão”, / de periodicidade, e entre um protagonista macho e uma protagonista fêmea,
sλ’amk’o/, “ovas de salmão em conserva para serem consumidas no inverno” (pp. 269, intercalam-se formas mistas, cuja protagonista assume ambos os sexos e que,
291) e, ainda, /sp’e’l?xom/, que significaria “pulmão” ou “leita”, conforme o informante entre as duas manifestações extremas da periodicidade — que continuam
(p. 282; cf. cowichan, musqean /sp’e’l?xwem/, “pulmão”, Elmendorf & Suttles 1960: 20).
não obstante evocando, ainda que em surdina (esses motivos são expressos
A distinção também existe em coos: /heléyîs/, “ovas”, /méqLōu/, “leita” (Frachtenberg
1913: 34).
com menos vigor ou regularidade) — faz surgir em primeiro plano uma
Essas páginas acerca da posição semântica do feto-aquilino foram escritas para os terceira, a periodicidade das estações (M₇₄₂a), associada à periodicidade
Mélanges en l’honneur d’André G. Haudricourt (no prelo). [essa frase parece estar no menos regular que, nos níveis contíguos do solo e do ar, se manifesta por
lugar errado] sismos e mudanças de tempo (fig. 29).

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macho andrógina fêmea Puget, passando pelos Bella Coola; cf. Boas & Hunt 1921: 343-44, Eells 1887:
Grupo do pai Grupo da avó travestida: a Grupo da avó
216, Haeberlin & Gunther 1930: 24, Curtis 1907-30, v. 9: 52, 58, McIlwraith
libertino: Coiote avó e as filhas da leita libertina: a avó 1948, v. II: 451) era feito de rizomas de feto e ovas de salmão, um prato com-
e as filhas da leita e o neto pleto de inspiração das mais paradoxais, já que esses gêneros alimentícios
eram coletados em conjunturas opostas: os rizomas no outono, quando a
planta parava de crescer com a chegada do frio (Gunther 1945: 14, Haeberlin
sol e lua, sismos vida breve & Gunther 1930: 20), e as ovas na época da desova, ou seja, quando a espécie
crescia.8 Pelo viés da culinária, já se vê explicada a dupla associação entre,
de um lado, uma avó-feto e mulheres de ovas de salmão e, do outro, com um
marido chamado “Pedra-de-cozer”. Mas a avó é também velha. Com efeito,
sol e lua, sismos, mudanças de tempo, vida breve
parece que as mulheres jovens eram proibidas de coletar fetos, sob risco de
adoecerem, tanto no norte quanto no sul da área salish, entre os Kwakiutl
Periodicidade Periodicidade Periodicidade
astronômica meteorológica biológica (Boas & Hunt 1921: 616) e entre os Coos: “As jovens esposas coletavam frutos
e bagas; as mais velhas, os rizomas, raízes e bulbos de feto, cenoura selvagem
[ 2 9 ] Três formas de periodicidade.
e camácia” (Jacobs 1939: 84).9
O fato de uma mulher associada alhures aos sismos e que aqui faz a terra
se esticar e se contrair se tornar depois o feto-aquilino (Pteridium aquilinum)
É significativo, portanto, que os mitos sobre a gesta do demiurgo Lua, que decorre provavelmente de certas particularidades características dessa coleta.
fazem de Coiote o autor das filhas da leita, puxem, por assim dizer, os sismos O feto-aquilino possui “um rizoma fino, lenhoso, irregularmente ramifi-
para o lado da periodicidade astronômica (M₃₈₂, supra, p. 379), ao passo que cado que se espalha longe por debaixo da terra” (Abrams 1955-60, I: 23), que
pelo menos um dos mitos sobre a avó travestida desloca o foco inteiramente M₇₄₁ também descreve como um “cipó rasteiro”. As velhas coletoras tinham,
para mudanças de tempo, que a mera narração do mito basta, dizem, para
provocar. Do mesmo modo, no limite do grupo da avó libertina, mitos nez 8 . A oposição em questão não é exatamente aquela entre verão e inverno. Conforme a
percé (M₅₇₁a-c, supra, p. 165) conectam a perda da dentição por Coiote à espécie, a época da desova se estende, para os salmões, do mês de agosto até novembro
origem da periodicidade dos ventos. E mitos okanakon (M₇₄₄a-b, Cline 1938: ou mesmo dezembro (Netboy 1969: 48). Os Chehalis da Colúmbia Britânica davam aos
228-29), enfim, fazem provir os patos, que são donos da primavera, como meses de outubro e novembro nomes que signigicavam “meses da desova” (Hill-Tout
1904b: 334). Entretanto, eles também designavam um intervalo do calendário, que ia
sabemos (supra, p. 364), dos dentes perdidos na água por uma ou várias
do fim de julho ao começo de outubro, por uma locução cujo significado aproximado
ogras posteriormente transformadas em mochos, das quais uma é assada
é “junta das duas pontas do ano”, e o fim desse período levava um nome específico,
num forno de terra. De modo que o código meteorológico realiza uma espé- “época em que morrem os salmões”, pois, como explica a mesma fonte (ibid.: 335), “os
cie de compromisso entre os códigos astronômico e biológico. salmões morrem em massa imediatamente após a desova”. A época da desova anuncia,
Em todos esses mitos, as repetidas alusões ao forno de terra colocam a consequentemente, o fim de um ciclo anual e, pelo menos em teoria, a coleta dos fetos
questão de seu emprego ritual. Tratamos disso em nosso curso de 1968-1969 pertence ao ciclo seguinte.
no Collège de France, em relação ao que muitas vezes chamamos de série 9 . Mas não para os lados do estreito de Puget, a julgar por M₃₇₅g-h e j, em que duas
paralela, explicando porque devíamos deixá-la de lado. Aliás, os mitos que jovens mulheres, por ocasião de uma coleta de fetos, desejam casar-se com estrelas
(supra, p. 368). A menos que essa ocupação, assim como a decisão delas de dormir ao
mais interessam à presente discussão autorizam uma solução parcial, mas
relento fora de estação, não revelem justamente o desrespeito aos costumes que seria a
suficiente, em função exclusivamente da cadeia sintagmática. causa primeira, ou ocasional, de suas desventuras subsequentes.
Rizomas de feto eram cozidos no forno de terra e prensados em pães que Sobre a conotação invernal dos fetos, ver Frachtenberg 1914: 81: os índios do baixo
se conservavam por muito tempo. Um dos pratos mais apreciados em toda Umpqua contam que, antigamente, “comiam rizomas de feto secos no inverno e quase
a região costeira (dos Kwakiutl no norte até as populações do estreito de nada além disso; era assim que se alimentavam durante o inverno”.

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portanto, de abrir o solo em longas extensões com a cavadeira, e esse labor não se pode pescá-los. É este o alimento humano por excelência, animal por
podia lembrar terremotos em miniatura. Não se trata de uma especulação sua natureza, ligado à água e não à terra; e, até onde se sabe, não assado no
gratuita de nossa parte, já que grupos salish tão afastados entre si quanto os forno, mas grelhado, ensopado ou secado. A transformação parece ser do
Bella Coola e os Tillamook, ambos separados há muito tempo do grosso de mesmo tipo que a que afeta o velho de M₇₃₉c, exiado no céu por sua esposa
sua família linguística e em direções diametralmente opostas, fazem essa asso- Grizzly, que se chama Erva Daninha, ou seja, uma planta que, à diferença do
ciação quase nos mesmos termos, embora os Bella Coola lhe atribuam uma feto, é incomestível e fadada a permanecer crua.
origem recente, ao passo que os Tillamook invocam um mito para justificá-la.
“Há alguns anos — dizem os Bella Coola — um rizoma de feto-aquilino que as !
mulheres tinham acabado de arrancar se transformou em cobra. As mulheres
ficaram com medo... enquanto olhavam, o solo desabou diante delas como Essa que pode parecer uma digressão acerca de fetos e forno de terra era
se estivesse ocorrendo um terremoto, e elas entenderam que aquela raiz era indispensável para elucidar certos aspectos dos mitos, e contribuirá para a
a “mãe” dos fetos” (M₇₄₅a, McIlwraith 1948, i: 92). Os Tillamook, por sua vez, interpretação de conjunto que deles faremos. Contudo, é preciso lembrar
contam (M₇₄₅b, E.D. Jacobs 1959: 176-77) que um homem quis comer a “mãe” que introduzimos o grupo da avó travestida com um objetivo preciso, o de
dos fetos, arrancada por sua mulher, e que se parecia com uma cobra. Imedia- compreender os mitos relativos à origem do chapim, estão ligados a ele por
tamente, a terra começou a tremer, bem como a casa em que ele estava. uma relação obscura, que cabe elucidar.
Os Alsea, vizinhos dos Tillamook ao sul, fazem a mesma associação entre Voltemos, pois, ao chapim. Conforme as versões do mito consagrado à
feto e cobra, mas a exprimem em forma de metonímia em vez de metáfora, origem desse pássaro, ora um irmão eternamente em busca da irmã per-
quando evocam uma Dona Serpente arrancando rizomas de feto (Frachten- dida, ora a irmã e depois o irmão, se transformaram em chapins sem jamais
berg 1920: 129-31, 141-43). se reencontrarem. Esses personagens são originados pela união entre uma
De modo que a proibição feita às mulheres jovens de coletar rizomas de mulher ursa (a mãe deles era uma grizzly) e um peixe, truta ou salmão, avis-
feto, registrada nas fronteiras da área salish, poderia ser explicada pela asso- tado num lago à beira do qual a moça morava. O esquema do encontro repro-
ciação que os próprios Salish fazem — desde há muito tempo, o suficiente duz o das esposas dos astros, pois em ambos os casos uma jovem admira
para que tenha persistido em dois grupos totalmente isolados — entre os um ser sobrenatural e imprudentemente o deseja por marido. Mas aqui não
fetos e os sismos enquanto perturbações telúricas ligadas à periodicidade, se trata de superar a oposição entre céu e terra, e tampouco entre perto e
aos quais só as mulheres mais velhas, tendo atingido a menopausa, pode- longe (já que a protagonista mora à beira do lago). A oposição, antes cósmica
riam se expor sem correrem o risco de comprometer, por tal contaminação, ou sócio-geográfica, passa a ser de outra ordem, a da taxonomia que separa
o bom andamento do universo (cf. omm: 421). as duas famílias animais entre as quais o pensamento indígena introduz um
Assim, uma humana dona dos sismos, capaz de submetê-los às suas pró- afastamento máximo, não só porque o urso é terrestre, ou mesmo subterrâ-
prias necessidades e vontades, torna-se “mãe” de uma planta alimentar que neo, e o salmão aquático, mas também porque todos os mitos dessa região da
um humano não deve consumir, sob pena de provocar um sismo, apesar América concebem os salmões, alimento dos homens por excelência, como
de ela ser das mais saborosas de todas, como precisa M₇₄₅b (note-se que os seres antropomórficos e até sobrehumanos, e os ursos, muitas vezes canibais,
Bella Coola, que secularizaram o mito, dizem, ao contrário, que as mulhe- como seres subhumanos. Nesse sentido, o carcaju (Lévi-Strauss 1962b: 67-72)
res comeram sem medo o rizoma serpentino assim que entenderam que era parece ser uma réplica ligeiramente enfraquecida do urso.
a “mãe” dos fetos). Uma transformação simétrica afeta o marido, que passa Ora, tais naturezas antitéticas, símbolos de uma disjunção extrema no
de “pedra-de-cozer” para “pedra crua”, “uma dessas rochas no leito dos seio do reino animal, são integradas pelas crianças em sua aparência física,
rios debaixo das quais os salmões se escondem” (M₇₄₂a). Ou seja, de uten- pois que eles são, como nos diz M₇₃₉, metade urso metade peixe. A avó con-
sílio para o preparo de um determinado alimento (no caso, um vegetal que, segue transformá-los de modo incompleto: o menino se torna humano, mas
segundo os mitos, os ursos apreciam muito), ele passa para o papel de obstá- a menina, transformada em cadela, fica a meio caminho entre a animalidade
culo à busca de alimento, pois quando os salmões se escondem sob as pedras, e a humanidade (supra, p. 424).

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Para interpretar esse incidente, felizmente podemos nos ater à cadeia “bicho” e descartando o aspecto “germano”; engana-se ao tomar por dife-
sintagmática, sem termos de mobilizar o imponente conjunto de mitos que, rença absoluta entre a irmã e ele o que era, na verdade, identidade relativa.
nessa região da América, tratam de uma mulher casada com um cão que A transformação em chapim operada sobre os dois irmãos ou um deles,
também sofre uma derrota parcial ao tentar obrigar seus filhos-cão a con- sucede, portanto, ao fracasso de duas tentativas sucessivas de mediação, uma
servarem a forma humana, que só assumiam às escondidas, quando acha- no plano da natureza e a outra no plano da cultura. O chapim poderá con-
vam que ninguém os via. Com efeito, o par humano/cão possui uma relação servar um papel positivo, mas a título de semi-mediador, nos planos tempo-
de fácil compreensão com o par urso/peixe. Um conjuga termos extrema- ral e meteorológico que, conforme sugerimos, ocupam um lugar interme-
mente aproximados, o outro, termos extremamente afastados. Além disso, o diário entre os dois tipos mais marcados de periodicidade, a astronômica e a
irmão e a irmã eram ambos, ao nascerem, urso e peixe, de modo que cada biológica. Ou então o chapim, convocado para o papel de mediador espacial
um deles trazia em si uma diferença interna mas, por serem dois, sua idêntica entre o céu e a terra, só o cumpre pela metade (assim como sua avó só cum-
constituição criava entre eles uma semelhança externa. Após a transforma- pre o papel de mediador taxonômico pela metade), já que a escada de flechas
ção, o esquema se inverte, um dos personagens vira humano, o outro, cão, e que o pássaro é o único capaz de prender na abóbada celeste permite subir,
entre eles surge portanto uma diferença externa, apesar de ambos serem “do mas não descer; por culpa dos ursos, na maioria das versões, o que com-
mesmo sangue”, como se diz, portadores de uma semelhança interna, exa- pleta a demonstração de sua eficácia negativa quanto à questão da media-
tamente a que a avó pede ao menino que leve em conta, deixando a cadela se ção. Em decorrência disso, os habitantes da terra sofrem um desastre e só
aproximar do produto da caça. conseguem obter o fogo de cozinha — quando o conseguem — em troca,
O mito ilustra, pois, um esquema: por assim dizer, de uma diminuição em seu número e, sobretudo, em sua
diversidade, pois surgem então entre as espécies zoológicas afastamentos
diferenciais que a união de uma ursa com um peixe pretendia, contra todas
Extremamente disjuntos: Extremamente juntos: Meio disjuntos: Produto:
as evidências, ignorar.
Como demos a entender, o episódio da origem dos fetos, apesar de seu
urso ar anedótico, respeita e reforça o mesmo esquema. O “prato completo” cuja
receita associa um produto temporariamente estéril da terra a um produto
essencialmente fértil da água, se vê separado em seus elementos constituin-
humano tes, pois a velha destinada a tornar-se feto perseguirá em vão moças que pro-
urso
chapim vêm de ovas de salmão. Ainda que apenas à mesa, o ano novo não se juntará
peixe
ao ano acabado (supra, p. 431 n. 1). E a pedra de forno, cuja ação mediadora
cão
garante a conservação dos rizomas de uma estação para a outra, torna-se
pedra em estado bruto numa água corrente e não passível de ser aquecida,
peixe
refúgio dos peixes contra pescadores e catadores de ovas.
A função semi mediadora do chapim, seu sucesso parcial, que altera irre-
versivelmente a ordem do mundo, explicam o fato de a gesta desse pássaro
[ 3 0 ] Gênese do chapim conforme M739. reproduzir num certo aspecto a do desaninhador, e se lhe opor em outro.
Tanto mais que, entre os Salish, a função de que esse herói é alhures incum-
Ou seja, duas tentativas de mediação, uma impossível porque contra a bido como dono do fogo, introdutor da culinária e das artes da civilização, é
natureza, a outra conforme à cultura, mas que no entanto fracassa, como esvaziada de todo o seu conteúdo. A visita bem sucedida ao mundo celeste
a primeira, por causa de um mal-entendido: o jovem herói interpreta e o retorno à terra tendem a ser reduzidos a performances formais. Na ver-
como um afastamento máximo, embora esse tivesse sido abolido, o afas- dade, o mérito pela conquista do fogo — por um personagem que imita uma
tamento mínimo instituído em seu lugar, considerando do cão o aspecto presa morta, conforme um esquema que localizamos pela primeira vez entre

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os Tupi (cc: 149-52) — costuma caber ao Castor10, trabalhando sozinho ou um verdadeiro incesto (M₅₆₂e, M₅₆₄), transposto do eixo horizontal dos ger-
em equipe com Águia e Doninha (ou seja, um trio que remete á água, ao céu manos para o eixo vertical das gerações alternadas.
e à terra), ao passo que entre os mesmos Salish o motivo da origem da cozi- Bem mais ao norte, a mesma ligação existe entre o grupo do desaninhador
nha se esfacela, por assim dizer, nas mãos de um enganador, dividindo-se em e o da avó libertina. Num mito kaska (M₇₄₆a, Teit 1910: 462-63), por exemplo,
origem dos salmões e origem das feiras e mercados, uma aquém da cozinha, uma mulher afasta a filha para o topo de uma árvore, onde ela se metamorfo-
já que diz respeito à própria existência do alimento, e a outra além, já que os seia em mocho (cf. supra, p. 425 e 426 n. 1), para assumir sua aparência física e
mercados serviam para trocar gêneros alimentícios a eles destinados e que tomar-lhe os dois maridos. Um mito esquimó de ampla distribuição, do qual
em geral já haviam passado por um começo de preparo. mencionaremos a versão proveniente da Groenlândia, por ser a mais afastada
Mesmo quando os mitos sobre a origem do chapim tendem a se apro- (M₇₄₆b, Rink 1875: 442-43), fala de uma mulher que detestava o filho, mau
ximar dos que se referem ao desaninhador, como M₇₂₇ e, em menor grau, caçador, e roubou-lhe a esposa; transformada em homem, tornou-se marido
M₇₃₃a (supra, p. 419, 422), a regressão da pedra de forno para pedregulho dela e viveram juntas até que o filho descobriu seu refúgio e a matou.
no rio não se inverte. Em lugar de uma transformação da pedra de forno no
eixo que liga a natureza à cultura, observa-se apenas uma outra, que deixa !
a pedra em estado bruto mas lhe destina uma função destrutiva em vez de
construtiva. A primeira transformação diz respeito à ordem da natureza, a Mas por que o chapim? Em A origem dos modos à mesa (p. 192-93) respon-
segunda, à da cultura. Essa utilização das pedras de fogo com finalidades demos antecipadamente a essa pergunta, omstrando que o pensamento norte-
mortíferas, em prelúdio à conquista ou reconquista do fogo de cozinha, americano liga o chapim à periodicidade temporal11: os cortes de sua língua
remete aos mitos jê, sobretudo a M₇ e M₈, em que o herói, antes de receber marcam o passar dos meses e seu canto anuncia a primavera ou o verão. Esta
o fogo de cozinha de uma fera amável (≠ antes de arrancar o fogo de ferozes última crença também foi registrada na parte ocidental da América do Norte.
inimigos), fere voluntaria ou involuntariamente, com pedras lançadas em Os Lilloet afirmam que certas pessoas são capazes de prever o tempo que irá
lugar de pássaros crus, a fera em potência que, no plano da vida social, sem- fazer pelo canto e pelos movimentos do chapim (Teit, ii: 290). Como seus vizi-
pre é o cunhado que tira de um homem sua irmã. Ao passo que, em M₇₃₃a nhos da vertente oriental das Rochosas, os Kutenai dizem que o chapim canta
e M₇₃₇, o herói mata ou fere feras reais, jogando sobre elas pedras de forno, “Primavera! Primavera!” (Chamberlain 1892: 580, que utiliza o termo tomlit em
recobertas, como dizem os cozinheiros, com carne cozida, porque queriam lugar do americanismo chickadee; mas ele era inglês de nascimento, cf. Boas
roubar-lhe uma presa obtida numa situação de contato físico e íntimo, uma 1914: 326). Um de nossos mitos (M₇₂₈a, supra, p. 417) situa na primavera o con-
espécie de incesto transposto à relação entre caçador e caça e que, segundo curso de tiro vencido pelo chapim. Outros (M₇₂₉-M₇₃₃), menos explícitos, vão
a versão okanagon M₇₃₃a, consistiu numa penetração física do animal pelo no mesmo sentido, já que situam a conquista do fogo após as desventuras de
ânus, a qual, na série conexa da avó libertina, torna-se a causa eventual de Coiote com as Frangas ou Tetrazes que, nessa mesma ocasião, segundo algu-
mas versões, intervêm na qualidade de espíritos do frio, que fazem demorar a
10 . Em relação ao qual caberia investigar se não forma um par com a Lontra terrestre, vir a primavera (cf. M₆₁₄c e supra, p. 288, 303).
que perdera o fogo primordial que ardia sem madeira (M₇₂₃b, supra, p. 416), ao passo
que ele conquista o fogo atual e o deposita, em seguida, nas várias espécies de madeira.
A realidade do par é atestada por M₇₂₃a: a velha dona Fogo tinha duas filhas, uma
casada com Castor e a outra com Lontra-terrestre, e os dois maridos se opunham como 11 . Mesmo levando em conta seu caráter onomatopéico, é notável a semelhança
comedor de madeira e comedor de peixe, respectivamente. Furiosa porque seu marido entre os nomes do chapim em regiões bastante afastadas da América do Norte, entre
reservava para a sua mãe os maiores peixes, a mulher de Lontra matou-a, atiçando povos falantes de línguas totalmente distintas. Em cherokee, por exemplo, é /tsikilili/
violentamente o fogo. Não havia mais fogo em lugar algum, exceto numa casa longínqua (Mooney 1900: 281), em jicarilla apache, /tcitc’ike/ (Goddard 1911: 237), em thompson,
onde Castor conseguiu pegá-lo, com sua costumeira esperteza. Ele o depositou nas /tcîski’kik/ (Teit 1898: 76), palavras de que podemos também aproximar os nomes do
árvores, e desde então é possível tirar fogo da broca, instrumento composto de dois “passarinho” não identificado /tsitses/ e /t’si’dadat/ dos Salish do estreito de Puget e de
pedaços de madeira friccionados um contra o outro (Ballard 1929: 51). seus vizinhos Sahaptin (supra, p. 417).

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De modo que os mitos estabelecem uma dupla conexão, do chapim com heróis, em sol e lua, e, segundo uma variante, as filhas da leita transformadas
a chegada da primavera, de um lado, e com a conquista do fogo, do outro. não em nuvens mas em esturjão e peixe catostomídeo (fig. 31).
Eles também opõem claramente o fogo celeste e a água celeste, no episódio Nesse quadro recapitulativo, vê-se que o melro americano, Turdus migra-
de M₇₂₈b-c em que os habitantes do mundo superior urinam sobre os ter- torius, conhecido por seu peito rubro, está do mesmo lado que o sol e o verão.
ráqueos, provocando um dilúvio para apagar o fogo roubado. Por esse viés, Os mitos lhe atribuem, contudo uma relação ambígua com o fogo e o calor.
é possível estender e aprofundar a interpretação acima quanto ao papel do Segundo os Nootka, os Quinault e os Kathlamet (M₇₈₄, Boas 1891-95: 100-01;
chapim, procurando saber, conforme um método que costumamos empre- M₈₀₄, Farrand 1902: 109; M₇₅₆b, Boas 1901: 67-71), o Melro — pássaro capri-
gar, se esse pássaro é transformável em algum outro quando os mitos comu- choso segundo dizem os Alsea (Frachtenberg 1920: 63) — não conseguiu rou-
tam a primavera com o outono ou o inverno, e o fogo com a água ou a chuva. bar o fogo celeste do qual tinha se aproximado para se aquecer, porque estava
Deixando provisoriamente de lado a transformação de chapim em cam- gelado; aproximou-se demais, aliás, e seu peito vermelho atesta até hoje a
baxirra, já que os dois pássaros compartilham o mesmo papel, começaremos potência da fogueira. Por outro lado, segundo os Sanpoil e os Coeur d’Alêne
por notar que outros pássaros aparecem nos mitos ao lado deles. Versões (M₅₈₈, Ray 1933: 135-37; M₇₄₈b, Teit 1930a: 177; Reichard 1947: 63), o Melro foi
do sul do estreito de Puget (M₇₂₃, supra, p. 415) evocam a colaboração de testado e eliminado como sol, porque queimava a terra. Nos mitos da costa,
um “passarinho” e do Corvo. Outras, provenientes da parte setentrional, o Melro sente muito calor. Nos do interior, é ele próprio que é quente demais.
despacham para o céu, como batedores, um par dioscúrico composto por Praticamente em toda a América do Norte, o melro tem a sólida repu-
Melro do verão e Melro do inverno (M₇₂₄b, supra, p. 416). Na série conexa, tação de “precursor da primavera...; quase todos eles emigram, mas outros
relativa à origem do chapim, versões chehalis da Colúmbia Britânica (M₇₄₂a, da mesma espécie, que haviam procriado mais para o norte, os substituem,
supra, p. 427) ilustram uma série de transformações em que figuram pássa- de modo que a espécie sempre está bem representada, mesmo no inverno”
ros, fenômenos meterológicos ou peixes: as filhas da leita transformadas em (Pearson 1936, iii: 236-39). No Canadá, “ na maior parte do país ele (o melro)
nuvem branca de verão e nuvem preta de inverno, o filho de uma das mulhe- chega cedo na primavera, quando o solo começa a aparecer sob a neve; é
res transformado em belo melro e o da outra em feio corvo, as faíscas da incontestavelmente o sinal da chegada da primavera...” (Godfrey 1967:
fogueira ou as próprias crianças transformadas em aves das neves, os dois 340). Os índios também reconhecem ao melro uma função meteorológica,
mas parecem antes associá-lo à chuva. “Logo vem a chuva!”, canta o melro,
M₇₄₂a
segundo os Kutenai (Chamberlain 1892: 580), e os Flathead afirmam que se
filhas da leita
nuvens pretas nuvens brancas os melros forem irritados, irá chover (Turney-High 1937: 25). Segundo os
de inverno de verão
Tsimshian, essas chuvas seriam as do final do inverno, que fazem derreter
catostomídeo esturjão
o gelo, e que o melro, anunciador do verão, chama com seu canto (M₅₄₅ b,
corvo (-) melro americano (+)
Boas 1916: 181; 1912: 201). Se tal ligação se revelasse constante em toda essa
área geográfica, caberia colocar o pássaro robin em correlação e oposição
aves das neves
com um outro turdídeo, chamado de swamp robin, que é certamente o tordo
solitário, mais comumente chamado em inglês de hermit thrush (Hylocichla
herói guttara; acerca dessa sinonímia, ver Pearson 1936, iii: 234-36), que difere
Lua Sol dos demais tordos por sua cauda avermelhada e seu peito claro, com man-
chas marrom escuro (Godfrey 1967: 342-43). Pois um mito thompson, em
M₇₂₃ que esse pássaro é chamado de /s’xoyi’k/,12 faz dele o responsável não pelas
corvo “passarinho”

M₇₂₄a
melro de inverno melro de verão 12 . Ao passo que o tordo verdadeiro tem em thompson um outro nome, /qa’lέq’a?/,
como teve a bondade de verificar junto a informantes indígenas, a pedido nosso, nosso
[ 3 1 ] Correspondências entre oposições binárias. colega P. Maranda.

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chuvas aquecedoras do final do inverno, mas pelas chuvas refrescantes das entre uma função e a outra, entre meteorologia e biologia, resulta do mito
tempestades em pleno verão (M₇₄₇c, Teit 1912b: 233). Porém, nesse caso, serí- tsimshian já mencionado (M₃₅₄b) em que os humanos, convidados à aldeia
amos levados a reconhecer o tordo solitário também no pássaro chamado dos melros, constatam que a casa do chefe desses pássaros é dividida em
simplesmente de robin, “melro”, por um mito coos (M₇₄₇d, Jacobs 1940: 233), duas metades, uma do inverno, e a outra do verão (Boas 1916: 182, 760).
único sobrevivente de uma guerra civil entre os pássaros, embora fosse (ao Avancemos mais um passo. Os Carrier, de que acabamos de utilizar um
contrário do Melro dos mitos salish) o mais feio de todos, “com seu ven- mito, põem em correlação e oposição o melro e um pássaro chamado em
tre coberto de inflamações avermelhadas” — descrição que convém mais inglês de song sparrow, o tentilhão canoro, Melospiza melodia: “... ambos che-
ao tordo do que ao melro. Como certos mitos (M₇₂₄b) distinguem o Melro gam em março. O Melro canta durante a primavera e o verão, mas o Tenti-
de verão (Turdus migratorius) e o Melro de inverno (Ixoreus naevius) — lhão só começa a cantar em maio, porque durante os meses de março e abril
anunciador das tempestades de neve segundo Brasher (1961-62, iii: 111), ao ele trabalha. Por isso, no inverno, o Melro não tinha mais nada para comer e,
qual voltaremos (infra, p. 441) — não se pode descartar a possibilidade de o como o vizinho vivia na fartura, propôs trocar suas perneiras vermelhas por
termo vernacular robin remeter, na verdade, a três pássaros. Aparentemente, comida. Mas Tentilhão não quis” (M₇₅₀, Jenness 1934: 254).
em cowichan e em musqueam, a mesma palavra, /sk’oqεq/, designa as duas Essa versão indígena da fábula da cigarra e da formiga é especialmente
espécies de “melro” (Kuipers 1967: 294; Elmendorf & Suttles 1960: 24). Além interessante, ao opor dois pássaros entre os quais a mesma função semân-
disso, poderia existir uma relação de oposição e correlação entre o melro tica se comuta conforme se considera o extremo norte ou o extremo sul da
e o chapim, dado que este chama com seu canto a irmã perdida e aquele, área salish. Vimos que, ao norte, os Carrier atribuem ao melro o poder de
segundo alguns salish da costa (M₇₄₇a-b, Adamson 1934: 30, 369), faz o ir e vir entre o mundo dos mortos e o mundo dos vivos. No extremo sul, os
mesmo, mas para chamar a esposa, também perdida. Tillamook, que à diferença dos Carrier, são Salish, mas isolados do grosso
De todo modo, a atribuição a pássaros confundidos sob o mesmo vocá- de sua família linguística, enquanto que os Carrier são vizinhos dela, atri-
bulo tanto das nevascas como das chuvas que aquecem no final do inverno buem o mesmo poder ao tentilhão, mas transferindo para o céu o mundo
e das que refrescam no verão explica o papel ambíguo do “Melro” em rela- dos mortos que, para os Carrier, é subterrâneo: “O Tentilhão tem um poder
ção ao sol, ao calor e ao fogo: sem chuva, o verão seria quente demais, mas extraordinário: ele pode ir até o mundo dos mortos e retornar” (M₇₅₁a, E.D.
essas chuvas de verão, ainda que marcadas por “nuvens brancas” em lugar Jacobs 1959: 12). Um outro mito da mesma proveniência (M₇₅₁b, ibid.: 98-99)
das “nuvens pretas” que trazem as chuvas de inverno (cf. M₇₄₂a), se opõem incumbe o Tentilhão do papel de passador pelo rio que separa o mundo dos
ao sol reinando absoluto no céu claro. mortos do mundo dos vivos.
Além de sua função meteorológica, o melro possui uma outra, que remete Sem qualificativo, o termo inglês sparrow empregado por esses dois mitos
à uma forma diferente de periodicidade. Um mito coeur d’alêne, que não pode dar margem a dúvidas. Mas, justamente, o método das comutações,
examinaremos em detalhe, por pertencer à série paralela sobre a origem novamente posto à prova, indica tratar-se do tentilhão, como a continuação
do vento e do nevoeiro, a que aludimos diversas vezes, transforma no final da presente discussão terminará de demonstrar.
seus dois protagonistas, mãe e filho, respectivamente em melro e mergulhão O mito tillamook M₇₅₁a começa no inverno. O Tentilhão (sparrow) passa
(certamente um P. auritus). “Eu, diz a mulher, serei um fantasma pousado frio e importuna o demiurgo Gelo vindo o tempo todo se aquecer junto à sua
numa árvore perto das casas, e cantarei para anunciar a morte próxima de fogueira. Irritado, o demiurgo queima o pássaro no ventre com um tição. É aí
alguém” (M₇₄₈a, Reichard 1947: 170). Ora, esse papel de psicopompo atri- que o Tentilhão, como dissemos, voa até o céu para queixar-se aos espíritos.
buído ao melro aparece ainda com maior clareza na mitologia dos Carrier, De modo que o Tentilhão tillamook é marcado de negro no ventre por
que são atabascanos vizinhos dos Salish setentrionais. Contam eles (M₇₄₉, um carvão de madeira porque sente frio no inverno. Pois bem, os índios do
Jenness 1934: 100) que um rio divide o mundo do além em duas metades; sul do estreito de Puget contam uma história muito parecida a respeito de
de um lado, todas as casas são vermelhas e, do outro, pretas. “As casas pretas um pássaro chamado /spetsx/ que é tratado com dureza por seus cunhados
abrigam os mortos, as vermelhas são as moradas dos melros, que passam os (irmãos da esposa). Obrigado a catar lenha, ele retalha com muito esforço
dias na terra e à noite retornam ao mundo subterrâneo”. Mas a continuidade uma árvore morta meio carbonizada, e os cunhados ficam indignados com

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o fato de ele não lavar o rosto coberto de fuligem. A mulher acrescenta suas como sabemos por outras vias (M₇₅₄a-g, infra, p. 443), ao trazer a chuva e o
censuras às deles e Spetsx, vencido pelo cansaço, vai para o rio, volta-se para aumento da temperatura, põe fim aos rigores do inverno.
o sudoeste para invocar o céu e começa a se lavar. Imediatamente, começa a Dispomos, portanto, de dois pares de pássaros. Num deles, o junco —
chover, os rios sobem, o vale é inundado e, todos os seus habitantes morrem, “ave do inverno por excelência” (Pearson 1936, l.c.) — se opõe ao melro,
exceto Spetsx, que sai voando e vai viver junto de seu antepassado, o Vento ligado ao verão, por trazer uma marca rubra atrás em vez de na frente. No
do sudoeste que traz chuva. Atualmente, é sinal de chuva quando o pássaro outro, o tentilhão enegrecido no ventre pelo calor, porque sentia frio, se opõe
se banha num dia ensolarado olhando para o sul (M₇₅₂a-d, Ballard 1929: a um tentilhão enegrecido no rosto pelo frio, em consequência do que ele
49-51; ver também p. 63). mesmo produzirá calor. O aparente desacordo entre os informantes poderia,
Paira uma dúvida quanto à identificação do pássaro /spetsx/, parecido portanto, resultar do fato de junco e tentilhão serem, sob perspectivas dis-
com o junco do Oregon segundo alguns, ao passo que outros afirmam tintas, comutáveis no seio de um par que os coloca a ambos em oposição e
categoricamente que se trata do tentilhão dos brejos (Melospiza geor- correlação com o melro.
giana?; Ballard 1929: 49 n. 2 e 50). Os Cowlitz, que nomeiam a avó libertina De todo modo, do sul para o norte e da costa para o interior, melro e
/Spi’tsxu/, identificam o pássaro desse nome ao snow-bird, que é o junco tentilhão vão-se substituindo nos mesmos papéis: no plano da periodicidade
(M₅₆₂a, Adamson 1934: 220; cf. M₇₅₂h, ibid.: 178). Os Chehalis de Washington biológica, como pássaros anunciadores de morte e, no da periodicidade sazo-
também conhecem o pássaro /spi’txu/, que Adamson (1934: 1-23, M₇₅₂e-g) nal, como responsáveis pela chegada da primavera. Os Flathead, como vimos,
traduz por thrush; tratar-se-ia provavelmente do melro de colar (em inglês crêem que irritar os melros faz chover; os índios do estreito de Puget dizem
varied thrush, Ixoreus naevius, cf. supra, p. 439), hipótese ainda mais provável exatamente o mesmo a respeito dos tentilhões (Ballard 1929: 63 n.33).
na medida em que esse pássaro de inverno, de grito “estranho e misterioso” Mas, cada um tem seu modo próprio de cumprir esse papel. O tentilhão
(Pearson 1936, iii: 240-41) poderia ser o “Melro” anunciador de morte pró- está bem preparado para enfrentar o pior do inverno, pois ao contrário do
xima em que se transforma a heroína do mito coeur d’alêne M₇₄₈a, depois melro, em vez de cantar desde o início da primavera, ele juntou provisões
de ter coberto o corpo com conchas dentalia, que originam a plumagem (M₇₅₀). Assim, ele prolonga os benefícios do verão inverno afora, contraria-
variegada de marrom alaranjado, preto e branco, que opõe o “Melro do mente ao melro que canta bem cedo para provocar o derretimento do gelo,
inverno” ao “Melro do verão”. acelerando, portanto, a passagem do inverno para o verão (M₃₅₄b). A penú-
O desacordo que reina entre os informantes do estreito de Puget á, por si ria alimentar de que sofre o melro, para o bem comum, também é atestada
só, instrutivo. Junco oregonus é o nome científico do snow-bird, que já apa- mais ao sul, em mitos chehalis e skokomish (M₇₄₇a, b) nos quais o pássaro
receu em nossos mitos (cf. supra, p. 72-73 e 428), pássaro que possui o dorso é condenado à fome pela mania que tem sua esposa de descascar até o fim
rubro ou acaju (Pearson 1936, iii: 46-47; Noms d’oiseaux...: 20) e pode, por- todas as camácias que coleta, o que faz com que ela sempre volte de mãos
tanto, formar com o melro americano de peito rubro um par de termos em vazias. Para puni-la, ele a queima no rosto de modo tão grave que ela se joga
correlação e oposição.13 no rio, onde as pedras grudam em sua pele quente; vira uma larva de inseto
Por outro lado, o tentilhão que, entre os Tillamook, sente frio no inverno que vive num casulo de areia aglomerada. Também nesse caso encontramos,
e recebe uma marca negra no ventre, causada por um tição ardente, também pois, um elo de correlação e oposição entre o melro e uma criatura com o
forma um par com seu congênere do estreito de Puget, mascado de preto ventre ou o rosto queimado.
no rosto por uma madeira ainda fria, e que provoca o vento do sudeste que, É digno de nota o fato de que, no que diz respeito exclusivamente à plu-
magem, todos os pássaros que enumeramos são mistos, caracterizados pelo
contraste entre branco e preto ou pela presença pontual do vermelho. No pri-
13 . Note-se ainda, com a devida prudência, que entre os algonquinos orientais o nome
do junco ou ave das neves evoca o borbulhar (Speck 1921: 368-369), ou seja, um tipo de
meiro grupo encontra-se o chapim de cabeça preta e faces brancas, o tentilhão
fenômeno presente em M₇₄₀, em que a avó se transforma em bolhas de ar que reben- marcado de preto no rosto, no ventre ou, conforme M₇₅₂c, ao redor dos olhos.
tam na superfície da água. Ora, vimos que na versão cowlitz essa avó libertina tem o Certas línguas indígenas levam a aproximação ainda mais longe. A espécie
nome do junco, /spi’tsxu/. de tentilhão dita “de garganta branca” (Zonotrichia albicollis) é designada, em

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blackfoot, por uma abreviação do nome do chapim (Schaeffer 1950: 43); é cha- ao outro povo. O filho nascido de sua união, chamado Tempestades (as de
mada de “chapim grande” em algonquino oriental, em que a nomenclatura março, com fortes chuvas; cf. Ballard 1950: 81), salvou uma parenta, a única
indígena chega muitas vezes a confundir os dois pássaros (Speck 1921: 368). sobrevivente do povo do sudoeste, que era perseguida por Corvo, membro
No segundo grupo, estão o melro americano de peito vermelho, o junco do outro povo, que lhe cobria o rosto de excremento. A chuva começou a cair
de costas rubras, e o tordo solitário de peito com manchas e cauda averme- quando o herói lhe fez sinal para lavar-se, e a inundação a seguir dispersou
lhada, bem como diversos representantes da família dos pica-paus, aos quais ou destruiu quase que completamente o campo inimigo. Assim foi instau-
voltaremos: pica-pau de cabeça vermelha, ou picídio do gênero Sphyraphi- rada a alternância das estações.15
cus cuja cabeça também é manchada de vermelho e, finalmente, o pica-pau O interesse desses mitos está no fato de serem convertíveis. Nas versões
rosado (Colaptes cafer), ave de faces com listras vermelhas cujo ovo vira o sol acima, eles transcorrem num eixo horizontal cujos polos são o nordeste e
num mito shuswap sobre a origem do astro (M₇₅₃, Teit 1909: 738). o sudoeste, ao passo que outras versões da costa transpõem a guerra dos
Para chamar a chuva quando fazia muito frio e o solo estava coberto ventos para um eixo vertical. Conforme os Chehalis de Washington (M₇₅₆a,
por uma espessa camada de neve, os índios do estreito de Puget fabricavam Adamson 1934: 75-76), os ventos do sudoeste resolveram enfrentar em bata-
instrumentos musicais pintados de preto de um só lado. Os rapazes jovens lha os ventos do nordeste, que provocavam um frio insuportável. Mas eles
faziam-nos rodopiar e acreditavam que o ruído atraía o vento do sudoeste. viviam no céu e, para chegar lá, foi preciso que o pássaro das neves atraísse
Ou então sujavam um tentilhão de preto para que fosse, assim que liber- aabóbada celeste para a terra. Talvez em função de um outro regime de ven-
tado, lavar o rosto invocando o mesmo vento (Ballard 1929: 63 n. 31). Tais tos, os Kathlamet do baixo Columbia e outros Chinook contam a mesma
ritos remetem aos mitos M₇₅₂a-d e também a um grupo que não iremos história mas colocam os ventos do sudoeste no céu e os acusam de causarem
examinar em detalhes, pois contêm contradições inexplicáveis, que parecem tempestades devastadoras (M₇₅₆b, Boas 1901: 67-71). Por isso deixaremos os
dever-se a lacunas ou lapsos por parte dos informantes (M₇₅₄a-g, Ballard Chinook e nos concentraremos nos Salish.
1929: 55-64; M₇₅₄h, Haeberlin 1924: 398-99). Contá-los fazia chover. Eles se
referem a um conflito entre os ventos do nordeste e os do sudeste, que seguiu
15 . Não podemos abrir aqui o dossiê dos gêmeos, considerável nessa região, mas antes
o casamento de um homem de um dos dois povos com uma mulher “castor pertencente à série paralela sobre a origem do vento e do nevoeiro, a que já fizemos alu-
das montanhas”, Aplodontia rufa,14 ou porco-espinho, pertencentes ou não são. Em favor da natureza dual dos pássaros dotados de função meterológica, notare-
mos apenas que, no interior e na costa, mas mais ao norte, certos temas desenvolvidos
por M₇₅₄a-h são remetidos aos gêmeos. No interior, os Shuswap lhes atribuem o poder
14 . O aplodôntia não é um castor, mas o único representante de um gênero muito arcai- de clarear o tempo fazendo soar um instrumento (Boas 1890: 644), função simétrica
co de roedores, “meio castor meio esquilo” segundo os dicionários, que só existe nessa à que as populações do sul do estreito de Puget atribuem ao mesmo instrumento. Ao
região específica da América, onde vive nas florestas e matos densos e cava tocas que passo que entre os Nootka costeiros, considera-se que os gêmeos, como o tentilhão
podem se estender por duzentos ou trezentos metros. Esse animal aparece tão raramente mais ao sul, provocam a chuva ao lavarem o rosto sujo de preto (ibid.: 592).
nos mitos — ou, o que dá no mesmo, é tão raramente identificado — que hesitamos em Um breve mito coeur d’alêne sobre a origem da morte (M₇₅₅, Boas 1917a: 125) con-
inclui-lo num sistema em que o aplodôntia seria comutável com dois outros roedores, fere aos gêmeos, no que tange à vida e à morte, a mesma ambivalência que os Car-
o porco-espinho, de que é aqui uma variante combinatória, e o castor, que se parece rier atribuem ao melro e os Tillamook ao tentilhão. Dois gêmeos, um menino e uma
com ele. Essa permutação circular seria, não obstante, muito sugestiva, pois forneceria menina certamente, certo dia desmaiaram e permaneceram inconsicentes por muito
mais um meio de consolidar os mitos sobre a conquista do fogo e os das esposas dos tempo. Foi pelo menos o que todos acharam, pois quando eles ficavam sozinhos, deba-
astros, cujos heróis são, respectivamente, Castor e Porco-Espinho (omm: 185-224; infra, tiam em segredo sobre as respectivas vantagens da vida, defendida por um, e da morte,
p. 520-526). Assim, limitar-nos-emos a propor, a título de hipótese de trabalho: defendida pelo outro. A mãe os surpreendeu e interrompeu o debate. Desde então, de
tempos em tempos, pessoas morrem. Umas nascem enquanto outras falecem, sempre
Castor: Aplodôntia: Porco-Espinho: há mortos e vivos. Se os gêmeos tivessem podido chegar ao fim de seu debate, hoje não
Periodicidade espacial Periodicidade espaço-temporal Periodicidade temporal haveria vida, ou não haveria morte. Um mito chehalis do estado de Washington (M₇₁₆b,
Adamson 1934: 83-87) fala de gêmeos, irmãos siameses que insistem em querer andar
Ou seja, uma tríade homóloga às das páginas 430 e 448. cada um para um lado, e atiram para direções opostas.

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Eles colocam do mesmo lado o céu, os ventos do noroeste, o tempo seco para os vales, e como o junco, que permanece nas mesmas latitudes o ano
e o frio e, do outro lado, a água, os ventos do sudeste, a chuva e o calor. Por todo (Pearson 1936, iii: 46-47, 240-41), os pica-paus, ou alguns deles, teriam
outro lado, a manobra de Junco, que puxa o céu até a terra, inverte claramente portanto uma marcada afinidade com o inverno.
a da Cambaxirra ou do Chapim que, por meio da corrente de flechas, cons- Pode parecer mais difícil dizer algo a respeito da cambaxirra, pois a pala-
troem uma passarela que vai da terra até o céu. Resulta daí, primeiro, que o vra corrente em inglês, wren, recobre um número considerável de espécies
tentilhão dos mitos do estreito de Puget (M₇₅₂a-d) remete ao baixo quando e até gêneros diferentes. Mas, se os mitos estiverem se referindo à espécie
se vira para o sudoeste para chamar a chuva, e opõe-se assim ao chapim e à mais comum nessa parte do continente, o Troglodytes Troglodytes pacificus
cambaxirra, que se voltam para o alto para obterem fogo em vez de água; em Baird, cuja migração invernal é realizada localmente, para os vales protegi-
seguida, que o junco, congruente ao tentilhão (supra, p. 441), por sua vez se dos (Bent 1963, Nuthatches, Wrens etc.: 175), e para cuja frequência Hill-Tout
opõe a esses dois pássaros. Mas sabemos também que, para os Salish, e espe- (6: 11) chama especialmente a atenção, informando que “esse pássaro pode
cialmente nesse grupo de mitos, a sede do frio está no céu, ao passo que na ser visto em toda a Colúmbia Britânica e até ser encontrado em florestas tão
terra, nos tempos míticos, o tempo era quente e seco. Nesse sentido, pode-se densas que nenhum outro pássaro as frequenta, exceto o pica-pau”, então,
dizer que o junco invernal aproxima o inverno (correspondendo ao alto) do essa cambaxirra, também chamada hiemalis, teria com o inverno o mesmo
verão (correspondendo ao baixo), enquanto o chapim e a cambaxirra efe- tipo de afinidade que os pássaros supracitados.
tuam a mesma manobra no sentido inverso. Todos esses pássaros operam, É possível, aliás, prová-lo a contrario, graças a mitos blackfoot (M₇₀₁d,
portanto, uma semi-mediação, bem sucedida apenas num sentido, e con- Josselin de Jong 1914: 25) que invertem aqueles provenientes dos Salish em
forme àquela que atribuímos, por razões outras, a melro e tentilhão. que o enganador Coiote pega emprestado o longo pênis da cambaxirra em
troca do seu (M₇₀₁a-c, supra, p. 393). Com efeito, entre os Blackfoot, é o pró-
! prio “Velho” (que corresponde ao enganador) que possui o longo pênis e que,
para afastar suspeitas, troca-o pelo de /nepumaki/, “pássaro da primavera”
Não seriam pássaros demais? E aos que acabamos de considerar, ainda pre- ou “pássaro do verão”, isto é, o chapim (Schaeffer 1950: 43). De modo que:
cisaríamos acrescentar os pica-paus. Vimos que eles intervêm a título de
conquistadores do fogo nos mitos kliktat, isto é, sahaptin (M₇₂₆), e skagit e (pênis longo: pênis curto) : : (cambaxirra: chapim) : : (inverno: verão).
sanpoil (M₇₂₄a, M₇₂₉), salish portanto. Tanto na América do Norte como na
América do Sul, os pássaros dessa família desempenham o papel de media- Vale contudo lembrar que os mitos desse grupo opõem menos o inverno
dores espaciais, porque passam a maior parte do tempo no tronco das árvo- e o verão tomados em termos absolutos, do que as ocorrências meteroló-
res, entre céu e terra (cc: 209; omm: 237). Uma indicação de Ballard (3: 85) gicas, que desempenham o papel de semi-mediadores, que são as chuvas
sugere que, na região do estreito de Puget, o pequeno pica-pau do gênero mais quentes do final do inverno e as que, devido ao vento que as acompa-
Sphyraphicus, herói do mito klikitat, também poderia ter uma função tem- nha, refrescam o ar durante o verão; é como se umas inserissem o verão no
poral. Quando questionado a respeito do calendário indígena, um infor- inverno e as outras, o inverno no verão. E as filhas da leita de M₇₄₂ se separam
mante definiu do seguinte modo o período que vai do final de janeiro a feve- uma da outra para encarnar estações opostas na mesma forma, a de nuvens,
reiro: “os patos ficam presos no gelo; as trutas steelhead não podem nadar; carregadas de chuva em ambos os casos.
o pica-pau sapsucker está lá”. Quer esta última fórmula signifique “ainda lá” Seja como for, é notável que os mitos, tão preocupados em dar uma ori-
ou “já lá”, de todo modo, ela conecta o pássaro ao inverno. A propósito dos gem ao Chapim e em contar detalhadamente suas aventuras até a conquista
picídeos diversos de plumagem com marcas vermelhas (o que os qualifica a do fogo, se interessem tão pouco pelo passado de Cambaxirra (supra, p. 150).
conquistar o fogo celeste), cuja presença é atestada nessa região da América, Vizinhos dos Bella Coola na costa, embora não pertençam à família salish,
notou-se (Bent 1963, Woodpeckers, pp. 145, 151) que, no final do outono, eles os Bella Bella fazem das cambaxirra instigadores da morte, para poderem
apenas abandonam as zonas mais expostas ao frio e se instalam em locais construir seus ninhos abaixo dos caixões que eles colocavam sobre plata-
protegidos. Como o melro de colar que, no inverno, desce das montanhas formas ou apoiados em árvores (M₇₅₇a, Boas 1932: 29). Os Squamish, de

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língua comox, atribuem a ela o poder de fazer amadurecerem os pequenos opostas da área salish, a função de passador entre o mundo dos mortos e
frutos fora de estação (M₇₅₇b, Hill-Tout 1900: 529). Mas em geral, na área o mundo dos vivos e a de iniciador da primavera basculam, por assim dizer,
que nos interessa, a cambaxirra não possui nenhuma aptidão especial; os de Tentilhão a Melro ou de Melro a Tentilhão (M₃₅₄b, M₇₄₉, M₇₅₁); ao passo
mitos simplesmente a opõem às demais espécies como “o menor dos pas- que no centro dessa área (M₇₅₂a-d), a função de mediador temporal, garan-
sarinhos”. Essa perífrase costuma bastar para designá-lo, o que indica ser tidor da alternância das estações é, pelas razões que mencionamos, atribuída
essa sua característica pertinente. Num eixo em que todos os pássaros fos- ou ao Melro ou ao Junco ou ao Tentilhão.
sem dispostos por ordem de tamanho, a cambaxirra, termo não marcado, De modo que três funções etiológicas, relativas à origem do fogo, da
ocuparia, portanto, um dos polos. Seu tamanho minúsculo contrasta com a chuva e da vida breve, se comutam entre si e, conforme a região (certamente
imensidão que separa céu e terra e que só ele, no entanto, é capaz de atraves- em razão da dialética que impele cada grupo a se querer ao mesmo tempo
sar. Percebe-se aí que, como incarnação de um polo espacial, a cambaxirra é igual e diferente, contando os mesmos mitos que os vizinhos, mas de outro
posta em correlação e oposição com o chapim, pássaro também minúsculo, modo), os operadores míticos também se comutam entre as funções. Acom-
mas a quem os mitos atribuem uma origem, cujas aventuras relatam, e que panhando de modo muito aproximado a distribuição geográfica dos temas,
encarregam do papel de mediador temporal (supra, p. 437), antes de tornar- chegaríamos a algo como o quadro abaixo:
se, junto com a cambaxirra — que como ele é o único capaz (mas em outras
versões) de prender a corrente de flechas no céu — um mediador espacial. vida breve (por chapim)
Cambaxirra e Chapim possuem, portanto, uma dupla função, um no eixo
chuva (por tentilhão) fogo (por chapim)
espacial e o outro no eixo temporal. Isso decorre do fato de que, sendo
comutáveis como autores da corrente de flechas que permite ir da terra para fogo (por cambaxirra)
o céu (mas não de voltar), eles também o são no ciclo da avó libertina, no vida breve (por cambaxirra)
qual ora um ora o outro desempenha o papel de instaurador da vida breve vida breve-1 (por tentilhão)
(supra, p. 149, 429). De um lado desses operadores medianos se encontram
os pica-paus, ligados à origem do fogo, mas não à da vida breve. A media-
ção que eles asseguram é, portanto, de ordem espacial e, quer se trate da Em baixo, à esquerda, a transformação da vida breve em seu contrário
conquista ou da reconquista do fogo, ela garante à humanidade um meio de remete ao mito tillamook M₇₅₁b em que Tentilhão, passador dos mortos,
aquecimento que pertence à cultura. opera uma ressurreição.
Do outro lado do diagrama, colocaríamos o Tentilhão que, ao dar fim ao A armação geral do sistema se apresenta como um tríptico, conforme um
inverno com chuvas mornas, exerce uma mediação temporal e dá aos huma- esquema que vale comparar com os das páginas 430 e 443. A evidente cor-
nos um tipo de aquecimento que, à diferença do outro, pertence à natureza. respondência entre eles tem uma confirmação suplementar no nome da avó
Quanto a isso, a função dos operadores medianos — Cambaxirra e Cha- libertina conforme M₅₆₂a, que é o mesmo que se atribui ora ao Tentilhão,
pim — também apresenta um aspecto misto: como autores da corrente de ora ao Junco.
flechas que permite a conquista do fogo, eles intervêm pelo lado da cultura, A não ser por uma exceção já mencionada entre os Shuswap (M₇₅₃) —
mas, como netos da avó libertina responsáveis pela vida breve, eles o fazem em que um Pica-pau de uma espécie particular, que os demais mitos não
do lado da natureza. citam, consegue tornar-se uma divindade solar, distinta do sol visível, que
Se nos lembrarmos que o termo robin inclui certamente três pássaros, o virá em seguida de um de seus ovos — o Pica-pau costuma mostrar-se tão
melro americano, o melro de colar e o tordo solitário, todos os três anun- inepto quanto o Melro para cumprir o papel de sol (supra, p. 438). Nem o
ciadores de precipitações atmosféricas (chuvas do final do inverno, chuvas Tentilhão nem o Junco poderiam ser considerados nesse sentido, dada a
do meio do verão, nevascas), restam por ser qualificados apenas o “Melro” sua associação direta com o inverno e com as chuvas que trazem seu fim.
sincrético e o Junco. Mas sabemos que esses pássaros não ocupam um lugar De modo que Pica-pau e Melro não aparecem quando se trata de obter um
à parte, já que ambos são comutáveis com o Tentilhão: em extremidades aquecimento de ordem natural no que diz respeito ao Pica-pau — que só

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consegue conquistar o fogo de cozinha — e, no caso do Melro, um aque- ii. Junções
cimento proveniente do fogo e não da água (quanto ao Pica-pau como sol
imprestável porque quente demais ou sem luz, ver M₇₅₈a-c: Sanpoil, Ray
1933: 137; Estreito de Puget, Ballard 1929: 79-80; Okanagon, Hill-Tout 1911: 145
e Boas 1916: 724-28).

pica-pau cambaxirra/ chapim tentilhão


(não marcado) (marcado)
externa: melro
Comutação
interna: junco

Origem do fogo Origem da chuva

Origem do fogo (cultura)


Origem da vida breve (natureza)
Por mais diversos que sejam os caminhos, os viajantes
Aquecimento Aquecimento chegam ao ponto de encontro.
cultural natural chateaubriand, Viagem na América, Introdução

Mediação Mediação Mediação


espacial espaço-temporal temporal
Passagem do contínuo ao discreto, conjugação da origem do fogo e da chuva
com a da vida breve que, na ordem temporal, fragmenta o fluxo demográfico
Não devemos esquecer que tais atos de mediação não reversíveis acarre- e o recorta em níveis de gerações, introduzindo entre eles afastamentos com-
tam pesadas contrapartidas. De um lado, empobrecimento quantitativo da paráveis às diferenças entre as espécies animais, na medida em que o que
ordem natural, na duração, pela atribuição de um termo à vida humana e teria podido permanecer indistinto deve necessariamente vir a separar-se:
no espaço, pela diminuição do número de espécies animais, em decorrência desde o início de nossa investigação, o estudo da mitologia sul-americana
de sua desastrosa investida celeste. E também empobrecimento qualitativo, tinha evidenciado todos esses temas.
já que o Pica-pau, por ter conquistado o fogo, perdeu a maior parte de suas Neste volume, concentramos nossa atenção sobre uma região delimitada
penas vermelhas (M₇₂₉) e se, em compensação, o Melro adquiriu seu peito sa América do Norte, nem tanto porque sua mitologia apresenta pontos
rubro, foi na forma de uma lesão anatômica, decorrente de seu fracasso na em comum com a do Brasil e regiões vizinhas, e mais porque, em ambos
mesma missão. De modo que, seja pela destruição de uma harmonia pri- os casos, o campo mítico se organiza do mesmo modo. Não são apenas os
meira, ou pela introdução de afastamentos diferenciais que a alteram, o mitos tomados um a um que se parecem, mas também, e principalmente,
acesso da humanidade à cultura se faz acompanhar, no plano da natureza, suas relações. Constatamos em várias ocasiões (supra, pp. 86ss, 138ss; omm:
por uma espécie de degradação que a faz passar do contínuo para o discreto. 338) que, se na América tropical houver um mito B que transforma um mito
A e um mito C que transforma o mito B, basta que, nessa região setentrional a
oeste das Rochosas, exista um mito A’ homólogo a A para que se possa dedu-
zir, e em seguida verificar, que tal mito A’ implica um B’ que o transforma do
mesmo modo que B transformava A no outro hemisfério. O mesmo fenô-
meno se repete em relação a C e C’, e às vezes é possível ir adiante.
Que isso não leve a concluir que observações desse tipo sejam impossíveis
alhures. Mas a massa do material é tão vasta que uma análise da mitologia

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norte-americana que se pretendesse exaustiva exigiria uma vida inteira, se filhotes de águia no alto de um pico rochoso. O homem se despiu e começou a
não várias. De modo que nos limitaremos, por necessidade, ao tratamento ascensão, que lhe pareceu fácil, pois as paredes da rocha eram como que talhadas
parcial que se pode encontrar neste livro e no que o precedeu. Entretanto, em degraus de escadaria. Mas o Enganador fez subir o rochedo e tornou-o completa-
ainda que fosse apenas para evitar equívocos de perspectiva, convém pontuar mente liso, de modo que o homem, sem poder descer, ficou preso no topo.
sumariamente itinerários que permitiriam, em outras regiões da América do O Enganador não tentou, como entre os Salish, assumir a aparência do rival. Con-
Norte que não aquela cujos mitos examinamos, encontrar ao menos o mito tou o drama, apenas omitindo seu próprio papel, e afirmou que antes de desapare-
do desaninhador de pássaros que nos serviu constantemente de referência, cer, o herói lhe tinha confiado os filhos e legado a esposa. Ela concordou, mas seu
uma escolha cuja razão de ser se nos foi revelando pouco a pouco, e que está novo marido logo começou a encrencar com os enteados. Desde então, padrastos
ligada à sua posição mediana, central até, num sistema em que ele desempe- e madrastas muitas vezes se mostram malvados. A mulher, que amava os filhos e
nha o papel de dobradiça; de modo que, onde quer que o encontremos, pode- sofria ao vê-los maltratados, resolveu tornar públicas as circunstâncias suspeitas
mos ter certeza de que o vasto conjunto mítico que ele articula também existe. nas quais seu marido havia desaparecido. Todo mundo foi até o pé do rochedo, onde
De modo não totalmente arbitrário, começaremos esta rápida investiga- havia montes de contas, provenientes das lágrimas que o herói tinha derramado por
ção pelos Arapaho, e seguiremos a mesma ordem que adotamos em A ori- dias e noites seguidos. Pediram ajuda aos gansos selvagens, que voaram até o topo,
gem dos modos à mesa (p. 170) para estudar o ciclo mítico das esposas dos colocaram o homem nas costas e desceram de volta. Foi tratado ali mesmo, recupe-
astros que, convém lembrar, está em relação de transformação simples com rou-se e ficou gordo e forte.
o do desaninhador. Acrescente-se que os mitos arapaho, aos quais já fomos Então saiu à procura da mulher e dos filhos, encontrou-os e lhes deu de comer;
levados a nos remeter neste volume (supra, p. 373), apresentam notáveis afi- pois o rival tinha deixado as crianças sem comida, esparando que morressem logo
nidades com os dos Salish. Em que pese o atual afastamento geográfico, isso de fome. Em seguida, o herói se escondeu num saco de carne, pegou o Enganador de
não é de surpreender, já que os Arapaho, representantes mais meridionais da surpresa e o matou. O cadáver foi retalhado e os pedaços espalhados.
grande família linguística algonquina, vieram do norte. E a longa migração Mas o Enganador ressuscitou. Foi embora, sentou-se à beira de um lago e come-
que os levou, de uma região provavelmente situada a oeste do lago Supe- çou a meditar acerca da morte: deveria ser tornada definitiva ou não? Pendeu para a
rior até os atuais estados de Colorado e Kansas deve ter feito uma parada ressureição, ao ver um bastão, uma bosta seca de bisão e um pedaço de miolo vege-
em Wyoming, onde a fração mais conservadora da tribo ainda residia na tal flutuarem depois de ele os ter jogado na água. Mas um pedregulho afundou, o
época histórica. É bem provável que os Arapaho tenham ali convivido com que o fez decidir pelo contrário. Era melhor que as pessoas morressem de uma vez
os Salish orientais que, antigamente, transbordavam para além das Rocho- por todas, pensou, se não, a terra logo ficaria superpovoada. Desde então, a vida só
sas em direção às Planícies (supra, p. 318).16 dura um tempo, e depois, a gente morre (Dorsey & Kroeber 1903: 78-81).
Entre as versões salish e arapaho do mito do desaninhador, as diferenças
são mínimas: O leitor terá reconhecido nessa última sequência aquela que as versões salish
mais completas consagram à fabricação de um filho artificial pelo engana-
M 759 Arapaho: o desaninhador de pássaros dor (M₆₆₇a, 66₈a, 67₀a, 671). Mas o problema ali era criar a vida livrando-se
das servidões biológicas, ao passo que aqui trata-se de, por meio da insti-
Era uma vez um índio, casado e pai de um filho e de uma filha. O Enganador, que que- tuição da morte irrevogável, determinar um termo para a vida, a partir de
ria se apropriar de suas belas roupas e de sua mulher, convenceu-o a ir desaninhar então submetida às mesmas servidões, mas no que toca seu fim, em vez de
seu começo. Perfeito exemplo da indissolubilidade de fundo e forma, o mito
arapaho faz passar essa sequência, consequentemente, do começo para o fim
16 . Gostaríamos de saber o que pensam os filólogos a respeito da aparente semelhança
entre o nome arapaho do enganador, transcrito como /Nih’änçan/ por Dorsey & Kroe- da narrativa. Mostra-se assim solidário das versões salish e, mais além, das
ber (1903) e o de um rival e concorrente do enganador entre os Cawlitz, chamado / dos Klamath e Modoc examinadas no início deste livro, com quem os Ara-
Nэxάntci/ na transcrição de Adamson 1934 (: 230-33), nome de “um animal (não iden- paho também compartilham o motivo da origem dos adornos: contas ori-
tificado) de pelagem avermelhada e que se parece com um camundongo”. ginadas das lágrimas do herói durante seu exílio substituindo os bordados

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de espinhos de porco-espinho que ele inventa junto das irmãs salvadoras, M 762A , B . ARAPAHO: OS DOIS IRMÃOS
durante seu restabelecimento. O lugar diferente que cabe ao porco-espinho
na mitologia das Planícies (omm: 170-224) impunha essa substituição. Um grande chefe tinha um jovem irmão chamado por um nome transcrito em inglês
Note-se, finalmente, que os Arapaho — que se interessam menos pela Lime-Crazy ou White-Painted Fool (composto possivelmente desprovido de signifi-
origem primeira do fogo do que pelo progresso técnico representado cado). O rapaz era preguiçoso e sujo. Certo dia, o mais velho repreendeu-o, mandou-o
pela invenção da pedra de fogo, em lugar da broca extremamente incômoda lavar-se, pentear-se e perfumar-se; emprestou-lhe belas roupas e disse-lhe que fosse
(M₇₆₀, Dorsey & Kroeber 1903: 8-9) — descrevem, no mesmo mito, um ter com as moças reunidas à beira do rio para pegar água.
meio de ascensão descontínuo, que permite subir até o céu mas não descer O herói seguiu o conselho com demasiado empenho. Tornou-se um sedutor e fez
de volta, sucedido por uma união contínua, mas dotada de função negativa tantas conquistas, até entre as mulheres casadas, que logo passou a ser visto como
exatamente por causa dessa continuidade (supra, p. 422). A rocha fácil de uma ameaça à sociedade. Uma delegação foi se encontrar com o chefe da aldeia e
escalar porque possui degraus remete à escada ou corrente de flechas dos prometeu a ele que teria mais autoridade e um sem número de benefícios materiais
mitos salish sobre a conquista do fogo; mas sua transformação em coluna se aceitasse matar o irmão ou expulsá-lo para bem longe.
perfeitamente lisa pelo enganador remete ao longo pênis desse mesmo Tentado pela proposta, o chefe concordou. O irmão foi amarrado e jogado num
enganador (aqui transposto do eixo horizontal para o eixo vertical), nos rio profundo duas vezes seguidas, mas escapou ileso e a cada vez investia com mais
mitos salish em que ele recebe a mesma função perversa, a de conquistar vontade sobre as mulheres dos chefes e dos guerreiros. Certo dia, o irmão mais velho
uma mulher que de outro modo estaria fora de alcance. O motivo do longo o levou para caçar. Matou e trinchou um bisão e mandou o jovem ficar ali agitando
pênis também está presente nos mitos arapaho (M₇₆₁a-b-c, Dorsey & Kroe- galhos, para espantar as moscas, enquanto ele iria buscar ajuda na aldeia para car-
ber 1903: 63-65) mas, ao contrário do que acontece nos mitos salish, a coisa regar toda aquela carne. Mas ele não voltou, e o herói, obediente, continuou girando
acaba mal para o enganador, que morre de hemorragia quando seu mem- em torno da carne e abanando. Passaram-se vários anos. Sem notícias dele, concluí-
bro é cortado. Foi a partir daí que os homens passaram a ter um pênis de ram que tinha morrido.
dimensões modestas, e que passaram a ser severamente punidas as tenta- Mas os habitantes da aldeia só queriam se ver livres do estorvo. Uma vez resol-
tivas de estupro que apreciavam certas confrarias de rapazes nas Planícies vido o problema, voltaram-se contra o chefe, contestaram sua autoridade, tomaram-
(omm: 320). Considerações tiradas da ordem pública mobilizam assim, com lhe todos os bens e o expulsaram. Amaldiçoado por todos, passou a viver na misé-
fins morais e práticos, um motivo dotado alhures de um significado simbó- ria com a mulher, longe da aldeia. Um dia, a mulher sugeriu que ele fosse procurar
lico muito mais amplo. o irmão. Ele o encontrou exatamente onde o deixara, enfiado no chão até o pescoço;
Em compensação, um simbolismo importante estava ligado ao mito do só se viam a cabeça e o galho que ele continuava agitando para um lado e para
desaninhador e o ligava ao das esposas dos astros (cf. omm: 175, 207), pois o outro. Convidou-o a sair do buraco, mas o irmão não quis e continuou espantando
ambos faziam parte da liturgia da dança do sol. Dentro da casa ritual, um as moscas, conforme as instruções que recebera havia tanto tempo.
bastão bifurcado com as pontas orientadas para o leste e o oeste, fincado na A mulher veio junto com o marido para pedir que ele saísse dali. A cada vez que
terra, sustentava os restos mortais de um passarinho não identificado, vol- os dois voltavam para visitá-lo, o herói estava mais enfiado, mas continuava agi-
tado para o norte. Esse emblema simbolizava a descida do herói nas costas tando o galho. Por isso a carne tinha permanecido fresca no fosso circular cavado dia
dos gansos (Dorsey & Kroeber 1903: 80; Dorsey 1903: 86), um detalhe que após dia pelos movimentos do herói em torno dos pedaços de caça. Finalmente, a
ocupará um lugar considerável em nossas conclusões (infra, p. 532). cunhada, que sempre gostara muito dele (Mhgcb), fez uma descrição tão lamentável
Ao lado dessa versão “normal” do mito do desaninhador, os Arapaho da situação em que ela e o marido se encontravam que ele concordou em sair do
possuem uma outra, menos facilmente reconhecível e sobre a qual convém buraco e acompanhá-los, levando uma borduna em lugar do galho.
nos debruçarmos com atenção, por razões que veremos em seguida. Quando entraram no acampamento, os homens jovens dançavam (Mhgca) e os
velhos tocavam os tambores (Mhgcb). O herói pediu à cunhada que anunciasse a sua
volta; primeiro, ela foi despachada com ofensas e depois jogaram gordura derre-
tida no único vestido que ela tinha. O herói então se apresentou, mandou todos se

