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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

CASAMENTO E COMPADRIO EM BELÉM NOS MEADOS DO OITOCENTOS

Daniel Souza Barroso

BELÉM/PARÁ
2012
CASAMENTO E COMPADRIO EM BELÉM NOS MEADOS DO OITOCENTOS

Daniel Souza Barroso

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em História Social do Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal do Pará, como requisito parcial para a
obtenção do grau de Mestre em História Social da
Amazônia. Orientador: Prof. Dr. Antonio Otaviano
Vieira Junior.

BELÉM/PARÁ

2012
CASAMENTO E COMPADRIO EM BELÉM NOS MEADOS DO OITOCENTOS

Daniel Souza Barroso

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em História Social do Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal do Pará, como requisito parcial para a
obtenção do grau de Mestre em História Social da
Amazônia. Orientador: Prof. Dr. Antonio Otaviano
Vieira Junior.

DATA DE APROVAÇÃO: 04 de abril de 2012

BANCA EXAMINADORA:

__________________________________________________________
Prof. Dr. Antonio Otaviano Vieira Junior - Orientador - (PPHIST/UFPA)

__________________________________________________________
Prof. Dr. Carlos de Almeida Prado Bacellar - Examinador Externo - (FFLCH/USP)

__________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Cristina Donza Cancela - Examinadora Interna - (PPHIST/UFPA)

__________________________________________________________
Prof. Dr. Rafael Ivan Chambouleyron - Examinador Suplente – (PPHIST/UFPA)

BELÉM/PARÁ

2012
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

(Biblioteca de Pós-Graduação do IFCH/UFPA, Belém-PA)

BARROSO, DANIEL SOUZA.


Casamento e compadrio em Belém nos meados do Oitocentos / Daniel Souza
Barroso; orientador, Antonio Otaviano Vieira Junior. - 2012

Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Pará, Instituto de Filosofia e


Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia,
Belém, 2012.

1. Belém - História - Séc. XIX. 2. Casamento. 3. Família. 4. Amizade. I. Título.

CDD - 22. ed. 981.15


Dedico este estudo aos meus avós Floriano e Dinah,
e ao meu tio Henrique, in memoriam, pelos
ensinamentos de vida.
AGRADECIMENTOS

Os agradecimentos são decerto uma das partes mais difíceis de escrever em um estudo
científico. Ao longo dos dois anos dedicados à elaboração desta dissertação, a lista de pessoas
com as quais contraí dívidas e que se tornaram passíveis de minha gratidão, só fez se estender.
Paralelamente, acompanhando a mesma tendência, se estendeu igualmente a lista de pessoas a
quem não dei, nesses dois anos, a atenção que sem dúvida mereceriam, por estar ocupado na
pesquisa, na escrita ou em viagens para congressos. São esses dois grupos que norteiam meus
agradecimentos. De antemão, peço desculpas a todos aqueles que, porventura, acabaram não
se fazendo presentes nesta seção. A ausência de determinados nomes justifica-se muito mais
por um esquecimento passageiro do que por uma ingratidão propriamente dita. Carregarei
sempre comigo a gratidão em relação a todos aqueles que de maneira mais ou menos enfática
me ajudaram a desenvolver e concluir esta etapa.
Em primeiro lugar, agradeço a Deus e a minhas duas famílias (Barroso e Mafra) pela
paciência, compreensão, afeto e companheirismo nesta trajetória em particular, e em minha
vida como um todo. Agradeço, em especial, aos meus pais, minha avó e minha irmã por tudo,
assim como à Alessandra e aos seus familiares; particularmente, à d. Mafra, a minha afilhada
Evelyn e a meu sobrinho Vinícius. Em segundo lugar, também faço meus agradecimentos a
meus amigos, dentro e fora da Academia, pelas conversas sempre proveitosas, pelos estímulos
constantes e pela paciência de me verem ausente em inúmeras ocasiões; de confraternizações
de final de ano a aniversários. No âmbito pessoal, agradeço especialmente aos irmãos Rodrigo
e Victor pelos encontros sempre animados. No âmbito acadêmico, repiso a minha gratidão a
Helder, Milton, Paulinha, Maísa e Marília, companheiros na História da Família, assim como
aos demais colegas da UFPA. E à d. Maria José, da Cúria, pela convivência sempre agradável.
Em termos institucionais, agradeço à Universidade Federal do Pará pela formação que
me concedeu na graduação e no mestrado, e à CAPES pelo auxílio financeiro nos últimos dois
anos. Também sou grato a todos os professores que acompanharam a trajetória deste estudo,
em especial ao professor Carlos Bacellar (que participou das bancas de Qualificação e Defesa)
e aos professores José Flávio Motta, Cuca Machado e João Cosme, pelas contribuições feitas
durante a apresentação dos resultados preliminares desta pesquisa. Agradeço, outrossim, aos
professores Aldrin Figueiredo, Magda Ricci, Márcio Couto e Nazaré Sarges pelo carinho e
amabilidade de sempre. Por fim, e não menos importante, desdobro os meus agradecimentos à
professora Cristina Cancela e ao meu orientador, professor Otaviano Vieira, pela amizade e a
consistente orientação, e por representar, para mim, um parâmetro profissional a ser seguido.
SUMÁRIO

LISTA DE SIGLAS

LISTA DE TABELAS

LISTA DE FIGURAS E GRÁFICOS

RESUMO E ABSTRACT

INTRODUÇÃO.................................................................................... 01

CAPÍTULO I: O CASAMENTO: quadro demográfico, preferências matrimoniais e


a dinâmica do rito nupcial...................................................................... 33

1.1 Geografia do mercado matrimonial, dinâmica populacional e nupcialidade...... 34


1.2 O casamento como estratégia............................................................... 54
1.3 A dinâmica do rito nupcial................................................................. 77
1.4 Considerações quase que finais............................................................ 97

CAPÍTULO II: As relações de compadrio de livres e escravos, e a dinâmica do


rito batismal......................................................................................... 99

2.1 O compadrio entre indivíduos de condição livre......................................... 100


2.2 O compadrio de escravos.................................................................... 121
2.3 A dinâmica do rito batismal............................................................. 143
2.4 Considerações quase que finais............................................................ 156
CAPÍTULO III: As práticas de casamento e as relações de compadrio da família
Gama e Silva e dos escravos do Engenho Bom Intento............................ 158

1.1 Casamento e compadrio entre os Gama e Silva ........................................ 160


1.2 Casamento e compadrio entre os escravos do Engenho Bom Intento................. 181
1.3 Considerações quase que finais............................................................ 215

CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................. 217

FONTES............................................................................................ 223

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................... 226


LISTA DE SIGLAS

ACMB - Arquivo da Cúria Metropolitana de Belém (Brasil)

ANTT - Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Portugal)

BBUSP - Biblioteca Brasiliana da Universidade de São Paulo (Brasil)

CLIB - Coleção de Leis do Império do Brasil (Brasil)

CMA/UFPA - Centro de Memória da Amazônia (Brasil)

RPP - Relatórios dos Presidentes de Província do Grão-Pará (Brasil)


LISTA DE TABELAS

TABELA 1.1: População do núcleo urbano central de Belém (1848-1872)..................... 34

TABELA 1.2: População livre e escrava nos batismos da Freguesia da Sé (1842-1870).... 43

TABELA 1.3: Presença de migrantes nos casamentos e livres da Freguesia da Sé (1840-


1870).................................................................................................................... 44

TABELA 1.4: População migrante que contraiu núpcias em Belém, em função do gênero e
da origem brasileira ou estrangeira (Freguesia da Sé, 1840-1870).................................. 45

TABELA 1.5: Taxas brutas de nupcialidade de livres e escravos na freguesia da Sé Belém


(1848-1872).......................................................................................................... 49

TABELA 1.6: Condição de legitimidade entre os nubentes livres (1840-1870)................ 52

TABELA 1.7: Variações no movimento sazonal dos casamentos de livres por meses (1840-
1870), em números relativos.................................................................................... 81

TABELA 1.8: Variações no movimento sazonal dos casamentos de escravos por meses
(1840-1870), em números relativos........................................................................... 82

TABELA 1.9: Variações no movimento sazonal dos casamentos de escravos por dias da
semana (1840-1870), em números relativos................................................................ 84

TABELA 1.10: Variações no movimento sazonal dos casamentos de livres por dias da
semana (1840-1870), em números relativos................................................................ 84

TABELA 2.1: Condição sociojurídica dos padrinhos de escravos................................ 124

TABELA 2.2: Condição sociojurídica dos padrinhos em função do sexo dos escravos
batizados............................................................................................................. 126

TABELA 2.3: Condição sociojurídica dos padrinhos em função da condição de legitimidade


dos escravos batizados........................................................................................... 126
TABELA 2.4: Condição sociojurídica dos padrinhos em função da dimensão dos plantéis dos
escravos batizados................................................................................................ 126

TABELA 2.5: Correspondência entre as condições sociojurídicas dos padrinhos e madrinhas


dos escravos batizados........................................................................................... 131

TABELA 2.6: Variações no movimento sazonal dos batismos de livres por meses (1842-
1870), em números relativos................................................................................... 149

TABELA 2.7: Variações no movimento sazonal dos batismos de escravos por meses (1842-
1870), em números relativos................................................................................... 149

TABELA 2.8: Variações no movimento sazonal dos batismos de livres por dias da semana
(1842-1870), em números relativos......................................................................... 151

TABELA 2.8: Variações no movimento sazonal dos batismos de escravos por dias da semana
(1842-1870), em números relativos......................................................................... 152
LISTA DE FIGURAS E GRÁFICOS

FIGURA 1.1: Mapa de Belém nos meados do século XIX........................................... 36

FIGURA 3.1: Engenhos no Estuário Amazônico...................................................... 183

GRÁFICO 1.1: População do Grão-Pará no século XIX.............................................. 40

GRÁFICO 1.2: Movimento sazonal dos casamentos de livres e escravos por meses (1840-
1870).................................................................................................................... 79

GRÁFICO 1.3: Movimento sazonal dos casamentos de livres e escravos por dias da semana
(1840-1870)........................................................................................................... 83

GRÁFICO 2.1: Movimento sazonal dos batismos de livres e escravos por meses (1842-
1870).................................................................................................................. 148

GRÁFICO 2.1: Movimento sazonal dos batismos de livres e escravos por dias da semana
(1842-1870)......................................................................................................... 150

GRÁFICO 3.1: Pirâmide sexo-etária da escravaria do Engenho Bom Intento................ 187


RESUMO

O presente estudo tem enquanto finalidade investigar de que forma diferentes grupos sociais
experimentaram as relações familiares na cidade de Belém entre 1840 e 1870, a partir de uma
análise serial de 1.379 registros de matrimônio e 2.608 registros de batismo produzidos no
Curato da Sé. Com foco no casamento e nas relações de compadrio, objetivamos investigar de
que modo aqueles diferentes grupos articularam suas alianças matrimoniais e os seus laços de
parentesco espiritual num contexto marcado pelo alvorecer de um processo de reordenamento
social e demo-econômico no Grão-Pará. O período estudado é caracterizado por um contexto
de expansão urbana de Belém, e de crescimento demográfico acentuado e configuração de um
novo evolver econômico na província, associado à consolidação da borracha como o principal
produto de exportação da região amazônica.

PALAVRAS-CHAVE: Belém; Século XIX; Família; Casamento; Compadrio.

ABSTRACT

This study aims to investigate how different social groups had experienced family relations in
Belém, from 1840 to 1870, through a serial analysis of 1,379 records of marriage and 2,608
records of baptism produced at the Parish of Sé. Focusing in the marriage and in the
godparenhood, it investigates how those different groups articulated their matrimonial
alliances and their spiritual kinship strategies in a context marked by the dawn of a social and
demo-economic reordering process in Grão-Pará. The study period is characterized by a
context of urban development in Belém, and by the population growth and the setting a new
economic process in the province, coupled with the consolidation of rubber as the main export
product of the Amazon region.

KEYWORDS: Belém; 19th Century; Family; Marriage; Godparenthood.


1

INTRODUÇÃO

Este estudo tem enquanto objetivo investigar de que forma diferentes grupos sociais
experimentaram as relações familiares em Belém, entre os anos de 1840 e 1870, a partir da
análise serial de 1.379 registros de matrimônio e 2.608 registros de batismo produzidos no
Curato da Sé. Com foco no casamento e nas relações de compadrio, objetivamos investigar de
que modo aqueles diferentes grupos articularam suas alianças matrimoniais e os seus laços de
parentesco espiritual num período marcado pelo alvorecer de um processo de reordenamento
social e demo-econômico no Grão-Pará. O período estudado é caracterizado por um contexto
de expansão urbana de Belém, e pelo crescimento demográfico acentuado e a configuração de
um novo evolver econômico na província do Grão-Pará, associado à consolidação da borracha
como o principal produto de exportação da região amazônica.

Os atos do batismo e de casamento são momentos propícios para a apreensão das redes
nas quais indivíduos e grupos sociais estavam imersos. Relações familiares, de sociabilidade e
de solidariedade se constroem, solidificam e evidenciam ao batizar-se e casar-se. A família,
enquanto um elo entre os indivíduos e a sociedade,1 é responsável pela construção de teias
sociais que se cunhavam e expandiam no dia a dia, a partir de alianças matrimoniais e laços
de compadrio. A importância desses eventos na conformação das relações sociais e familiares
neles ritualizadas foi avigorada ainda na Antiguidade, quando as normatizações da Igreja a
respeito do matrimônio e do parentesco espiritual passaram a trabalhar no sentido de amainar
o poder da “família de sangue”, fortalecendo a conjugalidade mais do que a consanguinidade
e o “quase parentesco” mais do que o parentesco propriamente dito.2

Os batismos e casamentos apresentavam, ao mesmo tempo, algumas particularidades e


tendências gerais que nos servem como indicadores de relações sociais e padrões culturais. 3
Eles constituem, antes de tudo, atos culturais consubstanciados numa síntese de reprodução e
variação cultural,4 e de perpetuação demográfica e social.5 Nesse sentido, estando articulados

1
GOODE, William. The Family. New Jersey: Englewood Cliffs, 1964, p. 08.
2
GOODY, Jack. The development of family and marriage in Europe. Cambridge: Cambridge University Press,
1983.
3
NADALIN, Sérgio. História e Demografia: elementos para um diálogo. Campinas/SP: Associação Brasileira
de Estudos Populacionais, 2004, p. 86.
4
Enquanto eventos vitais, o batizado e o casamento relacionam dois acontecimentos específicos (os atos de
batizar-se e casar-se) com o sistema simbólico no qual estão inseridos. Assim sendo, não podem ser analisados
2

ao seu respectivo processo social, econômico e demográfico, possibilitam-nos verificar de que


modo determinados grupos sociais estabeleciam toda a sua trama de inter-relações, ora sendo
assimilados pela sociedade local, ora refutando ou tendo refutada a sua interação social mais
efetiva. Podendo representar, desse modo, um importante indicador de evolveres ainda mais
amplos que, quando cotejados a outros tipos de fonte e lidos à luz de fatos sociais, políticos e
econômicos diversos, permitem a construção de um consistente quadro analítico.6

Este estudo representa o desdobramento de nossas atividades de pesquisa em História


da Família, iniciadas a partir da participação em um plano de trabalho de iniciação científica.
Desde então, temos nos dedicado a produzir sobre a temática no contexto paraense. Durante
os quatro anos consagrados a essa produção, tivemos a oportunidade de apresentar trabalhos e
publicar alguns textos sobre diversos aspectos referentes à família e à demografia no passado
da Amazônia. Esses estudos, em suas linhas gerais, focavam em duas questões específicas – o
casamento e a migração – e concentravam-se principalmente em dois contextos – as primeiras
décadas dos séculos XIX e XX. Foi justamente a análise dessas realidades tão distintas entre
si que nos levou a indagar acerca do processo sócio-histórico de transformação de um quadro
sociodemográfico em outro.

Em um primeiro estudo, verificamos que a migração destinada ao Grão-Pará no início


do Oitocentos era quase que absolutamente portuguesa. Nem mesmo os conturbados anos
joaninos (1808-1821), marcados pela ocupação francesa na Península Ibérica e pelo traslado
da Família Real e sua Corte para o Rio de Janeiro, decorreu em intermitências ou mudanças
naquele fluxo.7 Em um segundo estudo, observamos que a migração destinada ao Pará no
limiar do século XX possuía, comparativamente, contornos muito mais multiformes. A antiga
migração lusitana, bastante seletiva no que tange ao sexo, havia dado lugar a uma migração
mais diversa e muito menos seletiva em relação a esse aspecto.8 No entanto, ainda em meio a
tantas diferenças entre uma e outra realidade, havia entre elas uma questão comum: a família

separadamente dos valores sociais e culturais a eles imbricados. A respeito do conceito antropológico de evento,
ver dentre outros: SAHLINS, Marshall. Estrutura e História. In: Ilhas de História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1990 [1985], pp. 172-194.
5
NADALIN, Sérgio. História e Demografia, op. cit., p. 99.
6
Ibidem, p. 84.
7
Cf.: VIEIRA Jr., Antônio Otaviano & BARROSO, Daniel Souza. Histórias de “movimentos”: embarcações
e população portuguesas na Amazônia joanina. In: Revista Brasileira de Estudos de População, Rio de
Janeiro, 27(1), jan.-jun./2010, pp. 193-210
8
Cf.: BARROSO, Daniel Souza. Família e Imigração: o casamento, em Belém, no início do século XX. XVII
Encontro Nacional de Estudos Populacionais, 2010. Caxambu. Anais... Caxambu/MG: Associação Brasileira de
Estudos Populacionais, 2010. 20p.
3

representou, mesmo que de diferentes maneiras, um alicerce fundamental para a compreensão


das suas dinâmicas populacionais.

Não nos cabe aqui analisar de forma pormenorizada cada uma dessas realidades, mas
não podemos deixar de considerar que as diferenças entre ambas são corolários, em verdade,
dos distintos evolveres sociais, econômicos e demográficos que permearam cada contexto. Se
no início do século XIX o complexo econômico regional era voltado ao extrativismo do cacau
e da castanha, à agricultura de gêneros tropicais (como o algodão, por exemplo) e em menor
medida à pecuária,9 no limiar do Novecentos o quadro era completamente diferente. A maior
dinamização econômica trazida pela borracha, que chegou a figurar como o segundo produto
na pauta de exportações de todo o Império, trouxe profundas modificações às estruturas social
e demo-econômica da Amazônia. Não obstante à extraordinária importância relativa galgada
pela economia regional na segunda metade do século XIX, 10 a população de Belém – o mais
importante polo social, político e cultural região – praticamente quadruplicou entre os anos de
1872 e 1920.11

As três décadas contempladas neste estudo compreendem, em diferentes aspectos,


etapas da transição de uma lógica social, demográfica e econômica na outra. Representaram,
portanto, uma síntese de transformação. Enquanto a década de 1840 marcou a reestruturação
econômica da província do Grão-Pará logo após a Cabanagem, a década de 1850 significou a
consolidação da borracha com o principal da província e, a década de 1860, a efetivação do
quadro demográfico e econômico gestado nos decênios anteriores; onde podemos verificar
uma intensificação na migração e, concomitantemente, a materialização do papel econômico
de destaque da borracha. Deixando a caracterização da cidade de Belém e de sua população
para mais adiante (esses elementos serão ainda discutidos na primeira parte do CAPÍTULO I), é
importante tecermos algumas considerações mais específicas sobre cada um dos decênios
analisados neste estudo.

Os anos 1840 representaram, em suas linhas gerais, um contexto de reestruturação da


ordem social e econômica da província do Grão-Pará após a Cabanagem. Conquanto se sugira
que o movimento tenha dizimado grande parte da população da Grão-Pará e representado um
sério abalo na sua dinâmica produtiva e econômica, não há precisão quanto ao efetivo impacto
da Cabanagem na estrutura socioeconômica da província, especialmente na cidade de Belém.

9
Ver: PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011 [1942].
10
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2011 [1959], pp. 206-
127.
11
BARROSO, Daniel Souza. Família e Imigração, op. cit., p. 02.
4

Por um lado, alguns trabalhos apontam para um total rompimento nessa estrutura. Por outro,
alguns estudos têm evidenciado que o movimento cabano não paralisou a província tal como
se supunha anteriormente; havendo indicativos de que mesmo no ápice da revolta, no final
dos anos de 1830, a cidade de Belém não deixou de importar e consumir artigos de luxo, nem
mesmo de levar a efeito os seus vários projetos de readequação urbana.12 De qualquer forma,
não resta dúvida de que após os conflitos, o governo local começou a exercer uma maior ação
sobre a vida na cidade, passando a policiar mais de perto a vida pública.13

Em termos contextuais, a década de 1840 constituiu um terceiro momento em meio à


dinâmica da economia paraense na primeira metade do século XIX. O primeiro momento,
intercalado entre o final do século XVIII e os anos 1810, foi caracterizado pela boa circulação
de mercadorias e produtos do Grão-Pará no mercado internacional. O segundo momento, que
compreende os dois decênios seguintes, foi marcado pela gradativa queda nas exportações da
província, que se acredita ter se acentuado durante a Cabanagem. O decênio de 1840, como o
terceiro momento, representou a retomada no crescimento econômico do Grão-Pará, que já
assistia aos primeiros surtos da borracha.14

Os anos 1850 representaram uma continuidade no sentido de crescimento econômico


da província, agora marcado pela consolidação do complexo econômico dedicado à borracha
– que nesse período desbancou o cacau e alguns gêneros agrícolas como o principal produto
de exportação do Grão-Pará.15 Embora tenha havido, no início e nos meados daquela década,
duas importantes epidemias (uma de febre amarela e outra de cólera), 16 podemos verificar o
início de um fluxo migratório destinado à região. Como consequência disso, a população da

12
Cf.: GUIMARÃES, Luiz Antônio. As casas e as coisas: um estudo sobre vida material e domesticidade nas
moradias de Belém – 1800-1850. (Dissertação de Mestrado em História). Belém: Universidade Federal do Pará,
2006.
13
GUIMARÃES, Luiz Antônio. As casas e as coisas, op. cit., p. 17.
14
Para uma discussão mais densa sobre os aspectos econômicos da Amazônia no século XIX, ver: BATISTA,
Luciana Marinho. Muito além dos seringais: elites, fortunas e hierarquias no Grão-Pará, c.1850 - c.1870.
(Dissertação de Mestrado em História Social). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2004;
FIGUEIREDO, Aldrin Moura de & ALVES, Moema de Bacelar (Orgs.). Tesouros da Memória: História e
Patrimônio no Grão-Pará. Belém: Ministério da Fazenda/Gerência Regional de Administração no Pará/Museu
de Arte de Belém, 2009; OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de. O caboclo e o brabo: notas sobre duas
modalidades de força de trabalho na expansão da fronteira amazônica no século XIX. In: Encontros com a
Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 11, 1979, pp. 101-140; SAMPAIO, Patrícia Melo. Os Fios de Ariadne:
tipologia de fortunas e hierarquias sociais em Manaus. Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 1998;
SANTOS, Roberto. História Econômica da Amazônia (1800-1920). São Paulo: T. A. Queiroz, 1980;
WEINSTEIN, Barbara. A Borracha na Amazônia: expansão e decadência (1850-1920). São Paulo:
Hucitec/EDUSP, 1993.
15
SANTOS, Roberto. História Econômica da Amazônia, op. cit., p. 18.
16
BELTRÃO, Jane Felipe. A arte de curar dos profissionais de saúde popular em tempo de cólera: Grão-
Pará do século XIX. In: Manguinhos: História, Ciências, Saúde, Rio de Janeiro, 06, set./200, pp. 833-866.
5

província cresceu até 1872 em ritmo acelerado, a uma taxa média anual de 3,65%.17 Durante
essa década, como veremos no CAPÍTULO I, tem início um paulatino processo de mudança no
perfil dos migrantes idos à região, em que um fluxo imigrante marcadamente masculino dava
lugar a uma migração também interprovincial e menos seletiva quanto ao sexo.

Os anos 1860 significaram, em linhas gerais, uma consolidação do quadro da década


anterior, sendo marcado pelo crescimento demográfico da província do Pará e a expansão da
borracha. A crescente demanda pelo produto no mercado internacional levou à dilatação das
suas áreas de produção para regiões ainda não exploradas, como a recém-criada província do
Amazonas.18 Nessa década, podemos observar também o fortalecimento de uma tendência ao
desequilíbrio da representatividade de livres e escravos em relação à população total do Grão-
Pará, que se deu muito mais em função de um crescimento exponencial do segmento livre da
população por migração, do que da redução do contingente escravo da província.

Sendo esses anos o período de transição de uma lógica a outra, pensamos inicialmente
tratar-se do período em que a influência conjuntural dessas mudanças faria sentir-se de forma
mais intensa. Dito em outras palavras, pensamos ser aqueles meados de século o contexto em
que algumas das experiências familiares apuradas em relação ao limiar do Novecentos haviam
se configurado. Essa perspectiva, ainda propedêutica, seria a nosso ver mais contundente ao
considerarmos que aquele período havia representado, no Brasil, um contexto de profundas
transformações em sua lógica e organização social; contexto em que uma sociedade assentada
ainda em aspectos estamentários modernos e fortemente ligada à linhagem, dava lugar a uma
sociedade de classes, onde alguns elementos como o trabalho e o individualismo passavam a
ser extremamente valorizados.19

Nesse sentido, acreditávamos serem aquelas décadas o sentido de uma transformação,


de uma mudança. Partimos então da hipótese de que relativamente às experiências familiares,
as décadas de 1840, 1850 e 1860 representaram um período de mudanças. No entanto, com o
desenvolvimento da pesquisa e o avançar das leituras, observamos que nossa percepção inicial
seria reducionista. Para entendermos aquele período, deveríamos analisar não somente as
mudanças, mas talvez principalmente as permanências. Permanências de uma lógica social
anterior, permanências de uma organização econômica anterior, permanências de uma lógica

17
ANDERSON, Robin. Colonization as exploitation in the Amazon Rain Forest, 1758-1911. Florida: University
Press of Florida, 1999, p. 116.
18
WEINSTEIN, Barbara. A Borracha na Amazônia, op. cit., pp. 71-87.
19
Ver: KUZNESOF, Elizabeth Ann. A família na sociedade brasileira: parentesco, clientelismo e estrutura
social (São Paulo, 1700-1880). In: Revista Brasileira de História, São Paulo, 09(17), set.-1988/fev.-1989, pp.
37-63.
6

política anterior. A compreensão daqueles anos passaria, assim sendo, não por um jogo entre
mudanças de um lado e permanências do outro, mas pela interação de ambas, pela sua atuação
conjunta num processo histórico específico.

A pretensão deste estudo é bem mais modesta do que tentar explicar a dinâmica desse
processo. Objetivamos evidenciar, apenas, como variados grupos sociais experimentaram as
relações familiares, sobretudo no que diz respeito ao casamento e ao compadrio, em meio a
um contexto marcado por reminiscências de um período anterior e por indícios do que viria
pela frente, ou seja, em um jogo constante e conjunto entre mudanças e permanências.

Tendo em vista percebermos a influência daquele evolver nas práticas de casamento e


compadrio da população belenense de forma mais ampla, optamos por trabalhar com o maior
número de segmentos e de grupos sociais possível.20 Nosso objetivo é investigar essa questão
como um “todo”, sem com isso deixarmos de considerar as especificidades nas maneiras pelas
quais aqueles diferentes grupos experimentaram o casamento e o compadrio nos meados do
século XIX. Se, por um lado, essa perspectiva analítica acaba por limitar a compreensão dos
comportamentos de indivíduos e de grupos sociais específicos ao expor apenas seu panorama
mais geral; por outro lado, enseja-nos observar de que modo preferências aparentemente mais
particulares interagiam com demandas sociais, culturais, políticas e demo-econômicas mais
universais, conformando lógicas de ação e tendências de comportamento.

De maneira a não desconsiderarmos, por completo, as possibilidades de rompimento


dessas tendências ou ainda a negação de empreitadas institucionais, as análises desenvolvidas
são enviesadas pelo trabalho com os marcadores sociais, particularmente o gênero, a geração,
naturalidade e condição sociojurídica. O uso de marcadores sociais torna a própria concepção
de grupos sociais, central para nossa análise, mais líquida. Temos não apenas, por exemplo, os
comportamentos matrimoniais dos portugueses ou as tendências de compadrio dos escravos,
mas de homens e mulheres portugueses, de homens e mulheres escravos. Essa perspectiva,
que se ascende pelo trabalho com os marcadores, torna as tendências gerais mais próximas
das múltiplas experiências que permearam o casamento e o compadrio na Belém oitocentista,
estreitando as fronteiras entre os indivíduos e a sociedade, e tornando os conceitos cada vez
menos estanques.21

Considerando o batismo e o casamento como momentos propícios para a apreensão


das relações familiares e sociais vivenciadas por diversos sujeitos e grupos, este estudo tem
20
Mais adiante, na seção METODOLOGIA E FONTES, analisamos mais detidamente essas possibilidades.
21
PROSPERI, A. Dar a alma: história de um infanticídio. São Paulo: Companhia das Letras, 2010 [2005].
7

como objetivo analisar de que modo aquela conjuntura particular, correlacionada aos espaços
de interação e aos lugares sociais específicos de determinados segmentos, pode ter implicado
mudanças e, igualmente, permanências, nos usos sociais e nas maneiras pelas quais aqueles
diferentes grupos experimentaram o casamento e o compadrio na cidade de Belém, ao longo
das décadas de 1840, 1850 e 1860.

FONTES E METODOLOGIA

O corpo documental desta pesquisa é composto por dois tipos de fonte principais (os
registros paroquiais de batismo e casamento) e por demais fontes auxiliares (Censo de 1872,
relatórios da administração provincial, relatos de viajantes, memorialistas, inventários post-
mortem e testamentos). Todos esses documentos encontram-se disponíveis online, publicados
em formato de livro ou dispostos em diversos acervos de Belém. A pesquisa priorizou a coleta
serial apenas dos dois tipos de fonte principais, sendo o restante coletado de maneira esparsa,
conforme percebíamos fazer-se necessário ao desenvolvimento de determinadas discussões.
No total, foram arrolados: 2.608 registros de batismo; 1.379 registros de matrimônio, cinco
inventários post-mortem e quatro testamentos, integralmente. As demais fontes foram apenas
consultadas, sendo delas retiradas somente informações precisas.

Haja vista o caráter “aleatório” com que foram usadas as fontes auxiliares, não se faz
necessário procedermos a uma reflexão mais acurada acerca de cada uma delas. Ainda assim,
acreditamos ser importante tecermos pelo menos algumas considerações mais gerais sobre o
Censo de 1872, os inventários post-mortem, os testamentos e os relatórios da administração
provincial, por terem sido utilizados com um pouco mais de frequência ao longo deste estudo.
Após essas considerações iniciais, passaremos, então, para a análise mais detida dos registros
paroquiais, que demandam maior atenção por serem os tipos de fonte principais da pesquisa.

A feitura do Recenseamento de 1872 esteve a cargo da Diretoria Geral de Estatística,


concebida dois anos antes e que também era responsável pela confecção de quadros anuais de
nascimentos, casamentos e óbitos. Embora tenha havido tentativas anteriores de realização
de censos gerais da população brasileira, como em 1776, 1808, 1817/8 e 1852,22 somente com

22
Cf.: SILVA, Joaquim Norberto de Souza e. Investigações sobre os recenseamentos da população geral do
Império e de cada Província de per si tentados desde os tempos coloniais até hoje. São Paulo: Instituto de
Pesquisas Econômicas, 1986 [1870].
8

a publicação do Censo de 1872 foi inaugurada a fase estatística da história do Brasil.23 Sua
elaboração fez parte, no entendimento de Tarcísio Botelho, do processo de reconhecimento da
nacionalidade brasileira, na medida em que forneceu, pela primeira vez, um retrato do país em
relação ao povo que o constituía, realizando uma significativa representação da nação.24

Tomando por unidade censitária as freguesias, esse Recenseamento arrolou, de forma


sistemática, informações sobre o sexo; as faixas etárias; as profissões; o estado civil; a raça; a
religião; a nacionalidade; o grau de instrução; a condição sociojurídica e os “defeitos físicos”
da população, além de apontar os números brutos de casas e fogos (domicílios habitados), de
cada paróquia recenseada. Ao reunir os dados obtidos em relação a cada freguesia, o Censo de
1872 possibilitava a organização de dados acerca de unidades maiores, trazendo igualmente as
informações atinentes aos municípios, comarcas, províncias e, também, para o país como um
todo. Característica essa que dá ensejo a análises comparativas, de caráter vertical, as diversas
possíveis.

Neste trabalho, fizemos uso de uma versão do Recenseamento de 1872 corrigida pelo
CEBRAP – Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, que retificou os erros de tabulação e
de contagem presentes em sua versão original.25 Essa escolha decorre em duas consequências
que precisam ser destacadas. Primeiramente, pelo fato de termos trabalhado com uma versão
que, até o final de 2011, encontrava-se online e disponível em bancos de dados, não podemos

23
No Brasil, a produção de fontes de “natureza” demográfica pode ser classificada em três “fases estatísticas”: a
fase pré-estatística, do início da colonização a meados do século XVIII; a fase proto-estatística, de meados do
século XVIII a 1872; e a fase estatística, a partir de 1872, com a publicação do primeiro Recenseamento no
país. A fase proto-estatística, que concentra a gênese e o aprimoramento da confecção das listas nominativas e
dos mapas de população clássicos, é segmentável em três momentos: o primeiro momento, de 1765 a 1797,
caracterizado pelas primeiras tentativas de contagem da população brasileira, com objetivos claramente militares
e econômicos; o segundo momento, de 1797 a 1830, marcado pelo aperfeiçoamento das estatísticas
demográficas, com fins menos militares e, sobretudo, mais econômicos e populacionais; e o terceiro momento,
de 1830 a 1872, caracterizado pelo quase abandono e pela desorganização das práticas censitárias. Abrindo um
parêntese, cabe destacar que embora a feitura dos registros paroquiais não tenha seguido a mesma temporalidade,
nem os mesmos objetivos das “estatísticas censitárias”, eles são raros à fase pré-estatística e tornaram-se ainda
mais proeminentes ao terceiro momento (1830-1872) da fase proto-estatística, na medida em que passaram a
constituir um dos únicos corpos documentais mais “seguros” para os estudos de história demográfica. Cf.:
MARCÍLIO, Maria Luiza. Crescimento demográfico e evolução agrária paulista, 1700-1836. São Paulo:
EDUSP/Hucitec, 2000, pp. 29-43.
24
Ver: BOTELHO, Tarcísio Rodrigues. População e Nação no Brasil do século XIX. (Tese de Doutorado em
História Social). São Paulo: Universidade de São Paulo, 1998. Para um balanço historiográfico a respeito da
construção da ideia de “nação” no Brasil do século XIX, cf.: GRAHAM, RICHARD. Constructing a Nation in
Nineteenth-Century Brazil: old and new views on Class, Culture, and the State. In: The Journal of the
Historical Society, Boston, 1(2-3), Spring/2001, pp. 11-47.
25
As informações utilizadas do Censo de 1872 foram retiradas de uma base de dados digital disponibilizada pelo
CEBRAP. Para uma discussão mais densa sobre as propostas de correção dos dados daquele Recenseamento, cf.:
RODARTE, Mário Marcos Sampaio & SANTOS Jr., José Maria dos. A estrutura ocupacional revisitada: uma
proposta de correção dos dados do Recenseamento Geral do Império de 1872. XVI Encontro Nacional de
Estudos Populacionais, 2008. Caxambu/MG. Anais... Belo Horizonte/MG: Associação Brasileira de Estudos
Populacionais, 2008. 21p.
9

fazer neste estudo referências precisas à fonte em questão; acabamos somente por indicar a
proveniência das informações, sem a paginação respectiva. Em segundo lugar, é importante
salientarmos que por tratar-se de uma versão alterada, é possível que alguns dos indicadores
apresentados neste não combinem perfeitamente com os mesmos indicadores apresentados em
outros estudos.

O Censo de 1872 foi utilizado para qualificarmos os indicadores obtidos por meio dos
registros paroquiais de batismo e casamento, com vistas a constituirmos um quadro de análise
demográfica mais amplo. Para além de possibilitar-nos investigar se a representatividade de
certos grupos sociais nos batismos e casamentos coadunava-se com a sua representatividade
geral na população de Belém, esse diálogo documental representou uma grande ajuda para a
análise da nupcialidade na cidade. Não obstante ao cálculo das taxas brutas em si, foi-nos
possível aferir os percentuais de casados e viúvos entre livres e entre escravos, o número de
indivíduos em idade de casar, a distribuição espacial de livres e escravos pelas freguesias de
Belém, dentre muitos outros elementos.

Outro tipo de fonte com que trabalhamos com um pouco mais de recorrência foram os
relatórios da administração provincial do Grão-Pará, dispostos online no sítio da Universidade
de Chicago (www.crl.edu/brazil/provincial/para). Ainda que a partir do final dos anos 1840,
os relatórios tenham passado a apresentar, inclusive com relativa frequência, as “estatísticas
demográficas” da província, essas informações não foram sistematizadas, ao longo do tempo,
em conformidade a unidades (província, comarcas, municípios, paróquias etc.) e marcadores
(gênero, condição jurídica, geração etc.) homogêneos, o que dificulta o seu uso em análises de
caráter longitudinal. Ademais, por analisarmos um período caracterizado pela desorganização
das estatísticas brasileiras, podemos observar alguns problemas relacionados às informações
apresentadas nos relatórios. De toda forma, cotejando os dados presentes neles aos registros
paroquiais e ao Censo de 1872, abrem-se interessantes possibilidades de investigação.

Os inventários post-mortem e os testamentos também foram relevantes para as análises


propostas, em particular no CAPÍTULO III. Constituem um importantíssimo corpo documental
para o estudo da família, da escravidão, da cultura material e da religiosidade no passado. 26
Em separado, são como uma “fotografia” que dá acesso à observação de conjunturas materiais
e sociais específicas de determinadas pessoas e famílias. Porém, quando analisados em série,
os inventários e testamentos vislumbram a captação de “movimentos de oscilação” (tanto de

26
Cf.: FURTADO, Júnia Ferreira. A morte como testemunho da vida. In: PINSKY, Carla Bassanezi & LUCA,
Tânia Regina de (Orgs.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009, pp. 93-118.
10

permanências, como de rupturas) em padrões comportamentais de diversas ordens; dentre os


quais, por exemplo, as estratégias familiares em relação à transmissão de bens, em função de
determinados marcadores sociais dos herdeiros. 27 Neste estudo, lançamos mão somente de
alguns inventários e testamentos específicos, com o objetivo de acurar a análise desenvolvida
a respeito de uma família elite e de uma escravaria, e suas trajetórias matrimoniais e em torno
do compadrio.28

Passadas as breves considerações sobre cada tipo de fonte que utilizamos neste estudo,
gostaríamos de proceder a uma caracterização mais detida sobre o nosso corpo documental
principal: os registros paroquiais de batismo e de casamento. Trata-se de um esforço de situar
o leitor acerca das principais informações presentes em cada tipo de registro, das limitações
impostas por essa documentação e, igualmente, dos procedimentos adotados para sua coleta e
posterior análise.29

Os chamados registros de “eventos vitais” (batismos, casamentos e óbitos) constituem


um corpo documental privilegiado e bastante utilizado no estudo da família e da população no
passado brasileiro. Existentes para quase todo o mundo católico a partir da Contrarreforma e
de organicidade relativamente homogênea, os assentos paroquiais permitem análises as mais
diversas possíveis; inclusive, dando suporte a tentativas de estudos comparativos, de caráter
conjuntural ou longitudinal, entre regiões distintas – desde que ambas católicas. Sua produção
sistemática, principiada logo após o Concílio de Trento, no século XVI, era norteada por duas
diretrizes principais: a reafirmação e o controle dos sacramentos do batismo, do matrimônio30
e da extrema-unção, e a tentativa, por parte da Igreja, de conhecer o seu “rebanho”.

