Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Traços Caboclos, Gestao e Trabalho Gerencial o Setor Publico Brasileiro
Traços Caboclos, Gestao e Trabalho Gerencial o Setor Publico Brasileiro
Resumo
O presente artigo trata da temática do trabalho gerencial na administração publica, sugerindo
um modelo de análise para pesquisas futuras. Parte-se do argumento central de que é
necessário o atrelamento a um contexto macrossocial onde se situam as organizações, sem o
qual não não se torna satisfatoriamente explicativo o trabalho gerencial nos cotidianos
organizacionais, seja na gestão pública ou na privada. Nesse sentido, é proposto o uso da
Teoria da Estruturação, concebida por Anthony Giddens que, através do conceito básico de
dualidade estrutural, permite vincular a ação gerencial às chamadas propriedades estruturais
de nível macro da sociedade brasileira, enriquecendo sobremaneira as análises, colocando a
natureza do trabalho gerencial como um processo de re/produção de um cenário específico e
institucionalizado, onde se situa a gestão na administração pública em nosso País.
1 – Introdução
Os estudos que tratam a temática do trabalho gerencial devem estar sempre atrelados a um
contexto macrossocial onde se situam as organizações, sem o qual não se tornam
satisfatoriamente explicativos do que vai nos cotidianos organizacionais (WILLMOTT,
1984;1987; WHITTINGTON, 1992). Nesse sentido, é preciso vincular as análises às
transformações no sistema capitalista de produção mundial, desde o fim dos anos 60 e que
passam a afetar enormemente o mundo do trabalho (MELO, 1996). No entender de
TAVARES & FIORI (1996) o que está por trás desse processo é uma dinâmica de ajuste em
nível mundial, iniciada a partir dos choques do petróleo já a partir dos anos 70, juntamente
com a crise do padrão monetário internacional e o reordenamento simultâneo das relações
entre os países de centro e periferia da economia capitalista. Soma-se a tudo isso, a derrocada
do denominado “mundo socialista”, provocando a propagação de políticas de cunho
neoliberal junto aos países periféricos, incluídos aí a América Latina, África e Leste Europeu.
Segundo ainda os mesmos autores, é inaugurada uma onda de “reformas estruturais” que
passa pela recomendação de desregulamentação de mercados e abertura comercial/financeira,
bem como privatização das organizações estatais e redução/redefinição do Estado. Esse
cenário global é o pano de fundo para as iniciativas às quais se aplicam as chamadas novas
tecnologias de gestão organizacionais caracterizadas pela flexibilização dos processos de
produção, agregando à “ordem do dia” a busca da qualidade total, da terceirização, do
trabalho polivalente e da multiqualificação do trabalhador, entre outras (MELO, op.cit). Na
América Latina, no que diz respeito aos impactos para a administração pública, os reflexos
desse cenário são a desestruturação e crise de um modelo de Estado desenvolvimentista, em
voga desde os anos 30 e que entra em falência na década de 80 (MUNIZ, 1992).
1
especificamente à gestão da máquinas estatais, a marca foi a reestruturação do Estado,
incluindo-se aí, reformas de cunho administrativo, previdenciário e político (BRESSER
PEREIRA, op.cit). No plano da reestruturação administrativa, foi sendo adotada, desde 1995,
a proposta da Administração Pública Gerencial, em contraposição ao modelo esgotado e
ineficiente do Estado Social Burocrático, na busca da implantação do Estado Social-Liberal1
protetor dos diretos sociais, promotor e não agente econômico do desenvolvimento, capaz de
realizar serviços sociais através de estruturas organizacionais flexíveis públicas mas não
estatais, processo esse denominado de “reconstrução” do Estado. A Administração Pública
Gerencial não é invenção brasileira, mas sim reflete a tendência à adoção de princípios de
gestão empresarial nas máquinas estatais de vários países, em busca de soluções para a crise
do Estado, configurando o que a literatura internacional denominou de Nova Gestão Pública2
e que, no entender de FERLIE et al (1997), não é um modelo único, podendo assumir,
aspectos distintos em cada país, de acordo com suas raízes históricas, culturais e políticas.
1
Expressão definida por BRESSER PEREIRA (1998b).
2
O termo “Nova Gestão Pública” é tradução livre da denominação inglesa: “New Public Management”.