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sentarem com as pernas esticadas e disse à cunhada que batesse no osso com a bor- obrigados a pagar altas compensações às famílias das vítimas dele, sobre-
duna. Depois do corretivo, o chefe e a mulher conseguiram recuperar suas provisões tudo quando se trata de mulheres casadas, são suas próprias agressões que
e demais bens. Voltaram a ser respeitados por todos e a ter serviçais. provocam o empobrecimento, não seu, mas de seus familiares. Por outro
Mas todos continuavam temendo e detestando o herói. Rivais em aventuras lado, os conspiradores de M₇₆₂ prometem ao irmão do herói riquezas de
amorosas (Mhgca) ou o próprio irmão (Mhgcb) o arrastaram numa caçada e fizeram-no todos os tipos, contanto que ele concorde em servir a seus funestos desíg-
atravessar um grande rio para, diziam, ir buscar filhotes de águia num rochedo alto nios. Ora, esse mesmo herói se encontra tão desprovido de tudo no início
do outro lado. Enquanto o herói pegava penas, seus companheiros fugiram na única que é preciso lhe fornecer roupas. Na verdade, aqui é o ciúme coletivo que
embarcação. Felizmente, uma ave de rapina, falcão ou gavião, aconselhou-o a implorar se exerce contra um homem que instiga as libertinagens do irmão e cuja
o Pai-das-águas, que em troca de uma oferenda de penas de águia o ajudaria a atra- própria esposa nada tem a temer. Em vez de o ciúme agir de dentro para fora,
vessar o rio até o meio. Lá ele deveria tirar um som agudo de um apito de osso e saltar age de fora para dentro.
no ar até o céu. Abaixo dele, a água iria jorrar sem atingi-lo, provocando uma inunda- A transformação Putifar afasta o herói para uma ilha, terra cercada de água;
ção, mas ele estaria são e salvo no alto de uma colina. Tudo se passou como dissera a em M₇₆₂, apesar de duplicada, a primeira tentativa de afastamento fracassa:
ave, e quando as águas recuaram, o herói voltou ao acampamento (Mhgca). Durante não se consegue afogar o herói num rio profundo, ou seja, água com terra
uma viagem ulterior, o mocho branco (isto é, a tempestade de neve) segundo uns, ou dos dois lados. Esse episódio parece não ter outro propósito senão excluir a
o trovão, segundo outros, trouxe-lhe a morte (Mhgcb). (Dorsey & Kroeber 1903: 23-31) outra fórmula ao invertê-la, afim de que a disjunção bem sucedida mais tarde
seja de ordem puramente terrestre, por ocasião de uma caçada ao bisão que
Como foi assim que terminamos a análise de M₇₅₉, começaremos notando substitui a coleta de ovos de aves aquáticas. Mas, ao cavar com sua circulação
que neste mito a oferenda de penas de águia a um monstro chifrudo lembra insistente uma fossa circular cheia de carne sempre fresca, o herói faz surgir
um rito da dança do sol (Dorsey & Kroeber 1903: 28 n.; Dorsey 1903: 201-02). um espaço vazio cercado de terra, cuja imagem inverte a da ilha (saliência de
Esta é uma primeira ligação entre M₇₅₉, M₇₆₂ e o ciclo das esposas dos astros. terra cercada de água) na qual, segundo as versões “retas”, não há o que comer.
Sobretudo, fica claro que M₇₆₂ representa o que várias vezes chamamos, Cada vez mais afundado na terra, o herói de M₇₆₂ também inverte o per-
apenas esboçando-lhe o esquema, de “transformação Putifar” do mito do desa- sonagem do desaninhador exilado no céu, e essa disjunção para baixo agrava,
ninhador. Isso já transparece no fato de a disjunção do herói ocorrer ao longe, ao juntar-se a ela, a que os heróis da transformação Putifar costumam sofrer,
um traço característico dessa transformação desde os algonquinos centrais e, apenas para longe. Já mostramos (supra, p. 372) em que o galho agitado de
como veremos em breve, até os Chinook (M₆₅₉), afora o caso já discutido (M₆₆₁, baixo para cima para espantar as moscas, por teimoso respeito a uma ordem,
supra, pp. 304-08) no qual a conversão do código culinário em código vestuá- se opõe à corda trançada que permite a descida de volta do herói no ciclo do
rio permite a manutenção da disjunção vertical, mas que nesse caso é definitiva, desaninhador, contanto que ele respeite escrupulosamente as ordens recebi-
o que é sinal de sua não-pertinência nesse contexto modificado. das; o mesmo ocorre nas versões salish do ciclo das esposas dos astros, em
Em M₇₆₂, contudo, a transformação Putifar é sistematicamente invertida que essas mulheres transformam sua escada de corda em balanço cuja parte
e apresenta de si mesma, até nos mínimos detalhes, uma imagem virada. Em de baixo, ao contrário do galho, oscila a partir de um ponto fixo no alto.
lugar de um herói ajuizado que recusa o incesto com a esposa de seu pai Após o banimento do herói, os principais responsáveis se tornam ricos na
ou irmão, ou que é disso injustamente acusado embora ignorasse comple- transformação Putifar, aqui ficam pobres. E, se no primeiro caso, uma mulher
tamente as intenções de sua parenta, aqui, um vadio, ridicularizado pelo cheia de ódio contra o cunhado ou genro é responsável por sua disjunção,
irmão mais velho (que alhures tem o papel de marido ofendido), se com- no segundo, a mesma mulher consegue, com suas demonstrações de ternura,
porta como um verdadeiro don Juan, não dentro do círculo familiar, mas obter sua conjunção. Sujada de gordura — um alimento — por seus conci-
fora dele. Veremos a seguir que, nas versões algonquinas, um dos que cons- dadãos, essa mulher também reproduz a vítima coberta de excrementos que
piram contra o herói (junto com o pai ou irmão dele) também se apodera encontramos no grupo M₆₅₄-M₆₅₇, e que veremos reaparecer nas versões
de seus bens; de modo que a agressão de que o herói é vítima o torna pobre. algonquinas da transformação Putifar, ao custo de uma dupla inversão que
Em M₇₆₂b, em que seu irmão e demais parentes, próximos ou distantes, são afeta o modo de agressão e o valor simbólico do que é aqui empregado (infra,

490 | Sexta parte: Volta às origens Junções | 491


p. 459). Veremos, ao mesmo tempo, que o castigo aplicado aos malvados em !
M₇₆₂, uma surra com pauladas que, se tivesse sido levada um pouco mais
adiante, ter-lhes-ia quebrado as pernas quando eles dançavam ou tocavam Embora os Blackfoot e os Cree pertençam à família algonquina e os Assini-
tambor, inverte aquele que lhes é reservado por uma versão omaha da histó- boine à família siuana, as três tribos ocupavam territórios contíguos, e aque-
ria do desaninhador (M₇₇₁a, infra, p. 467), efetivado por intermédio de um les dentre seus mitos que aqui nos interessam são tão próximos que podem
tambor mágico cujo som faz com que subam nos ares e depois despenquem ser agrupados sem maiores inconvenientes.17 Eles permitem igualmente
no solo, quebrando os ossos; ao passo que, conforme M₇₆₂, o herói deve sua observar tipos intermediários entre o mito do desaninhador e a transfor-
salvação ao som de um apito mágico que o faz subir nos ares acima da água mação Putifar. Insere-se claramente no primeiro grupo uma versão black-
e depois caia ileso num local dos mais confortáveis. M₇₆₂, aliás, desvela seu foot (M₇₆₄, Josselin de Jong 1914: 60-63) em que um homem que cobiça as
parentesco direto com o mito do desaninhador numa última sequência, em riquezas do amigo o faz descer por uma parede de rocha em que se encontra
que os inimigos do herói o levam para desaninhar águias, mas do outro lado um ninho de águias e o abandona. As águias o ajudam e, depois de os filho-
de um grande rio (o que exclui a ilha no meio de um lago da transforma- tes crescerem, a fêmea transporta o herói para o solo. Só lhe resta vingar-se,
ção Putifar), afastando-o portanto no eixo horizontal, invertendo o eixo de matando o traidor, e ele o faz. Dois detalhes dessa versão nos interessam
disjunção vertical, traço invariante do ciclo do desaninhador. Contrariamente especialmente: o herói, acolhido pelas águias, sobrevive fazendo secar ao sol,
ao que ocorre nesse ciclo, o herói coleta uma grande quantidade de penas de para cozê-la, a parte de carne que recebe das aves. Devido à sua disjunção
águia, graças às quais poderá pagar o preço da passagem a um monstro aquá- para baixo, o herói se vê reduzido a uma condição pré-cultural, ao estado
tico; este último transforma, pois, no eixo horizontal, os passadores verticais de natureza, poder-se-ia dizer, ao passo que nas versões sul-americanas do
representados pelos gansos em M₇₅₉, que também são criaturas aquáticas, mesmo mito o herói, por ter sido disjunto para o alto, obtém o fogo de cozi-
mas sendo pássaros, vivem acima da água, e não debaixo dela, e nas asas — nha e as artes da civilização, acedendo, portanto, ao estado de sociedade. Em
ou seja, plumagem — dos quais o herói também será transportado. ambos os casos, os vivos, e especialmente o pai do herói, interpretam seu
M₇₆₂a não informa quanto ao fim do herói. Em M₇₆₂b, ele morre numa retorno praticamente nos mesmos termos.
tempestade de neve ou fulminado por um raio. Fogo celeste num caso, frio Conforme o mito xerente M₁₂, o herói no início se escondeu, e só se apre-
intenso no outro, mas ambos opostos ao modo como o próprio herói, nas sentou por ocasião de uma festa para celebrar os mortos (cc: 83-84). No
versões algonquinas da transformação Putifar, destroi os malvados graças a mito blackfoot M₇₆₄, o pai, ao rever o filho pela primeira vez, diz “que ele
um intenso calor que emana da terra e faz ferver a água dos rios. parece estar voltando do mundo dos espíritos”. Lembramos que o mito de
Quando introduzimos pela primeira vez o mito arapaho, foi para interpre- referência M₁, que inverte as versões jê, desdobra a vingança do pai contra o
tar, reconstituindo-lhe o paradigma, o incidente em si mesmo incompreen- filho culpado de incesto: antes de exilá-lo no céu, tenta em vão fazê-lo mor-
sível das velhas cegas agitando galhos de conífera numa versão thompson da rer enviando-o para o oeste em busca dos barulhentos instrumentos rituais
história do desaninhador (M₆₇₀a). Com isso, buscávamos também demons- no reino aquático dos espíritos. Essa dupla disjunção, primeiro para a água,
trar o valor operatório de um par de termos em oposição e correlação, o que fica longe, e depois para o céu, que fica no alto, reune assim, num mesmo
balanço (de que os galhos agitados de baixo para cima apresentam a imagem mito, dois esquemas entre os quais as tribos da América do Norte de que
invertida) e as symplégades; e em relação a estas últimas, postulávamos ainda estamos agora tratando hesitam, conforme mitos aliás muito semelhantes
que eram evocadas por um outro par de velhas cegas, no caso celestes. Agora
acabamos de mostrar que M₇₆₂, que contém o motivo dos galhos agitados,
17 . Deixamos de lado uma pequena transformação moralizante, registrada entre os
inverte a transformação Putifar, por sua vez transformação do mito do desa-
Arapaho e os Gros Ventre (M₇₆₃a, b, c; Dorsey & Kroeber 1903: 262, Kroeber 1907a:
ninhador. Se a hipótese avançada às páginas 370-74 estiver correta, então as 118-20) em que um rapaz, quer tenha ou não cedido às investidas da cunhada (esposa
versões retas da transformação Putifar deverão conter o motivo das symplé- do irmão), logo descobre que ela prefere um estrangeiro que encontrou e com quem se
gades. A prova nos será dada por mitos siuanos e algonquinos. junta para matá-lo. O herói vence, traz a mulher de volta para o irmão, confessa se for
o caso, e é perdoado. Juntos, eles matam a infiel.

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pertencem mais ao ciclo do desaninhador ou à transformação Putifar desse longe numa ilha no meio de um lago, ou é seu irmão mais velho que faz isso,
mesmo ciclo. Ora, qual é a diferença entre os dois tipos? Ela provém do fato ou ainda o afasta para o alto de uma árvore, para supostamente desaninhar
de a intriga do mito do desaninhador, quando o herói obtém para os huma- águias; mas como ele corta a árvore e o herói cai na água, a oposição entre
nos o fogo de cozinha, estar fundada num antagonismo entre afins, mais os dois tipos de disjunção se reduz ao mínimo. Pois bem, esse fenômeno se
precisamente entre doador e tomador de mulher, que vai-se enfraquecendo apresenta ligado a um outro, o surgimento, ao lado do parente ciumento (pai
eventualmente até um vago laço de amizade (comparar M₁₇₉ e M₇₆₄), ao ou irmão), de um afim malvado na pessoa do marido da irmã do herói que,
passo que a transformação Putifar se funda num antagonismo entre parentes em M₇₆₅c, o martiriza tanto que ele, socorrido por um monstro aquático, se
próximos, pai e filho ou irmão mais velho e irmão mais novo. Se a armação vinga duas vezes, primeiro de um afim, e depois de um parente. As versões
do mito do desaninhador tal como se pode observá-lo desde os Klamath e assiniboine confirmam, portanto, a análise dos parágrafos acima.
Modoc até os Salish parece desmentir esse contraste, é porque ela explora E a confirmam igualmente de outro modo. Vemos surgir nessas versões
uma outra virtualidade do sistema: um traço que as tribos vizinhas, membros da família linguística algonquina,
também possuem. Quase todos os heróis da transformação Putifar se vin-

( ( ( (
Bororo õ = ∆ Klamath-Modoc, Salish ∆ gam procedendo de modo semelhante: ou aproximam o sol da terra (M₇₆₅a)
—Y
ou pedem à irmã mártir que acenda um grande forno, ou provocam eles
∆ õ = ∆
mesmos um calor intenso que transforma a água em vapor e onde morrem
fervidos os traidores (M₇₆₅c). Fogo destruidor, portanto, de origem terrestre
Em O cru e o cozido (: 78-79, 100), mostramos que o mito de referência M₁ ou celeste mas, neste último caso, devido ao rebaixamento do sol até a terra,
se situa na interseção de dois tipos. Funda-se num antagonismo entre pai e invertendo o fogo de cozinha construtor que afasta o sol da humanidade.
filho mas, dada a filiação matrilinear em vigor entre os Bororo, o filho per- Também fogo cuja obtenção, conforme o ciclo do desaninhador, libera os
tence ao grupo social da mãe, o qual está em posição de doador em relação humanos da cruel alternativa diante da qual se encontravam, entre comer
ao pai. Compreende-se, assim, que o mito de referência lance mão dos dois cru ou, dispondo apenas do calor do sol para cozinhar seu alimento, correr
esquemas de disjunção que a América inteira parece concordar em alocar a o risco de serem eles próprios queimados. Mas há mais. Tanto entre os Assi-
formas de antagonismo que são elas mesmas opostas. niboine como entre os Cree (M₇₆₆a, b), o herói aconselha perfidamente o pai
Tínhamos pouco a pouco chegado à conclusão de que, no sistema mito- a se proteger do grande incêndio iminente cobrindo o corpo com gordura
lógico das duas Américas, o mito do desaninhador cumpre o papel de dobra- (de urso, especifica-se em certos casos), o que o torna ainda mais inflamável.
diça. Mas agora percebemos a possibilidade de dar mais um passo. Pois se Como a gordura é alimento, e inclusive o que confere à carne seu mais alto
esse mito se desdobra em duas fórmulas, uma que respeita um protótipo (ini- valor alimentar (infra, p. 483), o fogo destruidor provocado pelo protago-
cialmente isolado entre os Jê) e a outra que vai dar na transformação Putifar18, nista se apresenta claramente como o inverso do fogo de cozinha. Além disso,
entre as duas, o mito de referência M₁ cumpre o papel de primeira articu- a transformação que apontamos acima (: 455), do grupo M₆₅₄-M₆₅₇, em que
lação; e compreendemos porque foi ele, dentre todos os mitos americanos um herói ou heroína se vê sujo de excrementos, justamente de urso, até M₇₆₂,
disponíveis, que se impôs a nós antes mesmo de sabermos o porquê disso. em que a sujeira da heroína provém de gordura, um alimento, prossegue
As versões assiniboine também oscilam entre as duas fórmulas (M₇₆₅a, b, c; aqui por intermédio da mesma gordura, incinerada em vez de cozida ou
Lowie 1909: 150-54 e cf. M₅₀₄, omm: 367): ou o pai do herói o afasta para excretada, ou seja, passando da categoria do podre para a do cozido e, final-
mente, para a do queimado (cf. cc: 300).
Um último aspecto das versões assiniboine merece nossa atenção. M₇₆₅a
18 . Essas linhas foram escritas antes da publicação do segundo volume da Enciclopédia
Bororo, em que se encontra uma variante até então inédita de M₁ que, se não for um
conta que, no caminho de volta, o herói viu dois precipícios cujas bordas se
remanejamento inspirado pelos editores, seria muito próxima da transformação afastavam e se juntavam rapidamente. Conseguiu passar por eles jogando
Putifar, já que nela, em vez de um filho violentar a mãe, é uma madrasta que seduz o dentro de cada um um peixinho, e aproveitando o momento em que a
enteado (E.B. ii: 303-59). terra se fechava para engoli-lo. Como havíamos postulado (supra, p. 456), a

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transformação Putifar restitui o motivo das symplégades, neutralizadas gra- supra, p. 358). A correspondência simbólica entre as duas cegas e as symplé-
ças a uma oferta de peixinhos feita por um humano e transpostas do eixo gades, aliás, não decorre apenas do fato de os dois motivos serem comutáveis
vertical para o eixo horizontal, invertendo assim duplamente as verdadeiras nos mesmos mitos em várias tribos (e entre os Cree, de M₇₆₆a a M₇₆₆b), mas
symplégades que, no grupo M₃₇₅, M₃₈₂, etc, negam aos humanos o direito de também do modo como tais mitos contam de que maneira o herói conse-
consumir peixes grandes enquanto não tiverem conseguido passar por elas. guiu acabar com as ogras: “Arquitetou um estratagema para que as velhas
Várias versões alginquinas dão ao herói ou a seu pai nomes que pare- matassem uma à outra. Em vez de sentar-se entre as duas, prendeu um fio
cem ter algo em comum: Ayatç (M₇₆₆a), Aiwosé ou Aiswéo (M₇₆₆b), Āyāsä de couro seco na ponta de um bastão e o agitou... Elas ouviram o barulho
(M₇₆₇a), Aiasheu (M₇₆₇d), ou A’katahōneta (M₅₀₅), mais distante. Petitot e acharam que era o herói que estava se sentando. Então elas se viraram e
(1886: 451 n. 1) traduz a primeira fórmula por “o Estrangeiro” e sugere sua ambas começaram a dar cotoveladas para trás. Foram-se aproximando uma
derivação a partir de dois radicais, um que singifica “ligado, amarrado” e da outra, sem parar de dar cotoveladas, e acabaram atingindo-se mutua-
o outro “coberto, enterrado”, o que inverteria o sentido que os Thompson mente, dando gritos de vitória dirigidos à suposta vítima. Mataram uma à
dão ao nome do desaninhador, “o elevado” (supra, p. 347). Michelson, que outra a punhaladas ao mesmo tempo...” (Skinner 1911: 94).
era sem dúvida melhor linguista, traduz (in Jones 1915: 77) a última forma Na ilha em que fica preso, o herói de M₇₆₆a e M₇₆₇a se alimenta de ovos
por “aquele que foi deixado para trás”, sentido que satisfaz também a análise crus ou então não encontra o que comer. Não tem fogo, portanto. Um mons-
mítica, por colocar em evidência o eixo de disjunção horizontal próprio da tro aquático o leva através da água, e ele encontra uma velha que o alimenta
transformação Putifar, que se opõe ao eixo de disjunção vertical próprio do com um caldeirão inesgotável e depois duas ogras, cujo fim acabamos de
ciclo do desaninhador, ao qual se refere o nome do herói em thompson.19 ler. Conforme M₇₆₆b e M₇₆₇a (as versões M₇₆₇b-c, Radin 1914: 27-31, são
Se fossem confirmadas, essas aproximações onomásticas teriam seu mais pobres, e só as mencionamos para constar), o herói deve ainda evi-
interesse aumentado pelo fato de as versões algonquinas comprovarem por tar fazer tilintar os ossos humanos pendurados ao longo do caminho, ou
outros aspectos a hipótese que havíamos avançado a propósito dos mitos então desconhecidos, donos de cães ferozes, alertados pelo ruído, irão
salish, segundo a qual as velhas cegas seriam uma contrapartida celeste das matá-lo. O herói, descuidado, bate nos ossos, mas escapa cavando um tunel
symplégades. Naquele momento, tratava-se de uma dedução, de que mitos subterrâneo, na entrada do qual coloca um arminho empalhado, para dar
algonquinos fornecem agora a prova empírica, pois eles substituem as sym- a impressão de que é apenas uma toca. Engana os cães que o perseguem
plégades horizontais que o herói tem de enfrentar na versão assiniboine e seus donos, furiosos, acusam-no de mentira e cumplicidade, e os matam.
(M₇₆₅a) e na versão cree, que as chama de “boca da terra” i M₇₆₆a, Petitot Segundo M₇₆₇a, é uma bolsa mágica, feita de pele de marmota, que perfura
1886: 451-59), por duas velhas cegas com os antebraços e cotovelos cober- um túnel em torno das ossadas, mas sai antes do ponto e faz com que elas
tos de ossos pontiagudos como punhais (M₇₆₆b, Skinner 1911: 92-95), ou por tilintem. De todo modo, esse episódio no qual o herói se vê exposto a um
duas velhas que tentam asfixiar o herói sob seus joelhos inchados de pus, e perigo mortal no mundo dos mortos, simbolizado por ossadas que não se
depois outras duas, cegas, com sovelas nos cotovelos (M₇₆₇a, Jones 1917-19, deve fazer ressoar, e se salva graças a animais subterrâneos, ainda que nem
part 2: 381-99), ou ainda (M₅₀₅, Jones 1915: 75-89) por dois pumas cani- todos se mostrem à altura da tarefa, evoca de modo notável a experiência
bais, também atestados entre os Assiniboine (M₇₆₅c), e depois dois velhos do herói, no mito bororo de referência M₁, no mundo das almas, de onde
cegos que o herói incita a brigarem entre si e que acabam matando um ao deve trazer guizos rituais e chocalhos sem fazê-los ressoar, e realiza sua mis-
outro, conforme um esquema já ilustrado por outros mitos algonquinos e são a contento graças a animais aéreos dos quais o último, por ser lento ou
por mitos atabascanos e ute, em que se apresenta isoladamente (M₆₈₅-M₆₉₇, desajeitado, escapa da morte por um triz (cc: 43-44). A proximidade fica
ainda mais evidente quando se nota que, conforme M₇₆₇a, as ossadas são
19 . A forma /āyāsä/, nome do pai do herói em ojibwa (cf. naskapi /ayas·i/, Speck 1915), em
feitas de omoplatas, objetos rituais numa parte do mundo que praticava a
compensação, coloca problemas, pois Jones a traduz por “larápio de carne”, locução escapulomancia (Cooper 1936), e que são igualmente rituais, na América do
cujo sentido mitos vizinhos permitem elucidar (infra, p. 461), mas cuja relação etimo- Sul, os chocalhos que permitem escutar nesse caso (e adivinhar no outro) as
lógica com os das outras versões não se percebe claramente. disposições dos espíritos.

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Quando o herói de M₇₆₇a volta a sua aldeia, encontra a mãe completa- suas características próprias e evitou assim a confusão que resultaria se uma
mente nua e cega em razão dos maus tratos por parte do pai. Ele lhe dá rou- espécie quisesse ter-se apropriado das características de outra. Deu ainda
pas e lhe devolve a visão soprando sobre seus olhos. Em M₅₀₅, ao contrário, um nome a cada habitante da aldeia. Chamou à mãe de Melro, “por causa
ele a castiga por ter adotado uma criança após o seu desaparecimento e a de sua tendência amorosa”, crê o informante, e deu a si mesmo o nome de
obriga a queimar o filho substituto. Carouge (blackbird: Agelaius?), “porque essa ave só volta na primavera”. O
Segundo M₇₆₆b, o pai, grande caçador de ursos, pensou que poderia mesmo ocorria com o melro americano, em relação ao qual Speck (1921:
escapar do fogo se protegendo debaixo de suas provisões de gordura, mas 372; 1915a: 79) nota o retorno precoce e o papel meterológico quando canta
isso são o salvou. Os únicos sobreviventes do incêndio, o herói e sua mãe, durante o dia, como anunciador de chuva (supra, p. 438). Embora nesse mito
se trasformaram respectivamente em Gaio cinzento (Perisoreus canadensis) seja feita uma transferência para o código sazonal, os dois pássaros nele
e em Melro americano (Turdus migratorius). Essa conclusão nos leva a um também presidem, ao lado de um outro (a irmã do herói, transformada em
mito coeur d’alêne (M₇₄₈a, supra, p. 439) no qual a mãe também vira melro Pica-pau dourado), à introdução de afastamentos diferenciais entre as espé-
e o filho, mergulhão. Vimos que a esses dois pássaros são aí atribuídas fun- cies animais e entre os humanos, a quem um nome próprio confere uma
ções aeriódicas no eixo temporal, um como anunciador de morte próxima, o “marca distintiva”, diz o texto (cf. Lévi-Strauss 1962b: cap. 7). Em suma, nessa
outro, de mau tempo. Mas o mito cree coloca o Melro em correlação e opo- sequência da transformação Putifar, o exílio do herói para longe acarreta
sição com o Gaio cinzento que, pelo menos entre os Algonquinos orientais, um grande incêndio terrestre destruidor e, em seguida, a instauração das
tinha uma sólida reputação de pilhador de acampamentos e ladrão de carne. diferenças entre espécies. Ora, lembramos que os mitos salish associam o
Eram chamados de “pássaro cobiçoso” ou “larápio” e os índios tinham tanta segundo resultado à conquista construtiva do fogo celeste — expedição diri-
raiva deles que os maltratavam com crueldade e os depenavam vivos assim gida para o alto — e o interpretam como efeito de subtrações efetuadas num
que os capturavam (Speck 1921: 365-66; Desbarats 1969: 66). Ora, o herói da contínuo zoológico primitivo (supra, p. 419-20, 448).
versão kickapoo (M₅₀₅) transforma seu serviçal em gralha, outra ave que No total, a transformação Putifar do mito do desaninhador (que por sua
rouba e come carniça, e o pai do herói da versão ojibwa M₇₆₇a, poupado pelo vez transforma num outro eixo a gesta do demiurgo Lua) é acompanhada
filho não se sabe bem porquê, e ao contrário das demais versões, chama-se de uma série de operações topológicas simples, das quais as principais são:
“larápio de carne” (supra, p. 459 n. 1). Isso basta para elucidar a função semân-
tica do Gaio cinzento. Se a de psicopompo, que os Coeur d’Alêne e os Carrier 1) disjunção vertical —Y disjunção horizontal;
atribuíam ao melro, fosse mantida entre os Cree, os dois pássaros estariam 2) passador não suscetível —Y passador suscetível (supra, p. 401);
conjugados e opostos como, digamos, “subtraidores”, um de comida e o 3) symplégades verticais —Y symplégades horizontais
outro de anos de vida. No que concerne ao gaio cinzento, essa função parece (no céu: as velhas cegas —Y symplégades horizontais)
concordar bem com o nome que lhe dão os Algonquinos orientais e de que (na terra: velhas cegas e precipícios cujas beiradas se movimentam)
os colonos ingleses tiraram “whiskey-jack”, que é homônimo do que os 4) balanço (oscilando do alto para baixo) —Y galhos (agitados be baixo para cima).
índios dão a seu deus enganador, Wiskedjak (Speck 1921: 365).
Uma outra confirmação nos vem de um mito cree (M₇₆₈, Skinner 1911: Ela reúne igualmente num único mito temas que, tanto a oeste das Rochosas
107-08) que começa depois de um incêndio universal provocado (ou, como como na América do Sul, exigem dois: o do desaninhador no eixo vertical e,
aqui, apenas previsto e anunciado) por um herói cujo pai, com quem ele no eixo horizontal, a gesta do demiurgo Lua (M₃₇₅, M₃₈₂, etc) ou, na Ama-
está brigado e que morre no fogo, chama-se Aiacciou, palavra certamente da zônia, a de Poronominaré (M₂₄₇) e outros mitos aparentados, entre os quais,
mesma raiz que, como notamos (: 459), é constante no grupo. Ainda segundo como percebemos agora, pode ser incluído o mito xerente de Asaré, longa-
M₇₆₈, o herói traçou um perímetro e deixou entrar nele todos os que queria mente discutido em O cru e o cozido (M₁₂₄, p. 206-45), com a transformação
poupar. Os mitos anteriores reservavam essa mercê à mãe, eventualmente secundária (em relação às precedentes) origem da lua —Y origem de Orion e
ao pai, e a uns poucos privilegiados (M₇₆₇a), mas aqui todas as criaturas das Plêiades. Isso decorre de nossa discussão anterior de um mito blackfoot
puderam se refugiar. Após o incêndio, o herói atribuiu a cada espécie animal (M₅₉₁, supra, p. 197) e do fato de esse mito — que transforma o de Asaré e

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também explica a origem das Plêiades — dar cabo de um grande incêndio buraco no topo do crânio) mas um rato de bolsa o ajuda, furando a panela
(comparável ao dos mitos anteriormente discutidos por fazer ferver a água e esparramando toda a comida antes que ele coma. O herói mata a assas-
dos rios) com a chegada do tempo chuvoso. Ora, essa mudança de sinal sina jogando uma pedra da fogueira no buraco do crânio dela, e queima seu
numa conflagração de origem terrestre ou celeste, aqui levada a seu termo, lá cadáver: “Se ele não tivesse feito isso, as mulheres continuariam a envenenr
contida no momento oportuno, é acompanhada da volta a um eixo de disjun- os homens misturando seu cérebro na comida que preparam”. O herói chega
ção vertical, fechando, pelo menos nesse aspecto, o ciclo das transformações. então à casa de uma velha hospitaleira, mãe de duas moças lindas que dormem
uma em cada ponta da casa. Elas convidam o herói, que fica impassível, elas
! brigam e ouve-se o rangir de suas vaginas dentadas. Foi porque o herói matou
as duas que as mulheres não são mais perigosas para seus amantes. Depois
A afinidade entre as versões siuanas e as que acabamos de discutir já fica dessa aventura, ele é perseguido por todas as espécies de animais. Ele se disfarça
patente no título de um mito dakota, “a nação dos pássaros”, que o texto não de velho. Uma mulher, apesar de estar do lado de seus perseguidores, fica com
explica, pois o informante, traído pela memória, para de repente: pena e lhe diz que no final da fila ele encontrará cangambás, porcos-espinho e
texugos velhos e fracos, que pode comer: “Foi assim que os humanos aprende-
M 769A DAKOTA: O PARENTE INVEJOSO ram a comer carne de animais”. Finalmente de volta, o herói reconheceu sua
irmã numa mulher precocemente envelhecida pelos maus tratos recebidos do
Numa rica família, viviam um irmão e uma irmã, muito bonita, e que o enganador marido. Ele deu uma surra no cunhado, e em razão disso,“hoje em dia, às vezes,
Iktomi desejava. Este mancomunou-se com um parente que invejava os muitos cava- os parentes de uma mulher maltratada castigam seu cruel esposo”. O herói
los de seu jovem primo. O parente levou o primo para pegar penas de águia numa reencontrou o pai, que morreu de emoção ao vê-lo, e todos os seus familiares.
ilha e o abandonou lá. Um monstro aquático e chifrudo o levou de volta à terra firme. Foi caçar para eles, e matou bisões que pássaros e outros animais disputaram
O herói encontrou a irmã casada com Iktomi, que a torturava queimando-lhe o rosto ferozmente com eles. Todos os humanos morreram nessa luta: “É por isso que
com tições. Matou o cunhado malvado, e também o primo ladrão. Decorou sua casa hoje animais comem homens” (Wissler 1907: 196-99).
com as penas de águia que tinha trazido e tornou-se o primeiro... O texto para por Essa conclusão inesperada acrescenta uma última função etiológica a
aqui (Beckwith 1930: 411-13). todas as que já tínhamos localizado. Refere-se certamente a animais carni-
ceiros, comedores de cadáveres, os únicos sobreviventes de uma desordem
Uma versão mais antiga (M₇₆₉b, Wissler 1907: 196-99; cf. também M₇₆₉c, Riggs primitiva na qual as mulheres agiam como estranguladoras, envenenadoras
1893: 139-43) dá ao herói uma cunhada malvada (esposa de seu irmão mais e castradoras, exceto em relação aos velhos. Como a de Riggs (M₇₆₉c), uma
velho, que o acusa injustamente de incesto) e um não menos malvado cunhado, versão proveniente dos Dakota do Canadá (M₇₆₉d, Wallis 1923: 78-83) mostra
marido da irmã, e que a tortura assim que a obtém como prêmio por sua cum- o herói obrigado pelo enganador (aqui chamado Aranha) a beber a própria
plicidade. Abandonado por esse traidor numa ilha deserta, o herói se alimenta urina e comer os próprios excrementos. No caminho de volta, ele também
de frutinhas e raízes selvagens que saem da terra fazendo muito ruído. Um encontra vários personagens. Primeiro, três velhas hospitaleiras, e depois duas
monstro aquático chifrudo o leva através do lago e morre fulminado por um mulheres canibais, que ficam tentando asfixiá-lo com cobertas feitas de cabe-
raio; trata-se, portanto, como nas versões algonquinas, de um passador susce- los humanos; em seguida, elas ficam menstruadas e, então, ele se casa com elas.
tível às perturbações atmosféricas. O herói encontra camundongos morando Cada uma delas dá à luz um menino. Ao crescerem, esses filhos levam os pais a
dentro de um crânio de bisão que choram a morte de seu “avô” e os mata a uma visita aos parentes paternos. O herói encontra sua irmã casada com Ara-
todos. Depois, uma velha, que tenta matá-lo esmagado sob sua perna hiper- nha, que a tortura queimando-lhe o rosto com tições. É a vez dele de obrigar
trofiada, mas é ele que a mata e incinera seu cadáver: “Se ele não tivesse feito o cunhado cruel a beber a própria urina e comer seus próprios excrementos,
isso, as mulheres teriam conservado o poder de dilatar suas pernas e esmagar depois o destrói pelo fogo e provoca uma grande conflagração que mata todo
os homens com elas”. Em seguida, ele visita uma mulher que tenta envenená-lo mundo, exceto seu pai e sua mãe (na versão Riggs, ele tem de ressuscitar os
servindo-lhe como refeição o próprio cérebro (que ela mesma tirou por um pais, assassinados pelo cunhado, e só mata a este último numa fogueira).

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Ao longo dessa passagem dos Algonkin aos Sioux, assinalamos várias num incêndio. Mas não sem ter antes, num penúltimo episódio, aplicado duas
transformações. Primeiro, uma que poderia não ser significativa apenas em vinganças juntas sobre a pessoa de seu principal inimigo, conjugando assim,
francês, da bolsa feita de um couro de marmota (M₇₆₇a) para o rato de bolsa na ordem sincrônica, as categorias podre e queimado, que a narrativa opõe na
(bolsa como continente —Y bolsa como conteúdo). Pois num caso, o animal ou ordem diacrônica, começando por uma e terminando pela outra.
seus restos animados cava uma psssagem que o afasta de ossadas maléficas e, De modo que, ao organizarem desse modo seu mito, os Dakota do Canadá
no outro, o animal faz um buraco no fundo de uma panela e abre o caminho parecem efetuar a síntese das versões tradicionais de seu grupo de origem
para uma matéria que, ao contrário, é mole, o cérebro, que se opõe ao tecido com as que se verificam entre os Algonkin. Estes últimos concluem com um
ósseo duro como a medula que as omoplatas, mencionadas por M₇₆₇a, não incêndio que destrói toda a população, queimando notadamente o pai do
possuem. Em M₇₆₆b e M₇₆₇a, tudo gira em torno de não fazer barulho, o que herói, apesar de ele ter se coberto de gordura para se proteger, o que o asse-
o herói ou o animal que o auxilia não conseguem. Em M₇₆₉b, ao contrário, melha ao alimento cozido. A versão mais rica de que dispomos, proveniente
ele consegue ficar quieto quando as duas mulheres brigam por ele e se salva dos Dakota das Planícies (M₇₆₉b) conclui de modo exatamente inverso: o pai,
duas vezes graças a um ruído: o primeiro é o que as cenouras selvagens de que não tem culpa de nada, morre de emoção ao rever o filho e este, caçando
que ele se alimenta na ilha fazem quando crescem, e o segundo, o das vaginas para alimentar os familiares, mata-os involuntariamente, porque os animais
dentadas de suas sedutoras, que o alerta e impede que ele mesmo seja comido. brigam com eles pela caça, massacram-nos e comem seus cadáveres. Em
As ogras semelhantes a symplégades dos mitos algonquinos possuem armas vez de evoluir para a categoria do queimado, como as versões algonkin, essa
cortantes e viradas para fora, como ossos pontiagudos e sovelas; a não ser pelo versão dakota evolui para a categoria do podre, a que pertencem os corpos
joelho cheio de pus de M₇₆₇a, que inverte nesse caso específico o miolo enve- que apodrecem rapidamente. Um procedimento que, aliás, parece condi-
nenado de M₇₆₉b. As dos mitos dakota — excetuando-se M₇₆₉c, que associa zente com o restante do mito, pois os primeiros encontros do herói evocam,
ambos os tipos — possuem armas contundentes ou viradas para dentro, como direta ou metaforicamente, a atividade sexual que diz respeito a seres jovens,
pernas em torniquete ou vaginas dentadas, e ainda os sufocadores de cabelos mas por ocasião da qual o herói corre o risco de ser comido cru, ao passo
humanos (M₇₆₉d), que se opõem aos punhais de ossos como mole de opõe a que seu último encontro, antes de retornar à sua aldeia, permite-lhe passar
duro e, portanto, do mesmo modo que se opõem miolo e ossos sem medula (e à humanidade com ele) a comer carne cozida, mas porque ele assumiu
interna. O incidente dos camundongos instalados num crânio de bisão, que a posição de um velho. O mito passa da juventude à velhice, passa para a
ilustra um contraste paradoxal entre vida e morte, também poderia conotar morte e, finalmente, para a decomposição. Os mitos algonquinos adotam um
essa mesma oposição. Mas, para termos certeza, precisaríamos explorar o para- procedimento bem diverso, já que nele os encontros do herói evocam insis-
digma a que esse motivo pertence e que, na mitologia das Planícies, parece ser tentemente a terra dos mortos, de onde ele volta para assumir seu lugar entre
comutável com vários outros. Por isso, deixaremos esse aspecto do mito de lado. os vivos. Isso pode ser apresentado na forma de um quadro:
Perguntemo-nos, antes, qual seria a razão das transformações que acaba-
mos de inventariar. A versão Riggs (M₇₆₉c) e a versão dakota canadense (M₇₆₉d)
blackfoot, cree, ojibwa dakota
ao mesmo tempo prolongam e desdobram uma transformação que viemos
(queimado) (podre)
acompanhando por todos os mitos desse grupo, desde o conjunto M₆₅₄-M₆₅₇
(cabeça da vítima emporcalhada com excrementos, supra, p. 290-96) até o trai-
dor queimado por intermédio de alimentos (M₇₆₅a, M₇₆₆a, b), passando por
dakota do canadá
uma vítima maculada com alimento cozido (M₇₆₂). Ora, aqui, primeiro uma
vítima, na pessoa do herói, e depois um traidor são obrigados a comer excre- (queimado) + (podre)
mentos; e uma outra vítima, a irmã do herói, é queimada no rosto com tições. A
oposição máxima, (excremento: alimento : : fogo destruidor: fogo construtor), se E quanto a outras tribos do grupo linguístico siuano? Os Ponca e os Omaha
situa entre o início do mito, em que o traidor obriga o herói a beber sua urina possuem uma versão bastante modificada do encontro com seres sobrenatu-
e comer suas fezes, e o final do mesmo mito, em que o herói mata todo mundo rais análogos às symplégades. Entre eles (M₇₇₀, variante omaha de um mito já

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utilizado, ver omm, M₄₆₉c, J.O. Dorsey 1890: 185-88, 201-06), trata-se de Tro- da caverna, que recolheu o herói e o criou junto com seus filhotes. Os ursos
vões canibais, diante dos quais o herói fica invisível (o que os torna cegos em são, com efeito, os únicos animais a cujo regime alimentar os humanos
relação a ele). Ele rouba deles, em vez de alimento como nas versões salish, um podem se acomodar: frutos secos, nozes, favos de mel... Passaram-se assim
cachimbo aceso com o qual provoca queimaduras neles, que se acusam mutu- vários anos, mas certo dia um caçador achou a toca da ursa e a matou, bem
amente. O herói acaba se mostrando e consegue que os Trovões deixem de ser como aos filhotes; capturou o herói, que tinha ficado como um bicho sel-
canibais e se alimentem de caça. Desde então, os trovões auxiliam os huma- vagem, ensinou-o a falar e o reeducou. Segundo M₇₇₂b, ele foi devolvido ao
nos em vez de destrui-los, dando-lhes grandes chuvas refrescantes durante pai, pois sua madrasta malvada tinha morrido nesse meio-tempo, e o herói
verão. Essa volta ao código meterológico é acompanhada, como era de espe- ensinou aos homens os ritos da dança do urso, que é celebrada desde então.
rar, por um movimento no eixo de disjunção que sobe da horizontal para a Em M₇₇₂a, ele se casa com a filha de seu tutor, cuja esposa não gostava dele,
vertical. E assim voltamos ao mito do desaninhador. Os Omaha efetivamente porque nunca trazia “carne macia de urso”. Ele acabou resolvendo matar um
o conhecem, pois contam (M₇₇₁a, J.O. Dorsey 1890: 586-609) que um orfão urso, apesar da consideração que tinha pelo povo da mãe adotiva. Mas o cas-
pobre e desprezado foi o único que conseguiu flechar um “passarinho muito tigo veio rapidamente: na volta, ele foi atravessado por uma estaca e morreu.
vermelho”20, e assim ganhar um concurso cujo prêmio era a filha do chefe. O Esse mito, que inverte pássaros em porcos-espinho e mundo celeste em
enganador Ictinike, seu rival inconformado, leva-o para caçar perus selvagens mundo subterrâneo, parece estar bem longe daqueles de que partimos. Não
e o obriga a subir numa árvore, depois de tirar toda a roupa, para pegar uma obstante, ele restitui de modo notável um episódio do mito timbira M₁₀ que
suposta flecha perdida. A árvore sobe até o céu e o herói, preso, é salvo por ocupava um papel essencial em nossas primeiras interpretações (cc: 79 e
quatro pássaros, águia, falcão, gralha e pega, que se revezam para levá-lo até o 156-71). Nele, um herói adotado pelo jaguar provoca o ódio da madrasta, que
solo. Ele volta ao acampamento, recupera suas roupas mágicas e organiza uma está grávida e por isso extremamente sensível, e se irrita muito com o ruído que
dança geral ao som do tambor. Todos os participantes são lançados pelos ares, o herói faz ao mastigar carne grelhada. Essa madrasta reclama dele porque ele
despencam e quebram os ossos. O que nos faz reencontrar ao mesmo tempo o come carne dura demais, a outra, porque ele não lhe dá de comer uma carne
ciclo do desaninhador e a conclusão do mito arapaho M₇₆₂ (supra, p. 452-56); macia o bastante. A consequência disso é, no primeiro caso, que ele atravessa a
e todo o conjunto algonquino-siuano se fecha por esse lado. pata da mulher-onça com uma flecha e, no segundo, é ele próprio atravessado.
Terminaremos esta rápida incursão para o leste pelos Iroqueses. Con- Esse mito do nordeste da América do Norte inverte duplamente, por-
forme a versão de um mesmo mito (M₇₇₂a, E. Smith 1883: 85, Cornplanter tanto, as versões sul-americanas. O animal prestativo, sendo o jaguar, pode
1938: 157-81), um homem ou uma mulher detestava o filho de um casamento alimentar o herói conforme a cultura — pois o jaguar sul-americano foi o
anterior do cônjuge. Livrou-se dele prendendo-o numa caverna ou numa primeiro dono do fogo de cozinha, no tempo em que os humanos comiam
toca de porco-espinho, na qual o tinha mandado entrar para pegar filhotes. cru — e sendo o urso, ao contrário, é o único que permite ao herói alimen-
M₇₇₂a conta que o herói chorou muito, depois adormeceu e acordou na casa tar-se conforme a natureza — já que o que os ursos comem é compatível
dos animais, que estavam deliberando acerca de como haveriam de alimentar com o regime alimentar dos humanos.
o hóspede que, ao contrário deles, não podia comer cru. M₇₇₂b não contém Pois bem, essa inversão entre mitos provenientes dos dois hemisférios é,
essa sequência e engata diretamente na intervenção de uma ursa, moradora por sua vez, função de uma outra, que pode ser observada entre os mitos do
extremo leste e do extremo oeste do hemisfério norte. É digno de nota que, ao
afirmar sua afinidade com os humanos, a ursa de M₇₇₂b escolha opor-se não aos
20 . Os Arapaho têm uma narrativa muito próxima (M₇₇₁b, Voth 1912: 43). O pássaro, possi- outros animais selvagens, mas aos cães: “Nós, ursos, somos os mais próximos da
velmente um rabo-ruivo (redstart, Setophaga ruticilla) chamado de “faísca” pelos Algonkin
sua raça. Nós compartilhamos os mesmos usos... Dizem que os cães são os ani-
orientais (Speck 1921: 369), poderia ser, portanto, o pássaro não identificado que simboliza
a descida bem sucedida do desaninhador nos ritos arapaho da dança do sol (supra, p. 452).
mais mais próximos dos homens... mas... vocês não podem comer comida de
Com efeito, outra testemunha desses ritos descreve um bastão com um tufo de artemísia cachorro e, durante o inverno, tampouco podem viver como eles” (Cornplanter
(no lugar do pássaro, segundo Dorsey) “e, além disso, algo vermelho, aparentemente um 1938: 174). De fato, como os humanos, os ursos hibernam em refúgios semelhan-
pedaço de pano” (Kroeber 1902-07: 288. Acerca desse emblema, ver infra, p. 532. tes a casas que os protegem do frio, e comem frutos secos e nozes...

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Costa oeste Blackfoot Iroqueses
Basta considerar mitos da costa oeste que resumimos e discutimos
(supra, p. 43, 145-47, 177, 237 etc.) para avaliar o alcance da reviravolta: entre inventam intercedem junto
o fogo ao sol
os Salish e os Sahaptin, as ursas aparecem como ogras. E os cães, situados a
de cozinha
meio-caminho entre a humanidade e a animalidade, foram quem deu aos
humanos o fogo de cozinha (como o jaguar norte-americano) e o instru- { apagam um incêndio
chamando a chuva}
mento para acendê-lo (supra, pp. 103, 138); além disso, se os ursos hibernam,
foram os cães que iniciaram os ventos mornos da primavera (Jacobs 1934: fazem a vítimas propiciatórias
30-33). Sabe-se que os cães desempenhavam entre os Iroqueses um duplo primavera queimadas numa

cães
papel, de vítima propiciatória, holocausto oferecido ao sol em pleno inverno, fogueira
para implorar seu retorno (Hewitt 1910). De modo que os sistema, do leste quase-humanos pro-humanos anti-humanos
para o oeste, permanece o mesmo, mas todos os termos trocam de lugar: a
contiguidade física que, na costa oeste, cria uma afinidade metonímica entre
cães e homens desaparece no leste, dando lugar a uma semelhança metafó- Olhando para o sul, para a periferia da área na qual, como mostramos nas
rica entre os modos de vida de ursos e humanos. Como se podia prever, o nó primeiras seções deste livro, o mito do desaninhador se transforma no
dessa inversão está situado a meio-caminho, entre os Blackfoot, onde (M₅₉₁) de Dona Mergulhão, notam-se primeiramente as formas fracas. Entre os
os cães, amigos dos humanos, põem fim a um grande incêndio (meio de seu Takelma, pequeno grupo linguístico do sul do Oregon cercado por Atha-
holocausto para o sol entre os Iroqueses) chamando a chuva; é essa a origem paskan, a história do desaninhador se insere de modo episódico entre outras
das Plêiades, cuja culminação no crepúsculo (Shimony 1961: 174) anunciava aventuras de Coiote (M₇₇₃, Sapir 1909b: 83-84). Vimos (M₆₃₆a-b, supra,
para os Iroqueses, justamente, a época do sacrifício dos cães:21 p. 259) que os Maidu transferem seu tema para o ciclo dos veadinhos con-
Esse duplo paralelo entre, de um lado, o nordeste da América setentrio- tra os ursinhos. Entre os Ute, em compensação, o tema do desaninhador se
nal e, do outro, o leste e o oeste da América do Norte, ajudam a convencer de destaca em primeiro plano. Sabe-se que esse grupo linguístico ocupava um
que a mitologia americana constitui um todo. imenso território na região chamada de Grande Bacia, que corresponde ao
atual Utah, estendendo-se largamente para Wyoming, Colorado e Nevada.
! Divididos em pequenos bandos nômades, os Ute viviam de coleta mais do
que de caça, num meio semi-desértico do qual sabiam explorar todos os
recursos, e que contrastava com as regiões adjacentes tanto quanto sua lín-
gua, ramo da família uto-asteca, sua organização social e seu modo de vida
21 . Entre os Blackfoot e os Iroqueses, o mito cree M₇₆₆b fornece mais uma transição. Nele,
os distinguiam dos povos vizinhos, Sahaptin ao norte, tribos californianas a
os cães são bichos ferozes a serviço de espíritos matadores que os acusam de mentir e os
matam quando o herói os engana e consegue escapar deles (supra, p. 460). De modo que oeste, Navajo e Pueblo mais ao sul, Crow, Cheyenne e Arapaho a leste.
os cães, que já eram anti-humanos, se comportam objetivamente como se fossem ainda Pois bem, entre os Ute, observa-se um duplo fenômeno. De um lado, o
pro-humanos. Existem outras transições. Entre os atabascanos do norte, acreditava-se mito do desaninhador se reconstitui quase que completamente. Do outro,
que morder a orelha de um cão e fazê-lo ganir provocava trovoadas (Jetté 1909: 351) e en- consolida-se com seu complementar, isto é, a transformação Putifar. Essa
tre os Yokuts e os Mono, prevalecia a crença inversa, de que o cão celeste, dono da tempes- dupla operação é realizada de modo tão preciso e elegante, e com tama-
tade, faria parar a chuva se escutasse um cão na terra ganir por ser maltratado com essa nho engenho na utilização dos meios, que merece uma atenção mais detida,
finalidade (Gayton & Newmann 1940: 29; ver também p. 48-50, em que gêmeos criados
tanto mais que seu autor é um povo a que nem os colonos nem os etnógrafos
por uma cadela viram os trovões). Note-se, finalmente, que o mito tão difundido a oeste
das Rochosas a respeito da origem da humanidade atual, gerada pela união entre uma
parecem ter dado o devido valor.
mulher humana e um cão, assume uma forma inversa e simétrica no leste do continente, Na verdade, essa tendência à síntese já aparece entre os Mono, cuja fração
entre os Montagnais, para os quais a humanidade atual nasce da união entre um perso- oriental pertence à mesma família linguística que os Ute. Contam eles (M₇₇₄a,
nagem macho e sobrehumano, o demiurgo, e uma fêmea de hamster (Perrot 1864: 160). Gifford 1923: 338-39) que Coiote mandou um dos dioscuros, seu sobrinho

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matrilateral e genro, chamado Baumegwesu, desaninhar águias num despe- Coiote voltou sozinho. Pato não disse a ele que tinha curado a moça e mandou-o
nhadeiro, e o empurrou nele. Um outro tio materno do herói, o Junco ou ave pegar água, mas água que viesse do fundo do lago, bem no meio dele. Coiote tentou
das neves, conseguiu tirá-lo de lá, mas só depois de ter cumprido a exigência enganá-lo pegando água perto da margem. Depois de várias idas e vindas, constatou
do sobrinho de provar sua habilidade e sua força escalando um alto rochedo. que o curandeiro e a mulher tinham desaparecido.
Lembramos que mitos de proveniência bem mais setentrional (M₇₅₆a) Perplexo, Coiote se sentou. Depois de algum tempo, ouviu um chamado que
encarregam o Junco de abaixar a abóbada celeste até a terra, ao contrário de parecia vir da fogueira. Era o bastão que estava tentando chamar a atenção dele.
Cambaxirra e Chapim que, com a corrente de flechas, procedem no sentido Coiote pegou-o e comeu-o todo, e assim ficou sabendo de tudo o que tinha ocorrido
oposto. Aqui também o Junco inverte os outros animais prestativos comuns durante a sua ausência.
ao ciclo do desaninhador, elevando o herói de baixo para cima, em vez de No dia seguinte, saiu à procura da mulher. A primeira pessoa que encontrou
fazê-lo descer de cima para baixo. E se opõe igualmente ao Coiote, que joga foi o jovem filho de Pato. Coiote devolveu-lhe o arco e as flechas, que tinha encon-
o herói para baixo, em vez de elevá-lo até o céu. trado um pouco antes, e foi reconhecido como padrasto do menino. Instalou-se no
Conforme outras versões, que se aproximam mais das registradas entre acampamento de Pato e convenceu-o a ir desaninhar filhotes de águia no alto de
os Ute (M₇₇₄b, Gayton & Newman 1940: 45-48, cf. p. 75-78, 94-96 e Steward um rochedo. Enquanto Pato subia, Coiote cavou um fosso tão profundo em torno do
1936: 406), o herói Pumkwesh foi o inventor das flechas, do instrumento rochedo que ele não conseguiu descer de volta. Pato não tinha nada para comer nem
usado para endireitá-las, da guerra, da caça ao urso, da poliginia sororal e beber; emagreceu. Logo ficou só pele e osso.
da domesticação de animais. Invejoso do genro de sua irmã Junco, Coiote o Coiote pegou de volta sua mulher e levantou acampamento. Tornou-se pai de
jogou no fundo de um barranco. Ele foi recolhido por águias e um morcego, muitos pequenos coiotes, e exigiu que a mulher cuidasse apenas deles, mas não do
“avô” da pobre vítima que aqui tem o nome do pássaro Tohi (Pipilo sp.?) o filho de Pato, que ele detestava.
levou de volta para cima, depois de ter provado sua robustez. Este último Pato continuava preso no alto do rochedo, quando foi visto por índios ute. Eles
incidente também se encontra nas versões navajo. Por ora, convém introdu- disseram a ele para saltar, garantindo que ele cairia em seus braços, mas o herói, com
zir o mito do desaninhador tal como se encontra entre os Ute: medo, quis que antes fizessem um ensaio com uma pedra grande. Acabou saltando,
foi acolhido por um homem que o alimentou, “engordou-o dos pés à cabeça”, até que
M 775 UTE (UINTAH): O DESANINHADOR DE PÁSSAROS ele se recuperou.
O salvador de Pato então lhe revelou a extensão de sua desgraça: ele não tinha
Certo dia, Coiote sentiu-se sujo e tomou um banho no rio. Depois ele comeu, dormiu e mais mulher e seu filho era alvo constante de zombaria. Pensou em matar Coiote
sonhou com muitos pássaros. Ao acordar, viu gansos selvagens e começou a conversar provocando uma tempestade glacial. Pato foi à procura dos seus e, quando os encon-
com eles, perguntando se o levariam pelos ares. No começo eles temeram seu comporta- trou, fez morrerem de frio os filhos de Coiote e matou-o com uma bordunada. A
mento barulhento, mas acabaram emplumando-o e aceitando-o como companheiro de mulher foi avisada e conseguiu proteger o filho deles. Restava apenas provocar um
vôo, contanto que ele mantivesse um silêncio absoluto. Mas Coiote não conseguiu não aborto para livrar a mulher dos pequenos coiotes de que estava novamente grávida,
berrar com toda a força. Os gansos pegaram suas penas de volta e ele caiu na pradaria. e Pato voltou com a mulher e o filho (Mason 1910: 310-14).
Pouco tempo depois, os gansos foram visitar os Ute. Eles estavam em batalha
contra os Sioux. Coiote estava lá, e dormiu até o fim do combate. Ao acordar, os gan- O ensaio antes do salvamento efetivo liga esse mito ao dos Mono (M₇₇₄a, b).
sos lhe entregaram uma moça que tinham resgatado de seus inimigos. Por outro lado, o motivo do enteado maltratado remete ao mito arapaho
Logo formou-se uma tempestade de neve. A mulher queria construir um abrigo (M₇₅₉, supra, p. 451) que explica a origem da raiva que padrastos e madrastas
com galhos, mas ela foi empalada pelo ânus por um bastão pontudo que Coiote muitas vezes têm dos enteados. Ora, M₇₅₉ e M₇₇₄ pertencem ao ciclo do desa-
tinha descuidadamente deixado fincado no solo. Ele chamou Pato, que era um céle- ninhador, cujo argumento é virado do avesso pelo mito ute: a vítima é um
bre curandeiro, para tratar da companheira. Pato disse que precisava de um confrade total estranho em vez de um próximo, e é o raptor, e não o marido lesado, que
para auxiliá-lo, e mandou Coiote buscá-lo. Assim que Coiote partiu, Pato diagnosti- ocupa a posição do desaninhador, em que é posto pelo rival para vingar-se do
cou a causa do mal, tirou o bastão e enfiou-o nas brasas da fogueira. rapto de que este foi vítima, e não para cometê-lo ele próprio em seu proveito.

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Concomitantemente, o rochedo em que está o ninho de águias não se eleva até migração dos gansos para o norte na primavera. Pois bem, vimos que um dos
o céu; ao contrário, é o solo que é rebaixado em torno dele. Seja como for, o ritos da dança do sol, entre os Arapaho, consiste em fincar na cabana sagrada
resultado é sempre o mesmo: o rochedo cresce, por cima ou por baixo. um bastão bifurcado sustentando um passarinho que simboliza, segundo os
Nas versões provenientes de uma região mais setentrional, a dos Sahaptin e informantes, o salvamento do herói pelos gansos em M₇₅₉. Esse passarinho
Chinook, os dois protagonistas, pai e filho, chamam-se Coiote e Águia (M₆₀₁a, fica, justamente, voltado para o norte (supra, p. 452, 467). Melhor que isso: o
M₆₀₆a, M₆₁₀ etc.). Nessa, cliente e curandeiro, mas não parentes, chamam-se papel desse pássaro seria incompreensível se não fossem consideradas crenças
Coiote e Pato. O pato, ave aquática, se opõe à águia, ave do firmamento. Em registradas do leste do Canadá até as Rochosas (e também no Velho Mundo, já
M₇₅₉, os índios se reconhecem incapazes de salvar o herói e pedem ajuda aos que Buffon as menciona), talvez parcialmente fundadas, segundo as quais “os
gansos, que também são aves aquáticas. Mais uma observação: o desaninha- passarinhos que sobem para o norte durante as ondas de migração primaveril
dor, que em geral é um personagem humano salvo por animais prestativos, são transportados nas costas pelos gansos selvagens e mergulhões, e do mesmo
aparece no mito ute com um nome de animal, para ser salvo por humanos. modo retornam para o sul no outono” (Speck 1921: 376-80). Já que é o desani-
Bem, o episódio dos gansos prestativos de M₇₅₉ também existe em M₇₇₅, nhador, e não Coiote, que é representado na dança do sol por um passarinho,
mas numa forma duplamente invertida: os gansos transportam um perse- deveríamos concluir que seu ciclo constitui a forma “reta”, de que os mitos nez
guidor em vez de um perseguido, e deixam cair o passageiro, que se fere percé e ute, em que é substituído pelo seu antagonista, seriam a forma invertida.
gravemente, em lugar de levá-lo de volta ao solo são e salvo. Esse episódio A continuação de M₇₇₅ confirma essa interpretação. Pois a sequência da
merece atenção por várias razões. moça resgatada do combate — depois empalada, tratada e raptada por um
Ele faz parte de uma série de mitos nez percé previamente discutidos, e curandeiro, embuste que Coiote descobre comendo o bastão pontudo que
com os quais a primeira parte de M₇₇₅ apresenta um notável paralelismo. tinha penetrado a moça pelo ânus — permaneceria completamente incompre-
Tais mitos (M₅₇₁a, b, c; supra, p. 165) iniciam com um episódio no qual Coiote, ensível se não se percebesse nele uma inversão sistemática de episódio do longo
maculado por uma carne impura, perde os dentes e vira um velho. Nada do pênis, que os vizinhos setentrionais dos Ute uncluem no ciclo do desaninhador.
gênero ocorre aqui, a não ser pelo fato — e esse começo seria ininteligível se Nos mitos salish, uma moça é vítima do longo pênis porque é a única que
não fosse interpretado a partir de outros mitos — de Coiote sentir-se sujo, aceita uma oferta de alimento, um tipo de transação que, nessa região da Amé-
ou seja, impuro, e decidir se lavar. Ele rejuvenesce portanto, assim como é rica, permite garantir relações pacíficas entre as diversas populações por ocasião
rejuvenescido, em M₅₇₁c, por uma jovem que lhe dá uma dentadura postiça, das feiras e mercados. Aqui, ela é vítima de um bastão pontudo, fincado verti-
uma desconhecida que é irmã dos gansos. A partir daí, as narrativas con- calmente na terra (≠ lançado horizontalmente através da água) por um homem
vergem, mas M₅₇₁c, mais explícito do que M₇₇₅, explica a queda de Coiote, ao qual ela já se encontra unida em decorrência de um embate guerreiro entre
não só por ele não conseguir evitar fazer uma algazarra, mas também por tribos inimigas. O bastão pontudo, no qual ela se senta por desatenção e se
seu peso, já que ele, ávido demais, ao contrário do que fazem os gansos, não empala, fica em seu ânus e faz com que ela adoeça gravemente, como o longo
abandona as entranhas dos animais que caçou. Consequentemente, Coiote, pênis na vagina da outra heroína. Para retirar esse pedaço de pênis e recuperar
sujo bem no começo do episódio dos gansos segundo M₇₇₅, fica sujo no sua saúde, será preciso que o próprio Coiote se faça passar por curandeiro. Em
final do mesmo episódio segundo M₅₇₁. A sujeira se junta à algazarra e a M₇₇₅, ao contrário, ele nem por um instante pensa em assumir esse papel e apela
agrava (cf. mc: 264, 331 etc.) em circunstâncias nas quais, muito pelo contrá- rapidamente para um terceiro, que extrai o bastão e o transforma em atiçador,
rio (cf. M₁, M₉-M₁₀, M₇₆₆b, M₇₆₇; supra, p. 460-61), não se pode fazer barulho. um utensílio cujo aspecto fálico já salientamos (supra, p. 415). E mais: em vez de
Os mitos nez percé engatam essa sequência numa visita às filhas do inverno copular no sentido próprio com uma moça que aceita uma oferta metafórica
ou do vento frio. No mito ute, ela precede uma tempestade de neve. Pode-se de alimento, aqui Coiote come o atiçador, reintegrando-se, ao comer no sentido
portanto supor que os gansos transportam Coiote no outono, quando voam próprio o que não era senão uma metáfora do pênis. De modo que ao passar-
para o sul (como precisa, aliás, a versão ojibwa, cf. Jones 1917-19, ii: 435). Se, mos para M₇₇₅, as sequências constitutivas do mito do desaninhador se redistri-
como sugerimos, a sequência inverte a de M₇₅₉, em que os gansos salvam buem numa outra ordem ao longo da cadeia sintagmática; e todos os conjuntos
o herói, deveríamos poder verificar que esse salvamento coincide com a paradigmáticos são mantidos, às custas de uma torção do léxico.