27
FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1998, p. 227.
28
Mais adiante, no item CAPITULAÇÃO, especificaremos melhor a questão.
29
As considerações apresentadas referem-se apenas aos registros paroquiais de batismo e casamentos realizados
na freguesia da Sé de Belém, durante as décadas de 1840, 1850 e 1860. Para uma visão mais ampla acerca desses
registros e de algumas de suas possibilidades de análise, cf.: NADALIN, Sérgio Odilon. História & Demografia,
op. cit.; BASSANEZI, Maria Sílvia C. Os eventos vitais na reconstituição da história. In: PINSKY, Carla
Bassanezi & LUCA, Tânia Regina de (Orgs.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009, pp. 141-
172.
30
O casamento esteve no cerne das discussões entre católicos e protestantes no contexto das Reformas. Antes do
século XV, o matrimônio não era reconhecido oficialmente enquanto um “sacramento” pela Doutrina Católica;
reconhecimento esse que foi consagrado pelo Concílio de Florença (1431-1445) e ratificado, no século seguinte,
pelo Concílio de Trento (1545-1563). Para os protestantes, que concebiam o batismo e a eucaristia como sendo
os únicos dos sacramentos, o casamento seria uma matéria muito mais leiga do que religiosa. No Seiscentos, boa
parte da Europa sob a influência protestante assistiu à laicização do matrimônio, sendo a contração de núpcias
permitida, inclusive, aos sacerdotes. Outras normatizações em torno do casamento, a exemplo das “interdições
matrimoniais” por parentesco consanguíneo e por afinidade, também foram importantes pontos de tensão. Sobre
a questão, ver: WATT, Jeffrey. The impact of Reformation and Counter-Reformation. In: KERTZER, David
& BARBAGLI, Marzio (Orgs.). The History of the European Family, v. 1: Family life in early Modern Times.
New Haven/London: Yale University Press, 2001, pp. 125-154.
11

Assim como os inventários post-mortem, podemos considerar os registros paroquiais


de batismo, casamento e óbito como sendo fontes seriais por excelência, mas que também dão
ensejo a análises de tipo relacional, condizentes à reconstrução de trajetórias de indivíduos ou
grupos específicos. Seu enquadramento na categoria de fontes com vocação serial diz respeito
principalmente a três características marcantes dos registros de “eventos vitais”. Em primeiro
lugar, ao seu caráter eminentemente massivo (abarcam uma parcela alargada da sociedade, de
pobres livres a ricos escravistas, passando pelos próprios cativos). Em segundo lugar, ao seu
caráter igualmente reiterativo (trata-se de fontes disponíveis, sem maiores lacunas, em relação
a razoáveis períodos de tempo). E, em último lugar, à relativa homogeneidade com que suas
informações são apresentadas ao longo o tempo.31

A maior parte de nossa pesquisa foi desenvolvida no acervo da Cúria Metropolitana de


Belém, onde estão disponíveis as séries de registros paroquiais de batismo e de casamento que
sustentam este estudo. Ao todo, foram coletados 1.379 registros paroquiais de casamento da
freguesia da Sé de Belém, que compreendem, ininterruptamente, o intervalo de 1840 a 1870.
Dessa mesma paróquia, foram computados 2.608 assentos de batismo, correspondentes a uma
amostragem de todos os registros existentes para o mesmo intervalo.

Em face do grande número de assentos de batismo existentes para todo o recorte da


pesquisa (1840-1870), não foi possível arrolar todos os registros. Optamos por coletar apenas
os assentos referentes aos anos terminados em zero ou cinco, à exceção dos anos de 1840
(que não consta nos livros da freguesia) e de 1850 (em que o padre responsável pela feitura
dos registros acabou não diferenciando os batismos de livres dos de escravos). Com vistas a
não estendermos demais o ínterim entre um ano pesquisado e outro, o que poderia implicar a
desconsideração de possíveis variações intradécadas, coletamos, em substituição àqueles, os
anos de 1842 (o primeiro constante nos livros da paróquia) e de 1848 (nem o ano de 1849,
nem o de 1851, apresentavam a diferenciação entre livres e cativos). Todos os anos arrolados
perfizeram, como destacamos há pouco, um total de 2.608 registros, sendo 1.775 (68%) em
que foram batizadas crianças livres e 833 (32%) em que foram batizadas crianças escravas.

Em geral, os registros paroquiais de batismo da Sé, relativos às décadas de 1840, 1850


e 1860, são muito sucintos. Apresentam a data em que ocorreu o evento; o nome da criança
batizada; os nomes do pai (quando declarado) e da mãe da criança (quando declarado); os

31
A respeito da construção de séries documentais e suas implicações para uma História Social, cf.: FARINATTI,
Luís Augusto. Construção de séries e micro-análise: notas sobre o tratamento de fontes para a História
Social. In: Anos 90, Porto Alegre, 15(28), jul./2008, pp. 57-72.
12

nomes do padrinho e da madrinha; o local onde ocorreu o evento, o padre celebrante e o padre
responsável pela feitura do registro. No caso dos escravos, também eram declarados os nomes
dos seus respectivos proprietários, a quem os registros serviam igualmente como atestados de
posse. A quantidade e a qualidade das informações apresentadas variavam conforme o grupo
social arrolado. Quando da elite, os registros costumavam ser mais completos, apresentando
por vezes referências aos nomes dos avós paternos e maternos das crianças batizadas.

Porém, nem mesmo entre um determinado grupo social as informações se dispunham


de forma padronizada e homogênea. Se, por um lado, alguns registros chegavam ao grau de
detalhamento de explicitar as relações entre o padrinho e a madrinha, bem como as relações
de ambos com o batizando; por outro lado eles eram em pouco número e a grande maioria dos
assentos pesquisados restringia-se a apresentar apenas os nomes dos indivíduos diretamente
envolvidos nos eventos. Não indicavam, nesse sentido, quaisquer outros elementos que nos
permitiriam desenvolver análises mais sofisticadas sobre determinados aspectos, como, por
exemplo, as preferências de escolha dos padrinhos dentre alguns grupos de migrantes ou,
então, de que modo a condição nupcial dos sujeitos era ou deixava de ser determinante na sua
seleção enquanto padrinhos ou como madrinhas.

A partir desses assentos, dois grupos são discerníveis com maior facilidade; a saber, a
elite e os escravos. Seus respectivos registros vinham quase sempre acompanhados por termos
de distinção ou termos de mácula social. As mulheres da elite eram distinguidas pelos termos
“Dona”, enquanto os homens de tal condição eram apresentados de maneiras diversas, que via
de regra os associava a títulos nobiliárquicos e honoríficos, a patentes militares ou, então, a
cargos da administração provincial. Os cativos, por seu turno, tinham a sua condição social
explicitada constantemente. Ademais, eram associados às “cores” “preta”, “mulata”, “cafuza”
ou “crioula”. O grande problema, no trabalho com os registros de batismo, é tentar definir
com maior clareza a grande massa de indivíduos de condição livre que não pertencia à elite.
Relativamente à imensa maioria desses multíplices segmentos da população livre, os assentos
de batismo são inconclusivos no sentido de evidenciar, com efeito, a sua real posição social.

Diferentemente dos registros de batismo, foram pesquisados todos os casamentos entre


os anos de 1840 e 1870, perfazendo um total de 1.379 registros. Casaram-se, ao todo, 1.257
(91,1%) homens livres e 122 (8,9%) escravos. Entre as mulheres, contraíram núpcias 1.280
(92,8%) livres e 99 (7,2%) cativas. Os registros paroquiais de casamento pesquisados eram
mais padronizados que os de batismo. Apresentavam informações tanto acerca dos nubentes,
como acerca do rito nupcial em si. Dos nubentes, informavam: nome; condição sociojurídica
13

(quando escravos, referenciava-se à cor e ao nome do senhor); filiação; naturalidade; paróquia


de moradia, estado conjugal (solteiro ou viúvo) e se o enlace ocorreu sob perigo de vida. Dos
ritos, informavam: a data e o local em que ocorreu o matrimônio, os nomes das testemunhas e
dos padres responsáveis pelo evento e pelo registro. Em alguns casos específicos, os registros
apresentavam o grau de parentesco (consanguíneo ou espiritual), se houve cópula carnal e/ou
se os noivos viviam em concubinato. Muito raramente os registros indicavam também o turno
(matutino, vespertino ou noturno) em que teve vez o enlace.

A qualidade das informações apresentadas variava de forma homogênea, conforme o


grupo social arrolado. Entre a elite, os registros eram mais completos, informando os postos,
patentes e cargos ocupados pelos nubentes e, por vezes, até os nomes de seus avós paternos e
maternos. Entre os cativos, sua condição social era explicitada frequentemente, sendo também
relacionados às “cores”, como nos batismos. Por apresentarem um quadro mais completo dos
indivíduos relacionados ao evento, os casamentos dão ensejo a um trabalho mais sofisticado
com diversos marcadores sociais, o que permite ampliar o raio de análise para além de livres e
escravos, abarcando também migrantes brasileiros ou estrangeiros, e sujeitos sociais diversos.
Por outro lado, por ter o matrimônio um recorte socioeconômico bem definido, esses eventos
não tinham uma abrangência social tão ampla como a dos batismos.

Todos os registros coletados foram organizados em duas bases de dados do Microsoft


Access, que possuíam interface. Os dados provenientes de cada batismo e de cada casamento
foram inseridos seguindo uma padronização necessária às posteriores filtragem e exploração
sumária dos dados, particularmente no que diz respeito aos nomes e às datas. Concluída a
pesquisa dessas fontes, passamos a dispor de um mosaico de vários batismos e casamentos – e
cada evento passou, então, a fazer parte de um todo. Procedendo à filtragem desse mosaico
em função, por exemplo, de marcadores sociais específicos, tínhamos em nossa frente não
apenas as tendências de casamento dos escravos, porém o comportamento matrimonial dos
escravos homens e das mulheres cativas; e não somente as tendências gerais de casamento de
portugueses, mas os de homens e mulheres de origem lusitana. O singular (cada registro),
materializado no plural (as bases de dados), volta a poder ser evidenciado em suas múltiplas
configurações e especificidades, a partir deste procedimento.

Durante a coleta das informações, a inserção nas bases de dados e a posterior análise,
deparamo-nos com o que Michael Anderson chamou de o “problema de significado”, inerente
à abordagem demográfica da História da Família. Segundo o autor, pelo fato de as fontes não
terem sido produzidas para os fins de pesquisa com que são utilizadas, há nesse emprego dois
14

“problemas de significado”. Tomemos como exemplo os assentos de casamento. Uma análise


serial deles deve considerar, no entendimento de Anderson, (1) o que eles representavam para
quem os registrou e (2) os sentidos e significados dos comportamentos a ele associados para
os seus próprios contemporâneos.32

O primeiro aspecto apontado pelo autor é atinente à crítica documental, procedimento


sine qua non de qualquer trabalho historiográfico.33 No caso dos registros paroquiais, nosso
corpo documental principal, coube-nos questionar os critérios adotados pelos coadjutores na
feitura dos assentos de batismo e casamento. Ao mesmo tempo em que os dados precisavam
ser coletados de forma padronizada, de modo a tornar factível a abordagem serial proposta, os
indícios e as “pistas” deixados nos registros também não poderiam ser desconsiderados, uma
vez que poderiam ser aspectos reveladores de questões importantes à análise desenvolvida. 34

O segundo ponto respeita à necessidade de “qualificar” e apreciar os dados arrolados.


Na feliz expressão de Albert Soboul: “para descrever de maneira válida, é necessário situar”.35
Portanto, se os indicadores seriais são, em última instância, evidências de práticas arraigadas e
de padrões socioculturais, faz-se necessário perscrutá-los à luz de sua conjuntura econômica,
estrutura demográfica, fatos sociais, eventos políticos etc., com o objetivo de constituir-se um
amplo quadro de análise da sociedade da época.36 Em consonância a essa perspectiva, coube-
nos cotejar os números advindos dos registros de batismo e casamento ao Recenseamento de
1872, aos relatos de viajantes e a outras fontes de natureza diversa.

Por fim, é importante destacarmos que não somente o diálogo documental pautou este
estudo. A família se consubstancia em um campo interdisciplinar por excelência; logo, a sua
análise histórica deve considerar as contribuições efetivas dadas pelas demais ciências sociais
à temática, sobretudo pela Antropologia, pela Sociologia e pela Demografia.37 Nesse sentido,
não apenas nos apropriamos de conceitos caros a essas disciplinas, como também lançamos
mão de instrumentos de análise da Demografia e, em menor medida, também da Economia.
Se a operacionalização do conceito de reprodução social foi de suma importância às reflexões

32
ANDERSON, Michael. Approaches to the history of the western Family, 1500-1914. Cambridge: Cambridge
University Press, 2001 [1980], pp. 16 e ss.
33
Cf.: BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001
[1949].
34
GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, Emblemas, Sinais: morfologia e
história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989 [1986], 143-179.
35
SOBOUL, Albert. Descrição e medida em história social. In: LABROUSSE, Ernest et ali. (Orgs.). A
História Social: problemas, fontes e métodos. Lisboa: Edições Cosmos, 1973 [1967], p. 39.
36
NADALIN, Sérgio O. História & Demografia, op. cit., p. 84.
37
HAREVEN, Tamara. The history of the family as an interdisplinary field. In: RABB, Theodore (Ed.). The
family in History. New York: Harper Torchbooks, 1973, pp. 211-226.
15

desenvolvidas, o mesmo nós podemos dizer dos marcadores sociais e das razões de sexo e de
dependência total.38 Mas, se por um lado, prescindir desses subsídios teórico-metodológicos
implicaria o risco de empobrecer as análises feitas; por outro, devemos reconhecer que nossa
formação como historiador tornou sua aplicabilidade limitada.

REFLEXÃO HISTORIOGRÁFICA

Esta seção tem enquanto objetivo analisar o panorama dos estudos históricos a respeito
da família. Longe de ter a ambição de abranger todas as pesquisas produzidas acerca do tema
na historiografia, buscamos traçar as suas linhas mais gerais. A seção encontra-se dividida em
quatro partes. Inicialmente, tecemos algumas considerações iniciais sobre a historiografia da
família, evidenciando as suas principais abordagens e as semânticas do termo “família”. Em
segundo lugar, tratamos de que modo a família e uma das suas temáticas afins – a população –
foram tratadas na historiografia paraense. Em seguida, ampliamos a escala de observação,
refletindo sobre a presença dos estudos da família na historiografia brasileira para, por fim,
discutirmos designadamente nossos dois objetos principais nesta pesquisa: o casamento e o
compadrio. É importante reiterarmos que se trata de proceder a ponderações mais gerais. Ao
longo do desenvolvimento do presente estudo, a bibliografia específica das temáticas em voga
de discussão será mais bem analisada.

A FAMÍLIA NA HISTORIOGRAFIA: ASPECTOS GERAIS

O termo “família” é, para os estudiosos das Ciências Sociais, bastante controvertido,


uma vez que são inúmeras as formas de organização humana que podem enquadrar-se em
seus múltiplos conceitos e definições. Como elucida Lewis Morgan, a palavra família deriva
do latim familia, e remetia-se em sua semântica original à ideia de casa ou patrimônio, e não à
ideia de descendência ou de parentesco.39 Na Época Moderna, os dicionários portugueses,
franceses e ingleses definiam-na tanto em relação à ideia de parentesco (seja ele consanguíneo
ou por afinidade), quanto em relação à ideia de coabitação. Nesse sentido, como “família”

38
Todos os conceitos e razões utilizados são devidamente explicados ao longo do texto.
39
MORGAN, Lewis Henry. Ancient society. London: MacMillan & Company, 1877.
16

entendia-se pessoas sem vínculos de parentesco que moravam conjuntamente, assim como
pessoas aparentadas que porventura morassem afastadas.40

Nos séculos XVI, XVII e XVIII, a concepção de família não se reduzia à noção de
família nuclear tal como esboçada por Lévi-Strauss, ou seja, como sendo composta por um
pai, uma mãe e sua prole coabitando em um mesmo grupo doméstico. Afinal, quanto àquele
período, não podemos desconsiderar as ligações desse núcleo central com a linhagem e o
parentesco, por um lado, e com a concepção de domesticidade, por outro.41 A imagem de uma
organização familiar ocidental centrada na família nuclear, vigente nos dias de hoje, é fruto de
uma série de transformações nos sentidos de ser e de pertencer a uma família, operadas
notadamente a partir do século XIX,42 em meio a um processo que, inclusive, ocorreu em
simultaneidade aos primeiros esboços sistemáticos de análise sobre a família ocidental.

A problematização da família europeia como um objeto de pesquisa iniciou-se com a


tentativa, por parte de alguns observadores oitocentistas como Fustel de Coulanges, Alexis de
Tocqueville, Émile Durkheim e Frédéric Le Play, de encontrar um significado à sociedade
cada vez mais fragmentada em que vivenciavam. 43 Frédéric Le Play e Émile Durkheim talvez
tenham sido os dois mais importantes teóricos sociais acerca da família no século XIX.
Enquanto Le Play defendia a ideia do modelo de “família tronco” como o melhor para se opor
à “desorganização social” por ele assistida, Durkheim destacava a importância do meio social
na configuração das famílias sem, contudo, correlacionar sua perspectiva evolucionista a uma
escala de valores. A família tradicional não seria mais, nem menos “perfeita” que a família
moderna; elas seriam distintas haja vista as circunstâncias históricas em que se desenvolveram
serem também diferenciadas.44

Não raro, a ideia de família encontra-se associada a um discurso de crise na estrutura e


na instituição familiar, sobretudo no que tange aos seus valores morais. A repercussão dessa
associação nos escritos acerca da temática, presente desde pelo menos os meados do século
XIX, pode ser assimilada, ainda hoje, em torno de dois polos: o primeiro, concernente à crise
na família contemporânea, que remonta a um passado idealizado, onde os “bons costumes”
sobrepujavam comportamentos considerados lascivos; e, o segundo, que parte em defesa da

40
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de casamento no Brasil colonial. São Paulo: T. A. Queiroz: EDUSP,
1984, p. 03; FLANDRIN, Jean-Louis. Famílias: parentesco, casa e sexualidade na sociedade antiga. Lisboa:
Editorial Estampa, 1991 [1984], p. 12.
41
FLANDRIN, Jean-Louis. Famílias, op. cit., p. 18.
42
SHORTER, Edward. A formação da família moderna. Lisboa: Terramar, 1995 [1975].
43
CASEY, James. A história da família. São Paulo: Editora Ática, 1992 [1989], p. 24.
44
SEGALEN, Martine. Antropología histórica de la familia. Madrid: Taurus, 2006 [1981], pp. 26-28.
17

família contemporânea, argumentando que a instituição familiar e, consequentemente, as


relações familiares, devem se plasmar aos ideais de modernidade vigorantes em determinado
contexto sócio-histórico.45

A diversidade nas formas de conceituar e definir a família reflete-se nos modos pelas
quais essa instituição é estudada. Atualmente, as três principais abordagens historiográficas a
respeito da família são: a demográfica, a dos “sentimentos” e a da economia doméstica. Cada
uma delas possui perspectivas, enfoques, metodologias e objetos de pesquisa privilegiados, e
distintos entre si. Conquanto certas abordagens deem respostas mais concretas a determinados
questionamentos, não há uma abordagem melhor que a outra, uma vez que, grosso modo, elas
acabam sendo complementares na compreensão das experiências familiares no passado. 46

A abordagem demográfica, influenciada pela metodologia francesa da Reconstituição


de Famílias de Louis Henry e pela historiografia inglesa do Cambridge Group for the History
of Population and Social Structure,47 sistematizou o estudo da família. As antigas abordagens,
embasadas em fontes de natureza literária e que enfocavam em grupos de elite, deram lugar, a
partir dos anos 1950, à coleta serial de certas fontes (em especial, os recenseamentos antigos e
as atas paroquiais de batismo, casamento e óbito) que possuíam maior abrangência social. As
discussões passaram a focalizar, principalmente, os padrões fecundidade, a nupcialidade e a
estrutura dos grupos domésticos.48 Além de terem despertado um maior interesse da História
Social pelas estruturas de parentesco,49 algumas das problemáticas propostas pela Demografia
Histórica levaram os historiadores a problematizar a família em outras perspectivas, sobretudo
em forte diálogo com a pujante corrente da “História das Mentalidades”. 50

A metodologia de “Reconstituição de Famílias”, tal como proposta por Louis Henry e


Michel Fleury, estava baseada na lógica de organização social e familiar do Ancien Régime
francês. A partir de amplos levantamentos de registros paroquiais de batismo, casamento e
óbito, a reconstituição dava-se, especialmente, em função dos “sobrenomes”, que na França
eram transmitidos através de um sistema regular. A homogeneidade na perpetuação dos nons

45
Ibidem, p. 30.
46
ANDERSON, Michael. Approaches to the history of the western Family, op. cit.
47
Sobre o Cambridge Group e toda a sua contribuição para a historiografia da família, ver: SCOTT, Ana Silvia
Volpi. A historiografia do “Cambridge Group”: contribuições ao estudo da família e do grupo doméstico.
Paper apresentado no XIV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, 2004. Mimeo.
48
ANDERSON, Michael. Approaches…, op. cit., pp. 04-24.
49
HOBSBAWM, Eric. Da história social à história da sociedade. In: Sobre História. São Paulo: Companhia
das Letras, 1998 [1997], p. 96.
50
ARIÈS, Philippe. A história das mentalidades. In: LE GOFF, Jacques (Org.). A História Nova. São Paulo:
Martins Fontes, 2005 [1978], pp. 214-215.
18

de famille, aliada à estabilidade espacial e geográfica da população francesa e às reduzidas


taxas de ilegitimidade no país (a técnica abrangia apenas a família legítima), possibilitaram
excelentes resultados práticos na aplicação do método.51

Mas, o mesmo não pôde ser aplicado, tal como proposto, ao contexto luso-brasileiro,
onde: a transmissão dos sobrenomes, metadado privilegiado pelo método de Henry e Fleury,
não seguia uma lógica comum; a dinâmica populacional era pautada por uma relação entre
estabilidade e mobilidade (não permitindo a reconstituição de uma determinada comunidade,
nem mesmo de muitas gerações de uma mesma família); 52 as séries de “eventos vitais” estão
por vezes incompletas e encontram-se altas taxas de ilegitimidade. A realidade luso-brasileira
ensejou a elaboração de métodos alternativos, como os de “Reconstituição de Paróquias” de
Maria Norberta Amorim, em Portugal, e de reconstituição de famílias por listas nominativas,
de Maria Luiza Marcílio, no Brasil.53

A abordagem dos “sentimentos” foca os significados de ser e pertencer a uma família,


preocupando-se não com a estabilidade ou com as mudanças estruturais, mas, sobretudo, com
os “sentidos” da família. Para autores como Edward Shorter, Philippe Ariès, Lawrence Stone,
Jean-Louis Flandrin e Alan Macfarlane, a família é, antes de tudo, uma ideia. As discussões
dessa abordagem têm enfoque no processo de mudança social que configurou a ascensão da
família moderna; na privacidade/domesticidade e nas transformações ocorridas nas relações
interpessoais; nas funções do casamento, nos papéis sociais de gênero e nas atividades quanto
ao comportamento sexual.54 Essas pesquisas, via de regra caracterizadas por recortes de longa
duração, apreendem a família enquanto um microcosmo social de observação privilegiado, a
partir do qual é possível perceber o horizonte mais amplo de mudanças sociais e culturais. 55

A abordagem da economia doméstica, cara aos estudos sobre a família do período pré-
Industrial, analisa o domicílio como uma unidade doméstica de produção, trabalho e consumo
– dando destaque ao “comportamento econômico” de cada um de seus membros. Os trabalhos
dessa abordagem são produzidos por um grupo heterogêneo de intelectuais que abrange, além
dos próprios historiadores, sociólogos e economistas. As principais discussões desenvolvidas

51
HENRY, Louis. Técnicas de análise em demografia histórica. Lisboa: Gradiva, 1988.
52
AMORIM, Maria Norberta. Evolução demográfica de três paróquias do Sul de Pico, 1680-1980. Guimarães:
Instituto de Ciências Sociais/Universidade do Minho, 1992; MARCÍLIO, Maria Luiza. Caiçara: Terra e
População. Um estudo de Demografia Histórica e História Social de Ubatuba. São Paulo: EDUSP, 2006 [1986]
53
NADALIN, Sérgio Odilon. A população no passado colonial brasileiro: mobilidade versus estabilidade.
In: TOPOI, Rio de Janeiro, 4(7), jul.-dez./2003, pp. 222-275.
54
ANDERSON, Michael. Approaches…, op. cit., pp. 25-48.
55
STONE, Lawrence. The Family, Sex and Marriage in England, 1500-1800. New York: Penguin Books, 1990
[1977], p. 20.
19

recaem na transmissão do patrimônio, na dinâmica econômica dos camponeses e no impacto


da Industrialização no redimensionamento nas relações produtivas e familiares na Europa.
Apesar da utilização de certas fontes bastante específicas (inventários, documentos de posses,
manuais de trabalho etc.), essa abordagem aproxima-se da demográfica ao também apropriar-
se, mesmo que com um olhar diferenciado, de documentos clássicos da Demografia Histórica,
como os censos e as listas nominativas, por exemplo.56

A FAMÍLIA NA HISTORIOGRAFIA PARAENSE

Ora debruçando-se diretamente sobre estas questões, ora tangenciando-as, a família e a


população do Pará, em muitas das suas dimensões históricas, têm sido presença constante na
produção historiográfica paraense. Não é nosso interesse, nesta subseção, apresentar e discutir
cada trabalho detidamente, nem mesmo elencar todos os estudos feitos a respeito das formas
familiares na historiografia paraense, mas somente elaborar um panorama acerca da presença
da História da Família e da História da População nessa historiografia. Acreditamos que a
produção historiográfica paraense concernente à família e à população pode ser dividida em
cinco fases. Para a definição de cada uma dessas fases, consideramos um conjunto de quatro
elementos interdependentes: (1) o contexto de produção; (2) as especificidades de formação
intelectual e acadêmica dos autores, (3) os objetos de pesquisa privilegiados e, também, (4) as
perspectivas teóricas. São esses quatro elementos que, em linhas gerais, delineiam, delimitam
e concebem coesão às cinco fases.

A primeira fase compreende, grosso modo, estudos produzidos até a primeira metade
do século XX. Caracteriza-se pela análise de estatísticas demográficas oficiais e por pesquisas
acerca da migração, sendo desenvolvidas, em geral, por intelectuais diletantes e vinculados a
órgãos da administração pública. Sobressaem-se, dentre os estudos dessa fase, os trabalhos
elaborados por Ernesto Cruz57 e por Palma Muniz58. Enquanto no primeiro desconstrói-se a
perspectiva reducionista do migrante como seringueiro, no segundo aprofunda-se o exame da
presença migrante no Pará, destacando as estratégias adotadas pela administração paraense
em provento à migração. Antônio Baena e Manoel Barata foram outros dois pesquisadores
que publicaram importantes estudos nessa fase. Embora sua produção fosse mais voltada para

56
ANDERSON, Michael. Approaches…, op. cit., pp. 49-67.
57
MUNIZ, João de Palma. Estado do Grão-Pará. Imigração e Colonização. História e Estatística, 1616-1916.
Belém: Imprensa Oficial do Estado do Pará, 1916.
58
CRUZ, Ernesto. Colonização do Pará. Belém: Conselho Nacional de Pesquisas/Instituto Nacional de
Pesquisas da Amazônia, 1958.
20

a análise da formação socioeconômica do Pará, ela acabava por abranger, também, discussões
mais gerais sobre a população paraense.59

A segunda fase abarca a transição entre a primeira e a metade do século XX. Ganham
relevo, nessa fase, diversos trabalhos feitos por Arthur Cézar Ferreira Reis 60 e os importantes
e pioneiros estudos de Manuel Nunes Dias61, Manuel Nunes Pereira62 e Vicente Salles63. Em
comparação à fase anterior é importante destacarmos que esses autores possuem formação
acadêmica mais consolidada. Ferreira Reis e Nunes Dias foram, respectivamente, professores
da Universidade Federal Fluminense e da Universidade de São Paulo. Foi também nessa fase
em que se produziram os primeiros estudos mais acurados a respeito da presença negra na
Amazônia, com evidência para a clássica obra: O negro no Pará sob o regime da escravidão,
de Vicente Salles, desenvolvida, paralelamente, à outra pesquisa sobre a presença africana na
região amazônica.64

A terceira fase, que compreende as décadas de 1970 e 1980, é marcada pelos primeiros
esforços sistemáticos de análise social da dinâmica populacional da Amazônia. Seguindo uma
tendência já apresentada pela fase anterior, os estudos produzidos pelas “brasilianistas” Robin
Anderson65 e Arlene Kelly-Normand66, bem como por Rosa Acevedo67 e Ruth Burlamaqui de
Moraes68, trouxeram a crítica acadêmica e metodologias mais consistentes para o estudo da
História da População da Amazônia. Com efeito, o diletantismo de outrora havia dado lugar a
historiadores profissionais que, a partir de fontes clássicas da Demografia Histórica (como os
recenseamentos antigos e modernos), produziram algumas das primeiras interpretações acerca
do comportamento demográfico da região no passado. Podemos também observar, nessa fase,

59
BAENA, Antônio L. Monteiro. Ensaio corográfico sobre a província do Pará. Brasília: Senado Federal, 2004
[1839]; BARATA, Manuel de Melo Cardoso. A antiga produção e exportação do Pará. Belém: Torres & Cia.,
1915.
60
Dentre eles: REIS, Arthur Cézar Ferreira. O processo histórico da economia amazonense. Rio de Janeiro:
Editora Nacional, 1944.
61
DIAS, Manuel Nunes. Fomento e mercantilismo: a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e
Maranhão (1755-1778). Belém: EDUFPA, 1970.
62
PEREIRA. M. N. A introdução do negro na Amazônia. In: Boletim Geográfico, Rio de Janeiro, 7(77), ago.
1949, pp. 509-515.
63
SALLES, V. O Negro no Pará, sob o regime da escravidão. Belém: Instituto de Artes do Pará, 2005 [1971].
64
FIGUEIREDO, Arthur Napoleão & VERGOLINO, Anaíza. A presença africana na Amazônia colonial.
Belém: SECULT, 1990.
65
ANDERSON, Robin. Colonization as exploitation in the Amazon Rain Forest, op. cit.
66
KELLY, Arlene M. Family, Church, and Crown: a social and demographic history of the lower Xingu valley
and the municipality of Gurupá, 1623-1889. (Tese de Doutorado em História). Florida: University of Florida,
1984.
67
ACEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth. Du travail esclave au travail libre: le Para (Brésil) sous le Régime
Colonial et sous l'Empire (XVII - XIX siécles). (Tese de Doutorado em História e Civilização). Paris: École des
Hautes Études en Sciences Sociales, 1985.
68
MORAES, Ruth Burlamaqui de. Transformações demográficas numa economia extrativa: Pará (1872-1920).
(Dissertação de Mestrado em História). Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 1984.
21

uma aproximação dos seus estudos com a História Econômica, como é o caso, em particular,
das pesquisas de Rosa Acevedo e Ruth Burlamaqui.

Após um hiato de mais de dez anos, Cristina Cancela, 69 Franciane Lacerda70 e Luciana
Marinho71 lançaram mão de novas perspectivas para os estudos sobre a História da População
da Amazônia. Essa quarta fase tem como foco os impactos da “economia da borracha” nas
relações familiares, na organização das elites locais e nas relações tecidas pelos migrantes que
aportaram no Pará entre o final do século XIX e o início do século XX. Diferentemente das
fases anteriores, essa possui grande interface com os estudos subsequentes da quinta fase. A
diferença básica entre os trabalhos produzidos na quarta e na quinta fase são as perspectivas
em que se enquadram; aqueles foram concebidos sem fazer parte de um esforço de um grupo
de pesquisadores de se estudar a História da Família e a da População da Amazônia em várias
frentes, diferentemente destes.

A quinta fase é composta por um grupo mais heterogêneo de pesquisadores, que vai
desde alunos de graduação a doutores. Mesmo que com pesquisas acerca dos mais diversos
temas, esse grupo está diretamente relacionado a um esforço institucional da Faculdade e do
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Pará, em fomentar os
estudos sobre a História da Família e a da População na Amazônia. Por ser uma fase corrente
ainda não podemos abalizar suas características principais, nem mesmo apontar seus trabalhos
mais relevantes. De toda forma, sobressai-se a forte influência da perspectiva demográfica nos
estudos dessa fase. Exemplos dessa evidente filiação são as pesquisas de Otaviano Vieira 72 e
Alanna Cardoso73.

No decorrer dessas cinco fases, foram ainda produzidos alguns importantes estudos a
respeito de diversos aspectos da História da População no Grão-Pará. Trata-se de pesquisas
mais gerais, centradas em perspectivas comparativas ou que abarcam o Brasil como um todo,
69
CANCELA, Cristina Donza. Casamento e relações familiares na economia da borracha (Belém, 1870-1920).
(Tese de Doutorado em História Econômica). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2006.
70
LACERDA, Franciane Gama. Migrantes cearenses no Pará: faces da sobrevivência (1889/1916). Belém:
Editora Açaí/Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia (UFPA)/Centro de Memória da
Amazônia (UFPA), 2010.
71
BATISTA, Luciana Marinho. Muito além dos seringais: elites, fortunas e hierarquias no Grão-Pará, c.1850 -
c.1870. (Dissertação de Mestrado em História Social). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro,
2003.
72
VIEIRA Jr., Antônio Otaviano & BARROSO, Daniel Souza. Histórias de “movimentos”, op. cit. No caso de
Otaviano Vieira não podemos deixar de considerar um guia de fontes elaborado pelo autor, onde são catalogadas
as listas nominativas referentes à antiga capitania do Grão-Pará, produzidas na segunda metade do século XVIII.
Ver: VIEIRA Jr., Antônio Otaviano & RAMOS, Ana Rita O. Guia de Fontes para a História da População na
Amazônia (1750-1800), v. 01. Belém: Editora Açaí, 2011.
73
CARDOSO, A. S. Apontamentos para História da Família e Demografia Histórica na Capitania do Pará
(1750-1790). (Dissertação de mestrado em História). Belém: Universidade Federal do Pará, 2008.
22

e que não constituem parte de algumas dessas fases, nem possuem articulação direta com elas.
Dentre esses estudos, não podemos deixar de apontar a pesquisa pioneira de Robert Slenes, de
1976, sobre a demografia dos escravos brasileiros durante a segunda metade do século XIX 74;
e de Ciro Cardoso, publicada em 1984, sobre a economia, demografia e sociedade da Guiana
Francesa e do Grão-Pará, entre a segunda metade do século XVIII e as primeiras décadas do
século XIX75. Esse dois estudos, em especial, indicam para uma correlação existente entre a
produção historiografia sobre a família no Pará e a historiografia brasileira, cujas linhas gerais
buscamos traçar na próxima subseção.

A FAMÍLIA NA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA

No Brasil, a investigação da família sob uma perspectiva histórica vem produzindo, ao


menos desde os estudos pioneiros de Gilberto Freyre, importantes trabalhos sobre as muitas
formas de organização, de articulação social e de sentimentos de pertencimento a uma família.
Na genealogia desses estudos, a década de 1970 – marcada pelo avanço da História Social na
historiografia brasileira – trouxe um novo fôlego ao estudo da família, caracterizando-o por
uma diversidade temática e pela incorporação de novas análises voltadas à condição feminina,
ilegitimidade, casamento, concubinato e transmissão de fortunas. Não há como deixarmos de
destacar nesse bojo a importância exercida pela demografia histórica, que contribuiu para uma
grande revisão da temática, sendo responsável, dentre outros aspectos, pelo surgimento de
novas pesquisas acerca da família negra, que punham em xeque a ideia de “anomia social”
fortemente presente nas interpretações consagradas à escravidão brasileira. 76

Nos anos 1920, 1930 e 1940 encontram-se as matrizes ideológicas de um pensamento


que iria vigorar por décadas sobre a natureza, estrutura, importância, função e o conceito da
“família brasileira”.77 A grande referência desse período foi, decerto, o clássico Casa-Grande
e Senzala de Gilberto Freyre. Essa obra, que influenciou marcantemente estudos subsequentes
no tema, introduziu o conceito de “família patriarcal”: uma organização familiar formada por
um núcleo central (marido, esposa e a prole legítima) e por membros subjacentes (parentes,

74
SLENES, Robert. The demography and economics of Brazilian slavery: 1850-1888. (PhD. Thesis in History).
Stanford: Stanford University, 1976.
75
CARDOSO, Ciro Flamarion. Economia e sociedade em áreas coloniais periféricas: Guiana Francesa e Pará,
1750-1817. Rio de Janeiro: Edição Graal, 1984.
76
Para uma visão mais geral acerca da família na historiografia brasileira, ver em especial: SCOTT, Ana Sílvia.
As teias que a família tece: uma reflexão sobre o percurso da história da família no Brasil. In: História:
Questões & Debates, 51, jul.-dez./2009, pp. 13-29.
77
SAMARA, Eni de Mesquita. Família, mulheres e povoamento. São Paulo, século XVII. Bauru/SP: EDUSC,
2003, p. 17.
23

afilhados, expostos, serviçais, amigos, agregados e escravos) que, entre si, interagiam sob a
mediação do patriarca da família. Essa família extensa e patriarcal e suas múltiplas relações
seriam, para Gilberto Freyre, um dos principais alicerces da sociedade colonial brasileira.78

Nas décadas de 1950 e 1960 alguns estudos revisionistas, a exemplo do clássico ensaio
de Antônio Candido, voltaram a sua atenção às especificidades regionais e para uma análise
diacrônica da família brasileira, ou seja, considerando as mudanças e as permanências em sua
estrutura e organização, no decorrer do tempo. O papel social da mulher foi revisitado com a
apreensão de sua interação com a família e a sociedade, apesar de a ideia de patriarcalismo se
fazer ainda presente.79 Essa permanência do patriarcalismo como uma temática privilegiada
de análise levou os estudos produzidos naquele contexto a dar ênfase na questão do poder e
das parentelas, como é possível vislumbrarmos nos importantes trabalhos de Emílio Willems
e Charles Wagley.80

O revisionismo da ideia de família brasileira, construído paulatinamente, encorpou-se,


especialmente, na década de 1970, quando os historiadores redescobriram a família como um
objeto de análise. A influência da demografia histórica, o lançar mão de novos documentos e
a busca por novos enfoques de pesquisa, revisitaram o entendimento da questão. Temáticas
como a chefia feminina, nupcialidade, fecundidade e as múltiplas estruturas e organizações
familiares matizaram a própria ideia de patriarcalismo então associada à família brasileira. Os
avanços ocorridos naquela década, como entende Ana Scott, estiveram intimamente ligados
ao desenvolvimento de métodos de análise serial e quantitativa, que forneceram elementos
para uma “nova história da família”.81 A tendência revisionista presente nos anos 1970 veio a
revigorar-se, ainda mais, no decênio seguinte.