2
universos complexos e contraditórios, não sendo possível identificá-los como grupos
homogêneos, mas sim como atores sociais dotados de vontades e ações próprias, ora como
agentes passivos ou ativos, em relação à definição de ações no cotidiano organizacional
(MELO 1995; 1996).
No Brasil, na administração pública direta ou setor governo3, essas especificidades são ainda
mais relevantes, dada a forma de acesso ao cargo gerencial. Em primeiro lugar, deve-se ter em
mente que a função gerencial nem sempre se constitui em carreira específica a ser perseguida
por um “servidor público estatutário”4. Isto porque, na maioria dos casos, as funções de chefia
são destinadas aos ocupantes dos chamados cargos em comissão. Para o exercício desses
cargos, criados por lei, podem ser nomeados trabalhadores pertencentes ou não à uma
determinada carreira na organização. Em segundo lugar, não há, necessariamente, nos casos
de nomeação, vinculação a critérios de competência técnico-científica ou de uma trajetória de
ascensão profissional na organização, ainda que a Constituição Federal brasileira sugira que
deva ser dada preferência a servidores de carreira técnico-científica. Assim, um cargo
gerencial pode ser preenchido por critérios bastante distintos como filiação partidária,
compromissos de campanha, competência técnica, conhecimento pessoal, entre outros. Daí
que os ocupantes de função gerencial podem ou não apresentar experiência profissional
anterior como gerentes e nem sempre são originários de uma carreira gerencial sujeita a
normas de avaliação de desempenho ou avaliação de resultados, reafirmando-se uma não
homogeneidade quanto à trajetórias profissionais e compromissos organizacionais. Fica
evidenciado, a partir daí, que o trabalho gerencial na administração pública brasileira, se dá
num contexto organizacional difícil de ser identificado, a priori, como aquele onde a
burocracia “é definida como um organização com estrutura rígida e centralizada, voltada para o
cumprimento dos regulamentos e procedimentos administrativos e em que o desempenho é avaliado
apenas com referência á observância das normas legais e éticas” (ABRUCIO, 1998:182-183).
Assim, é importante considerar, como fazem HARROW & WILLCOKS (1990), que o
trabalho gerencial na administração pública, considerando a gestão como uma construção
social, deve ser examinado à luz de contextos institucionais - fatores sociais e políticos
internos e externos - que ajudem a explicar a forma como os gerentes executam suas
atividades e mostrar o porquê do trabalho gerencial ser executado de uma maneira específica.
Dito de outra maneira, é necessário ampliar o escopo de análise no que diz respeito ao estudo
do trabalho gerencial nas organizações, capaz ultrapassar o dualismo entre a estrutura e a
ação (REED, 1989), já que grande parte da literatura que versa sobre essa temática não leva
em consideração a análise dos processos histórico-sociais que são subjacentes aos
comportamentos dos gerentes. Outros autores, entre eles WILLMOTT (1984; 1987);
WHITLEY (1989), reafirmam essa tendência no sentido de que por esse viés muitos desses
estudos5 deixam muito a desejar, pois tendem a separar o trabalho gerencial do seu contexto
histórico-social, privilegiando, de maneira geral, aspectos comportamentais em flagrante
desconsideração do seu aspecto político ou, quando muito identificando o político como
habilidades e estratégias utilizadas pelos gerentes para o alcance de seus objetivos. Em suma,
não mostram as bases institucionais do trabalho gerencial. Em sua apreciação crítica à obras
clássicas sobre o trabalho gerencial WILLMOTT (1987) identifica três correntes
preponderantes: a) a abordagem unitária: nela as relações sociais na organização são
3
Denominação cunhada por MARTINS (1985).
4
Aquele trabalhador vinculado, de acordo com a Constituição da República Federativa do Brasil (1988) em
termos de regime de trabalho, à uma legislação específica na administração pública, denominada de estatuto.
5
Evidências desse tipo de abordagem podem ser demonstradas a partir de obras clássicas sobre o trabalho
gerencial: BARNARD (1938); TAYLOR (1960); FAYOL (1970); MINTZBERG (1973) e KOTTER (1982).