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Um mito dos Shoshone setentrionais, vizinhos próximos dos Uintah e de sua complexidade e riqueza, mas porque sucessivas gerações de pensado-
membros da mesma família linguística, confirma a nossa interpretação. Pois res indígenas a elaboraram numa forma teológica e litúrgica que modifica
esse mito (M₇₇₅b, Lowie 1908: 250) inverte o anterior num duplo sentido, já que profundamente a perspectiva na qual a análise deve se situar. Isso embora
Coiote nele faz o papel de sedutor, e para com a filha de seu amigo Pato. Mas a os Navajo sejam vizinhos imediatos dos Ute ao sul, e devamos pelo menos
ponta de seu pênis fica presa dentro da moça e a deixa doente. Pato, curandeiro notar que a sua versão do mito do desaninhador, integrada à gesta dos dios-
em M₇₇₅a, aqui tem de pedir a ajuda de um outro especialista, na pessoa do curos (cf. mito mono M₇₇₄a), está estreitamente relacionada à de seus vizi-
Colibri, que extrai o pedaço de pênis, usa-o para espancar Coiote (o pênis é nhos. O que pode ser constatado no modo como os Navajo mantêm e trans-
portanto como um bastão) e o joga no fogo, onde ele queima, ao contrário de formam o episódio do atiçador.
um atiçador que, embora também seja um bastão, tem como característica o Entre os Navajo, a história do desaninhador faz parte dos mitos de emer-
fato de poder ser posto no fogo sem queimar. gência. Ela se situa na época em que os dioscuros se encarregaram de destruir
A mesma interpretação vale para a transformação Putifar. M₇₇₅ evita sele- os monstros que assolavam a terra, entre os quais as águias. Auxiliado por
cionar os protagonistas entre parentes de sangue ou afins, já que aqui se trata, três roedores, marmota, camundongo e tamias (?), um dos dioscuros matou
não de amigos, como pudemos por vezes observar em mitos de ambos os um monstro chifrudo. Mandou fazer um disfarce com as tripas cheias de
hemisférios (supra, p. 457), mas de completos estranhos, entre os quais ins- sangue e usou o estômago como máscara. Foi disfarçado assim provocar as
taura-se uma relação de um outro tipo, aquela entre curador e paciente. Mas águias em seu ninho, no alto de um rochedo que cresceu tanto que o herói
para pegar a mulher de seu cliente, o curandeiro procede do mesmo modo não conseguiu mais descer. Passou fome e sede. Duas lindas moças de pele
que o parente convencido de que seu filho ou seu irmão já pegou sua esposa, clara e com os olhos rodeados de preto apareceram e lhe deram milho fer-
na transformação Putifar: ambos tentam livrar-se do rival afastando-o pela vido. Eram Rolas (turtledoves). Em seguida, surgiu uma velha Morcega que
água. Na transformação Putifar, o operador dessa disjunção é uma ilha no deu provas de sua força carregando quadro rochas grandes em seu cesto e
meio de um lago, ou seja, um lugar onde a terra submersa se estufa para o desceu o herói até o solo. Ele teve de se proteger, para que a velha furiosa não
alto. Aqui também se trata do meio de um lago, mas para pegar a água do local lhe cortasse as barrigas das pernas. Eles se aproximaram, juntos, das águias
mais fundo, ou seja, onde a terra está mais rebaixada. E se a transformação mortas, e a Morcega começou a depená-las. Em seguida, ela violou a proibi-
Putifar termina com um grande incêndio, M₇₇₅ termina com uma tempestade ção que lhe havia feito o herói de penetrar num vale profundo onde cresciam
de neve e uma intensa onda de frio, conforme um esquema que já encontra- girassóis selvagens; ela perdeu ali todas as suas penas, que saíram voando,
mos no mito arapaho M₇₆₂ (mas no qual é o herói que morre por causa do transformadas em passarinhos (M₇₇₆a, Haile & Wheelwright 1949: 63-75).
frio, e não seu perseguidor). Quando analisamos esse mito, observamos que, Numa variante (M₇₇₆b, ibid.: 108-09), o mais velho dos gêmeos, transfor-
como M₁, ele sintetiza a história do desaninhador e a da transformação Puti- mado em coiote pelos malefícios de um indivíduo dessa espécie, recuperou
far, e acabamos de verificar que o mesmo ocorre aqui. Ora, nos três mitos, M₁, sua forma original graças à magia de humanos que o acolheram. Mas seu ini-
M₇₆₂ e M₇₇₅, observamos transformações homólogas: do fogo de cozinha em migo, Coiote, levou-o numa caçada às águias, e fez subir o pico onde o herói
chuva torrencial que o apaga (M₁) ou de um incêndio que faz evaporar a água estava. Um passarinho chamado Tsehnutl-Tsosi ajudou-o a descer (cf. Haile:
e queima a terra em onda de frio (M₇₆₂), que também apaga os fogos (M₇₇₅). 162, tsenaolchosi, “cambaxirra dos cânions”, Catherpes mexicanus). O herói
A mitologia dos Navajo, que são Atapaskan vindos do norte há menos de mais tarde se vinga de Coiote fazendo-o engolir pedras em brasa, recober-
dez séculos, é um mundo que não pretendemos abordar22, não só em razão tas com pólen comestível para parecerem apetitosas. Coiote morreu profeti-
zando que um prodígio acompanharia sua ressureição: no dia apontado, as
sete estrelas Dilgegeh apareceram (cf. Haile: 38, 44; dileye, “as Plêiades”).
22 . E tampouco a dos Pueblo, pela mesma razão. Lembramos, no entanto, que foi
à mitologia dos Pueblo que dedicamos nossos primeiros esforços de interpretação,
A terceira e mais complexa das versões (M₇₇₆c, Haile & Wheelwright 1949:
em 1951 (Lévi-Strauss 1968a), e que foram continuados por J.-C. Gardin em relação à 112-18) apresenta um herói humano diferente dos dioscuros mas igualmente
mitologia dos Zuni (material inédito) e pelo saudoso L. Sebag em relação à dos Keresan, transformado em coiote por um animal da espécie que se apodera de suas
a que ele dedicou um importante trabalho que se encontra em vias de publicação. armas e de sua máscara, usurpando-lhe a identidade junto de sua esposa e filhos.

512 | Sexta parte: Volta às origens Junções | 513


Tratado por um esquilo, o herói recupera a forma original e parte em papel segundo os índios do estreito de Puget (Ballard 1929: 75), em razão
busca dos seus. Mas não havia mais ninguém no acampamento. Um atiça- de sua constituição anatômica que, dividindo o corpo em duas metades, as
dor esquecido chamou-o e aconselhou-o a ir para o leste. No caminho, o torna aptas a conotar pares de termos correlativos e opostos, como dia e
herói encontrou outros utensílios — panela, cuia de barro, escova de cabelo noite, ou vida e morte. Se o herói navajo, como parece, aprende a fazer fogo
— que o guiaram. Acabou encontrando a mulher e os filhos, junto com durante a sua estadia no céu, isso nos coloca bem perto de nosso ponto de
Coiote, que o recebeu fingidamente bem. Dizendo que precisava de penas partida: depois das torções que os Ute imprimem ao mito do desaninhador,
para repor as da máscara e das flechas que ele tinha roubado, ele levou o os Navajo reconstituem seu tema. A ligação com as versões ute persiste, con-
herói para desaninhar águias que, na verdade, eram gafanhotos. Como nas tudo, em vários detalhes, como a prova prévia de sua capacidade que se exige
demais versões, o rochedo cresceu mas, além disso, o trovão transportou do animal prestativo e, sobretudo, o papel idêntico que é atribuído ao atiça-
o herói para o céu, enquanto o rochedo diminuiu e ele ficou sem caminho dor, que os Navajo incluem numa série de utensílios domésticos prestativos;
de volta. Os gêmeos divinos, alertados pela mosca Dontso, que era o men- uma simples inversão leva daí aos utensílios revoltados que o herói thomp-
sageiro deles, saíram à procura do herói. Acabaram por encontrá-lo preso son encontra no céu e condena a para sempre servirem seus futuros usuários.
no “templo da noite” e guardado por um fogo violento alimentado por dois Já que os grãos de girassol e os de quenopódio serviam para fazer fari-
demônios. Eles apagaram o fogo, neutralizaram os guardas e reanimaram nha (Bailey 1940; Vestal 1952), podemos sem dúvida aproximar o ofereci-
o herói, que estava desmaiado. Depois de lhe terem ensinado todos os seus mento de pedras em brasa cobertas com farinha de quenopódio a Coiote
cantos, os dioscuros levaram seu protegido de volta para casa e recomenda- da proibição feita à Morcega, em seu próprio interesse, de se aproximar dos
ram-lhe que nunca mais deixasse Coiote tomar a palavra em primeiro. girassóis, que nas terras navajo florescem nas terras baixas na época das chu-
O herói pediu farinha /gloh-deh-glohtsosi/ (cf. Haile: 185, 209, tl’o’dei-; vas (Elmore 1944: 11). Por ter desrespeitado essa interdição, a Morcega perde
Elmore 1944: 44, tl’ohteei’tsoh, Chenopodium) à mulher, cobriu com ela as penas de águia que, numa versão dakota, o herói consegue conservar e
pedras em brasa e as deu a Coiote, que as engoliu e morreu. Depois, deu um usa depois para decorar sua casa ou tenda (M₇₆₉a, supra, p. 463).23 As penas
emético à esposa e a purificou, assim como às crianças. perdidas por Morcega dão origem aos passarinhos e, embora M₇₆₉a seja
Porém, pouco depois, o herói foi carregado para o céu pelo vento. Foi interrompido antes do final, seu título, “o povo dos pássaros”, permite supor
recebido por uma mulher-aranha, cujos filhos tinham sido comidos pelas que a casa coberta de penas tem alguma ligação com a origem dessas cria-
vespas. O herói tinha uma broca de fogo, e a usou para por fogo na lenha e turas. O fato é que todas as versões do mito navajo, afora as que utilizamos
destruiu todas as vespas, exceto quatro, de que descendem os insetos atuais. (M₇₇₆d, Matthews 1897: 119; M₇₇₆e, Haile 1938: 123-25; M₇₇₆f, Wheelwright
O texto, assaz obscuro, parece indicar que a mulher-aranha ensinou o herói 1942: 89-92; M₇₇₆g, O’Bryan 1956: 87-92) insistem na perda das penas orna-
a usar a broca para acender o primeiro fogo. Em seguida, ela o fez descer mentais em decorrência da travessia do campo de girassóis. A explicação
pelo seu fio. De volta à terra, o herói foi convidado a uma competição entre desse singular episódio poderia estar numa observação de Vestal (1952: 51):
animais diurnos e noturnos para decidir quem reinaria sobre a terra, o dia “Colocavam laços de crina de cavalo nos girassóis para capturar pássaros de
ou a noite. Mas o jogo acabou empatado e, desde então, luz e escuridão se penas amarelas ou azuis”. Ora, M₇₇₆e precisa que as penas de águia, recolhi-
alternam (cf. Eaton 1854: 219-20). Surgem então dois crânios pertencentes das com tanto cuidado por Morcega, se transformaram em pássaros inicial-
a gêmeos mortos antigamente por uma tribo inimiga (Taos). As formigas mente cinzentos, e depois de diversas cores. Tratar-se-ia, portanto, da origem
pretas recolheram seu sangue e carne, e todos os seres sobrenaturais colabo- das penas ornamentais em ambos os casos.
raram para refazer e reanimar os corpos. Essa é a origem de uma cerimônia. Consequentemente — e não nos estendendo mais sobre versões indisso-
Nota-se imediatamente que o papel das formigas inverte o que lhes ciáveis do restante da mitologia navajo — parece que essas versões do mito
é atribuído mais ao norte, pelos Salish e pelos Kutenai, de coveiras (supra,
p. 375). Aqui porém, o poder de ressuscitar os mortos, que está na origem 23 . Note-se, em favor dessa aproximação, que o bico de grou ou de garça, arma mágica
de um rito de cura, aparece como função da periodicidade diária, instituída do herói dakota (supra, p. 464), tinha um papel importante na liturgia navajo (Haile
pouco antes; em cuja instituição as formigas também desempenham um 1943: 22-23).

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do desaninhador possuem relações estreitas com as de populações vizinhas
e afastadas. A roupa de entranhas que o herói navajo veste para atrair as
águias, arpximar-se delas portanto, remete, por exemplo, às entranhas de
cervídeos que, conforme as versões nez percé (M₅₇₁c), Coiote insiste em
guardar, e cujo peso obriga os gansos a se separarem dele. Os dois demônios
que guardam a prisão do herói navajo, por sua vez, evocam as symplégades;
e se ele tem de tomar cuidado para que a Morcega não lhe corte as pernas
num ataque de mau humor, é porque ela, aqui animal prestativo, não deixa
de manter um elo com as duas velhas cegas de cotovelos cobertos de ossos
pontudos, análogas às symplégades, que segundo os Algonkin orientais são
as antepassadas dos morcegos (Speck 1921: 373).
Uma observação para terminar. Nos mitos navajo, como nos dos Dakota
(M₇₆₉b), Maidu (M₆₃₆a, b), Sanpoil (M₇₃₇), Assiniboine (M₇₆₅a,c) e Cree (M₇₆₆a,
b), o traidor — às vezes coberto de gordura — morre no fogo, ou engole pedras
em brasa envoltas em gordura ou em farinha, o que o transforma metaforica-
mente em forno de terra. Depois de ter sido vítima desse mesmo tratamento,
Coiote faz se levantarem as Plêiades (M₇₇₆b), um detalhe que nos leva a obser-
vações anteriores sobre essa constelação que, ora no registro temporal do
calendário, ora no registro espacial das configurações estelares, indica a época S É T I M A PA RT E
ou o o local em que se estabelece a comunicação entre céu e terra. Em certos
mitos do ciclo das esposas dos astros, as Plêiades são a porta do céu (M₄₄₄b). A aurora dos mitos
Podemos, portanto, nos perguntar se as Plêiades, cuja origem tantos mitos
sul- e norte-americanos — dos Matako e Makuxi aos Wyandot (cc: 247-48),
aos Iroqueses (M₅₁₉g, Beauchamp 1900: 281-82) e os Thompson (M₅₉₁f, Boas
1891-95: 21) — explicam por uma recusa de alimento, não correspondem
simetricamente ao forno de terra: a constelação como um buraco no céu,
resultante de ausência de alimento, o forno de terra como um buraco na terra,
em que se concentra muito alimento; lugar também paradoxal, onde um fogo
de origem celeste é entregue ao mundo subterrâneo que passa a ser seu depo-
sitário. Além do que o fogo celeste tem natureza solar e, como vimos nos volu-
mes anteriores (cc: 166; omm: 29-30), as Plêiades possuem uma afinidade com
a lua. Voltaremos a encontrar essa interessante questão em nossas conclusões.

516 | Sexta parte: Volta às origens | 517


i. Os operadores binários

Uma vez entendida essa regra lógica, tomai os contrá-


rios alegria e tristeza, e depois branco e preto; se preto
significa luto, branco há de significar alegria.
Rabelais, Gargantua, I, cap. X

Has omnes, ubi mille rotam volvere per annos, Lathaeum ad fluvium deus evocat De um extremo ao outro do Novo Mundo, dir-se-ia que povos que falam lín-
agmine magno: scilicet immemores supera ut convexa revisant, rursus et incipiant in guas, possuem modos de vida, práticas e costumes que nada têm em comum,
corpora velle reverti. não obstante buscaram com tenacidade, sob os climas mais diversos, loca-
Virgílio, Eneida, VI, v. 748-51.
lizar certas formas de vida animal (e certamente isso se aplica aos demais
O que pensar de uma lei que só pode ser executada por revoluções periódicas? Trata-se, reinos), seguir, por assim dizer, seus rastros, comparando sempre que pos-
simplesmente, de uma lei natural fundada na inconsciência dos que a ela são submetidos. sível espécies, gêneros ou famílias, com o intuito de encarregar alguns deles
F. Engels, nota em K. Marx, O Capital, v. 1 do papel de algoritmo a seviço do pensamento mítico, para efetuar as mes-
mas operações.
Assinalamos tais ocorrências várias vezes. É o caso do papel atribuído
às lontras, tanto marinhas como fluviais, do Alasca até o sul do Brasil (mc:
169-73); e também nas duas Américas, do destino reservado aos pássaros
da família dos icterídeos, como vigias, protetores ou conselheiros (omm: 31,
188-95). Ao longo deste livro, em várias ocasiões, fomos levados a aproximar
a função semântica que os mitos da América do Norte atribuem às aves da
família dos tetraonídeos — tetrazes e galinholas — das funções análogas
já destacadas na América do Sul, em relação aos tinamídeos. Como mui-
tas vezes acontece, trata-se de animais de espécie, gênero e família diferen-
tes, mas que pertencem à mesma ordem; no caso, a dos galináceos. Tudo se
passa, portanto, como se uma espécie de saber oculto orientasse tais apro-
ximações, embora os critérios que as inspiram serem de natureza diversa
daqueles a que recorrem taxinomias mais científicas.

518 | Os operadores binários | 519


Mas o caso dos galináceos fornece outras lições. Em O cru e o cozido indicações não bastariam, por si sós, para verificar a hipótese; vagas e frag-
(pp. 209-31), aventamos a hipótese de que os inambus (Crypturus sp., atual- mentares, teriam menos ainda permitido formulá-la.
mente Grypturellus sp.) desempenhariam uma função semântica ambígua, Graças a mitos da América do Norte, provenientes da região a oeste das
na fronteira entre a vida e a morte, ao termo do que chamamos alhures (mc: Rochosas, agora podemos apresentar a prova daquilo que avançávamos
31 n. 1, 209-12; omm: 172; Lévi-Strauss 1971c) de dedução transcendental. Pois baseados exclusivamente em mitos da América tropical. Será preciso, para
a observação empírica dos hábitos dessas aves nada revela nesse sentido, e a tanto, começar por arrolar uma série de indicações rigorosamente confor-
conclusão se apresentara a nós indiretamente, no decurso de uma tentativa mes às que resumimos acima. Já que não há tinamídeos na América do
de reduzir vários zoemas a suas invariantes. Partindo da hipótese de que um Norte, tais indicações dizem respeito a uma outra família da ordem dos gali-
mito xerente, M₁₂₄, transformava um mito bororo, M₁, havíamos atentado, náceos, os tetraonídeos, que encontramos repetidas vezes nos mitos dos
entre outros indícios, para a presença em ambos os casos de uma tríade de Sahaptin e dos Salish.
animais prestativos. Em M₁, tratava-se, primeiro, de Colibri e Pomba, cons- Um mito mundurucu (M₁₆, cc: 93) opõe um mau caçador, que só mata
tituindo um par de termos em correlação e oposição com respeito à água, e inambus, aos maridos de suas irmãs, capazes de caçar porcos do mato, caça
depois de um inseto, o Gafanhoto, caracterizado por um vôo mais lento e de qualidade superior, que ele tenta trocar por suas aves. Um outro mito de
mais baixo, que quase acaba com ele durante uma expedição na companhia mesma proveniência (M₁₄₃, cc: 265) evoca o caso de um mau caçador que
dos dois pássaros; mas ele retorna vitorioso, ainda que quase morto. Como o só traz inambus para a mulher, e tem de escutar seus comentários desagra-
mito xerente M₁₂₄ inclui também um par de animais arborícolas, pica-paus dáveis. Pois bem, os Ojibwa da região dos Grandes Lagos começam exata-
e macacos, em correlação e oposição com respeito ao fogo — celeste e des- mente do mesmo modo um de seus mitos: um homem, casado e com muitos
truidor para os primeiros, terrestre e construtivo para os outros — deveria filhos, é tão mau caçador que não consegue nem mesmo trazer uma franga
decorrer daí (mediante a aplicação, num caso simplificado, de uma fórmula de crista, a presa de pequeno porte mais fácil de apanhar, para alimentar a
canônica proposta desde o início de nossas pesquisas, cf. Lévi-Strauss 1958: família. Seus cunhados, mais bem sucedidos, zombam dele. No dia seguinte,
252; mc: 212) que a transformação que afeta os dois primeiros termos da trí- sua sogra faz, não um caldo amargo, como em M₁₄₃, mas uma sopa, e a serve
ade seria fechada, e que uma relação de transformação idêntica deveria defi- tão quente ao genro que ele a derruba e queima o próprio peito. Esse inci-
nir, em ambos os casos, o terceiro termo. Em M₁₂₄, o terceiro termo designa dente o desmoraliza; ele perde a vontade de caçar e, quando volta com uma
“perdizes”, ou seja — tendo em vista que não há fasianídeos na América do mísera franga, sua mulher o põe para fora de casa (M₇₇₇, Jones 1917-19, ii:
Sul — aves da família dos tinamídeos. 443-51). O mito também explica porque a franga é uma caça de qualidade
A partir do momento em que concebíamos, a título de hipótese, que esses inferior: sua carne branca não tem gordura. O restante da narrativa trata
tinamídeos pudessem ocupar uma posição ambígua e equívoca, no limiar da busca desesperada por carne bem gorda. É certamente significativo que
entre a vida e a morte, tornava-se possível detectar, em sua constituição e essa busca, finalmente bem sucedida, engate na história do enganador trans-
seus hábitos, bem como nos mitos e crenças a seu respeito, elementos que portado por gansos e que eles jogam lá de cima, já que versões ocidentais, já
não sugeririam nada nesse sentido, se tomados isoladamente, mas aos quais discutidas (supra, p. 165, 471) encadeiam esse episódio num outro em que o
a hipótese que evocamos há pouco permitia conferir sentido. Os tinamídeos enganador, após uma falta de ordem alimentar, perde todos os dentes e se
se distinguem das demais criaturas dos ares por um vôo pesado; na catego- torna incapaz de se alimentar.
ria do alto, ocupam uma posição relativamente baixa. Os antigos Tupinambá Mas vamos nos ater à franga. A alusão à sua carne branca ecoa uma
usavam suas penas brancas e pretas em adornos de guerra. Diz-se que certos opinião bastante difundida, já que os Ten’a, que são atabascanos do noro-
tinamídeos e cracídeos cantam à noite, a intervalos tão regulares que são este, dizem que a carne de um tetraonídeo (willow-grouse: lagópode dos
como uma espécie de relógio da mata; são, portanto, associados a formas salgueiros?) fica completamente branca quando cozida (Jetté 1909, 1a parte:
bem curtas de periodicidade. Os mitos aliás chamam a atenção para as afini- 301). Ainda num plano estritamente alimentar, uma ambiguidade própria
dades noturnas dessas aves, que definem como caça desprezível, cujo caldo aos tetraonídeos se evidencia no nome que os algonquinos ocidentais dão à
amargo é o único alimento permitido aos rapazes reclusos etc. Contudo, tais franga de crista. Os Penobscot e os Malecite apreciam bastante a sua carne,

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mas ainda assim chamam-na de “ave ruim”; porque é escandaloso, como O pai dela, também frango ou então tentilhão dos brejos, conforme a ver-
revela um velho informante, que uma carne tão boa seja tão magra (Speck são, foi buscá-la na terra dos mortos, mas estes se recusaram a recebê-lo:
1921: 358). Tais julgamentos concordam com o que um viajante europeu, “De todo modo, os frangos não ficam o tempo todo entre os vivos, desapa-
Maximiliano de Wied, formulou no Brasil a respeito do inambu: “sua carne recem todos os anos durante uma estação completa, quando vão visitar os
é muito boa... como gelatina;... quase não tem gordura” (in Brehm 1891, v. 4: mortos”. Por isso, certas pessoas não comem franga, com medo de morrer
494). Encarada por esse ângulo, a ambiguidade que caracteriza os galiná- antes do tempo (l.c.: 129-30). Vimos que, para os Tillamook, o tentilhão é o
ceos no pensamento dos indígenas das duas Américas parece ser da mesma intermediário entre o mundo dos vivos e o além, e que os Carrier, mais ao
ordem que a que fez duvidar, nos primeiros séculos do cristianismo, se con- norte, atribuem a mesma função ao melro, chamando a atenção para suas
vinha ou não incluir as aves, junto com o peixe, no cardápio dos dias magros idas e vindas diárias (supra, p. 439). Ao colocarem o frango na mesma cate-
(Hastings 1928, v. 5: 767a). goria que o tentilhão, os Salish do estreito de Puget apenas transformam um
Mas há mais: nos dois hemisférios, os mitos exploram essa ambiguidade ritmo cotidiano em ritmo sazonal, mas permanecem claramente dentro de
do mesmo modo. Os Chinook classificavam os tetraonídeos com as raí- um sistema que persiste na América do Sul, atribuindo aos galináceos, que
zes amargas (Jacobs 1959, i: 77; cf. M₁₄₃), entre os alimentos de tempos de anunciam a passagem das horas, uma função noturna igualmente ligada à
penúria. Também os utilizavam para fazer um caldo para os doentes, prá- periodicidade cotidiana. Quanto a isso, é significativo que uma das versões
tica igualmente registrada entre os Salish da costa que, na versão humptu- salish explique com a viagem de Frango ao reino dos mortos — de onde
lips da gesta do demiurgo Lua (M₃₇₅c, Adamson 1934: 276-84), transformam ele tentou trazer de volta dois de seus netos, e só conseguiu salvar um deles
em “faisão” — ou seja, em franga de crista, cf. supra, p. 353 n. 1 — a mãe — o costume de matar gêmeos, considerados como uma monstruosidade
da criança raptada, e lhe atribuem como últimas palavras o seguinte: “Vive- naquela parte do mundo: “Só se deve ter um filho por vez”, conclui o mito
rei escondida nos arbustos, pois me transformaram numa ave triste. Serei (Ballard 1929: 131). Duas crianças que nascem ao mesmo tempo provocam
humilde por toda a minha vida. Quando alguém adoecer, será alimentado uma desordem nos ritmos biológicos.
com minha carne, a única que os doentes conseguem manter no estômago. Um informante acrescenta a esse grupo de mitos o seguinte comentário:
Se o doente estiver em estado grave, e a vomitar, isso indicará sua morte “A filha de Frango é caolha. Quando fala com os espíritos, olha com o olho
próxima”. Depois, ela cortou os cabelos bem curtos, exceto no meio, como cego. Os índios nunca comem cebça de franga porque elas são meio mor-
se usasse um chapéu em sinal de luto; e transformou sua mãe em mergulhão, tas. Quando a filha olha do lado direito, dirige-se aos vivos. A cabeça é uma
ave que frequenta os lagos. espécie de fantasma” (Ballard 1929: 133).
Ave sem gordura, e de temperamento lúgubre, especialmente apropriada Trabalhando com mitos sul-americanos, havíamos inferido (pois eles
para alimentar doentes, ligada à morte... todas essas características também mesmos não dizem nada que se pareça com isso) que para compreender a
estão reunidas nos mitos sul-americanos. Vimos que, na América do Norte, função semântica do zoema “galináceo” era preciso admitir que ele conota
os da região que nos interessa além disso consideram a franga como um a intersecção entre a vida e a morte, e a passagem de uma à outra. E eis que
espírito do frio, que atrasa a chegada da primavera e prolonga a penúria com agora mitos da América do Norte enunciam de modo explícito e enriquecem
as tempestades de neve que provoca no final do inverno. Para os Kalapuya, com um detalhado comentário uma proposição que nos parecera necessária
ela é dona das doenças (Jacobs 1945: 272-74). Os Sanpoil proíbem os pais por razões puramente lógicas. Não poderíamos ter esperado uma melhor
que estão prestes a ter um filho de comer sua carne, para evitar que a criança demonstração da validade e da fecundidade de nosso método, que não só
grite até perder a respiração e seja atacada de convulsões (Ray 1954: 124). nos permite resolver problemas à primeira vista heteróclitos, dando-lhes
Os Salish e seus vizinhos vão, portanto, mais longe do que seus congêne- uma mesma solução — o que realiza a economia a que aspira toda inves-
res sul-americanos, e logo entenderemos porque. Entre os Salish, as carac- tigação científica, e indica que ela se aproxima de seu termo — mas, prin-
terísticas atribuídas à franga possuem um fundamento mítico claramente cipalmente, apresenta com a incarnação imprevista de um símbolo numa
enunciado. Os povos do sul do estreito de Puget (M₇₇₈a-g, Ballard 1929: imagem um tipo de evidência que se pode justificadamente chamar de apo-
128-32) contam que um pretendente recusado matou uma moça-franga. díptica, pois tal imagem, presente a milhares de quilômetros de distância

522 | Sétima parte: A aurora dos mitos Os operadores binários | 523


no discurso patente de sociedades de língua e cultura totalmente diferentes !
daquelas de onde partimos, materializa um esquema ao mesmo tempo abs-
trato e oculto. Depois disso, poderia parecer supérfluo acrescentar confirma- De uma ponta à outra da região que nos interessa, partindo dos Alsea e dos
ções indiretas. Ei-las, no entanto. Tillamook ao sul e subindo a costa até os Tlingit, no norte, uma das narra-
Em mitos chinook já discutidos (M₅₆₆, supra, p. 155) pertencentes ao ciclo tivas mais populares fala da Raia. Acontece, às vezes, de ela ser substituída
da avó libertina, Guaxinim leva uma surra da avó por ter desperdiçado a por algum outro peixe, cuja espécie não é fácil identificar, pois em chinook
comida de ambos e se vinga dela fazendo-a engolir bolinhos de polpa de há nomes diferentes, mas em outras línguas como o alsea, da família yako-
fruta cheios de espinhos. Ela engasga, pede água, e a recebe num chapéu nan, as diversas espécies de linguado e a raia são designadas pelo mesmo
furado. A velha sai voando, transformada em Franga. Como havíamos vocábulo, /hulō’ hulō’/, que também designa um personagem mítico que
notado na ocasião, esse mito tem um correspondente exato entre os Bororo faz papel de intermediário ou passador (Frachtenberg 1920: 70 n. 10, 72-73,
(M₂₁, cc: 102-03), em que mulheres que não têm comida, porque seus mari- 253). Tais incertezas não têm a menor importância, pois, como veremos, os
dos são incompetentes, dão a eles pequis (Caryocar sp.) cheios de espinhos; mitos se interessam a todos esses peixes pelo mesmo motivo, o fato de serem
eles engasgaram, começaram a grunhir como porcos do mato e se transfor- chatos, de modo que sua face ventral, que se apóia no fundo do mar, não
maram nesses animais, dando origem a eles. Sabemos agora que, se na Amé- possui a mesma contextura que sua face dorsal. Um inventário do grupo
rica do Sul os porcos do mato são o melhor tipo de carne, nas duas Américas, encontra-se em Boas 1916: 658-60 e 842.
os galináceos são a presa mais desprezada. De modo que é o mesmo mito Os Tillamook evocam um singular duelo entre Raia e Cervo (M₇₇₉, E.D.
que persiste, em regiões tão afastadas, apenas modificado por uma inversão Jacobs 1959: 11). Este estava certo de que venceria, pois seu adversário era tão
dos valores atribuídos aos que sofrem a metamorfose em cada caso. largo que todas as flechas haveriam de atingi-lo em cheio. Mas Raia sempre
A segunda confirmação nos vem dos mitos thompson pertencentes ao conseguia se apresentar de perfil no bom momento e, quando foi a sua vez
ciclo do desaninhador. Vimos que as velhas cegas que o herói encontra no de atirar, foi Cervo que morreu. Num mito já citado (M₇₅₆b, supra, p. 444),
céu se transformam em duas espécies de tetraonídeos, uma fecundável de os Kathlamet situam no céu um acontecimento do mesmo tipo: os animais,
longe pela audição, e a outra fácil de capturar, ou seja, que pode ser pega de aliados contra os Ventos do sudeste, ao se prepararem para o combate, quise-
perto. Como o primeiro aspecto concerne à perpetuação da vida de uma ram dissuadir Raia de acompanhá-los, porque era largo demais, diziam, e por
espécie, e o outro, a interrupção prematura dela para uma outra, o desdo- isso um alvo fácil demais; era melhor que voltasse para a aldeia, disseram-lhe,
bramento das espécies finalmente torna patente, por outra via, o mesmo tipo mas Raia demonstrou seu talento para esquivar-se, e deixaram que ficasse.
de ambiguidade. Na pessoa da Franga cuja cabeça é meio viva meio morta, Esse talento faz com que os Salish do sul do estrito de Puget encarreguem
vida e morte, normalmente afastadas pela duração da existência individual, Raia de liderar a guerra contra o Vento sul, que acaba sendo poupado pelos
encontram-se paradoxalmente próximas. animais vitoriosos, contra a promessa de soprar apenas de vez em quando
Fica assim confirmado que a franga, como outros galináceos americanos, (M₇₈₀a, Ballard 1929: 69). Segundo os Klallam, os animais guerrearam con-
é uma ave que conjuga em si vida e morte. Os índios Wichita (M₃₇₀, omm: 45) tra o Vento norte. Raia disse que conseguiria resistir ao vento se colocando
transpõem a mesma ambiguidade para a galinha das pradarias (Tympanu- de perfil, mas ele o fez rodopiar, e ele teve de ceder as honras de vitorioso
chus sp.).1 Quando assumem forma humana, essas aves são inimigos especial- a Cambaxirra, que conseguiu fazer o Vento prometer que não sopraria por
mente temíveis, porque são ambidestras e podem manejar o arco com ambas mais de sete dias seguidos (M₇₈₀b, Gunther 1925: 121).
as mãos. Tais mãos são, portanto, gêmeas, e como os primeiros gêmeos que Os Quinault e os Quileute tinham línguas diferentes, mas eram vizinhos
os Salish do estreito de Puget atribuem à filha de Frango, são perigosas. na costa. Eles contam (M₇₈₁a-b, Farrand 1902: 108-09, Reagan & Walters 1933:
319) que por ocasião da guerra do povo terrestre contra o povo celeste, Raia
1 . Também os tetraonídeos, que os Shuswap (Teit 1909: 629) colocam no mesmo esquivou-se dos dardos de Corvo colocando-se de lado, e conseguiu perfu-
grupo, com outros representates da família. Tratamos da questão dos galináceos em rar o bico do adversário. Os Quileute dizem ainda que um habitante do céu
nosso curso no Collège de France, em 1965-1966. urinou sobre Raia, ou então que um terráqueo matou uma raia, depositou-a

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provisoriamente diante da casa de um de seus inimigos celestes e voltou para M 785 KWAKIUTL DE VANCOUVER: O VENTO PACIFICADO
o seu acampamento, do outro lado do rio; retornou pouco depois, com fogo Para darem um fim no vento forte que soprava sem parar, os animais lhe moveram
para cozinhar seu peixe, mas era de noite, e o habitante do céu tinha saído guerra, mas vários deles morreram por causa de seu mau cheiro. Finalmente, Lin-
nesse meio tempo e, sem ver a raia, tinha jogado nela água suja, e a carne guado deitou-se diante da porta dele e quando o Vento saiu, escorregou e caiu. Os
desse peixe tem até hoje esse gosto (M₇₈₂a, Farrand & Mayer 1919: 264-66; animais o prenderam e só o libertaram depois de ele prometer que seria clemente
M₇₈₂d, Reagan 1935: 51-54; M₇₈₂e, Reagan & Walters 1933: 319). (Boas 1891-95: 186-87).
Há uma história do mesmo tipo entre os Nootka do cabo Flattery:
M 786A , B NOOTKA: O COMBATE DE RAIA E CORVO
M 783 MAKAH: GUERRA CONTRA O VENTO SUL Corvo quis comer Raia e o desafiou. Mas ele se esquivou dos golpes se colocando
Outrora, os quadrúpedes e os peixes foram visitar o Vento sul. Quando chegaram, ele de lado. Segundo M786B, Corvo fez o mesmo saltando; insistiu para que Raia ficasse
estava dormindo, e eles resolveram dar-lhe um susto. Molusco se escondeu debaixo curvado, mas ele conseguiu atingir Corvo, esperando que ele estivesse com os pés no
da cama, Linguado e Raia se deitaram ao pé dela e Camundongo mordeu o nariz do chão para atirar. Atravessado pelo dardo do adversário, Corvo desistiu da luta (Boas
dorminhoco. Ele acordou num sobressalto, levantou-se, escorregou nos dois peixes 1891-95: 107-08; Sapir & Swadesh 1939: 26-29).
chatos e caiu. Molusco enrolou os tentáculos em volta das pernas do Vento, que ficou
furioso e começou a soprar com tamanha violência que transpirou; as gotas que lhe A não ser por raras exceções, deixamos as tribos da costa noroeste do Pací-
escorriam da testa formaram a chuva. Ele finalmente conseguiu expulsar seus adver- fico fora de nossa investigação. Por isso, apenas notaremos que o estrata-
sários, mas por rancor ficou voltando de tempos em tempos à terra para atormentá- gema do Linguado para fazer o Vento hostil cair, aproveitando o contraste
los: os quadrúpedes sofrem com as tempestades e, quando o mar está revolto, joga entre suas duas faces, uma rugosa e a outra escorregadia, foi registrado entre
os peixes na praia, onde morrem muitos (Swan 1964: 92). os Kwakiutl, os Bella Coola, os Tsimshian, os Haida e os Tlingit (M₇₈₇a-g,
Boas 1910: 227, Boas & Hunt 1906, i: 358, iI: 98, Boas 1916: 79-81, 1932: 32,
Todos os temas que encontramos até o momento isolados existem lado Swanton 1905: 129, Krause 1956: 189).
a lado entre outros grupos Nootka e Kwakiutl, principalmente na ilha de Entre os mitos que acabamos de resumir, vários (M₇₅₆b, M₇₈₁a, M₇₈₂b)
Vancouver: precisam que Raia ficou no céu, como um dos animais retardatários que
morreram e foram transformados em constelação. Os Quinault davam
M 784 NOOTKA: ORIGEM DAS MARÉS (cf. M593-M597) a uma constelação o nome de /djagage’h/, “a Raia”, que talvez fosse Orion
Antigamente, ventava sem parar. Não havia maré baixa e era impossível pegar con- (Olson 1967: 178). Diz-se que constelação a que os Twana davam o mesmo
chas. Resolveu-se então matar os Ventos. Vários animais enviados como batedores nome, /kwikwä’äl/ em sua língua, era vizinha da Ursa Maior (Elmendorf
fracassaram, entre os quais Melro de inverno, que conseguiu entrar na casa dos 1960: 537). Os Makah davam nomes de peixe a várias constelações, como
Ventos mas esqueceu-se de sua missão enquanto se aquecia junto ao fogo, que o Baleia, Linguado, Raia e Tubarão, entre outros, mas não foi possível iden-
queimou e deixou-lhe manchas vermelhas (cf. M756B). Sardinha não se deu melhor e tificá-las, porque eles se recusavam a apontá-las com o dedo, devido a um
voltou com os olhos mais próximos da boca do que das orelhas. Finalmente, Gaivota, terror supersticioso; mesmo para falar das estrelas, preferiam que o céu esti-
apesar de sua vista fraca e de seus braços quebrados, conseguiu atravessar o cabo var- vesse encoberto (Swan 1964: 90). A crença de que certas constelações são
rido por ventanias violentas que protegia a entrada da aldeia inimiga. Raia e Linguado peixes transformados pode ser encontrada até entre os Tlingit, que chama-
se postaram diante da porta. Ao saírem, os Ventos escorregaram no Linguado, caíram vam as Plêiades de “o Peixe-pau” e uma constelação não identificada de “Pes-
e se despedaçaram nos ganchos da Raia. Só o Vento oeste resistiu, mas mesmo assim cadores de linguado” (Swanton 1909: 107).
prometeu que, dali em diante, traria o bom tempo soprando leves brisas, e faria alter- Mencionamos há pouco a raia como um dos animais retadatários trans-
nar as marés duas vezes por dia, para que os humanos conseguissem pegar conchas formados em estrelas, de que já falamos em relação aos mitos que lhes dizem
comestíveis. Em troca da promessa, teve a vida salva (Boas 1891-95: 100-01). respeito (supra, p. 420). Esses mitos, que também se referem a um combate
de ordem cósmica, invertem aqueles em que aparece a raia, no sentido de

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que tratam da domesticação do fogo, e não do vento e da chuva, ou então apenas ligeiramente modificada, ele aparece no mito nootka sobre a guerra
da sujeição dos ventos gelados do norte em vez do vento sul, que traz tem- contra os ventos e a origem das marés (M₇₈₄, supra, p. 488) em que a Sardi-
pestades.2 Pois bem, eles substituem o episódio da raia por um outro, em nha, depois de fracassar em sua missão, volta com os olhos perto da boca e
geral protagonizado por Serpente e Rã. O primeiro episódio se situa antes não mais afastados como antes; ou seja, ela fica vesga. Seu malogro, e essa
do combate cósmico, e o segundo, depois, quando os animais estavam des- particularidade anatômica que dele decorre, a opõem ao Linguado, que
cendo do céu: “Eles viram a Serpente saltar, cair e quebrar os ossos. A Rã em seguida consegue fazer os ventos escorregarem em sua face viscosa. Na
ficou pulando de alegria e, desde então, as serpentes comem as rãs” (M₇₂₅, versão chehalis, que ao mesmo tempo inverte a guerra pela conquista do
Jacobs 1934: 145-46). O mito chehalis (M₇₅₆a, Adamson 1934: 75, cf. também fogo e a guerra para a domesticação dos ventos frios, o Linguado, variante
77) sobre a guerra do Vento sudoeste contra o Vento nordeste encarrega a combinatória da Raia, se vê estrábico como a serpente eficaz ou a sardinha
Serpente, que é um grande guerreiro e é vesgo, de comandar as operações. das versões “retas”; esta última é também um peixe, mas, como a Serpente, é
Não houve perdas no campo do sudoeste, mas Serpente desapareceu e foi redonda e não chata, à diferença da raia e do linguado.
tido por morto. Ele reapareceu, contudo, e ouviu sua irmãzinha Rã que Os mitos que incluem o episódio da Raia explicam que ela ficou para trás
estava se lamentando e fazendo comentários a respeito do fato de ele ser no céu e virou uma constelação. Temos boas razões para supor que o mesmo
vesgo que ele considerou insultantes. Ele a matou e comeu. Desde então, as ocorreu com a Serpente. A versão snohomish precisa que a Serpente e o
cobras são inimigas das rãs. O mesmo incidente figura numa versão do mito Lagarto, que ficaram presos no céu devido à ruptura da escada, só puderam
do estreito de Puget sobre a conquista do fogo (M₇₂₃b, Ballard 1929: 52-53). voltar para a terra na primavera seguinte (M₇₂₄b, Haeberlin 1924: 412). Esse
A Serpente é qualificada, como a Raia portanto, por uma particularidade detalhe parece indicar que os dois répteis davam nome a constelações do
anatômica. Porém, no caso desta, trata-se de uma dupla oposição entre face inverno. Devemos então concluir que os peixes chatos, cuja posição semân-
e perfil e entre a face superior e a inferior, ao passo que no caso da primeira, tica, como acabamos de ver, é simétrica à deles, representam constelações de
trata-se de olhos cuja visão se entrecruza. Os mitos fornecem a prova de que verão? Isso significaria desconsiderar uma outra transformação, que pode-
esses dois tipos de ambiguidade são comutáveis. ria passar despercebida se não recorrêssemos a um paradigma comum aos
Uma versão chehalis da gesta do demiurgo Lua (M₃₈₂, Adamson 1934: dois hemisférios, que permite elucidar em parte a dúvida apontada à p. 489
173-77) transfere para o eixo horizontal a história da conquista do fogo e, ao quanto à constelação chamada de “a Raia”.
fazê-lo, conta-a ao contrário. Alhures, os ventos do noroeste são os donos Vimos que essa versão snohomish apresenta uma anomalia em comparação
celestes do frio, do anti-fogo, portanto. Aqui, um povo de galinhas das prada- com os demais mitos sobre a conquista do fogo (supra, p. 416). São os habitan-
rias vive na terra — mas a leste, onde faz frio — não em contradição com o tes do céu que inauguram as hostilidades contra a terra, irritados com o baru-
fogo, mas sem possui-lo. Por isso eles dançam sobre a comida para cozê-la, e lho noturno de um carpinteiro que fabrica canoas. Eles o raptam e prendem.
passam o tempo todo ocupados nisso. O demiurgo Lua vem vistá-los, dá-lhes Os animais terrestres sobem ao céu e o libertam, em troca da promessa de que,
a broca de fogo e ensina-lhes a cozinhar num recipiente de madeira com água a partir de então, ele só trabalharia de dia. Esse episódio, que começa portanto
que se faz ferver colocando nela pedras ardentes. Esse episódio, que reintegra antes da expedição ao céu, ocupa na cadeia sintagmática a mesma posição que
os galináceos (supra, p. 481-86) num vasto sistema cuja unidade começamos é alocada ao episódio da Raia nos mitos sobre a guerra contra o Vento, que é
a vislumbrar, precede um outro em que Lua encontra o Salmão e o Linguado, aprisionado graças a um estratagema de um peixe chato, e que os animais liber-
que eram cegos. Lua lhes dá a visão, mas o Linguado fica estrábico. tam em troca da promessa de passar a soprar apenas intermitentemente.3 Nem
Em nota (p. 176 n. 2), Adamson 1934, que considera esse último inci- é preciso sublinhar que o Carpinteiro, trabalhando dia e noite, fazia um alarde
dente estranho e confuso, observa que seu informante o omitiu da ver- contínuo que, no plano acústico, equivale a uma tempestade igualmente contí-
são em língua indígena que deu mais tarde a Boas. Contudo, numa forma nua: fica claro que os dois procedimentos são simétricos, bastando inverter os

2 . É verdade que o mito klallam M₇₈₀b manda Raia guerrear contra o vento norte, mas 3 . Isso nos permite resolver uma dificuldade que havia incomodado Boas (1916: 660),
nesse caso ele sai derrotado em vez de vencedor. relativa a uma versão haida (Swanton 1905: 32-34) intermediária entre os dois tipos.

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valores respectivos do Carpinteiro e dos ventos. Isso posto, surge uma questão: Além disso, se os dois conjuntos comutáveis — Raia de um lado, Ser-
o Carpinteiro que, uma vez libertado, ficará em silêncio à noite e fará baru- pente e Lagarto (ou Rã) do outro — remetem a constelações opostas pelo
lho de dia, não inverteria a Raia que, antes de sua captura e transformação em tipo de periodicidade que caracteriza cada uma delas — somente diurna e
constelação, era fina de perfil e larga de frente? A aproximação parece ser ainda noturna ou, ademais, sazonal — constatamos que essa oposição forma sis-
mais apropriada na medida em que o Carpinteiro de M₇₂₄ que trabalha sem tema com uma outra, já extraída dos mesmos mitos (supra, p. 356). O que
parar é barulhento, o Vento de M₇₈₅ que sopra sem parar é fedorento e, por ter nos permite formular:
estado no céu, a Raia se torna fedorenta segundo M₇₈₂a-b. Estamos aqui diante
da equivalência entre barulho e fedor cuja realidade demonstramos, a partir (constelações permanentes : constelações sazonais) : : (estrelas não nomeadas : estrelas
de outros dados, várias vezes (cc: 299-302, mc: 311-63, supra, p. 473), e na mais nomeadas).
recente, aliás, a propósito da história de Coiote que os gansos, irritados com o
barulho que ele faz, deixam cair do céu para onde o levaram, ao passo que aqui, Efetivamente, estrelas anônimas são também permanentes, por hipótese,
é o contrário, os habitantes do mundo de cima levam o Carpinteiro para o céu diríamos, já que há sempre no céu estrelas que se equivalem pelo simples
porque ficaram irritados com o barulho que fazia. fato de não serem identificadas. E por essa via constatamos que, como mos-
Munidos dessas certezas intuitivas, vamos dar um salto ousado, mas que tramos alhures (Lévi-Strauss 1962b: 226-86, supra, p. 356, 462), nomear é
será amplamente justificado pelo que segue, até o sul da América tropical. Os classificar e, portanto, introduzir a descontinuidade.
Matako do Chaco contam num de seus mitos (M₇₈₈, Métraux 1939: 59-60)
que certo dia um homem ouviu um ruído no fundo de uma lagoa e quando !
mergulhou nela viu pessoas construindo uma grande casa, sob a direção de
um mestre carpinteiro. Este era, justamente, Raia, que ensinou o homem a Essa não é a primeira vez que topamos com Raia em nosso caminho. Em Do
construir casas. Por isso as casas matako têm forma de raia. mel às cinzas (p. 264 n. 1) já notamos que os Warrau e os Baniwa, na América
Desse modo refazemos o itinerário percorrido a propósito dos galiná- do Sul, e os Yurok, na América do Norte, comparam a raia ao útero ou à
ceos, mas no sentido inverso. Os mitos sul-americanos tinham nos forne- placenta: “a raia se parece com os orgãos internos das mulheres”, dizem os
cido o princípio de uma dedução transcendental, cuja prova empírica estava Yurok (M₂₉₂d, Waterman 1920: 191, Erikson 1943: 272). Os Wiyot, os Tolowa
contida nos da América do Norte, que incarnavam em imagens algo que e os Hupa possuem mitos análogos aos dos Yurok, em que uma Dona Lin-
ainda não passava de um esquema abstrato e teórico, nascido da especula- guado, ou uma outra criatura sobrenatural chamada Maiyotel, captura seus
ção. Agora, ao contrário, são mitos norte-americanos que servem de ponto amantes e os exila além-mar (M₂₉₂e-h, Kroeber 1905: 97, Goddard 1904:
de partida para uma dedução que caberá aos do outro hemisfério validar, ao 116 n., 132). Documentos recentes relativos à América do Sul corroboram
designarem expressamente a Raia como mestre carpinteiro. É verdade que as opiniões dos Warrau e dos Baniwa. Os Tukano comparam a raia à pla-
ele constroi casas, e não canoas. Mas mostramos (omm: 154-55) que não ape- centa (Reichel-Dolmatoff 1968: 21, 77). Os Trumai do Brasil Central fazem
nas na América como também em outras partes do mundo, a canoa móvel eco aos Yurok num de seus mitos (Monod, ms.): “Será que essa raia não é a
e a casa imóvel são comutáveis: ora, a relação entre o carpinteiro snohomish mesma coisa que uma mulher?” — pergunta-se um índio. E continua: “Sim,
e as canoas que fabrica é da ordem da contiguidade, ao passo que a relação é a mesma coisa; e ele se deitou em cima dela...”. Seremos mais prudentes ao
entre seu confrade matako e as casas indígenas é de semelhança. Essa torção fazer uma outra aproximação, que poderia ser significativa. No mito noo-
do sistema sugere que se o carpinteiro norte-americano, que transforma a tka M₇₈₆a, Corvo deseja muito comer o fígado da Raia que, assinala M₇₈₆b,
raia dos mitos simétricos da mesma região, se compromete a ter uma ativi- era bem gorda. Bem, os Kalina da Guiana, que falam uma língua carib, cha-
dade exclusivamente diurna, o tipo de periodicidade a que se submete é de mam a raia de /ereimo/, talvez composto de /ere/, “fígado”, mais um sufixo /
caráter diário. Nesse caso, a constelação correspondente seria visível o ano imo/ usado para formar os nomes de animais temíveis (Ahlbrinck 1931, art.
todo, exceto, evidentemente, durante o dia, e sua localização nas imediações “ereimo”, “imo”). A aproximação poderia parecer descabida se são soubés-
da Ursa Maior parece ser mais verossímil do que perto de Orion. semos por outras vias (mc: 315) que os indios sul-americanos muitas vezes

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acreditam que o fígado é feito de sangue coagulado, e funciona como um vantagem ou uma desvantagem, e a cobra, estrábica, aparecem como os der-
reservatório de sangue menstrual. A equiparação da raia ao fígado, que radeiros avatares de uma transformação que viemos seguindo desde os seus
talvez se baseie apenas numa semelhança externa, poderia assim remeter à primeiros estágios, ilustrada nos volumes anteriores pelos motivos da mulher
“função útero” desse peixe, bem atestada em outros casos. de vagina grande, dona de uma cobra e transformável em sarigueia (fedo-
Lembraremos ainda um mito amazônico (M₁₄₇, cc: 269) em que uma hero- renta como a raia) e do homem de pênis longo, transformável em tapir sedu-
ína lunar e civilizadora mata animais hostis defumando-os num fogo de resina, tor dotado de enormes testículos (cc: 255-56, mc: 354, omm: 67). Pois bem,
e é obrigada a repetir a operação para acabar com o porco do mato, o tapir, a já sabemos que a Rã ocupa, entre essas duas séries, uma posição interme-
cobra grande e a raia. Embora o texto não seja nada explícito, aparentemente diária. Como “mulher grudenta”, ela se apresenta como contrapartida do
atribui à raia a capacidade de esquivar-se, como na América do Norte. Por homem de pênis longo (omm: 42-68). Mas, por outro lado, digamos, a Rã
outro lado, os Tacana da Bolívia, que dizem que a raia nasceu do pus (com- que sofre de incontinência urinária, responsável pela menstruação, agarrada
parar com M₇₈₂c) saído de um deus ao sair de uma cobra monstruosa que o ao rosto de Lua e dona de um chapéu mágico (M₃₈₂, omm: 60), também têm
tinha engolido, não dizem que ela é capaz de se virar, ao contrário dos Salish. uma relação de complementaridade com a Raia na qual se urina, criatura ute-
E inclusive dizem que a raia, ao avistar rãs ou girinos que estavam cantando e rina ou placentar, e que serve de chapéu para os espíritos (fig. 32).
dançando para saudar uma tempestade, ficou tão cheia de admiração que quis
imitá-los; como ela não conseguia rodopiar, acabou caindo e morreu (M₁₉₅, RÃ
1 forma mista
M₇₈₉, Hissink & Hahn 1961: 107-09, 265-66). Os Tumupasa crêem que as raias
2 sangue menstrual
são os chapéus dos espíritos da água, e que simbolizam a lua (ibid.: 76-77). 3 função hermafrodita
(função “chapéu” (mulher-grampo)
De modo que, nas duas Américas, observa-se a mesma associação da raia negativa) (omm: 160, 248-49)
com os orgãos geradores femininos, útero e placenta, de um lado, e do outro,
com objetos manufaturados, como casas, canoas, chapéus que, de vários
modos, possuem funções envolventes e protetoras, e que, como sabemos,
várias populações americanas concebem efetivamente como símbolos ute- (função “chapéu” (homem de pênis
rinos (Reichel-Dolmatoff 1968, passim). positiva) longo)
Além disso, os Salish comutam em seus mitos a raia e um par de termos
composto por cobra e rã; a primeira certamente conota, pelas razões já expos- RAIA COBRA
tas, uma constelação visível durante o ano todo em função de uma simples 1 losango achatado 1 cilindro alongado
2 útero, placenta 2 pênis
periodicidade dia-noite, ao passo que as últimas conotam uma constelação
3 função fêmea 3 função macho
visível apenas durante metade do ano. Essa tríade de termos complementa- 4 chapéu dos 4 amante da lua:
res ou antagônicos reaparece nos mitos tacana sobre a dança das rãs, que espíritos lunares: “penetra-a” (M256)
também possuem um caráter claramente sazonal. Com efeito, eles agrupam “cobre-os”
as cobras e as rãs, que dançam juntas numa variante, e se opõem à raia, que
não consegue imitá-las pois sua constituição anatômica a impede de manter [ 3 2 ] Raia, Rã e Cobra.

o equilíbrio quando tenta rodopiar. Nisso já fica clara uma oposição extrema
entre raia e cobra: uma tem a forma de um losango achatado, a outra, a de Salientamos várias vezes que os mitos sobre a guerra dos terráqueos contra
um cilindro alongado. Mas as conotações simbólicas que detectamos na raia, os habitantes do céu ou os ventos possuem uma função subsidiária. Além
registradas nos dois hemisférios, permitem desenvolver a oposição em outros da conquista do fogo, no primeiro caso, e do estabelecimento do regime
planos. Se a raia é uma criatura uterina, a cobra apresenta uma afinidade com dos ventos, no outro, esses mitos explicam a origem das estrelas ou, mais
o pênis que um vasto grupo de mitos (M₄₉-M₅₂, M₁₅₀-M₅₉, M₂₅₅-M₂₅₆ etc.) precisamente, mostram porque as estrelas se dividem em duas categorias, a
explora metodicamente. A raia, cuja instabilidade constitutiva pode ser uma das menores e mais numerosas, agrupadas numa multidão anônima, e a das

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constelações que, como as famílias animais de que se originaram, possuem Matako, é uma raia) são portanto respeitadas na íntegra, na passagem da
formas distintivas e nomes próprios. Vimos também que, em todos os casos, América do Norte para a América do Sul.4 A analogia aparece ainda mais
a ação mítica isola do grosso da tropa um par de protagonistas. Conforme claramente quando notamos que, nos mitos da América do Norte, a Raia e o
intervenham antes do combate ou depois dele, são formados por Raia em par comutável com ela, formado por Cobra e Rã, intervêm na conquista do
oposição a Corvo ou Cervo, ou Cobra e Lagarto, ou ainda Cobra em oposi- fogo de cozinha ou na domesticação da tempestade e da chuva, e essas duas
ção a Rã. Já que Cobra é uma imagem simétrica da Raia, pode-se dizer que, funções, de dono da tempestade e da chuva e dono do fogo, são reunidas
de modo positivo ou negativo, a Raia está sempre presente. pelos Bororo na mesma pessoa, a do herói de M₁, que tem em comum com
Pois bem, existe um mito bororo, resumido e discutido em Do mel às cinzas o de M₂₉₂a o fato de ser separado do pai em consequência de um incesto,
(M₂₉₂a, pp. 263-80) em que a Raia desempenha um papel central e que tem real ou metafórico, sexual num caso, alimentar no outro (pois que o menino
por função etiológica explicar a origem do nome das constelações. Quanto ao esfomeado quer juntar-se a um peixe ainda cru e que é, aliás, um símbolo
código astronômico, esse mito ocupa, portanto, o mesmo lugar que os mitos uterino). E, em ambos os casos, a disjunção se faz em direção ao céu. Note-se
da América do Norte em que a Raia também intervém, com uma diferença: a ainda que corresponde ao menino com o rosto coberto de brasas ardentes
oposição entre estrelas nomeadas e não-nomeadas, que os Salish situam num pelo pai, por intermédio de uma raia não cozida, um menino de M₂₉₂b que
plano sincrônico (certas estrelas tên nome, outras não), entre os Bororo se situa é coberto de zombarias por ter comido um rato cozido (o que causa a trans-
num plano diacrônico: antes as constelações não tinham nome, agora elas têm. formação do pai em raia) e, em M₇₈₂b, uma raia não cozida, que por isso
O mito bororo, bem como os que dele aproximamos no decorrer da refle- será coberta de água suja e transformada em peixe que cheira mal. Como
xão, opõe um filho de polaridade celeste (pássaro em M₂, ave de mau agouro já mostramos, em Do mel às cinzas (pp. 260-85), aqui também os insultos
em M₂₉₂b, interlocutor das estrelas em M₂₉₂a) e um pai de polaridade ter- constituem o equivalente, no plano linguístico, do fedor e do barulho.
restre ou aquática (dendróforo e criador da água em M₂, caçador que deixa
a caça pela pesca em M₂₉₂a, transformado em raia e condenado a viver na !
lama em M₂₉₂b). Consequentemente, esses mitos de um certo modo tratam,
como os dos Salish, de um conflito, entre o campo da terra ou da água e o Passemos agora para uma outra família animal, a dos ciurídeos. Há na Amé-
campo do ar ou do céu, mas com uma inversão dos polos: à diferença dos rica do Sul um pequeno esquilo arborícola do gênero Sciurus, chamado de
mitos norte-americanos, os mitos bororo tomam o partido do personagem acutipuru ou coatipuru na bacia amazônica e de serelepe ou caxinguelê
de afinidades celestes. Essa inversão vem acompanhada por outra, que afeta mais ao sul. A etimologia destas duas últimas palavras parece ser duvidosa, e
diretamente a Raia. Nas versões quileute (M₇₈₂a-b, supra, p. 487), a Raia passa a das duas primeiras, controversa. Estas reunem dois morfemas, dos quais o
a ter mau cheiro por ter sido maculada com molhado (urina ou água suja). primeiro designa outros pequenos quadrúpedes, como o quati. O segundo
No mito bororo M₂₉₂a, a Raia se torna maculante porque ficou impregnada morfema é um sufixo por meio do qual a lingua geral forma nomes de ani-
de cinzas quentes, da categoria do queimado. Lembramos que, irritado com mais ou plantas que dão sorte, como o pássaro uirapuru, do canto mara-
a impaciência do filho, o pai lhe joga na cara o peixe semi cozido na brasa, vilhoso, a planta tajapuru, que favorece a pesca e os amores, ou a árvore
que gruda na pele do menino, o queima e cega. manacapuru, cuja raiz, tomada em infusão, embebeda, mas traz sucesso na
Há mais. Se, numa versão quileute, a Raia fica fedorenta, é porque seu caça. O esquilo também goza de alta reputação, devido à sua pelagem sedosa,
dono no começo não tinha fogo para cozinhá-la. E se, no mito bororo M₂₉₂a,
ela se torna maculante, é também por falta de fogo, mas no tempo, e não no
4 . Do mesmo modo que é respeitada a regra de transformação definida em omm: 321
espaço, já que o fogo não tem de ser buscado alhures, está lá, mas não assa
e supra, p. 219, de um objeto celeste — lua ou constelação — em rocha terrestre de cor
com rapidez suficiente. Em consequência disso, em vez de fedor, surge uma clara, por uma versão quileute que leva à transformação Putifar por inversão do mito
terrível algazarra de gritos e ruídos na mata, que faz eco ao choro do menino. do carpinteiro (M₇₂₄c, Reagan 1935: 81-84): responsável por uma disjunção para longe,
As regras de transformação que definimos para passar da Raia quileute, tor- em vez de vítima de uma disjunção para cima, ele metamorfoseia o irmão avarento
nada fedorenta, para o Carpinteiro snohomish barulhento (que, entre os (em vez de incestuoso) em rocha branca de calcita.