Nos anos 1980 novas pesquisas, realizadas através de uma perspectiva interdisciplinar
cada vez mais acentuada, ampliaram os objetos de análise a reflexões acerca da mulher, da
criança, da sexualidade, da educação etc. Não podemos deixar de considerar, nesse contexto,
a importância da obra de Michel Foucault, parte dela recém-traduzida para o português e que
influenciou a produção sobre aquelas temáticas.82 Além disso, as pesquisas acerca da família
brasileira passaram a ser gradualmente substituídas por tentativas de visões conjunturais, com

78
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia
patriarcal. São Paulo: Global, 2006 [1933].
79
SAMARA, Eni de Mesquita. Família, mulheres e povoamento, op. cit., p. 22.
80
SCOTT, Ana Sílvia Volpi. As teias que a família tece, op. cit., p. 18.
81
SCOTT, Ana Sílvia Volpi. A historiografia do “Cambridge Group”, op. cit., pp. 01-04.
82
PRIORE, Mary del. História das mulheres: as vozes do silêncio. In: FREITAS, Marcos Cezar de (Orgs.).
Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Editora Contexto, 2010 [1998], pp. 226-227.
24

a preocupação de comparar as muitas regiões do Brasil entre si e, inclusive, com outras partes
da América Latina. Desse modo, os estudos realizados nas décadas de 1970 e 1980 marcaram
definitivamente a produção historiográfica mais recente sobre a família brasileira. A partir de
então, seria impossível pensarmos, para o Brasil, um sistema familiar uno e homogêneo ao
longo da história. Haveria não mais uma família brasileira, mas as muitas famílias brasileiras,
no plural. Paralelamente, é importante destacarmos também uma crescente produção dedicada
à análise da família cativa ocorrida naqueles anos.83

O desenvolvimento da demografia histórica no Brasil deu ensejo à revisão de diversos


temas e postulados de uma historiografia mais tradicional. Doravante o final dos anos 1970 e
o limiar dos 1980, as percepções a respeito da família escrava, concebidas por pesquisadores
vinculados à chamada Escola Paulista de Sociologia – como Florestan Fernandes, Emília
Viotti da Costa e Roger Bastide –, foram enfaticamente criticadas por trabalhos de caráter
histórico-demográfico, influenciados pela historiografia estadunidense e que utilizaram uma
diversidade de fontes de “vocação serial” (registros paroquiais, listas nominativas, listas de
matrícula de cativos, testamentos, inventários post-mortem, dentre outros). A ideia de anomia
social adjudicada à condição de escravo pela Escola Paulista de Sociologia foi, desse modo,
sendo descontruída por pesquisadores precursores como Robert Slenes, Iraci del Nero da
Costa e Francisco Vidal Luna, dentre outros.84

Os estudos produzidos por esses e demais pesquisadores evidenciaram que não apenas
a família era viável sob o jugo do cativeiro, como a mesma, compreendida em sentido lato,
poderia galgar e manter a sua estabilidade por anos, inserindo-se em extensas e complexas
redes de parentesco. Ora tida enquanto uma estratégia de sobrevivência às condições adversas
da escravidão85 ora como um elemento estrutural do próprio sistema escravista,86 a existência,
a viabilidade e a estabilidade da família escrava são, presentemente, questões absolutas na
historiografia brasileira.

Da década em 1990 em diante, podemos observar uma tendência a revisitar-se o tema

83
Cf.: MOTTA, José Flávio. Contribuições da demografia histórica à historiografia brasileira. IX Encontro
Nacional de Estudos Populacionais, 1994. Caxambu/MG. Anais... Caxambu/MG: Associação Brasileira de
Estudos Populacionais, 1994, pp. 273-295.
84
Para uma visão geral sobre a família escrava e da produção acadêmica acerca do tema naquele contexto, ver:
MOTTA, José Flávio. Corpos escravos, vontades livres: posse de cativos e família escrava em Bananal (1801-
1829). São Paulo: FAPESP/Annablume, 1999; LUNA, Francisco Vidal et. alli. (Orgs.). Escravismo em São Paulo
e Minas Gerais. São Paulo: EDUSP, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009.
85
SLENES, Robert. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava – Brasil
Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
86
FLORENTINO, Manolo & GÓES, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico Rio de
Janeiro. c.1790-c.1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: 1997
25

do patriarcalismo e à dilatação geográfica e temporal dos estudos sobre a família. A ideia não
mais de uma família patriarcal, mas de um patriarcalismo multifacetado presente nas próprias
relações sociais voltou à tona, em estudos como os de Sílvia Brügger 87 e Cacilda Machado.88
Por outro lado, podemos notar, igualmente, um maior número de trabalhos sobre regiões
anteriormente pouco estudadas como o extremo sul, o nordeste e o norte do Brasil. Segundo
Ana Scott: “os estudos mais recentes apostam na aplicação de fontes e metodologias variadas,
na ampliação e no aprofundamento da análise conceitual, e procuram fugir do eixo temporal e
geográfico que havia predominado anteriormente”.89

A HISTORIOGRAFIA A RESPEITO DO CASAMENTO E DO COMPADRIO

O casamento e o compadrio foram e continuam sendo dois temas bastante estudados


na historiografia brasileira, fruto de sua importância para a compreensão das relações sociais e
familiares no passado colonial, imperial e republicano do país. A proliferação das pesquisas
sobre essas temáticas deu-se concomitantemente à expansão dos estudos sobre a família no
Brasil, que acompanhamos nas últimas páginas. Se, por um lado, foram temáticas presentes
naqueles estudos da primeira metade do século XX, foram igualmente revisitados por uma
abordagem mais demográfica ao longo das décadas de 1970 e de 1980. A discussão de que
segue, longe de ter a intenção de abarcar todos os trabalhos produzidos sobre a questão, busca
traçar um abreviado panorama das abordagens conferidas ao casamento e ao compadrio na
historiografia brasileira, sobretudo mais recentemente. As análises mais específicas sobre
essas questões serão desenvolvidas ao longo do trabalho.

Desde a década de 1980 importantes trabalhos têm sido produzidos sobre o casamento.
No Brasil, pesquisas pioneiras como as de Eni de Mesquita Samara, 90 Maria Beatriz Nizza da
Silva91 e Kátia de Queirós Mattoso,92 e, no caso do Pará, o estudo de Rosa Acevedo Marin,93

87
BRÜGGER, Silvia Maria. Jardim. Minas Patriarcal: família e sociedade (São João Del Rei – Séculos XVIII e
XIX). São Paulo: Annablume, 2007.
88
MACHADO, Cacilda da Silva. A trama das vontades: negros, pardos e brancos na construção da hierarquia
social do Brasil escravista. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008.
89
SCOTT, Ana Sílvia Volpi. As teias que a família tece, op. cit., p. 29.
90
SAMARA, Eni de Mesquita. As mulheres, o poder e a família: São Paulo, século XIX. São Paulo: ANPUH
/Marco Zero /FAPESP, 1989.
91
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de casamento do Brasil colonial. São Paulo: T. A. Queiroz / EDUSP,
1984.
92
MATTOSO, Kátia de Queirós. Família e sociedade na Bahia do século XIX. São Paulo: Corrupio; Brasília:
CNPq, 1988.
93
MARIN, Rosa Elizabeth Acevedo. Alianças matrimoniais na alta sociedade paraense no século XIX. In:
Revista Estudos Econômicos, São Paulo, 15, pp. 153-167.
26

procederam a apontamentos iniciais sobre a questão, em seus respectivos contextos espaciais


e cronológicos. Lançando mão de toda uma gama variada de fontes, essas autoras chegaram a
algumas conclusões mais gerais, que gostaríamos de pontuar. Em primeiro lugar, comunga-se
de que o casamento não abarcava, harmoniosamente, todos os segmentos sociais. Além disso,
concorda-se também que determinadas regiões apresentavam maiores índices de casamento
legítimo que outras, o que poderia estar associado ao contexto socioeconômico de cada uma.
Um terceiro aspecto coligido por aquelas e demais autoras remete-se ao fato de o casamento
ser norteado por uma regra ideal, a homogamia, que preconizava que casar-se bem era casar-
se com “iguais”. Cabe-nos analisar questão por questão.

O primeiro ponto leva-nos a refletir não ainda sobre as implicações, mas acerca das
dimensões socioeconômicas em que os casamentos eram concebidos. Essas dimensões, por
sua vez, devem ser consideradas em dois vetores: não apenas o matrimônio, por questões de
ordem material, seria praticamente inacessível a determinados segmentos sociais (é suficiente
considerarmos, por exemplo, os custos dos banhos), como as regras normativas a ele atinentes
também se plasmavam em consonância ao grupo social no qual cada enlace estava inscrito.
Como bem entende Eni de Mesquita Samara, em relação à realidade paulista no século XIX:

“[...] as descrições [das relações familiares - DSB] se desdobram


numa realidade social multifacetada, mostrando que a população
encontrou formas diferentes de organização e que valores normativos
e ideológicos inerentes aos grupos dominantes nem sempre fizeram
parte do cotidiano dos mais pobres”.94

O segundo ponto traz consigo uma discussão acerca da relação entre a nupcialidade e
o meio socioeconômico. Comparando dados existentes para várias regiões do Brasil, Sheila de
Castro Faria constatou que ambientes mais rurais apresentavam, em geral, menores taxas de
ilegitimidade que os espaços urbanos. Para a autora, essa tendência estava relacionada não só
a questões de costume ou da moral, mas também à necessidade, para fins econômicos, de se
manter estável a unidade doméstica nos ambientes rurais, onde o trabalho familiar tinha um
importante papel na organização social.95 Por mais que a explicação conferida por Faria seja
bastante consistente, na medida em que não atribui ao fenômeno apenas um fator, a questão é
ainda mais complexa. No entendimento de Peter Laslett, o grande precursor e um dos mais
importantes estudiosos do tema, não apenas as taxas de ilegitimidade, como também o próprio

94
SAMARA, Eni de Mesquita. Novas imagens da família “à brasileira”. In: Psicologia USP, São Paulo, 3(1),
1992, p. 61.
95
Ver: FARIA, Sheila de C. Família e estabilidade – o paradoxo do movimento. In: Colônia em movimento:
fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, pp. 39-99.
27

conceito de bastardia variavam entre as diferentes culturas e, igualmente, ao longo do tempo.


Haveria, segundo Laslett, algumas comunidades mais propensas à ilegitimidade (as bastardy
prone sub-societies) por razões sociais e culturais de diversas ordens.96

O terceiro ponto diz respeito à homogamia e apresenta, nas suas entrelinhas, uma ideia
marcante da família enquanto uma instituição basilar para a reprodução (biológica e) social. O
casamento era norteado por uma regra ideal, a homogamia, que preconizava que casar-se bem
era casar-se com “iguais”. O matrimônio era concebido, portanto, no seio de grupos sociais,
econômicos e étnicos próximos, sob a influência de valores morais específicos desses mesmos
grupos.97 As pesquisas a respeito do casamento, produzidas por estudiosos de diferentes áreas
(História, Demografia, Antropologia etc.) e referentes aos mais variados contextos e regiões,
apontam para uma acentuada presença da homogamia; configurando-a, desse modo, não como
uma tendência, mas como um padrão de comportamento.98 Por trás dessa preferência estava o
claro interesse em manter, e se possível expandir, a condição social e a rede de influência das
famílias, como poderemos verificar ao longo deste estudo.

As implicações sociais do casamento eram mais variadas, podendo estar associadas à


manutenção do patrimônio familiar, como observou Carlos Bacellar em relação aos senhores
de engenho do Oeste Paulista;99 ou mais voltadas aos seus aspectos políticos, como no caso da
oligarquia paraibana analisada por Linda Lewin.100 Isso para darmos apenas alguns exemplos.
Seja nas esferas social, política ou econômica, o matrimônio era um elemento central para a
constituição das parentelas e das redes e grupos familiares. No entanto, temos a impressão de
que em vários estudos o casamento é entrevisto somente sob um prisma positivo. Explicamos
melhor. Considera-se muito os usos sociais do casamento no sentido de estabelecer alianças
de diversas ordens. Mas, não se costuma considerar o contraponto dessas alianças. A família
A, ao se aliar com a família B por meio de um enlace, poderia consequentemente se indispor
com a família C, adversária da B. Essa ideia será mais bem trabalhada no CAPÍTULO III.

96
LASLETT, Peter. The bastardy prone sub-society. In: LASLETT, Peter; OOSTERVEEN, Karla & SMITH,
Richard (Eds). Bastardy an its comparative history: studies in history of illegitimacy and marital nonconformism
in Britain, France, Germany, Sweden, North America, Jamaica and Japan. London: Edward Arnold, pp. 217-
240.
97
Cf.: SAMARA, Eni de Mesquita. Casamento e papéis familiares em São Paulo no século XIX. In:
Cadernos de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas, São Paulo, 37, 1981, pp. 17-25.
98
SEGALEN, Martine. Antropología histórica de la família, op. cit., p. 109.
99
BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os senhores da terra - família e sistema sucessório entre os senhores
de engenho do oeste paulista, 1765-1855. Campinas: CMU/UNICAMP, 1997.
100
LEWIN, Linda. Política e clientela na Paraíba: um estudo de caso da oligarquia de base familiar. Rio de
Janeiro: Record, 1993 [1987].
28

Os estudos acerca do casamento, já consolidados na historiografia brasileira, abrangem


os mais diferentes contextos espaciais e cronológicos, e os mais diferentes grupos sociais. Dos
casamentos dos migrantes cearenses na Belém da borracha101 aos dos cativos campineiros,102
passando pelo casamento entre a elite do Ceará colonial,103 bem se conhece o tema no âmbito
da nossa historiografia. E, particularmente no caso da discussão do casamento, não podemos
deixar de dar relevo às pesquisas mais ligadas à História das Mentalidades e à Nova História
Cultural, que em certa medida se aproximam da abordagem dos “Sentimentos”, apresentada
anteriormente. Esses estudos geralmente enfocam nas práticas e nas representações atinentes
aos casamentos e aos seus aspectos correlatos, como a conjugalidade, a condição feminina, a
maternidade etc. Um bom exemplo dos trabalhos nesse sentido é a obra Ao sul do corpo, de
Mary Del Priore, onde a autora analisou, dentre outras questões, as representações feminidade
no Brasil colonial.104

Assim como o casamento, o compadrio é outro tema já solidificado na historiografia.


A partir da publicação do pioneiro trabalho de Gudeman e Schwartz105 sobre o compadrio de
cativos na Bahia setecentista, ainda nos idos dos anos 1980, muitos estudos foram produzidos
sobre a questão, em relação aos mais diversos contextos espaciais e temporais. Conquanto
haja na historiografia certo grau de concordância no que respeita a alguns aspectos (a exemplo
da antítese entre os papéis de senhor e padrinho nos batismos de cativos, e a correlação entre a
dimensão das escravarias e as práticas de compadrio), as nuances da escolha dos compadres e
comadres apresentam expressivas variações de acordo com o panorama social, demográfico e
econômico da realidade analisada.106 Se relativamente ao matrimônio havia um padrão geral
de comportamento, no caso do compadrio havia muito mais tendências locais e regionais.

Em recente balanço produzido sobre a temática no âmbito da historiografia brasileira,


Carlos Bacellar elencou o que considerou serem as características fundamentais do compadrio
como objeto de estudo e prática social. O autor observou que, desde a publicação do trabalho
de Gudeman e Schwartz, houve uma grande proliferação dos estudos sobre o compadrio. Em

101
CANCELA, Cristina Donza. Casamento e relações familiares na economia da borracha, op. cit.
102
SLENES, Robert. Na senzala, uma flor, op. cit.
103
VIEIRA Jr., Antonio Otaviano. Entre paredes e bacamartes: história da família no Sertão (1780-1850).
Fortaleza: Ed. Demócrito Rocha, São Paulo: HUCITEC, 2004.
104
PRIORE, Mary Del. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil colônia.
São Paulo: Editora da UNESP, 2009 [1993].
105
GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart B. Purgando o pecado original: compadrio e batismo de
escravos na Bahia no século XVIII. In: REIS, João José (Org.). Escravidão e invenção da liberdade: estudos
sobre o negro no Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense: CNPq, 1988, pp. 33-59.
106
BOTELHO, Tarcísio Rodrigues. Batismo e compadrio de escravos: Montes Claros (MG), século XIX. In:
Lócus: Revista de História, 3(1), jan.-jun/1997, p. 109.
29

suas linhas gerais, esses estudos tomaram enquanto foco o compadrio de escravos e lançaram
mão, como fonte privilegiada, dos registros paroquiais de batismo. O compadrio dos livres,
para Bacellar:

“[...] permanece praticamente intocado enquanto objeto de estudo; o


mundo dos livres somente é lembrado através dos próprios estudos do
compadrio de escravos, quando a família do senhor é percebida
fornecendo padrinhos e madrinhas, ou quando forros são detectados
também nesses papéis. Quase nada, contudo, se conhece de concreto
acerca do compadrio nos amplos segmentos de homens e mulheres
livres em geral, seja nos meios urbanos ou no campo”.107

Como discutiremos no CAPÍTULO II, essa concentração dos estudos do compadrio em


um grupo social específico (os escravos) tem, a nosso ver, íntima relação com fato de quase
todos os estudos serem lastreados nos registros paroquiais de batismo, que em grande parte
das vezes não são claros a respeito da efetiva condição social dos sujeitos livres. À exceção de
indivíduos da elite, que tinham seus nomes acompanhados de marcas de distinção social, a
grande massa dos segmentos livres geralmente tinha somente o seu nome e condição de
legitimidade citados. Isso faz com que se torne muito difícil uma análise de cunho serial que
considere, por exemplo, os casos em que se estabeleceram relações horizontais ou verticais do
ponto de vista social. Um caminho para equacionar esse problema, apresentado pelo próprio
Carlos Bacellar, é atacar o tema à Micro-História, associando os nomes a outros metadados e
fazendo uso de um amplo e variado leque de fontes históricas.

Sendo o compadrio de escravos uma temática já bastante explorada na historiografia


brasileira, quais seriam as suas linhas gerais? A primeira questão que deve ser considerada diz
respeito à condição social dos compadres. Numa perspectiva de hierarquia social, os vínculos
criados poderiam ser horizontais, no caso dos compadres serem igualmente escravos, ou ainda
verticais, no caso dos compadres serem livres. Naqueles, os vínculos poderiam ser endógenos
ou exógenos ao ambiente dos plantéis. No primeiro caso, serviriam para fortalecer o grupo e,
às vezes, para delinear melhor as hierarquias internas à própria escravaria. No segundo caso,
buscava-se criar relações mais largas que extrapolavam os limites do cativeiro e davam ensejo
à ideia de uma comunidade escrava. Já no caso dos vínculos verticais, procurava-se a proteção

107
BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os compadres e as comadres de escravos: um balanço da
produção historiográfica brasileira. In: Simpósio Nacional de História, 26, 2011. São Paulo. Anais... São
Paulo: ANPUH-SP, 2011, p. 01.
30

de indivíduos melhor situados socialmente, desde egressos da escravidão até indivíduos de


grande proeminência social.108

Tal como no tocante aos casamentos, o compadrio de escravos também mantinha uma
relação próxima com a estrutura da posse de cativos. Ambientes marcadamente rurais, que
contavam com uma marcante presença de escravos, não somente possibilitavam uma maior
nupcialidade dentre esse grupo social, como também maiores taxas de laços de compadrio de
caráter horizontal.109 Outro ponto a ser destacado, que é atinente tanto ao compadrio de livres
quanto ao compadrio de escravos, é a atuação daquilo que Renato Venâncio denominou de
intermediários sociais: indivíduos que poderiam interceder social, política e economicamente,
ligando dois pontos distantes da hierarquia social por meio, também, da concepção de laços
de parentesco espiritual.110 Trata-se de questões que, se agora apenas comentadas, serão mais
bem discutidas do longo deste estudo.

O que podemos perceber por essa breve exposição é que mesmo sendo o casamento e
o compadrio duas temáticas há muito consolidadas em nossa historiografia, ainda há bastante
para ser feito, sobretudo em relação a regiões onde foram pouco estudadas, como no Pará. Em
que medida o quadro construído para outras realidades brasileiras serve como um parâmetro
para o quadro paraense? De que modo as especificidades sociais, econômicas, demográficas e
geográficas do Pará podem ter contribuído para a conformação de uma realidade diferente do
que se analisou, por exemplo, em relação à São Paulo e Minas Gerais? Qual o comportamento
populacional de uma região que até pouco tempo atrás estava associada a uma ideia de “vazio
demográfico”, como a Amazônia? Esperamos, com este estudo, contribuir para a discussão do
casamento, do compadrio e da família no âmbito das historiografias paraense e brasileira.

CAPITULAÇÃO

O presente trabalho encontra-se dividido em três capítulos, sendo o primeiro dedicado


ao casamento, o segundo ao compadrio e, o terceiro, à trajetória de uma família de elite e de
um plantel específico em torno desses elementos. A ideia é que nos dois primeiros capítulos

108
BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os compadres e as comadres de escravos, op. cit., p. 02.
109
RIOS, Ana Maria L. The politics of kinship. Compadrio among slaves in Nineteenth-Century Brazil. In:
The History of the Family: an International quarterly, 5(3), 2000, p. 291.
110
VENÂNCIO, Renato Pinto; SOUSA, Maria José de & PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves. O compadre do
Governador: redes de compadrio em Vila Rica em fins do século XVIII. In: Revista Brasileira de História,
São Paulo, 26(52), 2006, pp. 273-194.
31

sejam apresentadas as tendências mais gerais e as lógicas de ação de diversos grupos sociais
em relação ao casamento e ao compadrio, e que essas sejam matizadas, ao final do estudo, a
partir do exame de dois casos particulares. Se, nos dois primeiros capítulos, buscamos traçar
as preferências de grupos sociais em torno desses elementos, no último capítulo, a estratégia é
diferente; nosso interesse recai, sim, em mostrar que não apenas os indivíduos interagiam com
as demandas sociais, políticas e demo-econômicas que os cercavam, como também poderiam
romper com as tendências gerais e negar empreitadas institucionais.

No primeiro capítulo lançamos mão de uma série de registros paroquiais de casamento


e de outras fontes de natureza diversa, para investigarmos diversos aspectos relacionados ao
matrimônio. O capítulo está dividido em três seções. Na primeira delas, analisamos o quadro
contextual em que os enlaces foram concebidos, com destaque para as mudanças operadas no
traçado urbano de Belém, em sua população e na nupcialidade. Na segunda delas, observamos
de que maneira quatro grupos sociais (a elite, os escravos, os portugueses e os cearenses) se
comportaram em relação à endogamia social (no caso dos dois primeiros) e étnica (no caso
dos dois últimos). Na terceira e última seção, nosso interesse incide no exame do rito nupcial,
atentando para seu movimento sazonal, à escolha dos locais de casamento e às estratégias
associadas à seleção das testemunhas.

No segundo capítulo, com esteio numa série de registros de batismo, investigamos os


comportamentos de livres e escravos em face das relações de compadrio. Por limitações de
ordem documental, a parte dedicada ao compadrio de livres se atém notadamente à reflexão
das relações que perpassavam pela elite tradicional, o único segmento da população livre que
é factível de definirmos com maior clareza e segurança, a partir das fontes pesquisadas. Esse
capítulo também se encontra dividido em três seções. Na primeira delas, refletimos acerca do
compadrio de livres, tentando observar a lógica de ação daquela elite tradicional em torno da
questão. Na segunda seção, analisamos o compadrio de escravos. Já na terceira seção, o foco
recai na dinâmica do rito batismal, onde procuramos tecer considerações mais gerais acerca
do batismo, bem como refletir sobre o seu movimento sazonal e os locais das cerimônias.

No terceiro capítulo, procedemos ao estudo de dois casos específicos. Nosso interesse


incide em refletir acerca das trajetórias de casamento e de compadrio em meio a uma família
de elite (os Gama e Silva) e a uma escravaria (do Engenho Bom Intento). Diferentemente dos
demais capítulos, esse se encontra dividido em apenas duas seções, cada uma delas votada a
análise de um caso. Na primeira seção, o enfoque é na família de elite. Buscamos analisar de
que modo o casamento e o compadrio foram utilizados, articuladamente, para constituir uma
32

rede familiar e uma parentela em torno dos Gama e Silva. Na segunda seção, procuramos dar
maior aprofundamento à discussão sobre o casamento e o compadrio de escravos, apontando
para a importância desses elementos tanto para fortalecer esse grupo, quanto para constituir
uma comunidade cativa que extrapolava os limites daquela propriedade e do próprio cativeiro.
33

CAPÍTULO I

O CASAMENTO: QUADRO DEMOGRÁFICO, PREFERÊNCIAS


MATRIMONIAIS E A DINÂMICA DO RITO NUPCIAL

Este capítulo tem como objetivo analisar o casamento na cidade de Belém, nos meados
do século XIX. Almejamos demonstrar, no que tange ao casamento, de que modo diferentes
grupos sociais experimentaram o princípio de um evolver social, econômico e demográfico no
Grão-Pará. Não desconsiderando as particularidades e especificidades que marcaram aquele
processo, mas enfocando, principalmente, no delineamento de padrões e tendências gerais de
comportamento, os muitos números apresentados neste capítulo não se limitam a si mesmos.
Ao contrário disso, eles constituem, essencialmente, indícios de práticas sociais e culturais ora
mais arraigadas, ora voláteis, que se transformavam gradualmente no decorrer das décadas de
1840, 1850 e 1860.

A análise desenvolvida tem suporte numa série composta por cerca de 1.400 registros
de casamento da freguesia da Sé de Belém, que abarcam o período de 1840 a 1870. Por mais
que a análise esteja centrada principalmente em apenas um corpo documental (os assentos de
casamento), trata-se de uma fonte multifacetada e que nos permite investigar permanências e
rupturas nas tendências gerais de casamento de diferentes grupos sociais (livres e escravos,
migrantes e nativos) naquele contexto.111 A heterogeneidade nas informações apresentadas em
relação a diferentes grupos sociais exigiu-nos plasticidade metodológica e analítica. A partir
desses registros, não é possível abordarmos certos elementos (como a preferência matrimonial
em função da condição social do nubente, por exemplo) por meio do mesmo procedimento.
Cada casamento, dentro das suas singularidades, é parte de um mosaico que evidencia os mais
diferentes aspectos relacionados àquele contexto social, econômico e demográfico.

111
Conquanto não possamos perder de mente que o matrimônio possuía um recorte socioeconômico bem
definido, os registros paroquiais de casamento eram, na feliz expressão da Maria Sílvia Bassanezi, “fontes
democráticas”, na medida em que acabavam por contemplar todos os segmentos sociais. Porém, havia nos
registros pesquisados uma clara distinção nas informações apresentadas, conforme a condição social dos sujeitos.
Os assentos atinentes à elite, por exemplo, costumavam ser bem mais complexos, por vezes apresentando a
naturalidade dos pais e os nomes dos avós por parte paterna e materna dos noivos. Para uma compreensão mais
ampla acerca dos registros paroquiais de casamento, as informações apresentadas e algumas possibilidades de
análise, ver: BASSANEZI, Maria Sílvia. Os eventos vitais na reconstituição da história. In: PINSKY, Carla
Bassanezi & LUCA, Tânia Regina de (Orgs.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009, pp. 141-
172.
34

O presente capítulo encontra-se dividido em três seções. De início, almejamos delinear


o quadro sociodemográfico em que foram concebidos os casamentos pesquisados, de modo a
apresentar, em várias de suas nuances, a dinâmica da população de Belém entre 1840 e 1870.
No segundo momento, verificamos de que maneira alguns grupos sociais articularam as suas
preferências matrimoniais em torno das endogamias social e étnica. Na terceira e última seção
examinamos a dinâmica do rito nupcial, atentando à escolha das testemunhas, ao movimento
sazonal e para os locais de casamento.

1.1. GEOGRAFIA DO MERCADO MATRIMONIAL, DINÂMICA POPULACIONAL E NUPCIALIDADE

No ano de 1845, o espanhol Manoel Gomes dos Santos deixou a Galiza (noroeste da
Espanha) rumo à província do Pará. Natural e batizado na freguesia de Santa Maria de Vigo,
localizada numa das mais importantes cidades da região espanhola, Manoel era filho de Isabel
Gomes dos Santos e de pai incógnito. No Grão-Pará, permaneceu solteiro e desembaraçado
por ainda sete anos, quando em 1852 desejou casar-se em Belém. Nesse mesmo ano, foram
abertos os Autos de Justificação de Estado Livre, necessários para a realização de casamentos
de boa parte das pessoas na condição de migrante de Manoel, que culminaram na autorização
para que ele pudesse contrair o matrimônio em qualquer região do Bispado do Pará.112

O enredo narrado nos Autos sugere que o galego rumou sozinho a Belém, perspectiva
que é corroborada pela falta de qualquer referência a sua família (exceto ao nome de sua mãe)
ou a pessoas conhecidas na cidade. Considerando que, por volta de 1845, a província ainda se
reestruturava após a Cabanagem e também não apresentava os sintomas do significativo boom
econômico que viria a vivenciar nas décadas subsequentes, é provável pensarmos que Manoel
migrou voluntária e espontaneamente. Não podemos apontar o que motivou de fato o traslado
do espanhol, nem os porquês da migração. Contudo, no ir e vir entre a Europa e o Grão-Pará
naqueles anos, o mais importante não é conhecermos as motivações de Manoel ter cruzado o
Atlântico solitariamente e desejado contrair núpcias no Pará, mas o fato de ele não ter sido o
único a fazê-lo.

112
ACMB. Autos de Justificação de Estado Livre em que é solicitante Manoel Gomes dos Santos, natural da
cidade de Vigo, em Espanha. Caixa: Estado Livre para Matrimônio / Autos de Justificação (1794-1844). 1852.
35

Nesta primeira seção, apresentamos o quadro contextual no qual os casamentos foram


concebidos, com foco nos seus aspectos e características sociodemográficos. Primeiramente,
refletimos acerca dos processos de reorganização urbana de Belém e da geografia do mercado
matrimonial da cidade, esforço que se justifica pela necessidade de apresentarmos com uma
maior clareza o espaço em que habitava e circulava grande parte dos atores sociais analisados.
Em seguida, investigamos as mudanças e as permanências no quadro sociodemográfico de
Belém ao longo do século XIX, com ênfase nas décadas de 1840, 1850 e 1860. E, por último,
tecemos algumas considerações mais gerais a respeito da nupcialidade das populações livre e
escrava da cidade naqueles anos.

BELÉM: A CIDADE E A GEOGRAFIA DO MERCADO MATRIMONIAL

O padre jesuíta Aires de Casal, ao visitar Belém nos anos 1810, observou uma cidade
dividida em duas freguesias (a de Nossa Senhora da Graça da Sé e a de Santana da Campina),
com seus limites, insalubres, ainda pouco delimitados.113 Naquela altura, o núcleo urbano
contíguo de Belém era composto pelos bairros da Cidade (onde se localizava a paróquia da
Sé) e da Campina (onde estava situada freguesia de Santana). Os dois bairros eram separados
pela travessa São Matheus e limitados, de um lado, pelo rio Guamá, e, do outro, pelo grande
alagado do Piri. Em torno da década de 1830, mais de 20 anos após o relato do padre jesuíta,
o engenheiro militar Antônio Baena descrevia Belém como uma cidade de aproximadamente
2.000 domicílios, 35 ruas, 21 travessas e 12 largos (cinco grandes, sete pequenos), espalhados
entre as duas freguesias.114

Quando do relato de Antônio Baena, permanecia o Piri como um grande problema à


cidade. Por mais que o seu aterramento tivesse sido iniciado ainda no limiar, somente viria a
ser efetivamente concluído nos meados do século XIX. O pântano não apenas dificultava o
acesso entre as duas freguesias, como praticamente impedia a expansão da cidade em direção
às regiões de Nazaré e São Brás.115 O mapa a seguir (FIGURA 1.1) ilustra a divisão de Belém
em dois barros e evidencia o espaço anteriormente ocupado pelo pântano do Piri:

113
AIRES DE CASAL, Manoel. Corografia Brasílica. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1947, pp. 297-298.
114
BAENA, Antônio Ladislau Monteiro. Ensaio corográfico sobre a província do Pará. Brasília: Senado
Federal, 2004 [1839], p. 184.
115
GUIMARÃES, Luiz Antônio Valente. As casas e as coisas: um estudo sobre vida material e domesticidade
nas moradias de Belém (1800-1850). (Dissertação de Mestrado em História). Belém: Universidade Federal do
Pará, 2006, p. 53.
36

FIGURA 1.1
MAPA DE BELÉM NOS MEADOS DO SÉCULO XIX

FONTE: REIS FILHO, 2000.

A conclusão do aterramento representou, muito provavelmente, uma das mais (senão a


mais) significativas transformações no traçado urbano de Belém durante a primeira metade do
século XIX. A partir dele, a estrutura da cidade foi marcantemente modificada, o que permitiu
o início de sua expansão em direção aos núcleos de colonização mais recentes, a exemplo das
já referidas regiões de Nazaré e de São Brás. Durante grande parte do período analisado neste
estudo (1840-1870), Belém esteve divida em dois distritos centrais. No 1º Distrito situavam-
se o bairro da Cidade e a freguesia da Sé, enquanto no 2º figuravam o bairro da Campina e a
freguesia de Santana. No início da década de 1840, como decorrência direta do adiantamento
no aterramento do Piri, podemos observar a ampliação do Campina, com a construção de uma
nova paróquia dedicada à Santíssima Trindade. A expansão de Belém para aquela direção foi
avultada ainda mais ao final dos anos de 1860, com a criação de mais uma freguesia – Nossa
Senhora de Nazaré do Desterro. Essa ampliação do núcleo urbano de Belém foi acompanhada
do aumento no número de distritos da cidade. Concentremo-nos apenas nos dois primeiros.

O bairro da Cidade era a moradia de administradores, negociantes e ricos proprietários


de engenho. Foi a primeira área a ser colonizada em Belém, onde construíram-se as primeiras
igrejas e estavam localizados os palácios de governo e o porto da cidade. Com o aproximar do
século XX, passou a ser representado enquanto um espaço insalubre, assistindo à mudança da
elite local para os espaços de colonização mais recente, como as estradas de Nazaré e de São
37

Jerônimo, e suas respectivas travessas.116 O bairro da Campina, por sua vez, era o espaço mais
povoado da cidade. Nele estavam presentes as principais ruas do comércio de Belém. Lojas,
armazéns e, mais tarde, as mais importantes casas de aviamentos, localizavam-se, em sua
maioria, nesse bairro. Em certa medida, pelo fato de ser um centro econômico para a cidade,
vivenciou antes os sintomas do desenvolvimento econômico da região, com a instalação de
diversos bancos estrangeiros de origem inglesa e estadunidense.117

Nos meados do século XIX, a cidade passou por um processo de readequação urbana
que foi muito além do aterramento do alagado do Piri. Nas décadas de 1850 e, principalmente,
de 1860, Belém começou a consolidar-se enquanto uma urbe cada vez mais cosmopolita. Sua
população adquiria contornos mais multiformes. Consulados e representações de vários países
instalavam-se. Nesse meio, a cidade tornava-se um dos grandes centros políticos, econômicos
e culturais da Amazônia no decorrer do Oitocentos.118 A efervescência vivenciada por Belém
naqueles anos não deixou de ser notada por muitos dos viajantes estrangeiros que a visitaram.
O naturalista inglês Henry W. Bates, que esteve na cidade por duas ocasiões, deixou-nos uma
interessante leitura do processo de reordenamento urbano pelo qual passava a capital do Grão-
Pará. Ao rever Belém em 1859, cerca de dez anos após a sua primeira visita, Bates escreveu:

“Achei o Pará [Belém - DSB] muito modificado e melhorado. Não era


mais aquele lugar com aspecto de aldeia cheia de mato, ameaçando
ruína, que eu vira quando a conheci em 1848. [...] durante muitos anos
o considerável saldo de seu orçamento tinha sido salvo pelo governo
em embelezar a cidade”.119

Mesmo considerando os juízos de valor contidos em algumas narrativas da época, que


podem ser notados em passagens da escrita de Bates, o naturalista foi além na discriminação
das mudanças ocorridas em Belém naqueles meados de século. Destacou a abertura de outras
vias públicas, a nova pavimentação das calçadas e, em especial, a melhoria dos edifícios com
suas longas e elegantes varandas.120 As mudanças noticiadas pelo inglês se devem, em grande
medida, aos excelentes resultados que a exportação da borracha começava a dar naqueles anos
para a economia da região amazônica.

116
CANCELA, Cristina. Donza. Casamento e relações familiares na economia da borracha. (Belém, 1870-
1920). (Tese de Doutorado em História Econômica). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2006, pp. 106-110.
117
PENTEADO, Antônio R. Belém: estudo de geografia urbana v. 1. Belém: Editora da Universidade Federal
do Pará, 1968, p. 120.
118
Idem.
119
BATES, Henry. O naturalista no Rio Amazonas, v.2. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1944, p. 393.
120
Ibidem, p. 392.
38

Como indicamos anteriormente, em paralelo às melhorias urbanas ocorridas no núcleo


central de Belém, houve também um processo de expansão do perímetro da cidade. Em 1872,
conforme os dados do Censo, a Comarca da Capital era composta por doze freguesias: Nossa
Senhora da Graça da Sé; Santana da Campina; Santíssima Trindade; Nazaré do Desterro; São
Vicente de Inhangapi; Santana do Bujaru; São Domingos da Boa Vista; Santana do Capim; S.
Francisco Xavier de Barcarena; São Miguel de Beja, Nossa Senhora da Conceição de Benfica
e Nossa Senhora do Ó de Mosqueiro.121 A região compreendida por essas doze freguesias era
maior do que a atual mesorregião de Belém, abarcando também áreas pertencentes às regiões
guajarina e do Baixo Tocantins. Delas, somente as quatro primeiras (Sé, Santana, Trindade e
Nazaré) compunham o núcleo central de Belém.

Nos livros de assentos de batismos e casamentos do Curato da Sé, deparamo-nos com


sujeitos que habitavam em praticamente todas aquelas localidades. Essa presença, para além
de evidenciar a maior amplitude espacial da freguesia da Sé em termos eclesiásticos 122 e, por
conseguinte, dos registros pesquisados, pode nos ajudar a compreender um pouco mais acerca
da geografia do mercado matrimonial em Belém. Nosso interesse não ainda incide sobre os
i/migrantes, mas sobre aqueles indivíduos que, para contrair núpcias, tiverem de deslocar-se à
capital do Pará.