3
consideradas como racionais e giram em torno da eficiência e alcance de resultados
otimizados. O trabalho gerencial expressa a divisão do trabalho necessária ao atingimento de
objetivos da organização; b) a abordagem pluralista: a divisão do trabalho nas organizações
nada mais é do que a caracterização de grupos e coalizões que, em de interesses distintos,
lutam pelo poder; c) a abordagem radical : caracterizada por uma crítica às duas primeiras no
sentido de que elas não vinculam a natureza político-econômica da divisão do trabalho ao
papel dos gerentes. Em contraposição, essa corrente defende que os gerentes são
condicionados e defendem interesses exclusivos do sistema capitalista de produção. Tomando
essas abordagens como reducionistas, WILLMOTT (op.cit) afirma que o trabalho gerencial
deve ser classificado como político à medida em que os gerentes não só desenvolvem
habilidades interpessoais específicas para conseguirem que resultados sejam alcançados pela
ação de terceiros, mas também porque envolve a produção e reprodução de propriedades
institucionais que atuam como mediadoras na relação conflituosa entre capital e trabalho. Para
tanto, o autor sugere o uso teórico-metodológico da Teoria da Estruturação como instrumento
capaz de dar conta, mais apropriadamente, do estudo sobre a natureza do trabalho gerencial.
4
estrutura, ao mesmo tempo que a reproduz – assim como o significado das palavras muda no
e através do uso” (GIDDENS, 1996: 146).
Assim, os sistemas sociais não são estruturas, mas possuem propriedades estruturais
específicas a cada um deles. Logo, a estruturação de sistemas sociais compreende “estudar os
modos como tais sistemas, fundamentados nas atividades cognoscitivas de atores localizados que se
apoiam em regras e recursos na diversidade de contextos de ação, são produzidos e reproduzidos em
interação” (GIDDENS, op.cit:20). A busca da conciliação entre estrutura e a ação humana,
através da Teoria da Estruturação, passa também pela consideração do ator social como
cognoscitivo e reflexivo, ou seja, como um ator que é consciente e sabe se conduzir na vida
social cotidiana (ROULEAU, 1995; SARANSON, 1995). O ator social é visto, por princípio
de base, como dotado de “cognoscitividade”, entendida como “tudo que os atores sabem (crêem)
acerca das circunstâncias de sua ação e da de outros, apoiados na produção e reprodução dessa
ação, incluindo tanto o conhecimento tácito quanto o discursivamente disponível” (GIDDENS,
1984:375). Do mesmo modo, os atores sociais são capazes de entender um ato por eles
perpetrado ao mesmo tempo em que o produzem. Essa cognoscitividade é expressada através
do que Giddens define por “consciências prática e discursiva” e que encontram-se agregadas
uma à outra. A consciência prática corresponde a tudo aquilo que os atores conhecem de
maneira tácita e complexa, à respeito de regras e dos contextos onde interagem e que não,
necessariamente, são expostos em forma de discurso. Mas, os atores também são capazes de
explicarem, de maneira verdadeira ou falsa, as razões que os levam a agir de um determinado
modo, quando solicitados a descreverem uma ação - consciência discursiva. Essa competência
é que lhes permite produzir e reproduzir a vida social, compartilhando, reflexivamente,
saberes comuns. Na interpretação de ROULEAU (1995:29)
“o ator social competente possui um conhecimento das condições sociais nas quais ele atua
e, a partir da qual ele reconhece nos outros capacidades de racionalização da ação. É a
partir desse saber comum que ele obtém suas competências de ator social e dão um
significado às suas ações cotidianas”.
5
FAORO (1987), descrevendo a história da vida sócio-política do Brasil no período que vai do
descobrimento até à revolução de 1930, é taxativo ao afirmar a centralidade do Estado, ao
redor do qual foram sendo decididos nossos destinos econômicos, sociais e políticos. O
Estado assumiu aqui a característica patrimonialista estamental6, institucionalizando-se um
tipo de dominação tradicional definido pelos quadros administrativos estatais, pelo mando dos
fazendeiros dos senhores de engenho e dos coronéis. O patrimonialismo estamental foi
caracterizado pela formação de camadas políticas que sempre se colocaram como superiores e
autoritárias em relação à sociedade civil brasileira, esta última deixada à margem do processo
de decisão política. Essa estrutura de mando político-estatal, soube segundo o autor, adaptar-
se as mudanças contextuais, sobrevivendo ao longo do tempo e do espaço, mantendo a
“menoridade popular” e sobre ela governando. Assim, em nossa peculiaridade histórica,
“a camada dirigente atua em nome próprio, servida dos instrumentos políticos derivados de
sua posse do aparelhamento estatal. Ao receber o impacto de novas forças sociais, a
categoria estamental as amacia, domestica, embotando-lhe a agressividade transformadora,
para incorporá-las a valores próprios, muitas vezes mediante a adoção de uma ideologia
diversa, se compatível com o esquema de domínio (FAORO, op.cit: 745).