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sua longa cauda e sua rapidez5, mas principalmente por uma outra razão: sul-americano? Uma versão quileute (M₇₉₀g, Andrade 1931: 58-63) afirma
diz-se que é um dos raros animais capazes (além do quati, por sinal) de des- isso, e inclusive atribui a esse comportamento do animal a libertação de
cer das árvores mais altas com a cabeça para baixo. Um acalanto amazônico sua protegida. Os Coeur d’Alêne acreditam que existe uma raça de anões
atribui-lhe o poder de fazer as crianças dormirem; na mesma região, acredi- sobrenaturais que sobem e descem das árvores bem depressa, e sempre com
tava-se que no momento em que a decomposição do cadáver se completa, a a cabeça na frente. Eles são vermelhos e carregam os seus bebês invertidos.
alma o deixa e sobe ao céu na forma de um acutipuru (Rodrigues 1890: 288; Aqueles que se aproximam deles desmaiam e, quando voltam a si, percebem
Stradelli 1929: 362; Câmara Cascudo 1962, v. i: 11; Ihering 1940, art. “serelepe”). que estão encostados numa árvore, de cabeça para baixo. Além desse povo
Na parte da América do Norte estudada por este livro, o mesmo papel de de anões, existem outros que se vestem com peles de esquilo (Boas 1917a:
psicopompo, mas com uma coloração sinistra, cabe a um outro ciurídeo, o 127 n. 1; Teit 1930a: 180). Embora se trate de raças distintas de anões, as refe-
esquilo-voador, do gênero Glaucomys. Esse roedor na verdade não voa, mas rências à roupa de pele de esquilo e ao estilo de descer de cabeça para baixo,
plana, graças à pele flexível que une suas patas traseiras às dianteiras. Segundo aplicada por transposição ao modo de carregar os bebês e de tratar as víti-
os Okanagon (Cline 1938: 171), o esquilo-voador anunciava morte próxima, mas humanas, mostra bem que o pensamento indígena postula uma estreita
crença compartilhada pelos Klikitat, como mostram mitos (M₇₉₀d-e, Jacobs afinidade entre os anões e os ciurídeos.
1934: 45; 1929: 207) que dizem ainda que o esquilo-voador foi antigamente E assim, tanto na América do Sul como na América do Norte, animais
um monstro canibal, e que possuem equivalentes na região do estreito de dessa família, de gêneros distintos, são concebidos com o aspecto de seres
Puget (M₇₉₀f, Haeberlin 1924: 427-28). Mais ao norte, os Tsimshian também sobrenaturais capazes de fazer as crianças dormirem e de fazer os adultos
o viam como um animal perigoso, que gosta de lançar pinhões do alto das desmaiarem, ora anunciadores de morte próxima, ora acompanhantes da
árvores e de assustar os passantes (M₇₉₀h, Boas 1912: 205). Os Makah, de lín- alma quando esta deixa seu invólucro mortal para dirigir-se definitivamente
gua nootka, ao contrário, viam no esquilo-voador um talismã de boa sorte, e para o além. Em ambos os hemisférios, essas crenças paralelas são relaciona-
por isso não o caçavam deliberadamente mas, se acontecesse de pegarem um, das a um estilo de mover-se próprio dos ciurídeos, que descem das árvores
consideravam-no como um presente inesperado (Gunther 1936: 116). de cabeça para baixo.
Portanto, ora do lado da vida, ora do lado da morte, os ciurídeos de O leitor terá certamente notado que os três tipos de animais cujo papel
ambas as Américas conotam igualmente o espaço que as separa. Vários nos mitos acabamos de examinar intervêm na medida em que cada um deles
mitos dos Carrier (entre os quais M₇₄₉, Jenness 1934: 99) falam de uma moça serve de suporte para uma oposição binária. Tal oposição, ligada à anatomia,
que morreu de rir ao ver um esquilo descendo de uma árvore. Segundo os à fisiologia ou aos hábitos, depende de fenômenos observáveis e, portanto,
Hoh e os Quileute (Reagan 1935: 66-67, 80-81), uma mulher presa no topo remete a uma dedução empírica. Era o que ocorria no caso, visto acima
de uma árvore foi salva por um esquilo ou por um personagem cômico. (pp. 213, 275), das formigas e das vespas, cuja cintura fina parece dividir o
A comicidade associada ao esquilo ou a uma criatura que faz o papel dele corpo ao meio e permite encarregar esses insetos do papel de separadores
decorreria do fato de ele descer de cabeça para baixo, como seu congênere para instituir a alternância entre dia e noite, vida e morte; ainda mais con-
siderando, como sugere um mito alsea (M₇₉₉b, Frachtenberg 1920: 141), que
5 . O coati-puru (acutipuri) tem, no entanto, um papel dos mais ambíguos, que não certos insetos parecem continuar vivos mesmo depois de cortados ao meio.
aprofundaremos aqui, num grupo de mitos kaxinawá (M₇₉₀a-c, Abreu 1914: 209-26), Os galináceos, do mesmo modo, reunem de modo paradoxal dois traços
em que ele fornece um alimento mágico aos índios famintos, reduzidos a comerem opostos, a presença de carne e a ausência de gordura. Os peixes chatos, por
terra. Depois disso, ele seduz uma mulher e, transformado em morcego, castra o sua vez, parecem anormalmente largos quando vistos de frente e anormal-
marido dela. Os homens se juntam para atacá-lo, mas ele consegue escapar, levando
mente finos quando vistos de perfil. E finalmente, à diferença de outros qua-
a comida que tinha trazido. Pierre Clastres informou-nos de que o quati desempenha
um papel considerável em certos ritos dos Guayaki, que parece fundar-se nas mesmas
drúpedes, certos ciurídeos conseguem virar completamente sobre si mes-
ideias em voga mais ao norte a respeito do acutipuru. Ele sugere, aliás, que o sufixo mos, para irem para cima ou para baixo.
/-puru/ poderia ser idêntico ao guarani /-mburu/ que, segundo Cadogan (1959: 18-59), Mas as crenças míticas não se atêm aos dados da observação. Sobre
conotaria um estado de fervor religioso (cf. supra, p. 493, o sufixo kalina /imo/). o resultado da dedução empírica, isto é, o binarismo, elas aplicam uma

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dedução transcendental que, para além do esquema abstrato de uma esco- heroínas são as moças enclausuradas que já tiveram um papel neste livro
lha entre os supremos contrários que são a vida e a morte, dedica-se a gerar (supra, p. 36), elas caem nas mãos de um homem-borboleta que as rapta e as
toda uma imagística, que reincorpora ao real: cabeça da franga viva de um sujeita a maus tratos. Uma versão (M₇₉₂b) que retoma o tema yurok do exílio
lado e morta do outro; gnomos sobrenaturais que explicitam as característi- além-mar diz que esse personagem maléfico “costumava raptar as mulheres
cas observadas no esquilo no plano empírico, por meio de comportamentos e arrastar seus maridos para o outro lado da água para matá-los”.
presumidos e análogos para com seus filhos e seus inimigos; constelações Essas considerações acerca de Dona Raia e Dona (ou Senhor) Borboleta
permanentes, cujo caráter distintivo está no fato de, por estarem sempre pre- sugerem uma outra hipótese. Ao exilar suas vítimas do outro lado do oceano,
sentes no céu, serem invisíveis de dia, como a raia se apresentando de perfil, o personagem desempenha uma função complementar à que os Salish atri-
e plenamente visíveis à noite, como a raia de frente. buem, na série M₃₇₅, às symplégades, a de impedir o retorno de um herói
Tocamos aqui o cerne da questão, como evidencia uma comutação que exilado do outro lado da água em que se encontra a terra dos mortos. Tratar-
afeta o personagem de Dona Raia, observável quando se passa dos povos da se-ia, pois, aqui também, de uma oposição entre os mortos e os vivos.
costa para os do interior. Segundo os Yurok, os Wiyot, os Tolowa e os Hupa Pois bem, esse exílio a que as symplégades impedem de dar um fim é
(M₂₉₂d-f, supra, p. 492), essa diaba, ou alguma outra criatura equivalente, provocado por Dona Raia precisamente porque ela não é symplégades, mas
prendeu o demiurgo entre as coxas durante o coito e o levou para além-mar. se fecha e depois se recusa a abrir-se. Nos mitos sobre a guerra contra o povo
Bem, os Nez Percé contam uma história análoga (M₅₄₂a-b, supra, p. 69), em celeste, que se desenrola no eixo vertical e não no horizontal (mas mostra-
que o mesmo papel de diaba cabe a uma Dona Borboleta. Tendo em vista as mos, supra, p. 444, que eles são convertíveis entre si), a Raia está em corre-
aproximações que sugerimos há pouco entre animais presentes nos mitos lação e oposição com a Cobra estrábica. Ora, num certo sentido, as symplé-
das duas Américas, é digno de nota o fato de os Tukuna do Amazonas faze- gades não são pedras estrábicas? Isso nos permite vislumbrar um modo de
rem a mesma narrativa que os Nez Percé, apenas substituindo o pênis pelo consolidar num mesmo grupo o motivo das symplégades, que pertence à
estômago. Dizem eles (M₂₉₂i, Nimuendaju 1952: 122-23; cf. omm: 96) que um gesta do demiurgo Lua, o da Raia, integrante do combate entre habitantes
jaguar matou e comeu o demiurgo (mas precisamente o pai dos demiurgos, da terra e os habitantes do céu, e, finalmente, o papel de anti- symplégades
mas ele compartilha essa qualidade com seus filhos) e, com o estômago da que cabe a Raia e Borboleta. Além disso, a Raia dos mitos quileute (M₇₈₂a-b)
vítima, fez uma trombeta, e começou a tocar. Os filhos conseguiram tirá- emporcalhada de um lado e deixada limpa do outro no momento de instau-
la das mãos dele mas, por causa de um gesto desajeitado, o estômago saiu rar um determinado tipo de periodicidade sazonal apresenta uma notável
voando e, depois de vários acontecimentos, acabou caindo nas asas aber- analogia com o instrumento pintado de preto de um lado só que os índios
tas de uma borboleta azul do gênero Morpho, ao qual as tribos amazônicas do estreito de Puget faziam vibrar para chamar a chuva e o degelo, com a avó
atribuem poderes maléficos. O inseto fechou as asas com o estômago do dos mitos correspondentes e com o tentilhão dos mitos vizinhos, que tem o
demiurgo e não quis devolvê-lo. Para libertar o orgão aprisionado, foi pre- rosto enegrecido ou sujado, e depois lavado.
ciso abrir com fogo um buraco redondo nas asas da borboleta.
Pois bem, a Borboleta se presta ao papel de operador binário tanto
quanto a Raia; quando abre as asas, é bem larga, e quando as fecha, vista de
frente ou de costas, é bem estreita. E se os Wichita assinalam a ambiguidade
dos galináceos ao descreverem a galinha das pradarias em forma humana
como ambidestra (supra, p. 486), os Kutenai dizem num mito (M₇₉₁, Cham-
berlain 1892: 578) que uma Borboleta em forma humana foi inicialmente
considerada como sendo uma mulher, embora pertencesse ao outro sexo.
A transformação de Dona Raia em Dona Borboleta que se vê ao passar
dos Yurok para os Nez Percé se prolonga entre os Navajo, com uma inversão
de sexo. Num mito (M₇₉₂a-b, Pepper 1908: 178-83, O’Bryan 1956: 163) cujas
faltam traduções e legenda
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Estamos diante da noção de operador binário, à qual parece que devemos ii. O mito único
atribuir a incrível tenacidade demonstrada pelos índios das duas Américas ao
longo dos milênios, e através de espaços imensos, de geologia, clima, fauna e
flora os mais diversos, para preservar, recuperar ou substituir zoemas consi-
derados indispensáveis para determinadas operações (fig. 33). Evidentemente,
é preciso que todos os mitemas, quaisquer que sejam, se prestem a operações
binárias, pois elas são inerentes aos mecanismos forjados pela natureza para
permitir o exercício da linguagem e do pensamento. Mas tudo se passa como
se certos animais fossem mais apropriados do que outros para desempenhar
esse papel, seja em razão de um aspecto marcante de sua constituição ou de seu [verificar traduções disponíveis]
comportamento, ou porque, por uma propensão sua também natural, o pensa-
mento humano apreende mais depressa e mais facilmente propriedades de um
certo tipo. O que dá no mesmo, aliás, pois nenhuma característica é marcante
em si, e é a análise perceptiva, em si combinatória e capaz de atividade lógica Um minuto libertado da ordem do tempo
recriou em nós, para ser sentido, o homem
no nível da sensibilidade, que por intermédio do entendimento confere signifi-
libertado da ordem do tempo.
cado aos fenômenos e os erige em texto. Tais textos, que desse modo tornam-se M. Proust, O tempo reencontrado, II
passíveis de serem traduzidos em linguagens cada vez mais abstratas, servem
por sua vez para articular outros textos. Digamos, pois, que os operadores biná-
rios são aqueles que, sem esperar que a dedução transcendental intervenha e Em O cru e o cozido, desde a “abertura” do que viria a ser uma longa busca,
se ponha a trabalhar, já se revelam à dedução empírica como algoritmos.6 Eles anunciamos que ela procederia por meio de progressões em rosáceas (cc: 12).
constituem, assim, as peças básicas da vasta máquina combinatória que é o sis- Ao longo destes quatro volumes, efetivamente, percorremos e fechamos cir-
tema mítico. Esse papel fundamental explica porque os povos que penetraram cuitos mais ou menos amplos, sempre pegando com nosso fio mitos espar-
nas Américas em vagas de migração sucessivas, pela costa ou pelo interior, nas sos, para ligá-los a outros, que logo seriam, por sua vez, atrelados a grupos
planícies ou nas montanhas, se esforçaram consciente ou inconscientemente que viriam a se fundir em conjuntos cada vez mais vastos, e que, ao mesmo
por não deixar que as peças mestras de seu sistema se perdessem ou se dis- tempo, tornavam-se menos numerosos.
persassem, e trataram de localizar e reconhecer, sempre que possível, espécies, O primeiro desses circuitos, gerador de todos os demais, unia o mito
gêneros ou famílias; e na falta delas, de buscar os gêneros e famílias mais aptos bororo de origem da água (M₁) e mitos jê de origem do fogo (M₇-M₁₂). Jun-
a reconstituir uma relação invariante com formas inteiramente novas de vida tos, inseriram-se num ciclo mais vasto, reunindo-se a mitos de origem da
animal ou vegetal, uma distribuição diferente da fauna e da flora, e com a explo- vida breve e de origem das plantas cultivadas (M₈₇-M₉₂). Todos esses mitos,
ração de ambas com técnicas e modos de vida que também eram diferentes. caracterizados pelo emprego de um eixo de disjunção vertical, foram em
seguida conectados a outros, que lançam mão de dois eixos de disjunção,
um horizontal e o outro vertical (M₁₂₄-M₁₂₅). Num último movimento de
6 . Essa transparência da experiência sensível à análise nem sempre se manifesta, por nossa agulha, pegamos com o mesmo fio os primeiros mitos (M₁, M₇-M₁₂)
sinal, de forma binária. A título de exemplo, mencionaremos as aves de rapina que, na de que tínhamos partido, e os últimos (M₁₇₁-M₁₇₅, M₁₇₈-M₁₇₉), com os quais
região que nos interessa, se dividem em três categorias, conforme a espécie ou gênero
se encerrava a investigação em O cru e o cozido.
considerado se alimenta de pássaros, peixes ou pequenos quadrúpedes. O que faz com
que as aves de rapina tenham, de saída, uma tripla valência, que as conecta ao ar, à
O segundo volume mantinha o mesmo procedimento, alargando-o. Por
àgua ou à terra. Estes elementos, por sua vez, podem ser classificados como tríade ou intermédio de M₂₁-M₂₇, M₁ e M₇-M₁₂ se começavam por formar grupo
ser opostos dois a dois, no seio de um par alto/baixo, no qual o segundo termo requer com novos mitos, M₁₈₈-M₁₉₁ (mc: 50). O mesmo ocorria com M₂₁₆-M₂₁₇ e
uma dicotomia subsidiária, entre terra e água. M₂₅₉-M₂₆₆ (mc: 188-93). Em seguida, uma série de vaivéns levando sempre

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de volta ao ponto de partida costuravam M₇-M₁₂ e M₂₇₃ (mc: 215), M₂ e M₂₉₂ neutralizaram umas às outras? Ou deveríamos concluir que, no continente
(mc: 265) e, finalmente, M₁, M₇-M₁₂ e M₃₀₀-M₃₀₃ (mc: 303). americano inteiro, existe apenas um mito, inspirado a uns e outros por um
Tendo mostrado, na primeira parte de A origem dos modos à mesa, que desígnio secreto, tão rico nos detalhes de sua composição e na multiplicidade
circuitos não menos obrigatórios do que os demais — entre M₁₃₀ etc. e M₃₅₄, de suas variantes que vários volumes não terão bastado para descrevê-lo?
entre M₃₅₄ e M₃₆₅-M₃₈₅, entre todos eles e M₃₉₃-M₃₉₄ (omm: 17-91) — impu- Deve ser possível dar pelo menos um começo de resposta a essas pergun-
nham o recurso a motivos norte-americanos, podíamos e devíamos expan- tas. Seria um começo, se pudéssemos mostrar que os grandes temas desse
dir a rosácea até que ela englobasse os mitos do hemisfério boreal. Tal alar- quadro, tal como tentamos decifrá-los e compreendê-los, mas mobilizando
gamento foi feito em duas etapas, primeiro por intermédio de um circuito para tanto uns oitocentos mitos — número que praticamente dobraria se
ainda sul-americano, maior do que os anteriores e recapitulativo, de certo contássemos todas as variantes — se manifestam entre determinados povos
modo, unindo M₁, M₇-M₁₂ e M₄₀₅-M₄₀₆, e depois por um outro, no qual era na mesma ordem e com o mesmo significado que lhes demos. Pois que nós
possível situar um mito sul-americano (M₁₀) no início e mitos norte-ame- elaboramos um mito a partir de mitos, quando essas narrativas bem loca-
ricanos (M₄₂₈, M₄₉₅a) no final (omm: 250-51, 351-52). A figura 41, à página lizadas no tempo e no espaço antes proporiam, em estado natural, o corpo
386, ilustrava em forma de diagrama o duplo périplo assim realizado pela cuja síntese procurávamos fazer num laboratório, a qual podíamos somente
mitologia das duas Américas. postular que deveria corresponder, nalgum lugar, a algo real. No entanto, se
O leitor deste volume terá constatado que, do início ao fim, esse proce- tal objeto real não passasse de um esquema inconsciente, gerador dos mes-
dimento, que consiste em encadear na mesma série mitos provenientes das mos fenômenos em vários lugares, a hipótese não poderia ser verificada, e
duas Américas, não apenas foi mantido, como se acelerou. Vaivéns cada vez as razões para adotá-la residiriam unicamente em sua fecundidade para dar
mais rápidos, conjugados à multiplicação de perspectivas e à dos ângulos de conta de incoerências aparentes, resolver contradições, elucidar questões
análise, permitiram consolidar aquilo que, no início, poderia parecer uma etnográficas e obter nesses vários campos uma solução econômica. Seria
junção frouxa e precária de retalhos de formas, texturas e cores díspares. As bem diferente se, no meio do território delimitado para o qual o caminhar
costuras e os cerzidos, aplicados metodicamente aos locais mais frágeis, aca- espontâneo da investigação nos dirigiu imperiosamente, determinados
baram produzindo uma obra homogênea, cujos contornos se ajustam, em mitos conferissem a essa hipótese uma existência concreta. Eles nos conce-
que as nuances se fundem e se completam; peças que pareciam ser dispa- deriam o mesmo favor que a um astrônomo a visão, na objetiva seu teles-
ratadas, uma vez que encontramos os lugares que cabem a cada uma e sua cópio, de um corpo celeste que ele sabia existir graças a seus cálculos mas
relação com as vizinhas, se apresentam como um quadro coerente. Os mais jamais tinha visto, exatamente no lugar onde deveria estar, com a massa e o
ínfimos detalhes, por mais gratuitos, estranhos, ou até mesmo absurdo que movimento exigidos para que todas as aparentes anomalias do sistema a que
possam ter parecido no início, nele ganham significado e função. pertence se confirmassem como provas da realidade de sua existência.
Mas colocam-se, então, questões fundamentais: quais são a origem, Ora, na região da América do Norte sobre a qual este livro se debruça,
a razão de ser, e também, qual é a história desse quadro? Como pode ele tais mitos existem e possibilitam fazer a demonstração. Provêm todos de
representar algo e fazer sentido, quando cada um dentre um sem número grupos costeiros, distribuídos ao longo de uma faixa estreita que vai do sul
de pintores, a milhares de quilômetros uns dos outros, que falam línguas do Oregon até para além do Fraser, uma região caracterizada tanto pelo
e são portadores de tradições diferentes, sem combinação alguma entre reduzido tamanho das sociedades que ali vivem e de seus territórios quanto
eles, concebeu e executou apenas um pedacinho mínimo dele? Graças a que por uma diversidade linguística extrema. Além dos Salish marítimos, como
misteriosa conivência esses pedaços se completam, se correspondem ou os Quinault e os Tillamook, ou simplesmente costeiros como os Cowichan,
respondem uns aos outros? E o quadro, como é, afinal? Repete centenas de Lkungen, Lummi, Klallam, Twana etc., ela inclui alguns grupos atabascanos
vezes a mesma imagem? Exprime uma harmonia e um equilíbrio fortuitos, separados do grosso de sua família linguística, e os únicos representantes
decorrentes de uma colaboração feita ao acaso mas da qual teria resultado, de pequenas famílias isoladas, Coos, Yakonan (atualmente ligados à famí-
justamente em virtude do número e da diversidade dos participantes, uma lia penutiana), Chmakum... Não se sabe quase nada a respeito destes últi-
aparente regularidade, devida a múltiplas diferenças que de algum modo mos grupos, cuja cultura tradicional e o efetivo demográfico foram logo

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destruídos. Parece ser esse o caso dos Coos em especial, do sul do Oregon, exatamente o mesmo tempo em cada local, e por isso me veem de qualquer lugar.”
que chegavam a uns 1.500 indivíduos no início do século xix. Escolhemos O herói se casou com as duas mulheres. Seu sogro, malevolente, obrigou-o a enfren-
começar por eles esta fase derradeira de nossa investigação porque, sendo tar diversas provas, todas com o objetivo de fazer com que ele morresse, mas ele
o elemento mais meridional da pequena amostra a que pretendemos nos conseguiu vencer todas elas. Então, ele resolveu ir visitar os seus, e prometeu às
restringir, viviam aproximadamente na mesma latitude que os Klamath, a mulheres que retornaria dentro de dois dias. Os velhos Garças prestativos cobriram-
uma distância de não mais de duzentos quilômetros destes. Como esse livro, no de presentes e de provisões — um cinto, uma baleia (sic), um escudo, um diadema
partindo dos Klamath, foi subindo progressivamente para o norte, mantive- de penas — e baixaram-no até a terra num cesto preso na ponta de uma corda.
mos a mesma ordem para estudar um microcosmo mitológico no qual estão Ele reencontrou as esposas terrestres e os filhos. O pai, ao saber que ele estava
condensados todos os grandes temas abordados desde o começo de nossa de volta, tratou de voltar a ser velho rapidamente. O herói o obrigou a colocar o cinto
investigação, e de que a região inventariada ao longo deste livro já oferecia mágico que trouxera do céu; o velho foi arrastado para o alto mar, junto com uma
um modelo reduzido, mas ainda em escala maior do que a que vai agora nos baleia. O filho voltou para o céu no cesto, com a família terrestre, e a instalou junto à
permitir extrair sua fórmula quintessenciada. família que lá tinha deixado.
Enquanto isso, o pai do herói, que falava todas as línguas, inclusive a das baleias,
M 793A COOS: O DESANINHADOR DE PÁSSAROS mandou o cetáceo engoli-lo e levá-lo de volta à terra. Saiu das entranhas do bicho
completamente careca, reduzido a um esqueleto, mas com o coração. Recolheu
Um velho tinha um filho, casado com duas mulheres e pai de dois filhos. O velho folhas de salgueiro, apresentou-as com o nome de arenques a pequenos corcundas
desejava as noras. Depositou seu excrementos ensanguentados no alto de um que eram os servidores da baleia, e desse modo os fez crer que era verão, hora de eles
pinheirinho (“spruce”, Picea gen.) e deu um jeito para que um belo pica-pau de penas acordarem de seu sono. Depois mandou a baleia levá-lo ao longo da costa fazendo
vermelhas viesse debicá-los. Como os netos queriam as penas, convenceu-os a pedi- muito barulho, para chamar a atenção das pessoas.
rem ao pai que fosse atirar no pássaro. Retornou finalmente à sua terra, onde fazia um frio intenso, que quase o matou.
Enquanto o caçador subia para se aproximar de seu alvo, a árvore foi crescendo Aqueceu-se um pouco ao sol e lembrou-se, de repente, de que existia algo chamado
muito, colocou-o no céu e desapareceu. O velho malvado assumiu a aparência de um comida. Rastejou de lá para cá e encontrou bagas de manzanita (Arctostaphylos sp.:
jovem rapaz e se apropriou das noras. uva-ursina). Ficou comendo o dia todo, mas nunca ficava satisfeito, porque assim que
O mundo celeste era uma bela e vasta pradaria que se estendia a perder de vista. engolia as bagas elas saíam de seu corpo. Ele tapou o ânus com uma rolha de grama
Não soprava nenhum vento e não havia nada para comer. O herói avistou dois “grous e conseguiu alimentar-se normalmente.
azuis” (certamente garças), tentou atirar neles, errou e foi atrás deles. Quando os Construiu uma casa, acendeu o fogo e lembrou-se da existência do repolho
alcançou, eles tinham assumido a aparência de um velho casal de forma humana, fedido (“skunk cabbage”, Lysichiton; aracéa de floração precoce) e da técnica de assa-
que o acolheu e hospedou, porque tinham muita comida de todos os tipos. Esses dura. Mas o repolho só secava sobre o fogo; em vez de assar, continuava cru. Pouco
velhos viviam no fim do mundo. Avisaram o herói que, todos os dias, Dona Sol parava a pouco, o velho redescobriu a arte de fazer um forno de terra e conseguiu cozinhar
na casa deles para comer estômagos humanos, porque era canibal. Por isso eles o uma refeição. Dividiu-a em porções iguais, e embora não tivesse companhia, atribuiu
esconderam quando ela chegou, precedida por um grande ruído e um intenso calor. cada porção a um parente ideal: tio, irmão mais velho, tia, cunhada, irmão mais novo...
Depois de sua refeição costumeira, ela seguiu seu caminho. O herói a seguiu, abor- Logo chegaram os salmões. O velho pegou-os com um arpão e colocou-os para
dou-a e conseguiu possui-la usando um pênis feito de gelo que temperou definitiva- ferventar. Mas era um trabalho extenuante, e ele inventou (ou reinventou) a nassa.
mente o ardor excessivo de sua parceira. A partir de então, Dona Sol seria clemente Todas as manhãs, ele ia buscar os salmões pegos durante a noite e os colocava para
para com os vivos. secar inteiros, cabeça, coração, ouvidos, rabo, leitas e ovas inclusive. Veio o verão, e o
Em seguida, o herói chegou à casa de caçadores de lontras marinhas azarados; velho achou que tinha mais provisões do que precisava. Rio abaixo, viviam pessoas
lá, duas irmãs se apaixonaram por ele. Eram viajantes noturnas e a mais velha, boa que passavam fome. O velho foi lhes dar comida. Assim que ele se pos a caminho,
moça, explicou-lhe que elas vinham de outras paragens, e acrescentou: “Quando todos os peixes secos que ele levava saltaram na água e foram embora. Desde então,
chegamos a algum lugar, as mulheres dali ficam menstruadas; por isso passamos os salmões sobem o rio todos os anos (Frachtenberg 1913: 21-37).

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Dispomos de versões mais recentes desse mito, que se inserem numa cosmo- alimentava de testículos humanos (Boas 1917a: 173-75, 186-87). Como Lua é
logia (M₇₉₃b,c; Jacobs 1940: 184-86, 188-92, 210-22). Como outros povos da macho nesses mitos, eles se conectam a M₇₉₃a-c por uma tripla transforma-
costa, os Coos acreditavam numa dinastia de cinco demiurgos enganado- ção: 1) lua —Y sol; 2) macho —Y fêmea; 3) testículos —Y estômago. Não cabe
res, que reinaram sucessivamente sobre o mundo e nele deixaram as marcas aqui examinar esses mitos que, como mostramos em nosso curso no Collège
de seus grandes feitos. A intriga de M₇₉₃c apresenta o quinto demiurgo no de France em 1968-1969, situam-se antes do lado da série paralela sobre a
papel de desaninhador e seu pai, o quarto, no de perseguidor. origem do vento e do nevoeiro, a que já nos referimos (supra, p. 322, 329, 441).
Naquela época, dizem, pai e filho visitaram um povo que não tinha nem Bem, o modo como M₇₉₃c começa (supra, p. 506) já indica que os mitos coos
fogo de cozinha, nem água, nem comida, porque o chefe da aldeia onde vivia se situam do lado da água e do fogo. Por outro lado, Dona Sol, que não con-
o quarto demiurgo detinha esses elementos e gêneros de primeira necessi- segue encontrar a própria boca quando come, parece sofrer de uma certa
dade e se recusava a dá-los. Chamados pelo quinto demiurgo, todos os ani- forma de cegueira; mas o texto não diz nada nesse sentido e outras interpre-
mais se uniram e, graças a diversos estratagemas, ganharam no jogo o fogo, tações são possíveis, tanto mais que mitos kaxinawa aos quais fomos levados
que eles depositaram na madeira das árvores, a água, que se espalhou por há pouco (M₇₉₀a-c), por uma singular confluência, referem-se, como esses, a
toda parte, e todos os alimentos. A partir de então, foi possível matar a sede e vários tipos de alimento que um ser sobrenatural (nesse caso, o acutipuru),
cozinhar os alimentos no fogo, em vez de colocá-los sob as axilas dos jovens, consegue, por meios mágicos, para um povo tão miserável que tem de comer
que foram então postos a dançar até que a comida estivesse quente. terra para sobreviver. Ora, diante de sua primeira refeição de frutas e legu-
Então, o quinto demiurgo casou-se com duas mulheres e foi viver com mes, esse povo age exatamente como Dona Sol diante de sua refeição cani-
elas junto do pai. Segue o episódio do desaninhador, com uma única modi- bal: os convivas não encontram a boca e acabam enfiando a comida no nariz.
ficação: o pai transforma seus excrementos sanguinolentos num pequeno Se todos esses mitos fizessem parte do mesmo conjunto, apesar da distância
pica-pau do gênero Syraphicus. Perseguindo o pássaro, a mando do pai, que os separa, a inépcia dos protagonistas talvez decorresse apenas de sua
o herói some no céu. O velho fica com as noras e cega os netos com seu gulodice. O mito kaxinawa que vem depois deles na coletânea de Abreu fala,
esperma. Essa é a origem dos corrimentos purulentos que, desde então, às aliás, de um outro personagem sobrenatural e guloso, um sapo que devora
vezes afetam os olhos. os pratos de servir junto com a comida que neles está (M₃₉₀; omm: 64).
No céu, o herói foi hospedado por um casal de Aranhas venenosas. O Seja como for, um parentesco evidente entre M₇₉₃ e mitos sul-america-
marido e a mulher tinham metade da cabeça queimada pelo calor que Dona nos se mostra na sequência em que um demiurgo enganador sem fundilhos
Sol irradiava durante suas visitas cotidianas. Todos os dias, ela parava na não consegue se alimentar, até ter a ideia de tapar o traseiro com uma rolha
casa deles para comer, mas sempre ficava furiosa, porque sempre levava a de grama. Já evocamos esse incidente (supra, p. 303), para mostrar que as
comida fora da boca, que não conseguia encontrar. Graças a seu pênis de versões da história do desaninhador provenientes dessa região setentrional
gelo, o herói temperou o ardor de Dona Sol. Ela retomou seu curso diário e da América levavam de volta ao mito de referência M₁. Pois neste, o herói
mandou-o ir casar com sua irmã mais nova, Lua, que tinha a vantagem, disse enfrenta a mesma dificuldade quando se transforma em carniça sob os
ela, de ficar em casa de tempos em tempos. lagartos putrefeitos com que cobre o corpo e torna-se presa dos urubus, que
As Aranhas prestativas fizeram diversas recomendações ao herói, que lhe lhe devoram o traseiro. No caso presente, a mesma condição resulta de uma
permitiram superar as provas impostas pelos sogros. Como na outra versão, estadia no ventre de uma baleia, de que o herói sai igualmente putrefeito,
ele retornou à terra para buscar as mulheres e os filhos, que lhe contaram tendo perdido o invólucro carnal e ficado completamente careca. Trata-se
suas desgraças. A família toda subiu ao céu, exceto o pai, que o herói rene- aqui do pai, e não do filho, do perseguidor, e não de sua vítima. Mas duas
gou e condenou a virar coiote. observações se impõem a esse respeito. Ao alinharem os protagonistas em
Deixaremos de lado alguns aspectos desses mitos, embora a contragosto. sequência numa dinastia de cinco demiurgos, os Coos tornam-nos mais
A predileção de Dona Sol por estômagos humanos se insere num para- facilmente comutáveis. Em segundo lugar, M₇₉₃ se situa, como M₁, na inter-
digma compartilhado pelos Coos, os Salish, e principalmente os Nez Percé, secção de duas séries míticas, a do desaninhador de pássaros propriamente
que contam como Coiote decapitou ou castigou Lua, então canibal, que se dita e aquela que chamamos de transformação Putifar (supra, p. 462). Da

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primeira, ela empresta a disjunção vertical do filho para o céu e, da segunda, M 795 COOS: ORIGEM DO FOGO E DA ÁGUA
a disjunção horizontal na água, imposta ao pai. No caso de M₁, interpre-
tamos essa construção especial pela dupla função etiológica que se pode Antigamente, as pessoas viviam numa confusão total; não tinham fogo nem água.
atribuir a esse mito, que explica simultaneamente a origem da água celeste, Para aquecer a comida, os rapazes a colocavam sob as axilas e dançavam. Os velhos
na forma de tempestades e ventanias, e, se não a origem do fogo domés- sentavam nela. Decidiu-se ir ter com um grande chefe estrangeiro, que detinha o
tico, pelo menos a de sua restauração. Mito de origem da culinária, dizía- fogo e a água, e ganhá-los dele no jogo. Começou a partida e os visitantes foram aju-
mos então (cc: 72-73). E não é esse também o caso de M₇₉₃a-c, em que o dados por varejas que começaram a carcomer seu principal adversário. Ele logo ficou
demiurgo, levado de volta ao estado de natureza junto de uma baleia (cuja reduzido a um esqueleto descarnado, mas continuava jogando. Finalmente, uma
função semântica precisaremos mais adiante) e por isso reduzido à putrefa- cobra que ameaçava se enfiar em seu nariz o fez sair correndo. Os visitantes imedia-
ção, reconstitui por meio de uma espantosa anamnese o regime alimentar tamente se apoderaram do fogo e espalharam a água. Desde então, os humanos têm
da humanidade, bem como as técnicas de obtenção e cozimento dos princi- fogo e chove na terra (Frachtenberg 1913: 39-42; 1922: 422-29).
pais alimentos? Nesse sentido, não é por acaso que tal redescoberta começa
por bagas comestíveis cruas e passe em seguida para o repolho fedido; pois Como a redescoberta do alimento e da culinária em M₇₉₃a, a conquista do
essa araceia malcheirosa, ainda próxima da categoria do podre, é a primeira fogo e da água é aqui função do apodrecimento de um dos protagonistas, o
planta que floresce na primavera, antes mesmo de a neve ter começado a quarto demiurgo, antes de recuperar a arte da culinária, ou seu comparsa
derreter. Nessa época do ano, tratava-se muitas vezes do único alimento dis- (chefe de sua aldeia, diz M₇₉₃c), para que liberasse seus meios. Um apo-
ponível para evitar que os índios morressem de fome, e os Kathlamet con- drece dentro do corpo de uma baleia, em posição de conteúdo, e o outro
tam num de seus mitos (M₇₉₄, Gunther 1945: 22-23) que, antes de conhece- apodrece em posição de continente, quando as varejas entram dentro de
rem o salmão, os humanos quase que só comiam isso. Em M₇₉₃, a descoberta seu corpo. Essa notável inversão permite perceber uma outra: atacado por
dos salmões segue a do repolho fedido, de modo que o mito respeita uma varejas canibais, o dono do fogo e da água, meios da culinária, permanece
dupla progressão natural e cultural: (bagas, cruas) —Y (araceia, assada no impassível quando uma cobra tenta entrar em sua boca (Frachtenberg 1913:
forno) —Y (salmão, ferventado).7 43; 1922: 426), e só fica amedrontado quando ela tenta se enfiar em seu nariz.
A dupla etiologia que postulamos para M₁ se apresentava, em O cru e o Ao contrário, segundo M₇₉₃a,c, Dona Sol, dona de um fogo destruidor e
cozido, de forma hipotético-dedutiva. Os mitos coos confirmam-na empi- anti-culinário (pois que carboniza o crânio de seus hóspedes), fica enfure-
ricamente. Pois M₇₉₃c difere das demais versões ao situar a reconquista da cida quando, sem conseguir levar sua refeição canibal à boca, só consegue
culinária antes da sequência do desaninhador — ao passo que M₇₉₃a coloca — podemos supor, completando o mito — levá-la ao nariz. M₇₉₃a,c opõem
sua redescoberta no final — e inclui nessa reconquista o fogo, a água e os entre si formas hiperbólicas do fogo (mulher solar) e da água (pênis de
alimentos. Fazem o mesmo mitos dedicados mais especificamente à origem gelo); M₇₉₅ conjuga formas temperadas do fogo (fogo doméstico) e da água
dos primeiros elementos: (chuva celeste), mas esses mitos fazem parte do mesmo sistema.
Sendo assim, compreende-se porque as aranhas de M₇₉₃c são veneno-
sas: cúmplices do herói contra o sol, ali fogo destruidor e canibal, elas são
7 . É possível que o repolho fedido e as filicópsidas [para evitar a confusão que poderia comutáveis com a cobra de M₇₉₅, cúmplice dos animais contra o dono do
ser gerada pela palavra ‘feto’, recuperada na sequência] estejam em correlação e opo- fogo doméstico que se comportava de modo igualmente bárbaro ao negá-lo
sição. As receitas dos Kwakiutl associam constantemente as folhas do primeiro e fetos a todos. Resta a explicar, em M₇₉₃a, a transformação das aranhas com o crâ-
secos (Boas & Hunt 1921, I: passim). Uma versão tillamook da viagem para o outro
nio queimado em grandes garças, aves que vivem com os pés na água. Esse
lado do oceano (M₆₈₄a, Boas 1898a: 27-30) confronta o herói a mulheres que colhem
repolhos fedidos em vez de rizomas de fetos, como nas demais versões salish; e entre
pequeno problema pode ser resolvido de dois modos.
os próprios Tillamook (M₈₀₀, Boas 1898a: 136-37), quando o encontro acontece no céu. M₇₉₃ opera a conjunção do fogo solar com a água em forma de gelo,
Teríamos, portanto: [(eixo horizontal terra água) : (repolho fedido)] : : [(eixo vertical dando um resultado positivo, o surgimento de um sol temperado e bené-
terra céu) : (rizomas de feto)] : : [primavera : outono] (cf. supra, p. 431; infra, p. 515). fico. M₇₉₅, por sua vez, opera a conjunção da água celeste na forma de

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chuva com o fogo doméstico, dando também um resultado positivo, o O transformador obteve magicamente um arco, uma aljava e flechas. Teve fome,
surgimento da culinária. Nesse aspecto, os mitos coos mais diferem do e ajoelhou-se para comer os frutinhos vermelhos de kinikinnik (provavelmente Arc-
mito bororo M₁ do que se assemelham a ele; pois, nesse mito, a conjun- tostaphylos uva ursi, cf. M793A). Mas não conseguia ficar satisfeito, porque as bagas
ção da água celeste com o fogo doméstico acarreta um resultado nega- lhe saíam pelas axilas. Tapou os buracos com grama; é por isso que os humanos têm
tivo, a extinção de todas as fogueiras, exceto a da avó do herói, e, para os pelos debaixo dos braços.
demais habitantes da aldeia, a perda temporária da culinária. O sistema Em seguida, ele fez surgir o salmão, o esturjão e a baleia, fabricou instrumentos
transcontinental, se existe, exigiria portanto que os Bororo tivessem um de pesca e decretou que os salmões seriam grelhados. Deu nomes aos lugares, criou
mito relativo à moderação do calor solar. Pois bem, tal mito existe (M₁₂₀, os leões-marinhos e outros mamíferos pinípedes, as conchas e os bulbos comestíveis,
cc: 200); conta que dois irmãos, chamados Sol e Lua, derramaram a água, e colocou-os onde podem ser encontrados hoje em dia (Frachtenberg 1920: 77-91).
cujos donos eram as aves aquáticas, e em decorrência disso, o calor do
sol tornou-se intolerável. As aves começaram a se abanar para se refres- Em vez de apodrecer no ventre de uma baleia, como o demiurgo enganador
carem; o movimento de ar levantou os dois irmãos até o céu, e deixou-os dos mitos coos, seria mais correto dizer que o transformador alsea é nele
a uma distância razoável da terra. Em ambos os casos, portanto, as aves cozido. Assim que sai de seu envoltório, ele reconstitui a baleia, a título de
aquáticas têm um lugar marcado no sistema, e seria legítimo registrar essa primeiro alimento e depois, as bagas comidas cruas e o salmão, grelhado
regularidade sem buscar compreendê-la. e não aferventado, à diferença do mito coos. Qual o significado dessa pro-
Mas podemos avançar, abrindo o paradigma coos com a introdução de gressão? Sabemos, graças a testemunhos provenientes de grupos vizinhos
uma versão vizinha, proveniente dos Alsea que, como os Siuslaw limítrofes — os do baixo Umpqua, também membros da família linguística yakonan,
dos Coos, pertenciam à família linguística yakonan. próximos dos Coos e dos Alsea; e mais ao norte, os Hoh e os Quileute —, o
que representava o encalhe de uma baleia para esses povos marítimos que, à
M 796 ALSEA: O DESANINHADOR DE PÁSSAROS diferença dos Nootka, não caçavam esses grandes cetáceos.8 Conta um infor-
mante do Umpqua: “Às vezes, no inverno, uma baleia encalhava. As pessoas
O transformador Seúku (personagem distinto do enganador Coiote) partiu em via- acorriam de todos os lados e, por mais numerosos que fossem, todos conse-
gem com o filho. Eles pararam numa aldeia, na qual o rapaz tomou duas esposas, e guiam uma provisão de gordura. Ficavam felizes quando uma baleia enca-
cada uma delas teve um filho. Quando o filho se ausentava, Seúku assumia a aparên- lhava... Antigamente, era uma dádiva extraordinária” (Frachtenberg 1914: 83).
cia de um jovem e tentava seduzir as noras. Avisado por uma delas, o herói começou Os Hoh-Quileute vão além: “O cheiro de carne de baleia agrada aos deuses”
a levar o pai junto com ele em todos os seus deslocamentos. (Reagan 1935: 44). Dom da providência em período de escassez, a baleia faz
Uma das crianças quis um pássaro pousado num galho pequeno. O herói subiu par com o repolho fedido dos mitos coos, cujo malcheiro se opõe ao dela,
na árvore, que cresceu, levou-o ao céu e depois foi diminuindo, até desaparecer. com a diferença suplementar de que a primeira é o alimento mais rico de
No céu, o herói encontrou cinco Trovões que se dispuseram a ajudá-lo. Amarra- todos, e o segundo, o mais pobre. M₇₉₆ inclusive associa a baleia encalhada à
ram-no numa “pele” de baleia (sic) e baixaram-no na ponta de uma corda. Quando riqueza monetária (supra, p. 511) que entre os povos do Oregon consiste em
ele voltou para casa, os filhos se regalaram com o invólucro saboroso, e deram um conchas dentalia.
pedaço dele ao avô. Este apressou-se em retomar sua natureza de velho, mas o herói Essa primeira inversão, repolho fedido/baleia, precede uma outra. Nos
prendeu-o na pele e o colocou debaixo de pedras quentes. A pele da baleia murchou mitos coos, as axilas tornam o alimento cru digerível, já que é nelas que é
em volta do velho e se adaptou com exatidão aos contornos de seu corpo. Tudo foi cozido. No mito alsea, ao contrário, as axilas furadas deixam escapar o ali-
jogado no mar e o vento leste soprou para o largo a baleia, que todos viram soltar mento antes que atinja o estômago, e impedem, portanto, a digestão. Uma
jatos d’água. O transformador resolveu aproveitar esse meio de transporte para per- terceira inversão diz respeito ao salmão, pois um outro mito alsea (M₇₉₇,
correr o mundo e arrumá-lo. Primeiro foi para o sul, depois para o norte. Certo dia, Frachtenberg 1920: 91-101) decreta que os peixes deverão ser cortados ao
aportou e despachou a baleia. Disse a ela para vir encalhar na costa, uma vez por ano,
em algum lugar onde vivesse gente rica, para servir de alimento. 8 . Exceto, em pequena escala, pelos Quinault e os Quileute, à imitação dos Makah.

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meio e assados num espeto; e conclui: “É por isso que hoje em dia os sal- Como antídoto à fome, a baleia é melhor do que o repolho fedido; por con-
mões são preparados assim”. Ora, nos textos alsea, existe uma indicação seguinte, para que o sistema esteja em equilíbrio, é preciso que o aferventado
de que, como vários outros povos, eles viam uma afinidade entre o afer- seja superior ao assado, o que confirma uma ordem hierárquica já notada
ventado e o podre (omm: 399-4009). No mito já citado, cujos protagonistas entre os Chinook, a respeito de M₆₆₃ (supra, p. 309). Consequentemente, os
são os cinco Trovões, também presentes em M₇₉₆, eles são aprisionados por mitos coos, que partem de um ponto mais baixo na escala culinária e che-
canibais, que os põem na panela. O mais jovem sai ileso da água fervente e gam mais alto, constituem versões mais fortes do que a versão alsea.
trata de ressuscitar os irmãos, mandando-os abrir o “olho podre”. O voca- Ora, isso já podia ser deduzido do fato de a versão alsea ignorar comple-
bulário de Frachtenberg (1920: 299) confirma o sentido da palavra /pi’lqan/, tamente as aventuras celestes do herói. Em lugar de seus complicados entre-
empregada no texto. A recriação culinária de M₇₉₃ situa-se, portanto, entre veros com Dona Sol, seu casamento com Lua e as sucessivas vitórias nas
dois termos afins, o apodrecimento no ventre da baleia no início e o cozi- provas impostas pelos sogros, M₇₉₆ reduz sua estadia celeste a pouca coisa:
mento por fervura do salmão no final. A que é descrita por M₇₉₆ também se um encontro apenas, com os Trovões, que só querem saber de despachá-lo
situa entre dois termos afins, o assamento sobre pedras ardentes no início e de volta para a terra o mais depressa possível. Os Trovões acumulam, em
depois, o dos salmões no espeto. suas cinco pessoas, os papéis antitéticos que os mitos coos repartem entre
Ao mesmo tempo, o sistema dos alimentos bascula entre um mito e o animais prestativos e uma família cósmica hostil.
outro: Se postularmos que a versão alsea é a mais fraca de todas, ela pode servir
de ponto de partida para uma série, na qual as versões coos estão ordenadas
M₇₉₆: baleia (+) salmão assado (—) na sequência. Diríamos então que M₇₉₃a é mais forte do que M₇₉₆ e mais
fraca do que M₇₉₃b, que representaria, portanto, a mais forte das três versões.
Essa ordenação decorre de três tipos de considerações.
alimento cru (—) Em primeiro lugar, entre os animais prestativos, as garças, aves barulhen-
(axilas) tas ligadas à água, estão mais próximas dos trovões do que das aranhas de
cabeça queimada, estas vítimas de um fogo de origem solar, o que as coloca
alimento cru (+) mais em oposição do que em correlação com a tempestade.
A família cósmica de M₇₉₃a também é mais fraca do que a de M₇₉₃b:
Dona Sol, o termo mais marcado do sistema, não faz parte dela, e só o sogro
M₇₉₃: repolho fedido (—) salmão aferventado (+) o persegue. Em M₇₉₃b, ao contrário, Dona Sol e Dona Lua são irmãs e a mãe
delas hostiliza o herói, bem como sua filha mais velha, de que é um dublê no
interior da célula familiar.
Finalmente, M₇₉₃a enfatiza sobretudo a origem da menstruação, insti-
9 . Aos exemplos já mencionados, acrescentemos o dos índios francófonos Abenki: gada por Dona Lua, ou seja, uma forma relativamente curta de periodicidade
“Um ‘remédio escaldado’ é um produto vegetal fervido ou aferventado. Quando o biológica. M₇₉₃b, em compensação, nada diz acerca desse tema, e concentra
informante delcara que “as batatas foram plantadas cedo demais, foram escaldadas”, toda a sua atenção na moderação do calor solar, isto é, numa periodicidade
para os biólogos, isso significa que os tubérculos, mortos pela geada, apodreceram ou de nível astronômico (ver o quadro na página seguinte).
fermentaram. Para o informante, eles se comportam como tubérculos aferventados”
(Rousseau 1947: 148). Um ditado registrado por Seton (1911, cap. 32) no norte do
Canadá ressoa no mesmo sentido, ao afirmar, de um modo que não poderia ser mais
conforme ao que chamamos de triângulo culinário:
“Fried meat is dried meat,
Boiled meat is spoiled meat,
Roast meat is best meat.”

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( ( ( ( ( (
COOS ALSEA periodicidade periodicidade periodicidade
astronômica meteorológica biológica

macho —Y travesti —Y fêmea


M793b: M793a: M796:

Sol e Lua irmãs; mediação mediação mediação


sogros hostis espacial espaço-temporal temporal

Sol, não-irmão
de duas Luas;
só o sogro hostil Fica claro que, também entre os Coos, o aspecto macho está ligado à perio-
dicidade astronômica, já que o herói a institui ao violentar Dona Sol, e o
Trovões, prestativos aspecto fêmea, à periodicidade biológica, concebida na forma da menstrua-
ção feminina, presidida por Dona Lua. Mas, e o travesti?
Aves aquáticas,
prestativas !

Aranhas Os Coos, os Alsea e seus vizinhos, Tillamook e Takelma, possuem um


venenosas de mito — que aliás está ligado a outros, estudados em A origem dos modos
cabeça queimada, à mesa (M₄₈₂-M₄₈₆) por um caminho que não iremos explorar — no qual
prestativas o travesti desempenha um papel importante. As versões coos (M₇₉₈a, b, c;
Frachtenberg 1913: 149-57; Saint Clair & Frachtenberg 1909: 32-34; Jacobs
Periodicidade Periodicidade biológica Periodicidade 1940: 235-38) contam que um carpinteiro fabricante de canoas certo dia foi
astronômica (menstruação) meteorológica
decapitado por um desconhecido. O corpo foi encontrado por seu irmão
mais novo, que descobriu de onde viera a agressão (porque o cão da vítima
latia olhando para o céu). Ele atirou várias flechas uma depois da outra,
No tocante à periodicidade meteorológica, note-se que um mito alsea já que foram formando uma escada, pela qual ele subiu até o céu. Lá em cima,
mencionado explica como os cinco irmãos Trovões, que antes viviam na encontrou a mulher do assassino coletando rizomas de feto e submeteu-a a
terra, dela foram expulsos. Sem saberem para onde ir, eles se refugiaram no um interrogatório minucioso, para saber sua rotina e seus hábitos. Depois
céu e é por isso, explica o mito, que atualmente se os ouve trovejar lá em disso matou-a, esfolou-a, vestiu-lhe a pele e se fez passar por ela. Apesar das
cima (M₇₉₇, Frachtenberg 1920: 109). Essa interpretação restitui uma arma- informações fornecidas pela vítima, ele quase se traiu várias vezes, notada-
ção que encontramos entre os Salish (supra, p. 430, 448). Existem, contudo, mente quando deu rizomas a um velho casal que a mulher sempre deixava
diferenças, sobre as quais convém nos debruçarmos. Ao mesmo tempo em de fora da distribuição (cf. M₆₅₆a, supra, p. 296). Quando anoiteceu, ele deca-
que a periodicidade passa, de longa entre os Salish, para curta entre os Coos pitou o assassino, pegou a cabeça do irmão e fugiu. Não conseguiram ir atrás
(duração da vida humana —Y lapso de um mês lunar entre as menstruações), dele, porque ele tinha furado todas as canoas, e ele desceu de volta à terra
ela assume, no conjunto coos-alsea, o papel de dobradiça entre a periodici- pela escada de flechas. Quando chegou à aldeia, todos os moradores se reu-
dade astronômica e a periodicidade meteorológica que os Salish atribuem niram, puseram o cadáver do carpinteiro de pé, apoiado num pinheirinho e
à periodicidade meteorológica para articular as duas outras. Consolidando colaram a cabeça no lugar. O homem ressuscitou. O povo celeste não podia
os dois diagramas das páginas 430 e 448, podemos chegar, para os Salish, no descer à terra para se vingar. As pessoas de baixo viraram pica-paus, que têm
seguinte esquema: a cabeça vermelha por causa do sangue que escorreu do pescoço cortado.

554 | Sétima parte: A aurora dos mitos O mito único | 555


A versão mais recente atribui ao carpinteiro quatro irmãos e dois filhos, e apenas suas roupas. Mas eles cometem vários deslizes e “um homem cha-
são estes últimos que ela encarrega de ir recuperar a cabeça cortada. Todas mado Qä’tcla”, a cuja identidade voltaremos (infra, p. 519) suspeita de sua
essas sete pessoas são pequenas aves de rapina qu, como explica uma das impostura e quase os delata. No caminho de volta, os heróis ressuscitam suas
versões, da qual falaremos, em seguida, matam as outras aves cortando-lhes duas vítimas e se casam com elas. Prendem a cabeça do pai com ataduras de
o pescoço. Como são dois, os irmãos têm de encontrar no céu duas mulheres, entrecasca, mas ela permanece vermelha, devido ao sangue derramado, e o
com quem resolvem se casar e cujas roupas vestem. Para a travessia do rio homem se transforma em pica-pau.
que os separa da aldeia dos assassinos, essa versão faz intervir um passador, Os Takelma, que vivem no interior, têm um mito (M₈₀₁; Sapir 1909b: 155-63)
papel que a gesta alsea do transformador Seúku (supra, p. 510) confia à raia que pode ser reunido aos precedentes por intermédio de várias transformações:
ou a algum outro peixe chato /hulō’ hulō/, mas sempre para recuperar uma
cabeça cortada (Frachtenberg 1920: 71-73). Quando os irmãos descem de 1) (eixo terra/céu) —Y (eixo terra/água);
volta à terra, percebem que a cabeça do pai, que tinha sido pendurada pelo 2) (fabricante de canoas/caçador terrestre) —Y (pescador);
povo celeste acima de uma fogueira, para defumá-la, estava inutilizável. No 3) (esposa-cão) —Y (esposa espírito das águas);
lugar dela, colam a cabeça do assassino, que era menor. É por essa razão que 4) (cabeça raptada) —Y (coração raptado);
as aves de rapina têm uma cabeça bem pequena. 5) (mulheres-cobra) —Y (mulheres-pássaro);
Na articulação entre M₇₉₈a, b, que se referem à origem dos pica-paus, e 6) (rizomas de feto) —Y (resina de árvore);
M₇₉₈c, que os substitui por pequenas aves de rapina, estão as versões alsea 7) (pica-paus de cabeça vermelha ou pescoço branco/aves de rapina de cabeça
(M₇₉₉a, b; Frachtenberg 1920: 125-49). De modo mais lógico, elas atribuem pequena) —Y (lontras de pelagem negra).
aos celestes cortadores de cabeça a segunda identidade e, aos terrenos, a pri-
meira (pica-pau de pescoço branco numa das versões, por causa da argila Essa versão takelma parece representar a forma limite do sistema; iremos
branca que serviu de cola). Mas, ao contrário do que ocorre no conjunto deixá-la de lado. Em compensação, convém lembrar aqui um mito tsimshian,
coos-alsea M₇₉₃ e M₇₉₆, aqui é a versão alsea que é a mais forte; ela atribui ao resumido em O cru e o cozido (M₁₇₀, pp. 307-08) porque sua introdução ex
canoeiro uma esposa-cão que lhe dera dois filhos de forma humana, cujas abrupto entre mitos sul-americanos podia parecer intempestiva. Contudo,
aventuras no céu são bastante complexas. Eles encontram um primeiro basta relê-lo para convencer-se de que ele faz parte do grupo daqueles de
grupo de informantes e os transformam em moscas (daquelas que conti- que estamos falando. Quando o evocamos num estágio precoce da investi-
nuam se mexendo depois de serem cortadas, cf. supra, p. 498) e, depois, as gação, não fazíamos, portanto, senão medir a extensão de um vasto percurso
esposas do assassino, coletoras de rizomas de feto que são mulheres-cobra cujo contorno, após a presente discussão, logo poderemos acabar de definir
(cf. supra, p. 432). Matam-nas e vestem suas peles; é por isso que desde então e delinear (infra, p. 520).
as cobras trocam de pele. Como todos os habitantes, e não apenas o casal de Se desconsiderarmos a versão tillamook que, dentre todas as da costa, é
velhos, recusam os fetos oferecidos pelos heróis disfarçados, eles os trans- incontestavelmente a mais fraca, veremos que as outras apresentam o herói
formam em pulgas (M₇₉₉a). Ainda segundo M₇₉₉a, foram os dois heróis que como um fabricante de canoas. Esse carpinteiro já é nosso velho conhecido.
transformaram o pai em pica-pau, e eles próprios viraram cães. Nós o encontramos primeiramente num mito snohomish sobre a conquista
Uma outra versão provém dos Tillamook, grupo salish isolado do grosso do fogo (M₇₄₂b; supra, p. 416), no qual o povo celeste não chega a cortar-lhe
dessa família linguística, instalado na costa, na vizinhança imediata dos a cabeça, mas o rapta e mantém prisioneiro, porque ele trabalha dia e noite
Alsea (M₈₀₀; Boas 1898a: 136-38). Como na segunda versão alsea, só um e incomoda os habitantes do mundo superior com seu barulho. Na versão
dos filhos do herói tem como mãe uma cadela e tem uma aparência física alsea, ao contrário, são os habitantes do céu que fazem um barulho terrível
meio-cão meio-humano. O pai é, aqui também, caçador. Interrogadas pelos em torno da cabeça cortada e os dois heróis chegam até eles guiados pelo
dois irmãos, as mulheres que eles encontram no céu lhes dizem que nunca ruído. Por outro lado, se o carpinteiro snohomish trabalha até de noite, seu
dão rizomas de feto a grandes larvas (grubs em inglês) que moram numa homólogo alsea não segue o seu exemplo. O texto do mito precisa que ele
das casas da aldeia. Os heróis matam as mulheres mas não vestem suas peles, volta para casa todas as noites, e retorna ao trabalho ao amanhecer. É de dia

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que ele ouve, sempre na mesma hora, um ruído sinistro que anuncia a apro- Passagem que se mantém aberta entre o mundo dos vivos e o dos mortos,
ximação de seu assassino. A versão M₇₉₉a menciona esse horário diversas moscas que continuam vivas mesmo cortadas ao meio, cobras ressuscitadas
vezes na mesma página (Frachtenberg 1920: 125). Na verdade, insiste tanto pela troca de pele anual, todos esses temas desmentem a vida breve como
nisso que nos sentimos autorizados a aplicar a esse caso particular um prin- expressão da periodicidade biológica, a mais longa que é dado ao homem
cípio básico da análise estrutural: quando um mito se dá ao trabalho de real- conhecer. O pensamento dos Alsea caminha, portanto, da denegação dessa
çar um detalhe aparentemente insignificante, é porque busca assim opor-se periodicidade biológica para a denegação, não menos ilusória do que a outra,
a um outro mito, localizável alhures e geralmente não muito longe, que pos- da distância instransponível que existe entre o céu e a terra. Em vez de chegar a
sui razões precisas para dizer o contrário sobre o mesmo assunto. uma alternância temporal verdadeira, seu mito desemboca numa ligação espa-
Como concluía mesmo o mito snohomish? De um lado, com a instituição cial falsa; a escada de flechas fica no lugar por tempo o bastante para que os
da periodicidade cotidiana (ou porque a raia de outros mitos salish, comu- heróis possam descer de volta do céu e são eles mesmos que decidem cortá-la,
tável com o carpinteiro, representa uma constelação permanente; ou por- para proteger sua retaguarda; no entanto, “existe ainda uma montanha nesse
que o carpinteiro se opõe à raia como uma constelação permanente a uma lugar, cujo cume quase toca no céu” (Frachtenberg 1920: 147). Ao recolarem
constelação sazonal, supra, p. 492) e, do outro, com a obtenção do fogo de num corpo que permaneceu terrestre uma cabeça celeste por natureza (M₇₉₈c)
cozinha, o único testemunho que subsiste na terra de uma conjunção com ou por destino (outras versões), os heróis afirmam simbolicamente essa ade-
o céu, ocorrência única e que nunca mais voltará a se produzir. Só se pode rência virtual entre os dois mundos, embora ela na verdade seja tão utópica
dizer, com efeito, que desde o rompimento da escada de flechas que permitia quanto a ressurreição dos mortos, cuja possibilidade os mitos só evocam para
a comunicação entre os dois mundos o fogo de cozinha está em baixo como excluí-la. Por terem-na conseguido temporariamente, os protagonistas, em
os luminares celestes estão no alto. A periodicidade cotidiana, marcada pela contrapartida, perdem a natureza humana e se transformam em pica-paus ou
alternância regular entre dia e noite, que o carpinteiro promete passar a res- em pequenas aves de rapina, aves que vivem entre o céu e a terra, ou então em
peitar, atesta, na ordem temporal e sob forma extremamente curta, que uma cães, animais domésticos cujo lugar estaria entre a natureza e a cultura, assim
oposição espacial entre os polos mais afastados que o homem possa conce- como o fogo de cozinha (obtido pelos cães, segundo os Wyiot, cf. M₅₅₉, supra,
ber — céu e terra — foi, por um breve instante, superada. Em M₇₂₄b e nos p. 138) resulta da “domesticação” do fogo celeste pelos terráqueos.
demais mitos do grupo, por conseguinte, o pensamento dos Salish vai da Embora ele seja muito rico em ensinamentos, não seguiremos aqui um
descontinuidade espacial para a continuidade temporal. percurso que liga esses mitos sobre um humano casado com uma cadela
Ora, basta passar os olhos pelos mitos alsea sobre o carpinteiro decapi- ao vasto conjunto atestado na mesma região (supra, p. 433) consagrado à
tado para ver que eles seguem um procedimento exatamente inverso. Entre humana que tinha um cão como amante. Esta última união — que trans-
os Alsea, a raia também substitui o carpinteiro numa série simétrica, mas em forma o incesto entre irmão e irmã — é realmente conjuntiva, pois gera
vez de a raia ser de origem terrestre e permanecer afastada no céu, na forma filhos que primeiro tem o aspecto de cães e logo se transformam em huma-
de uma constelação, ela desempenha o papel de passador no rio que separa nos. Aqui, acontece o contrário, as crianças, inicialmente humanas, se trans-
os dois mundos, ou seja, ela garante a transição entre um mundo e o outro, formam em cães no final, mas fica evidente que sua disjunção guarda pro-
nos dois sentidos. Do mesmo modo, segundo M₇₉₉b, as moscas cortadas ao porções modestas, pois que o afastamento entre os cães e os pica-paus (com
meio ficam vivas, e as cobras escapam da fatalidade da vida breve trocando que conclui M₇₉₉a) é muito menor do que aquele da série M₇₉₃, entre um
de pele todos os anos. Embora a raia não apareça em pessoa em M₇₉₉a, b, os fogo celeste, feminino e destruidor, e o pênis de gelo — estado da água no
mitos se referem, a contrario, a esse operador binário, que nos mitos quileute polo oposto do mesmo eixo —, e contudo é superado. A ligação entre os
(M₇₈₂a, b) é uma criatura terrestre ou obtida por um terráqueo, que um habi- dois pares de termos fica bem clara graças à versão tillamook M₈₀₀, em que
tante do céu macula com água suja ou urina. Os mitos coos e alsea, por sua o único personagem nomeado se chama Qä’tcla, ‘Gelo”, como o demiurgo
vez, invertem os papéis, contando que o povo celeste no começo achou que enganador que, na cosmologia desses mesmos índios, presidiu à primeira
estava sendo coberto de urina pelo visitante terrestre, quando escorreu sobre idade mítica e foi em seguida substituído por Vento-do-Sul, que corres-
eles o sangue do homem que acabava de ser decapitado pela suposta esposa. ponde ao Coiote dos demais Salish (E.D. Jacobs 1959, passim).

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Como na série do desaninhador, a do carpinteiro coos-alsea põe em cena Ao iniciarmos o estudo dos mitos alsea, havíamos notado que os mitos relati-
um homem maduro e seu irmão caçula, ou então seu ou seus filhos. Num vos ao desaninhador eram mais fracos do que as versões coos, no sentido de
caso, o filho é afastado para o céu pela malevolência do pai e, no outro, a que o herói neles não encontra, nem violenta nem desposa nenhuma criatura
benevolência do irmão ou dos filhos (um deles desempenha, aliás, um papel celeste. A sequência correspondente das versões coos compõe um fato novo,
preponderante) traz de volta à terra um irmão mais velho ou pai que o céu cuja importância convém sublinhar. Em A origem dos modos à mesa, dedi-
tinha afastado dos seus. Fica ainda mais evidente que se trata do mesmo camo-nos à demonstração (era esse, na verdade, um dos objetivos centrais
esquema quando se considera que, na série coos-alsea do desaninhador, a do livro) de que os mitos sobre as esposas dos astros transformavam os do
transformação de excrementos sanguinolentos de pica-pau constitui o meio da desaninhador e que, juntos, constituíam um único mito (cf. omm, pp. 250-51).
disjunção, e, na série do carpinteiro, a transformação em pica-pau, por efeito Pois bem, o que então obtivemos dedutivamente é atestado experimental-
do sangue escorrendo da cabeça cortada, comanda e determina a conjunção. mente pelos mitos coos: o desaninhador de pássaros sobe ao céu, une-se a
O texto dos mitos é bem preciso a esse respeito, pois o mesmo pinheirinho, uma Dona Sol canibal e depois a uma Dona Lua favorável aos humanos. Ele
num caso coberto de excrementos sanguinolentos, que permite que o pica- cumpre, assim, uma dupla função, simétrica àquelas que os mitos sobre as
pau apareça e ao crescer provoca a disjunção do herói, no outro, justamente esposas dos astros repartem entre duas heroínas terrestres, uma que se casa
porque é do mesmo tamanho que o corpo (M₇₉₈b; Saint-Clair: 34), fornece com o Sol canibal e a outra, com a Lua favorável aos humanos. Graças a
a ele um suporte adequado para mantê-lo de pé e permitir que a cabeça seja seus sogros benevolentes, esta última heroína será educada durante sua esta-
ajustada a ele. dia no céu. Nos mitos coos do desaninhador, ocorre o inverso: apesar de os
Nessa região da América do Norte, por conseguinte, observa-se um fenô- sogros que o herói terrestre consegue no céu darem mostras de extrema má
meno sobre o qual insistimos longamente em O cru e o cozido, em relação vontade em relação a ele, sua estadia terá como resultado evidente o fato de
à América do Sul (cc: 155-202). Em ambos os casos, uma transformação que Dona Sol — em vez da esposa terrestre de Seu Lua — ficará educada.
simples permite passar do ciclo do desaninhador, em que o fogo de cozi- Diante disso, não se deve concluir que os Coos ingoravam o mito das
nha interposto coloca o sol a uma distância razoável da terra, para um outro esposas dos astros. Mas é consistente com nossa interpretação que as versões
ciclo, relativo à vida breve.10 Na América do Sul, o primeiro ciclo opera de colhidas entre eles sejam muito curtas (M₈₀₂a,b,c; Frachtemberg 1XXX: 51-53;
baixo para cima, já que é preciso, para obter o fogo, que o herói primeiro 3XXX: 38-41; Jacobs 6XXX: 169-70); na verdade, não passam de pequenos
se eleve; o segundo ciclo, opera, ao contrário, de cima para baixo, já que a contos edificantes sobre moças desmioladas que ficavam absortas olhando
introdução das plantas cultivadas e da vida breve é função da descida de para as estrelas, das quais uma acaba aprendendo, do pior jeito, que as apa-
uma estrela à terra, para casar-se com um mortal. Os mitos da América do rências enganam. Isso confirma que a mensagem mítica mais carregada de
Norte que acabamos de considerar respeitam o mesmo esquema: num caso, sentido está alhures.
o herói leva sua família terrestre para o céu e no outro, uma das versões coos Essa união, agora real e não mais puramente hipotética, entre mitos ini-
(M₇₉₈c) e a versão tillamook afirmam que os heróis trouxeram para a terra cialmente encontrados separados e cuja síntese se realiza numa região dimi-
as mulheres com quem tinham se casado no céu. nuta da América do Norte, pode ser observada ainda com maior clareza
entre grupos costeiros situados ao norte do estuário do Columbia, perto dos
! Salish do estreito de Puget, pertencentes às famílias Salish ou Chemakum.
O corpus mitológico de que dispomos para os Quinault, que são Salish
marítimos, reduz-se a tão pouco que devemos ser prudentes a seu respeito.
10 . Inclusive com um eco significativo, entre os Coos, do esquema ouvir/não ouvir ou
É no mínimo digno de nota que eles pareçam inverter as posições relativas
ver/não ver que os mitos das duas Américas utilizam para evocar esse motivo. “Vou
fazer ressoar o ar dez vezes seguidas — diz aos ancestrais o demiurgo enganador — e,
atribuídas pelos Coos ao ciclo das esposas dos astros, de um lado, e tam-
durante esse tempo, vocês devem ficar de olhos fechados, se não serão privados de sa- bém ao ciclo que acabamos de identificar como seu simétrico, dedicado
ber e de sabedoria.” Os povos são desiguais quanto a isso porque uns abriram os olhos ao casamento de um herói terrestre com uma habitante do céu. Embora
antes dos outros durante as badaladas do demiurgo (Jacobs 1940: 225-26). essa fórmula simétrica se verifique entre os Quinault, ocupa uma posição

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secundária em relação à que esses indios atribuem, preponderantemente, às uma série de intermediários, repertoriados em O cru e o cozido (M₁₇₁-M₁₇₅,
esposas dos astros. Além disso, essa forma fraca é alterada pelo fato de o M₁₇₈) e neste volume (M₆₄₃a,b, M₆₅₁b, supra, p. 264, 286). Pois, quer se trate
sogro malevolente ser o Trovão, termo menos afastado da terra do que o Sol, de habitantes do céu irritados com o ruído durante a noite (período em que
como notamos ao ordenarmos as versões coos e alsea (supra, p. 513). No falta luz) como no mito tsimshian e nos mitos relativos ao carpinteiro ou,
começo do mito quinault (M₈₀3, Farrand 1XXX: 113-14), o herói já se encontra ao contrário, como nos mitos humptulips (M₆₅₁b) e quinault (M₈₀₃), desses
no céu e casado. Depois de passar por várias provas impostas pelo sogro, é mesmos habitantes do céu cujo ruído próprio (o do trovão) requer o raio
despachado por ele para o mundo subterrâneo (disjunção vertical do herói, luminoso para se efetivar, é sempre, afinal, o mesmo problema de arbitra-
portanto, de cima para baixo, como consequência de seu casamento, em vez gem entre fogo celeste e barulho que se coloca, e cuja solução permite, tanto
de ser causa acidental deste e realizar-se de baixo para cima), com a missão na América do Norte como na América do Sul, introduzir uma ordem que, a
de conquistar o raio que, naquele tempo, ainda não acompanhava as tem- depender do nível em que os mitos se situam, se apresenta como cosmoló-
pestades. O herói concorda em tentar, e isso basta para que os dois homens gica, zoológica ou cultural.
se reconciliem, de modo que os Trovões o auxiliam, provocando uma chuva Já observamos que, dentre todas as versões relativas ao casamento de um
diluviana que apaga as tochas de seus perseguidores. O raio, conquistado humano com uma mulher celeste, a dos Quinault é a mais fraca. Em com-
e levado ao céu, permitirá ao Trovão de produzi-lo à vontade e, além disso, pensação, a versão deles do mito das esposas dos astros é particularmente
de repartir o excedente de luz de que dispõe entre os quadrúpedes e pássa- forte, já que faz do rapto das heroínas para o céu a causa acidental da guerra
ros — especialmente os pica-paus — que desde então possuem o pelo ou a pela conquista do fogo:
plumagem rubros, total ou parcialmente.
Ao mesmo tempo em que transforma um fogo celeste que aquece em M 804 QUINAULT: AS ESPOSAS DOS ASTROS
fogo sibterrâneo que ilumina, esse mito introduz uma relação de incompati-
bilidade entre o segundo fogo e a chuva, invertendo a compatibilidade pos- Surpreendidas pelo anoitecer enquanto coletavam raízes comestíveis nos campos, as
tulada pelos mitos coos entre a chuva e o fogo doméstico. O mito quinault duas filhas de Corvo acamparam. Deitaram-se lado a lado e contemplaram as estrelas.
transfere tal compatibilidade para o raio, forma de fogo celeste efetivamente A caçula desejou ser transportada para perto de uma estrela grande e brilhante, a mais
compatível com a água celeste, como atesta a experiência. Já encontramos velha preferiu uma pequena. Porém, uma vez no céu, a mais nova percebeu que seu
e discutimos essa transformação, típica dos mitos provenientes das tribos marido era um velho, ao passo que o da irmã era jovem e forte. Pior, o velho tinha olhos
Sahaptin e de certos grupos Salish da costa (supra, p. 286). remelentos e usava os cabelos da esposa para limpar o pus. A infeliz suplicou a uma
Por outro lado, como há de ter sido notado, essa forma limite da histó- aranha que a fizesse descer de volta à terra. A velha concordou, contanto que a corda
ria do desaninhador conduz à origem da cor dos pássaros, conotada pela que tecia fosse longa o suficiente. Mas a moça ficou impaciente e quis descer imedia-
plumagem parcialmente rubra do Pica-pau, como num mito sanpoil já dis- tamente. Na ponta da corda desenrolada, ela ficou pendurada no ar. Após vários dias
cutido (M₇₂₉; supra, p. 418), mas com uma dupla diferença: as penas verme- nessa posição desconfortável, ela morreu e suas roupas, depois seu esqueleto, foram
lhas resultam de adição num caso e de subtração no outro, e se foi um exce- se desfazendo e caindo aos pedaços diante de sua casa natal. O pai os reconheceu e
dente de fogo celeste que permitiu a primeira, a causa da segunda foi um convocou todos os quadrúpedes, pássaros e peixes a irem vingar sua filha no céu.
excesso de fogo terrestre. Trata-se do mesmo esquema, mas aqui, a origem Um passarinho não conseguiu abaixar completamente a abóbada celeste (supra,
da cor dos pássaros está ligada a um evento fundante na ordem meterológica, p. 444). Para chegar até lá, foi então preciso prender uma corrente de flechas. Ape-
a instituição da estação das tempestades. O que significa que, por meio de nas o Cambaxirra, “o menor dos passarinhos”, conseguiu subir, guiado pelo Caramujo,
mitos agora vizinhos entre si, verificamos a legitimidade do percurso cujo que então tinha uma visão aguçada. Por isso a Águia-pescadora (“fish hawk”: Pan-
traçado havíamos delineado, em O cru e o cozido, por meio de mitos muito dion haliaëtus) lhe pediu os olhos emprestados e, achando-os bons, não os devolveu.
afastados. Já notamos, à página 517, que mitos recém introduzidos levavam Desde então, a Águia possui perfeita visão, ao passo que o Caramujo é cego.
ao mito tsimshian M₁7₀. Agora, é o mito parintintim M₁79 que reencontra- Neste ponto se encontram o combate entre a Raia e o Corvo e, depois, a subida
mos (cf. cc, pp. 308-24), que permite conectar M₈₀₃ a M₁, M₇-M₁₂ através de ao céu, onde reinava um frio glacial. Os animais queriam aquecer-se e encarregaram

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o Melro, depois o Cão, e então o Lince, de roubar um tição do povo celeste, mas todos Quileute, de que infelizmente não dispomos. De modo que iremos nos
fracassaram por uma razão ou outra (acerca dessa série de incidentes, cf. supra, limitar a algumas considerações gerais. Desde o início destas Mitológicas,
p. 438 e 447). O Castor foi bem sucedido e trouxe fogo, mas faltava ainda libertar a conectamos muitos temas. Primeiro, o do desaninhador com a origem do
mais velha das moças, ainda prisioneira no céu. fogo; depois, a origem do fogo com a da carne e do tabaco; todas essas ori-
Os ratos e camundongos roeram as cordas dos arcos do povo celeste, os cordões gens em conjunto com a das plantas cultivadas e a da vida breve; finalmente,
de suas roupas, todas as ligaduras e amarrações que encontraram. No momento do concluindo o primeiro volume, a criação de uma ordem cultural eviden-
ataque, os inimigos não conseguiram atirar suas flechas e suas mulheres não con- ciada na culinária e as demais artes da civilização, correlativa com a criação
seguiram se vestir para fugir. Juntaram forças como puderam para contra-atacar os de uma ordem natural evidenciada pelas diferenças específicas entre os ani-
terrenos, que debandaram. Alguns deles desceram pela escada com a mulher que mais e, principalmente, pela cor dos pássaros.
tinham vindo libertar. Mas a escada rompeu-se e os últimos ficaram pendurados no Pois bem, acabamos de encontrar lado a lado, concentrados numa região
céu, onde se tornaram estrelas (Farrand 1xxx: 107-09). restrita, mitos que realizam diretamente tais conexões e que, além disso,
estão todos conectados entre si. Alguns deles associam a história do desa-
Os Quileute são Chemakum da costa, vizinhos dos Quinault, e suas versões ninhador à origem dos alimentos e da culinária, outros associam a guerra
(M₇₈₂a-c; Farrand & Mayer XXXX: 264-66; Andrade XXXX: 71-83; Reagan entre terrenos e celestes (que permitiu obter o fogo de cozinha) à origem da
XXXX: 54-56) diferem pouco da que acabamos de resumir. Companheiras em vida breve para os humanos e à das diferenças de espécie entre os animais.
vez de irmãs, as heroínas de M₇₈₂a se casam com estrelas, uma vermelha, que Outros demonstram concretamente as relações de simetria que havíamos
é um velho, e a outra azul, que é um belo rapaz. As heroínas de M₇₈₂b, por inferido entre a história do desaninhador e a das esposas dos astros. E final-
sua vez, são irmãs e acampam com a mãe; a mais nova se apaixona por uma mente, os mitos que acabamos de apresentar reunem numa mesma narrativa
estrelinha que se revela ser um velho; a mais velha prefere uma estrela grande, a história das esposas dos astros e a da guerra dos terrenos contra os celestes,
e seu marido é um belo rapaz. Em M₇₈₂a, os homens-estrelas ficam comovi- de onde proveio a conquista do fogo.
dos com as lágrimas da moça mal casada e eles próprios providenciam para O que acaba de ser dito torna ainda mais significativo o fato de também
que suas esposas desçam de volta à terra. O que não impede os terrenos de encontrarmos nessa região da América setentrional um dos primeiros temas
declara-lhes guerra. O primeiro pássaro encarregado de roubar o fogo celeste sobre os quais nos debruçamos, e que haveria de infletir de modo deci-
e que tem o peito vermelho é um melro (“robin”) segundo M₇₈₂c (mas é um sivo a nossa argumentação. Pois os Stseelis ou Chehalis, que são Salish do
pássaro das neves segundo M₇₈₂b); ficou exposto ao calor por tempo demais grupo cowichan habitantes do baixo Fraser, contam (M₈₀₅, Hill & Tout 2XXX:
e sofreu queimaduras que deixaram-lhe manchas no peito. Essa indicação, já 345-46) que Vison quis visitar seu pai, o Sol. Sua avó, que o tinha criado desde
encotrada entre os Coos, sugere antes o Tordo solitário do que o Melro ame- o nascimento, tentou dissuadi-lo, mas em vão. O jovem herói partiu e chegou
ricano ou o Junco. M₇₈₂a especifica, aliás, que esse pássaro de peito vermelho, à casa do pai, que o recebeu bem e instruiu-o a jamais alimentar a fogueira
chamado / tetod/ , não é um melro (robin) (supra, p. 439). doméstica com lenha que estalasse ou lançasse faíscas. Vison estranhava o
Próxima da versão quinault, M₇₈₂b narra a evasão de uma das mulheres fato de a esposa do pai evitar olhar para ele e, para chamar a atenção dela, fez
auxiliada pela aranha. Nela também a mulher morre na ponta da corda, mas o contrário do que lhe tinha sido recomendado. Pois bem, a mulher era o tro-
seu cadáver se transforma imediatamente em estrela. Intimado a devolver vão e o raio juntos; quando o fogo crepitou, surpresa pelo barulho incomum,
a liberdade à esposa, o marido da mais velha recusa e é surrado pelo sogro: ela se virou de repente. Seu olhar fulgurante atingiu Vison, cujo corpo foi
“Desse modo o chefe vindo da terra matou o chefe que morava no céu”. queimado, encolheu e ficou reduzido à pele calcinada sobre os ossos.
Seguiu-se um combate generalizado, que os terrenos venceram. Sua escada Ao retornar naquela noite, Sol encontrou o filho morto e tratou logo de
de flechas quebrou-se antes de todos terem descido de volta: é daí que se ori- ressuscitá-lo. Para impedi-lo de cometer mais asneiras, mandou-o iluminar
ginam as estrelas, em que se transformaram os que tinham ficado lá em cima. o mundo em seu lugar. Nos três primeiros dias, Vison desempenhou sua
Para estabelecer o micro-sistema dessas variantes, seriam necessários tarefa corretamente, mas no quarto dia, ficou com vontade de descansar
mais documentos sobre a mitologia e a etnografia dos Quinault e dos e, apesar da proibição do pai, subiu na armação do telhado para se deitar.