Diferentemente do que poderíamos imaginar à primeira vista, a expansão do perímetro


de Belém não implicou, consequentemente, a dilatação da geografia do mercado matrimonial
da cidade, ou, dito em outras palavras, da abrangência espacial dos sujeitos que se casaram na
freguesia da Sé. Ao contrário disso, com o adentrar nas décadas de 1850 e 1860, os nubentes
provenientes das regiões mais afastadas passaram a ter uma presença cada vez mais rarefeita
nas atas de casamento dessa paróquia. Por outro lado, a presença de fregueses de Santana e da
Santíssima Trindade casando na Sé, mesmo que ainda tímida, começou a se fazer um pouco
mais aparente. As explicações para essas duas tendências remetem-se, a nosso ver, tanto ao
processo de reorganização urbana pelo qual Belém passou naquele contexto, quanto por um
processo de adentramento da Igreja em regiões situadas no interior da província, nas quais a
sua estrutura e presença eram anteriormente deficitárias.

121
A enumeração das freguesias que compunham Belém foi feita a partir dos dados constantes no Censo de
1872. Já que, como destacamos anteriormente, utilizamos uma versão digitalizada do mesmo, não podemos
especificar uma referência mais completa à fonte.
122
As referências aos limites e à estrutura dos bairros de Belém variavam de acordo com as fontes consultadas.
Se tomarmos enquanto parâmetro os registros paroquiais de batismo e de casamento, podemos apreender que a
abrangência espacial da Sé era, do ponto de vista eclesiástico, maior que sua delimitação civil, circunscrita o
núcleo urbano central de Belém.
39

Nesse sentido, se podemos entender uma maior interface com as freguesias de Santana
e da Santíssima Trindade enquanto uma decorrência do aterramento do Piri, que tornou mais
fluído o fluxo entre as aquelas regiões e a Sé; também podemos compreender a diminuição do
número de nubentes das regiões mais afastadas como uma consequência dessa reestruturação
na Igreja, otimizada pela importante atuação de D. Afonso de Moraes Torres, que não poupou
esforços em expandir a estrutura eclesiástica em direção ao interior da província. 123 Com a
Igreja fazendo-se mais presente, não haveria a necessidade de os indivíduos afastarem-se de
seus locais de moradia para contraírem o matrimônio em Belém. Ainda assim, alguns deles,
principalmente os da elite, continuaram a fazer aquele trajeto. Retomaremos essa questão dos
locais de casamento e suas implicações mais adiante, na última seção deste capítulo.

Naturalmente, como já era esperado, a grande maioria (93,75% dos homens e 96,55%
das mulheres) dos nubentes que se casou na Sé, naqueles meados de século, era composta por
seus próprios fregueses. Quando algum dos nubentes provinha de outra paróquia, era em geral
o noivo, e não a noiva, como podemos concluir pelos percentuais apresentados. Essa prática
era um comportamento típico nas “sociedades tradicionais”, devendo ser considerada muito
mais como um costume, do que como um possível indicativo de uma mobilidade matrimonial
mais forte entre os homens e mais fraca entre as mulheres. Outros estudos, com foco nos mais
variados contextos espaciais e cronológicos, a exemplo do trabalho desenvolvido por Jacques
Dupâquier em relação à vila de Vexin (no noroeste da França) no século XVIII, têm chegado
a conclusões semelhantes.124

BELÉM: A POPULAÇÃO

Muito embora a primeira e, principalmente, a segunda metade do século XIX, sejam


contextos bastante conhecidos pela historiografia paraense, há uma carência de investigações
que tenham foco nas décadas de 1840, 1850 e 1860, ao que os estudos a respeito da população
não constituem exceção. Por tratar-se de um período marcado, também, pela desestruturação
das estatísticas brasileiras,125 a tarefa de tentarmos entrever o comportamento demográfico de
Belém nos meados do século XIX torna-se ainda mais dificultada. Nesse sentido, sem termos

123
NEVES, Fernando Arthur de Freitas. Dom Afonso de Moraes Torres: a romanização na Amazônia antes
de Dom Macedo Costa. In: Revista Brasileira de Histórias das Religiões, Maringá/PR, 3(9), jan./2011, 17p.
124
Cf.: DUPÂQUIER, Jacques. Demografia Histórica e História Social. In: MARCÍLIO, Maria Luiza (Org.).
População e Sociedade: evolução das sociedades pré-industriais. Petrópolis/RJ: Editora Vozes, 1984, pp. 25-46.
125
Ver: INTRODUÇÃO, nota 23, p. 08.
40

trabalhos nos quais nos embasar e sem podermos confiar nos indicadores apresentados pelos
relatórios da administração provincial, buscamos desenvolver uma análise lançando mão dos
próprios registros paroquiais de batismo e de casamento, e das esparsas referências constantes
nos próprios relatórios provinciais.

As alterações ocorridas no traçado urbano de Belém, analisadas na última seção, foram


acompanhadas, também, de mudanças na estrutura da população da cidade. Em linhas gerais,
podemos entender as mudanças na população de Belém, naquele período, enquanto um duplo
movimento. De um lado, uma tendência ao desequilíbrio entre as populações livre e escrava.
Do outro lado, uma tímida alteração no perfil migratório destinado à região, onde a imigração
marcadamente masculina passou a coexistir com uma migração interprovincial, muito menos
seletiva no que respeita ao sexo. O GRÁFICO 1.1 apresenta o movimento geral da população
do Grão-Pará no decorrer do Oitocentos:

GRÁFICO 1.1
POPULAÇÃO DO GRÃO-PARÁ NO SÉCULO XIX

500000
450000
400000
350000
300000
250000
200000
150000
100000
50000
0
1808 1823 1819 1830 1854 1867 1869 1872 1898 1900

FONTE: RESUMO HISTÓRICO DOS INQUÉRITOS CENSITÁRIOS REALIZADOS NO BRASIL126

O GRÁFICO 1.1 evidencia que, de um modo geral, a população da província cresceu de


maneira significativa ao longo do século XIX. Embora não disponhamos de dados relativos à
natalidade e à mortalidade de Belém, o que nos permitiria aferir com maior segurança o ritmo

126
BRASIL. Recenseamento de 1920. Resumo Histórico dos Inquéritos Censitários realizados no Brasil. Rio de
Janeiro: Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio / Diretoria Geral de Estatística, 1922, v. 1 (Introdução).
É importante destacar que não dados relativos ao período imediatamente anterior e posterior à Cabanagem, o que
faz com que o gráfico não vislumbre o possível impacto da revolta na população da província.
41

do crescimento natural de sua população, acreditamos que o aumento da população da cidade,


ao longo do século, deveu-se notadamente à atuação de uma variável demográfica específica:
a migração. As décadas de 1850, 1870 e 1890, indicadas no GRÁFICO 1.1 como períodos de
crescimento mais acentuado, foram caracterizadas pela entrada de um maior contingente de
migrantes.127 O final dos anos 1830 e o início dos anos 1870, períodos sugeridos como sendo
de um crescimento menos acentuado, foram marcados, respectivamente, pela Cabanagem e
pelo refreamento no fluxo migratório destinado à região.128

Após um contexto de intensas conturbações sociais e de ordem pública, marcado pela


reestruturação da província pós-Cabanagem, as décadas de 1850 e 60 propiciaram resultados
bastante significativos nas perspectivas econômica e demográfica. Em paralelo ao aumento na
demanda, no preço e na produção da borracha, a população do Pará apresentou crescimento
muito elevado; entre 1850 e 1872, com uma taxa média de 3,65% ao ano.129 Esse movimento
de recrudescimento demográfico viria a intensificar-se nos decênios seguintes com o aumento
no fluxo migratório destinado à região.130

A dinâmica populacional do Grão-Pará em geral, e de Belém, em particular, não pode


ser dissociada do evolver produtivo e econômico da região. A realidade social e econômica da
cidade nos anos de 1870 era profundamente diferente de sua realidade no limiar da década de
1840, isso sem considerarmos as transformações urbanas tratadas. Antes da consolidação da
borracha como o principal produto de exportação do Pará, o complexo econômico regional
era voltado ao extrativismo do cacau e da castanha, à agricultura de gêneros tropicais (como o
algodão, por exemplo) e, em menor medida, para a pecuária.131 Desenvolvido paralelamente a
essas atividades,132 o crescimento da extração do látex (a matéria-prima da borracha) e da
importância de sua exportação na balança comercial da província ocorreu concomitantemente
ao aumento mais contundente da população provincial por (i)migração.

É importante considerarmos que esse crescimento foi exclusivo da população livre. Os


escravos assistiram a sua representatividade na população da cidade diminuir gradualmente ao

127
WEINSTEIN, Barbara. A Borracha na Amazônia: expansão e decadência (1850-1920). São Paulo:
Hucitec/EDUSP, 1993.
128
Ibidem.
129
ANDERSON, Robin L. Colonization as exploitation in the Amazon Rain Forest, 1758-1911. Florida:
University Press of Florida, 1999, p. 116.
130
WEINSTEIN, Barbara. A Borracha na Amazônia, op. cit., p. 87.
131
Cf.: PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011 [1942].
132
BATISTA, Luciana Marinho. Muito além dos seringais: elites, fortunas e hierarquias no Grão-Pará, c.1850
- c.1870. (Dissertação de Mestrado em História Social). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro,
2004.
42

longo do século XIX. Se os cativos representavam praticamente uma metade da população de


Belém no contexto da Independência, em 1848 eles eram 30% e, em 1872, menos de 15% da
população da cidade.133 Quando da Abolição eram apenas 5% e 3% das populações de Belém
e do Pará, respectivamente. Todavia, pelo menos até o início dos anos de 1870, essa perda de
representatividade da população escrava deveu-se, principalmente, ao expressivo crescimento
da população livre por migração. O contingente escravo manteve-se constante, sendo mais
representativo na população da capital, do que na população da província do Grão-Pará como
um todo.

TABELA 1.1
POPULAÇÃO DO NÚCLEO URBANO CENTRAL DE BELÉM (1848-1872)

FREGUESIA DA FREGUESIA DE FREGUESIA DA FREGUESIA DE


ANOS SÉ SANTANA TRINDADE NAZARÉ TOTAL
Livres Escravos Livres Escravos Livres Escravos Livres Escravos
1848 6.426 3.244 3.642 1.472 1.782 369 -- -- 16.935
1854 6.705 3.005 4.478 1.068 1.633 132 -- -- 17.021
1862 7.449 3.005 4.931 1.068 1.720 132 -- -- 18.305
1872 13.401 2.325 6.942 717 5.908 759 2.870 1.542 34.464

FONTE: RELATÓRIO DA ADMINISTRAÇÃO PROVINCIAL DE 1862134 E RECENSEAMENTO DE 1872

A TABELA 1.1 apresenta a população do núcleo urbano central de Belém nos meados
do século XIX. A partir dela, podemos observar que a freguesia da Sé, entendida aqui em sua
delimitação civil, era o espaço mais populoso de cidade, onde se concentrava o maior número
de livres e escravos de Belém. Sem considerar as implicações da natalidade e da mortalidade
nessa questão, também podemos notar um provável rearranjo espacial da população escrava
de Belém. Ainda que o contingente de cativos tenha tendido a diminuir nas freguesias da Sé,
de Santana e da Trindade, a recém-criada paróquia de Nazaré aparecia, já no início dos anos
de 1870, com praticamente metade da sua população composta por escravos. Essa provável
realocação é indicativa do próprio processo de expansão da cidade de Belém, onde os cativos

133
Cf.: BEZERRA NETO, José Maia. Escravidão e crescimento econômico no Pará (1850-1888). In:
FIGUEIREDO, Aldrin Moura de & ALVES, Moema de Bacelar (Orgs.). Tesouros da Memória, op. cit., pp. 149-
164. Para um maior detalhamento sobre a população escrava no Pará oitocentista, cf.: BEZERRA NETO, José
Maia. Escravidão negra no Grão-Pará (Séculos XVII-XIX). Belém: Paka-Tatu, 2001; SALLES, Vicente. O
negro no Pará sob o regime da escravidão. Belém: Instituto de Artes do Pará, Programa Raízes, 2005 [1971].
134
RPP. Relatório apresentado à Assembléia Legislativa da Província do Pará na primeira sessão da XIII
Legislatura pelo Exmo. Sr. Presidente da Província, Dr. Francisco Carlos de Araujo Brusque em 1º de setembro
de 1862. Pará: Typ. de Frederico Carlos Rhossard, 1862.
43

podem ter acompanhado a mudança de seus senhores às regiões de colonização mais recente,
situadas na freguesia de Nazaré.

Mas, parece-nos haver problemas com alguns dos números apresentados nessa tabela.
Em primeiro lugar, não foram indicadas quaisquer variações na população escrava de Belém
entre os meados dos anos 1850 e o início da década seguinte. O número de cativos da cidade
em 1854 e 1862 era, de acordo com os relatórios da administração provincial, rigorosamente o
mesmo. Em segundo lugar, não podemos deixar de considerar que os intervalos entre os anos
que tiveram as suas populações auferidas são significativos, tornando-se passíveis de ocultar
oscilações na população de Belém existentes entre cada um deles. Um caminho para matizar a
compreensão desses dois aspectos é tentar investigarmos essas possíveis variações por meio
dos registros de batismo, mesmo cientes de que essa relação entre os indicadores dos batismos
e os da população em geral pode ser deturpada por variações na fecundidade e na natalidade,
bem como pela própria amostragem realizada. Vejamos a TABELA 1.2:

TABELA 1.2
POPULAÇÃO LIVRE E ESCRAVA NOS BATISMOS DA FREGUESIA DA SÉ (1842-1870)

LIVRES ESCRAVOS TOTAL


ANOS
Nº. ABS. % Nº. ABS. % Nº. ABS. VARIAÇÃO
1842 227 64,9% 123 35,1% 350 --
1845 241 63,4% 139 36,6% 380 +8,6%
1848 263 66,4% 133 33,6% 396 +4,2%
1855 215 60,9% 138 39,1% 353 -10,9%
1860 141 63,5% 81 36,5% 222 -37,1%
1865 262 61,6% 163 38,4% 425 +91,5%
1870 426 88,4% 56 11,6% 482 +13,4%

FONTE: LIVROS III, IV, VI, VII, VIII E IX DE REGISTROS DE BATISMO DA FREGUESIA DA SÉ DE BELÉM

No que diz respeito à quantidade de escravos e sua proporção na população da cidade,


observamos que há uma convergência entre os indicadores dos batismos e os dos relatórios da
administração provincial. Ainda que tenha havido uma falha de coleta pelos recenseadores, o
mote da questão não foi alterado. Porém, a pretensa linearidade no crescimento da população
da paróquia da Sé, evidenciada nos relatórios, destoa dos indicadores obtidos pelos batismos.
Entre 1848 e 1860, a quantidade de batismos de livres e escravos caiu pela metade, vindo a se
recuperar somente nos meados dos anos de 1860. Notemos que se trata justamente do mesmo
44

período em que muito provavelmente houve uma falha na contagem dos cativos. O problema
de fonte, latente no exame da questão, recairia afinal sobre os relatórios provinciais ou sobre
os registros de batismo?

Acreditamos que, nesse caso particular, o problema seja principalmente dos relatórios.
A década de 1850 foi marcada por duas grandes epidemias na cidade de Belém, uma de febre
amarela e outra da cólera. A discrepância numérica dos dados existentes não nos possibilita
asseverar o verdadeiro grau de morbidade ou mortandade das epidemias, como bem observou
Jane Beltrão.135 No entanto, ainda em meio a essa imprecisão, há uma concordância: em junho
de 1855 a epidemia de cólera chegou ao seu ápice, vitimando mais de 400 indivíduos apenas
na região central de Belém.136 Portanto, ao que nos parece, os indicadores dos batismos dão
ensejo a uma leitura mais precisa do comportamento populacional de Belém naquela década,
do que os próprios indicadores apresentados pela administração provincial, que acabaram por
invisibilizar o provável impacto daquelas epidemias na população da cidade. Mas, vale dizer
que se trata de um problema relativo a um período específico, já que há convergências quanto
às décadas de 1840 e 1860.

Curiosamente, mesmo que no período marcado pelas epidemias de febre amarela e de


cólera, os registros de casamento da freguesia da Sé indicam uma tendência à intensificação
do fluxo migratório destinado a Belém. Vejamos a tabela abaixo (TABELA 1.3):

TABELA 1.3
PRESENÇA DE MIGRANTES NOS CASAMENTOS DE LIVRES DA FREGUESIA DA SÉ (1840-1870)

CASAMENTOS COM MIGRANTES TOTAL DE


ANOS
Quantidade Percentual CASAMENTOS
1840-1845 30 17,5% 170
1846-1850 27 20,3% 133
1851-1855 58 28% 207
1856-1860 57 29,5% 193
1861-1865 54 21,1% 256
1866-1870 75 26,2% 286
TOTAL 301 24,2% 1.245

FONTE: LIVROS I E II DE REGISTROS DE CASAMENTO DA FREGUESIA DA SÉ DE BELÉM

135
BELTRÃO, Jane Felipe. A arte de curar dos profissionais de saúde popular em tempo de cólera: Grão-
Pará do século XIX. In: Manguinhos: História, Ciências, Saúde, Rio de Janeiro, 06, set./200, pp. 833-866.
136
Ibidem, p. 837.
45

A análise da TABELA 1.3 suscita duas questões distintas a respeito da migração. Se,
por um lado, os números absolutos são um indicativo claro de uma intensificação da migração
a Belém iniciada ainda na década de 1850 e com tendência a crescimento nos anos seguintes;
por outro lado temos uma tímida tendência à estabilização do percentual de migrantes casando
na cidade, já a partir do limiar dos anos de 1860. Desse modo, fica evidente que o período de
intensificação na migração foi exatamente o mesmo em que se assistiu a uma alta mortalidade
na cidade, decorrente daquelas epidemias. Os números apresentados na TABELA 1.3 acabam
escamoteando, no entanto, o início de uma mudança no perfil migratório para a região, que se
torna patente ao trabalharmos com os marcadores sociais de gênero e naturalidade, de maneira
articulada.

TABELA 1.4
POPULAÇÃO MIGRANTE QUE CONTRAIU NÚPCIAS EM BELÉM, EM FUNÇÃO DO GÊNERO E DA
ORIGEM BRASILEIRA OU ESTRANGEIRA (FREGUESIA DA SÉ, 1840-1870)

HOMENS (H) MULHERES (M)


TOTAL
ANOS Total Total
Brasileiros Estrangeiros Brasileiras Estrangeiras (H+M)
(H) (M)
1840-1845 10 (34,5%) 19 (65,5%) 29 01 (16,6%) 05 (83,4%) 06 35
1846-1850 02 (7,5%) 24 (92,5%) 26 01 (25%) 03 (75%) 04 30
1851-1855 15 (27,3%) 40 (72,7%) 55 10 (71,5%) 04 (28,5%) 14 69
1856-1860 20 (36,4%) 35 (63,6%) 55 11 (64,7%) 06 (35,3%) 17 72
1861-1865 22 (42,3%) 29 (55,7%) 52 07 (63,6%) 04 (36,4%) 11 63
1866-1870 16 (22%) 57 (78%) 73 10 (45,5%) 12 (54,5%) 22 95
Total 85 204 289 40 34 74 363

FONTE: LIVROS I E II DE REGISTROS DE CASAMENTO DA FREGUESIA DA SÉ DE BELÉM

Pelo exposto na TABELA 1.4, fica claro que os anos de 1850 constituíram um ponto de
inflexão na presença de migrantes no mercado matrimonial de Belém, tanto no que concerne
à maior presença de migrantes casando-se na cidade, quanto no que concerne à diversificação
cada vez maior nas suas proveniências nacionais e regionais. Trata-se de uma inflexão que
naturalmente reflete o gradual processo de reordenamento na estrutura demográfica da cidade.
Um reordenamento que incidiu não apenas na diversificação na origem desses nubentes, mas,
igualmente, no número cada vez maior de mulheres de outras naturalidades consorciando-se
em Belém. O perfil migratório mudou e, por conseguinte, o perfil dos nubentes “não nativos”
também. A quantidade de mulheres migrantes contraindo núpcias no último quinquênio da
década de 1860 praticamente quadruplicou em relação ao primeiro quinquênio dos anos 1840.
46

Além disso, se, entre os homens migrantes, o percentual de estrangeiros casando manteve-se
sempre maior que o de brasileiros, entre as mulheres isso ocorreu somente na década de 1840,
visto que nas décadas de 1850 e 1860 o percentual de mulheres migrantes de origem brasileira
manteve-se sempre superior.

Ao mesmo tempo em que a cidade adquiria ares mais cosmopolitas com a chegada de
indivíduos de diversas origens e com a fixação de instituições estrangeiras (consulados, vice-
consulados, casas comerciais etc.), as naturalidades dos nubentes plasmavam-se em contornos
mais multiformes. Se, no limiar da década de 1840, os migrantes que se casaram na freguesia
da Sé eram principalmente imigrantes e, em sua quase totalidade, portugueses; na década de
1860 esse perfil se modificara, passando a incluir um maior número de migrantes de origem
brasileira (de São Paulo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul etc.) e de algumas outras origens
estrangeiras (de Alemanha, França, Itália, Venezuela etc.).

Os motivos que levaram, primeiro, os indivíduos a irem a Belém e, em segundo lugar,


a contraírem núpcias na cidade, são múltiplos. Os movimentos migratórios caracterizam-se
pela existência de complexos laços interpessoais que podem incluir o parentesco, a amizade
ou mesmo apenas a conterraneidade.137 Muitos podem ter migrado, a exemplo do que talvez
tenha acontecido com o nosso já conhecido espanhol Manoel dos Santos, sozinhos e por livre
e espontânea vontade. Entretanto, para o contexto analisado, não podemos deixar de destacar
toda a importância das políticas públicas de migração e, consequentemente, da formação dos
primeiros projetos de consolidação de núcleos coloniais na região amazônica.

Desde pelo menos os meados do século XIX, a administração provincial do Grão-Pará


implementou uma série de medidas com vistas a promover uma entrada maciça de migrantes,

137
Cf.: MASSEY, Douglas et al. Theories of international migration: a review and appraisal. In: Population
and Development Review, New York, 19(3), September/1993, pp. 431-466. Em um influente ensaio apresentado
na década de 1970, em parte revisitado no decênio seguinte, o sociólogo Charles Tilly classificou as migrações
em quatro grandes categorias – local, circular, em cadeia e de carreira –, cujo critério de definição era baseado
em dois aspectos basilares: a distância e o grau de ruptura com a lógica social da área de origem. Por mais que as
fronteiras entre uma e outra categoria sejam relativamente ambíguas e que, na prática, elas não sejam estanques
(podendo interpenetrar-se e por vezes transformar-se noutra categoria), cada uma representa padrões migratórios
distintos, que separam arranjos sociais inerentes e que as distinguem das demais. De acordo com Charles Tilly,
as migrações locais caracterizam-se por pequenas distâncias, pela pequena ruptura com uma lógica pré-
estabelecida e pela indistinção de gênero (migravam tanto homens, quanto mulheres); as circulares, por destinos
menos diversos e mais distantes, pelo retorno à origem em um intervalo relativamente bem definido e por uma
alta seletividade de gênero (a grande maioria era do sexo masculino ou era do sexo feminino); as em cadeia, pela
alternância de gênero no processo (em geral, primeiro partiam os homens e depois suas famílias), igualmente por
destinos menos diversos e mais distantes, e pela existência de indivíduos, em geral parentes, dando “apoio
logístico” no novo local de moradia dos migrantes; e as de carreira, por possibilidades (de emprego, por
exemplo) mais evidentes e bem definidas no novo local, pelas maiores distâncias e pela indistinção de gênero.
Cf.: TILLY, Charles. Migration in Modern European History. 1976. 44p. (Mimeo). (Disponível em: http://
deepblue.lib.umich.edu/bitstream/2027.42/50920/1/145.pdf; acessado em 23 de março de 2011).
47

de maneira a “desenvolver a agricultura”, suplantar a “falta de braços” e preencher o “vazio


demográfico” na região. Tratava-se de políticas que de início visavam à colonização do Grão-
Pará com imigrantes, e que mais tarde passaram também a considerar os migrantes de origem
brasileira138. A ideia fortemente presente de que a Amazônia prosperaria a partir da lavoura
integrou os discursos das autoridades públicas paraenses até os últimos decênios do século
XIX, mesmo com o processo gradual de consolidação da borracha como o principal produto
de exportação da província. A atitude hostil em relação ao setor extrativo era corroborada pela
quase ausência de indivíduos influentes ligados ao mesmo, pelo extravio de mão-de-obra da
agricultura e pela criação de uma população autônoma de produtores semi-independentes que
não apenas fugia ao controle da administração provincial, como também criava um excedente
econômico que a elite fundiária não tinha condições de se apropriar.139

A população migrante (advinda ou não dos projetos de colonização) que se casou na


freguesia da Sé de Belém, entre os anos de 1840 e 1870, apresentava duas características mais
gerais e bastante importantes. A primeira era o fato de os migrantes que contraíram núpcias na
cidade serem, em sua grande maioria, prole legítima; ou seja, filhos de famílias legitimamente
constituídas, às quais o matrimônio já era um valor presente. A segunda é que, ao menos pelo
que sugere a documentação, o fluxo migratório foi feito em função de grupos familiares, e não
somente pelos indivíduos em questão, os nubentes. Explicamos melhor: além de os nubentes
serem “legítimos”, não foi rara a presença de seus pais como testemunhas de casamento. Isso
significa dizer que, pelo menos no momento do “rito nupcial”, os pais faziam-se presentes. A
ideia de uma “migração em família” é igualmente corroborada, por exemplo, pelas referências
aos ritos ocorridos nas casas de residência dos pais dos nubentes migrantes. Características
que sugerem a ideia da existência de uma migração seletiva em direção ao Pará oitocentista.

138
Palma Muniz e Ernesto Cruz produziram, respectivamente no início e nos meados do século XX, dois
clássicos estudos sobre a migração ao Pará. Enquanto o primeiro matiza a participação social dos migrantes,
ajudando a desconstruir a imagem do “migrante-seringueiro”, o segundo aprofunda esses matizes, focando ainda
nas estratégias adotadas pela administração provincial/estadual em provento à migração. Cf.: MUNIZ, João de
Palma. Estado do Grão-Pará. Imigração e Colonização. História e Estatística, 1616-1916. Belém: Imprensa
Oficial do Estado do Pará, 1916; CRUZ, Ernesto. Colonização do Pará. Belém: Conselho Nacional de
Pesquisas/Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, 1958. Mais recentemente, nos meados da década de
1970, a historiadora americana Robin Anderson produziu um interessante trabalho sobre a migração ao Pará,
analisando desde o final do século XVIII até o limiar do século XX. Fruto de sua tese de doutoramento na
Universidade de Michigan, esse estudo veio a ser publicado posteriormente, nos anos 1990. Cf.: ANDERSON,
Robin. Colonization as exploitation in the Amazon Rain Forest, 1758-1911. Florida: University Press of Florida,
1999.
139
Cf.: WEINSTEIN, Barbara. A borracha na Amazônia, op. cit.
48

NUPCIALIDADE

Nas duas seções precedentes evidenciamos como a cidade de Belém e a sua população
acompanharam diversas mudanças ocorridas ao longo das décadas de 1840, 1850 e 1860. Ao
mesmo tempo em que a cidade como um todo apresentava uma tendência ao crescimento, seja
em seu núcleo central, seja em regiões mais afastadas, a sua população também aumentou, se
rearranjando espacialmente e sinalizando para um desequilíbrio proporcional entre os livres e
os escravos. Em linhas gerais, apontamos que esse duplo movimento implicou, igualmente,
algumas alterações no mercado matrimonial e no perfil sociodemográfico dos nubentes que se
casaram em Belém naquele período, particularmente no que diz respeito a suas naturalidades.
Esta seção tem como objetivo acurar o entendimento dessas implicações ocorridas, focando,
sobretudo, em dois aspectos: a nupcialidade e a condição de legitimidade dos noivos.

Não era apenas a representatividade demográfica que diferenciava as populações livre


e escrava. Os sistemas demográficos e os mecanismos de reprodução social desses segmentos
eram distintos entre si. Em ensaio programático publicado na década de 1980, Maria Luiza
Marcílio propôs uma sistematização de quatro sistemas demográficos prevalecentes no Brasil
oitocentista. Entre os cativos imperava uma mortalidade extremamente alta, uma nupcialidade
baixíssima, o desequilíbrio entre os sexos que tendia à predominância masculina e altas taxas
de ilegitimidade. Entre os livres, especialmente das áreas mais urbanas, prevaleciam uma alta
mortalidade (incluindo aqui a infantil), taxas de natalidade inferiores às dos perímetros rurais,
a presença marcantes de uniões de uso costumeiro estáveis, grande mobilidade espacial e um
crescimento vegetativo intermitente.140 A TABELA 1.5 evidencia as variações na nupcialidade
das populações livre e escrava de Belém, entre 1848 e 1872:

140
MARCÍLIO, Maria Luiza. Sistemas demográficos no Brasil do século XIX. In: MARCÍLIO, Maria Luiza
(Org.). População e Sociedade: evolução das sociedades pré-industriais. Petrópolis: Editora Vozes, 1984, pp.
193-207 Algumas dessas considerações feitas por Marcílio foram revistas em trabalhos subsequentes. No ensaio,
a própria autora reconheceu tratar-se apenas de apontamentos inicias fruto das pesquisas em demografia histórica
produzidas até então. Pesquisas posteriores verificaram, por exemplo, que diferentemente do que havia sugerido
Marcílio, as famílias escravas poderiam obter a sua estabilidade por anos, e que uma dada população escrava
poderia se “manter” por meio de seu próprio crescimento vegetativo, prescindindo da reposição direta de seu
contingente via tráfico. Ver dentre outros: BOTELHO, Tarcísio Rodrigues. Famílias e escravarias: demografia
e família escrava no Norte de Minas Gerais no século XIX. (Dissertação de mestrado em História Social). São
Paulo: Universidade de São Paulo, 1995; MOTTA, José Flávio. Corpos escravos, vontades livres: posse de
cativos e família escrava em Bananal (1801-1829). São Paulo: FAPESP / Annablume, 1999.
49

TABELA 1.5
TAXAS BRUTAS DE NUPCIALIDADE DE LIVRES E ESCRAVOS NA FREGUESIA DA SÉ BELÉM
(1848-1872)

POPULAÇÃO LIVRE POPULAÇÃO ESCRAVA


ANOS Número de Número de Taxa Bruta de Número de Número de Taxa Bruta de
Indivíduos Casamentos Nupcialidade Indivíduos Casamentos Nupcialidade
1848 6.426 31 4,82 3.224 03 0,93
1854 6.705 42 6,26 3.005 09 3,00
1862 7.449 51 6,85 3.005 05 1,66
1872 13.401 78 5,82 2.325 04 1,72

FONTE: LIVROS I E II DE REGISTROS PAROQUIAIS DE CASAMENTO DA FREGUESIA DA SÉ, RELATÓRIOS DA


ADMINISTRAÇÃO PROVINCIAL E RECENSEAMENTO DE 1872

A despeito da pequena amostragem utilizada para o cálculo das taxas de nupcialidade,


cujas variações de ano para ano podem representar, sobretudo em relação aos escravos, muito
mais movimentos aleatórios do que variações efetivas naqueles índices, a TABELA 1.5 aponta
para claras diferenças entre a nupcialidade das populações livre e escrava. Comparativamente,
os cativos tinham muito menos acesso ao casamento legítimo do que os vários segmentos da
população livre. Podemos observar, também, que tanto a nupcialidade dos livres, quanto a dos
escravos, apresentaram tendência de crescimento durante o primeiro quinquênio da década de
1850, a partir de quando tenderam a se estabilizar até pelo menos o início dos anos de 1870. A
nosso ver, essa tendência simultânea ao crescimento e à estabilização possui diferentes causas
e motivações que gostaríamos de pontuar.

No que é tocante ao movimento da nupcialidade dos escravos, não podemos deixar de


considerar, nesse meio termo, alguns eventos que podem ter sido determinantes. O principal
deles talvez tenha sido a promulgação da Lei Eusébio de Queirós, no ano de 1850, e que pôs
fim definitivo ao tráfico Atlântico de escravos. Considerando, adicionalmente, a incapacidade
das elites paraenses em proceder a uma renovação efetiva na escravaria da província por meio
do tráfico interprovincial, o interesse na capacidade reprodutiva das mulheres cativas pode ter
aumentado; e, sendo visto o matrimônio como uma instituição promotora da fecundidade,
aumentar-se-ia consequentemente à nupcialidade. A tendência posterior à estabilização pode
ter estado relacionada ao impacto da abolição da escravatura no sul dos Estados Unidos, que
evidenciou, ainda mais, o próprio caráter de transitoriedade da escravidão brasileira. 141

141
SLENES, Robert. A formação da família escrava nas regiões de grande lavoura do sudeste: Campinas,
um caso paradigmático no século XIX. In: População e Família, São Paulo, 1(1), jan.-jun/1998, pp. 40 e ss.
50

As condicionantes do movimento de nupcialidade da população livre são mais difíceis


de conjecturar. Podemos considerar que com o processo de expansão da cidade, acompanhado
também pela expansão de suas paróquias, a Igreja passou a ser mais bem estruturada, podendo
exercer um controle mais próximo e efetivo sobre os sacramentos. Aliado a isso, as raízes do
ultramontanismo no Grão-Pará datam do decênio de 1840, com a nomeação para Bispo de D.
Afonso de Moraes Torres, que não poupou esforços em ampliar a estrutura da Igreja rumo ao
interior da província.142 Paralelamente a essa questão, é digno de observação o fato do período
em que a nupcialidade dos livres esteve mais altiva (as décadas de 1850 e de 1860) coincidir
justamente com o contexto de epidemias e da chegada de um maior número de migrantes na
cidade de Belém.

Por outro lado, o evolver econômico da região pode ter propiciado a um maior número
de indivíduos as condições materiais necessárias para a realização do casamento legítimo, ao
oferecer-lhes maiores e melhores oportunidades de acesso a emprego e renda, como já sugeriu
Cristina Donza.143 Em relação a esse aspecto, não podemos deixar de considerar o expressivo
crescimento na renda per capita da Amazônia nos meados do século XIX, na casa dos 6,2%.
Trata-se, como indicou Celso Furtado, da maior taxa bruta de crescimento na renda per capita
de todo o Brasil naquele período; bem maior, inclusive, do que ocorria no Centro-Sul do país,
que assistia ao desenvolvimento cada vez maior da economia cafeeira. 144

O quadro construído a partir da análise da TABELA 1.5 evidencia que o casamento não
abrangia, de maneira equânime, todos os segmentos sociais. Como observou Eni de Mesquita
Samara, determinados grupos estavam mais suscetíveis a legitimar suas uniões do que outros,
consubstanciando uma diferença que não estava centrada somente em condições sociais e
econômicas assimétricas, mas, sobretudo, nos distintos significados que o casamento possuía
para cada grupo social, étnico e cultural.145 Pelo que podemos observar tanto pelos registros

142
A consolidação do ultramontanismo no Pará viria no início dos anos 1860, com D. Antônio de Macedo Costa.
Sobre Dom Afonso, Dom Macedo e o movimento ultramontano na Amazônia, ver: NEVES, Fernando Arthur de
Freitas. Dom Afonso de Moraes Torres: a romanização na Amazônia antes de Dom Macedo Costa. In:
Revista Brasileira de Histórias das Religiões, Maringá/PR, 3(9), jan./2011, 17p; NEVES, Fernando Arthur de
Freitas. Solidariedade e conflito: Estado liberal nação católica no Pará sob o pastorado de Dom Macedo Costa
(1862-1889). (Tese de Doutorado em História). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2009.
143
CANCELA, Cristina Donza. Casamento e relações familiares na economia da borracha, op. cit., p. 178.
144
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2011 [1959], pp. 214-
215.
145
Investigando a família na sociedade de São Paulo do século XIX, Eni de Mesquita Samara observou que os
casamentos legítimos predominaram em certos estratos da população, estando circunscritos aos seus grupos de
origem. Os enlaces realizavam-se em círculos limitados e estavam sujeitos a padrões e normas que agrupavam os
indivíduos socialmente. Cf.: SAMARA, Eni de Mesquita. As mulheres, o poder e a família: São Paulo, século
XIX. São Paulo: ANPUH/Marco Zero/FAPESP, 1989.
51

paroquiais, quanto pelo Recenseamento de 1872, o casamento legítimo era uma prática mais
bem adaptada à população livre de Belém, mesmo não que abarcasse todos os seus segmentos
de forma homogênea.

Na paróquia da Sé, entre 1840 e 1870, em cerca de 90% (1237) dos enlaces subiram
ao altar duas pessoas de condição livre. De acordo com os dados do Recenseamento de 1872,
cerca de 12% da população livre da freguesia da Sé era ou houvera sido casada. Em termos
proporcionais, tratava-se de um número significativamente menor do que o mesmo percentual
em relação ao município de Belém como um todo, onde os casados e viúvos perfizeram 30%
da população. Essa diferença pode refletir a própria heterogeneidade que marcava o espaço da
cidade de Belém, demonstrada na seção anterior. É possível que em determinadas regiões, por
motivos de diversas ordens (na seara dos costumes ou por uma necessidade produtiva, por
exemplo), o casamento legítimo fosse uma prática mais enraizada do que em outras regiões.146
Em geral, em meio aos sujeitos de condição livre, o recasamento era uma prática mais comum
entre os homens do que entre as mulheres: nos anos computados, 94 homens e 75 mulheres
livres contraíram segundas núpcias.

Os percentuais de livres e cativos entre os casados e viúvos também confirmam que os


escravos eram, de todos os segmentos sociais, aquele menos suscetível ao casamento legítimo.
Como veremos na próxima seção, ser (ou mesmo ter sido) escravo eram condições que, em
termos matrimoniais, limitavam os indivíduos socialmente; perspectiva que é reforçada pelas
altas taxas de ilegitimidade encontradas em relação aos nubentes desse grupo (95,5% entre
os homens e 87,6% entre as mulheres). Conforme o Censo, somente 5,75% dos escravos da
freguesia da Sé eram ou já haviam sido casados. Trata-se, entretanto, de um percentual menor
do que aquele encontrado relativamente ao município de Belém como um todo, na casa dos
11%. A quantidade de escravos recasando era proporcionalmente menor ainda, refletindo as
dificuldades de acesso ao matrimônio existentes em relação a esse segmento social. Somente
dois escravos do sexo masculino e cinco do sexo feminino casaram-se em segundas núpcias
no Curato da Sé, durante os anos pesquisados.