O autor afirma ainda que essa estrutura político-social moldou a ação do Estado no curso de
nossa história econômica, desde sua fase de capitalista politicamente orientada, “locus” da
aventura colonial, sobrevivendo e incorporando ainda o capitalismo industrial, na era Vargas,
num processo de extensão do patrimonialismo estatal que foi capaz se adaptar
“às transições, às mudanças, em caráter flexivelmente estabilizador do modelo externo,
concentrando no corpo estatal os mecanismos de intermediação, com suas manipulações
financeiras, monopolistas, de concessão pública de atividade, de controle do crédito, de
consumo, de produção privilegiada, numa gama que vai da gestão dieta á regulamentação
material da economia”. (FAORO, op.cit: 737).
Importa nessa última citação destacar que o Estado no Brasil continuou desempenhando um
papel central no campo do desenvolvimento econômico do País, re/criando práticas
institucionalizadas na sua relação com a sociedade. Um estudo que mostra como esse
processo foi estruturado, no período que vai de 1930 a 1960, é o realizado por NUNES (1997)
em que são estabelecidos quatro grandes padrões institucionais que disciplinam o
relacionamento entre o Estado e a sociedade, ou seja, quatro gramáticas7 conhecidas como:
clientelismo, corporativismo, insulamento burocrático e universalismo de procedimentos.
Nota-se que o padrão de desenvolvimento do capitalismo no País se identificava com o
processo de substituição de importações via industrialização. É importante ressaltar que, na
prática, essas gramáticas podem se combinar de formas diversas ao longo do tempo, ora
prevalecendo uma em detrimento e/ou em conjugação com as demais, servindo de base para a
ação dos aparelhos estatais junto à sociedade.
6
Para a definição de patrimonialismo e estamento ver: WEBER (1984).
7
NUNES (1997:44) refere-se à gramáticas como a indicação da “existência de diferentes combinações culturais
e elementos dentro de uma mesma estrutura”.
6
Estado-sociedade distinta de uma prática de insulamento, tão comum no Brasil. Ou seja, o que
se entende é que além de uma reprodução sincrética dessas gramáticas (NUNES, 1997), Diniz
constata a possibilidade da produção de gramáticas distintas no Brasil do Real, em tempos de
reforma ou reconstrução do Estado, onde este último não assume mais o papel de agente
produtivo. BRESSER PEREIRA (1997), embora reconhecendo, por exemplo, que o
clientelismo e o universalismo de procedimentos estejam presentes nos dias atuais, alerta que
essas instituições não são mais as mesmas e que por isto é preciso identificá-las, bem como
compreender como se inter-relacionam. Assim, essas propriedades estruturais, relativas às
relações Estado-sociedade no Brasil, são re/produzidas, no sentido da Estruturação,
contribuindo para a contextualização do campo onde os gerentes públicos estão inseridos.
Assim, analisando desde as mudanças promovidas nos anos 30 até o governo Collor, o autor
identifica práticas patrimonialistas, clientelistas e insulamento burocrático, onde o “moderno”
sempre conviveu com as práticas ditas “atrasadas” que queria combater, re/produzindo-se
historicamente. Nos tempos atuais da era da administração gerencial ou pós-burocrática,
Martins chama atenção para a importância de se estudar até que ponto esse conjunto de
iniciativas não estará reproduzindo, mais uma vez essa dissociação da Política. Quanto a
questão mais específica do modelo de gestão burocrático aplicado à administração pública
brasileira é importante observar que aqui ele foi historicamente marcado pelo que RAMOS
(1983) denominou de formalismo, ou seja, a discrepância entre aquilo que está prescrito em
8
Cultura aqui entendida como um produto histórico-social, conforme MELO (1974); SODRÉ (1989)
9
Ver : MOTTA & CALDAS (1997); MOTTA (1996); MOTTA & ALCAPADINI (1999).
7
leis, decretos e normas e o que realmente acontece na realidade cotidiana. Esse conceito é
típico daquilo que o autor chama de processo crioulo dominante nos países latino-americanos.