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Lá encontrou penduradas as partes sexuais de uma mulher e as usou para deixou-se humanizar, estabeleceu-se a boa distância da terra e os huma-
copular. Quando desceu de volta, a madrasta estava morta. Sol ressuscitou-a nos, que antes expunham o alimento cru ao seu calor tiveram de e pude-
e deu no filho uma surra tão forte que ele morreu. Em seguida, ele o ressus- ram passar a cozê-lo numa fogueira (cf. Teit 5XXX: 229 n.3). Definitivamente,
citou, mas apenas para mandá-lo embora imediatamente. Vison voltou para são esses mitos que provam que tínhamos razão ao confiarmos nos Kayapó
a casa da avó. quando afirmam, em concordância com os Ofaié mais ao sul, que a esposa
A milhares de quilômetros do lugar onde o encontramos pela primeira do jaguar era humana (cc, pp. 75, 90-91). Sem dúvida, nos tempos míticos os
vez, num mito jê (M₁₀, cc, pp. 79, 156-57), encontramos, portanto, o mesmo humanos não se distinguiam dos animais, mas entre esses seres indiferencia-
tema: uma madrasta que não suporta que o filho real ou adotivo do marido dos que dariam origem a uns e outros, certas relações qualitativas preexis-
faça barulho. A confluência parecerá menos surpreendente se lembrarmos tiam a especificidades ainda em estado virtual.
que um tal fechamento transcontinental já ocorreu duas vezes. Da última vez, Não bastaria dizer que os mitos norte-americanos que acabamos de citar
graças a um mito iroques (M₇₇₂a, supra, p. 468) e, antes, graças a um mito transformam o motivo do desaninhador no das esposas dos astros. Eles ope-
menomini (M₄₉₅a, omm, pp. 334-36, 351-53) em que o Sol leva para o céu ram a real união entre os dois motivos, pois o herói maltratado pelos seus,
um índio que salvara, mas a irmã do astro não suporta seu modo de comer. reduzido a uma miséria que o bane de sua aldeia natal, sofre uma disjunção
Essa mulher, irmã ou esposa do Sol — em outras palavras, o dono do fogo cujas causas são morais e não físicas, mas que não difere da que afeta o desa-
celeste — também possui um aspecto cósmico: ora lua em seu aspecto hostil, ninhador. Numa das versões chehalis da Columbia britânica, o herói inclu-
ora trovão e raio reunidos. Sem dúvida alguma, no meio do Brasil central, a sive encontra no céu criaturas cegas e prestativas que o texto inicialmente
esposa irritável do jaguar a ecoa fielmente. Com efeito, neste caso, o jaguar é identifica como Tetraonídeos e depois como Garças; essa versão atesta a
o primeiro dono do fogo de cozinha, ao passo que no outro, é preciso que os unidade das formas extremas (M₆₆₇ e M₇₉₃) que o mito toma ao norte e ao
humanos vão ao céu para conquistá-lo. E finalmente, na medida em que, nas sul, no interior e na costa. O fato é que o herói dos últimos mitos que con-
versões norte-americanas, dois personagens celestes se desentendem a res- sideramos (M₈₀₆-M₈₀₇) assume uma função sintética: é ao mesmo tempo
peito de um terreno, pode-se dizer que uma disputa dos astros desencadeia o desaninhador de pássaros numa forma apenas ligeiramente transposta, o
a ação desses mitos, que são assim ligados por mais uma via ao ciclo das introdutor das esposas dos astros no céu e o autor de uma reforma cósmica
esposas dos astros do qual, como sabemos, o do desaninhador é uma sim- de que a arte culinária é o preço e o prêmio.
ples transformação.11
Na região que aqui nos interessa, essa relação entre os dois ciclos pode !
ser verificada de outro modo. Com efeito, existe todo um grupo de mitos,
em cujos detalhes não entraremos, por estarem mais situados do lado da Sendo assim, ao longo deste livro, teremos localizado o mito do desaninha-
série paralela sobre a origem do vento e do nevoeiro, a que nos referimos dor e inventoriado todas as suas modalidades numa região da América do
várias vezes. Registrados entre os Thompson e ainda reconhecíveis entre Norte a oeste das Rochosas, compreendida aproximadamente entre os para-
os Lilloet, os Chehalis do baixo Fraser e os Lkungen do sudeste da ilha de lelos 40º e 50º. No centro dessa região, isto é, na bacia do rio Columbia, o
Vancouver (M₈₀₆a-c, Teit 4XXX: 53-55, Boas 4XXX: 43-44, 13XX: 15, Teit 2XXX: mito conclui com a liberação dos salmões e com a instituição das feiras e
336-37; M₈₀₇a,b, Hill & Tout 2XXX: 354-57, 5XXX: 346-48), tais mitos consa- mercados; ou seja, com a origem, primeiro natural e depois social, dos recur-
gram a aliança entre o sol e a humanidade, depois que um visitante terreno sos alimentares que permitem aos homens sobreviver.
levou ao céu mulheres humanas (às vezes aves aquáticas) para se casarem Ao se transformar, mais ao sul, no ciclo de Dona Mergulhão, o mesmo
com o sol e seu filho. Em consequência disso o sol, que até entã era canibal, mito inflete sua função etiológica: no plano social, trata do incesto, que é
recusa da troca; e no plano natural, da instituição de uma periodicidade, for-
11 . Note-se quanto a isso que, como nas versões do mito sobre as esposas dos astros mulada por ele em termos mais de tempo do que de espaço. Do outro lado
provenientes das Planícies, a versão lilloet do mito do desaninhador (M₆₇₁, Teit 2XXX: do rio Columbia, isto é, ao norte, na bacia do Fraser, observa-se o fenômeno
306-09) encarrega a Cotovia de gritar avisando o herói de que ele aterrissou. oposto: ali, o mito do desaninhador se mantém tal qual; mas, em vez de

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tratar de incesto, trata de exogamia real ou simbólica; e enfatiza a repartição operar uma mediação entre alto e baixo, céu e terra, sol e humanidade — ao
dos peixes no espaço atual da rede hidrográfica mais do que sua liberação passo que o grupo de mitos relativos à vida breve se coloca na perspectiva
num tempo passado e seu retorno sazonal. A questão da origem do fogo, mola da periodicidade temporal. Ademais e sobretudo, os mitos sobre a origem
mestra de todos esses mitos, remete, mais ao sul, antes à cultura e ao estado do fogo e da água, isto é, os do desaninhador, realizam-se na América do Sul
de sociedade; ao norte, a um sistema de oposições cosmológicas incarnadas de forma bem fraca: seu conteúdo explícito se reduz ao isolamento tempo-
pelos povos do céu e da terra, cujos entreveros se encontram na origem do rário de um pequeno afim no topo de uma árvore ou um rochedo. Os mitos
fogo e da própria humanidade, já que cada um dos grupos salish da costa de origem da vida breve, ao contrário, recebem uma expressão bem forte,
costumava declarar ser descendente de um antepassado caído do céu (Hill & pois que colocam em cena uma estrela, criatura sobrenatural, que desiste
Tout 1XXX, 2XXX, 3XXX, passim). Bem, os mitos de origem do fogo opõem os do mundo celeste e desce à terra para se casar com um mortal. Essa análise
habitantes da terra, que outrora eram animais, aos habitantes do céu, onde provisória já permite deduzir que a dimensão espacial dos mitos sul-ame-
vários terrenos faleceram e se transformaram em estrelas. Os Quileute efe- ricanos recobre um conteúdo forte com uma forma fraca e sua dimensão
tuam, portanto, uma aplicação particular desse esquema ao declararem que temporal, um conteúdo relativamente fraco com uma forma forte. Num caso,
“na origem, os animais povoavam a terra. Da união de alguns deles com uma a disjunção entre céu e terra, para ser mediatizada, reveste o aspecto de uma
estrela que caiu do céu nasceu a primeira humanidade, ou seja, os ancestrais modesta querela familiar entre afins. No outro caso, a determinação de um
dos índios atuais, que foram todos criados ao mesmo tempo na ilha de Van- prazo moderado para a vida humana exige que tenha havido um tempo em
couver” (Reagan & Walters XXXX: 306). que terra e céu estiveram juntos.
Assim, numa estreita faixa costeira cujo comprimento não passa de 500 Se o quadro geral parece ser mais complexo para a América do Norte, à
quilômetros e a largura de algumas dezenas de quilômetros, encontramos primeira vista, é porque, como mostramos (omm, pp. 185-97), o ciclo das
concentradas versões extremamente fortes de nosso mito. Para avaliarmos o esposas dos astros — que corresponde ao de Estrela esposa de um mortal
trajeto percorrido por nossa análise basta, com efeito, comparar as primei- na América do Sul — encontra-se desdobrado em duas formas, uma fraca e
ras e as últimas formas nas quais nos apareceu o mito do desaninhador: na a outra forte. A primeira, espalhada pelo que chamamos de crescente seten-
América do Sul, um conflito de proporções aldeãs, familiares até, entre um trional, deixa duas mulheres descerem de volta do céu sãs e salvas, para em
pai e um filho incestuoso (M₁) ou entre dois cunhados a respeito de filhotes seguida envolvê-las numa série de aventuras que desemboca na instituição
que estão ou não no ninho (M₇-M₁₂); na América do Norte, ao contrário, na da periodicidade sazonal, pertencente à ordem temporal. As versões das
região que acabamos de delimitar, um conflito em escala cósmica entre o céu Planícies ilustram a segunda forma, segundo a qual a aventura das espo-
e a terra que, para essa verdadeira guerra dos mundos, mobilizam ambos sas dos astros tem inicialmente um desenlace desastroso, já que a heroína
todas as suas tropas, ou seja, o efetivo da criação por completo (M₈₀₂-M₈₀₄). morre durante sua tentativa de fuga; a sequência da ação envolve o filho dela,
Se, como cremos, estamos diante do mesmo mito, essas formas extremas que passa por várias peripécias e acaba subindo ao céu, onde vira um astro.
deverão ter seus respectivos lugares num quadro geral que nos seja possível Na verdade, essa é uma forma mista, pois essas versões tratam também da
constituir. Para retomarmos, pela última vez, desde o início, digamos que, periodicidade biológica, ao instituírem a menstruação feminina e fixarem a
em O cru e o cozido, dois pontos essenciais nesse sentido foram estabele- duração normal da gestação. Por outro lado, os sucessivos deslocamentos da
cidos. Em primeiro lugar, as versões sul-americanas do mito do desaninha- heroína e de seu filho, nos dois sentidos do eixo vertical, colocam em desta-
dor bifurcam, umas tratando da origem do fogo (M₇-M₁₂), outras da água que o aspecto espacial, mas também estão ligados à periodicidade sazonal
(M₁). Em segundo lugar, o mito do desaninhador provém, por sua vez, da (omm, pp. 214-15); de modo que tais formas relativamente fortes do mito
bifurcação de um sistema mais vasto, cuja outra ramificação (M₈₇-M₉₂) leva remetem a coordenadas espaço-temporais.
à origem da vida breve. Esse esquema, por demasiado sumário, a resumir Mas onde, afinal, se encontram as formas mais fortes na América do
um longo procedimento, evidencia duas propriedades características dos Norte? Precisamente na zona costeira dos estados de Oregon e Washington,
mitos sul-americanos. Primeiro, os consagrados à água e ao fogo se colocam onde a transformação do mito do desaninhador no das esposas dos astros
na perspectiva da periodicidade espacial — pois que se trata, no caso, de foi diretamente registrado e onde o segundo mito se amplifica, ganhando

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as dimensões de uma guerra dos mundos, tal como se verifica entre os Qui-
leute e os Quinault. Guerra cujo resultado é, sem dúvida, a conquista do fogo,
mas também, num eixo propriamente espacial, a disjunção definitiva entre
céu e terra, a origem das estrelas — contrapartida celeste do fogo que, para
ser tornado terrestre, exigiu o sacrifício de vários terrenos — e, posterior-
mente, a origem da humanidade atual, oriunda da união de um personagem
estelar com terrenas.
O que nos leva a distinguir, na América do Norte, uma forma fraca do
mito sobre as esposas dos astros que desemboca na periodicidade sazonal,
temporal portanto, ilustrada pelas versões provenientes do crescente seten-
trional, e uma forma forte, que culmina numa disjunção cósmica media-
tizada pela conquista do fogo (que por essa via leva de volta à história do
desaninhador). Consequentemente, na América do Norte, a forma fraca —
desventuras celestes e depois terrestres das moças desmioladas — recobre
um conteúdo forte, o advento da periodicidade anual e sazonal. Contraria-
mente, a forma forte — a guerra dos mundos — recobre um conteúdo com-
parativamente fraco, a origem do fogo doméstico. Entre esses dois estados
extremos, o lugar intermediário cabe às versões das Planícies, cujo caráter
misto já foi apontado.
Isso não é tudo. O ciclo sul-americano de Estrela esposa de um mortal
reflete a forma forte do ciclo norte-americano sobre as esposas dos astros
às custas de uma inversão de todos os termos, pois que num caso uma
mulher celeste desce à terra e, no outro, mulheres terrestres sobem ao céu.
Agora, no que concerne às formas fracas, observa-se uma inversão de outra
ordem, que acompanha a mudança de hemisfério. Pois a América do Norte
encarrega a história das esposas dos astros de traduzir essas formas fracas,
ao passo que para a mesma finalidade, a América do Sul recorre à histó-
ria do desaninhador de pássaros. Pode-se dizer, portanto, que a primeira
inversão envolve estruturas complementares e a segunda, estruturas suple-
mentares, e que elas chegam a resultados diferentes. Com efeito, no caso
das estruturas complementares, a inversão que afeta por dentro o esquema i 1 Forma forte (estrela esposa de
matrimonial que une um personagem terrestre e um celeste ∆
( õ —Y
õ
∆ ( um mortal)
2 Forma fraca (desaninhador de
pássaros)
tem por função transformar uma categoria espacial (céu/ terra) em catego-
ii Forma fraca (esposas dos astros)
ria temporal (vida/ morte). A inversão do mito sobre as esposas dos astros
iii Forma mista (esposas dos astros,
no do desaninhador de pássaros, por sua vez, tem por função transformar avó e neto)
uma categoria natural (a de periodicidade, ao mesmo tempo astronômica iv Forma forte (guerra dos mundos)
e biológica) em categoria cultural (representada pela culinária e demais
artes da civilização). Instaura-se, no decorrer dessa transformação, como

[ 3 4 ] O mito de referência: formas fortes e fracas.


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intermediário obrigatório, a ordem zoológica, inserida inicialmente na natu- De modo que se o personagem do desaninhador inverte o da esposa do astro,
reza, mas que ao tornar esta última acessível ao pensamento conceitual pela faz isso do mesmo modo que um anticlíneo desgastado toma o aspecto
introdução da descontinuidade entre as espécies permite à cultura assumir o enganador de um sinclínio: apresenta uma imagem invertida de si mesmo,
controle sobre a natureza e manejar sua indistinção (fig. 34). ainda que a história geológica explique como se fez a transição entre um e
Convenhamos escolher, como estado inicial desse grupo de transforma- outro e demonstre como uma inversão aparente pode resultar de um pro-
ção, a lição mais forte ilustrada pelos mitos, a saber, aquela em que irrompe cesso contínuo (fig. 35). Na América do Sul, a parte que desapareceu se
um conflito entre o povo do céu e o povo da terra em virtude do rapto de projeta como que em negativo, na forma efetivamente invertida de Estrela
uma ou mais mulheres, cometido sobre os terrenos. Estes lançam uma expe- esposa de um mortal, mas ganha — como compensação, diríamos — um
dição de guerra contra seus inimigos celestes. Qualquer que seja o resul- conteúdo positivo, a origem das plantas cultivadas, contrapartida da vida
tado dos combates, o resultado é que a comunicação entre os dois mundos breve e complementar da função positiva do desaninhador que dá à huma-
tornar-se-á impossível. Porém, na forma das estrelas no céu e do fogo de nidade o fogo de cozinha.
cozinha na terra, subsiste um duplo testemunho de que o alto e o baixo esti- Vimos que na América do Norte, ao contrário, a dobra mítica perma-
veram outrora unidos. nece intacta, as camadas que desapareceram no outro hemisfério subsistem
Tal como se a observa nas Planícies, a história das esposas dos astros e, inclusive, são o lugar onde se observa uma distribuição bastante densa
permanece bem próxima desse esquema, a que dá uma expressão enfra- de formas intermediárias entre o mito sul-americano do desaninhador e
quecida, mas mais forte do que as versões do mesmo mito distribuídas no os mitos, mais propriamente norte-americanos, das esposas dos astros. O
crescente setentrional. As versões sul-americanas da história do desaninha- estudo das versões salish nos permitiu inventoriar tais formas intermediá-
dor de pássaros ocupam uma posição ainda mais fraca; diante do que acaba rias em que o desaninhador visita o céu e depois consegue retornar à terra
se ser exposto, compreende-se a razão disso. Em relação ao mito sobre as são e salvo.
esposas dos astros, essas versões sul-americanas ilustram um estado mais De modo que ele ao mesmo tempo se parece com a esposa do astro e
do que transformado, desabado. Em vez de se alçar até o céu, o herói para a dela difere; pois, conforme as descrições dos mitos das Planícies, ela fracassa
meio caminho, no topo de uma árvore ou de uma parede de pedra, de onde em sua tentativa de voltar à terra e, ao cair, tem um fim lamentável. Seu filho,
logo descerá para vingar-se, para eventualmente subir de novo mais tarde, que caiu junto com ela e fica empesteado pelo cadáver putrefeito, será reco-
até uma região intermediária do céu, onde irá se transformar em dono dos lhido e limpo por uma protetora de forma humana (M₄₂₅, que assim prosse-
fenômenos metereológicos ou sazonais. gue). Ao contrário, portanto, do desaninhador, que ficou empesteado pelos
excrementos de pássaros enquanto estava nos ares e que é ajudado a descer e
(esposa[s] terrestre[s] depois limpo por um protetor animal.
de sol e lua) Podemos levar mais adiante a aproximação entre os dois ciclos. As ver-
sões algonquinas do mito das esposas dos astros primeiro levam as duas
protagonistas para o céu e depois as fazem descer até o topo de uma árvore,
onde suas dificuldades realmente começam. Ali, elas se encontram na
esposa(s) (transformado
dos astros em corpo celeste) mesma situação que o desaninhador sul-americano cujas aventuras, mais
(isolado no topo modestas do que as delas, transcorrem inteiramente entre o solo e o topo de
de uma árvore) desaninhador
de pássaros uma árvore na qual ele também fica preso, a uma dada altura da narrativa.
A heroína das Planícies cai de mais alto. Porém, após sua morte, seu filho
a substitui e, no papel de ordenador da criação, ocupa o lugar do desaninha-
dor. Os dois ciclos são, portanto, em parte homólogos e em parte comple-
mentares, como expressa o esquema abaixo, cujo interesse será rapidamente
[ 3 5 ] Erosão mítica. percebido (fig. 36).

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Esposas dos astros Desaninhador de Esposas dos astros
(canadá) pássaros (brasil) (planícies centrais) Ora, acabamos de verificar que os mitos norte-americanos mais fortes,
os da guerra dos mundos, referem-se primordialmente à origem do fogo e
apenas de modo subsidiário à da água (M₇₉₃c, M₇₉₅). Simplifiquemos um
mundo celeste (queda e morte da mãe) sistema complexo em benefício da demonstração e retenhamos dele os
aspectos relativamente mais forte e mais fraco, que de certo modo consti-
tuem seus limites. As relações de simetria que prevalecem entre os mitos das
duas Américas hão de exigir que as versões norte-americanas mais fracas
possuam conexão com a água.
topo das árvores O que são as versões fracas? São, como dissemos, as do mito das esposas
dos astros provenientes do crescente setentrional, sobretudo da parte leste
do Canadá, onde, assim como na outra extremidade do continente (M₇₈₂a),
mundo terrestre (queda do filho ileso)
os maridos celestes se deixam comover pelos prantos de suas companheiras
e aceitam mandá-las de volta para a terra. Pois bem, segundo uma versão
[ 3 5 ] Desaninhador de pássaros e esposas dos astros.
dos Algonquinos orientais (M₄₃₇a, Leland XXXX: 140-46, cf. omm, pp. 194-96),
essas mulheres são espíritos aquáticos ou filhas da água (cf. M₈₀₁) que ao
Com efeito, o ritual arapaho da dança do sol exprime exatamente desse cabo de suas aventuras celestes e terrestres se casam com pássaros marinhos.
modo, mas por meio de emblemas e símbolos, a relação entre os dois A conotação aquática, que já é incontestável aí, torna-se ainda mais forte
ciclos. Atribui-se à esposa do astro o mastro central da cabana cerimonial, entre os Ojibwa, onde as heroínas também acabam casadas com pássaros
o mais alto, portanto, e coloca-se horizontalmente no topo uma cavadeira aquáticos, e estes acabam provocando o degelo da primavera ou uma inun-
que representa a que a heroína colocou atravessado sobre o buraco feito na dação de grandes proporções que afoga todos os habitantes (M₄₄a,b, omm,
abóbada celeste para amarrar a corda pela qual desceria (omm, pp. 175, 207). pp. 200-02).
Vimos (supra, pp. 452, 467, 473) que abaixo desse dispositivo os Arapaho fin- Isso não é tudo. Preso no alto de uma árvore, coberto de excrementos de
cam no solo uma forquilha — espécie de mastro central em miniatura, já pássaros, o herói jê se salva graças ao jaguar que o convida a descer, limpa-o
que este é também uma forquilha — sustentando uma efígie ou os restos de e permite sua recuperação em troca de uma oferta de alimento, os filhotes
um passarinho, símbolo de outra descida de volta à terra, a do desaninha- aninhados que o herói joga para ele. Esse quadro é perfeitamente simétrico
dor. Esses índios percebem, consequentemente, uma homologia de estrutura ao das heroínas algonquinas presas no alto de uma árvore que imploram
entre os dois mitos, com apenas uma diferença de escala que afeta, como em ao carcaju que as ajude a descer em troca da oferta sexual delas mesmas,
nosso esquema, suas respectivas ordens de grandeza. aninhadas como pássaros na árvore; e que, mas tarde, traindo a promessa,
Se as relações de correspondência que acabamos de estabelecer entre as enganam seu salvador e às vezes o cobrem de urina (M₄₄₇). Ora, se o jaguar
formas norte e sul-americanas dos mesmos mitos tiverem mesmo funda- sul-americano é o dono do fogo terrestre e da carne cozida, o carcaju norte-
mento, decorrerá daí uma outra consequência. Sabemos que, na América do americano, por sua vez, é o vítima do fogo de cozinha e dono da carne crua.
Sul, as versões do mito do desaninhador relativas à origem da água são mais Essas duas características estão atestadas em mitos do noroeste cana-
fortes do que as relativas à origem do fogo. Pois que segundo estas últimas, o dense. Os Tahltan, de língua atabascana e vizinhos dos Tlingit, contam
herói temporariamente afastado no topo de uma árvore volta para casa são e (M₈₀₈a,b, Teit 7XXX: 246-48) como o carcaju, que era canibal, foi vencido
salvo, e nada se diz a respeito de seu destino ulterior. Nas outras, ao contrário, pelo dono do nevoeiro, que é um modo da água. Contam ainda que o car-
ele primeiro realiza uma perigosa expedição ao mundo das almas e depois caju roubava toda a caça dos irmãos da mulher e eles, correndo o risco de
se torna dono de fenômenos metereológicos ou sazonais, possivelmente em morrer de fome, jogaram gordura ardente nele e lhe deram uma surra com
forma de constelação (M₁), em que ele seguramente se transforma conforme bordunas. Desde então, o carcaju tem o pelo avermelhado, tem cheiro de
outras versões (M₁₂₄ transformando M₁; cf. supra, p. 197). queimado e, por ter sido atingido nas partes vitais, ficou impotente. Ladrão

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Brasil Oregon, Canadá
Washington dois mundos, mas pode também assumir a forma mais modesta do exílio
temporário de um herói no topo de uma árvore ou rochedo — de todo
céu
modo, em direção ao céu — de onde ele irá descer para se tornar dono do
fogo (M₁, M₇-M₁₂). Mas mesmo nesses casos extremos algumas constantes
fogo de cozinha conquista do fogo
água terrestre se mantêm. Uma delas, de ordem sociológica, funda-se na analogia entre
terrestre destrutiva
celeste e origem
Jaguar, dono da da chuva
Carcaju, dono da povos inimigos e afins. A guerra dos mundos de fato resulta, nas versões
carne cozida carne crua
mais fortes, do rapto de mulheres terrestres por homens celestes, de modo
que um povo é tomador de esposas e o outro, à sua revelia, doador. Tanto
na América do Sul como na América do Norte, prevalece a mesma relação
terra
entre os dois protagonistas do mito do desaninhador de pássaros: os dos
[ 3 7 ] A conquista do fogo no céu e seus limites. mitos jê são cunhados, os dos mitos bororo e salish são pai e filho; num
regime matrilinear como o dos Bororo, pai e filho são afins, relacionados
e especialista em estragar carne crua (porque a cobre de urina), o carcaju se por um casamento, e tanto entre os Klamath-Modoc como entre os Salish, o
mostra como inimigo da culinária; assim, o fogo de cozinha cumpre, para demiurgo se envolve numa situação do mesmo tipo ao querer se apropriar
com ele, uma função destrutiva. Em conformidade com a hipótese, o carcaju das esposas do filho, assim transformado em doador de mulheres à sua reve-
na América do Norte e o jaguar na América do Sul, ambos salvadores de lia. Como afirmam os Kayapó e os Ofaié (supra, p. 526), é portanto neces-
humanos presos no topo de uma árvore, são portanto colocados em oposi- sário que a mulher do jaguar sul-americano seja humana já que, de acordo
ção diametral no que diz respeito às respectivas funções etiológicas (fig. 37).12 com as versões norte-americanas mais fortes do mito, este dá aos humanos
em troca o fogo de cozinha.
! A outra constante é de ordem cosmológica, preservada em todas as ver-
sões do mito, mesmo as mais fracas: os protagonistas klamath-modoc pos-
Assim se fecha um vasto sistema, cujos elementos invariantes sempre podem suem afinidades celestes, um com o sol e o outro com a lua, e tais afinidades
ser representados na forma de um combate entre a terra e o céu pela con- persistem mesmo nos mitos jê, cujas metades sociológicas — cada um dos
quista do fogo. Às vezes, esse combate opõe povos inteiros, de cada um dos protagonistas pertence a uma — estão associadas uma ao sol e a outra à lua
(supra, pp. 38-40, 61, 70; cc, p. 84).
Cabe ressaltar uma única diferença entre os mitos quanto a isso, no fato
12 . O carcaju neutraliza o fogo de cozinha sujando a carne crua de urina. Segundo um de as versões fortes e mistas situarem a oposição central entre criaturas ter-
mito menomini (M₈₀₉, Bloomfield 3XXX: 132-53), a mãe dos dióscuros morreu ao dar
restres e celestes, enquanto as formas fracas — nesse aspecto — a restrin-
à luz o segundo gêmeo, feito de pontas de silex que rasgaram o corpo da parturiente.
Esse silex é a origem das pedras ígneas e, portanto, do fogo terrestre. Porém, a hemor-
gem a um par de protagonistas terrestres, mas que se encarregam, por meio
ragia que levou a mãe à morte apagou a fogueira doméstica, de modo que os dióscuros de metáforas, das referências celestes alijadas de seu suporte. Desse modo,
cresceram num mundo sem fogo, o que incitou o mais velho a ir reconquistá-lo. nas versões fracas, a oposição cosmológica entre terra e céu, alhures incar-
Passando dos Tahltan para os Menomini, observa-se uma transformação: culiná- nada por personagens ou grupos de personagens distintos (humanos de
ria neutralizada [por conjunção: carne crua, urina masculina] —Y [por conjunção: um lado e corpos celestes do outro, no mito das esposas dos astros), toma o
fogueira doméstica, sangue feminino], cf. omm, pp. 345-46. Ao mesmo tempo, per- aspecto de uma oposição retórica entre sentido próprio e sentido figurado, e
cebe-se uma outra, [origem do fogo celeste] —Y [origem do fogo terrestre], passando
cada um dos dois personagens que permanecem em cena fica encarregado
dos Machiguenga (M₂₉₉, mc, pp. 273-74) aos Menomini (M₈₀₉), por intermédio dos
de exprimir os dois aspectos. Nesse caso, vimos, na América do Norte, que
Taulipang, onde o fogo terrestre tem outr origem, [fogo parido] —Y [fogo excretado].
Não é certamente por mero efeito de eufemismo que “estar menstruada” se dizia em o perseguidor simboliza o sol e sua vítima a lua. Mas esta, como explicamos
menomini “acender o fogo fora” (Bloomfield 3XXX: 191 e n.1). Apenas indicamos esse em A origem dos modos à mesa (p. 327 n.1) tem uma afinidade maior com
percurso, que permitiria obter mais um fechamento do sistema transcontinental. os habitantes da terra do que o sol, e os mitos significam essa proximidade

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relativa por várias características, que vão desde a imperícia, a ineficácia ou a M 810 OJIBWA: AS DUAS LUAS (2)
mortalidade do herói lunar (bororo e jê) até sua generosidade e poder orde-
nador (Baré, Salish, Nootka etc.). Era uma vez uma velha malvada que vivia com o filho, a nora, o filhinho deles e um
Tanto entre os Bororo, os Bakairi e os Jê como entre os Salish, esses pequeno orfão que ela tinha adotado. Quando o homem voltava da caça, dava os
mesmo heróis de afinidades ou vocação celeste são incarnados por persona- melhores pedaços à esposa, que os grelhava até ficarem tostadinhos e fazerem um
gens terrestres e masculinos. É de esperar, por uma razão de paridade, que belo ruído ao serem mordidos. A velha ficou com ciúmes dessa preferência. Convidou
se encontre na América um grupo de mitos simétricos que encarregue um a nora a ir balançar, obrigou-a a se despir e a se amarrar no balanço com um cinto
par feminino da mesma oposição cuja expressão os outros mitos confiam de couro. Empurrou a moça com força e, quando ela estava acima de um despenha-
a um par masculino. Bem, uma oposição inicial entre céu e terra, homem deiro, cortou as cordas. A vítima despencou nas águas de um lago no fundo do des-
e mulher, fora reduzida, numa primeira fase, a uma oposição entre sol e lua penhadeiro. A velha vestiu as roupas da nora e se fez passar por ela para receber os
na forma de personagens celestes e masculinos (M₄₂₅-M₄₃₀). Caso ocorresse bons pedaços de caça. Comeu-os avidamente. Mas, como não tinha leite, não pode
nos mitos uma mudança de sexo, deveria surgir uma nova dicotomia, afe- amamentar o neto.
tando um dos polos da oposição anterior. E assim descobrimos, dedutiva- O orfão adotado desconfiou e contou ao homem, que enterrou seu dardo com a
mente, uma série mítica bem atestada, consagrada ao conflito entre as duas ponta para cima e invocou o trovão e a chuva. As águas do lago ficaram revoltas mas,
luas, para a qual já chamamos a atenção (omm, p. 348): contrariamente ao que ele esperava, não devolveram nenhum cadáver.
Na verdade, a mulher não estava morta, tinha sido laçada pelo rabo de um mons-
Heróis de ambos tro aquático que a tinha levado para sua morada profunda e a tinha desposado. Mas
os sexos: terra céu
ela voltava de tempos em tempos, comovida pelo choro do filho, na forma de uma
gaivota, para amamentá-lo. O marido aproveitou uma dessas ocasiões para rom-
Machos: lua sol per com seu dardo a cauda do monstro que mantinha a mulher presa. Ao rever sua
vítima, a velha se transformou em pássaro e desapareceu para sempre (Schoolcraft
in Williams XXXX: 258-59).
Fêmeas: lua lua
jovem velha
(+) (–) Esse mito possui duplo interesse. De um lado, a heroína para quem é uma
questão de honra mastigar ruidosamente a carne grelhada reproduz aquela
a que os mitos das esposas dos astros atribuem a mesma capacidade (omm,
Se restasse alguma dúvida quanto a essa derivação, bastaria considerar as pp. 227-66); uma capacidade que ameaça o herói do mito jê, visto que a
versões norte-americanas dos mitos que se referem explicita ou implicita- esposa de seu pai adotivo (em vez de mãe do marido) não tolera o ruído
mente ao conflito entre as duas personagens femininas. Já apresentamos um que ele faz ao mastigar carne bem tostada, objeto de cobiça, agora, de uma
exemplo, tomado dos Ojibwa (M₄₉₉, omm, pp. 338-39). Vimos que esse mito, outra velha, precisamente devido a essa sonoridade. Segundo M₁₀ e M₄₂₈ etc.,
bem como um outro, aliás, que vem imediatamente antes dele na coletânea esse dilema alimentar resulta de uma disjunção vertical realizada de baixo
de Jones (2XXX, II: 609-23) conta como Sol recolheu uma moça terrestre para cima por meio de uma árvore. Em M₈₁₀, ele causa uma disjunção, tam-
desamparada e sua esposa Lua, velha e malvada, imediatamente invocou bém vertical, mas realizada de cima para baixo, por meio de um balanço
com ela e tentou matá-la numa sessão de balanço. A jovem heroína venceu que, como verificamos mais uma vez (supra, pp. 371 e 454-56), constitui um
sua perseguidora, fez com que ela morresse e tomou seu lugar como astro mitema simétrico ao que permite elevar-se até o céu, ilustrado ora por uma
noturno, a partir de então favorável aos humanos. Pois o mesmo esquema, escada de flechas, ora por uma árvore ou rocha que cresce magicamente. E
transposto para o mundo terrestre, permite a um outro mito, também pro- finalmente, fica claro que a manobra da velha que obriga a nora a se despir
veniente dos Ojibwa, fundir numa mesma ação motivos derivados da histó- para usurpar-lhe a identidade diante do filho reproduz, ao inverter, a do pai
ria do desaninhador e da das esposas dos astros: do desaninhador, que faz o mesmo para apropriar-se das esposas do filho.

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Este se deixa afastar temporariamente do pai cedendo à atração por um pás- longo desta última parte, pudemos verificar que várias centenas de narrati-
saro celeste. A heroína de M₈₁₀ consegue se aproximar temporariamente do vas aparentemente muito diferentes umas das outras e cada qual, em si, bas-
filho assumindo ela própria o aspecto de uma ave aquática. tante complexa, procedem de uma série de constatações em cadeia: há o céu
Longe de ser particular aos Ojibwa, esse esquema mítico fundado num e há a terra; entre os dois, não há paridade concebível; por conseguinte, a
conflito entre as duas luas tem, na América do Norte, uma difusão quase presença na terra dessa coisa celeste que é o fogo constitui um mistério; e já
tão ampla quanto os mitos que transforma. O motivo chamado pelos fol- que o fogo do céu agora existe cá embaixo na forma de fogueira doméstica, é
cloristas norte-americanos de “swing trick”, cujo inventário foi estabele- preciso que alguém tenha ido da terra até o céu para buscá-lo.
cido por Waterman (3XXX; cf. também Barrett 2XXX: 487-88), quase sempre De tudo isso resulta que a sequência absolutamente indecidível vem a
pode, com efeito, indicar a presença de mitos desse tipo. Do mesmo modo, ser ou a afirmação empiricamente decidível de que há um mundo (quando
o motivo da mãe travestida lança uma ponte entre o grupo da avó libertina nada poderia ter havido) ou, pelo menos, a de que esse ser do mundo con-
e o das duas luas. Já encontramos esse motivo entre os Esquimós (M₇₄₆b) e siste numa disparidade. Não se pode simplesmente dizer do mundo que ele
é possível segui-lo em direção ao sul até os Osage (M₈₁₁a,b, Dorsey 9XXX: é; ele é na forma de uma assimetria primeira, que se manifesta diversamente
25-26), passando pelos Assiniboine (M₈₁₁c, Lowie 2XXX: 155-57), cuja versão conforme a perspectiva adotada para apreendê-lo: entre alto e baixo, céu e
é próxima da dos Ojibwa. terra, terra firme e água, perto e longe, esquerda e direita, macho e fêmea
etc. Essa disparidade inerente ao real põe em marcha a especulação mítica
! porque condiciona, aquém do pensamento, a existência de todo objeto
de pensamento.
Numa obra recente sobre a análise formal dos mitos, Buchler e Selby afir- Uma aparelhagem de oposições, de certo modo pré-montada no enten-
mam (p. 68) que é possível formular regras que permitem deduzir sucessiva- dimento, funciona quando experiências, que podem ser de origem bioló-
mente todas as transformações míticas a partir de qualquer uma delas, com gica, tecnológica, econômica, sociológica etc., acionam o comando, como
a condição de reconhecer o caráter “não recursivo” ou “indecidível” desta. os comportamentos inatos que se atribui aos animais, cujas fases se sucedem
Isso certamente vale para cada mito tomado isoladamente. Mas mostramos automaticamente a partir do momento em que são acionadas pela conjun-
várias vezes que essas sequências, indecidíveis em relação a um determinado tura apropriada. Solicitado do mesmo modo por tais conjunturas empíricas,
mito em particular, podem ser reduzidas a transformações recíprocas, de o maquinário conceitual se põe em movimento; de cada situação concreta,
certo modo perpendiculares a vários discursos míticos sobrepostos (mc, por mais complexa que seja, ele incansavelmente extrai sentido, fazendo dela
pp. 302-07). Pode-se, portanto, dar razão a esses autores na medida em que um objeto de pensamento ao submetê-la aos imperativos de uma organiza-
se esteja limitado à análise de um mito ou de um grupos de mitos deter- ção formal. Do mesmo modo, é aplicando sistematicamente regras de opo-
minado. Mas é próprio de todo mito ou grupo de mitos impedir que nos sição que os mitos nascem, brotam, se transformam em outros mitos que
atenhamos a ele, sempre surge o momento, no decorrer da análise, em que por sua vez se transformam, e assim por diante, até que limiares culturais ou
um problema se coloca cuja resolução exige que se saia do círculo pré-deter- linguísticos difíceis demais de transpor ou a própria inércia do maquinário
minado da análise. O mesmo mecanismo de transformações que permite mítico deem apenas formas desabadas e tornadas irreconhecíveis, porque
reduzir umas às outras as sequências de um dado mito se estende quase que as características próprias do mito nelas se esmaecem em favor de outros
automaticamente à sequência indecidível, que contudo é passível de redu- modos de elaboração do real que podem, dependendo do caso, ser da ordem
ção, fora do mito, a outras sequências indecidíveis, provenientes de mitos em do romance, da lenda ou da fábula com finalidades morais ou políticas (omm,
relação aos quais a mesma questão se colocara. pp. 92-106; Lévi-Strauss 20XX).
Ao fim e ao cabo, só existe, para qualquer sistema mitológico, uma sequ- A questão da gênese do mito se confunde, portanto, com a do próprio
ência absolutamente indecidível. Reduzida por transformações sucessivas pensamento, cuja experiência constitutiva não é a de uma oposição entre eu
a seus contornos essenciais, ela é apenas o enunciado de uma oposição ou, e o outro, mas do outro apreendido como oposição. Na falta dessa proprie-
mais exatamente, o enunciado da oposição como sendo o dado primeiro. Ao dade intrínseca — a única, na verdade, absolutamente dada — nenhuma

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tomada de consciência constitutiva do eu seria possível. Não sendo apreen- Pacífico e no interior próximo, entre os paralelos 40º e 50º, viviam sepa-
sível como relação, o ser equivaleria ao nada. As condições de surgimento radas por alguns quilômetros as mais diversas famílias: Penutiana, Hokan,
do mito são pois as mesmas de todo pensamento, já que esse não poderia Atabascana, Algonquina, Chinook, Salish, Chemakum, Wakashan... Não é só
ser senão o pensamento de um objeto, e um objeto só o é, por mais simples isso. Quando se olha para o mapa da distribuição tribal e linguística, como
e despojado que se o conceba, pelo fato de constituir o sujeito como sujeito o agora clássico de autoria de Driver, Cooper, Kirchhoff, Massey, Rainier
e a própria consciência como consciência de uma relação. e Spier,13 por mais que a prudência se imponha diante de recortes e con-
Para que um mito seja gerado pelo pensamento e gere por sua vez outros venções inevitavelmente arbitrárias, não há como não se admirar diante de
mitos, é necessário e basta que uma primeira oposição seja injetada na expe- um aspecto geral que lembra um corte histológico num tecido vivo. Toda a
riência, o resultado será a geração de outras oposições em sequência. A de região compreendida entre as Rochosas e o Pacífico, sobretudo em sua parte
alto e baixo admite três modalidades, dependendo de a passagem de um intermediária, tem a aparência de células pequeninas, diversas na forma e na
polo ao outro ser feita num certo sentido, no sentido contrário ou em ambos. organização, cuja distribuição bastante densa e alongada faz pensar numa
Ora mantido na vertical, ora convertido para horizontal, ou ambos tomados camada profunda e germinativa, contrastando com as células progressiva-
conjuntamente, o eixo de referência terá como polos o céu e a terra, o céu e mente mais frouxas que se percebe ao percorrer o corte de oeste para leste,
a água, a terra firme e a água. Na ordem dos corpos celestes, astros indivi- que se parece mais com um tecido conjuntivo. Encarada dessa perspectiva,
duais como sol e lua opor-se-ão às constelações e estas, ou os corpos celestes a involução costeira formada pelo estreito de Georgia, o de Juan de Fuca e o
nomeados todos juntos, à massa indistinta das estrelas anônimas. Consi- de Puget, em torno da qual se organiza a singularidade oregoniana, se parece
derados em suas relações recíprocas, sol e lua poderão ser ambos machos, com uma espécie de umbigo das culturas norte-americanas, marcando o
ambos fêmeas ou de sexos diferentes; poderão também ser estranhos entre si, ponto que talvez as tenha conectado ao que chamaríamos de seu cordão
amigos, consanguíneos ou afins. Do mesmo modo, e quaisquer que sejam os umbilical, concretizando uma noção abstrata.
protagonistas, o parentesco concebido no modo da consanguinidade ou da Nessa hipótese, cujo alcance não se deve exagerar, os mitos com os quais
aliança será ascendente ou descendente, reto ou oblíquo, encarado do porto termina nosso inventário representariam as formas sempre vivas, também
de vista dos tomadores ou dos doadores de mulheres. A cada nível de oposi- as mais ricas e mais bem preservadas, de um sistema que, ao difundir-se
ção corresponderão outras empreitas especulativas para conferir sentido aos para o oeste e para o sul, ter-se-ia progressivamente decomposto, do qual
respectivos cortes operados no real. teríamos encontrado, até o coração da América do Sul, apenas os detritos
Resta a saber porque, no nosso caso, todos os fios condutores dessas arrastados e espalhados ao longo dos séculos pelo fluxo das migrações. Ao
empreitadas múltiplas nos pareceram convergir para uma região afinal res- recolhermos e encaixarmos tais pedaços, teríamos pacientemente reconsti-
trita da América do Norte, à qual os etnólogos não deram particular atenção, tuído o sistema no decorrer de nossa empreitada, remontando passo a passo
pelo menos nesse aspecto. É nela que se justapõem as formas mais fracas do até a fonte, onde o teríamos finalmente encontrado em estado ainda relati-
mito sobre as esposas dos astros, por vezes reduzido às proporções de um vamente intacto.
conto aldeão (M₈₀₂a-c) — estado mais fraco desse conjunto já bem fraco Mas também poderíamos interpretar as coisas de outro modo. Em lugar
constituído pelas versões do dito crescente setentrional — e formas fortes, de vermos a singularidade oregoniana como o ponto do espaço-tempo em
que podem ser consideradas as mais fortes de todas, cujo tema é a guerra que todos os fios de um sistema mítico primordial, desfiados alhures, ainda
dos terrenos contra os celestes pela conquista do fogo. estariam unidos devido a uma sobrevivência, poderíamos supor que nar-
Ora, essa não é a única singularidade que chama a atenção quando se rativas originalmente distintas teriam vindo a fundir-se e unir-se ali, como
considera a área que, para simplificar, chamaremos de oregoniana. É tam- elementos de um sistema possível, que uma operação sintética teria efeti-
bém nela que se encontram justapostos em maior número os menores vado. Mitos reduzidos a estados do sistema, sempre virtuais alhures, teriam
agrupamentos humanos, cada qual ocupando um território diminuto,
que diferem de seus vizinhos pela língua, pelas tradições, frequentemente 13 . In H.E. Driver e W.C. Massey, “Comparative Studies of North-American Indians”,
pela cultura. Considerando unicamente o aspecto linguístico, na costa do Transactions of the American Philosophical Society, n.s., vol. 47, parte 2, Filadélfia, 1957.

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conseguido num único tempo e local se articular e se organizar, para gera- Na verdade, o interesse que cremos ter pelo passado é um interesse pelo
rem um mito vivo. presente. Ao ligá-lo firmemente ao passado, cremos tornar o presente mais
Do ponto de vista da análise, vê-se que as duas hipóteses se equivalem. duradouro, lastreá-lo para impedi-lo de escapar e tornar-se ele mesmo pas-
A partir de uma ou da outra, fazendo uma inversão geral de todos os sig- sado. Como se ao ser posto em contato com o presente o passado fosse, por
nos, nossas operações ter-se-iam efetuado do mesmo modo. Porque o sis- uma osmose milagrosa, tornar-se presente e, simultaneamente, o presente
tema global que nos empenhamos em restituir é fechado, dá exatamente ficasse protegido contra seu próprio destino, que é tornar-se passado. É sem
no mesmo explorá-lo do centro em direção à periferia, ou da superfície em dúvida isso o que os mitos pretendem fazer com aquilo de que falam; espan-
direção ao interior: de todo modo, sua curvatura intrínseca garante que ele toso é que o façam realmente pelo que são.
será percorrido em sua totalidade. Numa situação desse tipo, não há como Levada a cabo, a análise dos mitos atinge um nível em que a própria
determinar em que sentido do tempo estamos nos movendo. história é anulada. Como os índios Dakota do Canadá, que remanejam a
Análises locais certamente permitem estabelecer relações de anteriori- versão tradicional de um mito tribal para neutralizar a contradição por eles
dade entre certas transformações míticas, como mostramos diversas vezes vivida no decorrer de uma migração recente e historicamente atestada, entre
(cc, pp. 229, 313-17; mc, pp. 295-307; omm, pp. 210, 216-23, 321; e neste volume, as ideologias dos Sioux e dos Algonquinos (supra, p. 466), todos os povos
pp. 178, 191, 193, 205, 283-84, 292-94, 301-04, 414, 473). Porém, quando nos das Américas parecem ter concebido seus mitos apenas para compor com a
colocamos num nível suficientemente geral para contemplar o sistema de história e restabelecer, no plano do sistema, um estado de equilíbrio no seio
fora e não mais de dentro, considerações históricas deixam de ser pertinen- do qual são amortecidos os sobressaltos mais reais provocados pelos eventos.
tes, e ao mesmo tempo são abolidos os critérios que permitem distinguir Se não, como explicar que os elementos do sistema que designamos pelo
estados do sistema que poderiam ser chamados de primeiros ou últimos. nome de operadores binários — aves galináceas, peixes chatos, borboletas e
De modo que é possível que a mais ingrata das buscas tenha sido recom- outros insetos, ciurídeos etc. — mantenham sua função semântica de uma
pensada, tendo determinado, sem tê-lo buscado nem atingido, o lugar dessa ponta à outra do continente americano, sem jamais ser preciso invocar, para
terra antigamente prometida em que seria aplacada a tripla impaciência de explicar tal resiliência, os inúmeros cataclismos demográficos e culturais
um porvir que é preciso esperar, um agora que foge e um voraz outrora que ocorreram ao longo dos séculos?
que atrai para si, desfaz e derruba o futuro nas ruínas de um presente já Essa unidade e solidez do sistema seriam misteriosos se não assumísse-
confundido no passado. Pois essa ordem do tempo que o estudo dos mitos mos uma perspectiva do povoamento da América e das relações históricas e
desvela não é, afinal, senão a ordem sonhada desde sempre pelos próprios geográficas entre os diferentes grupos mais justa do que aquela a que sería-
mitos: um tempo mais que recuperado, suprimido. Tal como o poderia sen- mos espontaneamente levados por nossa condição de povo dito civilizado.
tir alguém que, embora tendo nascido no século xx, tivesse o sentimento Em primeiro lugar, a rapidez dos transportes entre um ponto e outro do
profundo, ampliado pela idade, de ter tido na juventude a chance de viver globo, que tendemos a considerar como uma conquista recente, pode nos
no século xix junto de pessoas mais velhas que dele participaram, sem levar a subestimar as enormes distâncias que são capazes de percorrer em
sabê-lo, assim como eles haviam vivido, por intermédio de pessoas próxi- algumas décadas ou séculos pequenos bandos de caçadores e coletores, por
mas que dele tinham participado, ainda no século xviii, e que tampouco menos que queiram avançar. Um dos resultados mais notáveis da pesquisa
sabiam disso. De forma que se tivéssemos juntado forças para soldar os elos arqueológica no Novo Mundo é a coincidência aproximada das datas mais
da cadeia, cada idade a guardar vivo o de antes para os de depois, o tempo antigas de ocupação obtidas nos dois hemisférios. De ambos os lados do
houvera sido realmente abolido. E se nós todos, homens, o tivéssemos equador, as estimativas foram recuando no mesmo ritmo e, no momento
sabido desde a origem, teríamos podido unir-nos numa conjuração contra em que escrevemos, encontram-se lá e cá por volta de 12.000 a.C. Com cer-
o tempo, de que o amor pelos livros e museus e o gosto pelos antiquários e teza hão de recuar mais ainda, mas tudo indica que o farão juntas. A par-
sebos constituem na civilização contemporânea, de modo por vezes derisó- tir do momento em que os homens penetraram, sem sabê-lo, a América
rio, uma tentativa persistente, certamente desesperada e indubitavelmente pelas terras elevadas que uniam o estreito de Bering, trataram metodica-
vã, de parar o tempo e voltar para trás. mente de ocupar toda a extensão do Novo Mundo, e alguns séculos terão

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provavelmente bastado a bandos capazes de andar dezenas de quilômetros outros, pequenos núcleos humanos isolados, deveríamos imaginá-lo como
por dia, mesmo levando em conta paradas longas de meses ou anos, para se um agregado compacto de grandes células de pequena densidade, cada uma
espalharem por distâncias consideráveis, do Alasca até a Terra do Fogo. O delas povoada em todo o seu volume de modo difuso, cujas paredes ganham
que poderíamos chamar de uma primeira instalação dos imigrantes reali- por isso uma relativa rigidez.
zou-se por toda a extensão do continente e num tempo relativamente curto. Considerando as coisas desse modo, torna-se concebível que toda cria-
Mas longe de nós a absurda ideia de que após essa primeira instalação as ção original num dado local se repercuta por contato direto em outros e que
coisas teriam parado por aí. Mesmo levando em conta o fato de que somente um deslocamento que aconteça num ponto do sistema acarrete paulatina-
em dois períodos do pleistoceno superior as glaciações deixaram abarta a mente sua completa reorganização. A física dos metais ajuda a compreender
passagem entre o Velho e o Novo Mundo — por volta de 25.000 a.C e, mais como um pequeno movimento das moléculas de um corpo rígido basta para
tarde, entre o 13.000 e 10.000 a.C. aproximadamente (Müller-Beck XXXX: que o arranjo geral se modifique sem mudança no aspecto ou nas proprieda-
374-81) — essas “janelas” foram suficientemente grandes para permitir várias des externas do corpo, quando uma tensão que ultrapassa um determinado
vagas sucessivas de migração, escalonadas ao longo de séculos ou dezenas de limiar é exercida num dado ponto. Enquanto isso, pode ser que o corpo seja
séculos. Cada uma delas pode ter aproveitado os territórios vagos ou des- envolvido, por fora, em todos os tipos de processos químicos ou mecânicos
truído ou deslocado os ocupantes anteriores. E também admitimos (omm, que lhe modificam a forma, a consistência, a cor, as propriedades e os usos a
pp. 56) que, ao longo dessa longa história, nada impede que tenha havido que se presta, mas os dois fenômenos não são da mesma ordem de grandeza
refluxo de populações, pois não há razão para que elas sempre tenham cami- e não ocorrem no mesmo plano.
nhado no mesmo sentido. Já está mais do que na hora de a etnologia se livrar da ilusão inteira-
No momento em que a descoberta e colonização das Américas estavam mente inventada pelos funcionalistas, que tomam os limites práticos em
por fulminar, por assim dizer, e depois aniquilar o devir histórico próprio do que são confinados pelo tipo de estudo que preconizam por propriedades
continente, tais movimentos populacionais ainda ocorriam e foram, durante absolutas dos objetos aos quais os aplicam. Se um etnólogo fica acanto-
os primeiros séculos, impedidos, infletidos ou precipitados pela chegada dos nado durante um ou dois anos numa pequena unidade social, bando ou
brancos. Na América do Sul, notadamente entre os Tupi, prosseguiram de aldeia, e se esforça por apreendê-la como totalidade, isso não é razão para
modo intermitente até o século xx, e foram registrados por observadores crer que em níveis outros em relação aqueles em que a necessidade ou a
qualificados. Reconheçamos tudo isso. Nem por isso deixa de ser verdade, oportunidade o colocaram tal unidade não se dissolva em graus diversos
diante de nossas observações acima, que em qualquer momento de sua his- em conjuntos de que ele em geral nem desconfia. No mínimo dois níveis
tória, as Américas, ainda que dez por cento ocupadas (com exceção da Amé- discretos de atividades devem ser distinguidos na vida dos povos sem
rica Central, do México e dos Andes), foram um mundo pleno. Não no sen- escrita. De um lado, o que chamaremos de campo das interações fortes,
tido que uma demografia ora asfixiante dá ao termo, mas considerando que que são aquelas a que, por isso mesmo, prestou-se mais atenção; trata-se
grupos humanos muito pequenos, obrigados por uma tecnologia rudimen- das migrações, epidias, revoluções e guerras, que se fazem sentir de modo
tar a explorar enormes espaços para a caça, a coleta e a agricultura itinerante, intermitente na forma de abalos profundos de efeitos amplos e duradou-
ocuparam-nas efetivamente, percorrendo-as incessantemente, ainda que tal ros. Porém, ao lado delas, há o muito negligenciado campo das interações
ocupação se pareça mais com o modo como uma quantidade ínfima de gás fracas, que ocorrem com frequência muito mais rápida e de periodicidade
se dilata e dispersa suas moléculas por todo o volume de um balão do que curta, na forma de encontros amigáveis ou hostis, visitas e casamentos. São
com o empilhamento de indivíduos em conjuntos residenciais. Apesar de sua elas que mantêm o campo em constante agitação. Esse tremor da super-
população pequena, os grupos primitivos exercem ativamente sua influência fície social faz com que a cada instante vibrações locais dotadas de baixa
sobre toda a extensão de um território e até os limites em que o equilíbrio de energia se repercutam paulatinamente até as extremidades do campo, inde-
forças faz prevalecer a de outros grupos. De modo que, em lugar de conceber pendentemente de mudanças demográficas, políticas ou econômicas, que
o Novo Mundo dos tempos pré-colombianos como um espaço praticamente ocorrem menos frequentemente e agem mais lentamente e num nível mais
vazio dentro do qual estavam espalhados, a centenas de quilômetros uns dos profundo (cf. mc, pp. 376).

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Portanto, não há contradição alguma em reconhecer que cada uma das para os diferentes modos como essas populações vizinhas umas das outras
populações americanas viveu uma história muito complicada e que bus- explicam a origem do fogo. Dizíamos então que entre os Jê, que fazem do
cou constantemente neutralizar tais desditas, remanejando seus mitos numa conjunto (podre + cru) uma categoria natural, e os Tupi, que fazem do con-
medida compatível com os constrangimentos de seus moldes tradicionais, a junto (cru + cozido) uma categoria cultural, os Bororo ocupam uma posição
que sempre tinham de se adaptar. Uma história já amortecida por esse traba- intermediária, cuja razão de ser, acrescentávamos caberia buscar (cc, p. 152).
lho reverbera para fora em produções similares, ajustamentos são realizados e Agora, mais familiarizados com os mitos e esclarecidos pelas considerações
novas oposições geradas, transferindo para outros planos o saldo perpétuo das de ordem culinária a que fomos remetidos diversas vezes, não poderíamos
semelhanças e contrastes. Por ocasião dos encontros intertribais, dos casamen- relacionar essas diferenças aos respectivos usos das três populações? Os Tupi
tos, das transações comerciais ou das capturas de guerra, todas essas retifica- faziam cerâmica e praticavam o canibalismo, técnica e costume, respectiva-
ções são desencadeadas e se propagam a contra-corrente, muito mais do que mente, que os Jê ignoravam ou proscreviam. Os Bororo, por sua vez, eram
os grandes acidentes que selam o destino dos povos. Tão logo é abalado num ceramistas como os Tupi e não canibais como os Jê. Além disso, os antigos
ponto, o sistema busca o equilíbrio reagindo em sua totalidade, e o recupera Tupi defumavam ou coziam a fogo lento a carne, ao passo que os Bororo
por meio de uma mitologia que pode estar causalmente ligada à história em geralmente a ferviam. Tal preferência certamente não aparece no testemu-
cada uma de suas partes mas que, tomada em seu conjunto, resiste ao curso nho de von den Steinen, que conheceu os Bororo fora de suas aldeias tradi-
dela e reajusta constantemente sua própria grade, para que ofereça a menor cionais, num acampamento em que tinham sido reunidos pela autoridade
resistência à torrente dos acontecimentos e esta, como comprova a experiência, militar, que aliás lhes dava grande liberdade quanto à observar seus ritos e
é raramente forte o bastante para arrombá-la e arrastá-la em seu fluxo. costumes. O etnólogo alemão nota, por sinal (p. 624) que os índios assavam
a caça sem nem ao menos limpá-la e só punham as tripas na panela. Em
! compensação, chamou a atenção dos missionários salesianos, bem como a
nossa, em 1935, a predileção dos Bororo pelo alimento fervido: “A carne dos
Mesmo nessa história, aliás, elementos persistem e fornecem um suporte sólido animais selvagens e pássaros é geralmente fervida em panelas chamadas aria
no qual os mitos podem se ancorar. Ao reencontrarmos os temas que nos ins- [...] Só raramente eles grelham a carne, espetadas em varetas de madeira
piraram desde o começo da investigação, dir-se-ia que certas modalidades das colocadas ao lado do fogo [...] Os peixes grandes são cortados em pedaços e
técnicas culinárias são desse tipo. Não que pretendamos nesse caso invocar fervidos” [RECUPERAR ORIGINAL] (Colbacchini & Albisetti XXXX: 66-67;
um determinismo cuja fórmula pareceria especialmente mesquinha, mas na ver pp. 126-27 sobre os ritos de exorcismo da caça ferventada). As mulhe-
medida em que a ideologia de cada grupo humano não pode ser analisada de res cozinham a carne “quase sempre na água” [RECUPERAR ORIGINAL]
modo exaustivo sem levar em conta relações concretas que cada um deles tem diz a E.B. (I: 34; cf. 322-28) e, com o caldo, preparam uma sopa de legumes
com o mundo; pois essa ideologia exprime tais relações, ao mesmo tempo que que levam para a casa dos homens. Os Bororo também consomem milho na
elas, por sua vez, a traduzem. Ora, nem é preciso invocar a etnografia para ter forma de mingau cozido, como faziam e fazem ainda, onde sobrevivem, os
certeza de que o modo de comer de cada um é, dentre todos os comportamen- Tupi. Nesse aspecto, ambos se opõem aos Jê que, segundo o testemunho de
tos, o que os homens mais frequentemente escolhem para afirmar sua origi- Banner (1XXX: 54) “bebem água pura e não gostam dos mingaus que tanto
nalidade diante de outrem. O leigo primeiro julga um país estrangeiro por sua apreciam os Tupi”.
culinária, e a sobrevivência desse critério em nossa civilização mecânica esta Entre os Bororo, essas preferências culinárias combinam com uma mito-
aí para mostrar que, independentemente de qualquer consideração de ordem logia na qual sobressai constantemente, como mostramos (cc, pp. 201, 298),
biológica, ele exprime com muita profundidade os elos que unem cada indiví- o primado da água sobre o fogo, claramente evidenciada pela comparação
duo a um meio, a um estilo de vida, a uma sociedade. entre os mitos jê M₁₆₃ e bororo M₁₂₀-M₁₂₃, nos quais são comutados os ter-
Já em O cru e o cozido, a “sinfonia breve” que fechava a segunda parte, mos pica-paus —Y aves aquáticas, Lua desajeitado —Y Sol desajeitado, fogo
cujos três movimentos diziam respeito aos Jê, aos Bororo e aos Tupi, impli- espalhado —Y água espalhada, sol aproximado —Y sol afastado etc. À exceção
cava que um contraponto de inspiração culinária poderia servir de substrato do mito M₅₅, que trata da origem do fogo de forma cultural, não é exagero

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dizer que todas as narrativas bororo sobre esse tema dizem respeito não ao no forno de terra (Nimuendaju 5XXX: 16), entre os Xerente, os Timbira, os
acendimento do primeiro fogo mas a seu apagamento pela água. Kayapó e, aparentemente, todos os demais Jê, isso era tarefa exclusiva das
Se notarmos que os mitos jê, na América do Sul, e os mitos salish, na mulheres, como entre os Salish. Entre os Xikrin, que são Kayapó setentrio-
América do Norte, formaram, por assim dizer, a espinha dorsal de nossa nais, consta até que o forno de terra era instalado sob um abrigo na extremi-
argumentação, daremos mais importância ainda à presença, nesses dois gru- dade da aldeia, oposto à casa dos homens, como um lugar privado em que só
pos de populações, do forno de terra, cercado em ambos os casos de repre- as mulheres podiam se reunir (Frikel 3XXX: 15-16). O nome kayapó do forno
sentações ideológicas muito semelhantes e cuja ausência entre os povos limí- de terra, / ki/ , compartilhado pela maioria das línguas da mesma família,
trofes — que certamente não desconheciam esse costume de seus vizinhos com um sufixo, dá / ki-kré/, “casa”, e os índios creem que o abrigo que pro-
— gerou de sua parte, em reação, ideologias compensadoras. Estas fazem tege o forno da chuva é o protótipo de suas habitações (Banner 1XXX: 55).
portanto parte do sistema tanto quanto as outras. Para explicar a origem do forno de terra, os Kayapó tem mitos, dos quais
Pois bem, entre os Salish, é uma característica constante do forno de terra infelizmente só conhecemos pedaços. Estão ligados ao ciclo dos dioscuros,
sua associação com o sexo feminino. Os Flathead consideravam que tudo o que fundadores da casa dos homens e iniciadores dos ritos de caça, que tivemos
diz respeito à extração de raízes e bulbos comestíveis e a seu cozimento cabe às ocasião de comentar em volumes anteriores (M₁₄₂, M₂₂₅-M₂₂₇; cc, pp. 264-65;
mulheres: “Na verdade, os homens eram inclusive proibidos de se aproximar do mc, pp. 99-125). Segundo uma versão (M₈₁₂a, Banner 1XXX: 55), um dos dois
fogo, de medo que atraíssem azar e provocassem a fome” (Turney-High 2XXX: heróis — não se diz qual deles — mandou fazer uma massa de mandioca,
127). Entre os Coeur d’Alêne, a mesma proibição visava mais especialmente os pegou-a e mandou acender uma fogueira em torno dele. Antes de o fogo se
solteiros: “Os bulbos se estragariam ou não ficariam devidamente cozidos se um apagar, ele tinha-se transformado em pedra, que as mulheres molharam bas-
homem se aproximasse do fogo” (Teit 6XXX: 185; 9XXX: 509). Ela foi registrada tante, para não estourar. A massa teve tempo de cozinhar e o homem voltou
também entre os Okanagon, acompanhada de sua complementar: as mulheres a ter a aparência natural. Entretanto, sua pele, que antes era branca, ficou ver-
não podiam ficar a menos de meia milha das barragens de pesca (Cline: 17). melha, e desde então existem as pedras usadas para aquecer o forno.
“Quando se trata de assar no forno bulbos e raízes, dizem os Thompson, só as As outras versões (M₈₁₂b,c; ibid.; Dreyfus XXXX: 85-86) contam que um
mulheres devem participar” (Hill-Tout 10XX: 513). Os Shuswap no interior e os homem ficou furioso com o fogo que tinha queimado seu sobrinho. Man-
Twana na costa do estreito de Puget igualmente probiam o forno de terra aos dou a irmã preparar um forno. “Mas afinal onde está a carne?” ela perguntou.
homens (Boas 16XX: 637; Elmendorf 1XXX: 133). Trata-se portanto de uma regra O homem respondeu: “Comigo”. E deitou-se sobre as pedras ardentes que
geral em toda a área salish. A proibição simétrica, mencionada entre os Oka- o assaram. Então ele se levantou, foi para o rio e sumiu na água (transfor-
nagon, faz pensar que a regra se baseia numa dupla oposição, entre homens e mado em jacaré, M₈₁₂c). Muito tempo depois, ele voltou ileso e sem nenhum
mulheres de um lado, entre água e terra (ou fogo) do outro. sinal de seu suplício. Disse que tinha morado com os peixes e para provar
À diferença de seus vizinhos bororo e tupi, os Jê utilizavam e ainda mostrou os peixinhos que tinham ficado presos em seus longos cabelos.
utilizam um tipo de forno de terra minuciosamente descrito pelas fontes Esses peixinhos eram as mulheres que outrora desistiram da forma humana
etnográficas. Primeiro, esquentam-se num braseiro pedras ou pedaços de (cf. M₁₅₃, cc, pp. 272). Ensinou aos índios os cantos rituais que tinha apren-
cupinzeiro, que são igualmente duros, até ficarem em brasa. Depois varre-se dido com os peixes (M₈₁₂b) e repartiu pelas casas os nomes cerimoniais cha-
o solo ardente e arruma-se sobre ele um leito de folhas verdes, sobre as quais mados “de peixe”, muito valorizados entre os Kayapó (M₈₁₂c).14
é colocada uma massa redonda de um metro de diâmetro, feita de pasta de Por mais mutilados que se encontrem esses mitos, é possível observar
mandioca com pedaços de carne, que é empacotada com folhas. Por cima, várias coisas a seu respeito. Dentro do mesmo ciclo, eles invertem claramente
amontoam-se pedras ou pedaços de cupinzeiro ainda ardentes (por baixo,
segundo Maybury-Lewis XXXX: 45), e cobre-se com esteiras velhas e terra 14 . Esses mitos jê talvez ecoem entre os Ayoré do Chaco setentrional, para quem um
tirada dos arredores; o resultado se parece com um túmulo (Nimuendaju inseto terrícola de picada dolorida é o inventor do forno, cujas brasas deixaram seu
5XXX: 34; cf. também 8XXX: 43; Banner 1XXX: 54-55; Dreyfus XXXX: 34-35; peito vermelho, e o anunciador de colheitas abundantes, quando é visto cavando a
Maybury-Lewis l.c.). Ora, à exceção dos Apinajé, onde os homens ajudavam terra nas roças (Muñoz-Bernand XXXX: xlii).