146
No início da década de 1870, a freguesia da Sé, bem como as de Santana, da Trindade e de Nazaré,
compreendiam um núcleo de perfil mais “urbano” que se diferenciava das outras oito freguesias do município de
Belém, essas mais “rurais”. Como demonstrou Sheila de Castro Faria, os perímetros rurais apresentavam taxas
de legitimidade maiores que os perímetros urbanos; o que estava relacionado, na concepção da autora, não
apenas a questões de costume e da moral, mas também à necessidade, para fins econômicos, de manter-se estável
a unidade doméstica. Cf.: FARIA, Sheila de Castro. Família e estabilidade – o paradoxo do movimento. In:
Colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, pp. 39-99.
52

A TABELA 1.5 e sua análise posterior sugerem que um número maior de indivíduos e
segmentos sociais passou a ter acesso ao casamento. A essa mudança atribuímos, sobretudo,
dois fatores: (1) uma melhoria no acesso à renda e (2) uma melhor estruturação da cidade e da
Igreja. A TABELA 1.6 ajuda-nos a repensar a questão:

TABELA 1.6
CONDIÇÃO DE LEGITIMIDADE ENTRE OS NUBENTES LIVRES (1840-1870)

HOMENS MULHERES
ANOS
Legítimos (%) Ilegítimos (%) Legítimas (%) Ilegítimas (%)
1840-1845 103 (66,5) 52 (33,5) 107 (68,1) 50 (31,9)
1846-1850 88 (69,8) 38 (30,2) 73 (59,3) 50 (40,7)
1851-1855 126 (67,7) 60 (32,3) 105 (55,2) 85 (44,8)
1856-1860 118 (67,0) 58 (33,0) 108 (58,4) 77 (41,6)
1861-1865 165 (67,6) 79 (33,4) 149 (59,6) 101 (40,4)
1866-1870 141 (54,0) 120 (46,0) 130 (46,4) 150 (53,6)

FONTE: LIVROS I E II DE REGISTROS DE CASAMENTO DA FREGUESIA DA SÉ DE BELÉM

Podemos observar que, em especial no último quinquênio estudado, há uma tendência


maior de acesso ao casamento por parte de indivíduos de condição ilegítima. Se, no início dos
anos 1840, mais de dois terços dos homens e das mulheres que contraíram núpcias eram de
condição legítima, verificamos nos anos seguintes uma gradual flexibilização desse quadro,
operada primeiramente entre as mulheres. Com o chegar do final dos anos 1860, tanto entre os
homens, quanto entre as mulheres, o percentual de legítimos e ilegítimos casando era bem
equilibrado, com uma tímida maioria de homens legítimos e de mulheres ilegítimas. Levando
em consideração que, simultaneamente, houve um aumento nas taxas de nupcialidade entre os
homens, reforça-se a perspectiva de que um maior número de indivíduos passou a ter acesso
ao matrimônio. As reduções nos percentuais de legitimidade dos nubentes representam um
indício de que, com o avançar do tempo, o casamento legítimo passou a ser procurado por
aqueles que, no seio de suas famílias, nem sempre conviveram com ele cotidianamente.

Esse quadro viria a sofrer novas alterações nos anos seguintes. A partir dos anos 1870,
verificou-se um significativo aumento na quantidade de nubentes livres de condição legítima
casando-se na freguesia da Sé, ao ponto de, em 1920, aproximadamente 70% dos noivos da
paróquia serem de tal condição.147 Não pretendendo alongar-nos muito na discussão sobre a

147
CANCELA, Cristina Donza. Casamento e relações familiares na economia da borracha, op. cit., p. 176.
53

ilegitimidade, apenas tangenciada neste estudo, gostaríamos de tecer mais alguns comentários
sobre o matrimônio como uma instituição presente no cotidiano dos nubentes. Os percentuais
de i/legitimidade apresentados acima se referem a uma ideia de i/legitimidade formal, ou seja,
eram legítimos os filhos de uniões legitimadas ante a Igreja. Essa concepção retira da seara da
legitimidade a prole dos casais que, muito embora não fossem oficialmente casados, viviam
enquanto tal e não cometiam “escândalo” aos olhos da Igreja e da comunidade. Em relação ao
período analisado, o viver como casados pode ter sido parâmetro tão forte quanto o próprio
casamento legítimo dos pais, para que os filhos legitimassem as suas relações. Afinal, essa
condição também poderia realçar o matrimônio enquanto uma instituição, na medida em que
acabava por preservar a sua legitimidade social.148

RESUMINDO...

Na última seção, analisamos três elementos atinentes ao evolver social, demográfico e


econômico vivenciado por Belém naqueles meados do século, e que de alguma forma tiveram
implicações diretas no casamento e nas práticas de conjugalidade da cidade. Apresentamos,
de início, o processo de reorganização espacial pelo qual passou Belém durante as décadas de
1840, 1850 e 1860. Demonstramos que não apenas o núcleo central de Belém e suas regiões
mais afastadas se dilataram, como também de que modo esse processo decorreu no rearranjo
espacial de determinados grupos no espaço da cidade (particularmente a elites e os escravos) e
impôs modificações para a própria geografia do mercado matrimonial da freguesia da Sé de
Belém, que passou a ser mais “local”, servindo muito mais para o matrimônio dos indivíduos
que moravam no núcleo central da cidade, e deixando de receber os nubentes idos do interior
da província.

Num segundo momento, atentamos às mudanças ocorridas na população da cidade, em


especial no que diz respeito à tendência de desequilíbrio entre as populações livre e escrava, à
intensificação da migração e à tímida mudança operada no perfil migratório destinado para a

148
Fernando Londoño e Otaviano Vieira já destacaram a importância do viver como casados no período colonial
brasileiro. Para os autores, transgredir com discrição, ou seja, não causar “escândalo” (com um comportamento
adulterino, por exemplo), acabava por preservar a vigência da legitimidade das funções sociais do matrimônio.
Cf.: LONDOÑO, Fernando Torres. A outra família: concubinato, Igreja e escândalo na Colônia. São Paulo:
Edições Loyola, 1999; VIEIRA Jr., Antonio Otaviano. O cotidiano do desvio: adultérios e defloramentos no
Ceará colonial (1750-1822). (Dissertação de Mestrado em História Social). São Paulo: Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, 1997. Para uma discussão mais densa sobre o casamento como norma social, ver:
Macfarlane, Alan. História do casamento e do amor (Inglaterra, 1330-1840). São Paulo: Companhia das Letras,
1990 [1986].
54

região, onde uma imigração marcadamente masculina passou a conviver com uma migração
interprovincial menos seletiva no que é atinente ao sexo. Em um terceiro de último momento,
dedicamo-nos a analisar uma variável demográfica em particular: a nupcialidade. Verificamos
que tanto entre os livres, quanto entre os cativos de Belém, houve naqueles meados de século
um aumento na nupcialidade. Especificamente entre os livres, esse aumento foi acompanhado
de uma diminuição nas taxas de ilegitimidade dos nubentes, o que é duplamente sugestivo de
uma maior abrangência social alcançada pelo casamento naquele contexto.

1.2. O CASAMENTO COMO ESTRATÉGIA: ENDOGAMIA, EXOGAMIA E HOMOGAMIA

Como muito bem observou Eni de Mesquita Samara em relação ao Brasil oitocentista,
os casamentos eram engendrados no seio de grupos sociais, econômicos e étnicos próximos,
sob a influência de valores morais específicos desses grupos. 149 Eram, portanto, norteados por
um ideal homogâmico onde casar-se bem era, em geral, casar-se com iguais. Grande parte das
pesquisas sobre o casamento, produzidas por estudiosos das mais diferentes áreas (História,
Demografia, Antropologia etc.) e pertinentes aos mais variados contextos e regiões, aponta
para uma marcante presença da homogamia.150 Seja por motivações ligadas à manutenção ou
à ampliação do patrimônio, do cabedal simbólico e das redes de poder e influência da família,
ou mesmo sendo tonificada por aspirações individuais ou necessidades sociais, a homogamia
representou um elemento-chave para a compreensão do casamento legítimo em Belém nas
décadas de 1840, 1850 e 1860.

Objetivamos analisar, nesta seção, as preferências matrimoniais de diversos grupos no


que é respeitante à (1) condição sociojurídica e à (2) naturalidade dos nubentes, sempre em
consonância ao marcador social de gênero. Analisamos, então, como a elite, os escravos, um
grupo migrante de origem brasileira (cearenses) e outro grupo migrante de origem estrangeira

149
SAMARA, Eni de Mesquita. Casamento e papéis familiares em São Paulo no século XIX. In: Cadernos
de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas, São Paulo, 37, 1981, pp. 17-25.
150
SEGALEN, Martine. Antropología histórica de la familia. Madrid: Taurus Ediciones, 2006 [1981], p. 109.
Para o caso brasileiro, além dos clássicos trabalhos de Eni Mesquita Samara, ver dentre muitos outros: SILVA,
Maria Beatriz Nizza da. Sistema de casamento do Brasil colonial. São Paulo: T. A. Queiroz / EDUSP, 1984;
CAMPOS, Alzira Lobo de Arruda. Casamento e família em São Paulo colonial: caminhos e descaminhos. São
Paulo: Paz e Terra, 2003; MATTOSO, Kátia de Queirós. Família e sociedade na Bahia do século XIX. São
Paulo: Corrupio; Brasília: CNPq, 1988.
55

(os portugueses) articularam suas estratégias matrimoniais em torno da endogamia social e


étnica, verificando tanto os usos do casamento enquanto um elemento de reprodução social,
quanto de preservação identitária ou de inserção na sociedade paraense daqueles meados de
século. Dois desses grupos (a elite e os cativos) terão suas estratégias matrimoniais mais uma
vez examinadas no próximo capítulo, a partir da investigação da trajetória de casamentos de
uma família de elite (os Gama e Silva) e de um plantel escravo (do Engenho Bom Intento),
em particular.

A LÓGICA DA HOMOGAMIA: PREFERÊNCIAS MATRIMONIAIS ENTRE A ELITE E OS ESCRAVOS

Nesta seção, investigamos as preferências matrimoniais de dois grupos em torno da


endogamia social. Em primeiro lugar, observamos, em linhas gerais, de que modo a elite local
articulou suas alianças matrimoniais e, em um segundo momento, procuramos delinear as
tendências de casamento dos escravos. Esses grupos foram escolhidos por serem, em meio aos
registros pesquisados, aqueles que têm sua condição social mais facilmente discernível, seja
pela associação dos indivíduos a termos de distinção (no caso da elite) ou a termos de mácula
social (no caso dos cativos). Além disso, por estarem situados nos dois extremos da hierarquia
social do Brasil oitocentista, permitem-nos observar lógicas de ação diferenciadas no que
respeita ao casamento legítimo, idiossincráticas para a posição social ocupada por homens e
mulheres da elite ou sob a égide do cativeiro.

A ELITE

As alianças matrimoniais entre a elite paraense no século XIX não são exatamente um
tema novo na historiografia. Desde os anos de 1980, com a publicação do pioneiro trabalho de
Rosa Acevedo,151 passando pelas pesquisas mais recentes de Luciana Marinho,152 de Cristina
Cancela153 e de Helder Ângelo,154 algumas das características mais gerais dessa questão foram

151
MARIN, Rosa Elizabeth Acevedo. Alianças matrimoniais na alta sociedade paraense no século XIX. In:
Revista Estudos Econômicos, São Paulo, 15, pp. 153-167.
152
BATISTA, Luciana Marinho. Muito além dos seringais, op. cit.
153
CANCELA, Cristina Donza. Casamento e relações familiares na economia da borracha, op. cit.
154
ÂNGELO, Helder Bruno Palheta. A trajetória dos Corrêa de Miranda no século XIX: alianças sociais, base
econômica e capital simbólico. (Monografia de Conclusão de Curso de Graduação em História). Belém:
Universidade Federal do Pará, 2009.
56

delineadas. Sabe-se, por exemplo, que os casamentos entre a elite local eram pautados, como
destacamos, por um ideal homogâmico, e visavam manter e ampliar o status social, a riqueza
e a influência política das famílias – três dos elementos centrais que ajudavam a definir a sua
condição social de elite. Ademais, sabe-se também que esses matrimônios eram conformados
em meio a círculos limitados, muitas vezes ligados por vínculos de parentesco consanguíneo e
ritualístico.155 Neste primeiro momento, interessa-nos tecer algumas considerações gerais a
respeito da questão, que será retomada mais detidamente, a partir de um caso específico, no
último capítulo deste estudo (ver CAPÍTULO III).

A princípio, é importante destacarmos os critérios que adotamos para definir, em meio


aos registros paroquiais de casamento, quais enlaces envolviam as famílias de elite. Pelo fato
de as atas de matrimônio não apresentarem menções claras ao grau de riqueza dos indivíduos
arrolados, consideramos como sendo de elite pessoas cujos nomes dispunham-se associados a
marcas de distinção social e simbólica. Explicamos melhor: quando o nome de um homem
vinha ligado a um alto posto na Guarda Nacional ou à posse de alguns cativos, e o nome de
uma mulher ao termo “dona”, consideramo-los como membros da elite local. Naturalmente,
temos plena ciência das limitações imputadas a esse procedimento, uma vez que em grande
parte dos casos a dimensão política e, sobretudo, a econômica, são desconsideradas. Mesmo
assim, o método proporciona uma sólida leitura da posição social de determinados sujeitos.

Não obstante, é preciso considerarmos como as estratégias matrimoniais desse grupo –


que desaguavam em um comportamento normatizado, de caráter essencialmente endógeno e
homogâmico – ganhavam forma de maneira bastante particular. Consoante Pierre Bourdieu, o
casamento não é somente o produto da obediência a uma regra ideal, mas, principalmente, o
culminar de uma estratégia; a aplicação de princípios profundamente interiorizados de uma
tradição particular que se reproduzem mais inconsciente do que conscientemente, tal como
uma solução típica que, de forma explícita, institucionaliza essa tradição. Nesse sentido, para
o autor, as estratégias matrimoniais são arquitetadas em seus respectivos habitus, isso é, por
um sistema inculcado pelas condições materiais de existência e pela educação familiar, que
constitui o princípio gerador e unificador das práticas, sendo o produto das estruturas que
essas práticas tendem a reproduzir; de modo que os agentes só conseguem reproduzir, ou seja,
imitar ou reinventar consciente ou mesmo inconscientemente, aquilo que parece-lhes ser mais

155
MARIN, Rosa Elizabeth Acevedo. Alianças matrimoniais na alta sociedade paraense no século XIX, op.
cit.; BATISTA, Luciana Marinho. Muito além dos seringais, op. cit.
57

adequado ou apenas mais conveniente às estratégias já comprovadas, que regem as práticas


aparentando estar inscritas, inclusive, na própria natureza das coisas.156

O primeiro ponto que gostaríamos de destacar é que, diferentemente do que Cristina


Cancela verificou em relação à segunda metade do século XIX, os matrimônios entre a elite
paraense, ao longo das décadas de 1840, 1850 e 1860, ainda não apresentavam uma evidente
tendência ao estabelecimento de relações exógamas com indivíduos de outras naturalidades,
recém-chegados ou não ao Grão-Pará. Percebemos, ao contrário disso, uma clara tendência de
uma elite tradicional escravista e proprietária de terras em estabelecer vínculos marcadamente
endógenos, não se articulando ainda, por meio das alianças matrimoniais, com indivíduos em
enriquecimento ou em ascensão social, associados aos negócios da borracha e ao exercício de
profissões liberais. Ao que nos parece, esse quadro apenas se alterou a partir dos anos 1870,
quando os signos de riqueza das famílias de elite começaram a entrar em transformação. Foi,
portanto, na geração seguinte a que analisamos que a tendência à exogamia se configurou, em
grande medida devido à maior dinamização econômica e social propiciada pela borracha. 157

Os poucos indivíduos de outras origens ou ligados a profissões liberais que contraíram


núpcias com mulheres da elite paraense eram, igualmente, membros daquela mesma elite, ou
então, indivíduos ligados à praça comercial de Belém desde o limiar do Oitocentos. Um bom
exemplo dessas duas possibilidades é o consórcio entre Bernardo de Sousa Franco e Teresa de
Jesus da Gama e Silva, que retomaremos no CAPÍTULO III. Teresa era filha de José Joaquim
da Gama e Silva, capitão de Mar-e-Guerra e membro da elite tradicional. Bernardo, por sua
vez, formou-se em Direito e seu pai, Manoel de Sousa Franco, atuava ativamente na praça
mercantil do Grão-Pará desde o início do século. Embora tanto a família de Bernardo, como a
de Teresa fossem de origem portuguesa, ambas estavam estabelecidas na província há quase
50 anos, quando da altura do casamento, na década de 1840.

Portanto, os registros paroquiais de casamento indicam que as alianças entre a elite


tradicional paraense nos meados do Oitocentos eram marcadas pela homogamia. Aquela elite,
cujos signos de riqueza ainda estavam centrados na posse de terras e escravos, e no acesso a

156
Ver: BOURDIEU, Pierre. Les stratégies matrimoniales dans le système de reproduction. In: Annales:
Économies, Sociétés, Civilisations, Paris, 4-5, 1972, pp. 1105-1127. Para uma discussão mais ampla e densa
sobre os conceitos de estratégia, bem como sobre a sua aplicabilidade na História da Família, cf.: VIAZZO, Pier
Paolo & LYNCH, Katherine. Anthropology, family history, and the concept of strategy. In: International
Review of Social History, Cambridge, 47, 2002, pp. 423-452. Para um aprofundamento do conceito de habitus,
central à Sociologia de Pierre Bourdieu e a sua revisitação ao estruturalismo, ver o próprio autor em: Estruturas,
habitus, práticas. In: O senso prático. Petrópolis/RJ: Vozes, 2009 [1980], pp. 86-107.
157
CANCELA, Cristina Donza. Riqueza, alianças e contratos de dotação em Belém (1870-1920). In: Revista
Estudos Amazônicos, Belém, 5(2), jul.-dez./2010, pp. 29-45.
58

cargos administrativos, às funções militares e aos títulos honoríficos e nobiliárquicos, buscava


estabelecer seus casamentos num meio marcadamente endógeno, com vistas a reproduzir seu
status e condição social. Esse perfil que mais tarde veio a se modificar pode ser tomado como
o reflexo de uma própria mudança na estrutura e na organização social do Brasil oitocentista,
em que uma sociedade estamentária, ligada a esses signos mais tradicionais, deu lugar a uma
sociedade de classe, onde o trabalho e o individualismo passaram a ser mais valorizados.158

O segundo ponto de análise, que igualmente será retomado mais adiante neste estudo,
diz respeito às implicações do matrimônio na conformação das redes familiares. O casamento
entre Bernardo de Sousa Franco e Teresa da Gama e Silva pode ser considerado enquanto um
exemplo de um enlace que concebeu a criação de uma rede entre duas importantes famílias da
elite paraense no século XIX. Os Sousa Franco e os Gama e Silva não apenas não mantinham
relações estreitas entre si, como outrossim atuaram em campos políticos opostos quando do
contexto da Adesão do Pará à Independência.159 Todavia, os consórcios poderiam representar,
também, a consolidação de uma rede já firmada. Eram os casos em que os irmãos dos noivos
casavam-se entre si ou os casos em que os indivíduos contraíam segundas núpcias com as(os)
irmãs(ãos) de seus falecidos consortes, não raros entre a elite do Grão-Pará oitocentista.

Foi o que ocorreu, por exemplo, no segundo casamento de João Marcelino Rodrigues
Martins. Após ficar viúvo de suas primeiras núpcias com Joaquina Monteiro Martins, João
casou-se novamente, em 1863, com sua prima Francisca Alexandrina de Castro Martins, filha
legítima de Joaquim Rodrigues Martins e Marília Emília de Castro da Gama. 160 Ou, ainda, no
matrimônio entre José Joaquim da Silva Lavareda e a sua prima de segundo grau, Ana Maria
da Silva Lavareda, que ocorreu em 28 de abril de 1853.161 Nesses dois casos em particular, os
casamentos foram arranjados no próprio seio das famílias Rodrigues Martins e Lavareda, sem
considerarmos necessariamente as redes em que elas estavam envolvidas. É bem possível que
os matrimônios tivessem sido motivados inclusive por questões de ordem patrimonial, tendo
em vista a não fragmentação do cabedal familiar.

158
A respeito da família nesse processo, ver: KUZNESOF, Elizabeth Ann. A família na sociedade brasileira:
parentesco, clientelismo e estrutura social (São Paulo, 1700-1880). In: Revista Brasileira de História, São
Paulo, 09(17), set.-1988/fev.-1989, pp. 37-63; NAZZARI, Muriel. O século XIX (1800-1869). In: O
desaparecimento do Dote: mulheres, famílias e mudança social em São Paulo, Brasil, 1600-1900. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001 [1991], pp. 150-161.
159
BATISTA, Luciana Marinho. Muito além dos seringais, op. cit., p. 225-226.
160
ACMB. Livro I de Registros de Casamento do Curato da Sé de Belém, p. 167.
161
ACMB. Livro I de Registros de Casamento do Curato da Sé de Belém, p. 79.
59

O enlace de João Marcelino e Francisca é indicativo de outro ponto que gostaríamos


de discutir: as implicações da morte de um dos cônjuges. O falecimento de Joaquina permitiu
que João Marcelino contraísse suas segundas núpcias. Tratava-se, em geral, de um momento
de (re)definirem-se as estratégias familiares. Em alguns casos, membros da elite buscavam no
recasamento a possibilidade de reforçarem-se as alianças anteriormente constituídas com as
primeiras núpcias, a exemplo do segundo matrimônio do escravista Manoel Antônio de Faria
Maciel com Clara Ferreira Pestana, irmã de sua primeira esposa, Antônia Ferreira Pestana,
ocorrido em 1852.162 Em outros casos, o recasamento servia para ampliar a rede familiar por
meio da aliança matrimonial com outra família de elite, como no enlace de Ambrósio Leitão
da Cunha com Maria José da Gama e Silva (casada em primeiras núpcias com Luís Francisco
Colares), que analisaremos mais detidamente no CAPÍTULO III. Por mais que não possamos
delinear um padrão de comportamento no que tange ao recasamento, encontramos uma maior
recorrência dos homens de elite procurando pelas segundas núpcias. Talvez essa recorrência
comungasse com o fato, apresentado na seção precedente, de que os homens livres, em geral,
estavam mais suscetíveis ao recasamento do que as mulheres desse segmento.

Longe de evidenciar todas as nuances dos casamentos entre a elite tradicional paraense
nos meados do século XIX, esses apontamentos são indicativos de pelo menos uma lógica de
ação: para aquela elite, o matrimônio era, antes de qualquer coisa, um forte instrumento de
reprodução social, ou seja, de manutenção do seu status enquanto elite, como bem apreende
Pierre Bourdieu. O casamento entre esse grupo ainda possuía algumas outras características,
como a ocorrência dos ritos nupciais em espaços privados, que serão mais bem analisadas ao
longo deste estudo. De agora em diante, interessa-nos analisar o comportamento matrimonial
do outro extremo da hierarquia social do Brasil oitocentista: os escravos.

OS ESCRAVOS

Diferentemente dos enlaces entre a elite, ainda pouco se conhece a respeito da família
escrava no Grão-Pará oitocentista. Excetuando-se, aqui, alguns apontamentos iniciais feitos
nos estudos de Andréa Pastana163 e de Luciana Marinho,164 praticamente nada foi produzido

162
ACMB. Livro I de Registros de Casamento do Curato da Sé de Belém, pp. 70(v)-71. O segundo casamento de
Manoel não durou nem 10 anos. No consórcio de sua filha Catarina com Antônio Corrêa de Miranda, em 1861,
ele já foi dado como falecido pelo coadjutor que registrou o assento.
163
PASTANA, Andréa da Silva. Em nome de Deus, Amém! Mulheres, escravos, famílias e heranças através dos
testamentos em Belém do Grão-Pará na primeira metade do século XIX. (Dissertação de Mestrado em História).
Belém: Universidade Federal do Pará, 2008.
60

sobre o tema, que é de grande importância para o entendimento da economia e da demografia


da escravidão na Amazônia. Considerando que a província do Pará esteve um tanto alheia ao
tráfico interno de escravos nos meados do século XIX, não tendo sido apresentados indícios
da entrada ou da saída de uma grande quantidade de cativos, a família escrava, em seu sentido
lato,165 adquire um papel de destaque, justamente por ter estado no âmago dos mecanismos de
reprodução demográfica da população cativa no Grão-Pará. Nesse bojo, a conjugalidade e a
nupcialidade são questões centrais.

Como destacamos em seção anterior, a nupcialidade escrava era, comparativamente,


menos expressiva que a da população livre. Nem mesmo no período em que atingiu seu ápice
(1854) ela chegou a representar a metade da nupcialidade das pessoas livres, o que nos levou
a concluir que os cativos representavam o segmento social menos suscetível ao casamento
legítimo na Belém oitocentista. De qualquer forma, devemos considerar que havia escravos
casando em aproximadamente 10% (142) dos 1.379 registros pesquisados. Trata-se de um
percentual relativamente expressivo, principalmente tendo em vista o fato de que a população
escrava perfazia, entre os anos de 1848 e 1872, entre 15 e 30% dos habitantes da freguesia da
Sé de Belém.166 Nessa paróquia, entre 1840 e 1870, casaram-se ao todo 122 escravos do sexo
masculino e 99 do sexo feminino.

Ser ou ter sido cativo eram condições que, em termos matrimoniais, decerto limitavam
os indivíduos socialmente, sobretudo no que concerne à escolha dos cônjuges. A questão fica
mais clara quando analisamos as preferências matrimoniais dos cativos, conforme o gênero e
a condição sociojurídica dos noivos. Dos homens escravos, 71% (87) contraíram núpcias com
mulheres escravas, 12% (14) com mulheres forras e 17% (21) com mulheres nascidas já em
liberdade. Das mulheres cativas, 88% (87) casaram-se com homens escravos, 05% (05) com
homens forros e 07% (07) com homens nascidos livres. Notemos que praticamente um terço
dos nubentes escravos do sexo masculino consorciou-se com mulheres livres, sejam elas
nascidas em tal condição social ou alforriadas ao longo da vida; o que pode ser sugestivo, por

164
BATISTA, Luciana Marinho. Demografia, família e resistência escrava no Grão-Pará (1850-1855). In:
BEZERRA NETO, José Maia & GUZMÁN, Décio de Alencar (Orgs.). Terra Matura: historiografia e história
social na Amazônia. Belém: Paka-Tatu, 2002, pp. 207-230.
165
Como bem observaram Iraci Costa, Robert Slenes e Stuart Schwartz, a noção de família escrava não pode
considerar apenas as famílias constituídas pelo casamento legítimo e sua prole, haja vista os baixos índices de
nupcialidade relativos a esse segmento social. No entendimento dos autores, o conceito precisa ser dilatado de
modo a contemplar, também, os casos de mães e pais solteiros ou viúvos vivendo com seus filhos. Cf.: COSTA,
Iraci del Nero; SLENES, Robert W. & SCHWARTZ, Stuart B. A família escrava em Lorena (1801). In:
LUNA, Francisco Vidal; COSTA, Iraci del Nero & KLEIN, Herbert S. (Orgs.). Escravismo em São Paulo e
Minas Gerais. São Paulo: Imprensa Oficial / EDUSP, 2009, 519-569.
166
Ver: CAPÍTULO I, pp. 42-43.
61

consequência, do maior controle senhorial exercido sobre as práticas de conjugalidade das


mulheres cativas. Retomaremos esse aspecto um pouco mais adiante.

Os forros, em sua grande maioria, casavam-se igualmente com quem era ou havia sido
escravo, reforçando a perspectiva apresentada no parágrafo anterior. Tão-somente 24 homens
nascidos escravos (21 cativos e três forros) casaram-se com mulheres nascidas livres e apenas
10 mulheres nascidas escravas (sete cativas e três forras) contraíram casamento com homens
nascidos livres. Ao que tudo indica, a alforria trazia para os homens maiores possibilidades de
casamento com os segmentos livres da população, do que para as mulheres. De toda forma, o
que interessa-nos é evidenciar que as possibilidades matrimoniais desse grupo, composto por
pessoas no cativeiro ou dele egressas, eram essencialmente endógenas, refletindo não somente
a ingerência senhorial no delineamento das preferências nupciais dos escravos, como também
o caráter específico de socialização deles e dos forros na sociedade oitocentista.

Para os escravos, contrair núpcias com pessoas livres poderia representar não apenas a
liberdade da prole (no caso de um homem cativo casar-se com uma mulher de condição livre),
mas também a consolidação de vínculos sociais permanentes fora do cativeiro, que poderiam
resultar ao menos numa tentativa de compra da sua alforria.167 Ademais, os casamentos mistos
poderiam significar um fator a mais de diferenciação interna nas escravarias. 168 No entanto, a
simples vontade dos escravos pode nem sempre ter prevalecido, como nos casos dos cativos
José e Rafael Arcanjo. Em 20 de julho de 1862, por ocasião de uma visita pastoral, eles se
casaram, respectivamente, com Januária e Geralda, igualmente escravas de Januário Antônio
da Silva e pertencentes à escravaria do Engenho Bom Intento (que será o palco de análise do
CAPÍTULO III).169 Nos assentos paroquiais foi explicitado, pelo padre coadjutor, que ambos
os enlaces foram concretizados sob a autorização expressa do próprio Januário.

A referência direta à anuência senhorial é alusiva ao grau de controle exercido sobre a


conjugalidade dos escravos José, Rafael, Januário e Geralda. Trata-se de uma interferência
que ia de encontro às normatizações eclesiásticas acerca do casamento de cativos. Em outras
palavras, isso significa dizer que a “liberdade” pretensamente arrogada aos cativos em termos

167
Maria Beatriz Nizza da Silva afirma que o casamento entre um elemento forro e outro escravo foi comum no
Brasil colonial. A autora argumenta que a diferente condição jurídica dos cônjuges levou muitas vezes a um
tentar comprar a liberdade do outro, o que nem sempre era tarefa fácil, já que os senhores costumavam recusar a
transação, mesmo que o preço oferecido pelo escravo fosse superior ao de mercado. Cf.: SILVA, Maria Beatriz
Nizza da. História da família no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 185.
168
MACHADO, Cacilda da Silva. A trama das vontades: negros, pardos e brancos na constituição da
hierarquia social do Brasil escravista. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008, pp. 149-150.
169
ACMB. Livro I de Registros de Casamento do Curato da Sé de Belém, p. 158.
62

matrimoniais não se coadunava, longe disso, com sua real situação civil.170 Na prática, muito
provavelmente só seriam efetivados aqueles matrimônios que não se mostrassem inoportunos
aos senhores, o que talvez repercutisse no maior controle sobre a conjugalidade das mulheres
escravas – as responsáveis diretas, dentre outros fatores, pela reprodução das escravarias. Esse
controle pode ter sido ainda mais ativo em regiões como o Grão-Pará, pouco ligadas ao tráfico
e onde a manutenção da escravaria local dependia essencialmente da sua autorreprodução.

A diferença entre as práticas de casamento dos escravos, em função do gênero, pode


ser justificada, além disso, pelo fato de a condição sociojurídica (livre ou escrava) da prole ser
transmitida por via uterina. Nesse sentido, paralelamente ao interesse senhorial, o fato de as
mulheres livres (incluindo, aqui, as forras) conceberem filhos livres e de as mulheres escravas
conceberem filhos escravos provavelmente influenciou as preferências nupciais desse grupo,
inclusive condicionando, em termos matrimoniais, a sua relação com a população livre. Com
a ideia de reprodução biológica fortemente imbricada ao casamento, dificilmente um homem
livre casar-se-ia legitimamente com uma mulher cativa ciente de que seus filhos nasceriam em
condição escrava, a não ser que tivesse condições e meios de libertar a ela e, especialmente, a
sua prole, o mais cedo possível.

Os 221 cativos que se casaram na Sé de Belém, entre 1840 e 1870, não pertenciam a
muitos proprietários; 46,6% (103) deles pertenciam a um grupo composto por nove senhores,
que em comum tinham o fato de terem levado pelo menos cinco escravos ao casamento nesse
período.171 Esses senhores partilhavam de algumas características: eram, em geral, homens de
diferentes famílias que, aparentemente, concentravam a posse de escravos nas mesmas. Em
alguns casos, como no da família Sousa Tavares, encontramos os escravos-nubentes mais bem
distribuídos entre vários de seus membros. Por sua vez, os escravos pertencentes àqueles nove
senhores também comungavam de algumas características comuns: quase sempre se casavam
com seus companheiros de plantel, em fazendas ou engenhos localizados nas redondezas de
Belém, ou mais ao interior da província do Grão-Pará. Esses engenhos e fazendas estavam
situados, em sua maioria, nas regiões guajarina e do Baixo Tocantins. Tratava-se de espaços
marcadamente rurais, dedicados à agricultura (especialmente, às culturas de açúcar, arroz e

170
GOLDSCHMIDT, Eliana Rea. Casamentos mistos: liberdade e escravidão em São Paulo colonial. São
Paulo: Annablume, FAPESP, 2004, p. 113.
171
Considerando apenas as posses “individuais”, tiveram cinco ou mais escravos casando: Joaquim Antônio da
Silva (40); Vicente Antônio de Miranda (12); Januário Antônio da Silva (10); Francisca Maria Rosa Cardoso
(09); Hilário Ferreira Muniz (08); José do Ó de Almeida (07); Manoel Joaquim Ribeiro Seabra (07), Ângela
Joana Pereira Martins Marques (05) e João Evangelista de Faria Maciel (05). De todos esses nove senhores,
apenas Joaquim e Januário Antônio da Silva, irmãos, eram da mesma família.
63

mandioca) e onde havia uma grande concentração de cativos.172 Destacavam-se, dentre eles, o
Engenho do Bom Intento, situado na altura do distrito do Bujaru e pertencente a Joaquim e
Januário Antônio da Silva, onde houve 25 casamentos; e a Fazenda do Bonfim, localizada em
Janipaúba e pertencente à Hilário Ferreira Muniz, onde houve cinco matrimônios.

É possível notarmos algumas diferenças no comportamento matrimonial dos escravos


pertencentes àqueles nove senhores e dos demais cativos. Entre esses, deparamo-nos com uma
incidência maior de situações em que se casavam com pessoas de condição livre, sejam eles
nascidos em tal condição ou forros. Entre aqueles escravos, à exceção dos pertencentes a João
de Faria Maciel, de um cativo de Manoel Ribeiro Seabra e outro de Francisca Rosa Cardoso
(que se casaram na Catedral), não houve casamento algum com pessoas de condição livre.
Tomando o número de casamentos como um indício do tamanho dos plantéis,173 acreditamos
que essa diferença espelhe, muito possivelmente, diferentes estruturas de posse e caráteres de
socialização existentes entre o núcleo urbano central de Belém e suas redondezas. Enquanto
no centro da cidade haveria provavelmente menores escravarias e uma interação constante
com a população livre, nas regiões mais afastadas haveria maiores plantéis e, por conseguinte,
maiores possibilidades de formação de casais em seu próprio meio social.

Ainda assim, mesmo entre os cativos que provavelmente moravam no núcleo urbano
central de Belém, a preferência era pela formação de vínculos com companheiros de cativeiro
e de plantel. Em 62,1% (83) dos 134 casamentos pesquisados que envolviam pelo menos um
escravo, ambos os nubentes pertenciam à mesma escravaria. Esse percentual robustece a ideia
apresentada no parágrafo anterior, mas acaba por não evidenciar uma dimensão importante de
análise para a questão: a rede familiar dos senhores. Explicamos melhor. Em alguns dos casos
em que ocorreram casamentos inter-plantéis, os nubentes eram pertencentes a dois senhores
que integravam uma mesma família. Ilustrativo, nesse sentido, é o matrimônio entre Gonçalo
e Carlota. No mês de setembro de 1841, os cativos de Gonçalo Antônio e Carlota Marcelina
casaram-se na Catedral.174 O primeiro pertencia à Francisca Rosa Cardoso e a segunda à sua

172
WEINSTEIN, Barbara. A borracha na Amazônia, op. cit., p. 62.
173
Há um consenso historiográfico no que diz respeito à relação entre a estrutura da posse de cativos e a família
escrava. Diversos autores têm apontado que, quanto maiores as escravarias, maior a possibilidade dos cativos
dela galgarem o casamento legítimo e a estabilidade familiar. Posto isso, cremos que o número de casamentos
dos escravos de um mesmo proprietário seja sugestivo do tamanho de seu plantel. Sobre a relação entre a posse
de escravos e a família cativa, ver dentre outros: SLENES, Robert. Casamento e cativeiro: a nupcialidade
escrava em Campinas. In: Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava –
Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, pp. 74-78.
174
ACMB. Livro I de Registros de Casamento do Curato da Sé de Belém, p. 06(v).
64

irmã mais nova, Antônia Rosa Cardoso, filhas do falecido coronel Antônio Bernardo Cardoso
e de Francisca da Cunha.175

Aparentemente, Francisca e Antônia eram herdeiras de um mesmo espólio, o que pode


significar que um dia os nubentes, agora separados em dois plantéis distintos, estiveram sob a
posse de um mesmo proprietário, exercendo atividades comuns e convivendo diariamente. Em
face do exposto e nessas condições, os consórcios inter-plantéis podem ser um indício de que
em Belém, nos meados do Oitocentos, a morte do senhor e a consequente partilha de bens não
somente não decorreriam no rompimento imediato dos vínculos sociais e/ou afetivos entre os
cativos de uma mesma escravaria, como também podem não ter implicado, necessariamente,
o rompimento dos laços familiares ou a separação, em plantéis diferentes, de famílias escravas
anteriormente constituídas dentro ou fora do casamento legítimo.176

Os casamentos entre escravos em Belém, nos meados do século, seguiam ainda outras
duas tendências. A primeira delas, mais geral e que destacamos anteriormente, é o pequeno
percentual de escravos casando-se em segundas núpcias. Se os cativos eram o segmento social
menos suscetível ao casamento legítimo naquele contexto, possuindo índices de nupcialidade
bastante inferiores aos da população livre, é de se esperar a baixa incidência de recasamentos
entre eles. Grande parte dos escravos era levada a experimentar a conjugalidade em uniões de
uso costumeiro ou a permanecer em celibato definitivo. Nesse quadro, onde o matrimônio não
era uma prática amplamente disseminada por um sem-número de fatores, casar-se uma vez
seria significativo; duas vezes, então, seria realmente uma exceção.

A segunda tendência diz respeito à endogamia metaétnica entre os cativos de origem


africana. A população escrava do Grão-Pará, no decorrer das décadas de 1840, 1850 e 1860,
possuía um perfil marcadamente crioulo, como foi demonstrado em estudos anteriores.177 As

175
ACMB. Livro I de Registros de Casamento do Curato da Sé de Belém, p. 33.
176
Conforme Cristiany Rocha, a historiografia sobre a família escrava apreende a morte do senhor como um
momento de incertezas quanto à separação dos cativos de suas famílias, por intermédio da partilha de bens.
Todavia, em sua pesquisa, que enfoca os comportamentos e as relações familiares de escravos nas propriedades
da família de Camillo Xavier Bueno da Silveira em Campinas, ao longo do século XIX, a autora evidenciou que
nem sempre isso ocorria. ROCHA, Cristiany Miranda. A morte do senhor e o destino das famílias escravas.
In: Histórias de famílias escravas: Campinas, século XIX. Campinas/SP: Editora da UNICAMP, 2004, pp. 103-
111. Em relação ao Pará, podemos destacar o trabalho de Andréa Pastana, que se dedicou em parte ao estudo da
dinâmica da escravidão em Belém, na primeira metade do século XIX, a partir a análise de testamentos. Embora
essa autora tenha destacado a morte do senhor como um momento de incertezas para as famílias escravas, não
asseverou se a partilha de bens significou a separação ou não dessas famílias. Cf.: PASTANA, Andréa da Silva.
Morte do senhor e destino dos cativos: alforrias e suas condições. In: Em nome de Deus, Amém! Mulheres,
escravos, famílias e heranças através dos testamentos em Belém do Grão-Pará na primeira metade do século
XIX. (Dissertação de Mestrado em História). Belém: Universidade Federal do Pará, 2008, pp. 92-115.
177
SALLES, Vicente. O negro no Pará, op. cit.; BEZERRA NETO, José Maia. Escravidão negra no Grão-Pará
(Séculos XVII-XIX). Belém: Paka-Tatu, 2001.
65

dificuldades colocadas em relação ao tráfico negreiro e, adicionalmente, a incapacidade das


elites paraenses em promover a uma renovação efetiva na escravaria da província através da
aquisição de novas peças, tornou a presença de escravos africanos cada vez mais rarefeita na
região, num movimento iniciado logo no início e que veio a se intensificar com o avançar do
século XIX. Como consequência direta desse perfil, deparamo-nos com um pequeno número
de escravos africanos contraindo núpcias em Belém naqueles meados de século. Apenas nove
homens e cinco mulheres vindos da África, todos de variadas nações pertencentes aos grupos
banto e sudanês,178 casaram-se na freguesia da Sé de Belém entre 1840 e 1870.