Dessa raiz formalista, nasce o jeitinho como uma processo estratégico de se “contornar uma
dificuldade a despeito da lei e até mesmo contra ela” (RAMOS, op.cit: 288), ressaltando-se
aí, o predomínio das relações pessoais, familiares e clânicas. Segundo o mesmo autor, o
jeitinho estaria condenado ao desaparecimento à medida em que o avanço do
desenvolvimento econômico e social levaria à adoção de legislações condizentes com a
realidade. No Brasil, em particular, o seu ingresso na economia industrial tenderia a levar ao
desuso o jeitinho, tendo em vista seria crescente o emprego da impessoalidade nas relações
sociais. Criticando Ramos, BARBOSA (1992) considera que não é bem assim, isto é, no seu
entender as relações pessoais são fatores estruturais do nosso universo social que se mantêm
ao longo do tempo em sintonia com a impessoalidade e da racionalidade do mundo
contemporâneo. Especificamente quanto à dinâmica do modelo burocrático, tido como
antídoto às relações pessoais, bem como aos imperativos de laços familiares na gestão
organizacional a autora deixa claro que
“no Brasil o que se verifica não é exatamente isso. O que a realidade tem demonstrado é que
o sistema burocrático impessoal, calcado na racionalidade é, a todo momento, vazado pela
atuação de variáveis exógenas a esses domínios, baseadas em critérios diversos, mas que tem
a uni-las as relações com valores que se colocam no eixo oposto ao da racionalidade e do
econômico. Uma regra universalizante pode deixar de ser acionada e exigida, caso o
requerente seja uma moça simpática, uma velhinha maternal ou um deputado (BARBOSA,
op.cit: 13).
Da MATTA (1990; 1993) também destaca as relações pessoais como um elemento estrutural
marcante em nossa sociedade. Segundo esse autor, no Brasil destaca-se uma dualidade entre
o indivíduo e a pessoa, isto é a convivência conflituosa entre o domínio do indivíduo
caracterizado pelo mundo da rua, do aparato impessoal legal, dos regulamentos e o domínio
da pessoa, aquele relativo ao mundo da casa, das relações familiares, da proteção e da
hierarquia. Os dois domínios convivem lado a lado nas relações sociais no Brasil,
sobrevivendo através de sua história, não sendo simplesmente marcas do passado a serem
ultrapassadas pela modernidade, mas sim, como fatores estruturais, re/produzidos ao longo do
tempo e do espaço, revelando uma
“complexa convivência de um forte sistema de relações pessoais, embaraçado a um sistema
legal, universalmente estabelecido e altamente racional [...] Aqui temos a prova de que o
sistema legal (importado e aplicado como toda força) pode ser sistematicamente deformado
pela moralidade pessoal, de modo que sua aplicação não se faz num vazio,, mas num
verdadeiro cadinho de valores e ideologia” (Da MATTA, 1990: 203).
10
O termo re/produção, proposto por ROULEAU (1995), expressa o que GIDDENS (1996) define como o
caráter dual da ação, ou seja, que toda conduta humana comporta reprodução e produção de estruturas sociais.
8
“Existe muita integração também no trabalho que a gente faz e desenvolve... realmente a
gente funciona como se fosse, realmente uma família, um grupo integrado” (Gerente
entrevistado).
“é fácil o relacionamento, entendeu? As pessoas já te conhecem, muito tempo dentro de casa,
aquele negócio todinho... então é tranqüilo , isso é uma coisa boa” (Gerente entrevistado).
Em pesquisa realizada, junto a uma Secretaria de Estado no Espírito Santo11, em agosto de
1997, com vistas a levantar impactos do processo de modernização organizacional junto ao
exercício da função gerencial, evidências de re/produção de propriedades estruturais puderam
ser identificadas, ainda que não fosse esse o objeto do estudo realizado a partir de entrevistas
semi-estruturadas, a dezenove servidores públicos ocupantes de cargos gerenciais junto ao
Governo do Estado do Espirito Santo. Os resultados dessas enquetes, foram transcritos e
tabulados e analisados em meados de 1998. A amostra apresentou as seguintes características:
. Tempo de exercício da função gerencial e estabilidade no cargo – no que tange ao tempo de
exercício de cargos de gerência somente dez, dentre os dezenove, ocupava a posição há dois
anos e meio, desde o início do governo em 1995, demonstrando a tendência a
descontinuidades administrativas, bem como instabilidade quanto à permanência em funções
gerenciais, tendo em vista que os demais estavam no cargo a menos de dois anos. Nota-se que
a Secretaria já havia trocado um Secretário antes do que estava no cargo à época do
levantamento de dados. É interessante notar ainda que o organograma dessa organização
contava com um número de sessenta cargos de gerência somente no prédio sede,
desconsideradas as chefias externas espalhadas pelo Estado, para um conjunto de quinhentos e
cinqüenta e três servidores estatutários12 no total. Chega-se então a número de nove
servidores, em média, para cada gerente, demonstrando a tendência ao poder altamente
concentrado.