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M₁₄₂, em que as mulheres imolam o herói empurrando-o para dentro de um que ele tinha morrido (M₈₁₃a, Nimuendaju 8XXX: 247; cf. versões apinajé
forno de terra ainda ardente (mc, pp. 101), ao passo que aqui elas o molham M₈₁₃b,c, Oliveira XXXX: 80-82, Nimuendaju 5XXX: 184-86). De modo que o
para evitar que seja destruído pelo fogo. Em ambos os casos, no entanto, o céu e os pássaros desempenham em relação a um homem podre o mesmo
herói dá origem às pedras de forno e ao cupinzeiro, cujos pedaços podem papel salvador e iniciático que M₈₁₂b confia à água e aos peixes em relação a
ser usados para a mesma finalidade que as pedras. Mostramos, em Do mel um homem queimado, invertendo o sinal das funções que, nos mitos bororo
às cinzas, que M₁₄₂ pertence a um grupo que trata da educação das mulheres. e tupi, associam o fogo ao céu e a podridão à água:
As de M₈₁₂a-c são bem educadas, já que sabem preparar e controlar o cozi-
mento, tarefas propriamente femininas; ao dar origem às pedras ou pedaços (céu ≅ fogo) —Y (podre-1);
de terra dura, o herói lhes fornece o meio de exercer suas habilidades. (água ≅ podridão) —Y (queimado-1).
Vamos abrir um parêntese, para um breve retorno à América do Norte.
Os Kalapuya, que constituíam um grupo linguístico isolado entre os Salish Além disso, se os pássaros de M₈₁₃a são machos, os peixes de M₈₁₂b incar-
e os Sahaptin, em cuja terapêutica as cauterizações profundas tinham con- nam o sexo feminino. Debrucemo-nos sobre esse ponto por um momento.
siderável importância,15 faziam com que antes de cada mulher depositar sua Fracamente em M₈₁₂a, fortemente em M₈₁₂b, as mulheres possuem uma
colheita de bulbos no forno de terra coletivo um xamã andasse descalço afinidade com a água: ou elas encharcam o herói ou, transformadas em pei-
sobre as pedras ardentes: “ele atravessava toda a extensão do forno e depois xes, elas o recebem na água. Inversamente, o herói masculino possui uma
inspecionava a planta de seus pés, que ficara intacta, e garantia que as camá- afinidade com a pedra — em que ele se transforma numa versão — e com
cias logo estariam cozidas” (Jacobs 4XXX: 18-19; cf. pp. 29, 30, 36). De modo o fogo, a que se entrega em ambos. As pedras são comparáveis a terra dura e,
que lá também — mas em forma de rito em vez de mito — é preciso que um na técnica do forno, a terra endurecida pelos cupins substitui a pedra. Nesse
homem consagrado seja “cozido” para que as mulheres possam entregar suas particular, há ao mesmo tempo uma semelhança e uma diferença entre o
colheitas ao forno com plenas chances de sucesso. forno de terra e a cerâmica. Ambos são à base de terra cozida, mas no pri-
Por outro lado, M₈₁₂b se apresenta claramente como mito fundador meiro caso ela está do lado do fogo, assimilada portanto a um elemento
de uma cerimônia em homenagem aos peixes. Uma festa assim também natural, e no segundo, está do lado do alimento que contém na condição
existia entre os Timbira, que a celebravam nos anos sem cerimônia de ini- de recipiente, ou seja, como obra cultural. Consequentemente, o cozimento
ciação dos rapazes, alternando com uma festa em homenagem aos pássa- no forno de terra e o cozimento em recipientes de argila operam com os
ros (Nimuendaju 8XXX: 212-30). Ora, o mito fundador dessa última festa, mesmos três elementos — fogo, terra cozida ou pedra e alimento — mas
chamada / pepkaha’k/ , é exatamente simétrico a M₈₁₂b. Conta-se que um instituem entre eles relações diferentes. O forno de terra coloca as pedras ou
homem sofria de uma grave infecção devido a uma formiga que tinha se pedaços de terra previamente “cozidos” (pois que em brasa) do lado do fogo
agarrado pelas mandíbulas no fundo de seu canal auditivo. O mal se gene- e da natureza; o cozimento por ebulição coloca a terra cozida (de que são
ralizou e ele ficou com o corpo coberto de abcessos. Ele não conseguia mais feitos os recipientes) do lado da cultura e do alimento preparado:
se mover e foi abandonado com algumas provisões. As aves de rapina se lan-
çaram sobre o que achavam ser um cadáver, para comê-lo. Ao perceberem forno de terra: (fogo + pedras ou pedaços de terra cozida) / / alimento
o engano, mandaram o colibri de bico comprido extirparem a causa do mal cerâmica: fogo / / (terra cozida + alimento).
e os urubus comerem os vermes e o pus. Em seguida, o grande urubu levou
o homem ao céu e o alimentou, não com carniça, mas com carne assada e O deslocamento de um termo que se observa entre uma fórmula e outra é
beijus de mandioca. Quando ele ficou curado, eles lhe ensinaram seus ritos simétrico, quanto à forma, ao que nos parecera impor-se para a análise dos
e ele, ao voltar à terra, ensinou-os aos parentes e concidadãos, que achavam mitos sobre a origem do fogo, provenientes dos Jê e dos Tupi (supra, p. 546):

15 . Bem como entre os Salish do estreito de Puget, aliás, que tratavam reumatismos Jê: (podre + cru) / / cozido
queimando um buraco na carne até o osso (Eells 1XXX: 218). Tupi: podre / / (cru + cozido).

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Os Jê utilizam o forno de terra, mas não fazem cerâmica nem praticam o Não se pode cozinhar na casa dos homens e, no ambiente doméstico, marido
canibalismo; opõem-se, assim, em três pontos aos Tupi, que são ceramistas, e mulher comem do mesmo prato de costas um para o outro. Separados pela
canibais e desconhecem o forno, substituído entre eles, pode-se dizer, pelo culinária, os sexos são unidos por seu oposto: quando o marido está na casa,
moquém. A intervenção da presença ou ausência de canibalismo no sistema a mulher não tem o direito de sair, nem mesmo para fazer suas necessidades
advém, de um lado, dos mitos tupi sobre a origem do fogo em que o herói (cf. Colcacchini & Albisetti, ibid.: 68, 139).
assume a aparência de carniça e finge se oferecer como refeição canibal aos Em compensação, os mitos jê sobre a origem do forno de terra juntam
urubus (M₆₅-₆₈) e, do outro, dos mitos jê sobre a origem do forno de terra simbolicamente os sexos, pois fazem tomar parte da mesma obra cultural os
em que o herói finge se imolar deixando-se assar do modo que os humanos homens, do lado do fogo, e as mulheres, do lado da água. Mas na realidade
costumam fazer para seus festins. Ao canibalismo autêntico e belicoso dos é o inverso, já que só as mulheres lidam com o forno. Porém, como entre
Tupi os Jê, portanto, opõem — mas apenas no plano do mito — um cani- os Okanagon,16 essa regra tem
homem
balismo metafórico e humanitário. Longe de traduzir a fereza voltada para “cozido” uma contrapartida: as mulheres
fora, reflete a forma mais estreita de solidariedade social e familiar conhe- (∆ passivo) são excluídas dos ritos da pesca
cida pelos Kayapó, a que prevalece entre tio materno e sobrinho pela trans- coletiva que, entre os Kayapó, é
missão de nomes cerimoniais, cuja origem M₈₁₂c explica. Além disso, ocorre assunto exclusivo das metades
uma outra inversão, por efeito da torção supranumerária assinalada desde o pesca forno de terra masculinas, ficando as mulhe-
início de nossas pesquisas como propriedade distintiva das transformações masculina feminino res como simples espectadoras
(∆ ativos) (õ ativas)
míticas (Lévi-Strauss 5: 252): contrariamente ao que se poderia esperar logi- (Dreyfus XXXX: 30-31).17 Se os
camente, o auto-cozimento do herói não o transforma em alimento mas em homens são excluídos do forno
pedras de forno, ou seja, no meio de cozinhar o alimento. coletivo (≅ fogo) e as mulhe-
peixes
Entre as duas fórmulas extremas, ilustradas pelos Tupi e pelos Jê, verifica-se femininos
res, da pesca coletiva (≅ água),
que os Bororo, ceramistas como os primeiros e não canibais como os últimos, (õ passivas) entende-se que os mitos possam,
ocupam uma posição intermediária. Por outro lado, se eles não possuem o para mediatizar essa oposição,
[ 3 8 ] A origem dos peixes.
forno de terra, “semelhante a um túmulo” [ORIGINAL NIMUENDAJU – VER assimilar as mulheres aos peixes,
TB ACIMA] (supra, p. 548), possuem dele um equivalente invertido na forma objetos passivos da pesca, e os homens às pedras de forno, meio passivo do
do, por assim dizer, “podredouro” em que o cadáver é encharcado, apodrece e cozimento (fig. 38).
se descarna, à espera do segundo enterro. De modo que, para esses adeptos do Voltemos um pouco à América do Norte e aos mitos coos M₇₉₃a-c (supra,
alimento ferventado, a água possui dupla função: garante ao mesmo tempo o pp. 505, 509), em que notamos uma dupla progressão hierárquica, quanto
cozimento e a corrupção. Não parece haver dúvida de que os Jê também pra-
ticavam as duplas exéquias (Nimuendaju 5XXX: 153; XXXX: 100; XXXX: 134-35; 16 . E certamente também mais a leste: “Os da baía de Hudson... disseram aos Outaoüas
Dreyfus XXXX: 59-60), mas as ossadas do defundo, limpadas e pintadas, eram [Ottawa; n.t.] que se ficassem muito tempo longe de suas mulheres elas passariam
enterradas, e não mergulhadas na água de lagos ou rios, como fazem os Bororo. fome, porque não sabiam como pescar peixes” (Perrot XXXX: 134).
Vimos que M₈₁₂a-c pressupõem uma dupla afinidade entre as mulheres 17 . Nimuendaju (5XXX: 94) afirma o contrário em relação aos Apinajé: “Homens, mu-
e água de um lado, os homens e o fogo do outro. Entre os Bororo, onde a lheres e crianças participam da pesca com veneno”. Por outro lado, Maybury-Lewis
água garante a preservação das ossadas pintadas e enfeitadas com penas, (XXXX: 52) afirma que as mulheres xavante nunca pescam. Em O cru e o cozido (pp. 282-84)
avançamos diversas razões que levam a crer que a pesca é assunto exclusivamente mas-
assim dotadas de uma carne imputrescível, prevalecem as afinidades
culino na maior parte do Brasil central. Os documentos disponíveis não permitem
inversas: existe uma congruência entre a água, morada das almas, e a socie- afirmar com segurança se a proibição que afeta as mulheres desaparece mais para o
dade dos homens que, na terra, as incarnam; “A mulher sempre tem de dei- norte, ou se toma a forma amainada de uma repartição das tarefas, entre os homens,
xar passar o homem, pois durante as cerimônias os homens representam que preparariam e espalhariam o veneno de pesca e as mulheres, cuja participação se
as almas”[RECUPERAR ORIGINAL] (Colbacchini & Albisetti XXXX: 139). restringiria a recolher os peixes desmaiados em seus cestos.

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à matéria prima da culinária, indo das bagas aos salmões, passando pelas tes de construções enterradas que eram provavelmente fornos, apesar de não
raízes e bulbos, e quanto a seu meio, do cru ao ferventado passando pelo se saber se serviam para cozer alimentos ou produtos cerâmicos.
cozimento no forno. O mito wasco M₆₆₃a (supra, p. 309) igualmente afirma Nessa região da América, portanto, não se pode dizer que a cerâmica
a superioridade do ferventado sobre o assado, que deve aqui ser entendido e o forno de terra fossem incompatíveis. Porém, há um aspecto do nosso
como gralhado diretamente sobre as brasas. Na América do Sul, os Bororo, método no qual devemos insistir, sobretudo nestas últimas páginas: sem
que não possuem forno de terra, colocam o ferventado acima de todos os jamais buscar determinar a unidade e exclusividade de um esquema mítico,
outros modos de cozimento. E os Jê, que nunca fazem isso, visto que não reconhecemos que todo esquema, por mais fundamental que possa pare-
possuem cerâmica e só esquentam água com pedras em brasa para aquecer cer, normalmente gera seu contrário, quer seja por um efeito imediato de
e amolecer bacabas (Nimuendaju 5XXX: 96; Lowie 13XX: 383), consideram espelhamento ou por uma elaboração mais prolongada. Ainda que não nos
o forno de terra um modo de cozimento nobre que confere aos que o utili- seja possível, para não alongar exageradamente este livro, tratá-la em pro-
zam uma superioridade inegável sobre seus vizinhos menos civilizados (T.S. fundidade, convém reservar o lugar de uma transformação cujas premissas
Turner, comunicação pessoal). — que exigem desvios consideráveis — foram colocadas em nosso curso do
Deve ser imediatamente relegada ao arsenal de ideias ultrapassadas a Collège de France em 1964-65. Apenas indicaremos que essa transformação,
tese segundo a qual a ausência de cerâmica entre os Jê e os povos norte- que pode ser encontrada na América do Sul no Chaco e no médio Amazo-
americanos situados a oeste das Rochosas e nas Planícies decorreria de sua nas, reaparece na América Central e também na América do Norte, entre as
incapacidade técnica ou da impossibilidade de encontrarem argila adequada. tribos ditas aldeãs das Planícies. Tornando ou não compatíveis a cerâmica e
Em caso de necessidade, os Okanagon cavavam o solo argiloso, enchiam o o forno de terra — pois os diferentes povos não exploram igualmente todas
buraco de água e cozinhavam o alimento utilizando pedras em brasa (Teit as suas consequências — ela se baseia num esquema mais geral em que a
6XXX: 230-78); em 1929, os Sanpoil ainda sabiam reconhecer a excelente ênfase da especulação mítica se desloca da conquista do fogo no céu pelos
argila branca que antigamente extraíam das margens do rio Columbia para terrenos para a dádiva da argila e da misteriosa arte da cerâmica feita aos
modelar potes que eram secados ao sol e forrados de pele de peixe, utiliza- terrenos por seres sobrenaturais, aquáticos e subterrâneos. Incompatíveis no
dos unicamente para pegar água (Ray 6XXX). eixo terra-céu, forno de terra e cerâmica tornam-se, assim, compatíveis num
Os Arapaho, que ocuparam um lugar importante em nossa argumenta- eixo de que a terra ocupa uma das pontas e a água e o mundo subterrâneo a
ção, ainda faziam cerâmica até recentemente (Kroeber 3XXX: 25) e cacos de outra (cf. cc, pp. 253-54, 327-29; omm, p. 62 n. 1).
cerâmica foram encontrados nos territórios atualmente ocupados pelos Jê Onde a incompatibilidade existe, ela tampouco afeta o cozimento por
(Lowie 13XX: 386-87). Contam-se nos dedos os povos cujo baixo nível téc- fervura, quando é feito em recipientes de madeira, entrecasca ou cestaria
nico poderia fazer considerar como incapazes de fazer cerâmica; em relação impermeabilizada nos quais são mergulhadas pedras em brasa. Como no
aos Jê, aos Sahaptin e aos Salish, a hipótese é simplesmente absurda. Ao con- caso do forno, as pedras ou pedaços de terra cozida funcionam aqui no
trário, todas as análises acima sobre as representações e crenças relativas ao modo de pertinência da natureza e do fogo, não do alimento e da cultura.
forno de terra concorrem para mostrar que se certos povos não fazem cerâ- Nesse caso, tudo se passa como se o forno de terra fosse um operador que
mica, é em razão de uma incompatibilidade de ordem, digamos, filosófica inverte os valores alhures atribuídos ao assado e ao ferventado, pois repre-
que eles concebem de modo mais ou menos consciente entre essas técnicas. senta uma técnica culinária superior, à qual a fervura com pedras quentes
Certas regiões parecem ser insensíveis a essa filosofia natural que preva- se assemelha mais do que o cozimento diretamente sobre a brasa. Apesar de
lece em regiões do Novo Mundo bastante vastas e distantes umas das outras, esta última técnica remeter objetivamente à assadura, o forno de terra atrai
como o Chaco, em que o uso da cerâmica era generalizado mas várias tribos para si, por assim dizer, a outra, e confere a essa forma de particular de fer-
— Matako, Choroti, Ashluslay, Tsirakua, Ayoré — construíam fornos de terra, vura uma primazia sobre a assadura pura e simples.
alguns deles dotados de uma chaminé de aeração escavada na diagonal para Por conseguinte, para os Jê, que não empregam fervura, a assadura no
ventilar o forno. O norte da Argentina, onde a arte da cerâmica foi notavel- forno é superior à assadura no fogo ou na brasa. Para os Salish e seus vizi-
mente desenvolvida nos tempos pré-históricos, fornece vestígios abundan- nhos, que fervem em recipientes de entrecasca, madeira ou cestaria usando

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pedras ardentes, a fervura é superior à assadura no forno, que por sua vez é (M₇₆₆a,b), passando pelos Okanagon (M₇₃₃) e os Sanpoil (M₇₃₇); em dire-
superior à assadura na brasa. Nesse metassistema, os Bororo ocupam, nova- ção ao sul, até os Dakota (M₇₆₉b) e os Navajo (M₇₇₆b). Mesmo nas frontei-
mente, uma posição intermediária, pois temos: ras do grupo de transformação um personagem subterrâneo ou enganador
incarna o forno de terra: nas versões klamath do desaninhador (M₅₃₈), nas
Salish etc.: ferventado > assado no forno > assado simples; versões cowlitz do conflito entre as duas ursas em que o pai de Dona Grizzly
Bororo: ferventado > o > assado simples; se chama Pedra-Quente ou Cozido-sobre-Pedras (M₆₁₅b, Adamson XXXX:
Jê: o > assado no forno > assado simples. 211-13; M₆₁₅c, Jacobs 1XXX: 159-63) e, finalmente, no mito navajo M₇₇₆b em
que Coiote morre por ingerir uma pedra em brasa recoberta de alimento
No plano dos mitos, essa conceitualização da infraestrutura se traduz por enquanto no céu surgem as Plêiades, contrapartida estelar das brasas incan-
uma ideologia em que a conquista do fogo por si só poderia refletir o pri- descentes reunidas no forno de terra, que esses índios também utilizam
mado do forno de terra e a conquista concomitante do fogo e da água o do (Franciscan Fathers XXXX: 207, 208, 218).
cozimento por fervura. Os mitos jê contam a primeira, os mitos bororo a Há de ter sido notado que, em todos esses exemplos, o forno de terra se
segunda e os Salish — que têm o sistema culinário mais completo — inte- projeta de forma negativa, como causa ou efeito de uma disjunção e como
gram em seus mitos os dois tipos de narrativa. meio de destruir um adversário, que às vezes é um monstro antropófago e
De todo modo, de uma ponta à outra do imenso campo mítico que subterrâneo. De modo que se trata de um forno que funciona de certo modo
exploramos, é o forno de terra que, por sua presença ou ausência, sempre ao contrário, um anti-forno por assim dizer, e o emprego dessa fórmula
faz o papel de pivô. Em várias versões jê do mito do desaninhador (M₇, M₈, explica imediatamente a razão disso.
M₁₂) o herói lança para o cunhado uma pedra, às vezes tirada de sua boca Na medida em que todos esses mitos pertencem ao ciclo do desaninha-
(M₁₂), em lugar dos filhotes que tinha sido mandado buscar no topo de uma dor, eles se referem direta ou indiretamente a uma época em que o fogo de
árvore. Segundo M₈, ele lança pedras encontradas no ninho e que, precisa cozinha ainda não existia. Nesse estágio, a imagem do forno de terra conce-
o texto, são redondas. Pois bem, a propósito de um outro grupo Kayapó, os bido como manifestação suprema da arte culinária só podia, portanto, ser
Xikrin, um observador (Frikel 3XXX: 15) nota que “as pedras de forno são virtual; pois apenas a partir do momento em que o fogo é obtido ela poderia
sempre lisas, arredondadas ou ovais, tiradas do leito do rio” [RECUPERAR se realizar. A imagem antecipada do forno de terra que os mitos de origem
ORIGINAL], ou seja, roladas pela água. Esses detalhes, aparentemente sem do fogo apresentam é, consequentemente, em relação ao objeto real ainda
importância, adquirem uma significação mais clara quando se percorre a não surgido, invertida como a imagem de um objeto colocado fora de uma
América do Norte. Para começar, os mitos arapaho chamam de “pedra aque- câmara escura, cujos raios luminosos emitidos se juntam e se cruzam para
cida” o projétil lançado por Lua para matar sua esposa humana e impedir entrar na câmara por seu ponto de abertura. Na ordem espacial, este corres-
que ela desça do céu para a terra (M₄₂₈, Dorsey 5XXX: 223); trata-se, portanto, ponde ao evento marcante que, no tempo do mito, determina a passagem do
de uma pedra como as que esses índios aquecem para, na falta de cerâmica, estado de natureza para o estado de sociedade.
cuja arte perderam, colocar dentro de um buraco na terra (nesse sentido Esse evento decisivo para a vida e o futuro da humanidade não é senão,
aparentado a um forno) forrado de couro e preenchido com água (Kroe- como sabemos, a conquista do fogo no céu por um herói terrestre que por
ber 3XXX: 25). Nas versões do mesmo tipo provenientes dos Algonquinos lá tinha se aventurado deliberadamente ou à sua revelia, pondo em opera-
centrais e orientais (M₄₃₇-₄₃₈, M₄₄₄), uma pedra ardente é jogada na boca ção uma oposição que o pensamento mítico considera essencial e que talvez
de um herói chamado Mergulhão ou Coberto-de-Contas e o mata. Esse esteja na origem de outras representações religiosas, inclusive as de nossa
motivo de um personagem dentro do qual é posta uma pedra em brasa, própria civilização: “Só restaria, afinal, por conta da comunidade indo-
transformando-o simbolicamente em forno de terra, reaparece aqui e acolá, europeia — escreve E. Benveniste (II: 180) a própria noção de “deus”. Esta se
esporadicamente, sem dúvida, mas com uma persistência notável, em todos encontra bem atestada na forma *deiwos, cujo sentido próprio é “luminoso”
os estados da grande transformação mitológica à qual foram dedicados e “celeste”; nessa condição, o deus se opõe ao humano que é “terrestre” (é
estes volumes: dos Maidu da Califórnia (M₆₃₆) até os Assiniboine e os Cree esse o sentido da palavra latina homo)”.

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Mas, se a concordância quanto a essa oposição é tão generalizada, não água. Garantirão para si, consequentemente, a exclusividade na pesca cole-
deveria ela ter um fundamento real? Reconheçâmo-lo, pois, com um pensa- tiva, transformando de modo simbólico, por meio dos mitos, as mulheres
dor insuspeito de nostalgia em relação a um longínquo passado: “Apesar da em objetos passivos dessa atividade, ou seja, peixes.
gigantesca revolução libertadora que a máquina a vapor realizou no mundo Dentre todas as técnicas culinárias, o forno de terra se apresenta portanto
social... não resta dúvida que o fogo por fricção a ultrapassa em eficácia como a que manifesta de modo mais pleno uma homologia formal e íntima
libertadora universal. Pois o fogo por fricção deu ao homem, pela primeira entre a infraestrutura e a ideologia. Dados a complexidade em geral grande se
vez, controle sobre uma força da natureza e, nisso, separou-o definitiva- sua fabricação, seu frequente caráter de empreitada coletiva, o conhecimento
mente do reino animal... Quão ridículo seria atribuir valor absoluto a nossas tradicional e os cuidados exigidos para seu bom funcionamento, a lentidão
concepções atuais, uma vez que toda a história passada pode ser caracteri- do processo de cozimento que pode durar vários dias, e marcado até o último
zada como história do período que vai da descoberta prática da transfor- momento pela incerteza quanto ao resultado, agravada pelo fato de quantida-
mação do movimento mecânico em calor à da transformação do calor por des enormes de alimento — correspondendo às provisões de uma ou várias
movimento mecênico” (Engels XXXX: 147). famílias e sua única esperança de poder sobreviver até o final do inverno —
Para mencionar um último exemplo, escolhido a distância igual da América lhe serem entregues, sobre e até dentro da terra, o forno atesta a presença e a
e da Europa, os Pigmeus das montanhas da Nova Guiné contam que o primeiro potência do fogo. A cada vez que é acendido, ele comemora majestosamente
homem desceu do céu por uma corda e descobriu na terra os animais, que cozi- o conflito inicial, imagem antecipada de todos os que viriam a seguir, e cujo
nhou num forno de terra. Percebeu então que a corda estava rompida. A esposa resultado foi a conquista do fogo. É uma técnica que permanece, pois, inti-
que ele tinha deixado no céu escutou seus lamentos e jogou para ele o fogo e mamente ligada a uma mitologia heroica, ainda perceptível para aqueles que,
as plantas alimentícias. Dessas, quatro pepinos se transformaram em mulheres, numa praia da Nova Inglaterra, tiveram a experiência da atmosfera alegre e
com quem ele se casou; elas plantaram sua roça e lhe deram duas filhas e dois marcada por um fervor ritual de um clambake. Por seu caráter heroico, essa
filhos, de que se originaram os humanos (Aufenanger XXXX: 247-49). De modo mitologia muitas vezes se opõe, até atingir a incompatibilidade — no caso
que, também ali, a humanidade por vir recebe o fogo de cozinha em troca do dos Jê, dos Sahaptin e dos Salish pelo menos, ao emprego de recipientes de
rompimento da comunicação que outrora existia entre a terra e o céu. cerâmica para cozer por fervura, símbolos do que poderíamos chamar de
Mas sabemos também que, pelo menos na América, esse esquema cos- culinária fecunda, mas caseira. Essa oposição evoca outras, como aquela per-
mológico é duplicado num esquema sociológico ao qual se cola. Nessa pers- cebida por Dumézil (2XXX: 135-59) entre a morte heroica, seguida de crema-
pectiva, os doadores e tomadores de mulheres se opõem no eixo da vida ção do cadáver, e a morte fecunda por afogamento ou seguida de enterro.
social como a terra, no eixo do mundo, se opõe ao céu, e a própria terra E assim, ao mesmo tempo em que entrevemos um sistema de categorias
ao mundo subterrâneo. Se o fogo original se encontra do lado do céu e seu que se presta a múltiplas transformações e que, em sua essência, poderia ser
receptáculo obrigatório, que mais tarde se tornará o forno, do lado da terra, universal (pois que certamente fazem dele parte também provas de inicia-
resulta que as mulheres trocadas no movimento das alianças matrimoniais ção ou de passagem com descarnamento simbólico por meio de escarifica-
exercem, entre doadores e tomadores, a mesma função mediadora que, em ção, flagelação, picadas de insetos venenosos ou cozimento, cf. cc, pp. 340-43),
virtude da lógica do sistema, devem também assumir entre fogo e terra. É compreendemos que o humilde relato de uma briga de família que nos serviu
consequentemente preciso que sejam elas a se ocuparem do forno.18 Para de ponto de partida o contém por inteiro em germe, e que o gesto para nós
afirmarem sua presença no sistema, os homens só têm como alternativa tornado insignificante de inflamar um combustível aproximando dele um
intervir na obra feminina a título passivo, na forma das pedras ou do fogo fósforo perpetua, no seio de nossa civilização mecânica, uma experiência
que os mitos os fazem personificar, ou reivindicar para si exclusivamente que, para toda a humanidade outrora e para seus últimos testemunhos ainda
um papel ativo no âmbito complementar ao do forno de terra, o do cru e da hoje, foi ou permanece investida de uma gravidade máxima. Pois nesse gesto
são simbolicamente arbitradas as oposições mais carregadas de sentido que
18 . À diferença das regiões da Nova Guiné em que só os homens detêm o uso ritual do é dado ao homem inicialmente conceber, entre céu e terra na ordem física,
forno, talvez pelo fato de lá ser atribuída às mulheres uma polaridade celeste. entre homem e mulher na ordem natural, entre afins na ordem social.

600 | Sétima parte: A aurora dos mitos O mito único | 601


Finale

[...] e todos os capítulos são precedidos por epígrafes


estranhas e misteriosas, que aumentam particularmente
o interesse e dão mais caráter a cada parte da composição.
vitor hugo, Han d’Islande, Prefácio à primeira edição

Ao longo dessas páginas, o nós de que o autor não quis se afastar não era
apenas “de modéstia”. Traduzia também o cuidado mais profundo de fazer
do sujeito o que, numa tal empresa, ele devia tratar de ser, se é que não o é
sempre: lugar insubstancial oferecido a um pensamento anônimo para que
ali se desenvolva, tome distância de si mesmo, recupere e realize suas verda-
deiras disposições e se organize exclusivamente em função das exigências
de sua própria natureza. Pois se esses vinte anos dedicados ao estudo dos
mitos — de que estes tomos cobrem apenas os últimos oito — propiciaram
a quem escreve estas linhas uma experiência profunda, terá sido a de que a
consistência do eu, preocupação primeira de toda a filosofia ocidental, não
resiste à sua aplicação contínua a um mesmo objeto, que o invade por inteiro
e o impregna do sentimento vivido de sua própria irrealidade. Visto que o
pouco de realidade a que ele ousa ainda pretender é o de uma singularidade,
no sentido que os astrônomos dão ao termo: lugar de um espaço e momento
de um tempo mutuamente relativos, onde ocorreram, ocorrem ou ocorre-
rão eventos cuja densidade, ela também relativa a outros eventos não menos
reais, porém mais dispersos, permite circunscrever aproximadamente, con-
tanto que esse nó de eventos idos, atuais ou prováveis não exista como subs-
trato, mas somente no fato de que coisas ali ocorrerem, embora essas coisas
que ali se entrecruzam surjam elas mesmas de inumeráveis alhures e os mais
das vezes de não se sabe onde.

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Alguém poderá perguntar por que tanta reticência em relação ao sujeito Piaget nos faz essa censura (1968: 97), que aparentemente decorre de um
quando se fala de mitos, ou seja, de narrativas que não podem ter surgido mal-entendido. Pois reconhecemos que as estruturas têm uma gênese, con-
sem que num determinado momento — por mais que este geralmente se tanto que se reconheça também — mas a obra de Piaget não o demonstra?
mantenha inacessível — cada uma delas tenha sido imaginada e contada — que cada estado anterior de uma estrutura é ele mesmo uma estrutura.
pela primeira vez por um indivíduo particular. Só sujeitos podem ser ditos “Não se percebe porque seria descabido pensar que a natureza última do real
falantes e todo mito deve, em última instância, ter origem na criação indi- é estar em permanente construção em vez de consistir numa acumulação de
vidual. Não há dúvida quanto a isso mas, para passar para o estado de mito, estruturas prontas” (Piaget 1968: 58). Certamente, mas são já estruturas que,
é preciso, justamente, que uma criação deixe de ser individual e perca, no por transformação, geram outras estruturas, e o fato da estrutura é primeiro.
transcorrer dessa promoção, o essencial dos fatores ligados à probabilidade Menos confusões teriam ocorrido em torno da noção de natureza humana,
que a compenetravam de saída e que podiam ser atribuídos ao tempera- que insistimos em utilizar, se tivesse sido percebido que não pretendemos
mento, ao talento, à imaginação e às experiências pessoais de seu autor. Dado designar com isso um empilhamento de estruturas montadas e imutáveis, e
que a transmissão dos mitos é oral e sua tradição coletiva, os níveis proba- sim matrizes a partir das quais são geradas estruturas que pertencem todas
bilísticos que incluíam não pararão de se erodir, em razão de sua resistência a um mesmo conjunto, sem por isso permanecerem idênticas ao longo da
ao desgaste social menor do que a dos níveis mais rigidamente organizados existência individual do nascimento até a idade adulta nem, no que diz res-
porque respondem a necessidades compartilhadas. Reconheceremos, assim, peito às sociedades humanas, em todos os tempos e lugares.
sem dificuldade, que a diferença entre criações individuais e mitos reco- No entanto, a psicanálise e as escolas ditas genéticas não têm a mesma
nhecidos como tais não é de natureza, mas de grau. Nesse sentido, a análise ideia de gênese que aquela sobre a qual Piaget e eu poderíamos mais facil-
estrutural pode legitimamente ser aplicada a mitos provenientes da tradição mente chegar a um acordo. Longe de reconhecerem que, como escreve Pia-
coletiva e a obras de um único autor, pois o programa será o mesmo em get, “no real, como na matemática, toda forma é um conteúdo para as que
ambos os casos: explicar estruturalmente o que pode sê-lo e que nunca é a englobam e todo conteúdo é uma forma para os que contém” (id. ibid.:
tudo e, quanto ao restante, procurar perceber, ora mais ora menos, um outro 95), pretendem explicar tipos de ordens reduzindo-os a conteúdos que não
gênero de determinismo que caberá buscar nos níveis estatístico ou socioló- são da mesma natureza e que, por efeito de uma singular contradição, agi-
gico, que dizem respeito à história pessoal, à sociedade ou ao meio. riam sobre sua forma de fora. O estruturalismo autêntico busca, ao contrá-
Admitamos, pois, que toda criação literária, oral ou escrita, só pode ser rio, perceber antes de tudo as propriedades intrínsecas de certos tipos de
individual na origem. Na medida em que será imediatamente entregue à tra- ordens. Tais propriedades não exprimem nada que lhes seja exterior. Ou,
dição oral, como acontece entre os povos sem escrita, apenas os níveis estru- caso se julgue imprescindível que elas se refiram a algo de externo, será pre-
turados, apoiados em fundações compartilhadas, permanecerão estáveis, ao ciso voltar-se para a organização cerebral, concebida como uma rede da qual
passo que os níveis probabilísticos manifestarão extrema variabilidade, por determinadas propriedades são traduzidas por sistemas ideológicos os mais
sua vez função da personalidade dos narradores sucessivos. Entretanto, no diversos nos termos de uma estrutura particular e, cada um a seu modo,
decorrer do processo da transmissão oral, esses níveis probabilísticos irão revelam modos de interconexão.
chocar-se entre si. Desgastar-se-ão desse modo uns contra os outros, desbas- Mas essa prudência filosófica, que permite evitar as armadilhas das inter-
tando progressivamente da massa do discurso o que se pode chamar de suas pretações redutoras, é também nossa força. De fato, ela implica que toda
partes cristalinas. Todas as obras individuais são mitos em potencial, mas é nova interpretação proposta para um mito, a começar pelas nossas, tome seu
sua adoção no modo coletivo que atualiza, em certos casos, o seu “mitismo”. lugar na seqüência das variantes já conhecidas do mito (Lévi-Strauss 1958a:
Percebe-se aí em que as interpretações estruturalistas autênticas dife- 240). Não estaríamos então condenados a um círculo vicioso, em que cada
rem daquelas a que se entregam a psicanálise e as escolas que pretendem forma imediatamente mutada em conteúdo, para ser explicada, requereria
identificar a estrutura de uma obra individual ou coletiva ao que chamam uma outra forma, e assim por diante, infinitamente? Do que precede resulta,
erroneamente de sua gênese. Sabemos que toda estrutura é necessariamente ao contrário, que o critério de explicação estrutural escapa desse paradoxo,
gerada. No excelente livrinho que recentemente dedicou ao estruturalismo, pelo fato de só ela ser capaz de explicar ao mesmo tempo a si mesma a às

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outras. Pois na medida em que ela consiste em explicitar um sistema de senão uma submissão a sua própria necessidade. A origem desta se perde na
relações que as demais variantes apenas encarnavam, ela as integra a si e se aurora dos tempos, jaz no âmago do espírito, e seu desenvolvimento espon-
integra a ele num novo plano, em que se opera a fusão definitiva de fundo tâneo é retardado ou acelerado, inflete-se ou bifurca, sofrendo imposições
e forma, e que não é portanto passível de novas encarnações. Revelada a si históricas que a engatam, por assim dizer, em outros mecanismos, com os
mesma, a estrutura do mito põe termo a suas realizações. quais seus efeitos vêm a compor-se, sem trair sua orientação primeira.
Percebe-se assim em que a obliteração do sujeito representa uma neces- Voluntariamente recuado para deixar o campo livre para esse discurso
sidade de ordem, por assim dizer, metodológica: obedece ao escrúpulo de anônimo, o sujeito não renuncia a dele tomar consciência, ou melhor, a dei-
nada explicar do mito senão pelo mito e excluir, conseqüentemente, o ponto xar que ele tome consciência através dele. Alguns fingem crer que a crítica
de vista do árbitro que inspeciona o mito de fora, e por isso tende a atribuir- da consciência deveria levar logicamente a renunciar ao pensamento cons-
lhe causas extrínsecas. É preciso, ao contrário, deixar-se tomar pela con- ciente. Mas jamais quisemos fazer outra coisa senão obra de conhecimento,
vicção de que por detrás de todo sistema mítico se perfilam, como fatores isto é, tomar consciência. Contudo, a filosofia conseguiu manter as ciências
preponderantes que o determinam, outros sistemas míticos. São eles que ali humanas presas num círculo por tempo demais, não lhes permitindo perce-
falam e ecoam uns aos outros, senão ao infinito, pelo menos até o momento ber outro objeto de estudo para a consicência que não a própria consciên-
inacessível em que, há centenas de milhares de anos e talvez mais, a huma- cia. Daí, de um lado, a impotência prática das ciências humanas e, do outro,
nidade debutante proferiu seus primeiros mitos. O que não significa que a seu caráter ilusionista, já que é próprio da consciência enganar a si mesma.
cada estágio desse desenvolvimento complexo o mito não seja infletido ao Seguindo Rousseau, Marx, Durkheim, Saussure e Freud, o que o estrutura-
passar de uma sociedade a outra, avizinhando infra-estruturas tecno-eco- lismo busca é revelar à consciência um objeto outro; colocá-la, em relação
nômicas diferentes cuja atração ele sofre a cada vez. Ele precisa se encaixar aos fenômenos humanos, numa posição comparável àquela que as ciên-
às engrenagens destas e mostramos várias vezes que, para entender os afas- cias físicas e naturais têm comprovado ser a única que permite o exercício
tamentos diferenciais que se manifestam entre versões do mesmo mito per- do conhecimento. Dizer que a consciência não é tudo, nem mesmo o mais
tencentes a sociedades vizinhas ou afastadas, convinha dar à infra-estrutura importante, não leva a renunciar a exercê-la, não mais do que os princípios
o seu devido lugar. dos filósofos existencialistas fizeram outrora com que eles levassem uma
Em cada versão do mito se expressa, portanto, a influência de um duplo vida devassa nas caves de St. Germain des Près. Muito pelo contrário, pois a
determinismo: um a liga a uma sucessão de versões anteriores ou a um con- consciência pode assim avaliar a imensidão de sua tarefa e tomar coragem
junto de versões estrangeiras, o outro age de modo por assim dizer transver- para empreendê-la, na esperança, que finalmente lhe é ofertada, de que esta
sal, por imposições de origem infra-estrutural que impõem a modificação não está condenada à esterilidade.
deste ou daquele elemento, tendo por resultado a reorganização do sistema Mas essa tomada de consciência permanece sendo de ordem intelectual,
para acomodar tais diferenças a necessidades de ordem externa. Das duas o que quer dizer que ela não difere substancialmente das realidades às quais
uma: ou a infra-estrutura pertence à natureza das coisas que põe em opera- se aplica, que ela é essas realidades acedendo a sua própria verdade. Sob esse
ção e nesse caso, inerte e passiva à imagem delas, nada pode gerar, ou ela é da novo aspecto, não há como reintroduzir subrepticiamente o sujeito. Não sen-
ordem do vivido e se encontra perpetuamente em estado de desequilíbrio e tiremos a menor indulgência para com a impostura de trocar a mão direita
tensão, caso em que os mitos não poderiam dela provir por uma causalidade pela esquerda, para devolver por debaixo da mesa à pior filosofia o que se
que logo se tornaria tautológica. Eles constituem, antes, respostas temporá- afirmara ter dela tirado por cima; e que, simplesmente substituíndo o eu
rias e locais aos problemas colocados pelos ajustes realizáveis e as oposições pelo outro e inserindo uma metafísica do desejo por sob a lógica do conceito,
impossíveis de superar, que eles então tratam de legitimar ou ocultar. O retira desta seu fundamento. Pois colocando em lugar do eu, de um lado, um
conteúdo que o mito assume não é anterior, mas posterior a esse impulso outro anônimo e, do outro, um desejo individualizado (que de outro modo
primeiro; longe de derivar de um conteúdo, o mito dele se aproxima, atra- nada designaria), não se poderia ocultar o fato de que bastaria colá-los um
ído por sua gravidade específica. Em cada caso particular, ele aliena nesse ao outro e virar o conjunto de lado para reconhecer no avesso o eu que com
contato parte de sua liberdade aparente que, olhada de outro ângulo, não é tanta pompa se havia declarado abolido. Se existe um momento em que o eu

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pode reaparecer, só pode ser aquele em que, tendo terminado sua obra, que Neste caso, a ordem escolhida corresponderia à ordem real. Mas não se deve
o excluía do início ao fim (já que contrariamente ao que se possa crer, ele era de modo algum conceber o caminho destes quatro volumes como uma pro-
menos o autor dela do que a obra em si, enquanto ele escrevia, era o autor de gressão linear. Por intermédio de mitos introduzidos no segundo volume
um executante que só vivia através dele), ele pode e deve ter dela uma visão em sequência aos que haviam sido apresentados no primeiro, no terceiro
de conjunto, como aqueles que o lerão, sem se encontrarem na situação volume fomos levados da América do Sul para a América do Norte, graças a
temerária de terem sido impelidos a escrevê-la. Encimado por uma epígrafe mitos invertidos cuja significação era idêntica. No quarto volume, voltamos
que não se situa no prolongamento das demais, mas antes as comenta, esse da América do Norte para a América do Sul graças a mitos idênticos (pois
finale se desenvolve ele próprio à moda de comentário sobre uma obra ter- que M₅₂₉-₅₃₁ reproduzem M₁, M₇-M₁₂) cuja significação é invertida. O código
minada e cujo redator, desincumbido de sua missão e por isso recuperando astronômico traduz de modo particularmente claro esse movimento recí-
o direito à primeira pessoa, cuida de tirar suas próprias lições. proco, já que permitiu mostrar como um herói que, no início personifica a
constelação do Corvo (M₁), passa para o papel funcional atribuído a Orion
! (M₅₅₇-₅₅₈) e vem a se identificar a esta última constelação em oposição de fase
com a outra (M₅₇₅), personificada, na América do Sul (M₁₂₄), por um herói
Considerando meu trabalho em retrospecto, uma coisa me chama imedia- cujas aventuras também se opõem às de seu congênere norte-americano.
tamente a atenção, tanto mais que não corresponde a uma intenção delibe- Porém, não é o campo da etnografia que meus críticos geralmente esco-
rada de minha parte. Começando a investigação por mitos do hemisfério lhem. Fazem-me, antes, objeções de método; algumas delas tão pobres que
sul e deslocando-a progressivamente para regiões setentrionais e ocidentais seria indelicado nomear seus autores. Livremo-nos disso rapidamente, para
do hemisfério norte, tomei a América, de certo modo, a contrapelo, já que limpar o terreno, e passemos para coisas mais sérias.
seu povoamento se realizou, segundo todas as evidências, principalmente Censuraram-me por fundar minhas análises em resumos de mitos sem
no sentido inverso. Seria isso útil ou necessário, independentemente das ter antes feito sua crítica textual. Comecemos por este segundo ponto. Todos
razões que me colocavam mais à vontade com mitos de populações que eu aqueles que possuem algum conhecimento dessas matérias terão certamente
mesmo tinha observado? Certamente sim, e em larga medida por uma outra notado que apesar da enormidade do material envolvido, ele representa tão
razão, ligada à própria natureza do conhecimento etnográfico: muito mais somente uma fração mínima dos mitos provenientes das duas Américas que
pobre do que aquele de que dispomos para a América do Norte, o corpus eu teria podido utilizar. Crêem que eu escolhi meus documentos ao acaso
sul-americano se presta melhor a um estudo preliminar porque o percebe- ou por conveniência pessoal? Por detrás do milhar de mitos ou variantes
mos como que de longe, simplificado, reduzido por sua própria pobreza a de mitos submetidos à exegese, muitos mais se perfilam, que eu dissequei,
seus contornos essenciais. O corpus norte-americano, ao contrário, se apre- analisei sumariamente e não retive por razões muito diversas, entre as quais
senta tão copioso, complexo e investigado que, se eu tivesse começado por a crítica de texto, mas contida pela convicção de que, a não ser que haja pro-
ele, teria podido desviar a análise por caminhos transversais. A investigação vas gritantes disso, não existem versões “boas” ou “más” de um mito; ou que,
sul-americana, mais ingrata talvez, permitiu ganhar tempo. Mas perguntei- de todo modo, não cabe à análise decidir em função de critérios estranhos
me muitas vezes se o resultado teria sido o mesmo, se eu tivesse começado à matéria de seu estudo. São antes os mitos que se criticam uns aos outros
pelo outro lado. Eu provavelmente não teria escolhido o mesmo mito de e se escolhem, abrindo na massa confusa do corpus certos itinerários que
referência: o material empregado pelas versões norte-americanas é tão rico e não teriam sido os mesmos caso um determinado mito tivesse emergido
tão diversificado que o mito não sobressai no corpus de modo tão claro. Por antes de um outro. Não só eu fiz constantemente a crítica que minhas fontes,
outro lado, será que é fato que, tendo a América do Sul sido povoada depois para minha adificação pessoal, sem sentir a necessidade de manter o leitor
da América do Norte, as versões do mito de referência ali representam for- a par dessas fases preliminares da investigação que não o concernem, como
mas mais recentes e degradadas? Poderia ocorrer o contrário, se o mesmo sempre que era possível, ou seja, quando havia um texto indígena disponí-
mito, longamente elaborado e transformado na América do Norte, tivesse, vel numa língua da qual existiam também gramáticas e dicionários, tomei o
na América do Sul, preservado mais seu frescor e simplicidade primeiras. cuidado de comparar a tradução ao original, o que por vezes permitiu, como

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no caso dos mitos klamath recolhidos por Barker (supra, pp. 45, 51, 63, 72), — poderiam dizer agora — desaparecerem completamente no último. Mas
obter esclarecimentos suplementares, que não se evidenciavam na tradução. os quadros são ilustrações, não provas; sua função é sobretudo didática.
Quanto aos resumos que, devo admitir, frequentemente me deram mais Uma vez treinado no uso desse procedimento, o leitor não precisa ser sub-
trabalho do que as exegeses propriamente ditas, eles nunca servem de base metido a ele a todo momento. Pois se julgar conveniente, como me acon-
para estas. Destinam-se ao leitor e lhe oferecem uma visão de conjunto teceu ao longo desta empreitada, poderá pegar lápis e papel e, no caso de
de cada mito, até que a discussão incorpore progressivamente os detalhes cada comparação entre dois ou vários mitos, converter uma exposição que
e nuances que não tinham lugar dentro do resumo. Desconfio demais de julguei poder apresentar em forma discursiva para ganhar tempo e espaço
resumos para atribuir-lhes qualquer outro uso, tendo sempre tido a experi- (que os quadros exigem para serem inteligíveis) e também, digamo-los cla-
ência da impossibilidade de penetrar o espírito de um mito a menos que se ramente, para economizar na composição. Eu mesmo, até o final de minhas
mergulhe nas versões integrais, por mais difusas que sejam, e que se deixe análises, não parei de montar esses quadros, tão numerosos quanto no início,
realizar-se uma lenta incubação que exige horas, dias, meses — às vezes para mim mesmo; apenas achei que não cabia mais reproduzi-los. E qual-
anos — até que o pensamento, guiado inconscientemente por detalhes ínfi- quer leitor atento haverá de constatar que cada comparação de mitos não
mos, consiga abraçar o contorno do mito. O resumo, tal como o utilizo, não faz senão descrever e comentar um quadro sinótico implícito, superpondo
cumpre nenhuma função analítica, serve apenas de ponto de partida para termo a termo os membros homólogos de várias cadeias sintagmáticas.
uma exposição sintética que o vai enriquecendo com dados adicionais, até Foram mais longe ainda, ao acusarem-me — de modo um tanto inco-
que se consiga reconstituir e interpretar no conjunto o mito completo. erente aliás — de empregar símbolos tomados do arsenal tipográfico dos
Igualmente pobre é a crítica daqueles que buscam me colocar em contra- lógicos e matemáticos para escrever fórmulas a seu ver sem nenhuma vali-
dição comigo mesmo, dizendo que eu teria afirmado ao mesmo tempo que dade ou relevância, embora eu tivesse claramente explicado minha posição
a análise mítica não tem fim e os próprios mitos são in-termináveis (cc: 14) a respeito desde o início (CC: 39), esclarecendo que tais fórmulas não eram
e que (passim) o conjunto dos mitos que constituem o objeto de meu estudo ferramentas de demonstração, mas estenogramas ou desenho e, ao mesmo
consiste num sistema fechado. Só pode raciocinar assim quem desconhece tempo, de um suposto recuo entre um artigo escrito em 1955 para saudar a
a diferença entre o discurso mítico de cada sociedade que, como todo dis- entrada da matemática nas ciências humanas (Lévi-Strauss 1955) e a decla-
curso, permanece aberto — pode ser dada uma continuação para cada mito, ração de humildade em relação ao tratamento lógico-matemático dos mitos
novas variantes podem surgir, novos mitos podem nascer — e a linguagem com que terminava a abertura de O cru e o cozido. Demonstra-se assim total
com que esse discurso opera, a qual, em cada momento dado, constitui um ignorância das coisas acerca das quais se pretende pontificar. Meu artigo de
sistema. É em relação a si mesma e vista segundo a ordem de seu discurso 1955 considerava o tratamento das questões de parentesco pela teoria dos
realizado na diacronia que uma mitologia nunca é fechada. Mas a abertura conjuntos, inaugurado por André Weil num de meus livros (Lévi-Strauss
dessa fala, no sentido saussuriano do termo, não exclui que a língua a que [1949] 1967, cap. XIV), que logo faria escola, visto que tantos livros e artigos
pertence seja fechada em relação a outros sistemas igualmente tomados na seguiram essa via a partir de 1949 que poderíamos dizer que existe hoje uma
sincronia, um pouco como um cilindro, superfície fechada e que permane- verdadeira matemática do parentesco, para o nascimento da qual não pre-
ceria igual a si mesma se se alongasse indefinidamente ao longo do tempo tendo ter dado outra contribuição senão a de formular tais questões numa
por uma de suas bases: o observador poderia dar a volta em torno dele e linguagem apropriada para chamar a atenção dos matemáticos, capaz de
determinar a fórmula para calcular, a cada instante, o volume interno, ainda animá-los a prosseguir o trabalho dos etnólogos, que haviam chegado a um
que jamais conseguisse percorrê-lo no comprimento. ponto em que a complicação dos problemas desafiava seus procedimentos
Outros alegaram que o método que utilizo não parava de regredir obra artesanais e os obrigava a parar.
após obra e que isso revelava sua impotência. O argumento foi primeiro Contudo, o estudo dos mitos levanta questões muito mais difíceis e que
aplicado aos três primeiros volumes das Mitológicas pela simples razão não estão ligadas apenas ao fato de estarmos condenados a não conhecer
que os quadros sinóticos, que utilizei em abundância no primeiro volume, desse imenso campo senão aspectos fragmentares e parciais, que sofre-
tornavam-se mais raros no segundo e mais ainda no terceiro, para então ram todos os tipos de alterações e fenômenos de erosão antes mesmo de

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os apreendermos. Ainda que se o suponha idealmente intacto por uma fic- 1969a,1969b); trabalhos nesse sentido, iniciados a partir destas Mitológicas,
ção que em nada corresponde à realidade, todo campo mítico particular anunciam-se promissores, pelo que me dizem. A definição das categorias,
é sempre apreendido em devir e, pelas razões já evocadas (supra, pp. 560), como sistemas formados ao mesmo tempo por um conjunto de termos e
carrega consigo e gera ao longo de seu processo de transmissão oral níveis um conjunto de relações entre tais termos, corresponde bem a uma possível
probabilísticos que, na melhor das hipóteses, permitirão apenas isolar e deli- definição do mito. E a noção de morfismo, que exprime apenas a existência
mitar regiões restritas em que os fenômenos estão totalmente determina- de uma relação entre dois termos, sem se preocupar em precisar-lhe a natu-
dos. Essa situação nada tem de desencorajadora, pois não difere tanto assim reza lógica, parece resolver o mesmo tipo de dilema que aquele cuja solução
da que conhecem os físicos dedicados ao estudo das formas mais estáveis me foi revelada, há vinte e cinco anos. Um matemático ilustre mas da velha
e mais bem organizadas da matéria. Como escreve um deles: “No início escola me havia dito que não podia me ajudar a esclarecer questões de paren-
deste século, os físicos buscavam principalmente mostrar que os cristais são tesco porque só conhecia a adição, a subtração, a multiplicação e a divisão, e
arranjos ordenados de átomos, íons ou moléculas. Mas já há algum tempo o casamento não podia ser assimilado a nenhuma dessas operações, quando
eles insistem mais no fato de que essa ordem é limitada e imperfeições sem- um mais jovem e já mencionado me garantiu que lhe era totalmente indife-
pre existem, devido à presença de impurezas e a irregularidades nativas” rente saber o que seria o casamento, matematicamente falando, contanto que
(Henisch: 30). A cristalografia não deixa de existir por isso, e as chances da entre diferentes tipos de casamento fosse possível definir relações.
análise estrutural não estão comprometidas por se saber que ela só pode se A prudência declarada no limiar de uma nova empreitada em nada se
exercer plenamente sobre certos aspectos favoráveis de seus objetos. aproxima, portanto, do arrependimento. Sua razão de ser é o surgimento de
As dificuldades do tratamento lógico-matemático, que sabemos desejável novos problemas, cuja dificuldade eu tinha percebido desde o início, reco-
e possível, são de outra natureza. Estão ligadas, em primeiro lugar, ao emba- nhecendo que na via que estava buscando abrir “tudo ou quase restava por
raço que enfrentamos para definir inequivocamente as unidades constituti- fazer antes que se pudesse falar em verdadeira ciência” (O cru e o cozido,
vas do mito como termos ou como relações; pois a depender das variantes quarta capa); certo, aliás, de que caberá a outros, talvez se valendo de minha
consideradas e em diferentes etapas da análise, cada termo pode se apresen- limpeza de terreno, resolvê-los lançando mão de novas ferramentas lógico-
tar como relação e cada relação como termo. Em segundo lugar, essas rela- matemáticas, mais flexíveis do que aquelas que provaram ser eficazes em
ções ilustram tipos de simetria diferentes uns dos outros, numerosos demais campos de menor complexidade.
para serem descritos no vocabulário limitado da contrariedade, da contra- É verdade que me foi feita uma objeção prejudicial à utilização aberta-
dição e de seus inversos. Essa segunda dificuldade aumenta ainda mais na mente desejada de ferramentas lógico-matemáticas, para pegar-me num
medida em que os elementos, assim definidos para efeito de análise, costu- outro tipo de contradição. Tais ferramentas, dizem, pertencem ao arsenal
mam ser conjuntos em si complexos que desistimos de destrinchar mais por epistemológico de nossa própria civilização e, ao querer aplicá-las a uma
falta de procedimentos apropriados. De modo que a análise mítica maneja, matéria-prima retirada de sociedades diferentes para aprofundar nosso
sem se dar conta disso o tempo todo, menos termos e relações simples do conhecimento acerca delas eu estaria dando provas de um etnocentrismo
que pacotes de termos ou pacotes de relações, classificando-os e definindo- ingênuo, transpondo para o campo do conhecimento o etnocentrismo de
os de modo inevitavelmente grosseiro e desajeitado. que afirmo querer me livrar encontrando, na lógica subjacente dos mitos, as
Eu tinha consciência de tais obstáculos, e por isso não achei possível pro- regras que geram o discurso autêntico de cada uma dessas sociedades. Con-
meter ao estudo estrutural dos mitos um progresso tão rápido, no sentido tudo, e voltarei a isso (infra, pp. 571), o relativismo cultural seria uma infan-
lógico-matemático, quanto o que foi realizado em vinte anos no estudo das tilidade se, para reconhecer a riqueza de civilizações diferentes da nossa e a
regras de casamento e dos sistemas de parentesco. Desde então, tanto na impossibilidade de estabelecer um critério filosófico ou moral para deter-
França como nos Estados Unidos, matemáticos vieram espontaneamente minar o valor relativo das escolhas que levaram cada uma delas a escolher
informar-me de um desenvolvimento recente em sua ciência, conhecido certas formas de vida e de pensamento e abrir mão de outras, se visse obri-
como teoria das categorias, que poderia tornar os mitos passíveis de serem gado a tratar com condescendência, ou até com desprezo, o saber científico.
tratados pelos mesmos métodos que os sistemas de parentesco (Lorrain Por mais que suas aplicações tenham causado males e outros ainda mais

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terríveis se anunciem, ele não deixa de ser um modo de conhecimento cuja mas realizar a síntese de seu pensamento e daquele — cuja problemática,
superioridade absoluta é incontestável. É fato que esse saber científico nas- está-se a descobrir, não era totalmente desprovida de sentido — dos séculos
ceu e cresceu dando as costas a outros modos de conhecimento, em razão que os precederam.
da ineficácia prática destes em relação aos novos objetivos que ele estabe-
lecia para si. Esse divórcio fez perder de vista por muito tempo — mas isso !
talvez fosse inevitável — certos aspectos do real que quase esquecemos e,
principalmente, que as formas de conhecimento mais bem adaptadas a eles Outras críticas provêm da filosofia, valendo-se do aspecto filosófico que
enfrentavam questões verdadeiras, afastadas por sua suposta insignificância alguns pensam reconhecer em meus escritos. Mas o fato de eu às vezes cui-
porque, na verdade, os primeiros caminhos tomados pelo saber científico dar de indicar, sem jamais insistir nisso, o que meu trabalho significa para
não mais lhe permitiam compreender seu interesse e ainda não lhe permi- mim de um ponto de vista filosófico, não significa que eu dê importância a
tiam resolvê-las. Faz apenas alguns anos que a ciência vem tomando outros esse aspecto. O que busco é adiantar-me em recusar o que os filósofos pode-
rumos. Ao se aventurar por campos mais próximos da sensibilidade, novos riam pretender me fazer dizer. Não oponho uma filosofia que seria minha
para ela mas que ela apenas redescobre, ela prova que o saber agora só pro- à deles, pois não possuo filosofia que mereça atenção, apenas algumas con-
gride se se estender para compreender outros saberes; e convém aqui dar vicções rústicas às quais voltei, menos por ter aprofundado a reflexão do
ao termo compreender seu duplo sentido de apreender pelo intelecto e de que por erosão regressiva do que me foi ensinado nesse campo, e do que eu
incluir. De modo que o aprofundamento do conhecimento caminha junto mesmo ensinei. Opondo-me a qualquer exploração filosófica que se queira
com uma progressiva dilatação dos quadros anteriormente definidos para o fazer de meus trabalhos, limito-me a dizer que por mim eles apenas pode-
saber científico tradicional: este redescobre, incorpora e, num certo sentido, riam, na melhor das hipóteses, contribuir para uma abjuração do que hoje
legitima formas de pensamento que inicialmente considerara irracionais e se entende por filosofia.
rejeitara. Adotar as perspectivas do saber científico não equivale, portanto, Tal atitude negativa é inspirada pelas circunstâncias. A leitura das críti-
a reintegrar sub-repticiamente quadros epistemológicos próprios de uma cas que certos filósofos dirigem ao estruturalismo, acusando-o de abolir a
sociedade para explicar outras. Significa, ao contrário, constatar, como o pessoa humana e seus valores consagrados, deixa-me tão atônito quanto
estudo dos sistemas de parentesco australianos ensinou-me pela primeira se alguém se insurgisse contra a teoria cinética dos gases sob a alegação de
vez, que as formas mais novas do pensamento científico podem se sentir que, ao explicar porque o ar quente se dilata e sobe, ela poria em risco a
emparelhadas aos procedimentos intelectuais de selvagens, estes desprovi- vida familiar e a moral do lar, cujo calor assim desmistificado perderia suas
dos dos meios técnicos que o saber científico, em suas fases intermediárias, ressonâncias simbólicas e afetivas. Na esteira das ciências físicas, as ciências
teria permitido obter. De modo que se trata, pelo menos nesse plano especí- humanas têm de se convencer de que a realidade de seu objeto de estudo
fico, de reconciliar o fato incontestável do progresso do conhecimento com não se encontra inteiramente aquertelada no nível em que o sujeito a per-
a possibilidade de recuperar um sem-número de riquezas que esse mesmo cebe. Essas aparências recobrem outras aparências que não valem mais do
progresso tinha sacrificado no início; de finalmente se situar num campo em que elas, e assim por diante, até uma natureza última que sempre se esquiva
que o pensamento abstrato e o saber teórico, ao avançarem, percebem que e que certamente não atingiremos jamais. Tais níveis de aparência não se
ao mesmo tempo recuperam, num movimento retrógrado em nada incom- excluem nem contradizem uns aos outros, e a escolha que se faz de um deles
patível com o outro, lições inesgotáveis de um mundo sensível que lhes ou de vários liga-se às questões que se coloca e às várias propriedades que
parecera ser preciso recusar. Nada mais equivocado do que opor tipos de se quer apreender e interpretar. Que políticos, moralistas e filósofos ocupem
saber concebidos como irredutíveis um ao outro ao longo dos séculos entre o andar que considerarem ser o único digno e nele fiquem entrincheirados.
os quais a passagem ocorreria brusca e inexplicavelmente. Pois se de fato o Mas que não pretendam prender ali com eles todo mundo e proibir que se
pensamento do século xviii, para tornar-se científico, se opôs ao da Idade mexa, para dedicar-se a questões distintas das deles, na tourelle do micros-
Média e do Renascimento, começamos a entrever que o pensamento deste cópio, mudando o grau de ampliação e fazendo assim surgir um objeto
século e do próximo poderia não tanto se opor aos dos séculos anteriores outro por detrás daquele que lhes encanta contemplar com exclusividade.