Nos cinco matrimônios em que os escravos de proveniência africana casaram entre si,
podemos observar uma tímida tendência à endogamia em função dos grupos metaétnicos aos
quais os escravos pertenciam. Bantos casavam com bantos, e os sudaneses com sudaneses. 179
Em meio a esse quadro, chama-nos atenção o casamento entre dois dos escravos do nosso já
conhecido Hilário Ferreira Muniz. Em 30 de maio de 1842, na Fazenda Bonfim, casaram-se
os cativos Casemiro e Joaquina, ambos de nação Mina. Esse enlace teve como testemunhas os
“pretos” Vicente Ferreira e Joaquim das Neves, possivelmente companheiros de cativeiro dos
nubentes. Considerando a proibição do tráfico ao norte do Equador ainda na década de 1810,
causa estranheza depararmo-nos com dois escravos provenientes do Golfo da Guiné casando
em Belém nos anos de 1840. É provável que Casemiro e Joaquina tenham contraído já velhos,
numa idade em que estivessem bem próximos de sair em definitivo do mercado matrimonial.

Em linhas gerais, podemos entender que o comportamento matrimonial dos escravos


seguia três tendências: a endogamia social, o enlace entre cativos de um mesmo plantel e, em
menor medida, a endogamia metaétnica. Esses três aspectos, especialmente os dois primeiros,
deram o tom dos casamentos entre escravos na cidade de Belém, nos meados do século XIX.
No CAPÍTULO III, retomaremos a discussão sobre a conjugalidade dos cativos a partir de um
caso específico, quando demonstraremos que, para além dessas tendências gerais apontadas, a

178
As “nações” dos escravos não correspondiam, necessariamente, a sua real origem étnica, mas a sua origem
metaétnica, associada à região dos portos de procedência dos cativos. Em um interessante estudo, Nicolau Parés
considera que as configurações de identidade étnica e de procedência dos escravos foram elaboradas no período
do tráfico e no contexto da escravização, sendo inclusive rememoradas nas religiões afro-brasileiras de hoje em
dia, como no caso da importância da nação Jeje para a formação do Candomblé baiano. Para tal, o autor lança
mão dos conceitos de metaetnia e de meta-narrativa elaborados pelo antropólogo norueguês Fredrik Barth, ou
seja, apreende que as construções identitárias são engendradas no jogo entre os sinais diacríticos, as preferências
e os interesses dos atores sociais, e o olhar da alteridade. Cf.: PARÉS, Luís Nicolau. A formação do Candomblé:
história e ritual da nação Jeje na Bahia. São Paulo: Editora da UNICAMP, 2006. Acerca da teoria de etnicidade
para Fredrik Barth, ver: BARTH, Fredrik. Teorias da etnicidade. São Paulo: Editora UNESP, 1997.
179
Sobre a figura do africano e sua inserção na dinâmica matrimonial dos escravos no Brasil, cf.:
FLORENTINO, Manolo & GÓES, José Roberto. A Paz das Senzalas: famílias escravas e o tráfico atlântico, Rio
de Janeiro, c. 1790-c. 1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
66

os casamentos de escravos eram ainda permeados por muitas outras nuances, evidenciando
uma diferenciação interna nesse segmento social.

ENTRE A ENDOGAMIA E A EXOGAMIA: PREFERÊNCIAS MATRIMONIAIS POR ORIGEM DO CÔNJUGE

A análise dos enlaces envolvendo a população migrante na freguesia da Sé de Belém,


entre 1840 e 1870, ajuda-nos a examinar o grau de assimilação ou de resistência à interação
de determinados grupos de migrantes à sociedade local naquele período. Casar-se com nativos
significava, ao mesmo tempo, a criação de vínculos mais permanentes com o Pará e a inserção
nas redes sociais pré-estabelecidas pela família do/a nubente. Naturalmente, toda a dinâmica
social encetada ou mesmo remodelada pelo matrimônio com noivos locais variava de acordo
com o grupo social no qual o matrimônio estava inscrito. Contrair núpcias com pessoas das
camadas menos abastadas não era o mesmo que contrair núpcias com pessoas da elite, não
somente pelas diferentes relações de sociabilidade em que esses grupos estavam envolvidos,
mas também pelos diferentes significados práticos que o casamento poderia possuir para um e
para outro.

Por mais que o casamento com paraenses pudesse representar um mecanismo eficaz de
inserção social para a população migrante – seja ela de origem brasileira ou estrangeira –, os
custos associados à contração de núpcias, adicionados ao ônus de um possível procedimento
de habilitação para o matrimônio por conta da inacessibilidade aos seus registros de batismo,
poderiam dificultar uma maior difusão desse mecanismo na prática, dando ensejo a outras
formas de inserção social, como as relações de compadrio (analisadas no próximo capítulo) e
as sociedades comerciais, por exemplo. Não obstante, especificamente no caso dessas, ainda
seria por certo necessária a posse de um capital inicial prévio, o que poderia coibir a inclusão
de migrantes recém-chegados nas mesmas.

De todo modo, a preferência pela endogamia ou pela exogamia não era somente uma
estratégia individual, familiar ou de determinado grupo, mas consubstanciava-se, sobretudo,
na expressão prática do casamento como um ato fortemente concatenado ao seu universo
simbólico, e ao seu entorno social e econômico. Casar-se poderia ser, concomitantemente, um
mecanismo de inserção social e uma estratégia de sobrevivência, sem que ambas essas facetas
fossem, todavia, antagônicas entre si. A delineação de perfis demográficos não evidencia, em
sua totalidade, as experiências sociais que marcaram os casamentos envolvendo migrantes,
67

contudo ajuda-nos a balizar, de forma bastante evidente, aquilo que em relação às preferências
pela endogamia ou pela exogamia de certos grupos enquadrava-se em tendências mais gerais
de comportamento ou constituía desvios particulares.

Não seria factível analisarmos, neste estudo, a tendência à endogamia ou à exogamia


de todos os grupos de migrantes arrolados. O número reduzido de nubentes de determinadas
origens acarretaria em um problema de representatividade que, consequentemente, poderia
elidir a avocação de maiores conclusões acerca da questão. Além disso, acreditamos ser mais
interessante concentrarmo-nos apenas em alguns desses grupos, de maneira a possibilitar uma
reflexão um pouco mais detida de vários dos aspectos que permearam os casamentos em que
havia migrantes como pelo menos um dos noivos. Para tal e, adotando como critério, a maior
representatividade de um grupo dentre os migrantes de origem brasileira e de outro grupo
dentre os migrantes de origem estrangeira, são analisadas as estratégias matrimoniais dos
cearenses e dos portugueses que se casaram na freguesia da Sé de Belém, entre 1840 e 1870.

MIGRANTES BRASILEIROS: OS CEARENSES

No dia 19 de maio de 1859, Raimundo Gonçalves Ferreira e Rita Antônia da Silveira


casaram-se na Igreja Matriz da Sé de Belém. Ambos naturais do Ceará e filhos legítimos de
pais cearenses, eles moravam na colônia agrícola de Nossa Senhora do Ó, de propriedade de
José do Ó de Almeida e localizada na Ilha das Onças – no outro lado da Baía do Guajará, que
banha Belém.180 Poucos dias depois, em 22 de maio, Severino Francisco de Araújo e Rosa
Antônia da Silveira subiram àquele mesmo altar. Tal como Raimundo e Rita, também eram
naturais do Ceará, prole legítima de pais cearenses e moradores daquela mesma colônia.181 A
proximidade cronológica e a similaridade entre os consórcios não foram mera casualidade.
Alguns dos elementos que arquitetaram a trama desses casamentos serviram para conduzir o
enredo de atos semelhantes, mas com outros protagonistas. Aparentemente casos específicos,
os enlaces de Raimundo, Rita, Severino e Rosa compuseram não um desvio particular, porém
parte das práticas de casamentos que envolviam migrantes cearenses na Belém oitocentista.

Na freguesia da Sé de Belém, entre 1840 e 1870, os casamentos entre migrantes de


origem cearense indicavam uma tímida tendência à endogamia. Os homens naturais do Ceará

180
ACMB. Livro I de Registros de Casamento do Curato da Sé de Belém, p. 132.
181
ACMB. Livro I de Registros de Casamento do Curato da Sé de Belém, p. 132(v).
68

buscavam mulheres cearenses para casar-se, e vice-versa. No caso desse grupo de migrantes,
a preferência endogamia parece-nos estar situada na interseção entre uma conjuntura social e
uma prática cultural. Por um lado, podemos considerar que a eles o casamento representava
uma estratégia de preservação de sua identidade étnica que, ao mesmo tempo, tanto selava a
união entre duas pessoas e suas famílias, quanto não criava vínculos mais permanentes com o
Pará, facilitando um possível retorno à sua terra natal.182 Por outro lado, também podemos
considerar que poderia se tratar de um grupo que pouco interagia com a sociedade local, não
sendo bem assimilado por meio de casamentos exógamos.

No que concerne aos casamentos envolvendo migrantes cearenses, a década de 1850


representou um momento de inflexão. Durante todo o decênio de 1840, apenas dois homens e
nenhuma mulher cearenses casaram-se na freguesia da Sé. No período pesquisado, a primeira
mulher de origem cearense a contrair núpcias nessa paróquia o fez em 1855, justamente a
partir de quando teve princípio uma intensificação na quantidade de nubentes naturais do
Ceará casando-se na Sé, que perduraria pelo menos até 1870.183 Ao todo, a pesquisa arrolou
18 homens (um natural de Sobral, outro de Quixeramobim e os restantes de origem local não
aludida) e 15 mulheres (uma natural de Sobral e as demais de origem não aludida) cearenses
casando-se na paróquia da Sé de Belém, entre 1840 e 1870. Eram, em sua maioria, migrantes
estabelecidos na região central e de mais antiga colonização da cidade. Decerto se levássemos
em consideração todo o município de Belém, o número de migrantes cearenses casando seria
ainda mais expressivo, particularmente nas regiões em expansão.

Dos 18 nubentes cearenses pesquisados, 10 se casaram com mulheres cearenses. Os


demais contraíram núpcias com três paraenses, uma fluminense, uma catarinense e três noivas
cuja origem não foi citada. Das 15 nubentes cearenses pesquisadas, também 10 se casaram
com conterrâneos. As outras cinco consorciaram-se com três nubentes naturais de Portugal,
um de Belém e outro de São Paulo. Em outras palavras, mais metade dos homens e mulheres
cearenses procuraram consociar-se com conterrâneos, fato que adquire ainda mais projeção ao
considerarmos que todos os casamentos ocorreram no Pará, e num período em que a migração
cearense não era tão forte quanto viria ser nos decênios seguintes. Pelos dados apresentados,

182
Cristina Cancela verificou que, relativamente ao final do século XIX e ao início do século XX, os locais de
socialização (como os cortiços e as instâncias, por exemplo) de grupos migrantes eram espaços em que esses
grupos marcavam e ressignificavam suas identidades, no reviver de práticas comuns de seus locais de origem.
Cf.: CANCELA, Cristina. Casamento e relações familiares na economia da borracha, op. cit.
183
Para mais informações sobre a presença de migrantes cearenses contraindo núpcias em Belém, tanto na
freguesia da Sé quanto na de Nazaré, no período posterior ao que analisamos, cf.: CANCELA, Cristina Donza.
ibidem.
69

mesmo considerando a pequena amostragem, podemos observar que tanto entre os homens
quanto entre as mulheres de origem cearense havia uma tímida preferência matrimonial pela
endogamia. A diferença no comportamento nupcial desse grupo em função do gênero residia,
na verdade, nas segundas opções de casamento, haja vista termos encontrado três mulheres
cearenses consorciando-se com estrangeiros (no caso, com portugueses), ao contrário de seus
conterrâneos que casaram, todos, com mulheres de origem brasileira. A leve tendência desse
grupo de migrantes aos casamentos endógamos também poderia ter sido ainda mais nítida em
contextos específicos como no caso dos casamentos concebidos em meio a nossa já conhecida
colônia agrícola de Nossa Senhora do Ó. Voltemos à história dos matrimônios de Raimundo e
Rita, e de Severino e Rosa.

As histórias de Raimundo, Rita, Severino e Rosa tinham como pano de fundo o núcleo
agrícola de Nossa Senhora do Ó. Instalado na Ilha das Onças, nas redondezas de Belém, em
30 de março de 1856 por iniciativa de José do Ó de Almeida, esse núcleo foi, primeiramente,
colonizado por migrantes cearenses de ambos os sexos, que se ocupavam como lavradores ou
artistas.184 Idealizada para o plantio da cana-de-açúcar e de cereais (arroz e milho), a colônia
localizava-se em uma posição estratégica que favoreceria seu desenvolvimento: não estava
muito próxima, nem muito distante de um grande núcleo urbano (Belém). Além disso, possuía
“bom solo” e “boa temperatura” para a agricultura. Mas, de acordo com o então presidente da
província do Pará, Henrique de Beaurepaire Rohan, o diferencial da colônia de Nossa Senhora
do Ó, comparativamente às outras experiências de colonização no Brasil, foi “a vantagem
devidamente calculada pelo cidadão José do Ó de Almeida [proprietário da colônia]” de ter
“mandado transportar [...] habitantes do Ceará”.185

O processo de migração de colonos cearenses para aquele núcleo deu-se sobretudo em


função de grupos familiares.186 Rita e Rosa da Silveira eram filhas do colono Tomás Antônio
da Silveira e de sua esposa e também colona de lá, Angélica Maria da Conceição; assim como
Inácia Maria e Francelina Antônia da Silveira. Eram, na verdade, um pai, uma mãe e pelo

184
RPP. Exposição apresentada pelo Exmo. Sr. Conselheiro Sebastião do Rego Barros, presidente da província
do Grão-Pará, ao Exmo. Sr. Tenente-Coronel de Engenheiros Henrique de Beaurepaire Rohan, no dia 29 de maio
de 1856, por ocasião de passar-lhe a administração da mesma província. [n.p.], Typ. de Santos & Filhos, 1856,
pp. 15-16.
185
RPP. Relatório apresentado á Assembléia Legislativa Provincial do Pará no dia 15 de agosto de 1856, por
ocasião da abertura da primeira sessão da 10ª Legislatura da mesma Assembléia, pelo presidente Henrique de
Beaurepaire Rohan. [n.p.], Typ. de Santos & Filhos, 1856, p. 12-14.
186
RPP. Mapa 25: Mapa estatístico da colônia agrícola industrial de Nossa Senhora do Ó, [...], do semestre de
janeiro a junho de 1859. In: Fala dirigida à Assembléia Legislativa da província do Pará na segunda sessão da
XI Legislatura pelo Exmo. Sr. Tenente-Coronel Manoel de Frias e Vasconcellos, presidente da mesma provincia,
em 1 de outubro de 1859. Pará: Typ. Commercial de A.J.R. Guimarães, [n.d.].
70

menos quatro filhas solteiras que deixaram a província do Ceará e estabeleceram-se no Pará,
nas redondezas de Belém, no final da década de 1850. Se, adicionalmente, considerarmos que
Rosa casou-se com Severino, seu parente de segundo grau, ainda podemos conjecturar que
outros membros dessa mesma família também podem ter migrado àquela colônia agrícola.

As quatro filhas de Tomás Antônio da Silveira, seguindo a tendência à endogamia de


seu grupo, casaram-se com cearenses que, igualmente, moravam na colônia de Nossa Senhora
do Ó. Podemos observar que o círculo das testemunhas desses consórcios foi bastante restrito.
Simplício Lopes de Sousa, que se casou com Francelina, foi testemunha no casamento entre
Severino e Rosa. Já Inácio Francisco de Araújo,187 pai de Severino, foi testemunha no enlace
de Raimundo e Rita. Possivelmente, essa limitação estava associada às poucas possibilidades
disponíveis à escolha das testemunhas, o que também se poderia aplicar no que diz respeito à
articulação dos enlaces.188 Não obstante, por mais que as experiências sociais que marcaram o
cotidiano dos cearenses da colônia de Nossa Senhora do Ó sejam bastante singulares e não
enquadráveis para a sociedade como um todo, elas evidenciam a importância das relações de
sociabilidade, sejam essas associadas à moradia (vizinhança ou co-residência) ou ao trabalho,
no processo de formação dos casais.

As elevadas taxas de legitimidade encontradas entre praticamente todos os nubentes


cearenses – expressivamente maiores em comparação a quaisquer outros grupos de migrantes
–, aliadas à presença sempre constante de parentes (notadamente, dos pais) dos nubentes
como testemunhas nos matrimônios, sugerem a existência de um fluxo migratório destinado a
Belém, assim como no caso da família Silveira, ordenado em função de grupos familiares. Ou
seja, corroborando com a perspectiva sugerida anteriormente, tratava-se de mais um caso de
migração seletiva. Esse perfil migratório, que já encontramos em relação às décadas de 1840,
1850 e 1860, muito provavelmente tendeu a intensificar-se com o recrudescimento econômico

187
Aparentemente, Inácio Francisco de Araújo também migrou ao Pará em companhia de sua família, onde
resolveram permanecer mesmo após o insucesso da colônia de Nossa Senhora do Ó. Em 21 de novembro de
1865, outro filho de Inácio, Sabino Marques de Araújo, casou-se na freguesia da Sé de Belém com também
cearense Antônia do Nascimento. ACMB. Livro I de Registros de Casamento do Curato da Sé de Belém, p.
195(v).
188
O isolamento geográfico da colônia de Nossa Senhora do Ó e sua estrutura populacional composta, sobretudo,
por migrantes cearenses, podem ter conformado um contexto específico em que se recriava, em costumes e
práticas, um ambiente social essencialmente cearense; constituindo uma “estrutura da conjuntura” tal como na
acepção de Marshall Sahlins, ou seja, configurando a realização prática de categorias culturais cearenses no
âmbito da colônia de Nossa Senhora do Ó. Se isso estiver correto, é possível matizarmos, pelo viés da cultura, a
percepção de que as preferências matrimoniais e as estratégias em torno da escolha das testemunhas entre os
migrantes cearenses, naquele contexto específico, desse-se somente em função das “poucas possibilidades
disponíveis”. Sobre o conceito de “estrutura da conjuntura”, cf.: SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003 [1985].
71

da região e, por conseguinte, com a vinda maciça de migrantes cearenses à Amazônia entre o
final do século XIX e o início do século XX.189

A migração constituída por grupos familiares e a leve tendência à endogamia (que,


como destacamos anteriormente, abria a possibilidade de retorno ao Ceará) são elementos que
sugerem, entre os cearenses, um fluxo migratório de natureza circular, mas que precisaria ser
relativizado em alguns aspectos, como na definição de “quando voltar” e na “alta seletividade
de gênero”, por exemplo. Em última instância, pelo menos em suas práticas matrimoniais, os
cearenses sinalizavam um interesse de retorno a sua terra natal, que pode ser decorrente tanto
de uma preferência de fato, quanto das poucas possiblidades de interação que esse grupo (em
especial, no caso dos habitantes da colônia Nossa Senhora do Ó) mantinha com a sociedade
paraense como um todo.

MIGRANTES ESTRANGEIROS: OS PORTUGUESES

A migração dos portugueses para a Amazônia e os laços familiares que eles acabaram
por estabelecer no Grão-Pará são temas já bem conhecidos, principalmente após o importante
estudo de Cristina Cancela a respeito do casamento e das relações familiares na Economia da
Borracha. Em sua pesquisa de doutoramento, a autora examinou de que maneira o matrimônio
representou, para aqueles migrantes, uma efetiva estratégia de inserção na sociedade paraense,
especialmente a partir dos enlaces com a elite local.190 Boa parte das tendências apresentadas
nesta seção, em relação aos meados do século XIX, comungam, em suas linhas gerais, com as
tendências apresentadas por Cancela para o período imediatamente posterior, particularmente
no que concerne às diferentes preferências de homens e mulheres portugueses pela endogamia
ou pela exogamia étnica.

Tendo em vista o estudo dos comportamentos matrimoniais dos migrantes portugueses


que contraíram núpcias na freguesia da Sé de Belém durante o período analisado, o recorte de
gênero é de grande importância. Em primeiro lugar, pois a quantidade de homens portugueses
casando era significativamente maior do que a de mulheres dessa naturalidade, expressando
uma diferença existente na própria população da cidade de Belém. Em segundo lugar, porque
189
Sobre a migração cearense para o Pará, entre o final do Oitocentos e o início do Novecentos, cf.: CANCELA,
Cristina Donza. Casamento e relações familiares na economia da borracha, op. cit.; LACERDA, Franciane
Gama. Migrantes cearenses no Pará, op. cit.; NOZOE, Nelson Hideiki et al. Os Refugiados da Seca: emigrantes
cearenses (1888-1889). São Paulo: NEHD/CEDHAL; Campinas/SP: NEPO, 2003.
190
CANCELA, Cristina Donza. Casamento e relações familiares na economia da borracha, op. cit.
72

entre os noivos portugueses as preferências matrimoniais pela endogamia ou pela exogamia se


articulavam de diferentes formas em função do gênero; enquanto os homens casavam-se em
sua grande maioria com mulheres naturais do Pará, as mulheres portuguesas privilegiavam os
consórcios com seus conterrâneos. Naquela freguesia, entre os anos de 1840 e 1870, havia ao
menos um português como nubente em 14,2% (179) de todos os casamentos, e em 17% dos
casamentos envolvendo livres.

Durante praticamente todo o século XIX, a migração de lusitanos ao Pará em geral, e a


Belém em particular, foi constante. Movimento que se deve, em grande parte, aos fortes laços
existentes entre Portugal e o Grão-Pará. Nem mesmo a invasão napoleônica e a consequente
ocupação francesa na península ibérica durante os chamados anos joaninos, que culminaram
no traslado da Família Real e de sua Corte para o Brasil, implicaram intermitências naquele
fluxo.191 O movimento entre as duas regiões configurava, em consonância à classificação de
Charles Tilly,192 um fluxo migratório em cadeia e predominantemente masculino. Uma parte
considerável dos portugueses que deixaram sua terra natal rumo ao Grão-Pará possuía, em seu
destino, pessoas conhecidas (em geral, parentes) que motivavam ou mesmo davam “apoio
logístico” ao ato de migrar.193 Em outro trabalho, relativo à passagem do Oitocentos para o
Novecentos, tivemos a oportunidade de verificar que o pioneirismo de alguns portugueses,
especialmente dos bem-sucedidos, também serviu enquanto um elemento de atração para o
estabelecimento dos seus conterrâneos a Belém.194

Os portugueses presentes nos registros de casamento pesquisados eram originários de


regiões centrais e ao norte de Portugal. Provieram de cidades como Lisboa, Porto, Coimbra,
Braga, Viseu, Lamego e Minho. Alguns poucos portugueses que se casaram na Sé de Belém,
naqueles meados de século, vieram do Arquipélago dos Açores (particularmente de Angra do
Heroísmo e da Ilha de São Miguel) ou da Ilha da Madeira. O fluxo migratório dessas regiões
ao Pará manteve-se constante ao menos até 1920.195 Tratava-se, e é importante destacarmos
isso, de uma tendência migratória mais geral que já foi observada em estudos que enfocaram a

191
Cf.: VIEIRA Jr., Antonio Otaviano & BARROSO, Daniel Souza. Histórias de “movimentos”:
embarcações e população portuguesas na Amazônia joanina. In: Revista Brasileira de Estudos de
População, Rio de Janeiro, 27(1), jan.-jun./2010, pp. 193-210.
192
Ver: CAPÍTULO I, p. 46, nota 137.
193
Cf.: VIEIRA Jr., Antonio Otaviano & BARROSO, Daniel Souza. Histórias de “movimentos”: a migração
de homens, mulheres e famílias de Portugal à Amazônia joanina. In: Simpósio Nacional de História, 26,
2011. São Paulo. Anais... São Paulo: ANPUH-SP, 2011. 16p.
194
Cf.: CANCELA, Cristina Donza & BARROSO, Daniel Souza. Casamentos portugueses em uma capital
da Amazônia: perfil demográfico, normas e redes sociais (Belém, 1891-1920). In: História Unisinos, São
Leopoldo/RS, 15(1), jan.-abr./2011, pp. 60-70.
195
Cf.: CANCELA, Cristina Donza. Casamento e relações familiares..., op. cit.
73

imigração portuguesa em outros contextos e regiões do Brasil.196 Considerando, ainda, que


74,8% de todos eles eram de condição legítima e 85,8% deles do sexo masculino, é muito
provável que tenha havido uma migração seletiva de portugueses a Belém naquele período.

Entre 1840 e 1870, 187 homens de origem portuguesa casaram-se na freguesia da Sé


de Belém, perfazendo 13,7% de todos os homens e 16,3% dos homens livres pesquisados.
Dos nubentes portugueses, 159 (84%) contraíram núpcias com brasileiras e 26 (16%) com
mulheres estrangeiras, sendo 24 delas portuguesas e duas de outras naturalidades. Dos 159
lusitanos que se consorciaram com mulheres brasileiras, 127 (80%) o fizeram com mulheres
paraenses. A maioria delas era natural de Belém ou de regiões mais próximas (como a cidade
de Cametá, localizada na região do Baixo Tocantins). Em menor número, estavam as naturais
de outras províncias (Alagoas, Ceará, Maranhão, Pernambuco, Rio de Janeiro e, por fim, Rio
Grande do Sul). Relativamente ao mesmo período, encontramos 31 mulheres portuguesas
casando, o que correspondia à apenas 2,25% de todas nubentes e 2,3% das nubentes livres.
Delas, 24 contraíram núpcias com conterrâneos seus e as outras sete consorciaram-se com
brasileiros (três paraenses, um baiano e um maranhense) e com dois estrangeiros de outras
naturalidades (um suíço e um italiano).

Mesmo que por diferentes fatores e considerando-se as diferentes conjunturas, os lusos


priorizaram casamento com mulheres locais desde o limiar do século XIX ao limiar do XX. 197
Para eles casar-se com mulheres paraenses significava, para além de firmar laços mais sólidos
com o Pará, a possibilidade de inserirem-se nas redes sociais pré-estabelecidas pelas famílias
das nubentes. Esses consórcios poderiam ser, em variados sentidos, bastante proveitosos para
esses migrantes, especialmente para aqueles envolvidos em atividades mercantis e, sobretudo,
quando os seus cônjuges pertenciam à elite regional.198 A despeito dessas possibilidades, não
podemos deixar de considerar, também, outras nuances atinentes à preferência matrimonial

196
Ver por exemplo: LEITE, Joaquim da Costa. Emigração portuguesa: as leis e os números (1855-1914). In:
Análise Social, Lisboa, 23(97), 1987, pp. 463-480; PEREIRA, Miriam Halpern. A política portuguesa de
emigração (1850-1930). Bauru/SP: EDUSC; Portugal: Instituto Camões, 2002; SARGES, Maria de Nazaré et
alli. (Orgs.). Entre Mares: o Brasil dos portugueses. Belém: Paka-Tatu, 2006; SCOTT, Ana Sílvia. Os
portugueses, op. cit.
197
Por mais que não haja, no acervo da Cúria Metropolitana de Belém, registros paroquiais de casamento
anteriores aos meados da década de 1820, constam Autos de Habilitação para Matrimônio desde os primeiros
anos dos oitocentos. Nesses Autos, é possível vislumbrarmos que o casamento entre os homens portugueses e
mulheres paraenses já era um comportamento arraigado desde aquela época. Porém, não podemos afirmar
também que a endogamia já era uma prática das mulheres lusitanas em Belém, visto que não encontramos
quaisquer referências a mulheres portuguesas nesses Autos.
198
Cf.: CANCELA, Cristina Donza. Famílias de Elite: transformação da riqueza e alianças matrimoniais.
Belém 1870-1920. In: Topoi - Revista de História, Rio de Janeiro, 3(10), jan.-jun./2009, pp. 24-38.
74

dos portugueses, que podem ter condicionado a sua busca por mulheres locais em Belém nos
meados do século XIX.

A primeira metade do Oitocentos, principalmente entre os anos de 1820 e 1840, foi


marcada por um forte sentimento antilusitano, presente na sociedade, na política e nas Artes;
que ia do Romantismo literário brasileiro ao movimento cabano no Grão-Pará. A Cabanagem
configurou, no entendimento de Magda Ricci, uma “experiência de brasilidade” na Amazônia,
suscitada pela criação de uma identidade assentada no ódio ao mandonismo branco (leia-se: o
português) e na luta por direitos e liberdades.199 Nesse sentido, o casamento com mulheres
paraenses pode ter sido, igualmente, uma estratégia adotada pelos migrantes portugueses com
a finalidade de diluírem-se na sociedade local, provavelmente afastando-se, pelo menos em
termos, do estima associado à origem lusitana naquele período.200

Acreditamos, porém, que essa nítida tendência à exogamia presente no comportamento


matrimonial dos homens portugueses deve ser matizada. As fortes ligações entre Portugal e o
Pará e, sobretudo, a expressiva presença de lusitanos na cidade podem ter escamoteado, bem
no cerne de enlaces aparentemente exógamos, uma presença mais contundente de situações
em que havia “endogamia oculta”.201 Nesse sentido, para alguns desses migrantes, a fronteira
entre a endogamia e a exogamia, compreendidas aqui em seu sentido formal (Jus soli), pode
ter sido bastante tênue, o que leva-nos a questionar sobre até que ponto os coeficientes de
endogamia/exogamia são representativos no aferimento do grau de assimilação dos migrantes
lusos à sociedade paraense oitocentista.

Casos ilustrativos dessa questão são os enlaces das duas filhas do rico comerciante e
Cônsul de Portugal no Grão-Pará, Francisco Gaudêncio da Costa. Em 30 de janeiro de 1848,
na casa de sua propriedade, casou-se sua filha Matilde com Henrique de La Roque; ambos os

199
RICCI, Magda. Fronteiras da nação e da revolução: identidades locais e a experiência de ser brasileiro
na Amazônia (1820-1840). In: Botetín Americanista, Barcelona, 58, 2008, pp. 77-96.
200
Investigando as ofensas verbais em Belém, ao longo da segunda metade do século XIX, Conceição Almeida
analisou as representações correlatas à ambiguidade do termo “galego”. Além da denotação usual (o termo era
utilizado para designar indivíduos naturais da Galícia), “galego” também possuía um uso depreciativo que
configurava um insulto. Esse uso depreciativo pode ter decorrido, segundo a autora, da paulatina degradação da
imagem dos migrantes portugueses no Brasil ao longo do Oitocentos, bem como da associação desses migrantes
à ideia de “estrangeiros exploradores”. Cf.: ALMEIDA, Conceição Maria da Rocha. O termo insultuoso: ofensas
verbais, histórias e sensibilidades na Belém do Grão-Pará (1850-1900). (Dissertação de Mestrado em História).
Belém: Universidade Federal do Pará, 2006.
201
Apreendemos por “endogamia oculta” um comportamento matrimonial endógamo na perspectiva étnico-
cultural, porém não endógamo do ponto de vista formal. Por exemplo: o casamento de homens nascidos em
Portugal com mulheres nascidas no Pará, mas de ascendência portuguesa. Para uma discussão mais densa sobre
o conceito de “endogamia oculta”, cf.: TRUZZI, Oswaldo Serra. Pautas matrimoniais na economia cafeeira
paulista: São Carlos, 1860-1930. XVII Encontro Nacional de Estudos Populacionais, 2010. Caxambu/MG.
Anais... Caxambu/MG: Associação Brasileira de Estudos Populacionais, 2010. 21p.
75

nubentes naturais do Porto e filhos de pais portugueses. Ele, filho legítimo de João Luís de La
Roque e Rosa de Melo La Roque, e ela, filha legítima de Francisco com d. Ludovina Nery da
Costa.202 O enlace, muito possivelmente ligado a interesses mercantis, selou a união de duas
importantes famílias de comerciantes portugueses da praça local. 203 Essa rede familiar entre
os La Roque e os Costa, encetada pelo casamento entre Henrique e Matilde, foi ainda realçada
pelos matrimônios de dois irmãos seus: o também português Luís de La Roque e Emília da
Costa subiram ao altar em 1854.204 Emília, no entanto, não era de origem lusitana, mas natural
de Belém. Nesses termos, como poderíamos considerar o casamento de Matilde endógamo e o
de Emília exógamo, uma vez que eram de filhas dos mesmos pais? Trata-se, talvez, de um
caso limite, mas que nos leva a refletir sobre a questão.

O matrimônio entre Henrique e Matilde suscita ainda outra discussão. Os noivos não
eram apenas portugueses, mas também portucalenses. Posto que essa informação não fosse
recorrente nos registros pesquisados, podemos observar que, assim como no casamento entre
Henrique e Matilde, as situações de endogamia remeteram-se tanto à origem lusa em geral,
como às origens regionais dentro do território português. Foi o que também ocorreu, dentre
outros casos, no conúbio entre Joaquim da Silva Pingarilho e Ana Vitorina, naturais da vila de
Estremoz no distrito de Évora.205 O casamento endógamo entre portugueses da mesma origem
regional pode sugerir, tal como havia em relação aos migrantes cearenses, o desejo de retorno
a uma região específica de Portugal. A nosso ver, contudo, essa preferência poderia ter raízes
ainda mais profundas, estando relacionada aos dois diferentes sistemas familiares existentes
naquele país; um situado ao noroeste, na região do Minho (de onde proveio grande parte dos
nubentes que se casaram em Belém no período estudado), e outro localizado mais ao sul de
Portugal, na região do Alentejo.206

202
ACMB. Livro I de Registros de Casamento do Curato da Sé de Belém, p. 45.
203
MARIN, Rosa Elizabeth Acevedo. Alianças matrimoniais na alta sociedade paraense no século XIX, op.
cit., p. 162.
204
ACMB. Livro I de Registros de Casamento do Curato da Sé de Belém, pp. 84(v)-85.
205
ACMB. Livro I de Registros de Casamento do Curato da Sé de Belém, p. 90.
206
De acordo com Ana Scott, o Minho era, desde o século XVI, a região com maior densidade demográfica de
Portugal e sua organização econômica, centrada principalmente em minifúndios, era votada ao cultivo do milho.
Por sua vez, a região do Alentejo possuía uma baixa densidade demográfica e sua organização econômica,
centrada em latifúndios, tinha por base a produção do trigo e do centeio. Até pelo menos meados do século XX,
a organização social e familiar de Portugal estava associada sobremaneira à agricultura. Além de outros fatores
(como a lógica de transmissão de bens, por exemplo), as diferentes condições de produção e de acesso à terra
nessas regiões deram ensejo, segundo a autora, à conformação de dois sistemas familiares distintos. Enquanto no
Minho observava-se um casamento mais tardio (entre os 25 e os 28 anos de idade), a presença não rara de
celibatários e as altas taxas de ilegitimidade, no Alentejo o casamento era praticamente universalizado (o que,
naturalmente, refletia em baixas taxas de ilegitimidade), ocorria em torno dos 20 anos de idade e resultava na
76

Os apontamentos feitos nas últimas páginas sugerem que os portugueses buscavam no


casamento uma forma de se inserirem e de serem assimilados na sociedade paraense. Mesmo
que os índices de endogamia/exogamia devam ser matizados pelos motivos que expusemos há
pouco, há uma clara tendência naquele sentido. Seja com vistas a diluírem-se na sociedade
paraense por conta de um crescente sentimento antilusitano existente no Oitocentos ou mesmo
em relação à tentativa de estabelecerem-se comercialmente tendo enquanto alicerce toda uma
rede de relações estabelecida pela família das nubentes nativas, a exogamia representou, para
os homens portugueses, um marcante comportamento matrimonial. Comportamento esse que,
por diferentes motivos, diferenciou-se do outro grupo de migrantes analisado – os cearenses.

RESUMINDO...

Na última seção, acompanhamos de que modo quatro grupos específicos (a elite local,
os escravos, os migrantes portugueses e os migrantes cearenses) experimentaram o casamento
na cidade de Belém, entre 1840 e 1870, de diferentes formas. As nuances da endogamia e da
exogamia, tanto social quanto por origem, se articularam de diferentes maneiras relativamente
àqueles grupos. Além disso, observarmos de que modo o gênero atuava como um importante
marcador social para o delineamento de suas preferências matrimoniais. Não apenas tratamos,
por exemplo, do casamento entre os escravos, mas de que forma homens e mulheres cativos,
ora no núcleo urbano de Belém, ora em regiões mais afastadas da Capital, experimentaram o
casamento de formas diferenciadas. A análise da suscetibilidade de certos grupos à endogamia
ou à exogamia, em vários dos seus matizes, norteou nossas últimas discussões.

A princípio, enfocamos na dinâmica da homogamia entre a elite e, mais detidamente,


entre os escravos. Nosso interesse recaiu em verificar de que maneira(s) a condição social dos
nubentes foi um elemento-chave para a concepção dos enlaces matrimoniais. Em diálogo com
o conceito de estratégias matrimoniais proposto por Pierre Bourdieu, observamos que aqueles
casamentos, engendrados nos seus respectivos habitus, acabaram corroborando a reprodução
da estrutura social vigente, conformando-se dentro dos limites impostos por ela (como no que
diz respeito à socialização de cada grupo, por exemplo). Interesses multifacetados estavam em
jogo, mas todos seguiam com maior ou menor intensidade uma regra ideal: a homogamia.

criação de uma unidade familiar que geralmente se estabelecia em um novo domicílio. Cf.: SCOTT, Ana Sílvia.
Viver em um país de contrastes. In: Os Portugueses. São Paulo: Editora Contexto, 2010, pp. 53-90.
77

Em seguida, passamos a analisar as preferências matrimoniais conforme a naturalidade


dos noivos, focalizando um grupo de migrantes brasileiros (os cearenses) e outro de migrantes
estrangeiros (os portugueses). Evidenciamos que cada um desses grupos possuía padrões de
casamento distintos. Os cearenses, indistintamente, priorizavam os consórcios endógamos,
dentre outros fatores, com a finalidade de não criar vínculos permanentes com o Pará, abrindo
assim a possibilidade de retorno para a sua terral natal. Os portugueses, por sua vez, possuíam
padrões que se conformavam em função do gênero. Por diferentes motivos, como o crescente
sentimento antilusitano, buscavam no casamento um modo de diluírem-se na sociedade local.
Todos esses aspectos ajudaram a nuançar os dados quantitativos apresentados na primeira
parte deste trabalho, que gostaríamos de matizar mais ainda examinando a dinâmica dos “ritos
nupciais”.