. Faixa salarial – 31,5% dos entrevistados recebiam remuneração na faixa de R$ 1000,00 a
R$ 3000,00; 31,57% entre R$ 3000,00 a R$ 5000,00; 26,31% entre R$ 5000,00 e R$ 7000,00
e 10,52% entre R$ 7000,00 a R$ 9000,00.
. Formação profissional – 89,4% dos gerentes entrevistados tinham formação de nível
superior nas áreas das ciências econômicas e jurídicas, ou seja, administração de empresas
(26,3%); economia (36,8%); contabilidade (15,78%) e direito (15,78%). Desse total 26,3%
tem uma segunda graduação em direito, comunicação social, engenharia química, engenharia
civil, tecnologia mecânica e engenharia elétrica, respectivamente. Somente dois (5,4%) fogem
à essa tendência pois têm formação na área de engenharia civil e biblioteconomia,
respectivamente.
. Gênero – a grande maioria dos entrevistados é composta por gerentes do sexo masculino
63,15%, cabendo ao sexo feminino 36,85%.
11
Este estudo faz parte do Projeto Integrado de Pesquisa financiado pelo CNPq “Novos Processos
Organizacionais e seus Impactos na Categoria dos Gerentes e na Função Gerencial – Um Estudo em
Organizações Privadas, Públicas e ONG’s”
12
Fonte: Grupo de Recursos Humanos Setorial da Secretaria.
9
patrimonialismo, bem como o uso do “jeitinho” como estratégias para o convívio com o
excesso de normas e regras. Por outro lado, muitas das respostas apontavam também para o
fato dos gerentes da organização estarem atentos à percepções das mudanças pela qual a
função gerencial estaria passando , ligadas às exigências de maior dinamismo, capacitação,
delegação de autoridade e participação, frutos das discussões a respeito do início das
discussões da implantação do programa de modernização, evidenciando, desse modo, uma
possibilidade de transformação de algumas das propriedades estruturais levantadas na
pesquisa, confirmando o caráter re/produtivo da ação humana argumentada por GIDDENS
(1984), ou seja, o pressuposto de que as estruturas sociais tanto restringem como podem
habilitar a ação, possível de manter ou transformar aquelas.
(ANÁLISE DA CONDUTA
ESTRATÉGICA)
Contexto Organizacional
( Administração Pública Gerencial )
10
GRÁFICO 1: Enquadramento metodológico – análise institucional e conduta estratégica
4 – Considerações finais
A proposta de transposição do arquétipo do administrador público burocrático pela figura do
gerente, um dos pilares da atual processo de reconstrução do Estado brasileiro, faz parte de
um esforço maior que visa entre outras coisas, o combate à propriedades estruturais de nossa
sociedade que insistem em continuar presentes na administração pública como o
patrimonialismo e o clientelismo (BRESSER PEREIRA,1999b). Entretanto, riscar do mapa
aquele arquétipo implica em admitir que o modelo burocrático weberiano, buscado desde a
implantação do DASP no primeiro governo Vargas, não foi capaz, por si só, de garantir a
eficiência, a racionalidade e a impessoalidade na administração pública, evidenciando as
influências histórico-sociais da constituição de nossa sociedade, demonstrando que a
burocracia cabocla sofreu a miscigenação de um conjunto de práticas sociais que se
re/produzem, caracterizando o que GIDDENS (1984) denominou de dualidade estrutural. Daí,
se pode deduzir que um modelo de gestão, muito mais do que somente um conjunto técnico
de conceitos, pressupõe a interpretação destes pelos atores organizacionais, através de um
processo de construção e reconstrução que inclui a ação desses últimos situada no tempo e no
espaço. Logo, para se transformar o arquétipo do burocrata caboclo, necessário se faz
compreender a sua construção social, investigando-se os atores sociais empíricos concretos,
verificando-se, a partir daí, o quanto eles se aproximam ou se afastam dos moldes
burocráticos clássicos, para então tornar-se mais possível a reconstrução não do ator em si,
mas das bases sob as quais se fundam o trabalho gerencial no setor público.