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Tudo indica que o objeto deles não é o nosso, posto que vários filóso- Mas os filósofos se preocupam pouco com os problemas concretos diante
fos parecem concordar em acusar-me de ter reduzido a substância viva dos quais a própria etnografia vacilou durante tanto tempo que tinha pra-
dos mitos a uma forma morta, de ter abolido o sentido e de ter-me lou- ticamente desistido de resolvê-los, problemas encontrados um após o outro
camente empenhado em elaborar a sintaxe de um “discurso que não diz em cada curva de minhas análises, as quais fizeram surgir deles soluções
nada”. Sejamos sérios. Se dissessem realmente o que alguns parecem espe- tão simples quanto inesperadas. Incapacitados por ignorância de reconhecer
rar deles, os mitos não se repetiriam incansavelmente pelo mundo afora, tais problemas e de apreciá-los, os filósofos preferiram adotar uma atitude
não produziriam séries ilimitadas de variantes oscilando em torno das cujos reais motivos são muito mais turvos do que se decorressem de mera
mesmas armações. Os povos que há centenas de milhares de anos ou mais falta de informação. A acusação que me fazem, sem terem disso plena cons-
incumbem os mitos de resolver seus problemas teóricos não se teriam ciência, é a de que o excedente de sentido que tiro dos mitos não é o que eles
mantido nos limites de procedimentos técnicos, de formas de vida eco- teriam gostado de encontrar neles. Recusam-se a reconhecer e admitir que
nômica e de tipos de instituição social que, por mais diversas que sejam, a grande voz anônima que profere um discurso vindo do fundo dos tem-
permitiram dizer, com razão, que a condição humana mudou mais entre pos, saído das profundezas do espírito, possa não lhes dizer nada, por ser-
os séculos xviii e xx do que entre a era neolítica e os tempos modernos. lhes insuportável que esse discurso diga algo totalmente diferente daquilo
Por trás da acusação mentirosa de ter empobrecido os mitos esconde-se que tinham previamente decidido que diria. Quando me lêem, sentem uma
um misticismo larvado, alimentado pela vã esperança de que um sentido espécie de decepção, rancor quase, por se sentirem excluídos de um diálogo
oculto sob o sentido se revele, para justificar ou desculpar todas as espé- mais rico de sentido do que qualquer outro até hoje travado com os mitos,
cies de aspirações confusas e nostálgicas que não ousam se exprimir. Para que não precisa deles e para o qual não podem contribuir em nada.
mim também, certamente, o campo da vida religiosa se mostra como um Para onde afinal está indo a filosofia? Nas presentes circunstâncias, a
prodigioso repositório de representações que a investigação objetiva está quais santos haverá de se devotar? A persistirem as tendências atuais, há
longe de ter esgotado; mas são representações como as outras, e o espírito razão de temer que tenha apenas duas saídas. A dos filósofos que permane-
no qual abordo o estudo dos fatos religiosos supõe que se lhes recuse de ceram na seara do existencialismo — empreitada auto-admirativa na qual o
saída qualquer especificidade. homem contemporâneo, um tanto simploriamente, fecha-se num tête-à-tête
É preciso tomar partido: os mitos não dizem nada que nos instrua sobre consigo mesmo e cai em êxtase diante de si — desliga-se do saber cientí-
a ordem do mundo, a natureza do real, a origem do homem ou seu des- fico, que despreza, e da humanidade real, cuja profundidade histórica e as
tino. Não se pode esperar deles nenhuma complacência metafísica; eles não dimensões etnográficas desconhece, para fabricar um mundinho fechado e
virão socorrer ideologias esgotadas. Em compensação, os mitos nos ensi- privado; Café du Commerce ideológico onde habitués encerrados pelas qua-
nam muito sobre as sociedades de que provêm, ajudam a expor os móveis tro paredes de uma condição humana feita à sua medida passam seus dias
íntimos de seu funcionamento, esclarecem a razão de ser de crenças, cos- repisando problemas de interesse local, para além dos quais não conseguem
tumes e instituições cujo agenciamento parecia incompreensível à primeira ver devido à atmosfera enfumaçada de sua tabagia dialética.
vista; finalmente, e sobretudo, permitem extrair certos modos de operação Ou então, sufocada nesse reduto e ansiosa por respirar ar fresco, a filoso-
do espírito humano, tão constantes ao longo dos séculos e disseminados de fia se evade; lugares até então proibidos se oferecem a seus deleites. Inebriada
modo tão generalizado por espaços imensos, que se pode considerá-los fun- pela liberdade reencontrada, ela se afasta saltitando e perde o contato com
damentais e buscar encontrá-los em outras sociedades e em outros campos a busca intransigente da verdade que o próprio existencialismo, último ava-
da vida mental onde não se suspeitava que interviessem e cuja natureza, por tar da grande metafísica, queria ainda praticar. Tornando-se presa fácil para
sua vez, virá a ser esclarecida. Em todos esses aspectos, longe de abolir o qualquer influência externa e igualmente vítima de seus próprios caprichos,
sentido, minha análise dos mitos de um punhado de tribos americanas terá a filosofia corre o risco de cair numa espécie de “filosof ’arte” e de se consa-
extraído mais sentido do que há nas banalidades e lugares-comuns a que se grar à prostituição estética dos problemas, métodos e vocabulário de seus
reduzem, há algo como dois mil e quinhentos anos, as reflexões dos filósofos antecessores. Para seduzir o leitor, aliciá-lo e agradá-lo, ela combinaria ao
acerca da mitologia, à exceção das de Plutarco. gosto da fantasia compartilhada com eles nacos de ideias arrancados de um

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patrimônio antiquado mas respeitável, para daí tirar efeitos-surpresa liga- suas obsessões e fantasmas, talvez encontrasse um novo ímpeto. Não che-
dos mais ao amor pela ostentação do que pela verdade, cujos êxitos estariam gará lá se não estiver antes convicta de que uma estrutura não é automa-
condenados a permanecer puramente sensuais e decorativos. ticamente significante para a percepção estética pelo simples fato de todo
Entre esses dois extremos, situam-se numerosas iniciativas desnaturadas significante estético ser a manifestação sensível de uma estrutura.
por parte de pescadores em águas turvas, como o “estruturalismo-ficção” que As grandes correntes do pensamento contemporâneo conferem, assim, às
vimos florescer no mundo filosófico-literário e cuja produção representa, por ciências humanas, um estatuto ambíguo: os filósofos ora as difamam, ora —
comparação ao trabalho dos linguistas e etnólogos, algo como um equiva- como alguns escritores e artistas — pretendem apoderar-se delas para con-
lente daquilo que oferecem certas revistas apreciadas pelo grande público em feccionarem com fragmentos delas, recortados a seu bel prazer, composi-
matéria de física e biologia: licenciosidade sentimental alimentada de conhe- ções tão arbitrárias quanto colagens pictóricas, achando que isso os dispensa
cimentos sumários e mal-digeridos. É de se perguntar se esse pretenso estru- de pensar e praticar tais ciências ou, sobretudo, de seguir a linha que elas
turalismo não teria surgido para servir de álibi ao tédio insuportável exalado seguem, no caminho de uma busca difícil [ombrageuse] pela verdade.
pelas letras contemporâneas. Sem poderem — mas como poderiam? — jus- O que se esquece, sempre, é que as ciências humanas não existem iso-
tificar-lhe o conteúdo manifesto, buscariam no nível da forma suas razões ladamente e de pleno direito. Como as metades que os etnólogos estudam
secretas. Mas isso é perverter a intenção estruturalista, que é a de descobrir nas sociedades dualistas, uma relação de reciprocidade que não exclui,
porque tais obras nos cativam e não de inventar desculpas para seu parco antes pelo contrário, implica uma dissimetria constitutiva as une e subor-
interesse. Quando interpretamos uma obra que não precisava de nós para se dina a um só tempo às ciências exatas e naturais. Nesse diálogo, as ciências
impor, apresentamos razões suplementares de um prestígio que já se tinha humanas tomam o lugar da filosofia, condenada a vegetar, a não ser que
manifestado de outros modos. Pois se a obra nada possuísse de seu nos níveis aceite tornar-se reflexão sobre o saber científico, o que já é muito. As ciên-
em que se podia apreciá-la imediatamente, ao descermos para níveis mais cias humanas são certamente comparáveis às ciências físicas e naturais no
profundos, tal nada só seria redutível a outros nadas. sentido de que nenhuma delas jamais atinge as coisas, e sim os símbolos
Lamentavelmente, é provável — e assim chegamos a um outro gênero através dos quais o espírito as percebe em função das regras e dos limia-
de filosofia — que muitas obras contemporâneas, não só em literatura, mas res da organização sensorial. Surge, no entanto, uma diferença fundamental,
também em pintura e música, sejam vítimas do empirismo ingênuo de seus ligada primeiramente ao fato de que as ciências físicas e naturais trabalham
autores. Porque as ciências humanas revelaram estruturas formais sob as com símbolos das coisas, ao passo que as ciências humanas trabalham com
obras de arte, há quem se apresse em fabricar obras de arte a partir de estru- símbolos de coisas que já são elas mesmas símbolos e, ainda, ao fato de que
turas formais. Contudo, nada garante que tais estruturas conscientes e arti- no caso das primeiras, a adequação aproximativa do símbolo ao referente
ficialmente construídas que servem de inspiração sejam da mesma ordem é verificada pela “ação/poder” [prise] que o saber científico exerce sobre o
que aquelas que a posteriori se descobre terem agido no espírito do criador, mundo que nos cerca, ao passo que a ineficácia prática das ciências humanas,
geralmente à sua revelia. Na verdade, o renascimento há tanto esperado da exceto pela busca de uma duvidosa sabedoria, não nos permite, pelo menos
arte contemporânea só poderia resultar, como consequência indireta, da por enquanto, prejulgar adequação alguma dos símbolos representantes aos
revelação das leis imanentes às obras tradicionais, as quais deveriam ser bus- símbolos representados.
cadas em níveis muito mais profundos do que aqueles comumente conside- Vistas sob esse prisma, as ciências humanas se apresentam como um tea-
rados como satisfatórios. Em vez de compor novas músicas com o auxílio do tro de sombras que as ciências físicas e naturais as deixam reger, porque elas
computador, melhor seria utilizar computadores para compreender de que mesmas não sabem ainda onde se encontram nem de que são feitas as mario-
é feita a música já existente; por exemplo, para determinar como e porque netes projetadas na tela de fundo. Enquanto durar essa incerteza provisória
a audição de apenas dois ou três compassos costuma bastar para que seja- ou definitiva, as ciências humanas conservarão sua dupla função: acalmar as
mos capazes de distinguir estilos de compositores diferentes e reconhecê-los. impaciências do saber por aproximações e propor às ciências físicas e natu-
Uma vez tais fundamentos objetivos tivessem sido finalmente atingidos e rais o simulacro antecipado, amiúde útil, dos conhecimentos mais verídi-
expostos, a criação artística, libertada por essa tomada de consciência de cos que lhe caberá um dia formular. Desconfiemos, portanto, de analogias

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apressadas: o esforço de decodificação dos mitos pode se parecer com o que de uma ou várias traduções sucessivas, feitas por intérpretes capazes de
permite aos biólogos decifrar o código genético, mas os objetos que os biólo- compreender línguas estrangeiras que se exprimiam nas sua própria, muitas
gos estudam são reais e eles podem verificar suas hipóteses por suas consequ- vezes diferente da do pesquisador.
ências experimentais. Fazemos o mesmo que eles, a não ser pelo fato de que Hic Rhodus, hic salta: se, apesar do papel decisivo que cabe à filologia
as ciências humanas realmente dignas desse nome não passariam de imagem numa obra da envergadura da de Dumézil, da qual tirei tantas lições, eu me
das outras num espelho: aparições impalpáveis que manipulam fantasmas tivesse imposto como pré-condição estudar os mitos exclusivamente em
de verdade. Por isso as ciências humanas só podem almejar uma homologia sua língua de origem, meu projeto teria sido irrealizável. Não apenas para
formal, não substancial, com o estudo do mundo físico e da natureza viva. mim, que não sou filólogo conhecedor das línguas ameríndias, mas para
Quando elas tendem a se aproximar mais do ideal de saber científico é que quem quer que fosse. Por isso era preciso fazer uma dupla aposta, come-
se percebe melhor que elas apenas prefiguram, nas paredes de uma caverna, çando por fabricar instrumentos improvisados, não para substituir o estudo
operações que caberá a outras ciências validar posteriormente, quando tive- filológico, cuja falta sempre se fará sentir, mas para compensar numa certa
rem finalmente chegado aos objetos verdadeiros cujos reflexos investigamos. medida a impossibilidade de nos valermos dele; e, em seguida, resolvendo
Nem a filosofia nem a arte podem, portanto, alimentar a ilusão de que lhes esperar pelo resultado para decidir quanto à questão. Pois bem, o resultado
basta aceitar o diálogo com as ciências humanas — muitas vezes para pilhá- está aí. Pelo menos para mim, não resta dúvida de que uma investigação
las, aliás — para que consigam se levantar. Ambas, em geral tão desdenhosas realizada sob o jugo de limitações tão graves e que teoricamente tê-la-iam
do saber científico, têm de saber que ao interpelar as ciências humanas, enta- condenado ao fracasso revelou-se, ao contrário, muito fecunda. É desse fato
bula-se um diálogo com as ciências físicas e naturais e se lhes rende homena- que se deve partir, ainda que à primeira vista constitua um mistério; é ele
gem, ainda que, provisoriamente, por pessoa interposta. que deve ser investigado.
Parece-me que a resposta se encontra no processo de geração dos mitos
! que se depreende de meu estudo e que apenas ele podia revelar claramente,
contanto que fosse levado a cabo. Pois se, como mostra a análise compa-
Nenhuma das objeções que acabamos de passar brevemente em revista toca rativa das diferentes versões de um mesmo mito provenientes de uma ou
no fundo das questões que estes volumes tentam elucidar. Muito mais séria e várias populações, contar é sempre conto redizer, que também se escreve
digna de atenção é a de certos linguistas, que me censuram por só excepcio- contradizer, compreende-se imediatamente porque não era absolutamente
nalmente levar em conta a diversidade das línguas em que todos esses mitos essencial, para a desbastagem grosseira que eu pretendia fazer, que os mitos
foram originalmente pensados e enunciados, ainda que nem sempre nelas fossem abordados no texto original e não numa tradução ou série de tra-
registrados. Embora eu tenha, nos poucos casos em que isso não colocava duções. A bem dizer, nunca existe texto original: todo mito é, por natureza,
dificuldades demasiadas, considerado a língua original, não posso pretender tradução. Origina-se de outro mito, proveniente de uma população vizinha
possuir competência lingüística. E entre os especialistas, não há certamente mas estrangeira, ou de um mito anterior da mesma população, ou ainda
nenhum capaz de realizar o estudo filológico comparado de textos que pro- contemporâneo, mas pertencente a outra sub-divisão social — clã, sub-clã,
vêm de línguas que, ainda que sejam todas americanas, diferem umas das linhagem, família, confraria — que o ouvinte busca desmarcar traduzindo-o
outras tanto quanto as das famílias indo-europeia, semítica, fino-ugriana e a seu modo, em sua linguagem pessoal ou tribal, ora para dele apropriar-se
sino-tibetana. ora para desmenti-lo, e portanto sempre deformando-o. Ilustração particu-
O recurso à filologia se impõe sobretudo no caso das línguas mortas, em larmente notável desse fenômeno nos é oferecida pelo mito hupa sobre a
que o sentido de cada termo só pode ser estabelecido sendo permutado em origem do fogo, que o demiurgo teria inicialmente tentado fazer surgir por
vários contextos. O caso é outro quando as narrativas são colhidas da boca percussão, sem sucesso, para depois fabricar a primeira broca. O pesquisa-
de informantes que ainda falam suas línguas e junto aos quais boa parte dos dor precisa que esse relato foi produzido na intenção de recusar um mito
equívocos e ambiguidades são elucidados de saída. Infelizmente, na maioria de uma tribo vizinha que atribui a um roubo a origem do primeiro fogo
dos casos, não existe texto original e o mito só é conhecido por intermédio (Goddard 1904: 197; cf. supra, p. 138).

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Essas relações de oposição entre mitos, raramente captáveis em sua que com ela mantenha relações de homologia: pode-se transcrevê-la num
gênese e ao vivo, emergem com força da análise comparativa. Se o estudo tom diferente, convertê-la do maior para o menor ou vice-versa, agir sobre
filológico dos mitos não constitui uma pré-condição absoluta, a razão disso parâmetros que transformarão seu ritmo, seu timbre, sua carga emotiva, os
está no que se poderia chamar sua natureza dialética. Cada uma de suas relativos afastamentos entre as notas consecutivas, etc. Talvez, no limite, um
transformações resulta de uma oposição dialética a outra transformação, e ouvido não treinado já não seja capaz de reconhecê-la, embora se trate da
sua essência reside no fato irredutível da tradução pela e para a oposição. mesma forma melódica. E seria descabido pretender — talvez isso ocor-
Encarado de um ponto de vista empírico, todo mito é a um tempo primitivo resse a alguém — que nesse caso pelo menos existe um texto original, pois
em relação a si mesmo e derivado em relação a outros mitos; não se situa em compositores célebres procederam como acabamos de descrever a partir de
uma língua e em uma cultura ou sub-cultura, mas no ponto de articulação obras de seus antecessores, para criar temas não obstante marcados com o
destas com outras línguas e outras culturas. De modo que o mito nunca é de selo de seu estilo próprio, impossível de confundir com outro. Uma investi-
sua língua, é perspectiva sobre uma língua outra, e o mitólogo que o apre- gação acerca do reconhecimento das formas, agora possível graças às calcu-
ende por intermédio de uma tradução não se sente numa situação essen- ladoras eletrônicas, certamente permitiria descobrir, em vários casos, regras
cialmente diferente da de seu narrador ou ouvinte na terra natal. Eu já tinha de conversão capazes de mostrar em estilos populares ou de compositores
destacado esse aspecto desde o início de minha pesquisa, ao enfatizar que “a diferentes estados de um mesmo grupo de transformação.
substância do mito não se encontra nem no estilo, nem no modo da narra- Se sempre é possível, praticamente ao infinito, traduzir uma melodia
ção, nem na sintaxe, mas na história que ali se conta” (Lévi-Strauss 1939: 232). em outra ou uma música em outra, como no caso da mitologia, não é pos-
O que certamente não significa que o conhecimento da língua original, sível traduzir a música a não ser em si mesma, sob o risco de soçobrar na
caso se disponha do texto, seja supérfluo, ou que uma análise filológica não verborragia de pretensão hermenêutica da antiga mitogafia e, amiúde, da
possa precisar e enriquecer sentidos, corrigir erros, aprofundar e desenvol- crítica musical. Assim, uma liberdade ilimitada de tradução nos dialetos
ver a interpretação; tarefas que caberão a meus continuadores. Porém, uma de uma língua original que constitui um universo estanque vem acompa-
vez feitos todos esses progressos e retificações, há de se perceber que, exceto nhada da impossibilidade radical que qualquer transposição numa lingua-
em circunstâncias particulares, o estudo filológico do mito acrescentaria gem extrínseca.
dimensões suplementares, dando-lhe mais volume e relevo, mas sem afetar, Tal como emerge de meu estudo, a natureza profunda do mito corrobora
no essencial, o conteúdo semântico. O aporte seria mais de cunho literário pois o paralelo que tracei no início entre relato mítico e composição musical.
e poético, permitira perceber melhor as propriedades estéticas de um enun- Parece inclusive que, tendo chegado ao cabo da investigação, seja agora pos-
ciado cuja mensagem em nada seria alterada, visto que a tradução permite sível formular suas relações de modo mais claro e mais convincente. Come-
apreender o mito como mito. çarei por postular, a título de hipótese de trabalho, que o campo dos estudos
A filosofia contemporânea, impregnada de um misticismo raramente estruturais inclui quatro famílias de ocupantes principais: os seres matemá-
declarado e em geral dissimulado sob o nome de humanismo, sempre à ticos, as línguas naturais, as obras musicais e os mitos.
espreita de uma gnose que lhe permita garantir um campo reservado e pro- As entidades matemáticas são estruturas em estado puro, livres de qual-
bido ao saber científico, alarmou-se ao ver a mitologia que queria impreg- quer incarnação, que por isso se encontram relacionadas por correlação e
nada de um sentido oculto reduzida ao que foi tido por alguns como o vazio oposição aos fatos lingüísticos que, como ensinou Sausurre, só existem
de um jogo de traduções sem texto original. Basta lembrar que o mesmo suplamente incarnados, no som e no sentido, e mais do que isso, nascem da
pode ser dito de um campo no qual as aspirações místicas e expansões sen- intersecção entre eles.
timentais se encontram, entretanto, largamente satisfeitas: a música. Na ver- Traçado esse eixo, com os seres matemáticos e lingüísticos ocupando
dade, a comparação entre mitologia e música, tema condutor da “abertura” cada um dos polos, percebe-se imediatamente que as demais famílias ocu-
desta obra e que muitos taxaram de arbitrária, fundava-se essencialmente pam posições simétricas nos polos de um segundo eixo, transversal ao pri-
nesse caráter compartilhado. Os mitos só podem ser traduzidos uns nos meiro. No caso da música, a estrutura, de certo modo descolada do sentido,
outros, assim como uma melodia só pode ser traduzida em outra melodia adere ao som; no caso da mitologia, a estrutura, descolada do son, adere ao

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sentido. No tocante à mitologia, é exatamente isso que as páginas anteriores, uma obra musical para conferir-lhe sentido. O mito é atraído pelo sentido
a propósito da questão da tradução, tentam mostrar. como por um imã; e essa aderência parcial cria, do lado do som, um vazio
Postulemos, pois, que as estruturas matemáticas estão libertas ao mesmo virtual que o narrador se sente compelido a suprir com diversos procedi-
tempo do som e do sentido e que as estruturas lingüísticas, ao contrário, se mentos — efeitos vocais ou gestuais que nuançam, modulam e reforçam o
materializam em sua união. Menos completamente incarnadas do que estas, discurso. Ora canta e salmodia o mito, ora declama, e a recitação é quase
mas mais do que aquelas, as estruturas musicais estão mais para o lado do sempre acompanhada de gestos e fórmulas estereotipadas. Além disso, as
som (sem o sentido) e as estruturas míticas mais para o lado do sentido cenas estão presentes para o narrador, que sabe torná-las presentes também
(sem o som). Várias conseqüências decorrem desse modo se encarar as rela- para quem o escuta; ele as vê acontecendo diante de si, vive-as, e comunica
ções entre elas. essa experiência com a mímica e a gesticulação apropriadas. Acontece inclu-
Em primeiro lugar, se a música e a mitologia se definem, cada uma a seu sive de o mito ser executado a várias vozes e tornar-se representação teatral.
modo, como linguagem menos alguma coisa, ambas se apresentarão como A relação deficiente com o som é assim compensada pela redundância das
derivadas em relação a esta última. Nessa hipótese, música e mitologia tor- fórmulas verbais, repetições, retomadas e reiterações. Aliterações e parono-
nam-se sub-produtos de uma translação da estrutura operada a partir da másias criam uma orgia de assonâncias e sonoridades recorrentes que ine-
linguagem. É claro que a música também fala, mas unicamente em razão briam os ouvidos, como o sentido investido pelo ouvinte na audição musical
de sua relação negativa com a língua e porque, tendo-se separado dela, a inebria-lhe o intelecto. Algo portanto subsiste da disparidade reconhecida
música conservou a marca em oco de sua estrutura formal e de sua função no início deste parágrafo, apesar de uma simetria que só pode ser restabe-
semiótica: não poderia haver música sem linguagem que exista previamente lecida às custas de uma torção interna. Em música, a coalescência de uma
e da qual ela continua dependendo, como um pertencimento privativo, por significação metafórica global em torno da obra supre o aspecto faltante, ao
assim dizer. A música é linguagem menos sentido. Compreende-se, assim, passo que o mito reintroduz o som por meios metonímicos. Num caso, o
que o ouvinte, que é antes de tudo um sujeito falante, sinta-se irresistivel- sentido restituído à música responde ao todo do som; no outro, é acrescen-
mente levado a suprir o sentido ausente, como um amputado que atribui ao tado a título de parte do sentido.
membro perdido as sensações que tem e que se situam no coto. O mesmo A simetria contudo existe, mas apresenta-se sob uma forma mais com-
ocorre com os mitos: a transferência que ali se faz em direção ao sentido plexa do que a que admitimos inicialmente, para simplificar a exposição.
explica que o mito, reduzido — ou promovido — a pura realidade semân- Como dissemos acima, em mitologia algo do som persiste no sentido e não
tica possa descolar de seu suporte lingüístico, ao qual a história por ele nar- se pode tirar aquele deste; mas a lingua portadora do mito perde muito de
rada está menos intimamente ligada do que mensagens corriqueiras. sua pertinência específica em relação a um sentido que é preservado quando
Até o momento, defini as relações entre música e mitologia como se confiado a suportes lingüísticos diferentes. Na música, ao contrário, o sen-
fossem perfeitamente simétricos. Contudo, percebe-se que uma assimetria tido está fora do som e não pode ser a ele reintegrado a menos que vejamos
existe, decorrente do fato de que, à diferença da música, que toma empres- aí, com Baudelaire (1961: 120-124) uma forma comum na qual uma série
tado da língua natural apenas o ser do som, o mito precisa da linguagem por ilimitada de conteúdos significativos podem se inserir, de acordo com a
completo para se exprimir. A comparação que acabamos de esboçar só man- personalidade de cada ouvinte. O mito, sistema de sentidos, acomoda-se a
teria a validade se víssemos em cada mito uma partitura que, para ser tocada, uma série ilimitada de suportes lingüísticos que seus narradores sucessivos
exigisse a língua à guisa de orquestra, diferentemente da música, cujos meios podem lhe dar, assim como a música, sistema de sons, acomoda-se à série
de execução são o canto vocal (emitido em condições fisiológicas totalmente ilimitada de cargas semânticas que seus ouvintes sucessivos podem lhe dar
diversas das requeridas para falar) e os instrumentos. à vontade. Decididamente, a razão desse paralelismo encontra-se em que
Consequentemente, não se pode pretender que o mito esteja tão liberto a função significante do mito não se exerce dentro da língua, mas acima
da linguagem quanto a música; está comprometido com ela. No entanto, o dela (Lévi-Strauss 5: 232): a linguagem contingente de cada narrador sem-
descolamento relativo mesmo assim se evidencia, na narração do mito, por pre é boa o bastante para transmitir um sistema de significações elabora-
tentativas de recuperação do som, comparáveis às veleidades do ouvinte de das por procedimentos meta-lingüísticos cujo valor operacional se mantém

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aproximadamente de uma língua para outra. Simetricamente, a função sig- de grupo torna-se indissociável dos níveis semânticos que a análise per-
nificante da música mostra-se irredutível a tudo o que seria possível dela mite isolar? À diferença da matemática, o mito subordina a estrutura a um
expressar ou traduzir em forma verbal. Ela se exerce abaixo da língua e sentido de que ela se torna expressão imediata: como numa tela de televi-
nenhum discurso, ainda que emane do mais inspirado dos comentadores, são que dizemos desregulada, apenas porque os parâmetros de recepção
jamais será suficientemente profundo para explicitá-la. se modificam por razões contingentes em vez de obedecerem a uma lei,
Pelo menos para mim, que empreendi estas Mitológicas plenamente cons- são sempre imagens que de positivas se invertem em negativas, viram da
ciente de que buscava assim compensar, noutra forma e num campo que me direita para a esquerda ou de cima para baixo; todas transformações que
fosse acessível, minha incapacidade congênita de compor uma obra musical, lembram o mecanismo do trocadilho que, quando devidamente realizado,
parece claro que tentei edificar com sentidos uma obra comparável às que faz aparecer numa palavra ou numa frase, como que em negativo, o outro
a música cria com sons — negativo de uma sinfonia da qual talvez um dia sentido que tal palavra ou frase podiam também conter, quando transpos-
algum compositor possa se sentir tentado a tirar a imagem positiva. Caberá tos para um novo contexto lógico.
a outros dizer se as contribuições já tiradas de minha obra pela música são Transformações desse tipo constituem o fundamento de toda semiologia.
ou não inspiradas de tal intenção. Se, como escrevi certa vez (Lévi-Strauss 1962b: 30), a significação é o ope-
rador de reorganização de um conjunto, decorre disso que o único limite
! da busca pelo sentido, pelo sentido oculto por detrás do sentido e assim
sucessivamente é o que poderíamos chamar, ampliando uma noção intro-
Característica da mitologia, a aderência da estrutura ao sentido aparece duzida por Saussure, a “capacidade anagramática” de um conjunto signifi-
claramente nas imposições específicas a que submete os grupos quadri- cante. Sabe-se que o próprio Saussure nunca foi até o fim de sua descoberta
partites de que lancei mão diversas vezes no tomo III (OMM: 293-295, 315, em razão de uma dificuldade que não quis ou não conseguiu superar: se
332, 346). Vimos então que mitos ou variantes de mitos se ordenavam à os anagramas desempenham um papel essencial nas poéticas mais antigas,
maneira de grupos de Klein incluindo um tema, o contrário do tema e seus por que os próprios retóricos e poetas jamais falaram nisso ou demonstra-
inversos. Chegamos assim a conjuntos de estruturas com quatro termos ram que tivessem consciência de empregar esse procedimento? A generali-
embutidas umas nas outras que se mantêm entre si uma relação de homo- zação que sugiro talvez permita responder. Por se tratar de uma aplicação
logia. Nos casos considerados, seguindo a ordem dos embutimentos suces- particular de um procedimento ao mesmo tempo fundamental e arcaico, é
sivos, tínhamos: 1) não-irmã, irmã falha [fautive-verificar em OMM], irmã concebível que seja perpetuado não pela observação consciente de regras,
mestra, esposa; 2) volta da primavera, separação das estações, fim do verão, mas por conformismo inconsciente a uma estrutura poética intuitivamente
conflito das estações; 3) homem ferido, mulher manca, homem corcunda, percebida a partir de modelos anteriores elaborados nas mesmas condições.
mulher menstruada; 4) seiva, resina, urina, sangue menstrual. Notávamos Tudo bem considerado, a própria objeção que atualmente encontramos por
também que os grupos não eram independentes uns dos outros, que iso- parte de espíritos conservadores que se recusam a admitir que a inspiração
ladamente nenhum deles se bastava como ser pleno, como pareceria se poética se apoie na operação de uma combinatória banha num misticismo
pudesse ser encarado de um ponto de vista puramente formal. Na verdade, antiquíssimo que, desde os tempos mais remotos, tem sido capaz de recalcar
a série ordenada das variantes não volta ao termo inicial depois de percor- no inconsciente os verdadeiros mecanismos da criação estética.
rer o primeiro ciclo de quatro; como que sob efeito de uma derrapagem, Talvez porque a conivência da expressão musical com o intelecto seja
ou melhor, de uma ação análoga à de um câmbio de biclicleta, a corrente menos patente, os músicos não parecem ter sentido o mesmo desconforto
lógica salta e se engrena no termo inicial do grupo embutido imediata- para discernir e explicitar os movimentos lógicos de sua arte. Os tratados
mente abaixo e assim por diante, até o último. O ciclo gerador das varian- de contraponto e harmonia demonstram como distribuições estruturais
tes toma assim o aspecto de uma espiral cujo estreitamento progressivo diversas só existem e se tornam perceptíveis ao se distinguirem umas das
ignora a descontinuidade objetiva dos níveis encaixados. O que significaria outras por tons, alturas, timbres e ritmos também diversos. Há tempos sabe
isso, se não que, no caso do mito, a distribuição periódica das estruturas a música que dispõe de dois meios principais de composição, o confronto

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das estruturas a outras estruturas ou sua manutenção com a transformação ser remetida a um período da história moderna e contemporânea, e cabe
de seus suportes sensíveis — é o que se chama de desenvolvimento. refletirmos acerca das razões que a fizeram surgir, bem como daquelas que
Porém, pelo próprio fato de tornar-se cada vez mais claramente cons- tendem hoje a dissolvê-la.
ciente desse procedimento, repertoriando todos os recursos e chegando Pois bem, parece claro que o momento em que música e mitologia come-
mesmo a codificá-los, a música iria rapidamente desgastar, debilitar e esteri- çaram a aparecer como imagens invertidas uma da outra coincide com a
lizar a arte do desenvolvimento cujas facilidades e abusos haveriam de levá- invenção da fuga, ou seja, uma forma de composição que, como mostrei
la a reforçar o primeiro meio em detrimento do segundo. Ocorre então um várias vezes (CC: 155-171, 246-260 e neste volume: 100, 161, 302), existe ple-
fenômeno novo, pois a música acaba insidiosamente dissociando a fase da namente constituída nos mitos, em que a música desde sempre teria podido
elaboração das estruturas da fase, até então confundida com ela, em que as buscá-la. Mas o que ocorre exatamente na época em que a descobre? Tal
estruturas são chamadas a receber um suporte sensível. Essas duas fases do época corresponde aos tempos modernos em que as formas do pensamento
processo de criação musical tendem a partir de então a cindir-se, o elo entre mítico relaxam seu controle em prol do saber científico nascente e deixam
forma e som enfraquece e o próprio sistema sensível torna-se um meio de espaço para novos modos de expressão literária. Com a invenção da fuga e
codificação, entre outros igualmente possíveis, de estruturas inteligíveis que de outras formas de composição na seqüência, a música assume as estru-
não foram originariamente concebidas pela imaginação como sistemas de turas do pensamento mítico no momento em que a narrativa literária, tor-
sons. A linguagem musical vai progressivamente se desligando do que por nada de mítica em romanesa, as evacua 1. Era portanto preciso que o mito
muito tempo sua característica distintiva, a saber, que as estruturas laten- enquanto tal morresse para que sua forma dele escapasse como a alma dei-
tes eram nela sempre função dos sistemas sensíveis, e não o contrário. Pois xando o corpo e fosse pedir à música um meio de reincarnação.
é somente através das variações do suporte sensível que as estruturas da Em suma, tudo se passa como se música e literatura tivessem dividido a
música tradicional conservam sua individualidade. Como sempre e por toda herança do mito. Ao tornar-se moderna com Frescobaldi e depois Bach, a
parte, a estrutura só se torna acessível pelo viés de um homomorfismo cuja música ficou com sua forma enquanto o romance, surgido praticamente ao
ocasião é fornecida por uma redundância de níveis: a obra musical é um mesmo tempo, encampava resíduos desformalizados do mito e, agora eman-
sistema de sons capaz de induzir, no espírito do ouvinte, sentidos. cipado das servidões da simetria, encontrava o meio de se produzir como
A contrapartida do que outrora se chamava música consistiria, portanto, narrativa livre. Isso tornaria mais compreensíveis as características comple-
em estruturas de significação deixadas em suspenso, ainda que teoricamente, mentares da música e da literatura romanesca desde os séculos xvii e xviii
à espera de serem nelas investidos sons. Formulação que convém perfeita- até hoje: uma feita de construções formais sempre carentes de sentido, a
mente a certas tentativas contemporâneas que dão a impressão, verdadeira outra feita de sentido tendendo à pluralidade, mas desagregando-se por si só,
ou falsa, de codificar com sons sistemas de sentido concebidos e agencia- por dentro, na medida em que prolifera por fora, em razão da falta cada vez
dos antes de serem transpostos em forma musical. De modo que não seria mais evidente de uma carpintaria interna, que o nouveau roman tenta reme-
equivocado — em todo caso, nada pejorativo — dizer que essas tentativas diar com um escoramento externo, mas que já não tem nada para sustentar.
representam uma anti-música em relação à qual a mitologia, em razão de Quando o mito morre, a música se torna mítica do mesmo modo que as
seu deslocamento em direção ao sentido, estaria a meio caminho com res- obras de arte, quando a religião morre, deixam de ser simplesmente belas
peito à música tradicional.
Uma ressalva importante vem portanto temperar e limitar o que foi suge-
rido acima quanto à relação de simetria que une mitologia e música, cada 1 . Quando eu ainda não pedia às formas musicais mais do que uma inspiração
de ordem, digamos, metodológica, concedia-lhes em O cru e o cozido (p. 23) ante-
qual num dos polos do eixo transversal que opõe entidades matemáticas
rioridade sobre as formas míticas. É verdade que a teoria musical foi a primeira a
a fatos lingüísticos: essa simetria só apareceu e só se manteve para uma explicitá-las. Entre a abertura do primeiro volume e o finale do último, pode-se
certa forma de música que surgiu por volta dos séculos xvi e xvii, cujo perceber o caminho percorrido: permitiu compreender que não teria sido possível
apagamento, após ter esgotados suas virtualidades pelas razões já expostas, buscar na música modelos de construção dos mitos, se os próprios mitos já não os
observamos atualmente. Longe de existir no absoluto, essa simetria deve tivessem encontrado.

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para se tornarem sagradas. A fruição estética que propiciam já não tem A mitologia e a música têm em comum o fato de convidar o ouvinte a
relação, mesmo em seu auge, com o preço desproporcional que se paga por uma união concreta, com a diferença de que um lugar de um esquema codi-
elas. Ao mesmo tempo, a categoria obra de arte se alarga para incluir, na base, ficado em sons, o mito lhe proõe um esquema codificado em imagens. Em
todo tipo de objeto utilitário da era pré-industrial ou até do princípio da ambos os casos, é no entanto o ouvinte que investe uma ou várias signifi-
era industrial, ainda respeitadora dos cânones tradicionais e se esforçando cações virtuais no esquema, de modo que a unidade real do mito e da obra
por reproduzi-los — ou, com o modern style, a renová-los — em vez de se musical só se produz a dois, em e por meio de uma espécie de celebração.
submeter, como tem feito desde então, a considerações econômicas ou fun- O ouvinte enquanto tal não é criador de música, seja por carência natural
cionais. A exemplo dos povos sem escrita que, em seus rituais mais sagra- ou por estar ocasionalmente a escutar a música de outrem, mas há nele um
dos, não empregam objetos de origem europeia e nem mesmo de origem lugar para ela; é portanto um criador “em negativo”, cujos vazios a música
local, se forem manufaturados, mas facas feitas de pedra afiada, de concha emanada do compositor vem preencher. O fenômeno seria inexplicável, a
de molusco ou de lascas de madeira, utensílios improvisados com fragmen- não ser que se reconheça que o não-compositor dispõe de uma profusão de
tos de entrecasca ou pequenos galhos, como os que a humanidade ainda sentidos sem outro uso, prontos para escapar, atraídos como por um imã a
em estado de natureza podia ter, do mesmo modo, cercando-se de objetos virem aderir aos sons. Reconstitui-se desse modo, numa pseudo-linguagem,
soberbos ou derrisórios igualmente considerados sagrados, o homem con- a união entre o som, proposto pelo compositor, e o sentido, guardado em
temporâneo acalenta a nostalgia de uma natureza segunda perdida após a estado latente pelo ouvinte. Ao encontrarem a música, significações flutu-
primeira, ilustrada por aquelas testemunhas de eras tornadas veneráveis antes entre duas águas emergem e, ao chegarem à superfície, agregam-se
pelo simples fato de serem definitivamente passadas. As ordens da cultura umas às outras segundo linhas de força análogas às que já determinavam a
se revezam e, estando prestes a desaparecer, cada uma transmite à ordem agregação dos sons. Daí provém essa espécie de acasalamento intelectual e
mais próxima o que foi sua essência e função. Antes de a substituírem as afetivo que ocorre entre compositor e ouvinte. Nenhum deles é mais impor-
belas artes estavam na religião, como as formas da música contemporânea já tante do que o outro, pois cada um deles possui um dos “sexos” da música,
estavam nos mitos antes mesmo de ela começar a existir. cuja execução permite e soleniza a união carnal. Só então som e sentido se
Foi sem dúvida com Wagner que a música tomou consciência de uma encontram, gerando um ser único, comparável à linguagem na medida em
evolução que fazia com que ela assumisse as estruturas do mito; foi também que aqui também se juntam duas metades, uma feita de excedente de som
a partir desse momento que a arte do desenvolvimento começou a falhar e (comparativamente ao que o ouvinte teria podido produzir por conta pró-
perder o fôlego, à espera da renovação que virá com Debussy. Tomada de pria) e a outra, de um excedente de sentido (pois o autor não precisava dele
consciência na qual se pode ver o esboço, talvez a própria causa, de uma para compor).
outra etapa, em que a música não terá outra escolha senão evacuar por sua Em ambos os casos, o suplemento de som e o suplemento de sentido
vez as estruturas míticas, doravante disponíveis para que o mito, na forma de excedem as necessidades próprias à língua, que explora sons outros que
um discurso acerca de si mesmo, finalmente adquira consciência de si. Have- os musicais (a ponto de se dizer que o ouvido lingüístico e o ouvido musi-
ria, portanto, uma relação de correlação e oposição entre minha empreita de cal variam em razão inversa um do outro) e sempre se mostra incapaz de
recuperação dos mitos e a da música contemporânea que, desde a revolução expressar num enunciado as emoções e significações inefáveis que a música
serial, ao contrário ter-se-ia definitivamente afastado deles, numa busca pela provoca em seus amantes. Pode-se dizer, portanto, que tanto a comunicação
expressão levada em detrimento da significação e por um parti-pris radi- lingüística quanto a comunicação musical pressupõem a união entre som
cal de assimetria. Talvez nisso ela apenas repita um procedimento anterior. e sentido; mas cabe acrescentar que os sons com que opera a comunicação
Assim como a música dos séculos xvii-xviii assumia as estruturas que lhe musical são precisamente aqueles que a comunicação lingüística não utiliza.
legava uma mitologia moribunda, não teria a música serial, procedente dos Desse ponto de vista, os dois tipos de comunicação encontram-se em rela-
desenvolvimentos mais recentes, assumido as formas expressivas e rapsó- ção de suplementaridade.
dicas do romance no momento em que este se preparava para evacuá-las e Olhemos mais de perto. Em toda sociedade, a ordem do mito exclui o
desaparecer a seu turno? diálogo: os mitos do grupo não são matéria de discussão, são transformados

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quando se crê repeti-los. Ao longo de uma cadeia de narradores sucessivos, Isso não é tudo; pois, como bem mostrou Proust, o prazer musical sobre-
o som e o sentido, unidos no discurso mítico, vão-se deslocando pouco a vive à execução e talvez até atinja sua plenitude depois: no silêncio restabe-
pouco em conjunto, em vez de permutarem ou se unirem no e pelo ato de lecido, o ouvinte fica saturado de música, submerso em sentido, entregue a
comunicação. As trocas propriamente lingüísticas, por outro lado, também uma espécie de invasão que o despossui de sua individualidade e de seu ser.
envolvem moléculas duplamente carregadas de som e de sentido, mas que Tornado o lugar da música, como a estátua de Condillac era odor de rosa. Pela
transitam entre interlocutores que falam e respondem alternadamente. Na música, realiza-se o prodígio de que o mais intelectual dos sentidos, a audição,
ordem da música, ocorre uma troca, como na linguagem articulada e à dife- normalmente a serviço da linguagem articulada, experimenta um gênero de
rença do discurso mítico. Mas, como para o discurso mítico e à diferença da estado que o filósofo tinha reservado justamente ao olfato, de todos os senti-
linguagem articulada, a troca não envolve moléculas bivalentes e todas igual- dos o mais profundamente enraizado nas penumbras da vida orgânica.
mente constituídas que, no caso do mito, são transmitidas, como vimos, num Escapando do entendimento, onde costuma estar sediada, a significa-
único sentido. Os valores de troca são então de outra natureza: consistem em ção engrena-se diretamente na sensibilidade. Pela música, esta se encontra
duas sortes de moléculas monovalentes, umas carregadas de som (música) assim investida de uma função superior e, para o sujeito, inesperada. Daí o
ou de imagem (mitologia), outras carregadas de sentido. Ao se encontrarem, sentimento de gratidão para com a música que o enche de satisfação, senti-
cada qual comunica à outra a carga de complemento que lhe faltava. Uma mento de ter sido repentinamente transformado por ela num ser de essência
união até então virtual se realiza, como que por efeito de uma cópula. diferente, no qual princípios normalmente incompatíveis (pelo menos foi
isso que lhe ensinaram) se apaziguam e atingem, ao se reconciliarem, uma
! espécie de unanimidade orgânica. Esse papel de ordenador da sensibilidade
fica patente sobretudo na música romântica a partir de Beethoven, que lhe
O prazer musical certamente nunca foi tão bem descrito e analisado quanto deu um estatuto incomparável, mas está presente em Mozart e já aparece em
nas páginas de Um amor de Swann dedicadas à “pequena frase” e à sonata de Bach. A alegria musical é, então, a da alma, convidada uma vez a se reconhe-
Vinteuil, em que Proust mostra a música invadindo a alma do ouvinte, ocu- cer no corpo.
pando-a por inteiro, encarregando-se do curso de suas ideias, temporaria- A música consegue, num lapso de tempo relativamente breve, o que
mente infletido conforme a seus meandros, assim como o piloto automático a própria vida nem sempre logra e, quando o faz, é a intervalos de meses
de um avião substitui por suas decisões as do comandante de bordo e lhe ou anos, se não até de toda uma existência: a união entre um projeto e seu
devolve o controle da aeronave ao mesmo tempo que a consciência refletida sucesso; que, no caso da música, permite que a ordem do sensível e a do inte-
a si mesma, quando termina a viagem ao longo de toda a qual uma sabedo- ligível se encontrem, simulando de forma abreviada a exaltação da realiza-
ria superior à sua a tinha liberado da dura necessidade de pensar. Todavia, ção completa que, num muito mais longo prazo, só podem propiciar suces-
Proust não busca desvendar as misteriosas razões que fazem com que uma sos profissionais, sociais ou amorosos que exigiram a mobilização total do
linha melódica ou uma combinação harmônica propiciam deleites por ele ser, cujas tensões são repentinamente relaxadas com o sucesso, provocando
apenas qualificados de “particulares” e suscitam um estado de felicidade uma queda paradoxal, de uma felicidade oposta àquelas consecutivas ao fra-
“nobre e preciso” mas que, diz ele também, permanece “ininteligível” (I: 183). casso, e que também provoca lágrimas, mas de alegria.
Qualquer tentativa de compreender o que é a música, entretanto, deixaria Creio que foi Koestler o primeiro a compreender o mecanismo do riso,
de ser levada a termo se não explicasse as profundas emoções que se sente ao resultado de uma tomada de consciência repentina e simultânea do que o
escutar obras capazes até de fazer correr lágrimas. Intui-se que o fenômeno autor chama de “campos operatórios” entre os quais a experiência sugeria
apresenta alguma analogia com o riso, no sentido de que, em ambos os casos, outra conexão. Um personagem de roupas sóbrias, caminhando compene-
um certo tipo de agenciamento externo ao sujeito — palavras ou atos de um tradamente, despenca de repente num riacho e os risos disparam; o exemplo
lado, sons do outro — ativa um mecanismo psico-fisiológico cujos ressorts é muitas vezes lembrado, mas para dar interpretações falsas. Na verdade, o
estão previamente tendus. Mas a que ele corresponde, o que é exatamente que acontece é que os dois estados em que o personagem se nos apresenta
chorar de rir ou de alegria? sem transição não poderiam suceder um ao outro em condições normais,

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sem que entre o primeiro e o segundo se intercalasse uma série complicada simbólico, exigido até o limite de suas forças, poderia ser o equivalente no
de estágios intermediários. A traiçoeira presença de uma casca de banana âmbito da vida do espírito. Em linguagem de afetividade, a ansiedade seria,
torna-a prescindível, provocando entre eles uma espécie de curto-circuito. assim, a expressão de um estado de obstrução fisiológica que interfere no
Inconscientemente mobilizada para reconstituir o evento e compreendê- cálcio que transmite os impulsos nervosos e os paralisa, estado que seria
lo, disposta a grandes esforços para operar a síntese de duas representa- induzido no corpo em razão de uma homologia entre as conjunturas moral
ções disjuntas, a função simbólica do espectador apreende, num lampejo, o e física. Quando essa obstrução resulta de um esforço mecânico demasiado
termo imprevisto que lhe permite recuperar o encadeamento lógico com o intenso, traduz-se na linguagem da sensibilidade em câimbras e curvaturas
menor custo. musculares, de que a angústia repuxando as vísceras oferece o equivalente
O espírito humano se mantém em tensão sempre virtual, dispõe a todo na forma de metáfora encarnada.
momento de uma reserva de atividade simbólica para responder a qualquer Bem, uma vez o riso e a angústia situados numa relação adequada, per-
sorte de solicitação de ordem especulativa ou prática. No caso do incidente cebe-se que a emoção musical resulta de uma terceira eventualidade, que
cômico, como no da pilhéria ou da charada humorística — que, por uma tem algo de ambos. É fato que se chora, como na dor moral, porém, como
aproximação insuspeitada do ouvinte, também permitem conectar direta- acontece também no riso, as lágrimas que correm são acompanhadas por um
mente dois campos semânticos que parecem muito afastados entre si — essa sentimento de alegria. Chora-se de rir quando as contrações musculares, ini-
energia sobressalente (que uma história engraçada bem construída trata, cialmente limitadas à região bucal, espalham-se e chegam aos olhos e à face,
antes de tudo, condensar) vê-se privada de ponto de aplicação. Subitamente sob o efeito de um júbilo que saúda uma elipse particularmente rápida e bem
liberada e sem poder se dissipar no esforço intelectual, ela desvia para o conduzida. Na audição musical, porém, o que provoca lágrimas de alegria é,
corpo que, com o riso, dispõe de um mecanismo pronto para permitir seu ao contrário, um trajeto realmente cumprido pela obra, e bem-sucedido ape-
dispêndio em contrações musculares. O riso e seus sobressaltos desempe- sar das dificuldades (que o são apenas para o ouvinte) que o gênio inventivo
nham esse papel, e o estado de beatitude que os acompanha corresponde a do compositor, sua necessidade de explorar os recursos do universo sonoro,
uma gratificação da função simbólica, satisfeita a um custo muito menor do fez com que ele fosse juntando concomitantemente com as respostas que lhes
que o que se dispunha a pagar. dava. Carregado nesse percurso, o ouvinte ofegante é como que impulsio-
Entendido desse modo, o riso se opõe à angústia, sentimento que temos nado com um resultado por cada resolução melódica e harmônica. E por não
quando a função simbólica, longe de ser gratificada pela solução imprevista ter tido ele mesmo de descobrir ou forjar as chaves que a arte do composi-
de um problema ao qual estava disposta a se dedicar com afinco, sente-se de tor lhe fornece prontas quando ele menos espera, tudo se passa como se o
certo modo sufocada pela necessidade que as circunstâncias tornal vital de árduo trajeto, percorrido com uma facilidade de que o ouvinte seria incapaz
operar muito rapidamente, entre campos operatórios ou semânticos, uma se dependesse exclusivamente de seus próprios recursos, tivesse sido posto
síntese cujos meios lhe escapam. E isso tanto para enfrentar a ameaça imi- para ele, numa especial deferência, em curto-circuito. Ora, consciente ou
nente de uma agressão como para restabelecer o equilíbrio de um sistema inconscientemente, todo trajeto laborioso tem ressonâncias existenciais para
de vida que o desaparecimento de um ente querido, que nele tinha um papel o homem. O verdadeiro trajeto laborioso, a que ele remete todos os demais,
insubstituível, destruiu. Em vez de um trajeto teoricamente laborioso ser é sua própria vida, com suas esperanças e decepções, provações e suces-
evitado pelo atalho do cômico, é nesses casos a incapacidade de conceber sos, expectativas e finalizações. A música lhe fornece da vida a imagem e o
um atalho que provoca aquela espécie de paralisia dolorosa, pressionando esquema, mas na forma de uma miniatura (Lévi-Strauss 1962b: 34-36) que
um espírito aterrorizado diante das dificuldades do trajeto que as vicissi- não só imita como acelera tais peripécias e as condensa num lapso de tempo
tudes da existência lhe impõem e das provações que cada etapa lhe reserva. que a memória pode apreender como um todo e que além disso — quando
A fisiologia confirma indiretamente essa interpretação. Com efeito, as neu- se trata de uma dessas obras-primas que a vida é raramente capaz de fazer —
roses ditas de ansiedade são acompanhadas de uma dose aumentada de as encaminha para uma conclusão bem-sucedida.
derivados do ácido lático no sangue (Pitts 1969) e sabe-se que a produção Toda frase melódica ou desenvolvimento harmônico propõe uma
de ácido lático normalmente resulta do esforço muscular, de que o esforço aventura. O ouvinte entrega o espírito e a sensibilidade às iniciativas do

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compositor, e se lágrimas de alegria correm no final, é porque a aventura, evidente que a empresa abarca muitas outras coisas. Em se tratando de música,
vivida de ponta a ponta num lapso de tempo muito mais curto do que se se poesia ou pintura, não iríamos longe na análise das obras de arte se nos ativés-
tratasse de uma aventura real, foi coroada de sucesso e se conclui com uma semos ao que seus autores declararam ou mesmo pensaram ter feito.
felicidade de que as aventuras reais oferecem menos exemplos. Uma frase A partitura divide o Bolero em segmentos numerados de [0] a [18], que
melódica considerada bela e comovente é aquela cujo perfil se apresenta correspondem ao mesmo número de enunciados homólogos, mas nos quais
como homólogo ao de uma fase da existência (certamente porque a mesma percebe-se imediatamente divisões mais finas. Por comodidade e embora
projeção tinha ocorrido no sentido inverso no ato de criação do composi- a fórmula seja literalmente inexata, pode-se considerar a obra como uma
tor), capaz de resolver com facilidade, em seu próprio plano, dificuldades espécie de fuga “achatada”, ou seja, na qual as diferentes partes, dispostas em
homólogas a outras com que a vida toparia e muitas vezes fracassaria no seu. seqüência linear, vão-se sucedendo umas às outras em vez de se perseguirem
e se encavalarem. Distingue-se então um tema e sua resposta, um contra-
! tema e sua contra-resposta, cada qual ocupando oito compassos. O tema e a
resposta, o contra-tema e a contra-resposta são repetidos duas vezes segui-
Sendo assim, será fundado dizer que a seu modo, a música desempenha das, com dois compassos, no intervalo entre as seqüências, em que o ritmo
um papel comparável ao da mitologia. Mito codificado em sons no lugar — contínuo durante toda a obra — sobressai em primeiro plano porque a
de palavras, a obra musical oferece uma grade de deciframento, uma matriz melodia em si permanece em suspenso. O mesmo ocorre após o final de
de relações que filtra e organiza a experiência vivida, a substitui e propicia a cada contra-resposta e antes de cada volta ao tema. No total, temos portanto
benfazeja ilusão de que as contradições podem ser superadas e as dificulda- duas seqüências consecutivas, cada uma composta de tema e resposta, que
des resolvidas. Decorre disso uma conseqüência: pelo menos para o período se repetem quatro vezes, alternando com duas seqüências consecutivas com-
da civilização ocidental durante o qual a música assume as estruturas e as postas de contra-tema e contra-resposta, igualmente repetidas. Isso dura até
funções do mito, cada obra deve oferecer uma forma especulativa, procu- o final da obra, quando, à maneira de um stretto igualmente achatado, o
rar e encontrar uma saída para dificuldades que constituem, propriamente tema e a resposta, o contra-tema e a contra-resposta se sucedem sem dupli-
falando, seu tema. Se o que precede estiver correto, não há obra musical con- cação e engatam numa modulação. Esta ocorre quinze compassos antes do
cebível que não abra com um problema e não tenda à sua resolução, dando final e resolve a nona e última apresentação do contra-tema.
a este último termo um sentido mais amplo mas conseqüente com o que Dupla oposição entre tema e resposta, contra-tema e contra-resposta,
possui na linguagem musical. incluída numa oposição maior entre os dois pares de seqüências e redupli-
Assim, não é sem surpresa que se lê a afirmação de um teórico, que é tam- cação em alternância regular dos pares, sempre separados um do outro e da
bém compositor, de que o Bolero de Ravel é um exemplo de “processo de seqüência complementar por um intervalo de dois compassos, evidenciam
transformação simples, que se desenvolve numa única direção sem retroce- um découpage simétrico e de inspiração francamente binária. Aliás, uma
der... caso de direcionalidade ininterrupta e perfeitamente contínua... (que oposição binária, de certo modo horizontal, persiste durante toda a dura-
vai) de um extremo ao outro... (que têm) em comum o serem extremos, isto ção da obra, que se desenvolve simultaneamente em dois níveis, melódico e
é, que não é possível ir além naquela direção e que portanto, para continuar, rítmico. Todavia, o compasso é sempre de três tempos, ainda que o ouvido
seria preciso voltar para trás” (Pousseur 1970: 246). Pois tal descrição parece hesite freqüentemente entre três e dois. Dessas observações já emana um
afastar-se de qualquer ideia sensata que se possa ter acerca da música e, nesse aspecto fundamental da obra, que consiste numa ambiguidade entre os
caso particular, desconsidera completamente a modulação que surge no final découpages e redécoupages binários do discurso musical e a métrica terná-
da peça e dá ao ouvinte a sensação não apenas de um fechamento como de ria que o escande, entre a simetria complexa que prevalece na construção e a
uma resposta decisiva a um problema obscuro colocado desde o início, para assimetria simples que rege a exposição.
o qual várias soluções tinham sido alinhadas e tentadas em vão ao longo do Consideremos agora a oposição horizontal, consubstancial à obra, entre
discurso musical. Ainda que Ravel definisse o Bolero como um crescendo ins- melodia e ritmo. Ela manifesta, por sua conta, o mesmo gênero de ambigui-
trumental e fingia não ver nele nada além de um exercício de orquestração, é dade. Ao inverso da melodia, cujo arabesco desigual viola a regularidade do

636 | Finale Finale | 637


tema-resp.: c.-tema-c.-resp.
compasso ternário recorrendo freqüentemente à síncope, a percussão, inicial-
= (x 2)
0 ia mente a cargo do tambor, respeita tal regularidade quanto à escrita. Mas, na
ib verdade, envolve várias sortes de fórmulas binárias: oposição entre dois moti-
=
vos rítmicos que se sucedem sempre na mesma ordem; no interior de tais
1 iia
iib motivos, oposição entre dois elementos isócronos, colcheia e triolet; oposição,
= no interior do primeiro motivo, entre dois pares (colcheia + triolet) segui-
1a 2
1b dos por duas colcheias que por sua vez formam um par; no segundo motivo,
= mesma oposição entre dois pares (colcheia + triolet), desta vez seguidos por
2a 3
2b
dois triolets formando um par, de modo que, de um compasso a outro, o
= encargo de exprimir a dualidade parra do elemento colcheia ao elemento
4 iiia triolet, que são as duas unidades constitutivas do sistema rítmico como um
iiib
= todo. Portanto, se a melodia tende para a assimetria, para além inclusive
5 iva daquela que está implicada no compasso ternário, o ritmo tende para aquém,
ivb
=
para oposições binárias simétricas entre si e várias vezes multiplicadas.
3a 6 Assim, a melodia e o ritmo mantêm relações equívocas com o compasso.
3b
É o ritmo intrínseco do discurso melódico que quebra a métrica. Em com-
=
4a 7 pensação, a percussão, seja ou não reforçada por outros instrumentos, res-
4b peita o recorte métrico, mas seus motivos rítmicos — em outras palavras,
=
8 va
seu discurso — provocam o efeito oposto. O ouvido não percebe a percus-
vb são tal como foi escrita, ou melhor, percebe algo a mais, que não está escrito,
=
à diferença da melodia, cujas síncopes podem ser lidas na partitura. Após
9 via
vib os dois pares iniciais (colcheia + triolet), o ouvido não para na última col-
= cheia antes da barra de compasso: o triolet anterior chama a primeira col-
5a 10
5b cheia do compasso seguinte, formando uma tríade com as duas outras. E,
= pela razão inversa, o segundo motivo, que começa imediatamente depois,
6a 11
6b
pede o remate dos três triolets consecutivos pela primeira colcheia do com-
= passo seguinte. Ao entrarem na [12], os tímpanos, acentuando o primeiro e o
12 viia último tempo de cada compasso, reforçam o efeito, mas não o criam.
viib
= Como se explica tal fenômeno? Em parte por razões concernentes ao
13 viiia ritmo, como acabamos de ver, mas também e talvez sobretudo porque desde
viiib
=
o início da obra estamos diante não de um ritmo, mas de dois, um que é con-
7a 14 fiado aos tambores que analisamos há pouco e, mantidos em segundo plano
7b mas já perceptíveis, os pizzicati das cordas, ainda reduzidas aos violoncelos
=
8a 15 e altos. Os pizzicati desenham uma linha melódica, ainda que muito pobre
8b e acrescentam ao ritmo desenvolvido do tambor um ritmo simplificado,
=
16 ixa
modelo reduzido do outro: três semínimas, depois duas semínimas seguidas
ixb por duas colcheias, compondo um ritmo desaprumado no qual se reconhece,
=
entre um compasso e outro, a mesma alternância entre princípio ternário e
9a 17
9b princípio binário já apontada. Isso não é tudo. Pois atacando desde o início
modul.
18
Finale | 639
a quinta seguida de uma oitava dobrada e sugerindo o uníssono, as cordas da tonalidade mais comum e mais consolidada — dó maior — não por uma
tiram a marca do primeiro tempo forte e a transferem para o segundo e tonalidade diferente, é verdade, mas para a mesma tão profundamente alte-
terceiro tempos, que parecem assim abrir o compasso como que por efeito rada pela invasão dos bemóis que beira a sub-dominante menor, sem jamais
de uma anacruse. Os afastamentos tonal e rítmico se conjugam, criando a atingi-la, pois após o afã continuado no importante ré bemol característico
impressão de dois compassos ternários defasados entre si. Acompanhando do contra-tema, a contra-resposta, como que vencida pelo esforço frustrado,
uma melodia constantemente na expectativa e que muitas vezes antecipa resigna-se e retorna pouco a pouco à ordem. A bem dizer, não são afinal
o compasso seguinte com uma síncope, o ritmo opera ao inverso, e parece duas tonalidades que se opõem: um movimento de pêndulo “regular e perió-
sempre um compasso atrás. A harpa, tratada como um instrumento de per- dico”, como se diz em A hora espanhola, afasta a melodia de uma tonalidade
cussão mas dotada de maior poder expressivo, sublinha admiravelmente franca e estável ou a reconduz a ela, reconstituindo assim uma espécie de
esse aspecto: entra a [2] com semínimas no segundo e terceiro tempos; os equivalente da oposição rítmica entre binário e ternário, e da oposição ao
mesmos acentos passam então para os violinos e depois para as madeiras mesmo tempo rítmica e melódica entre simetria e assimetria.
([6] e [7]); a harpa entra a [8] nos segundos tempos, com mínimas, subs- Uma vez assente isso, vê-se que toda a obra busca superar um conjunto
tituídas em [10] por semínimas que, apenas nos segundo e terceiro tempos, complexo de oposições, como que embutidas umas nas outras. A principal,
formam acordes de três sons, depois de quatro. Assim, durante todo esse enunciada desde o começo, situa-se entre a melodia, formulada no tom o
período e para além dele (pois o efeito, confiado aos trombones, atinge o mais igual e liso — e confiado à flauta, de todos os instrumentos aquele cujo
paroxismo nos seis últimos compassos), é o segundo tempo que é marcado, timbre mais merece tais qualificativos — e dois ritmos imbricados dos quais
e se opõe portanto ao primeiro, não marcado ou menos fortemente marcado um parece sempre querer se adiantar e o outro, manter o atraso. A melodia,
do que os dois outros. com suas oscilações tonais, e o ritmo, com sua dualidade interna, balançam
Ao longo da peça, esses ritmos defasados, um desenvolvido e o outro entre a simetria e a assimetria, exprimindo-se respectivamente pela hesita-
condensado, sofrem dois tipos de transformação. Primeiro, cada qual passa ção entre binário e ternário e entre tonalidade serena e tonalidade ansiosa.
alternadamente ao primeiro plano e ocupa a dianteira da cena rítmica. Ini- Para reconciliar esses contrários, o compositor se volta de saída para a
cialmente subordinado, o ritmo sintético se enche com a participação cons- única dimensão musical ainda não comprometida no debate, a dos timbres
tante do quarteto, atinge a igualdade por volta do segmento [11], triunfa à musicais. Inicialmente acionados como solistas, os instrumentos se asso-
altura do [13], para então decrescer progressivamente e se apagar em [16], ciam aos pares e depois vão-se combinando de modo crescente, até tornar-
por trás do ritmo analítico que retoma a predominância graças ao acrés- se claro que qualquer solução escapa antes do tutti, isto é, quando a quali-
cimo das cordas. Em segundo lugar, cada tipo de ritmo, ao afirmar-se, dade torna-se quantidade e todo o volume sonoro à disposição não ajuda
defende e ilustra uma opção métrica inversa: o ritmo sintético tende para em nada. Então, no momento em que a exasperação orquestral atinge seu
uma métrica ternária simples, e a atinge plenamente nos cinco primeiros ponto culminante, é dessa mesma impotência que brota a boa solução, num
compassos de [13], antes de começar a decrescer. Enquanto isso, a métrica plano em que não teria sido buscada se os fracassos anteriores não tivessem
analítica, embora seja também ternária, simula algo como transfigurações levado a ela. Sem esperança de conseguir e sem poder reforçar a voz, como
binárias, o que é traduzido pela harpa em [16], ao passar abruptamente das último recurso, a orquestra sobe o tom: modula. Daí a célebre modulação
tríades de semínimas para pares alternados de semínimas e colcheias, no tonal que surge quinze compassos antes do final, mas que — é bom subli-
exato momento em que o ritmo analítico, voltando ao primeiro plano como nhar desde já — é preparada e conduzida pelo que poderíamos chamar de
no início, mobiliza todas as cordas — à exceção dos primeiros violinos — e modulação rítmica. Instalada desde [16] do lado do binário, a harpa volta
a maior parte dos sopros. por um instante ao ritmo francamente ternário, antes da modulação tonal
Afinal, a que respondem, no plano da melodia, essas transformações rít- na qual a síntese rítmica se realiza, nos seis últimos compassos.
micas? Se o ritmo oscila entre cadências binária e ternária, a melodia, por sua Ora, tal modulação, em mi maior, tem como relativo o tom de dó sus-
vez, com períodos mais curtos, oscila da seqüência (tema-resposta) para a tenido menor, enarmônico de ré bemol, o qual pertence à tonalidade de fá
seqüência (contra-tema-contra-resposta). Ao fazê-lo, passa alternadamente menor (sub-dominante menor de dó), a que tendia em vão o contra-tema.