1.3. A DINÂMICA DO RITO NUPCIAL: ESCOLHA DAS TESTEMUNHAS, O MOVIMENTO


SAZONAL E OS LOCAIS DE CASAMENTO

A realização de uma cerimônia de casamento e, consequentemente, todos os aspectos


simbólicos que a permeavam, variavam em conformidade ao grupo social, étnico e cultural ao
qual o enlace estava imbricado. Antes de qualquer coisa, o matrimônio é um “evento” cultural
que, como tal, relaciona um ato específico (o ato de casar) à estrutura simbólica na qual está
inserido; sendo por ela influenciado e ajudando a ressignificá-la, concomitantemente. Nessa
perspectiva, o “rito nupcial” e, por conseguinte, os seus respectivos desdobramentos sociais,
materializam-se em síntese de reprodução e variação cultural.207 Interessa-nos, de agora em
diante, entender a dinâmica dos “ritos nupciais” em torno da sua sazonalidade, dos locais em
que ocorriam os casamentos e da escolha das testemunhas.

207
Para o entendimento dos casamentos enquanto eventos culturais, apropriamo-nos do conceito de “evento”
elaborado pelo antropólogo americano Marshall Sahlins. Cf.: SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
78

MOVIMENTO SAZONAL DOS CASAMENTOS

O movimento sazonal dos casamentos representa, seguramente, um rico indicador do


cotidiano.208 Reflete costumes e tradições, interdições e mentalidades religiosas, e a influência
das atividades sociais e econômicas,209 apresentando variações de acordo com os segmentos
da sociedade, por fatores de natureza diversa.210 Ao analisarmos essas preferências por certos
dias e meses em Belém, entre 1840 e 1870, podemos vislumbrar, simultaneamente, rupturas e
continuidades. Enquanto a preferência por determinados meses manteve-se relativamente
constante ao longo do período analisado, apresentando apenas algumas pequenas oscilações
anuais, a preferência por determinados dias da semana passou por profundas transformações,
mais entre os casamentos de pessoas livres do que entre os casamentos de escravos.

Os estudos a respeito do movimento sazonal dos casamentos convencionaram o uso de


números relativos para a apresentação dos dados da pesquisa, ao invés dos números absolutos
ou dos percentuais. Cada dia da semana ou mês do ano são representados em função de uma
média pré-determinada por unidade, que é de 100. Quanto maior o distanciamento desse valor
para cima e para baixo, maior, respectivamente, a preferência ou a repulsa por determinados
dias e meses. Cada semana e ano correspondem, em números relativos, a 700 e 1200 – valores
que nada mais são do que a soma das unidades que os compõem (sete dias por semana e 12
meses por ano). Como a média-base de comparação é 100, é justamente esse o parâmetro que
utilizamos como eixo horizontal dos gráficos (histogramas) de sazonalidade presentes neste e
no próximo capítulo. As representações gráficas devem ser lidas da seguinte maneira: os dias
e os meses que sobejam o eixo horizontal são aqueles mais procurados para a realização dos
eventos em questão; enquanto os que se localizam abaixo do eixo são os menos procurados.211

208
NADALIN, Sérgio Odilon, História e Demografia, op. cit.
209
NADALIN, Sérgio Odilon. ibidem, p. 89.
210
Ver: MARCÍLIO, Maria Luiza. Tempo de amar, de nascer, de morrer do caiçara. In: Caiçara: Terra e
População. São Paulo: EDUSP, 2006 [1986].
211
Sobre a metodologia empregada pela Demografia Histórica no concerne à análise do movimento sazonal dos
batismos e dos casamentos, ver: CARDOSO, Jayme Antônio & NADALIN, Sérgio Odilon. Os meses e os dias
de casamento no Paraná – séculos XVIII, XIX e XX. In: História: Questões e Debates, Curitiba, 3(5), Dez./
1982, pp. 105-129.
79

GRÁFICO 1.2
MOVIMENTO SAZONAL DOS CASAMENTOS DE LIVRES E ESCRAVOS POR MESES (1840-1870)

Jan. Fev. Mar. Abr. Mai. Jun. Jul. Ago. Set. Out. Nov. Dez.
250

200

150

100

50

0
Casamentos de livres Casamentos de escravos

FONTE: LIVROS I E II DE REGISTROS PAROQUIAIS DE CASAMENTO DA FREGUESIA DA SÉ DE BELÉM

O GRÁFICO 1.2 apresenta o movimento sazonal dos casamentos de livres e cativos em


Belém, entre 1840 e 1870, de acordo com os meses. Procedendo a leitura do gráfico à maneira
indicada no parágrafo anterior, podemos observar uma distribuição pouco harmoniosa dos
casamentos ao longo do ano, assim como algumas diferenças entre as preferências de livres e
escravos pelos meses para casar. O maior número de casamentos entre pessoas livres ocorria
nos meses de junho e novembro, sendo igualmente representativa a quantidade de enlaces que
tinha vez em maio, outubro, janeiro e fevereiro. Já os casamentos entre escravos ocorriam, em
maior número, em um intervalo que ia de junho a setembro de cada ano. No restante do ano,
os matrimônios de cativos aconteciam de maneira esparsa e esporádica, longe da concentração
que havia nesse intervalo.

A maior parte dos casamentos ocorridos em Belém, nas décadas de 1840, 1850 e 1860,
era realizada entre o final do primeiro semestre e o mês de novembro de cada ano, tanto entre
livres quanto entre cativos. Trata-se de um período que se iniciava logo em seguida à “estação
morta” da borracha, que ia aproximadamente de março a maio. Durante essa “estação morta”,
havia uma menor liquidez econômica e uma diminuição do fluxo de capital que circulava em
no Grão-Pará em geral, e em Belém, em particular.212 O fato de a concentração de uma maior
quantidade de casamentos ocorrer justamente quando a economia voltava a se dinamizar pode
não ser mera casualidade. Deixava-se para casar ou para levar seus escravos ao altar quando o
212
WEINSTEIN, Barbara. A Borracha na Amazônia, op. cit., p. 75.
80

fluxo de capital se intensificava novamente; portanto, quando havia uma maior circulação do
dinheiro que era necessário para cobrir as despesas com os casamentos.

No entanto, apesar da compatibilidade entre os períodos de aquecimento da economia


local e de maior número de matrimônios, a concentração dos ritos nupciais entre o final do
primeiro semestre e o mês de novembro remontava, como veremos mais adiante, pelo menos
ao início da década de 1840, época em que a borracha ainda não figurava enquanto o principal
produto de exportação da economia paraense. Aparentemente, as preferências pelos meses de
casamento conformavam-se mais em função das interdições religiosas, do que da dinâmica
social e produtiva da região. Os meses de março e dezembro, marcados pela Quaresma e pelo
Advento, eram aqueles em que havia o menor número de enlaces, muitos dos quais realizados
ainda sob licença específica da autoridade eclesiástica competente.213

A distribuição dos casamentos pelos meses em Belém, nos meados do século XIX, era
parecida às sazonalidades encontradas, em estudos anteriores, em relação a outras regiões do
Grão-Pará e do Brasil em períodos próximos ao que estudamos, mesmo havendo diferenças
expressivas entre as estruturas sociais e econômicas de cada contexto analisado. A propósito
de uma comparação interessa-nos cotejar os dados apresentados aos movimentos sazonais dos
casamentos verificados para a região do Xingu, no Pará, por Arlene Kelly-Normand, e na vila
de Sorocaba, em São Paulo, por Carlos Bacellar. A confrontação entre três realidades sociais,
demográficas e econômicas tão distintas pode evidenciar o que, para cada caso, representou
um comportamento local; na mesma medida, pode ajudar-nos a delinear características gerais
do movimento sazonal dos casamentos no Brasil oitocentista.

O movimento sazonal dos casamentos em Belém assemelhava-se aos movimentos de


outras regiões do Pará, no mesmo período. Investigando a sazonalidade dos matrimônios em
Porto de Moz, na região do Xingu, entre os anos de 1839 e 1889, Kelly-Normand encontrou
uma preferência pela realização dos matrimônios entre os meses de maio, junho e julho. Na
freguesia de Souzel, também localizada no vale do rio Xingu, havia, entre os anos de 1857 e
1889, uma preferência próxima, mas que apresentava um menor número de casamentos junho,
sendo apenas maio e julho os meses preferenciais à realização dos casamentos. Em ambas as
localidades analisadas pela autora, os meses de março e dezembro exibiram um decréscimo

213
As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, seguindo as disposições tridentinas, determinavam a
proibição das solenidades de casamento durante a Quaresma (quarenta dias antes da Páscoa) e o Advento (três
semanas antes do Natal). Especificavam, também, que os ritos nupciais deveriam ocorrer preferencialmente pela
manhã. Cf.: VIDE, Sebastião Monteiro da. Título LXIV, n. 269. In: Constituições Primeiras do Arcebispado da
Bahia. São Paulo: EDUSP, 2010 [1707], pp. 242-243.
81

abrupto na quantidade de casamentos. Arlene Kelly não deixa claro se o movimento sazonal
apresentado diz respeito à população livre, à população escrava ou à população total daquelas
localidades, o que nos impossibilita de proceder a uma comparação um pouco mais acurada
entre a sazonalidade dos casamentos em Belém e em regiões do vale do Xingu. 214

A vila paulista de Sorocaba, estudada por Carlos Bacellar, era um importante núcleo
de abastecimento interno e comercialização de gado nos séculos XVIII e XIX. Ao investigar o
movimento sazonal de casamentos da população livre dessa vila, entre 1679 e 1830, o autor
verificou preferências por certos meses de casamento não muito distantes daquelas que agora
encontramos para Belém, em que pese uma maior concentração dos casamentos de Sorocaba
no mês de fevereiro. Além disso, conforme Bacellar, o calendário matrimonial de Sorocaba
também se apresentava, tal como o de Belém e os das vilas do Xingu pesquisadas por Arlene
Kelly, muito mais adaptado aos preceitos religiosos do que à própria dinâmica produtiva de
cada região.215 Desse modo, a despeito da preferência por determinados meses em nível local,
o movimento sazonal dos casamentos no Brasil arcaico seguia linhas gerais muito próximas,
em conformidade, primeiro, ao calendário religioso e suas interdições, e, em segundo lugar, às
conjunturas sociais, demográficas e econômicas específicas de cada região.

TABELA 1.7
VARIAÇÕES NO MOVIMENTO SAZONAL DOS CASAMENTOS DE LIVRES POR MESES (1840-
1870), EM NÚMEROS RELATIVOS

Anos Jan. Fev. Mar. Abr. Mai. Jun. Jul. Ago. Set. Out. Nov. Dez. Total
1840-45 113 78 07 120 92 198 64 106 85 127 134 78 1200
1846-50 155 109 27 64 155 127 18 100 109 173 127 36 1200
1851-55 128 122 29 128 133 128 128 81 99 87 122 17 1200
1856-60 187 87 12 93 162 87 106 106 93 131 112 25 1200
1861-65 80 127 52 80 98 145 127 108 113 131 127 14 1200
1866-70 100 155 34 66 121 121 107 69 131 117 152 28 1200
FONTE: LIVROS I E II DE REGISTROS PAROQUIAIS DE CASAMENTO DA FREGUESIA DA SÉ DE BELÉM

A TABELA 1.7 retoma uma questão levantada antes: as variações na preferência pelos
meses de casamento no decorrer do período pesquisado. Como podemos observar, o intervalo
entre o fim do primeiro semestre e o mês de novembro representou, desde o início dos anos de

214
Ver: KELLY-NORMAND, Arlene. Family, Church and Crown: a social and demographic history of the
lower Xingu valley and the municipality of Gurupá, 1623-1889. (PhD. Thesis in History). Florida: University of
Florida, 1984, pp. 358-421.
215
Cf.: BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. As estações da vida. In: Viver e sobreviver em uma vila
colonial: Sorocaba, séculos XVIII e XIX. São Paulo: Annablume/FAPESP, 2001, pp. 71-97.
82

1840, o período de ocorrência da maior quantidade de matrimônios entre a população livre de


Belém. Alguns meses, contudo, passaram ou deixaram de ser mais procurados para casar-se.
Fevereiro e setembro, por exemplo, passaram a figurar como alguns dos meses em que mais
havia casamentos, enquanto agosto deixou gradualmente de ser procurado. Meses como junho
e novembro, à exceção de pequenas oscilações entre um quinquênio e outro, mantiveram-se,
ao longo dos anos 1840, 1850 e 1860, entre os meses prediletos para a realização dos enlaces
de pessoas livres na cidade.

TABELA 1.8
VARIAÇÕES NO MOVIMENTO SAZONAL DOS CASAMENTOS DE ESCRAVOS POR MESES (1840-
1870), EM NÚMEROS RELATIVOS

Anos Jan. Fev. Mar. Abr. Mai. Jun. Jul. Ago. Set. Out. Nov. Dez. Total
1840-45 43 86 43 171 129 300 86 43 129 129 43 0 1200
1846-50 218 109 0 0 109 55 109 327 55 109 55 55 1200
1851-55 75 113 0 38 113 188 113 150 225 75 75 38 1200
1856-60 71 212 0 71 71 141 141 71 212 0 212 0 1200
1861-65 160 0 0 80 0 480 240 0 0 80 80 80 1200
1866-70 120 0 60 0 180 60 60 120 360 120 60 60 1200
FONTE: LIVROS I E II DE REGISTROS PAROQUIAIS DE CASAMENTO DA FREGUESIA DA SÉ DE BELÉM

Padrão semelhante àquele é indicado na TABELA 1.8, relativamente à sazonalidade dos


casamentos dos escravos belenenses. Os casamentos entre esse grupo social também estavam
concentrados entre o final do primeiro e o avançar do segundo semestre. Junho e setembro,
seguidos de fevereiro, foram os meses em que ocorreu o maior número de casamentos entre
cativos em Belém. No caso da sazonalidade dos matrimônios desse grupo, as variações entre
um quinquênio e outro estão, a nosso ver, muito mais relacionadas à amostragem realizada do
que a mudanças efetivas nas preferências dos escravos por determinados meses. O pequeno
número absoluto (134) de registros computados em relação a esse grupo social pode ter feito
das oscilações apresentadas na TABELA 1.8 movimentos aleatórios. Ainda assim, não há como
deixarmos de considerar março como um mês em que praticamente não havia casamentos de
cativos; durante cerca de 20 anos (1846-1865), não houve sequer um casamento de escravos
na freguesia da Sé de Belém, ocorrido em março.

Com o avançar do tempo, a sazonalidade dos casamentos na cidade foi sofrendo uma
série de mudanças. Em estudo anterior, analisamos o movimento sazonal dos casamentos em
Belém, no início do século XX, com base nos registros de casamento civil. Observamos que,
entre os anos de 1908 e 1925, os enlaces se concentravam entre os meses de março e julho,
83

apresentando retração em agosto e setembro; voltando a se intensificar em outubro, e mais


uma vez se contraindo entre novembro e fevereiro do outro ano. Por mais que essa tendência
não sirva de parâmetro comparativo para os meados do Oitocentos, tendo em vista as fontes
que suportaram aquele trabalho (os casamentos civis, naturalmente laicos, não têm períodos
de interdição como a Quaresma e o Advento), é possível observarmos que maio, junho e julho
permaneceram entre os meses em que mais havia cerimônias de casamento.216

GRÁFICO 1.3
MOVIMENTO SAZONAL DOS CASAMENTOS DE LIVRES E ESCRAVOS POR DIAS DA SEMANA
(1840-1870)

Domingo 2ª-feira 3ª-feira 4ª-feira 5ª-feira 6ª-feira Sábado


300

250

200

150

100

50

0
Casamentos de livres Casamentos de escravos

FONTE: LIVROS I E II DE REGISTROS PAROQUIAIS DE CASAMENTO DA FREGUESIA DA SÉ DE BELÉM

Se entre os anos de 1840 e 1870, o redimensionamento social e econômico pelo qual


passou o Grão-Pará não modificou os meses preferenciais de casamento em Belém, o mesmo
não podemos dizer no que tange às preferências pelos dias da semana. Nesse período, cerca de
um terço de todos os ritos ocorreu aos sábados; uma concentração que teve início no limiar
da década de 1850, e acentuou-se nos anos seguintes. Observemos os extremos cronológicos.
No início dos anos de 1840, os casamentos eram relativamente bem distribuídos ao longo dos
dias da semana, havendo uma menor quantidade de casamentos somente nas segundas e nas
sextas-feiras, tanto entre livres quanto entre escravos. No início dos anos de 1860, os sábados
já aglutinavam mais da metade dos enlaces envolvendo pessoas livres, sendo também um dia
representativo para o casamento entre escravos. Paralelamente à consolidação dos sábados

216
Cf.: BARROSO, Daniel Souza. Família e Imigração, op. cit.
84

como “o dia de casamento”, os domingos foram sendo deixados de lado, quase se igualando
às sextas-feiras como os dias em que menos havia casamentos.

TABELA 1.9
VARIAÇÕES NO MOVIMENTO SAZONAL DOS CASAMENTOS DE ESCRAVOS POR DIAS DA
SEMANA (1840-1870), EM NÚMEROS RELATIVOS

Anos Domingo 2ª-feira 3ª-feira 4ª-feira 5ª-feira 6ª-feira Sábado Total


1840-45 135 108 135 108 81 0 135 700
1846-50 350 64 32 32 127 64 32 700
1851-55 197 66 131 88 66 44 109 700
1856-60 41 247 82 165 41 82 41 700
1861-65 93 93 0 47 47 93 327 700
1866-70 70 140 175 0 70 140 105 700
FONTE: LIVROS I E II DE REGISTROS PAROQUIAIS DE CASAMENTO DA FREGUESIA DA SÉ DE BELÉM

Mesmo em vista da possível aleatoriedade concernente às mudanças no movimento


sazonal dos casamentos de escravos pesquisados, alguns aspectos são dignos de destaque. Em
primeiro lugar, o fato de grande parte dos casamentos desse grupo ter se distribuído ao longo
da semana, e não se aglutinado nos finais de semana como os enlaces das pessoas de condição
livre. Em segundo lugar, o fato de o domingo ter persistido por mais tempo como um dia para
a realização dos casamentos se comparado às preferências dos livres por esse dia. Até meados
dos anos de 1850, havia um número razoável de matrimônios de cativos sendo realizados aos
domingos. Tratava-se de um dia particularmente interessante para casarem-se os escravos,
sem comprometer a produtividade do seu trabalho nos dias úteis da semana. Ainda mais
considerando o fato de as cerimônias desse grupo em geral envolverem dois ou mais escravos
de um mesmo senhor, no caso dos casamentos coletivos ou de escravos de um mesmo plantel.

TABELA 1.10
VARIAÇÕES NO MOVIMENTO SAZONAL DOS CASAMENTOS DE LIVRES POR DIAS DA SEMANA
(1840-1870), EM NÚMEROS RELATIVOS

Anos Domingo 2ª-feira 3ª-feira 4ª-feira 5ª-feira 6ª-feira Sábado Total


1840-45 113 71 104 113 113 71 117 700
1846-50 34 123 101 95 101 134 112 700
1851-55 47 101 98 68 91 41 254 700
1856-60 44 51 80 54 123 58 290 700
1861-65 35 58 66 73 58 40 369 700
1866-70 27 71 93 58 77 55 318 700
FONTE: LIVROS I E II DE REGISTROS PAROQUIAIS DE CASAMENTO DA FREGUESIA DA SÉ DE BELÉM
85

Mas, o que teria condicionado a paulatina concentração dos casamentos de livres aos
sábados? Acreditamos que esse processo, vivenciado por várias regiões do Brasil no mesmo
período, 217 se deu, no caso de Belém, em decorrência de um duplo movimento. Por um lado,
sob influência do reordenamento econômico na cidade, marcado pela ascensão das profissões
liberais e do setor terciário, o que dificultava a realização dos matrimônios no meio da semana
(concentrando-os, inclusive, no início ou no final dos meses, o que pode estar associado aos
dias de recebimento dos salários). Por outro lado, sob a influência de um remodelamento dos
aspectos de ordem simbólica dos ritos nupciais quanto ao seu caráter público, o que, por seu
turno, era intrínseco aos locais de realização dos matrimônios e às estratégias de escolha das
testemunhas – aspectos aos quais nos ateremos de agora em diante.

OS LOCAIS DE CASAMENTO

A essência do casamento enquanto um evento entrecruza as esferas privada e pública,


evidenciando um acontecimento que, se por um lado, estava inscrito na intimidade familiar,
por outro, possuía um forte apelo social. A gradual concentração dos matrimônios das pessoas
livres nos sábados, a priori um dia “livre”, realça o rito nupcial enquanto um evento social de
grande importância para os nubentes e suas famílias. Era necessário celebrar-se a cerimônia
em um dia que possibilitasse a presença maciça do círculo de amizades e das parentelas das
famílias que estabeleciam, no evento, uma aliança matrimonial. A união de duas famílias, por
meio do casamento, tornava-se então pública para o conhecimento dos seus pares sociais. Os
ritos não se restringiam, contudo, aos dias em que ocorriam. A liturgia do casamento também
incluía a preparação do ambiente e o papel a ser desempenhado pelas testemunhas.

No Brasil oitocentista, o cerimonial do casamento aproximava-se menos do costume


francês218 e mais do costume português. As regras de etiqueta indicavam a realização de uma

217
Em Curitiba e em Ubatuba, o sábado já se configurava, desde o início do século XIX, como um dia de grande
procura para o casamento, o que viria a intensificar-se com a aproximação do século XX. Cf.: BACELLAR,
Carlos de Almeida Prado. As estações da vida, op. cit. Aparentemente, a mesma tendência ocorreu em Belém,
que no início desse século concentrava a grande maioria de seus casamentos também aos sábados. Cf.:
BARROSO, Daniel Souza. Família e Imigração, op. cit.
218
Sobre os costumes franceses de casamento no século XIX, ver: MARTIN-FUGIER, Anne. Os ritos da vida
privada burguesa. In: PERROT, Michelle (Org.). História da Vida Privada, v. 4: da Revolução Francesa à
Primeira Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2009 [1987], pp. 176-245.
86

cerimônia na igreja e outra “em família”.219 Ao longo do Oitocentos, os ritos nupciais, assim
como os de batismo e, em menor proporção, os de primeira comunhão, passaram a ter graus
cada vez maiores de sofisticação e de valorização pública, atuando como signos de prestígio e
de aquilatamento social; especialmente em relação às camadas mais abastadas da população,
para as quais a cerimônia de casamento consubstanciava-se, ao mesmo tempo, em uma marca
de distinção entre seus pares e um parâmetro para os demais grupos sociais. 220

A lógica da cerimônia era, portanto, de caráter marcadamente idiossincrático. Basta


observarmos, por exemplo, que a indumentária e as regras de etiqueta atinentes aos ritos entre
as elites não se aplicavam, de igual maneira, às camadas menos abastadas. Uma diferença que
não estava centrada tão-somente em condições materiais desniveladas, mas, acima disso, nas
distintas acepções relacionadas ao matrimônio como um ato (de representação) social. Se, por
um lado, a família tendia a fechar-se em sua intimidade; por outro, não deixava de tornar-se
pública a partir das cerimônias de casamento. A ambivalência e, em certa medida, a própria
interpenetração das esferas pública e privada nos ritos nupciais, sobretudo naqueles ocorridos
no ambiente doméstico, realçavam o matrimônio (no sentido de evento) como o mais público
dos atos privados, na feliz e conhecida expressão de Anne Martin-Fugier.

O rito nupcial nem sempre ocorria na Igreja. Em um de cada quatro casamentos, as


uniões eram abençoadas fora da Catedral, ocorrendo em outras igrejas ou capelas; na casa dos
nubentes, de seus parentes ou de pessoas próximas; em fazendas ora adjacentes a Belém, ora
mais ao interior da província do Pará, e em locais menos recorrentes, como no Arsenal da
Marinha, em uma olaria (pertencente aos herdeiros do capitão Francisco José da Silva) e no
Recolhimento das Educandas, por exemplo. Cada situação implicava nuances diferenciadas.
Casar-se na Igreja Matriz não era o mesmo que casar-se em casa, não só por uma diferença de
“ambiente”, como também pelas consequências que essa mudança trazia à dinâmica em torno
da cerimônia de casamento. A preferência pelo recebimento das “bênçãos nupciais” em certos
locais reforçava, sem dúvida, a perspectiva do matrimônio como um ato cultural fortemente
vinculado ao seu entorno social.

A maioria (80%) dos casamentos pesquisados ocorria em igrejas ou capelas situadas


na freguesia da Sé. Para além da Igreja Matriz, onde houve três de cada quatro casamentos,
os enlaces também aconteciam com maior recorrência na capela do Palácio Episcopal, na

219
Para uma discussão mais detalhada sobre a lógica e os preparativos de uma cerimônia de casamento no Brasil,
ao longo do século XIX, cf.: MUAZE, Mariana. A caminho do altar. In: As Memórias da Viscondessa: família
e poder no Brasil Império. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008, pp. 39-56.
220
MUAZE, Mariana. As Memórias da Viscondessa, op. cit., p. 185.
87

Igreja de São João Batista, na Igreja das Mercês e na Igreja do Convento de Nossa Senhora do
Carmo – que, inclusive, serviu como matriz à Sé de Belém nos meados da década de 1860.221
Em linhas gerais, ao considerarmos o perfil dos casamentos ocorridos em igrejas ou capelas
da freguesia Sé, não observamos diferenças acentuadas entre os que aconteceram na Igreja
Matriz ou fora dela. A única dissensão pouco mais relevante concerne à Igreja de São João
Batista, onde as bênçãos nupciais eram conferidas, geralmente, antes do nascer ou depois do
pôr-do-sol, comportamento que era comum quando do casamento de mulheres já grávidas.

Prosseguindo com os casamentos realizados ante a Igreja e deixando de lado aqueles


realizados da Sé, encontramos alguns matrimônios efetivados na freguesia da Trindade, região
de colonização mais recente da cidade, e nenhum ocorrido na paróquia de Santana. Para além
da Igreja Matriz da Trindade, as “bênçãos” eram dadas preferencialmente na Igreja de Nossa
Senhora do Rosário dos Homens Brancos, na mesma freguesia. Entre os registros arrolados,
não havia diferenças expressivas entre o perfil daqueles que se casavam na Igreja Matriz Sé,
em outras capelas ou igrejas dessa freguesia, ou fora da mesma, o que não significa dizer que
não pudesse haver perfis distintos entre a paróquia da Sé e as demais freguesias. E se existiam
de fato diferenças durante o período analisado, elas certamente tornaram-se mais nítidas no
contexto imediatamente posterior, com a intensificação da migração para a região.222

A certa homogeneidade presente nos casamentos ocorridos na Igreja não se aplicava,


todavia, às cerimônias ocorridas em outros locais. O recebimento das “bênçãos nupciais” em
casa ou na fazenda era condicionado por situações específicas e implicava, ora de forma mais,
ora de forma menos vigorosa, a reconfiguração de certos aspectos relativos ao matrimônio. O
“rito” matizava-se conforme as práticas culturais e os valores simbólicos associados ao grupo
em que o enlace estava inscrito, conformando-se igualmente em relação ao “ambiente” onde
acontecia. Analisar o porquê da “escolha” dos locais de casamento ajuda-nos a entender o rito
nupcial enquanto uma representação multifacetada, que poderia ser influenciada tanto pela

221
Praticamente todos os casamentos ocorridos na freguesia da Sé de Belém, entre o final de 1865 e 1866, foram
realizados na Igreja do Convento de Nossa Senhora do Carmo. Ao consultarmos os relatórios da administração
provincial da mesma época, verificamos referências frequentes ao “estado das [igrejas] matrizes” da província do
Pará e aos esforços da administração pública em reformá-las. Por mais que não tenhamos encontrado quaisquer
menções à Igreja Matriz da Sé, somos levados a acreditar que a mesma passasse por reparos durante o período
em questão.
222
Ao analisar o perfil demográfico do casamento em Belém, entre 1870 e 1920, Cristina Cancela observou uma
nítida diferença entre o perfil dos nubentes que se casavam nas freguesias da Sé e de Nazaré. O número de
migrantes (notadamente os de origem nordestina) contraindo núpcias na freguesia de Nazaré era mais expressivo
do que na paróquia da Sé; o que, no argumento da autora, justifica-se pelo fato de Nazaré abranger uma região
de urbanização mais recente da cidade, sendo mais próxima de locais onde estabelecerem-se colônias agrícolas
cuja mão-de-obra era constituída, preferencialmente, por uma população migrante. Cf.: CANCELA, Cristina
Donza. Casamento e relações familiares na economia da borracha..., pp. 147-148.
88

finalidade de criarem-se mecanismos de inserção e manutenção do status social, quanto por


outras necessidades de diversas ordens.

Em 17 de janeiro de 1848, contraíram matrimônio João Diogo Clemente Malcher e d.


Teodora Miranda Ribeiro. João Diogo era filho do já falecido Tenente Coronel Felix Antônio
Clemente Malcher, natural de Monte Alegre, um rico proprietário de fazendas no Acará e um
dos principais líderes da Cabanagem, com d. Rosa Maria Henriques de Lima. A nubente era
filha do também falecido Capitão de Mar-e-Guerra Guilherme Cipriano Ribeiro com d. Joana
de Miranda Azevedo. Esse casamento, que teve por testemunhas Joaquim Manoel de Oliveira
Figueiredo e José da Gama Malcher, primo do nubente, teve vez na casa da família da noiva,
situada na paróquia da Sé de Belém.223 O enlace entre João Diogo e Teodora não implicava
inflexão alguma às práticas de casamento da elite local, norteadas por um ideal homogâmico e
caracterizadas por enlaces horizontais (por vezes, inclusive consanguíneos) circunscritos a um
grupo reduzido. Entretanto, por outro lado, evidencia uma prática que cada vez mais viria a
consolidar-se em meio a esse grupo: a tendência a delimitar o acesso público aos “ritos”. Seria
essa delimitação um indício da concepção de “privacidade familiar”?

A relação entre a família e a comunidade que a cinge foi um dos elementos que mais
sofreu alterações com o processo de formação da família moderna. Durante esse processo, a
família afastou-se da comunidade circundante guardando-se em sua própria privacidade, cuja
densidade variava em consonância à escala social e à região. De acordo com alguns autores, a
ideia de domesticidade (em certa medida, situada na interseção entre as ideias de intimidade,
privacidade e solidariedade) ganhou corpo justamente quando a família tomou consciência de
si enquanto uma unidade emocional que necessita de proteção, privacidade e isolamento em
relação ao mundo exterior.224 E, se por um lado a privacidade familiar criou mecanismos de
proteção à família nuclear; por outro lado, concebeu uma segregação, mesmo que bastante
sinuosa, entre o espaço da família (o lar) e o espaço da comunidade.225

223
ACMB. Livro I de Registros de Casamento do Curato da Sé de Belém, pp. 90-90(v).
224
ARIÈS, PHILIPPE. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 2006 [1975]; FLANDRIN,
Jean-Louis. Famílias: parentesco, casa e sexualidade na sociedade antiga. Lisboa: Editorial Estampa, 1991
[1976]; GOODY, Jack. Modernisation et famille: les théories. In: La famille en Europe. Paris: Éditions du
Seuil, 2001 [2000], pp. 207-219; SHORTER, Edward. A formação da família moderna. Lisboa: Terramar, 1995
[1975]; STONE, Lawrence. The family, sex and marriage in England, 1500-1800. New York: Penguin Books,
1990 [1977].
225
Ao analisar as estruturas das casas de Belém, na primeira metade do século XIX, Luiz Guimarães verificou
que não havia uma delimitação clara entre os espaços domésticos e o público. Muito possivelmente, a distinção
entre os espaços iniciou-se, mesmo que ainda timidamente, a partir dos meados do Oitocentos, o que justifica já
termos encontrado, em relação ao período analisado (1840-1870), certos indícios da privacidade familiar. Para
uma análise mais detalhada da concepção de domesticidade em Belém, nas primeiras décadas dos oitocentos, cf.:
89

Se apreendermos a ideia de “privacidade familiar” nesses termos, ou seja, associando-


a ao isolamento do mundo exterior, não podemos considerar os casamentos “em casa” como
um vestígio do sentimento de privacidade. Em primeiro lugar, pois não podemos deixar de
considerar o casamento como um ato social de caráter público, por mais que intrinsecamente
ligado à esfera privada; a casa decerto não suprimia a presença de pessoas de fora da família,
mas apenas a restringia. Em segundo lugar, porquanto a casa, entendida aqui como um espaço
multifacetado, talvez ainda não pudesse ser considerada, nos meados do século XIX, como
um espaço essencialmente da família. Basta observarmos que, além dos casamentos, reuniões
de partidos políticos eram, naquele período, realizadas no espaço doméstico.226 Além disso, a
própria segregação entre os espaços (e as esferas) público e privada ainda encontrava-se em
construção na época.

Os casamentos ocorriam em casa por dois motivos em especial. O primeiro, que já


conhecemos, foi a tendência, inicialmente circunscrita à elite, de delimitar-se o acesso público
aos enlaces. O outro motivo, por seu turno, era caso houvesse nubentes em perigo de morte.
Em ambos os casos, havia uma maior presença de mulheres como testemunhas. O casamento
ocorrido no lar, um espaço idealizado essencialmente ao feminino, pode ter contribuído para
essa característica. Se na Igreja a grande maioria dos casamentos tinha como testemunhas dois
homens, em casa essa predominância era um pouco mais tímida. A presença das mulheres no
papel de testemunhas variava de acordo com as relações entre os nubentes e o proprietário do
ambiente onde acontecia o enlace. Quanto maiores e mais próximos os vínculos entre eles,
maior a incidência de mulheres como pelo menos uma das testemunhas.

GUIMARÃES, Luiz Antonio Valente. As casas e as coisas: um estudo sobre vida material e domesticidade nas
moradias de Belém – 1800-1850. (Dissertação de Mestrado em História. Belém: Universidade Federal do Pará,
2006. Para uma reflexão mais densa acerca do lar como uma idéia, cf.: FLANDRIN, Jean-Louis. Famílias..., op.
cit.; LEMOS, Carlos. História da casa brasileira. São Paulo: Contexto, 1989; RYBCZYNSKI, Witold. A casa:
pequena história de uma idéia. Rio de Janeiro: Record, 1996 [1987]; VIEIRA Jr., Antonio Otaviano. A casa e o
uso social do espaço: representações do cotidiano familiar. In: Entre paredes e bacamartes: história da
família no Sertão (1780-1850). São Paulo: HUCITEC; Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 2004, pp. 87-147.
226
A separação entre os espaços público e privado nem sempre existiu nos termos em que a partir do século XIX
passou a ser experimentada. Segundo Nicole Castan, a divisão entre os espaços público e privado não se aplicava
à Época Moderna. Embora existisse uma aspiração em delimitar mais claramente um e outro, existia de fato uma
interpenetração constante entre os espaços, e uma ambivalência dos papéis de ambos. À primeira vista, era como
se as vidas fossem inteiramente públicas ou, então, exclusivamente domésticas. Esse dualismo público/privado e
os seus respectivos parâmetros e categorias foram construídos no contexto de uma herança vitoriana. No século
XIX, assistiu-se ao retraimento das mulheres em relação ao espaço público, bem como à conformação do espaço
privado familiar predominantemente feminino. Isso não implicava, evidentemente, a falta de uma interface entre
um espaço e outro, uma vez que dinâmica entre ambos os espaços, delineada em função do gênero e dos papéis
sociais idealizados para o masculino e para o feminino, não era estanque. Cf.: CASTAN, Nicole. O público e o
particular. In: ARIÈS, Philippe & CHARTIER, Roger (Orgs.). História da Vida Privada, v. 3: Renascença ao
Século das Luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 2009 [1986], pp. 402-438; MATOS, Maria Izilda de.
Cotidiano e Cultura: história, cidade e trabalho. Bauru/SP: EDUSC, 2002; PERROT, Michelle. Os excluídos da
História: operários, mulheres e prisioneiros. São Paulo: Paz e Terra, 1988.
90

No núcleo central de Belém, a Igreja e a casa eram os locais onde, respectivamente,


mais havia cerimônias de casamento. Trata-se de uma realidade diferente daquela encontrada
em relação às cerimônias ocorridas nas regiões um pouco mais afastadas desse núcleo. A falta
de estrutura de determinadas localidades do interior da província provavelmente levou alguns
nubentes a consorciaram-se em fazendas ou engenhos, seja em altares portáteis ou mesmo em
capelas particulares. O afastamento de núcleos urbanos mais bem consolidados (como Belém
ou Cametá, por exemplo) e o possível isolamento geográfico condicionaram a existência de
um perfil específico entre os noivos que contraíam núpcias nesses locais, bastante diferente
daquele existente na região central de Belém.

De certo modo esses altares e capelas particulares podem ter atuado em substituição às
capelas institucionalizadas pela Igreja, no caso de essas serem de difícil acesso para algumas
regiões. Desde o período colonial, as capelas (sejam elas particulares ou não) contribuíram
para a formação de novos núcleos populacionais e à expansão de outros já consolidados.227
Em determinadas visitas paroquiais, a exemplo daquela ordenada pelo então Bispo do Pará,
Dom Macedo Costa, no início da década de 1860, utilizaram-se altares e capelas particulares
para a realização de certos sacramentos, dentre os quais o matrimônio. Naquela ocasião, no
Engenho do Bom Intento, localizado às margens do rio Guamá e administrado por Januário
Antônio da Silva, houve dois casamentos.228 Para termos uma ideia da importância desses
ambientes (altares e capelas particulares), no mesmo Engenho do Bom Intento ocorreram pelo
menos outros 23 matrimônios entre os anos de 1840 e 1870, a maioria deles entre escravos de
seu proprietário, Joaquim Antônio da Silva.

Haja vista o seu caráter particular, esses ambientes impunham ainda outras restrições à
realização dos casamentos, além daquelas já impostas pela Igreja. Para casar-se nas fazendas
ou nos engenhos espalhados pelo interior da província, era necessário que os nubentes ou suas
famílias mantivessem relação prévia com os administradores ou os proprietários desses locais.
Por certo, a existência de vínculos sociais mais consolidados entre as partes seria um elemento
facilitador para a realização das cerimônias. Muito embora não tenhamos encontrados casos
em que parentes próximos ou os mesmos proprietários daqueles espaços tenham lançado mão

227
Na Colônia, as capelas tiveram um importante papel no processo de ocupação de determinadas regiões. Em
São Paulo, por exemplo, cada bairro desenvolveu-se partir da construção de uma capela. KUZNESOF, Elizabeth
Anne. A família na sociedade brasileira: parentesco, clientelismo e estrutura social (São Paulo, 1700-1880).
In: Revista Brasileira de História, São Paulo, 9(17), set./1988-fev./1989, p. 41.
228
ACMB. Livro I de Registros de Casamento do Curato da Sé de Belém, p. 158. || Nas ocasiões, casaram-se
quatro escravos de propriedade de Januário Antônio da Silva. Nos registros, não havia quaisquer referências à
existência de relações de concubinato entre os mesmos, como em outros casamentos da mesma Visita Pastoral.
91

dos seus altares e capelas particulares para casarem-se (as cerimônias entre os indivíduos que
conseguimos definir como sendo de elite ocorreram, todas, na região central de Belém), era
uma prática comum que os escravos contraíssem núpcias nas mesmas propriedades às quais
pertenciam, como no caso do Engenho Bom Intento. Mas, afinal, quem eram os indivíduos de
condição livre que se casavam nesses ambientes?