11
Anexo 1 - Gráfico 2: Sistemas sociais e propriedades estruturais para o estudo do trabalho gerencial na administração pública brasileira
Propriedades estruturais
Regras Básicas:
Paternalismo; Personalismo;
A extensão das relações familiares ao
meio do trabalho – a afetividade
Recursos Básicos
Concentração da autoridade:
patriarcalismo; a dualidade indíviduo-
Pessoa;
Sistemas Sociais A cordialidade
SETOR GOVERNO
(crise do Estado)
DOMÉSTICO Regras Básicas:
Centralidade do Estado: o papel no
desenvolvimento econômico – agente TRABALHO
Dualidade
econômico regulador E “AÇÃO”
Estrutural
Recursos Básicos: GERENCIAL
ESTADO - SOCIEDADE Clientelismo; corporativismo;
insulamento burocrático; universalismo Estrutural
de procedimentos O CONTEXTO DA
GESTÃO ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
ORGANIZACIONAL GERENCIAL
PÚBLICA Regras Básicas:
Formalismo; patrimonialismo;
descontinuidade administrativa
Recursos Básicos:
O jeitinho; a não distinção entre o
público e o privado; a centralização do
poder
13
12
5 - Bibliografia
ABRUCIO, F.L. Os avanços e dilemas do modelo pós-burocrático: a reforma da
administração pública à luz da experiência internacional recente. In: BRESSER PEREIRA,
L. C. & SPINK, P. (orgs.). (1998). Reforma do Estado e administração pública gerencial.
Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas.
BARBOSA, L. (1992). O jeitinho brasileiro: a arte de ser mais igual do que os outros. Rio de
Janeiro:Campus.
BARNARD, C. (1938). The functions of the executive. Cambridge:Harvard University Press.
BARROS, B.T. & PRATES, M.C. (1996). O Estilo Brasileiro de Administrar. São Paulo:
Atlas.
BRESSER PEREIRA, L.C. (1996) Da Administração Pública Burocrática à Gerencial.
Revista do Serviço Público. 47 (1): 7-29.
_________. (1997). Estratégia e estrutura para um novo Estado. Revista do Serviço Público.
48 (1) : 5- 25.
____. (1998a). Gestão do Setor Publico: estratégia e estrutura para um novo Estado. In:
BRESSER PEREIRA, L. C. & SPINK, P. (orgs.). Reforma do Estado e administração
pública gerencial. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas.
____. (1998b). Reforma do Estado para a cidadania: a reforma gerencial brasileira na
perspectiva internacional. São Paulo: Ed. 34; Brasília: ENAP.
Da MATTA, R. (1990). Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema
brasileiro.5.ed. Rio de Janeiro: Guanabara.
_________. (1993). O que faz o brasil, Brasil? 5ed.Rio de janeiro: Rocco.
DINIZ, E. (1997). Crise, reforma do Estado e governabilidade: Brasil 1985-95. Rio de
Janeiro:Fundação Getúlio Vargas.
FAORO, R. (1987). Os donos do poder. 7.ed. Porto Alegre: Globo.
FAYOL, H. (1970). Administração industrial e geral. 8 ed. São Paulo: Atlas.
FERLIE, E. et al.(1997). The New Public Management in Action. Oxford: Oxford University
Press.
GIDDENS, A . (1979). Central problems in social theory. Berkeley:University of California
Press.
_____. (1984). The constitution of society. Berkeley:University of California Press.
_____. ( 1989). A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes.
_____. (1996). Novas regras do método sociológico. 2 ed. Lisboa: Gradiva.
HARROW, J. & WILLCOCKS, L. (1990). Public Services Management: activities, initiatives
and limits to learning. In: Journal of Management Studies. 27 (3):281- 304.
HOLANDA, S. (1997). Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras.
MARTINS, H. (1997). A ética do patrimonialismo e a modernização da administração pública
brasileira. In: MOTTA, F. C. & CALDAS, M.P. (orgs.) Cultura organizacional e cultura
brasileira. São Paulo: Atlas.