640 | Finale Finale | 641


Já existia, portanto, uma solução na ordem da tonalidade. Afastando duas membros esticados da outra. Então, como numa verdadeira fuga, os planos
tonalidades inaliáveis (pelo fato de uma delas não se declarar) o mi maior superpostos do real, do simbólico e do imaginário perseguem uns aos outros,
triunfa, operando uma mediação tonal que, por conseguinte, autoriza a alcançam-se e se compenetram parcialmente até a descoberta da boa tonali-
superposição e até mesmo a fusão temporária entre os ritmos binário e ter- dade, embora durante toda a duração da obra esta tenha permanecido como
nário, já que esta última oposição replicava a outra. Durante os seis últimos uma utopia. Quando a modulação finalmente faz com que se encontrem e
compassos, o ritmo analítico, combinação de oposições binárias, une-se ao coincidam as ordens do real e do imaginário, as outras oposições se desfazem.
outro ritmo, levado à sua mais simples expressão ternária por intermédio do Os princípios binário e ternário são compatibilizados por superposição, pela
bombo, do tímpano e do gongo, cada um marcando um tempo. O primeiro mesma razão que faz ceder a antinomia aparente entre simetria e assimetria,
desses instrumentos é ritmo sem timbre, o segundo, timbre sem ritmo, e o sob efeito de uma mediação cuja prova acaba de ser fornecida no plano tonal.
terceiro, uma síntese sonora dos dois primeiros. Por quatro compassos, é Após um supremo tumulto bruscamente interrompido, a partitura se acaba
o ritmo ternário que domina, marcado pelos glissandi dos trombones no em silêncios consagradores de um trabalho bem executado.
segundo e terceiro tempos. Nos dois compassos finais, tudo vira, o penúl-
timo compasso assume um perfil binário em dois motivos e o último, redu- !
zido ao tempo forte apenas, devolve ao ritmo o ponto de apoio que até então
dele se evadira. Finalmente, a formidável dissonância que ocupa a segunda Neste final, as aparentes digressões acima têm seu papel. Mostram que, con-
metade do penúltimo compasso, feita de notas estacionárias, gamas ascen- trariamente ao que afirmaram certos críticos, não desconsidero a importân-
dentes e descendentes, todas despejadas em bloco, significa que a partir de cia da vida afetiva. Apenas recuso-me a desistir diante dela e a entregar-me
então nada mais importa, no timbre, no ritmo, na tonalidade ou na melodia. em sua presença à forma de misticismo que proclama o caráter intuitivo e
E assim, como um mito, mesmo uma obra cuja construção parece ser tão inefável dos sentimentos morais e estéticos, pretendendo às vezes inclusive
transparente à primeira vista que não sugere comentário algum narra em que eles iluminam a consciência independentemente de qualquer apreen-
vários planos simultâneos uma história na verdade bastante complexa, à qual são de seu objeto pelo intelecto; levando à alegação de que, ao descrever e
é preciso dar um desfecho. Como ocorre também muitas vezes nos mitos, tais analisar o “pensamento selvagem”, eu teria ignorado e traído sua verdadeira
planos simultâneos são, nesse caso, os do real, do simbólico e do imaginário. natureza porque, diz-se, no quadro que dele apresento, “a faculdade estética
Pois a oposição rítmica entre binário e ternário é bem real. O mesmo não se e as emoções praticamente desapareceram” (Milner 1969: 21).
pode dizer da oposição entre simetria e assimetria que permanece implícita, Com um mínimo de sensibilidade, todo leitor de minhas obras, desde As
de cuja simbolização encarregam-se concretamente contrastes rítmicos, ou estruturas elementares do parentesco até as Mitológicas, passando por Tris-
tonais, ou ainda manifestados entre o ritmo da melodia e a linha do ritmo, tes trópicos e O pensamento selvagem, poderá julgar tal afirmação. Nenhum
tornada melódica pelos pizzicati das cordas incorporadas à percussão com a desses livros é impassível. Por outro lado, é verdade que me esforço por per-
harpa. Passa-se, enfim, para a ordem do imaginário com a oposição entre o ceber, por detrás das manifestações da vida afetiva, o efeito indireto de alte-
tom simples e franco do dó maior ao tom equívoco que se revela no contra- rações que surgem no curso normal das operações do intelecto, em vez de
tema, já que na verdade não se atinge nenhuma tonalidade definida. ver nas operações do intelecto fenômenos secundários em relação à afetivi-
No início desta análise, não era de todo descabido comparar o Bolero a dade. Pois só podemos pretender explicar essas operações, porque compar-
uma fuga, achatada, dizíamos. A expressão é imprópria na medida em que, tilham a mesma natureza intelectual da atividade que busca compreendê-
a partir do conteúdo da obra, não se poderia reconstituir uma verdadeira las. Uma afetividade que não derivasse delas seria rigorosamente impossível
fuga. Porém, se tal conteúdo só pode existir na forma de série linear, não seria de conhecer enquanto fenômeno mental. Postulá-la como fundamento das
justamente porque encerra incompatibilidades que excluem uma organiza- operações intelectuais, em relação às quais gozariam de um privilégio de
ção mais condensada em volume? Ora, são essas mesmas incompatibilida- anterioridade seria contentar-se com palavras sem sentido (que se encontra
des que, para poderem ser conciliadas, geram uma verdadeira fuga, esta ideal, hipoteticamente além) e substituir por fórmulas mágicas a obra do raciocí-
e puramente formal, que se eleva como um corpo espiritual emanado dos nio. Qualquer manifestação da vida afetiva que não refletisse, no plano da

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consciência, algum incidente notável que bloqueia ou acelera o trabalho do de narrativas cuja importância e organização interna fazem delas obras legí-
entendimento, deixaria de concernir às ciências humanas; seria da alçada da timas. Em certos casos, ao contrário, as representações míticas só existem
biologia (Lévi-Strauss 8: 99-100) e caberia a outros tratar delas. no estágio de notas, esboços ou fragmentos; e, em vez de serem unidas por
De vários lados, mas sobretudo na Inglaterra (Fortes 1967: 8-9; Leach um fio condutor, cada uma delas se liga a uma determinada parte do ritual,
1967b: 8; 1970: passim), fui acusado de reduzir experiências intensamente fornecendo sua glosa, e é apenas por ocasião de atos rituais que tais repre-
vividas por sujeitos individuais a símbolos neutros do ponto de vista afe- sentações míticas são evocadas.
tivo, como os que são usados pelos matemáticos, quando o pensamento dos Mas, assim como um romance e uma coleção de ensaios, apesar da dife-
povos sem escrita recorreria a símbolos concretos e totalmente impregna- rença na concepção, pertencem ambos ao gênero literário, a mitologia explí-
dos de valores emotivos. É essa distância que, dizem, seria impossível trans- cita e a mitologia implícita constituem dois modos distintos da mesma rea-
por desde a perspectiva em que me coloco. As considerações acima acerca lidade. Em ambos os casos, trata-se de sistemas de representações. O erro
da natureza da emoção musical demonstram o contrário, mas resta a evi- dos teóricos contemporâneos do ritual decorre do fato de não distinguirem,
denciar que o mesmo tipo de interpretação se aplica a fenômenos mais do ou distinguirem apenas ocasionalmente, esses dois modos de existência da
âmbito das investigações etnológicas, ao ritual2 sobretudo, que fui inclusive mitologia. Conseqüentemente, em vez de tratarem em conjunto as questões
desafiado a conectar principalmente às operações do intelecto (Beidelman colocadas pelas representações míticas, explícitas ou implícitas, e de tomarem
1966: 402), sob a alegação de que, como escreve outro autor que compartilha os ritos como um objeto de estudo separado, traçam a linha divisória entre a
o mesmo ponto de vista, “os símbolos e suas relações... não constituem ape- mitologia explícita, para a qual reservam arbitrariamente o nome de mitolo-
nas um conjunto de classificações cognitivas para ordenar o universo... São gia, e as glosas ou exegeses do rito que, embora sejam da ordem do mito, são
também, e talvez principalmente, um conjunto de meios evocadores para reunidas e confundidas com os ritos propriamente ditos. Misturando inextri-
suscitar, canalizar e domesticar emoções poderosas, como a raiva, o medo, cavelmente as duas ordens, veem-se às voltas com um objeto híbrido do qual
a ternura e a tristeza. Estão também voltados para um objetivo e possuem se pode dizer qualquer coisa: que é verbal e não verbal, que cumpre uma fun-
por isso um aspecto “conativo”. Em suma, a pessoa inteira, e não apenas ção cognitiva e uma função afetiva ou conativa, etc. Partindo da proposta de
seu espírito... é implicada de modo existencial em eventualidades como a dar ao ritual uma definição específica que o distinga da mitologia, começa-se
vida e a morte...” (V. W. Turner 3: 42-43). Que seja. Mas uma vez dito isso por deixar nele várias sortes de elementos que na verdade pertencem a ela,
e cumprido um piedoso dever verbal para com a afetividade, não teremos mistura-se tudo e acaba-se por produzir um balaio de gatos.
avançado um passo sequer para explicar de que modo as bizarras ocupações Se a proposta for estudar o ritual em si e por si, a fim de compreender em
envolvidas nos rituais e as representações que lhes são relacionadas podem que ele constitui um objeto distinto da mitologia e determinar suas caracte-
produzir tão belo resultado. rísticas específica, convém, ao contrário, começar por separar toda a mitolo-
Os etnólogos que colocam o ritual no topo de suas preocupações par- gia implícita que adere ao ritual sem realmente fazer parte dele, isto é, cren-
tem de um fato em si incontestável: como os Ndembu estudados por Tur- ças e representações ligadas a uma filosofia natural, tanto quanto os mitos;
ner, certos povos “possuem pouquíssimos mitos, e compensam essa situação e, a pretexto de evidenciar “o caráter não verbal dos símbolos rituais” (V.W.
com uma profusão de exegeses adaptadas a casos particulares... Nesse caso, Turner 1969: 39), não acabar na posição de Leach (1966, 1967b), afirmando
não há nenhum atalho que permita atingir diretamente a estrutura... da reli- ao mesmo tempo que os símbolos concretos do pensamento primitivo são
gião... por intermédio dos mitos e de uma cosmogonia. É preciso proceder imbuídos de valores emotivos e que o papel do ritual é garantir a transmis-
de modo atomizado, por partes...” (V.W. Turner 1969: 20). Contudo, ao apre- são e a comunicação de um repertório complexo de informações sobre o
sentar as coisas desse modo, não se leva em conta o fato de a mitologia poder mundo natural, quando é justo o contrário. De resto, todos esses comen-
aparecer em duas modalidades bem distintas. Pode ser explícita e consistir tários que pretendem colocar a afetividade no centro do ritual e discorrem
a respeito da angústia sentida diante dos tabus fazem irresistivelmente
2 . As considerações acerca do ritual que seguem foram expostas pela primeira vez em pensar em algum etnógrafo vindo de outro planeta que, em sua monogra-
inglês, na Frazer lecture proferida a 19 de novembro de 1970, na Universidade de Oxford. fia acerca dos terráqueos, descreveria o terror supersticioso que impede

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os automobilistas de ultrapassar o limite simbólico traçado no asfalto por de comportamentos não-lingüísticos e, finalmente, para o ritual em estado
uma simples linha e até de tocá-la; relataria, horrorizado, os castigos a que puro. Este, no limite, poderia ser concebido como tendo perdido qualquer
estariam sujeitos os profanadores, na forma de colisão com outro veículo... afinidade com a língua, porque consistiria de palavras sagradas — ininteli-
Mas nós não sentimos nada disso. Respeitamos as linhas de modo rotineiro, gíveis para o leigo ou provenientes de uma língua arcaica que ninguém mais
sem nisso investirmos nenhum valor emotivo. Como ocorre com tantos atos entende, ou ainda fórmulas desprovidas de significado intrínseco como cos-
rituais, o comportamento é óbvio para os que se conformam a ele, porque a tumamos encontrar na magia —, gestos corporais e objetos diversamente
consciência que deles têm já os apresenta totalmente integrada a uma con- selecionados e manipulados. Nesse ponto, o ritual, como a música do outro
cepção do mundo. lado do sistema, passa definitivamente para fora da linguagem, e se quiser-
Não deixo por isso de reconhecer a especificidade do ritual, nem tam- mos compreender sua natureza distintiva, é evidentemente diante dessa
pouco os estados de ansiedade que — sem os exageros tão comuns — podem forma pura, e não dos estados intermediários, que convém partir.
motivá-los. A menos que, ao contrário, deles resultem. Uma famosa polêmica Como será então definido o ritual? Diremos que consiste de palavras
entre Malinowski e Radcliffe-Brown (Lévi-Strauss 1962a: 96-99) deixou essa proferidas, gestos realizados e objetos manipulados, independentemente de
questão, que tem precedência sobre as demais, em suspenso. Veremos mais qualquer glosa ou exegese permitida ou requerida por esses três tipos de
adiante que nenhuma das duas teses vale mais do que a outra. De todo modo, atividade, que concernem não ao ritual em si, mas à mitologia implícita. Em
o próprio fato de o estudo do ritual obrigar a discutir suas relações com a tais condições, não é com a mitologia que o ritual deverá ser comparado
ansiedade prova que as considerações a seguir requeriam, preliminarmente, para perceber suas propriedades distintivas, mesmo porque a comparação
as que fiz acerca da ansiedade tomada em sua acepção mais geral, sem refe- seria bastante difícil para os gestos (que não estão totalmente ausentes no
rência às circunstâncias particulares em que se produz. Tais considerações caso do mito mas que, como mostramos na página 579, nele desempenham
foram, por sua vez, trazidas por uma tentativa de situar em suas relações recí- uma função metonímica em vez de metafórica, como no caso do ritual) e
procas a mitologia e a música, e começarei, portanto, por investigar se o ritual totalmente impossível para os objetos. Em compensação, na vida cotidiana,
também pode ser situado no sistema global que esbocei. os três tipos de atividade estão igualmente representados, de modo que o
Vimos que o mito, para o qual a linguagem articulada serve de suporte, problema posto pelo ritual equivaleria perguntar-se: primeiro, por que, com
sempre conserva com ela uma conivência de que apenas a música, definida vistas à obtenção dos resultados que o mito almeja, é preciso proferir pala-
como sistema de sons, consegue se livrar totalmente. Isso vale sobretudo vras, realizar gestos e manipular objetos; segundo, em que tais operações,
para a música instrumental, pois o canto vocal, que foi certamente a forma tais como são executadas no curso dos ritos, diferem das operações análogas
primeira da música, é nesse aspecto comparável ao mito, já que para ele que a vida cotidiana também enseja. Em outros termos, sem indagar quanto
também a linguagem articulada serve de suporte, embora a função signi- ao conteúdo, que conduziria inevitavelmente à mitologia — gerando assim
ficante se encontre num caso deslocada acima do nível propriamente lin- a ilusão de que se define o rito quando, na verdade, fala-se do mito de acom-
güístico e, no outro, abaixo dele. Desde esse ponto de vista, pode-se dizer panhamento —, serão feitas três perguntas, das quais depende qualquer
que os campos respectivos da linguagem articulada, do canto vocal e do interpretação teórica do mito: no curso dos ritos, qual é o modo específico
mito se interseccionam. Na zona em que se recobrem, manifesta-se uma de se falar? como se gesticula? e quais critérios particulares presidem à sele-
afinidade entre eles, atestada pelos casos freqüentes em que os mitos são ção dos objetos rituais e a sua manipulação?
efetivamente cantados. Essa afinidade vai-se enfraquecendo progressiva- No que diz respeito aos gestos e objetos, todos os observadores notaram,
mente, para então desaparecer, quando se passa do canto vocal para o canto com razão, que o ritual lhes designa uma função que se acrescenta a seu uso
acompanhado por instrumentos, e finalmente para a música instrumental prático e às vezes o suplanta. Gestos e objetos intervêm in loco verbo, subs-
pura, que se situa definitivamente fora da linguagem. Do lado do mito e para tituem as palavras. Cada um deles conota de modo global um sistema de
além dele, a mesma gradação pode ser observada partindo da mitologia ideias e representações. Ao utilizá-las, o ritual condensa de forma concreta
explícita, que representa no pleno sentido do termo uma literatura, para a e unitária procedimentos que, sem isso, teriam sido discursivos. O ritual
mitologia implícita, em que fragmentos do discurso tornam-se solidários não realiza os gestos nem manipula os objetos como na vida cotidiana, para

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obter daí resultados práticos resultantes de operações em cadeia, com cada mínimos detalhes, e de descrições dos sentimentos que pode ter um indiví-
elo unido ao anterior por uma relação de causalidade. O ritual antes substi- duo no decorrer dessas peregrinações. Também causou surpresa observar
tui por gestos e coisas sua expressão analítica (Lévi-Strauss 1962b: 203-04). os índios montarem seus filmes muito mais rapidamente do que qualquer
Os gestos executados e os objetos manipulados são os meios que o ritual se profissional, decupando e colando as seqüências aparentemente ao acaso;
dá para evitar falar. descobriu-se em seguida que eram capazes, sem olhar a cada vez, de se lem-
Essa observação nos põe imediatamente diante um paradoxo. Na ver- brar de cada imagem particular dentre as milhares ou dezenas de milhares
dade, o ritual fala muito. Sempre que um ritual foi integralmente coletado e fixadas na película (Worth & Adair 1970: 23-30). Pois bem, sabe-se que os
transcrito, como ocorreu na América do Norte, com certos rituais dos Iro- Navajo possuem rituais de uma amplitude e riqueza excepcionais, que ocu-
queses, dos Fox, dos Pawnee, dos Navajo e dos Osage (Lévi-Strauss 1962b: pam um grande lugar na existência individual e na vida coletiva. Não sur-
79-80, 187-97), e também na África e na Polinésia, constata-se que o texto preende, portanto, que o procedimento de fracionamento, unido à percep-
completo, cuja recitação pode demorar vários dias, corresponde à matéria ção das menores unidades distintivas, tenha sido por eles transportado para
de um volume de dimensões por vezes impressionantes. Ainda nesses casos, o discurso material gravado na película, para ser aplicado a uma forma de
tratar-se-á de se abster de buscar o que dizem as palavras rituais, para ater-se mise en scène diferente das que conhecem tradicionalmente.
à única questão, a de saber como dizem. Impõe-se quanto a isso uma dupla Concorrentemente a essas sutilezas que ressaltam as fazes mais tênues de
constatação, que se aplica tanto à escolha e manipulação dos objetos quanto procedimentos cujo desenrolar, infinitamente detalhado, estica-se até ganhar
aos gestos. Em todos os casos, o ritual se vale constantemente de dois proce- proporções aberrantes, dando a impressão de uma “marcha lenta” visual que
dimentos, o fracionamento e a repetição. beira a estagnação e o imobilismo, observa-se um outro procedimento, não
Fracionamento em primeiro lugar, pois, no interior das classes de objetos menos notável. Ao custo de um considerável dispêndio verbal, o ritual se
e tipos de gestos, o ritual distingue ao infinito e atribui valores discrimina- entrega a um exagero de repetições: a mesma fórmula ou fórmulas aparen-
tivos às mais ínfimas nuances. Não se interessa por nada geral, ao contrário, tadas pela sintaxe ou assonância retornam e intervalos regulares, valendo
refina quanto às variedades e sub-variedades de todas as taxionomias, dos apenas às dúzias, por assim dizer. A mesma fórmula deve ser consecutiva-
minerais, animais e plantas e também aquelas, de que ele mesmo é em larga mente repetida muitas vezes, ou então uma frase na qual se concentra pouca
medida o autor, das matérias-primas, formas, gestos e objetos. O mesmo significação é presa e como que dissimulada entre dois amontoados de fór-
tipo de gesto adquire um papel e um significado distinto, seu lugar no ritual mulas iguaizinhas e vazias de sentido. Os rituais iroqueses e fox apresentam
muda conforme ele é realizado começando pela direita ou pela esquerda, por exemplos impressionantes de tais repetições: três vezes, três vezes, uma vez,
cima ou por baixo, por dentro ou por fora. O mesmo ocorre com o discurso. três vezes, cinco vezes, três vezes, duas vezes, onze vezes, três vezes, três vezes,
Ao estudar um rito específico, eu já sublinhava desde 1949 (Lévi-Strauss quatro vezes, uma vez, três vezes, para fórmulas consecutivas. Durante uma
1958a: cap. X; cf. 1962b: 17), que todos os procedimentos eram descritos com única fase do ritual, a mesma fórmula pode ser repetida em porções suces-
extrema minúcia, decupados em todas as seqüências mínimas que uma aná- sivas de dez, doze, vinte e até vinte e cinco unidades (Michelson 1928: 96-115;
lise esmiuçada pode isolar. Quanto a isso, é certamente significativo que os 1932: 72-73, 149-67).
índios Navajo, a quem pesquisadores entregaram uma filmadora para que Na aparência, os procedimentos de fracionamento e repetição se opõem.
realizassem um filme, tenham produzido obras cuja montagem apresentava Num caso, trata-se de introduzir diferenças, por menores que sejam, no seio
a característica em comum de dar aos deslocamentos dos atores um lugar de operações que poderiam parecer idênticas. No outro, ao contrário, trata-
maior do que à atividade principal que definia o título e o assunto. Vê-se em se de reproduzir um mesmo enunciado ao infinito. Na realidade, o primeiro
muitos detalhes os atores andando para fazer algo, muito mais do que efeti- procedimento se reduz ao segundo, que constitui de certo modo seu limite.
vamente fazendo. Esse traço de composição é, com razão, aproximado pelos Diferenças que se tornam infinitesimais tendem a se confundir numa quase-
iniciadores da experiência de narrativas navajo que chamam de míticas, mas identidade, e voltamos a encontrar aqui a imagem evocada acima do filme
que são na verdade cantos salmodiados no decurso dos mitos, com inter- cinematográfico, que decompõe o movimento em unidades tão pequenas
mináveis seqüências de enumeração de diversos modos de andar, em seus que os clichês consecutivos se tornam indiscerníveis e parecem repetir-se,

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de modo que o montador tem de usar marcações para realizar a contento a Em suma, a oposição entre rito e mito é a oposição entre viver e pensar,
decupagem. A menos que, como vimos, ele seja navajo, ou seja, alguém há e o ritual representa um abastardamento do pensamento consentido às ser-
tempos treinado, pela prática do ritual, a fazer a separação entre os valores- vidões da vida. Reduz, ou antes tenta em vão reduzir, as exigências do pen-
limite da identidade e da diferenciação. samento a um valor limite, que nunca consegue atingir, ou o próprio pen-
Quais seriam as razões profundas desse recurso sistemático, por parte samento seria abolido. Essa tentativa arrebatada, sempre fadada ao fracasso,
do ritual, aos procedimentos complementares de fracionamento e repetição? para restabelecer a continuidade de um vivido desmantelado sob efeito do
Os célebres trabalhos de G. Dumézil consagrados à religião romana arcaica esquematismo por que o substituiu a especulação mítica constitui a essência
iluminam a questão, e permitem propor uma resposta. O autor distingue do ritual e da conta das características distintivas que lhe foram reconheci-
os deuses romanos em duas categorias. De um lado, um pequeno número das nas análises acima.
de divindades maiores, formando uma tríade de oposições distintivas, cada
qual encarregada de um aspecto da ordem do mundo, um conjunto funcio- !
nal cuja relação com outros conjuntos funcionais reconstitui a estrutura glo-
bal do universo e da sociedade. Do outro, uma plêiade de divindades meno- Portanto, é sobre o esquematismo primeiro do pensamento mítico que con-
res, cuja multiplicidade permite associar ao mesmo tanto de fases específicas vém nos debruçarmos. Um esquematismo em si bastante complexo.
do ritual ou às etapas sucessivas, minuciosamente distintas umas das outras, O pensamento mítico é por essência transformador. Cada mito, assim
de determinadas formas de existência prática, como os períodos e operações que nasce, modifica-se ao mudar de narrador, seja dentro do grupo tribal
sucessivas da agricultura e da criação de animais com os ritos a eles ligados, ou se propagando entre um povo e outro. Alguns elementos caem, outros
talvez também as vicissitudes do parto (Dumézil 1966: 365-85; 1969: 253-304). tomam seus lugares, seqüências são invertidas, a estrutura destorcida passa
Não seria nada difícil fazer observações da mesma ordem a respeito de por uma série de estados cujas sucessivas alterações preservam, entretanto, o
cultos do México antigo ou de várias regiões do sudeste asiático e da África. caráter de grupo. Teoricamente pelo menos, essas transformações poderiam
Bem, apenas as divindades maiores podem ser diretamente relacionadas aos ser em número ilimitado, embora saibamos que os mitos também morrem
mitos. O que significa, então, a oposição entre uns poucos deuses maiores, cada (Lévi-Strauss 1971b); e, nesse caso, deve ser possível, sem renegar nenhum
qual correspondendo a um grande recorte do universo e da sociedade, e deuses dos princípios da análise estrutural, perceber às vezes, nos próprios mitos,
menores suficientemente numerosos para que se possa atribuir a cada um deles o germe de sua deterioração (omm: 92-106). Contudo, de um ponto de vista
a responsabilidade particular por um aspecto concreto da existência prática? puramente teórico, não seria possível tirar da noção de transformação, con-
Na verdade, essas categorias procedem de movimentos de pensamento siderada em abstrato, qualquer princípio do qual resultasse que os estados
exercidos em direções complementares. A fluidez do vivido tende constante- do grupo são necessariamente em número finito. Uma figura topológica se
mente a escapar das malhas da rede que o pensamento mítico lançou sobre presta a deformações tão minúsculas quanto a imaginação quiser conceber
ela, para reter apenas os aspectos mais contrastados. Fracionando operações e, entre duas distorções tomadas como limites, pode-se inserir uma série ili-
que detalha ao infinito e que repete incansavelmente, o ritual se dedica a mitada de estados intermediários, que fazem parte integrante de um único
uma remendagem minuciosa, tapa os interstícios, e nutre assim a ilusão e mesmo grupo de transformação. Se, entre uma variante e outra do mesmo
de que é possível remontar a contra-senso do mito, refazer continuidade a mito sempre aparecem diferenças expressáveis não na forma de acréscimos
partir de descontinuidade. Seu cuidado maníaco em localizar por fracio- ou decréscimos mínimos, mas de relações bem claramente demarcadas
namento e multiplicar por repetição as menores unidades constitutivas do como contrariedade, contradição, inversão ou simetria, é porque o aspecto
vivido traduz uma necessidade lancinante de garantia contra todo corte ou “transformacional” não é tudo. Um outro princípio deve intervir, para que
interrupção eventual que possa comprometer o desenrolar deste. Nesse sen- apenas alguns estados do mito sejam atualizados entre os possíveis e que
tido, o rito não reforça e sim inverte o procedimento do pensamento mítico, apenas determinadas janelas, mas não todas, sejam abertas numa grade
que cinde o mesmo contínuo em grandes unidades distintivas, entre as quais cujo número de casa não admite no entanto nenhum limite teórico. Esse
institui um afastamento. constangimento suplementar resulta do fato de o espírito, trabalhando

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inconscientemente a matéria mítica, só dispor de procedimentos men-
tais de um certo tipo: para evitar destruir a armação lógica que suporta os
mitos e aniquilá-los em vez de transformá-los, só pode fazer nele mudanças
discretas, no sentido matemático do termo, que é o oposto de seu sentido
moral, pois o próprio de uma mudança discreta é manifestar-se sem discri-
ção. Além disso, cada mudança descontínua impõe a reorganização do con-
junto, pois nenhuma delas ocorre isoladamente, mas sempre em correlação
com outras. Nesse sentido, pode-se dizer que a análise mítica é simétrica e
inversa à análise estatística. Substitui rigor quantitativo por rigor qualitativo,
mas ambas só podem pretender ao rigor porque dispõem de uma multiplici-
dade de casos que amnifestam a mesma tendência de se organizarem espon-
taneamente no espaço e no tempo.
O exposto ajuda a compreender porque as especulações de Dürer em
seus Livros...dos retratos dos corpos humanos e as de Goethe na Metamor-
fose das plantas, retomadas e generalizadas por D’Arcy Wentworth Thomp-
son, que lhes deu um estatuto científico, mantêm hoje seu alcance. O bió-
logo escocês mostrou que, fazendo variar os parâmetros de um espaço de
coordenadas, pode-se passar, por uma série de transições contínuas, de uma
forma viva a outra, e deduzir, graças a uma função algébrica, os contornos
sensíveis — gostaríamos de dizer o grafismo insubstituível e o estilo — que
permitem distingir pela forma, à primeira olhadela, duas ou mais sortes de
folhas, conchas ou ossos, até animais inteiros, contanto que os seres compa-
rados pertençam à mesma classe botânica ou zoológica (fig. 39).
Com certeza, e a objeção vem naturalmente ao espírito, as diferenças
específicas ou genéricas atuais não resultam de cortes idealmente operados
num contínuo virtual, contrariamente ao que os próprios mitos imaginam
(cc: 58-63, 286-287, 325-326), mas estão diretamente ligados às desconti-
nuidades do código genético que, como a linguagem, procede por combi-
nação e oposição distintiva de um pequeno número de elementos. D’Arcy
Wentworth Thompson não deixou de considerar essa evidência, cujo prin-
cípio já era perceptível, se não na época de Goethe (mas Rousseau já não
tinha definido a botânica como estudo “de combinações e relações”?), pelo
menos na época em que ele mesmo escrevia: “Quer nossas classificações
sejam de ordem matemática, física ou biológica, um ‘princípio de desconti-
nuidade’ é inerente a elas; e a infinitude das formas possíveis, sempre limi-
tada, pode ser ainda mais reduzida e fazer surgir outras descontinuidades, [ 3 9 ] Transformações zoológicas. Da esquerda para a direita e de baixo para cima: Poly-
se impusermos condições suplementares, tal como a de que os parâme- prion, Pseudopriacanthus altus, Scorpæna sp., Antogonia capros, Diodon, Orthagoriscus,
tros variem por números inteiros ou, como dizem os físicos, por quanta Argyropelecus Olfersi, Sternoptyx diaphana, Scarus sp., Pomacanthus. (Cf. D’Arcy Wen-
(Thompson 1952, ii: 1094). tworth Thompson 1952, II: 1062-1064).

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Com a descoberta do código genético, podemos hoje colocar uma reali- Assim, por trás de cada par de oposição primário aparecem pares secundá-
dade objetiva por detrás dessa exigência teórica de um princípio de descon- rios, por trás destes, terciários, e assim por diante, até que a análise encon-
tinuidade, em operação tanto nos trabalhos da natureza como nas constru- tre as oposições infinitesimais com que se compraz o discurso do ritual. O
ções do espírito, para restringir a gama ilimitada dos possíveis. É apenas num outro eixo, que é propriamente o do mito, remeta antes ao eixo metafórico;
universo mítico, ensinam-nos as narrativas indígenas (supra, pp. 417-21) que subsume individualidades sob o paradigma, alarga e empobrece simultane-
as espécies vivas puderam existir em número tão grande que os afastamen- amente os dados concretos, obrigando-os a transpor um após o outro os
tos distintivos entre elas tinham-se tornado imperceptíveis. E se os próprios limiares descontínuos que separam a ordem empírica da ordem simbólica,
mitos se curvam, no que lhes diz respeito, a uma semelhante exigência de des- depois da ordem imaginária e, finalmente, do esquematismo.
continuidade, é, definitivamente, porque ao restituírem ao universo sensível O constante recurso do ritual a meios de expressão não verbais como os
propriedades que já lhe pertenciam, mas de cujo fundamento objetivo não gestos e símbolos materiais corresponde a um esforço cada vez mais difícil
podiam ainda suspeitar, não faziam senão generalizar processos de engen- à medida em que o pensamento avança nesses eixos perpendiculares e se
dramento do pensamento desvelados a ele quando se exerce, e que são em afasta, portanto, de sua origem comum, para manter entre eles ligações dia-
ambos os casos os mesmos porque o pensamento e o mundo que o engloba gonais. Praticamente sempre, os mitos fundadores dos rituais traduzem essa
e que ele engloba são duas manifestações correlativas da mesma realidade. necessidade de reter, retomar e reunir esses impulsos divergentes. Conta-se
Mas o pensamento jamais tem acesso direto a esse mundo sensível. Entre que, para obter um ritual, foi preciso que um humano abjurasse as distin-
eles se interpõem, já no nível da visão, para nos limitarmos a esse aspecto, ções claras e precisas em vigor na cultura e na sociedade e que, misturado
procedimentos analíticos que antecipam a atividade cerebral e operam na com os animais e tornado igual a eles, voltasse ao estado de natureza mar-
própria retina. Voltaremos a isso (infra, pp. 619), mas convém notar desde já cado pela promiscuidade dos sexos e pela confusão entre os graus de paren-
que o olho não fotografa simplesmente os objetos visíveis, também codifica tesco — uma desordem que, contrariamente ao que atesta a experiência prá-
suas relações e transmite ao cérebro menos imagens figurativas do que um tica, engendra imediatamente regras em benefício de um escolhido para a
sistema de oposições binárias entre imobilidade e movimento, presença ou edificação dos seus (Boas 1917: 40-43; Teit 1912b: 259), ou seja, o inverso do
ausência de cor, um movimento realizado numa direção por contraste com caminho interminável e sem saída ao longo do qual o ritual se esforça.
outras, um certo tipo de forma que difere de outros tipos, etc. A partir desse E assim, enquanto o mito volta decididamente as costas para o contínuo,
repertório de informações discretas, o olho ou o cérebro reconstroem um para decupar e desarticular o mundo por meio de distinções, contrastes e opo-
objeto que jamais perceberam propriamente. Isso certamente vale sobre- sições, o rito segue um movimento no sentido inverso: partindo das unidades
tudo para o olho de certos vertebrados desprovidos de córtex, como as rãs, discretas que lhe são impostas pela conceitualização prévia do real, ele corre
mas mesmo nos gatos e nos primatas, em que essa função analítica passa atrás do contínuo e tenta alcançá-lo, apesar de a ruptura inicial operada pelo
principalmente para o córtex, as células do cérebro apenas retomam por pensamento mítico tornar a tarefa para sempre impossível. Daí a mistura tão
conta própria operações cuja sede original é o órgãos sensível. característica, feita ao mesmo tempo de obstinação e impotência, que explica
Dito de outro modo, as operações da sensibilidade já têm um aspecto o fato de o ritual sempre possuir um lado maníaco e desesperado. Daí tam-
intelectual e os dados externos, de ordem geológica, botânica, zoológica, etc., bém, em compensação (e isso certamente explica porque, apesar do exposto,
nunca são intuitivamente apreendidos em si mesmos, mas na forma de um os homens, que deveriam ter sido ensinados pelo fracasso ou pela inocuidade,
texto, elaborado pela ação conjunta dos órgãos dos sentidos e do entendi- jamais renunciaram a ele), a função que se poderia chamar de “senatorial” da
mento. Tal elaboração se faz simultaneamente em duas direções divergentes: magia, esse jogo complicado e em sua essência irracional, ao inverso do pen-
por decomposição progressiva do sintagma e por generalização crescente do samento mítico mas todavia indispensável, porque introduz em cada empre-
paradigma. Uma corresponde ao eixo que poderíamos chamar de metoní- endimento de alguma seriedade um elemento de lentidão e reflexão, pausas e
mico; substitui cada totalidade relativa pelas partes que nela discerne e trata etapas intermediárias, e desse modo tempera inclusive a guerra.
uma por vez cada uma dessas partes como totalidades relativas de ordem Contrariamente ao que imagina um naturalismo atrasado, o ritual não
subordinada, sobre as quais exerce o mesmo trabalho de decomposição. provém, portanto, de uma reação espontânea ao vivido. Volta-se para ele,

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e os estados de ansiedade que o geram ou que ele gera — que o acompa- Vimos (supra, pp. 588) que o riso traduz uma gratificação inesperada da
nham portanto, qualquer que seja o caso — não exprimem, supondo que função simbólica, poupada por uma tirada espirituosa ou por uma situação
existam, uma relação imediata entre o homem e o mundo, mas o inverso, cômica de uma longa volta para conectar e unificar dois campos semânti-
ou seja, uma arrière-pensée, nascida do temor de que a partir de uma cos. Em compensação, a angústia, essa tenaz constrição interna das vísceras,
visão esquemática e conceitualizada do mundo, que é um dado imediato cujas características morfológicas opõem ao relaxamento externo e espas-
da inconsciência, o homem não consiga reencontrar o caminho do vivido. módico dos músculos pelo riso, se nos apresentou como o estado afetivo
Quando Turner (1968: 7) escreve que os ritos religiosos “criam ou atua- inverso, resultante de uma frustração da função simbólica, de que o sujeito
lizam as categorias por meio das quais o homem percebe a realidade, os não pode prescindir. Porém, em ambos os casos, a função simbólica, agra-
axiomas subjacentes à estrutura social e as leis da ordem moral ou natural” dada ou violentada, interpõe-se necessariamente entre o mundo pensado e
não está fundamentalmente equivocado, no sentido de que o rito efetiva- o mundo vivido.
mente se refere a tais categorias, leis ou axiomas. Mas o rito não as cria, Conseqüentemente, não se ignora os estados afetivos ao colocá-los em
antes se esforça, senão por renegá-las, pelo menos por obliterar tempo- seu devido lugar, ou, o que dá no mesmo, no único lugar em que se torna
rariamente as distinções e oposições que editam, fazendo aparecer entre possível compreendê-los, não precedendo toda apreensão do mundo pelo
elas toda sorte de ambigüidades, compromissos e passagens. Assim, pude pensamento mas, ao contrário, posterior e subordinado a essa apreensão e
mostrar algures (Lévi-Strauss 1962b: 294-302) que um ritual como o sacri- marcado desde o instante em que o espírito apreende a antinomia inerente
fício está em oposição diametral para com o totemismo enquanto sistema à condição humana entre duas sujeições inelutáveis, a do viver e a do pensar.
de pensamento, apesar de ambos se dirigirem à mesma matéria empírica, É verdade que são observados nos animais estados talvez comparáveis à
animais e vegetais, num caso fadados à destruição material pura e simples angústia, e que a experiência interna nos revela nelas algo de bestial a ponto
ou ao consumo alimentar, e no outro promovidos a um emprego intelec- de nenhuma outra ocorrência ser mais capaz do que a angústia de, aquém
tual do qual pode resultar a proibição ou limitação, por diversas restrições, da condição humana, nos religar à experiência vivida de nossa natureza ani-
de seu consumo alimentar. mal original. Ora, a função simbólica não é essencialmente humana? Etolo-
No caso particular do ritual, como no caso mais geral considerado à gia animal e sensação íntima, uma por fora e a outra por dentro, arruinariam
página 588, o aspecto afetivo não é um dado primeiro. O homem não sente, as interpretações intelectualistas. Mas quem não vê que, ao contrário, este
não pode sentir ansiedade diante de situações simplesmente vividas, a não duplo testemunho as reforça? É possível imaginar que os animais vivem num
ser caso a situação vivida seja de origem fisiológica e corresponda a um contraste de estados que os faz passar sem transição do gozo beato de existir,
desarranjo interno e orgânico. Se não, no caso do ritual com toda a certeza, em que todos os tensores se relaxam, para súbitas crises de ansiedade pro-
a ansiedade acompanhante remete a uma ordem completamente outra, que vocadas por um ruído, um odor ou uma forma, de um segundo para o outro,
não é existencial mas, digamos, epistemológica. A ansiedade está ligada ao e pode-se observá-los retesando os nervos e os músculos para o salto ou o
temor de que os recortes operados no real pelo pensamento discreto, com vôo. Não seria porque neles reina uma desproporção infinitamente maior
vistas à sua conceitualização, não permitam mais recuperar a continuidade do que no homem entre meios corporais potentes e eficazes e uma função
do real, como vimos acima (p. 603). Trata-se portanto de uma ansiedade simbólica não ausente, certamente, mas pelo menos rudimentar, e por isso
que, longe de ir, como crêem os funcionalistas, do vivido para o pensado, exposta a frustrações mais graves e freqüentes diante dos problemas que a
procede exatamente em sentido inverso e resulta do fato de que o pensado, vida selvagem lhe impõe, e que portanto atingem uma amplidão comparável
pela simples razão de ser pensado, cava um afastamento crescente entre o à que nós podemos sentir quando um ruído noturno nos faz crer na irrup-
intelecto e a vida. O ritual não é uma reação à vida, é uma reação ao que ção de bandidos na casa isolada em que fomos dormir? Mas o mesmo tipo
o pensamento faz dela. Não responde diretamente nem ao mundo nem à de conjuntura, que desencadeia no animal uma resposta pronta, acarreta
experiência do mundo, responde ao modo como o homem pensa o mundo. no homem um estado global de inibição. Numa fração de segundos, uma
Definitivamente, o que o ritual tenta superar não é a resistência do mundo torrente de eventualidades penosas, representações antecipadas de tudo o
ao homem, e sim a resistência ao homem, de seu pensamento. que pode acontecer e uma revista precipitada dos recursos concebíveis nos

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invadem e se acotovelam no limiar de uma consciência imperiosamente soli- mais modesto de seu corpo. A mesma desproporção que se observa no ani-
citada pela urgência, mas paralisada pela complexidade dos problemas que a mal aparece portanto entre uma função simbólica, cujas capacidades de sín-
assaltam e pelo tempo curto demais de que dispõe para operar uma síntese tese se tornam especialmente reduzidas diante dos problemas que pode ter
viável a partir de todos esses elementos. de resolver e os enormes meios físicos empregados para atingir tais soluções.
Não é portanto a interpretação da angústia proposta acima que é falsa, O homem corre em alta velocidade numa estrada livre. Nada solicita
mas o emprego geralmente feito pelos zoólogos — demasiadas vezes segui- particularmente sua atenção, ele é invadido por uma beatitude sonhadora,
dos por etnólogos — da noção de ritual, para caracterizar comportamentos seu espírito está longe, ele se entrega ao automatismo do motorista treinado
estereotipados observáveis entre várias famílias animais em diversas ocasiões, para cumprir gestos pequenos e precisos dos quais não precisa manter um
como o acasalamento ou o encontro de congêneres do mesmo sexo, com- controle consciente, porque nele fazem parte de uma segunda natureza.
portamentos que, por sua complicação, minúcia e hieratismo mereceram o Basta que, de repente, um objeto deixado no banco e esquecido por ele se
nome de “ritualização”. Apesar das aparências, essas características colocam- mova, produzindo um ruído inesperado, impossível de confundir com o
nos nas antípodas do ritual, pois demonstram que tais comportamentos são ronco do motor ou as vibrações familiares da carroceria, para que sua ten-
mecanismos previamente montados, inertes e latentes até que um estímulo ção seja galvanizada, seus músculos se retesem e uma tensão ansiosa tome
de determinado tipo venha a se manifestar e os desencadeie automaticamente. seu organismo por inteiro, na apreensão de uma desordem ininteligível e
Foi notado, e com razão, que a ritualização “tem por efeito afiar as men- que poderia produzir um desastre em uma fração de segundo. Num lapso
sagens e reduzi-las a um código descontínuo” (Bronowski 1967: 377). O de tempo tão curto, o inventário das explicações possíveis desfila, paradas
termo “ritualização” é, portanto, impróprio; pois entre os homens, de onde são mobilizadas e a memória convocada a desempenhar seu ofício, o efeito é
é tomado de empréstimo, o ritual cumpre a função inversa, consistindo em ligado a sua causa, e o incidente reduzido a suas derrisórias proporções. Não
reconstruir o contínuo por operações práticas a partir do descontínuo espe- era nada. Porém, por um instante, terá sido preciso que um sistema nervoso
culativo que fornece a base de saída. Entre esse descontínuo da inteligência e feito para um corpo comum se adequasse aos riscos inerentes ao enorme
o dos comportamentos instintivos, a diferença reside na riqueza do primeiro acréscimo de potência que lhe outorgava o motor. Dizem às vezes os jornais
e pobreza do segundo, já que a complexidade das operações intelectuais com que, ao volante de um automóvel, o homem volta a ser um bicho. Vê-se que
que o primeiro opera só tem contrapartida, nos animais, na complexidade também num outro sentido, não mais moral mas intelectual, a utilização de
de comportamentos reais inscritos no organismo, em vez de produzidos na um engenho fabricado pela indústria humana aproxima, paradoxalmente,
forma de ideias pelo entendimento. o homem de sua condição animal. Ainda que incomparavelmente superio-
É certo que se pode legitimamente buscar a explicação para algo do res às do animal, suas capacidades simbólicas se encontram de certo modo
homem em geral inspirando-se em observações de mamíferos, insetos minimizadas pelo comando de um corpo artificial, cuja potência física
ou pássaros. De fato, o afastamento entre os animais e o homem é tal que ultrapassa a de seu corpo natural. É em situações assim, que nada têm a ver
torna negligenciáveis os afastamentos (aos quais é incomensurável) entre os com o ritual, que as mensagens se empobrecem e se esquematizam; tornam-
homens. Em compensação, e pela mesma razão, seria radicalmente impos- se descontínuas e pedem uma resposta de tipo tudo ou nada.
sível explicar os afastamentos diferenciais entre grupos de homens, como os
supostos primitivos e civilizados ou várias sociedades ditas primitivas, com- !
parando costumes próprios a este ou aquele grupo com comportamentos
animais genéricos ou específicos. Se buscamos um campo em que a com- Mas a semelhança para por aí. Igualmente distantes do ritual, o animal age
paração apresenta alguma verossimilhança entre o que, por falta de termo seus mitos, o homem os pensa. E a universalidade do código binário só é ates-
melhor, chamarei de sentimentos respectivos dos humanos e dos animais, é tada no ponto em que essas orientações divergentes têm sua origem comum:
numa outra direção que convém nos voltarmos. num código reduzido à sua mais simples expressão, isto é, a alternativa ele-
Um homem habituado a dirigir um automóvel dispõe, para governar mentar de uma resposta sim ou não. Nos animais, essa alternativa vinda de
essa potência suplementar, de um sistema nervoso adaptado ao comando fora age como o motor ou o inibidor da realização de gestos pré-ordenados.

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Nos homens, ao contrário, o tudo ou nada marca o limite inferior em que língua para o processo de enunciação os lingüistas estariam repondo em seu
se enrijecem e se anulam, sob efeito de uma paralisia sentida no organismo, pedestal a estátua de um sujeito livre e criador que seus predecessores sacrí-
os recursos de um jogo combinatório cuja sede é o entendimento e que, na legos teriam derrubado. Um pouco como se imaginássemos que o modo
forma de mitos, expõe por conta própria um espetáculo de ideias não menos como as pessoas fazem amor os livraria da sujeição ao código genético. Mas
fantasmáticas do que os trabalhos de uma poesia indizível a que o gênio da se o código não existisse, elas não fariam absolutamente nada, e é apenas
espécie submete, quando do acasalamento, os pássaros exóticos e comuns. porque ele existe que elas dispõem da faculdade bastante restrita de pô-lo
Contra essa concepção de um entendimento levando a uma atividade autô- a operar, com pequenas variações independentes de sua consciência e de
noma e sujeita primeiramente a si mesma se insurgem todos os que supõem sua vontade. Toda a língua pré-existe virtualmente a cada enunciação que
que uma exibição de bons sentimentos possa fazer as vezes de busca da ver- o discurso nela seleciona, assim como todos os genomas pré-existem vir-
dade e que, para salvaguardar o que chamam de liberdade, espontaneidade, tualmente aos indivíduos particulares que, devido ao acaso ou a afinidades
criatividade do sujeito, não hesitam em concluir alianças contra a natureza. eletivas, outros indivíduos geram ao se unirem.
Como ocorre, por exemplo, com certas correntes da lingüística contemporâ- Quando os linguistas enfatizam que a linguagem, mesmo reduzida a um
nea cuja orientação filosófica e metodológica é no entanto oposta à sua, já que conjunto finito de regras, permite gerar um discurso infinito, formulam uma
depois da análise da língua realizada por seus antecessores, essa lingüística se tese aproximativa, mas no entanto legítima de um ponto de vista estrita-
dedica à questão complementar posta pela síntese da fala, e avança mais na mente operatório. Pois é tal a riqueza das combinações possíveis que tudo
via do determinismo. Não cabe evocar aqui os debates propriamente lingüís- se passa, na prática, como se essa fórmula relativa tivesse validade absoluta.
ticos que essa mudança de perspectiva enseja. Sinto-me ainda menos concer- Não é assim quando os filósofos pretendem tirar dessa regra de método
nido por eles na medida em que, desde 1945 (Lévi-Strauss 1958a: caps. 2 e 13) inferências metafísicas. De direito, um conjunto finito de regras, colocando
eu aplicava aos fatos da vida social e às coisas da arte regras de transformação, em operação um vocabulário finito para elaborar frases cujo comprimento
sem achar que me afastava no que quer que fosse dos ensinamentos de uma não é limitado de modo estrito mas que, pelo menos na linguagem falada,
lingüística estrutural que alguns declaram fora de moda, sem nem se darem tendem muito depressa a tornar-se altamente improváveis à medida que se
conta de que ela recebeu um estatuto natural e objetivo com a descoberta e aproximam de um certo limite e o ultrapassam, só pode gerar um discurso
deciframento do código genético, essa língua universal utilizada por todas as também finito. E isso apesar de gerações sucessivas, cada qual com milhões
formas de vida, desde os micro-organismos até os mamíferos superiores, pas- de locutores, jamais esgotarem suas combinações.
sando pelas plantas, na qual se pode ver o protótipo absoluto cujo modelo a lin- O fato de um corpo finito de regras poder gerar uma série praticamente
guagem articulada repercute, num outro nível. Ou seja, de saída, um conjunto infinita de operações é, portanto, tão interessante quanto — mas não mais
finito de unidades discretas, bases químicas ou fonemas, em si desprovidas de interessante do que — o fato de indivíduos sempre diferentes uns dos outros
significação, mas que diversamente combinadas em unidades de classe supe- serem gerados pela operação de um código genético finito. Ao deslocarem
rior — palavras da língua ou triplos de nucleotídeos — especificam um sen- o centro de interesse da finitude do código para a infinitude das operações,
tido ou uma substância química determinados. Do mesmo modo, as palavras os filósofos parecem crer que quando o pensamento do homem está em
da língua e os triplos do código genético se combinam por sua vez em “frases” questão, o código torna-se secundário diante da indeterminação relativa de
que a vida escreve na forma molecular do DNA, também veículo de um sentido seus efeitos. Como se para conhecer e compreender a constituição humana
diferencial cuja mensagem especifica um determinado tipo de proteína. Como fosse menos importante saber que todo homem tem coração, pulmões,
se vê, a natureza, há vários milhões de anos em busca de um modelo empres- tubo digestivo e sistema nervoso, diante das flutuações estatísticas para as
tado por antecipação às ciências humanas, não hesitou: escolheu aquele a que quais deveríamos, alegam, voltar a atenção, tais como o fato de um indi-
estão associados, para nós, os nomes de Troubetzkoy e Jakobson. víduo medir 1m75 e outro 1m67, de um ter o rosto arredondado e outro o
As discussões técnicas entre lingüistas são uma coisa. Coisa completa- rosto mais alongado, etc.; detalhes cuja explicação, convenhamos, por mais
mente diferente é a exploração abusiva que certos filósofos acreditam poder interessante que seja, pode esperar, e que os biólogos relegam com razão ao
fazer delas, na ilusão ingênua de que deslocando a atenção do código da segundo plano de suas preocupações, admitindo provisoriamente que cada

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gene não determina uma característica de modo estrito, e sim os limiares seria possível; e, incluído nesse universo, um pensamento objetivo que fun-
aproximativos entre os quais contingências externas o fazem variar. ciona de maneira autônoma e racional mesmo antes de subjetivar essa racio-
Como na genética, o caráter praticamente ilimitado dos enunciados ver- nalidade ambiente e de sujeitá-la para domesticá-la.
bais, isto é, das combinações possíveis, decorre primeiramente do número Partindo desses postulados, o estruturalismo propõe às ciências huma-
fantástico de elementos e de regras que podem entrar em jogo. Os estatísti- nas um modelo epistemológico incomparavelmente mais poderoso do que
cos ensinam que dois pares de cromossomos determinam quatro genomas aqueles de que dispunham antes. Ele efetivamente descobre, atrás das coisas,
possíveis, e que a n pares de cromossomos corresponde uma população uma unidade e uma coerência que não podia ser revelada pela mera descri-
virtual de 2n genomas, ou seja, no caso do homem, 223. Supondo-se fictiva- ção dos fatos, de certo modo achatados e espalhados desordenadamente sob
mente que todas as coisas sejam iguais, a probabilidade de dois genitores o olhar do conhecimento. Mudando de nível de observação e considerando,
darem nascimento a duas crianças idênticas seria portanto da ordem de aquém dos fatos empíricos, as relações que os unem, ele constata e verifica
(1/223)2, uma chance entre milhões de milhões. Ora, a combinatória da lin- que tais relações são mais simples e mais inteligíveis do que as coisas entre
guagem é ainda mais rica do que a da vida, e compreende-se que mesmo as quais se estabelecem e cuja natureza última pode permanecer insondável,
que a reconheçamos teoricamente finita, as chances sejam de fato nulas de sem que essa opacidade provisória ou definitiva seja, como anteriormente,
que, nos limites observáveis, duas enunciações idênticas suficientemente um obstáculo à sua interpretação.
longas se repitam, mesmo sem levar em conta as mudanças diacrônicas que, Em segundo lugar, o estruturalismo reintegra o homem na natureza e,
exteriores à consciência e à intenção dos sujeitos, ocorrem sob o efeito das se permite fazer abstração do sujeito — insuportável enfant gâté que tem
mutações fonológicas e gramaticais, que marcam a evolução da língua, ou ocupado tempo demais na cena filosófica e impedido qualquer reflexão séria,
das mutações biológicas e outros acidentes, tais como cruzamentos, super- ao exigir atenção exclusiva — parece não ter sido suficientemente notado
posições e translocações de cromossomos, que marcam a evolução da vida; que tem outras conseqüências, cujas implicações, aos olhos dos que criti-
de modo que, decorrido um certo lapso de tempo, as mesmas frases ou os cam os lingüistas e os etnólogos em nome de uma fé religiosa, deveriam ter
mesmos genomas não poderiam reaparecer simplesmente porque, no inter- sido mais bem pesadas e apreciadas. Pois o estruturalismo é resolutamente
valo, os repertórios genético ou lingüístico teriam mudado. teleológico (Lévi-Strauss 1966: 14-15); após uma longa proscrição, por um
Pode-se também perceber as razões profundas dessa verdadeira perver- pensamento científico ainda imbuído de mecanicismo e empirismo, foi ele
são epistemológica a que são levados os filósofos pela inversão de perspec- que devolveu à finalidade o seu lugar e a tornou novamente respeitável. Os
tiva que preconizam. Ignorando os deveres primeiros dos estudiosos, que crentes que nos criticam em nome dos valores sagrados da pessoa humana,
são explicar o que pode ser explicado e deixar o resto provisoriamente à se fossem coerentes consigo mesmos, argumentariam de outro modo. Deve-
espera, os filósofos se preocupam sobretudo em arrumar um refúgio onde riam dizer: se a finalidade postulada por todos os seus procedimentos não
a identidade pessoal, pobre tesouro, esteja protegida. E como as duas coisas está nem na consciência nem no sujeito, aquém dos quais você procura
não podem ocorrer ao mesmo tempo, eles preferem um sujeito sem racio- situá-la, onde estaria, a não ser fora deles? E nos convidariam a tirar as con-
nalidade a uma racionalidade sem sujeito. Porém, se os mitos considerados seqüências... O fato de não o fazerem mostra bem que, para esses tímidos
em si parecem narrativas absurdas, uma lógica secreta rege as relações entre espíritos, o eu de cada um conta mais do que o deus de cada um.
todos esses absurdos. Até mesmo um pensamento que parece ter atingido o Mas que não se tome a observação acima por um convite, inconcebível
cúmulo do irracional está, portanto, imerso numa racionalidade que cons- por parte de alguém que jamais foi sequer resvalado por qualquer inquie-
titui para ele uma espécie de meio externo, antes mesmo de ser interiori- tação religiosa. O estruturalismo certamente presta atenção aos argumen-
zado pelo pensamento, com o surgimento do saber científico, tornando-se tos que os matemáticos opõem, de um ponto de vista puramente lógico, às
ele próprio racional. Aquilo que foi chamado de “progresso da consciência” insuficiências e até contradições do neo-darwinismo em voga entre a maior
na filosofia e na história responde a esse processo de interiorização de uma parte dos biólogos (Moorehead & Kaplan 1967). Porém, mesmo esse querer
racionalidade pré-existente de duas formas: uma imanente ao universo, sem pesado, lento, obstinado, anônimo, que poderíamos ser tentados a invo-
o que o pensamento não conseguiria atingir as coisas e nenhuma ciência car para explicar o fato de que, desde a sua criação há milhões de anos, o

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universo e o homem com ele estão, nos termos comedidos empregados por Nada parece portanto menos aceitável do que o acordo esboçado por Sartre
Piaget (supra, pp. 561), em “permanente construção”, não apresentaria um (1966: 89), ao conceder um lugar para a estrutura do lado do prático-inerte,
terreno de concordância para nenhuma teologia. Se o estruturalismo não contanto que se reconheça que “essa coisa sem o homem é ao mesmo tempo
anuncia uma reconciliação entre a ciência e a fé, e menos ainda advoga em matéria obrada pelo homem, que traz a marca do homem”. Pois, prossegue
favor disso, sente-se mais bem preparado do que o naturalismo e o empi- ele “ninguém encontrará na natureza oposições tais como as que descrevem
rismo de nossos antecessores para explicar e validar o lugar que o sentimento os lingüistas. A natureza só conhece a independência das forças. Os elemen-
religioso ocupou e ainda ocupa na história da humanidade: intuição confusa tos materiais estão ligados uns aos outros, agem uns sobre os outros, mas
de que o corte entre o mundo e o espírito, a causalidade e a finalidade, cor- esse elo é sempre exterior. Não se trata de relações internas como a que situa
respondem não à realidade das coisas, e sim a um limite para o qual tende o masculino em relação ao feminino, o plural em relação ao singular, isto é,
um conhecimento cujos meios intelectuais e espirituais jamais serão comen- de um sistema em que a existência de um elemento condiciona a de todos os
suráveis à estatura e à essência de seus objetos. Não podemos superar essa demais.” Afirmações contundentes pasmam. Como se a oposição e a com-
antinomia, mas não é impossível que tenhamos a impressão de que não é tão plementaridade entre macho e fêmea, positivo e negativo, direita e esquerda
difícil habituar-se a ela, desde que os astrônomos nos familiarizaram com a — que, sabemos desde 1957, existe objetivamente — não estivessem inscri-
imagem de um universo em expansão. Pois se uma explosão, fenômeno que tas na natureza biológica ou física e não atestassem ali a interdependência
a experiência sensível nos permite apenas apreender no lapso de uma fração das forças! Ao contrário de uma filosofia que confina a dialética à história
de segundo, sem nada distinguir, tamanha a sua rapidez e violência e tanto humana e a bane da ordem natural, o estruturalismo admite de bom grado
seus detalhes nos escapam, talvez a mesma coisa que essa dilatação cósmica que as ideias por ele formuladas em termos psicológicos possam não pas-
infinitamente retardada com respeito às ordens de grandeza nas quais nos sar de aproximações tateantes de verdades orgânicas ou mesmo físicas. Uma
movemos, manifesta apenas na escala de um tempo e de um espaço quem das orientações da ciência contemporânea para a qual ele se mostra mais
não podemos nem ao menos imaginar e de que só o cálculo pode nos dar aberto é aquela que, validando as intuições do pensamento selvagem, já é
uma noção abstrata, então talvez não pareça tão inverossímil que o projeto por vezes capaz de reconciliar o sensível e o inteligível, o qualitativo e o geo-
concebido num lampejo por uma consciência lúcida, assim como os meios métrico, e deixa entrever a ordem natural como um vasto campo semântico
apropriados para fazê-la passar ao ato, possam ser de mesma natureza, numa “em que a existência de cada elemento condiciona a de todos os demais”. Não
escala infinitamente reduzida, que esse querer obscuro que, ao longo de um tipo de realidade irredutível à linguagem, mas, no dizer do poeta, um
milhões de anos e por vias tortuosas e complicadas, soube garantir a poli- “templo onde pilares vivos às vezes deixam escapar confusas palavras”; mas
nização das orquídeas graças a janelas transparentes que filtram a luz para lembrando que sabemos, desde a descoberta do código genético, que tais
atrair os insetos e direcioná-los para o pólen encerrado numa única cápsula; palavras não são confusas e que tampouco são intermitentes.
ou embebedando-os com as secreções da flor para fazê-los titubear, per- As distinções binárias não existem apenas na linguagem humana. Podem
der o equilíbrio e descer por um escorregador bem orientado ou cair num ser encontradas no modo como certos animais se comunicam entre si, como
pequeno buraco cheio de água; ou ainda graças a uma armadilha cujo meca- os grilos, entre os quais uma mera inversão de ritmo (x/y, y/x) muda a natu-
nismo é acionado pelo inseto inocente, que fica preso pelo tempo necessário reza da mensagem, estridulada de um macho para outro para afastar um rival
em contato com o pólen; a não ser que, seduzido pela forma da flor que lhe ou de um macho para uma fêmea para atrair uma parceira sexual (Alexan-
transmite a imagem enganosa de sua fêmea, ele tente uma vã copulação que der 1966). E que melhor ilustração da interdependência das forças podemos
resultará, para o vegetal, numa verdadeira fecundação; ou caso uma minús- pedir à ordem natural do que a evolução maravilhosamente geométrica das
cula lingüeta, colocada de tal modo que a abelha sugadora fatalmente irá formas florais desde o triássico até o fim da era terciária, passando de estru-
empurrá-la com a cabeça, projetando nela a cápsula pegajosa de pólen que, turas inicialmente amorfas para uma simetria radial bidimensional, depois
sem desconfiar, o inseto irá em seguida depositar numa outra flor... para quatro ou cinco unidades de reconhecimento dispostas no mesmo
plano, em seguida a estruturas tridimensionais e, finalmente, a uma sime-
! tria bilateral, com cada uma dessas mudanças implicando uma evolução

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complementar dos insetos polinizadores, constantemente ajustada à evolu- aspecto em benefício de outro também encontram encorajamento do lado
ção botânica (Becker 1965) e mantendo com ela relações que, se fossem da daqueles que, como D’Arcy Wentworth Thompson seguindo Dürer (supra,
ordem do pensamento, não teríamos hesitado em chamar de dialéticas? pp. 604-605), foram capazes de estabelecer correspondências entre relações
Num outro campo mais próximo do homem, a comunicação nos parece inteligíveis e abstratas de um lado e, do outro, as formas vivas — que não
estar do lado oposto ao da hostilidade e da guerra. Contudo, entre os mamí- teríamos ousado pretender distinguir a não ser pela intuição estética e uma
feros, um hormônio cuja função é garantir a comunicação entre as células familiaridade vivida com formas do mesmo tipo —, a começar pelos ros-
por ocasião de certos processos fisiológicos parece ser idêntico à acrasina tos humanos, nos quais agrada-nos ver uma expressão visível da personali-
que provoca a aglomeração social das amebas. Tal fenômeno, por sua vez, dade e de seus traços sentimentais e morais. Qual habitante da floresta seria
derivaria da primitiva atração sentida por esses protozoários pelas bacté- capaz de dizer como faz para identificar uma árvore de longe? E no entanto,
rias, de que se alimentam e que secretam a mesma substância. E assim pas- basta um programa com algo como mil instruções para que um computa-
saríamos, de modo singularmente dialético, da comunicação como forma dor desenhe árvores nas quais, fazendo variar os parâmetros, um botânico
de sociabilidade à sociabilidade em si, concebida como limite inferior da reconheceria facilmente um pinheiro, um salgueiro ou um carvalho... Dife-
predação (Bonner 1969). Pelo menos entre os organismos inferiores, a vida renças que se poderia supor de ordem puramente qualitativa correspondem
social resultaria de um limiar químico suficientemente elevado para que os portanto à operação de algumas propriedades matemáticas simples (Eden,
indivíduos atraiam uns aos outros, mas exatamente abaixo do ponto em que, in Moorhead & Kaplan 1967: 55).
tornando-se a cobiça mais forte, eles comeriam uns aos outros. À espera dos A teoria estereoquímica reduz a gama dos odores — que se poderia
progressos da bioquímica, deixaremos aos moralistas o cuidado de dizer se crer inesgotável e indescritível — a sete valores fundamentais (éter, cân-
essas observações contêm outras lições. fora, almíscar, flor, menta, picante e pútrido) que, diversamente combinados,
Quando, em O pensamento selvagem (pp. 270-72), eu interpretava os como as unidades constitutivas dos fonemas, gerariam sensações tão inefá-
nomes que damos aos pássaros como indício de que o conjunto de suas espé- veis quanto imediatamente reconhecíveis como, para nós, o cheiro da rosa,
cies evoca para nós algo como uma contrapartida metafórica da sociedade do cravo, do alho-poró ou do peixe. A mesma teoria reduz esses valores sen-
humana, nem desconfiava que uma relação do mesmo tipo existisse objeti- síveis a formas geométricas simples ou complexas, que caracterizariam as
vamente entre o cérebro deles e o nosso. Com efeito, parece que a partir dos moléculas odorantes, das quais cada uma viria ou não se inserir num recep-
répteis, que são sua origem comum, a evolução cerebral dos mamíferos e a tor sensorial da forma apropriada à sua, que portanto se especializaria para
dos pássaros seguiram linhas divergentes, mas que levam a soluções comple- reagir exclusivamente a tal ou qual tipo de molécula (Amoore 1964; Grive
mentares. Entre os mamíferos superiores, as operações intelectuais cabem ao 1963). É verdade que nem todos concordam com a teoria (Wright 1966), mas
córtex que envolve a massa cefálica contento os corpos estriados. Nos pássa- ela poderia ser flexibilizada e nuançada junto à química dos sabores, que
ros, ao contrário, como que por efeito de uma transformação topológica, as explica a sensação de doce pela mudança de forma sofrida por uma prote-
mesmas operações (cujo código, embora mais simples, é do mesmo tipo que ína do organismo ao contato de certas moléculas; conduzida até o cérebro, a
o do inscrito no córtex) cabem à camada superior dos corpos estriados, que informação da mudança geométrica seria traduzida pelo reconhecimento
compõem quase toda a massa cefálica e envolvem de modo incompleto um da sensação apropriada (Lambert 1970). Os cantos dos pássaros ilustram
córtex rudimentar que ocupa um sulco no topo (Strettner & Matyniak). Na a situação inversa. Sua indefinível beleza escapa a qualquer descrição em
medida em que uma metáfora sempre consiste na evocação de uma porção termos acústicos, pois as modulações são tão rápidas e tão complexas que
de um campo semântico global e tácito por intermédio de uma parte com- o ouvido humano não as percebe ou só percebe partes. Essa suntuosidade
plementar desse mesmo todo, pode-se portanto dizer que, no campo das secreta aparece, contudo, discretamente legível em forma geométrica nos
organizações cerebrais possíveis, o cérebro dos mamíferos e o dos pássaros oscilogramas nos quais, traduzidos em gráficos, os cantos das diversas espé-
apresentam a imagem metafórica um do outro. cies se tornam para nós perceptíveis na totalidade em formas incrivelmente
A ambição estruturalista de lançar pontes entre o sensível e o inteligí- delicadas e refinadas (Greenwalt 1969) e que evocam extraordinárias obras-
vel e sua repugnância em relação a qualquer explicação que sacrifique um primas de marfim ou de algum outro material precioso, esculpidas no torno.

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Na verdade, a análise estrutural, que alguns rebaixam ao nível de um jogo Sem poder se instalar nele dispondo da enorme suma etnológica que repre-
gratuito e decadente, só pode emergir no espírito porque seu modelo já está no sentam as culturas indígenas do Novo Mundo, fica-se condenado a nada per-
corpo. Já apontei (supra, pp. 605) pesquisas bastante avançadas sobre o meca- ceber de sua significação interna. Vista de fora, ela se anula. Não há de espan-
nismo da percepção visual em diversos animais, dos peixes aos gatos e macacos. tar, portanto, que os filósofos possam sentir-se fora do jogo; estão mesmo; o
Elas mostram que cada célula da região apropriada do córtex continua uma alcance da empresa lhes escapa, à diferença dos semiólogos e etnólogos mais
análise já iniciada por vários tipos de células retinianas e ganglionárias, cada diretamente concernidos, que retêm uns a forma e os outros o conteúdo.
um deles reagindo a um excitador característico, direção do movimento, tama- Eu mesmo, conforme considero meu trabalho de dentro, onde o vivi, ou
nho do objeto em movimento ou relativa rapidez do movimento de objetos de de fora, onde está agora, afastando-se para perder-se em meu passado, com-
pequenas dimensões, etc. Conseqüentemente, o olho primeiro e, em seguida, o preendo melhor que, tendo eu também composto minha tetralogia, ela deva
cérebro não reagem a objetos independentes uns dos outros e independentes se concluir num crepúsculo dos deuses como a outra. Ou, mais precisamente,
do fundo em que se perfilam. A matéria-prima, por assim dizer, da percepção que, terminada um século mais tarde e em tempos mais cruéis, ela antecipe o
visual imediata já consiste de oposições binárias como aquela entre simples e crepúsculo dos homens, após o dos deuses, que devia permitir o surgimento
complexo, claro e escuro, claro sobre fundo escuro e escuro sobre fundo claro, de uma humanidade feliz e liberta. Tendo chegado ao entardecer de minha
movimento dirigido de cima para baixo ou de baixo para cima, seguindo carreira, a última imagem que me deixam os mitos e, através deles, esse mito
um eixo reto ou oblíquo, etc. (Pfeiffer 1962; Hubel 1963; Michael 1969). Assim, supremo que conta a história da humanidade — história também do uni-
seguindo vias criticadas por serem demasiado exclusivamente intelectualistas, verso no seio da qual a outra se desenrola — reencontra, assim, a intuição
o pensamento estrutural recobre e traz à superfície da consciência verdades que em meus começos, e como contei em Tristes Trópicos, me fazia buscar
profundas e orgânicas. Apenas os que o praticam conhecem, por experiência nas fases do pôr do sol, atentamente observado desde a instalação de um
íntima, a impressão de plenitude propiciada por seu exercício, na qual o espí- cenário celeste que se complica progressivamente até se desfazer e se abolir
rito sente que comunica verdadeiramente com o corpo. no aniquilamento noturno, o modelo dos fatos que iria estudar mais tarde e
As reflexões acima não constituem uma tese. Menos ainda pretendem que me caberia resolver quanto à mitologia: vasto e complexo edifício, igual-
esboçar uma filosofia, e espero que sejam tomadas pelo que são, um deva- mente multicolorido, que se apresenta sob os olhos do analista, se realiza len-
neio livre, não isento de confusões e equívocos, ao qual o sujeito se entrega tamente e se fecha para desfazer-se ao longe, como se nunca tivesse existido.
no curto espaço de tempo em que, liberado de sua tarefa, não sabe ainda em Essa imagem não é, afinal, a da própria humanidade e, para além da
qual haverá de novamente dissolver-se. Lançando um último olhar retros- humanidade, de todas as manifestações da vida, pássaros, borboletas, con-
pectivo sobre o labor de oito anos, fadado a tornar-se em breve tão estranho chas e outros animais, plantas com suas flores, cujas formas a evolução
para mim quanto se tivesse sido escrito por outro, creio poder compreender desenvolve e diversifica, mas sempre para que acabem sendo abolidas e no
e, em certa medida, perdoar, a desconfiança com que foi recebida de vários final, da natureza, da vida, do homem, de todas essas obras sutis e refinadas
lados. Ela se deve, parece-me, ao caráter duplamente paradoxal da empresa. que são as línguas, as instituições sociais, as obras-primas da arte e os mitos,
Se algum resultado dela se tira, é primeiramente que nenhum mito ou versão quando tiverem lançado seus últimos fogos de artifício, não reste nada?
de mito é idêntico aos outros e que cada mito, parecendo insistir gratuita- Demonstrando a organização rigorosa dos mitos e conferindo-lhes, assim,
mente num detalhe insignificante e estagnar nele sem razão declarada, na existência enquanto objetos, minha análise faz apenas ressaltar o caráter
verdade busca dizer o contrário do que diz a esse respeito um outro mito. mítico dos objetos: o universo, a natureza, o homem, que ao longo de milha-
Nenhum mito é semelhante. Todavia, tomados em conjunto, reduzem-se res, milhões, bilhões de anos, não terão afinal feito, como um vasto sistema
todos à mesma coisa e, como afirma Goethe quanto às plantas, “seu coro mitológico, nada além de exibir os recursos de sua combinatória, antes de
guia para uma lei oculta”. involuirem e se aniquilarem na evidência de sua decadência.
E eis o segundo paradoxo. Uma obra que sei túrgida de sentido se reduz A oposição fundamental, geradora de todas as outras que se multiplicam
para outros ao desdobramento de uma forma vazia de sentido. Mas é porque nos mitos e cujo inventário estes quatro volumes estabeleceram, é a mesma
o sentido se encontra incluído e como que comprimido no interior do sistema. que Hamlet enuncia, sob a forma de uma alternativa ainda crédula demais.

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Pois entre o ser e o não ser, não cabe ao homem escolher. Um esforço mental
consubstancial à sua história, e que só cessará com o seu apagamento da
cena do universo, o obriga a assumir as duas evidências contraditórias, cujo
choque aciona seu pensamento. E para neutralizar sua oposição, gera uma
série ilimitada de outras distinções binárias que, sem jamais resolverem essa
antinomia primeira, apenas a reproduzem e perpetuam, em escalas cada vez
mais reduzidas. Realidade do ser, que o homem sente no mais profundo de
si como a única capaz de dar razão e sentido aos seus gestos cotidianos, à
sua vida moral e sentimental, às suas escolhas políticas, ao seu engajamento
no mundo social e natural, a seus empreendimentos práticos e a suas con-
quistas científicas. Mas, ao mesmo tempo, realidade do não-ser, cuja intuição
acompanha inseparavelmente a outra, já que cabe ao homem viver e lutar,
pensar e crer, principalmente conservar a coragem, sem que jamais o aban-
done a certeza adversa de que ele não esteve outrora presente na terra e de
que não estará aqui para sempre, e que com seu inelutável desaparecimento
da superfície de um planeta igualmente destinado à morte, seus labores, suas
penas, suas alegrias, suas esperanças e suas obras serão como se nunca tives-
sem sido, na ausência de qualquer consciência capaz de preservar ao menos
a lembrança desses movimentos efêmeros, a não ser por alguns traços, logo
apagados de um mundo de face doravante impassível, a constatação revo-
gada de que ocorreram, isto é, nada.
!
Paris, outubro de 1967 — Ligneroles, setembro de 1970.

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Tabela de símbolos

∆ homem

õ mulher

∆ = õ casamento (disjunção: # )

—Y se transforma em...

: está para...

:: assim como...

⁄ oposição

≡ congruência

= identidade, ou igualdade (segundo o contexto)

≠ diferença, ou desigualdade (segundo o contexto)

≈ isomorfismo

∪ união, reunião, conjunção

∩ interseção

// desunião, disjunção

ƒ função

x (-1) x invertido

> maior que

< menor que

∑ somatória
+, – estes sinais são utilizados com conotações variáveis em função do contexto:
mais, menos; presença, ausência; primeiro, segundo termo de um par de
oposições.

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