MARTINS, L. (1985). Estado capitalista e burocracia no Brasil pós-64. Rio de Janeiro: Paz e
Terra.
MARTINKO, M & GARDNER, W. (1990). Structured observation of managerial work: a
replication and synthesis. In: Journal of Management Studies. 27 (3): 329-357.
MELO, G. (1974). Origem, formação e aspectos da cultura brasileira. Lisboa: Centro do Livro
Brasileiro.
MELO, M.C.L. (1995). Os dramas e as tramas da carreira gerencial. In: 19° ENCONTRO
NACIONAL DE PROGRAMAS DE PÓS-GRADUÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO.
ANAIS. João Pessoa: ANPAD.
_____. (1996). O Exercício da Função Gerencial em Tempos de Novas Tecnologias
Organizacionais: da gestão profissional à gestão compartilhada. In:20° ENCONTRO
13
NACIONAL DE PROGRAMAS DE PÓS-GRADUÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO.
ANAIS. Rio de Janeiro: ANPAD.
MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO FEDERAL E DA REFORMA DO ESTADO -
MARE. (1995). Plano Diretor da Reforma do Estado. Brasília: Presidência da República,
Imprensa Oficial.
MOTTA, F.C. (1996). Cultura Nacional e Cultura Organizacional. In: DAVEL, E &
VASCONCELOS, J. (orgs.). Recursos humanos e subjetividade. Petrópolis: Vozes.
MOTTA, F. C. & CALDAS, M.P. (orgs.). (1997). Cultura Organizacional e Cultura
Brasileira. São Paulo: Atlas.
MOTTA, F. C. & ALCADIPANI, R. (1999). Jeitinho brasileiro, controle social e competição.
In: Revista de Administração de Empresas. 39 (1): 6-12, jan/mar.
MUNIZ, R. M. (1992). Reforma del Estado em America Latina: Descentralización o
decadencia del Estado-Nación? In: MERINO, M (org.). Cambio Político y governabilidad.
México, D.F: Conacyt.
NUNES, E. (1997). A gramática política do Brasil: clientelismo e insulamento burocrático.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Brasília: ENAP.
PETERS, T. & WATERMAN, R. (1982). In Search of Excellence: lessons from America’s
best- run companies. New York: Harper and Row.
POLLITT, C. (1990). Managerialism and the Public Services: the anglo-american experience.
Oxford: Basil Blackwell.
RAMOS, G. (1983) Administração e Contexto Brasileiro: esboço de uma teoria geral da
administração. 2.ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas.
____. (1989). Studies of managerial jobs and behavior. In: Journal of Management Studies. 26
(1).
REED, M. (1989). The sociology of management. London: Harvester Wheatsheaf.
ROULEAU, L. (1995). La structuration sociale de l’activité stratégique: le cas Irving Samuel/
Jean-Claude Poitras. Montréal : HEC (Tese de doutorado).
SAHAY, S. & WALSHAM, G. (1997). Social structure and managerial agency. Organization
Studies. 18(3) : 415-444.
SARASON, Y., (1995). A model of organizational transformation : the incorporation of
organizational identity into a structuration theory framework. In: Academy of Management
Journal. (Proceedings) : 47-51.
SODRÉ, N. (1989). Síntese da história da cultura brasileira. 16 ed. Rio de janeiro: Bertrand
Brasil.
TAVARES, M.C. & FIORI, J. L. (1996). (Des) Ajuste global e modernização conservadora.
São Paulo: Paz e Terra.
TAYLOR, F. (1960). Princípios de administração científica. 4ed.São Paulo: Atlas.
WEBER, M. (1984). Economia y Sociedad. México: Fondo de Cultura Económica.
WHITTINGTON, R. (1992). Putting Giddens into Action : social systems and managerial
agency. In : Journal of Management Studies. 29 (6) : 693-712.
WHITLEY, R. (1989). On the Nature of Managerial Tasks. In: Journal of Management
Studies. 26(3).
WILLMOTT, H. C. (1984). Images and ideals of managerial work : a critical examination of
conceptual and empirical accounts. In : Journal of Management Studies. 23 (3) : 349-
368.
____. (1987). Studying managerial work : a critique and a proposal. In : Journal of
Management Studies. 24(3) : 249-269.
14