A construção de um altar particular de acesso público e, especialmente, de uma capela,


concebia uma base de poder social para quem o(a) edificava, na medida em que se criava uma
relação entre o proprietário desses ambientes e os seus frequentadores.229 Não obstante, dada a
ausência de termos de distinção social (como postos da Guarda Nacional, do Exército ou da
Armada, por exemplo) ou mesmo de vínculos tácitos entre os nubentes e os proprietários dos
engenhos e fazendas onde ocorreram os casamentos, somos levados a conjecturar que, muito
possivelmente, o público que se casava nesses ambientes era constituído, em grande parte,
pela clientela daqueles proprietários, que poderia abranger os tanto vizinhos da propriedade,
como agregados que lá habitassem. Hipótese que ainda é robustecida pela presença recursiva
dos proprietários e de seus familiares como testemunhas desses enlaces.

A ESCOLHA DAS TESTEMUNHAS DE CASAMENTO

As testemunhas de casamento, tanto no que diz respeito ao seu papel no sacramento,


quanto no que diz respeito às implicações sociais de sua escolha, constituem um tema ainda
muito pouco explorado em nossa historiografia. Entendemos que essa lacuna está relacionada,
em grande medida, ao papel muitas vezes secundário arrogado às testemunhas, como meras
coadjuvantes no rito nupcial. Embora alguns estudos mais recentes tenham evidenciado a sua
importância na criação de vínculos sociais não necessariamente secundários, mas paralelos às
alianças matrimoniais estabelecidas, acreditamos que a sua devida relevância social ainda não
foi suficientemente reconhecida pela historiografia, assim como o são os laços de parentesco
espiritual concretizados no batismo.230 Antes de partirmos à análise dessas implicações sociais
propriamente ditas, gostaríamos de pontuar algumas questões mais gerais que permearam a
lógica de escolha das testemunhas de casamento.

229
KUZNESOF, Elizabeth Anne, ibidem, p. 41.
230
Ver: dentre alguns outros: LOPES, Janaína C. Perrayon. Enlaces e Redes: as testemunhas de casamento e a
sociabilidade africana a partir dos registros matrimoniais da Freguesia da Candelária na primeira metade
do séc. XIX. Simpósio Nacional de História, 26, 2011. São Paulo. Anais... São Paulo: ANPUH-SP, 2011. 15p.
92

Primeiramente, é importante destacarmos que para ser testemunha de casamento era


necessário fazer-se presente no rito nupcial. O ato de testemunhar, como indica o dicionarista
Luiz Maria da Silva Pinto relativamente ao início do século XIX, significava poder testificar,
poder comprovar um fato.231 Ao contrário do que ocorria no caso dos padrinhos de batismo,
não se poderia ser testemunha de casamento por procuração. Era necessário presenciar o rito
nupcial, tendo em vista a possibilidade de abonar o laço estabelecido em um futuro próximo
ou mesmo distante. Em segundo lugar, as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia
não condicionavam uma predeterminação de gênero no que tange à escolha das testemunhas.
Poderiam testemunhar o rito nupcial dois homens ou duas mulheres. 232 E, além disso, criava-
se apenas um vínculo social, e não de parentesco formal, entre os nubentes e as testemunhas.

As testemunhas ocupavam um lugar central tanto no rito em si, como no matrimônio


enquanto um ato social. A escolha provavelmente privilegiaria pessoas que para os nubentes e
suas famílias eram “especiais”. “Especiais” não apenas no sentido de afinidade entre as partes,
mas também em relação a aspectos de ordem social, econômica, política e/ou cultural. Ainda
que sob perspectivas bastante diferentes e conquanto não se concebesse um vínculo formal de
parentesco,233 as testemunhas estavam para o casamento tal como os padrinhos e madrinhas
estavam para o batismo. Inclusive, a própria utilização dos termos “padrinho” ou “madrinha
de casamento”, embora imprópria, já sugere alguns dos sentidos atribuídos à importância e às
funções sociais das testemunhas.234 Trataremos mais detidamente das aproximações e também
das diferenças entre os papéis dos padrinhos e das testemunhas no próximo capítulo.

As relações entre os nubentes e as testemunhas poderiam ser horizontais – no caso de


as partes pertencerem ao mesmo patamar social – ou verticais, quando ambos encontravam-se
em patamares sociais distintos. A preferência pela criação de vínculos horizontais ou verticais
por meio do casamento evidencia, por sua vez, as diferentes estratégias sociais pertinentes a
cada casamento. À exceção da elite, que sempre priorizava a criação de vínculos horizontais

231
BBUSP. PINTO, Luiz Maria da Silva. Diccionario da lingua brasileira. Ouro Preto: Typographia de Silva,
1832, p. 130.
232
Conforme as disposições das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia quanto ao casamento, cada
cerimônia deveria ter duas ou três testemunhas, sem uma predeterminação de gênero como nos batismos. Cf.:
VIDE, Sebastião Monteiro da. Título LXVIII, n. 293. In: Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia.
São Paulo: EDUSP, 2010 [1707], pp. 253-255.
233
O batismo, diferentemente do matrimônio, criava um vínculo de parentesco espiritual entre as partes (o
compadrio) que, na apreensão de Ellen Woortmann, integrava a própria estrutura de parentesco formal. Cf.:
WOORTMANN, Ellen Fensterseifer. Herdeiros, parentes e compadres: colonos do sul e sitiantes do Nordeste.
São Paulo: HUCITEC, Brasília: EDUnB, 1995, p. 285.
234
NADALIN, Sérgio Odilon. Sugestões metodológicas: o compadrio a partir dos registros paroquiais. In:
Encontro Nacional de Estudos Populacionais, 8, 1994. Caxambu/MG. Anais... Caxambu/MG: Associação
Brasileira de Estudos Populacionais, 1994, p. 301.
93

com as testemunhas, todos os segmentos sociais se articulavam em torno tanto de vínculos


horizontais, quanto de vínculos verticais. A análise acerca das preferências por determinado
tipo de vínculo está centrada principalmente na elite e nos escravos, uma vez que, por limites
documentais, faltam-nos elementos que nos permitam balizar com maior clareza a primazia
por certos vínculos entre os demais segmentos sociais.

Em 16 de julho de 1852, na Igreja da Trindade, casaram-se o tenente José Augusto de


Menezes Pontes e Alexandrina Antônia da Conceição. O nubente, natural de Belém, era filho
legítimo do tenente coronel Manoel Caetano Pontes e de d. Felipa Tereza das Neves Pontes. A
noiva, natural do Rio Grande do Norte, era filha legítima de Domingos Vieira da Rosa e de d.
Joaquina Antônia de Jesus. O matrimônio teve enquanto testemunhas duas pessoas de grande
proeminência na sociedade paraense do Oitocentos: o tabelião João Hilário Watrin e Antônio
José Rebello Guimarães,235 proprietário do influente jornal Diário do Grão-Pará, um dos mais
importantes periódicos de Belém à época. O enlace entre José Augusto e Felipa sintetiza bem
duas importantes dimensões do casamento para a elite do Grão-Pará oitocentista: em primeiro
lugar, o marcante comportamento homogâmico que norteou o estabelecimento das alianças
matrimoniais nesse grupo e, em segundo lugar, a importância conferida às testemunhas.

Entre a elite, a lógica de seleção consistia na predileção pelas relações horizontais com
sujeitos de igual prestígio social, ainda preferencialmente com aqueles ligadas por parentesco
(seja ele consanguíneo, espiritual ou por afinidade, nos seus mais diversos graus) às famílias
dos nubentes.236 A nosso ver, para as famílias da elite paraense, a escolha de seus pares como
testemunhas intencionava não somente corroborar as relações e as alianças sociais, políticas e
econômicas pré-estabelecidas reafirmando-as publicamente, como também, ao mesmo tempo,
propalar à alta sociedade a nova condição social – de casados – dos nubentes. Portanto, para a
elite, a escolha das testemunhas situava-se no entrecorte do casamento enquanto estratégia e
um ato vigoroso de representação social. Os ritos matrimoniais representavam um importante
momento de socialização para um dado conjunto de indivíduos, no qual os parentes, amigos e
aliados dos noivos e de suas famílias se reuniam.

235
ACMB. Livro I de Registros de Casamento do Curato da Sé de Belém, p. 82.
236
Em certas regiões, notadamente no que se refere ao comportamento de grupos específicos, verificou-se um
padrão na escolha das testemunhas de casamento. Sérgio Nadalin verificou que, entre os migrantes alemães de fé
luterana em Curitiba, entre o final do século XIX e o início do século XX, a escolha das testemunhas reforçava o
grupo étnico e as relações de parentesco por consanguinidade e afinidade, sendo que uma das testemunhas era
geralmente solteira com idade próxima a do noivo e a outra, irmão, cunhado ou concunhado do noivo ou da
noiva. NADALIN, Sérgio Odilon. Sugestões metodológicas: o compadrio a partir dos registros paroquiais,
op. cit., p. 301;
94

Os membros da elite paraense não eram, entretanto, testemunhas apenas nos enlaces
de seus pares sociais. Para eles a criação de vínculos verticais com sujeitos de condição social
inferior, através do casamento desses, foi uma prática recorrente, cujos matizes variavam de
família de elite a família de elite. Em determinadas famílias, era mais comum que somente um
de seus membros (na maioria das vezes, o mais proeminente) “testemunhasse” as núpcias,
enquanto em outras atuavam como testemunhas vários de seus membros. De qualquer modo,
em ambos os casos, os membros da elite paraense muito possivelmente eram testemunhas nos
casamentos de pessoas que compunham a clientela sua ou de suas famílias. Se, por parte da
elite, buscava-se a ampliação da rede clientelista, por parte dos clientes almejava-se o amparo
social, dinamizando o próprio sistema clientelista que regulava não apenas a lógica política,
mas também a estrutura e as relações sociais no Império.237

Das 10 pessoas que mais vezes foram testemunhas, todas integravam a alta sociedade
paraense. Sobressaem-se, dentre elas, José da Gama Malcher e Antônio de Lacerda Chermont
(o futuro Visconde de Arari) que foram testemunhas, respectivamente, por 31 e 13 vezes. Se
ampliássemos o foco para os 50 indivíduos que mais vezes atuaram como testemunhas (dentre
os quais não havia sequer uma mulher), seriam incluídas na lista outras figuras proeminentes
da sociedade local, como João Diogo Clemente Malcher, José Coelho da Gama Abreu e João
Evangelista de Faria Maciel. Algumas famílias de destaque, a exemplo dos Sousa Tavares,
“distribuíam” o papel de testemunha entre vários de seus membros; ao todo, dessa família, só
Nicolau e João Felipe de Sousa Tavares foram testemunhas em mais de vinte matrimônios.
Números que, em face da nossa amostragem, ainda precisam ser relativizados, pois são muito
provavelmente subestimados.

A influência social, política e econômica de determinadas famílias de elite certamente


fez com que muitos nubentes de camadas menos abastadas buscassem indivíduos de condição
social mais elevada como testemunhas de casamento. A relação formalizada a partir do enlace
poderia significar, para ambas as partes, prestígio social entre seus respectivos pares. Se, por
um lado, para as camadas menos abastadas ter um membro da elite como testemunha era um
sinal de distinção; por outro lado, ser testemunha de vários matrimônios poderia evidenciar a
importância social de um indivíduo e sua família, na medida em que sinalizava a consolidação
de uma base de poder social e político, por meio da firmação e do aumento de uma clientela,

237
Ver: GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 1997
[1990].
95

como destacamos anteriormente.238 No entanto, assim como o próprio casamento, os aspectos


simbólicos relacionados à escolha das testemunhas dos enlaces não estavam centrados apenas
em interesses sociais, políticos e econômicos, como também se revestiam de uma pluralidade
de sentidos e experiências.

Raramente, em um casamento entre as camadas menos abastadas as duas testemunhas


eram membros da elite. Comumente, a segunda e, caso houvesse, a terceira testemunha eram
pessoas que poderiam pertencer aos círculos de sociabilidade mais próximos aos nubentes. As
relações de amizade e ajuda mútua, por exemplo, poderiam influenciar a seleção dessas outras
testemunhas. Nesse caso, a escolha das testemunhas de um mesmo matrimônio apresentava
uma ambivalência de estratégias, ganhando forma tanto em relações de caráter vertical quanto
de caráter horizontal. Trata-se de uma prática que era disseminada entre praticamente todos os
segmentos sociais à exceção da elite, que sempre buscava, para seus casamentos, testemunhas
de condição social análoga.

Os escravos também apresentavam um comportamento bastante heterogêneo quanto à


escolha das testemunhas de casamento, caracterizado pela coexistência de vínculos verticais e
horizontais entre os nubentes e as testemunhas. No caso desse grupo, os vínculos horizontais
poderiam ser formados entre escravos de um mesmo plantel – como explicitado foi em alguns
dos registros pesquisados – ou com cativos de outros proprietários. No primeiro caso, os laços
tinham como objetivo fortalecer o grupo e melhor delimitar as hierarquias interiorizadas na
própria escravaria. No segundo caso, buscava-se criar laços mais extensos que transbordavam
os limites do cativeiro conformando uma noção de comunidade escrava. Uma maior liberdade
possivelmente concedida aos escravos urbanos, notadamente àqueles que desempenhavam
funções “de ganho”, pode ter contribuído para a formação de vínculos exógenos aos plantéis.

Um caso interessante para problematizarmos a questão aconteceu no casamento entre


Joaquim e Maria Felipa. O enlace, ocorrido no dia 20 de agosto de 1851, no oratório do nosso
já conhecido Engenho Bom Intento, teve como testemunhas os “pretos escravos” Manoel João
e João Francisco, que também faziam do plantel dessa propriedade. 239 Embora não possamos
deixar de considerar a influência senhorial nesse caso, a escolha por parte de Joaquim e Maria
Felipa, de dois companheiros de cativeiros para servirem-lhes de testemunhas de casamento,

238
Como argumenta Pierre Bourdieu, um segmento social não pode ser definido apenas por sua situação e por
sua posição na escala social – ou seja, somente pelas relações que mantém objetivamente com outros segmentos
–, mas do modo pelo qual estas relações exprimem distinções, segundo a lógica do sistema. É através das marcas
de distinção que os sujeitos constituem, para si mesmos e para os outros, sua posição na estrutura social. Cf.:
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2009 [1974].
239
ACMB. Livro I de Registros de Casamento do Curato da Sé de Belém, p. 67.
96

robustece a perspectiva apresentada no parágrafo anterior; a relação estabelecida serviu, por


certo, para estreitar as relações entre os nubentes e as testemunhas, o que, consequentemente,
acabava também por fortalecer o grupo como um todo.

Os vínculos verticais, por sua vez, apresentam uma característica bastante interessante:
diferentemente do que poderíamos pensar, não eram formados entre os escravos, os senhores
ou parentes desses. Ao contrário disso, procurava-se a proteção de indivíduos melhor situados
socialmente, desde os egressos da escravidão até indivíduos com grande proeminência social.
Esses vínculos ligavam os cativos a uma população livre que, ao menos aparentemente, não
mantinha relações formais com eles. Esse comportamento, além de evidenciar o dinamismo
social experimentado pelos escravos, que em certa medida era destoante de sua condição civil,
sugere um certo grau de independência conferido a esse segmento em questões matrimoniais e
que se estendia à escolha das testemunhas – mesmo que, como demonstramos anteriormente,
os casamentos entre os cativos necessitassem, na prática, da chancela senhorial.

Por fim, gostaríamos de tecer algumas considerações a respeito de uma questão citada
no início desta seção: a não predeterminação de gênero que marcava, do ponto de vista legal,
a escolha das testemunhas de casamento. Por mais que na prática pudesse haver duas ou mais
mulheres testemunhando um mesmo matrimônio não encontramos, nos registros pesquisados,
qualquer caso nesse sentido. Ao contrário, a imensa maioria dos casamentos era testemunhada
por dois homens. A nosso ver, a inexistência de casos nos quais duas mulheres atuaram como
testemunhas em um mesmo enlace e, como apontamos na seção anterior, a maior incidência
de mulheres enquanto testemunhas nos matrimônios ocorridos nos espaços “privados” são
elementos indicativos tanto dos papéis sociais idealizados às mulheres, quanto dos marcos de
adequação social da feminilidade no Brasil oitocentista.

RESUMINDO...

Aquilo que denominamos de dinâmica do “rito nupcial” articulava-se em torno de três


aspectos: o período, os locais e as testemunhas de casamento. No que diz respeito ao primeiro
desses aspectos (a sazonalidade dos enlaces), observamos a continuidade nas preferências por
determinados meses e uma reconfiguração nas preferências pelos dias da semana. Enquanto
aquelas estavam relacionadas principalmente às interdições religiosas, essas se reordenaram
em função de um duplo movimento: de um lado, acompanhando mudanças de diversas ordens
97

ocorridas na região; de outro, em consonância ao próprio processo de conformação da família


e da sociedade moderna no Brasil. Paralelamente, a aglutinação dos casamentos aos sábados
veio a reforçar o seu caráter de ato social, com grande apelo público. Nesse sentido, os locais
da liturgia ditavam sua dinâmica, ora em cerimônias convencionais (“à porta” da Igreja), ora
em cerimônias no espaço doméstico, onde a publicidade do ato era, por assim dizermos, mais
bem delimitada.

Ainda no que se relaciona à “liturgia”, não deixamos de considerar o papel atinente às


testemunhas. Papel esse que, a propósito, não se restringia apenas àquela. As testemunhas de
casamento eram pessoas “especiais” para os nubentes, seja do ponto de vista de uma simples
afinidade ou por uma perspectiva social, política e/ou econômica. Evidenciamos de que modo
determinados segmentos sociais consolidavam, por meio do matrimônio, os vínculos sociais
entre os noivos e as testemunhas. Ademais, sinalizamos algumas motivações que tonificavam
essa escolha e os significados de ser uma testemunha de casamento em Belém nos meados dos
oitocentos. Dentre uma multiplicidade de aspectos, de aspirações e de motivações, a relação
de nubentes e testemunhas estava esteada em três elementos basilares: o reforço dos vínculos
pessoais de diversas ordens, a busca pelo “amparo social” e a ampliação da clientela.

1.4. CONSIDERAÇÕES QUASE QUE FINAIS

Neste capítulo, dedicamo-nos a analisar diversos matizes que permearam o casamento


legítimo em Belém nos meados do século XIX, procurando delinear tendências e padrões de
comportamento. O capítulo apresenta-se em três seções, cada uma delas voltada para um eixo
de análise particular. Logo na primeira seção, a discussão incidiu no perfil sociodemográfico
do casamento, com enfoque na geografia e na composição do mercado matrimonial, e numa
variável demográfica específica: a nupcialidade. Na segunda seção, as reflexões recaíram nas
preferências de quatro grupos (a elite, os cativos, os portugueses e os cearenses) em torno das
endogamias social e étnica. Já na terceira e última seção, buscamos examinar a dinâmica dos
ritos nupciais, investigando seu movimento sazonal ao longo dos dias da semana e dos meses,
e as escolhas dos locais e das testemunhas de casamento.

Na primeira seção, demonstramos como as mudanças ocorridas no traçado urbano e na


população de Belém implicaram alterações no perfil dos nubentes que se casaram na paróquia
da Sé, entre 1840 e 1870. Com o recrudescimento da migração à região, o número de enlaces
98

envolvendo migrantes dobrou, subindo sua representatividade de 15 para 30%. Além disso,
observamos que uma antiga imigração marcadamente masculina passou a coexistir também
com uma migração interprovincial, bem menos seletiva no que concerne ao sexo. E, ademais,
verificamos que naqueles anos houve um aumento geral na nupcialidade em Belém, tanto
entre livres, como entre escravos, em um movimento concomitante, operado a partir dos anos
1850 e que tendeu a estabilizar-se até mais ou menos o início da década de 1870.

Nesse bojo, verificamos também de que modo alguns grupos apresentavam diferentes
comportamentos matrimoniais. À elite tradicional, os enlaces eram diametralmente endógenos
e tinham como objetivo ampliar suas redes familiares e reprodução sua condição social. Entre
os escravos, o comportamento variava de acordo com a região da cidade em que se situavam,
mas em geral era marcado pelas endogamias social e étnica, e pelos enlaces entre cativos de
uma mesma escravaria Entre os portugueses, as preferências pela endogamia ou a exogamia
étnica variavam conforme o gênero. Os homens portugueses buscavam casar-se com mulheres
nativas, enquanto as mulheres portuguesas, em menor número, procuravam seus conterrâneos
para contrair núpcias. Os cearenses, com o seu pequeno contingente recém-chegado naqueles
anos, apresentavam tímida tendência à endogamia, que não variava de acordo com o gênero.

Não obstante investigamos como o rito nupcial, além de representar no seu movimento
sazonal um riquíssimo indicador do cotidiano, também era um importante ato social, tanto no
sentido de evidenciar publicamente a aliança matrimonial estabelecida e a nova condição dos
noivos (a de casados), quanto através das relações que se estabeleciam entre os nubentes, suas
famílias e as testemunhas do casamento. Se o movimento sazonal dos casamentos não variava
de acordo com a condição social de quem contraia núpcias, a dinâmica dos ritos matrimoniais
era idiossincrática em relação ao grupo social envolvido no enlace. Entre a elite, por exemplo,
havia uma tendência a uma paradoxal noção de privacidade, que tinha enquanto fim restringir
o acesso público aos matrimônios.
99

CAPÍTULO II

AS RELAÇÕES DE COMPADRIO DE LIVRES E ESCRAVOS, E A


DINÂMICA DO RITO BATISMAL

Este capítulo tem como objetivo analisar as relações de compadrio entre as populações
livre e escrava, e investigar a dinâmica dos ritos de batismo em Belém, entre 1840 e 1870. As
análises que se seguem têm suporte em uma série documental composta por aproximadamente
2.600 registros paroquiais de batismo, correspondentes aos anos de 1842, 1845, 1848, 1855,
1860, 1865 e 1870. O presente capítulo encontra-se dividido em três seções. Primeiramente,
interessa-nos examinar os usos do compadrio em meio à população livre, destacando o caráter
horizontal ou vertical das relações estabelecidas, e, dentro do possível, as implicações dos
marcadores sociais de gênero, geração e “etnia” na escolha dos padrinhos e das madrinhas. Na
segunda seção o objetivo é investigar o compadrio entre cativos, considerando as preferências
em torno da condição sociojurídica dos padrinhos e das madrinhas, e algumas nuances dessas
escolhas. Na terceira e última seção, o foco recai sobre o rito batismal em si, onde destacamos
o caráter das relações de compadrio, os locais e o movimento sazonal dos batismos.

Antes de passarmos para a reflexão sobre essas questões gostaríamos de fazer algumas
ressalvas quanto às fontes privilegiadas neste capítulo. Como destacamos na INTRODUÇÃO, as
atas paroquiais de batismo de Belém, relativas às décadas de 1840, 50 e 60, não apresentam
padronização nas suas informações, nem mesmo no que respeita a um grupo social específico.
Diferentemente dos casamentos, em que os registros diferiam conforme cada grupo social, os
batismos não apresentam um alto grau de padronização, sejam eles concernentes à elite ou aos
escravos. A grande maioria dos assentos é muito sucinta, não informando, exceto em casos
específicos, sobre a origem dos pais dos batizandos ou sobre a condição social dos padrinhos
e sua relação de parentesco (consanguíneo ou por afinidade) com as madrinhas. Naturalmente,
essas características impõem limitações para a análise desenvolvida, particularmente no que
se atém à discussão sobre o compadrio entre a população livre.

Nesse sentido, por mais que em relação aos escravos tenhamos conseguido apresentar
pelo menos algumas tendências de comportamento, entre os livres não podemos ir além de
considerações gerais sobre os diversos usos sociais do parentesco espiritual. Sendo infactível
100

procedermos a quantificações a respeito do comportamento da população livre em torno do


compadrio, buscamos desenvolver um esquema analítico que se aproxime muito mais de um
esforço em delimitar lógicas de ação desses sujeitos, do que de uma tentativa de delinearmos
padrões de comportamento. As discussões que se seguem tangenciam, portanto, o segmento
social livre mais seguramente discernível por intermédio dos registros de batismo – a elite –, e
o conjunto de relações sociais estabelecidas por ele, tanto horizontal, quanto verticalmente.
Adicionalmente, tecemos alguns apontamentos iniciais sobre as implicações dos marcadores
sociais de gênero, geração e naturalidade no compadrio de livres em geral.

2.1. O COMPADRIO ENTRE INDIVÍDUOS DE CONDIÇÃO LIVRE

Comparativamente ao compadrio de escravos, o compadrio de livres permanece como


uma temática ainda pouco visitada pela historiografia brasileira; quadro que contrasta com a
grande importância do parentesco espiritual no delineamento de relações e de redes sociais no
passado colonial e imperial brasileiro. Acreditamos que essa lacuna pode estar relacionada,
em grande medida, às limitações impostas pelos registros paroquiais de batismo ao exame da
questão. Por mais que o grau de complexidade das informações apresentadas nesses registros
variasse no espaço e no tempo, uma análise mais acurada acerca do tema possivelmente teria
que abarcar também outras fontes (como as listas nominativas de habitantes, por exemplo),
acabando por limitar a amplitude social, espacial e cronológica das reflexões desenvolvidas.
Os poucos trabalhos existentes sobre o tema, grande parte deles mais recente, tendem a focar
nas relações de compadrio que tangenciam as elites, talvez por serem elas o grupo social mais
facilmente discernível através dos assentos de batismo.240

É possível que uma das principais exceções a essa tendência seja o importante estudo
de Roberto Guedes Ferreira acerca dos “egressos do cativeiro”. Partindo de uma perspectiva

240
Ver dentre muitos outros: VENÂNCIO, Renato Pinto; SOUSA, Maria José Ferro de & PEREIRA, Maria
Teresa Gonçalves. O compadre do Governador: redes de compadrio em Vila Rica em fins do século XVIII.
In: Revista Brasileira de História, São Paulo, 26(52), 2006, pp. 273-194; HAMEISTER, Martha Daisson. Para
dar Calor à Nova Povoação: estratégias sociais e familiares na formação da Vila do Rio Grande através dos
Registros Batismais (c.1738-c.1763). (Tese de Doutorado em História Social). Rio de Janeiro: Universidade
Federal do Rio de Janeiro, 2006; FARINATTI, Luís Augusto. Família, relações de reciprocidade e hierarquia
social na fronteira meridional do Brasil (1816-1845). X Encontro Estadual de História, 2010. Santa Maria.
Anais... Santa Maria: Universidade Federal de Santa Maria, 2010. 18p.
101

fortemente ligada à Micro-História, o autor analisou de que maneira os forros de Porto Feliz
(São Paulo) buscaram também no compadrio um importante elemento de mobilidade social,
tanto pelo reforço de sua nova condição social (a de forros) perante os escravos, quanto pela
tentativa de inserirem-se entre a população livre, a busca de enriquecimento e reconhecimento
social.241 Ainda assim, muito embora Roberto Guedes tenha ampliado bastante a compreensão
sobre o compadrio entre os (novos) livres, ele não identificou um sujeito-médio que pudesse
evidenciar um padrão ou uma tendência de comportamento entre o segmento analisado. Além
disso, corroborando com o que afirmamos no parágrafo anterior, o autor precisou lançar mão
de toda uma gama de fontes que extrapolaram, em muito, os registros paroquiais de batismo.

Na historiografia paraense há um único estudo dedicado ao tema. Trata-se da tese de


doutoramento de Eliane Soares Lopes, na qual a autora analisou a família e o compadrio na
região do Marajó, investigando sua importância para a constituição de extensas redes sociais
entre os séculos XVIII e XIX. Entretanto, como a própria autora reconheceu, o seu esforço
estava centrado muito mais na análise das nuances do parentesco espiritual do que na tentativa
de estabelecer uma tendência de comportamento ou, pelo menos, uma lógica de ação entre os
indivíduos analisados.242

***

Este seção tem como finalidade investigar a lógica de ação da população livre no que
respeita ao compadrio, particularmente na sua interação com uma elite mais tradicional. Por
elite tradicional compreendemos um conjunto de indivíduos e famílias com proeminência no
cenário paraense, que data pelo menos desde o final do período colonial, e cujos símbolos de
riqueza estiveram associados, pelo menos até a década de 1870, à posse de terras e escravos, e
ao acesso a cargos na administração pública e às mais altas patentes militares, em especial da
Guarda Nacional.243 São esses os sujeitos que os registros paroquiais de batismo permitem-
nos distinguir com maior clareza, ao associaram aos seus nomes termos de distinção social ou
à posse de cativos. Conquanto esse conceito não contemple necessariamente uma esfera mais
econômica, entendemos que numa sociedade marcadamente pré-industrial como o Grão-Pará

241
GUEDES, Roberto. Os egressos do cativeiro: trabalho, família, aliança e mobilidade social (Porto Feliz, São
Paulo, c.1798- c.1850). Rio de Janeiro: Mauad/FAPERJ, 2008.
242
SOARES, Eliane Cristina Lopes. Família, compadrio e redes de poder no Marajó (séculos XVIII e XIX).
(Tese de Doutorado em História). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2010.
243
Sobre os signos de riqueza da elite paraense até os anos 1870 e sua posterior transformação, ver: CANCELA,
Cristina Donza. Riqueza, alianças e contratos de dotação em Belém (1870-1920). In: Revista Estudos
Amazônicos, Belém, 5(2), jul.-dez./2010, pp. 29-45.
102

dos meados do Oitocentos, a economia não era pensada como uma esfera autônoma, sendo
entrecortada pelas mais diversas relações sociais.244

As duas primeiras partes desta seção são dedicadas à lógica de ação da elite tradicional
quanto ao compadrio e dos demais segmentos sociais que com ela interagiam. Considerando
que uma determinada posição social é concebida por marcas de distinção, constituídas tanto
pelas relações que indivíduos e famílias mantêm dentro da sua camada social de origem (no
caso, entre a elite tradicional), quanto pelas relações objetivamente estabelecidas em relação a
outros segmentos da sociedade (ou seja, os vínculos verticalizados estabelecidos pela elite
tradicional com indivíduos e famílias de condição social inferior), 245 cada parte focaliza num
componente de uma mesma lógica de ação. Na primeira parte, discutimos as relações elite-
elite, evidenciando a sua importância na conformação das redes familiares. Na segunda parte,
analisamos as relações entre a elite tradicional e outros segmentos sociais, demonstrando de
que maneira elas poderiam ajudar na criação de clientela em torno das elites e propiciavam
diversos benefícios aos demais segmentos.

Na última parte desta seção, dedicamo-nos a assinalar alguns dos usos do compadrio
por parte de determinados indivíduos de condição livre que surgiram de maneira fragmentada
em meio à série de registros de batismo pesquisada. Assim como, a analisar as implicações
dos marcadores sociais de gênero, geração e etnia nas relações de compadrio experimentadas
pela população livre. Vale reiterarmos que em relação a esses grupos são feitos apenas alguns
apontamentos iniciais, tendo em vista sua pouca representatividade especificada nos assentos
paroquiais. Mesmo estando cientes de todas as limitações impostas para a análise, pensamos
ser importante procedê-la a fim de mostrarmos outras faces do compadrio entre a população
livre, que não perpassavam necessariamente pela interação com aquela elite tradicional ou
pela relação com sujeitos de maior relevo social.

O COMPADRIO ENTRE A ELITE TRADICIONAL

No dia 02 de junho de 1843, na residência de dona Inês Antônia de Lacerda Chermont


(mãe) localizada na freguesia da Sé, casaram-se Antônio José de Miranda e dona Inês Antônia
244
Acerca do caráter pré-industrial da economia paraense nos meados do século XIX e suas imbricações com as
relações sociais, cf.: BATISTA, Luciana Marinho. BATISTA, Luciana Marinho. Muito além dos seringais:
elites, fortunas e hierarquias no Grão-Pará, c.1850 - c.1870. (Dissertação de Mestrado em História Social). Rio
de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2004.
245
Cf.: BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2009 [1974].
103

de Lacerda Chermont (filha). Os noivos, naturais do Grão-Pará, eram, respectivamente, filhos


legítimos do comendador Vicente Antônio de Miranda com a já falecida d. Floripes Joaquina
de Oliveira, e do também falecido coronel Teodósio Constantino de Chermont com a referida
Inês Antônia de Lacerda Chermont. O matrimônio teve como testemunhas o pai do nubente, o
comendador Miranda, e o irmão da nubente e futuro Visconde de Arari, Antônio de Lacerda
Chermont.246 Desse consórcio, que estabeleceu uma aliança entre duas das mais proeminentes
famílias da elite paraense no século XIX, nasceram pelo menos quatro filhos: Vicente, Inês,
Floripes e Amélia.247

Passados dois anos do enlace e o nascimento do filho primogênito do casal, Vicente,


as famílias Miranda e Chermont se reuniram novamente, em novo cenário e por outra ocasião.
Em 29 de setembro de 1845, agora em um altar portátil erguido na residência do comendador
Vicente Antônio de Miranda, também situada na freguesia da Sé, era a vez de batizarem-se
Inês, nascida em 10 de março de 1843, e Floripes, nascida em 11 de dezembro de 1844. De
Inês, foram padrinhos o seu avô paterno, Vicente Antônio de Miranda, e a sua avó materna, d.
Inês Antônia de Lacerda Chermont. De Floripes foram padrinhos seu tio, Antônio de Lacerda
Chermont, e Inácia Aires de Carvalho, cuja relação de parentesco com as famílias Miranda e
Chermont não conseguimos identificar.248

Se, no casamento entre Antônio José e Inês Antônia, a escolha das testemunhas recaiu
sobre os “patriarcas” de cada família, o que decerto ajudou a revesti-la com um forte aspecto
simbólico associado à ideia de uma aliança social mais ampla estabelecida entre os Miranda e
os Chermont, constituída por intermédio do casamento e conformada pela criação de uma
rede familiar, a escolha dos padrinhos, nesse caso, serviu para corroborá-la. Mas não só isso...
Os critérios adotados à escolha dos padrinhos de Inês e Floripes são idiossincráticos do grupo
social ao qual pertencem os batizandos (a elite) e podem indicar parte de uma lógica de ação.

Um dos pontos de aproximação entre esse caso e as práticas de apadrinhamento e de


compadrio entre a elite tradicional é a horizontalidade das relações estabelecidas. Em nenhum
dos casos arrolados, encontramos referências claras a uma criança da elite sendo apadrinhada
por indivíduos de condição social bastante inferior a de seus pais. Para a elite, o compadrio
era, assim como as alianças matrimoniais, um importante mecanismo de manutenção do status
social. A escolha de compadres e comadres com condição social análoga a sua, pari passu ao

246
ACMB. Livro I de Registros de Casamento do Curato da Sé de Belém, pp. 14-14(v).
247
MARIN, Rosa Elizabeth Acevedo. Alianças matrimoniais na alta sociedade paraense no século XIX. In:
Revista Estudos Econômicos, São Paulo, 15, p. 165.
248
ACMB. Livro IV de Registros de Batismo do Curato da Sé de Belém, p. 06.
104

apadrinhamento de crianças de condição social menos privilegiada, garantia à elite tradicional


a manutenção de dois dos elementos basilares que a definiam enquanto tal – o poder político e
o prestígio simbólico –, contribuindo, desse modo, para a conservação de seu status social.

Tomando como parâmetro as redes familiares, as relações de compadrio entre a elite


poderiam ser endógenas ou exógenas. Inês e Floripes, ao serem apadrinhadas pelos seus avós
e tios, constituem um exemplo dos vínculos endógenos à rede familiar. Por intermédio deles,
buscava-se muitas vezes reforçar as alianças sociais estabelecidas anteriormente através dos
casamentos, como no caso em tela. Analisando outros registros relativos à elite tradicional,
deparamo-nos com um bom número de casos em que os filhos primogênitos dos casais eram
apadrinhados, como o foram Inês e Floripes, por seus avós paternos e maternos. Observamos,
também, que essa prática poderia variar de família para família. Não conseguimos definir, tal
como Anne Martin-Fugier o fez em relação à França oitocentista, uma tendência a escolherem
os arranjos entre os avós paternos e maternos, de acordo com os batizados dos primeiros, dos
segundos ou dos terceiros filhos de um casal. A autora observou, em relação àquele contexto,
que a burguesia francesa possuía uma prática arraigada nesse sentido, que consistia em:

“[...] escolher o avô paterno como padrinho e a avó materna como


madrinha do primeiro filho. O avô materno e a avó paterna serão os
padrinhos do segundo filho. Se os avós já morreram, escolhe-se o
parente mais próximo, de preferência um ascendente, nas duas
linhagens”.249

No caso do falecimento dos avós, observamos que, também em Belém, costumava-se


escolher parentes próximos, habitualmente da mesma geração que os pais do inocente. Eram,
por exemplo, tios dos batizandos que escalaram maior grau de proeminência social. O batismo
de Inês, que teve enquanto padrinho o Visconde de Arari, é elucidativo dessa questão. Em
muitos desses outros casos, escolhia-se, preferencialmente, um casal de tios por parte paterna
ou materna. A preferência por indivíduos casados marcou, também, as relações de compadrio
entre a elite campineira analisada por Paulo Teixeira. Esse comportamento, como demonstrou
o autor, perdurou entre a elite de Campinas do final do século XVIII até o início do século
XIX. Não apenas os padrinhos e madrinhas casados foram maioria absoluta ao longo de todo

249
MARTIN-FUGIER, Anne. Os ritos da vida privada burguesa. In: PERROT, Michele (Org.). História da
Vida Privada, v. 4: da Revolução Francesa à Primeira Guerra. São Paulo: companhia das Letras, 2010 [1987],
p. 232.
105

esse intervalo, como em grande parte dos casos investigados por Teixeira, os padrinhos e as
madrinhas eram casados entre si.250

Esses vínculos de compadrio endógenos às redes familiares serviam para consolidá-las


e dar-lhes ainda mais coesão interna. No entanto, nem sempre esses laços eram conformados
entre indivíduos que possuíam parentesco consanguíneo, podendo servir, por outro lado, para
conectar pontos não ainda ligados de uma mesma rede familiar, através da criação de vínculos
de parentesco espiritual. Foi o que ocorreu, por exemplo, em 23 de maio de 1843, no batismo
de Hermenegildo, filho legítimo de João Marcelino Perdigão e Inês Cardoso Perdigão, que foi
apadrinhado pelo casal Jaime Davi Brício e Maria do Carmo Pombo Brício.251

Os laços de compadrio entre a elite poderiam ser, também, exógenos à rede familiar.
Sem em relação aos laços endógenos, robustecia-se a rede familiar e as alianças matrimoniais
que lhe deram forma, no caso dos vínculos exógenos, a condição de elite era reafirmada pela
escolha de pares sociais como padrinhos e madrinhas. Eram, assim, duas formas de atuação
que estavam condicionadas por uma mesma lógica de ação: a manutenção do status social de
elite. Casos ilustrativos dessa segunda estratégia são os batismos dos filhos de João Batista da
Silva e Maria Vicência Batista da Fonseca.

Em 07 de fevereiro de 1843, os filhos do casal João Batista e Maria Vicência foram ao


Curato da Sé registrar o matrimônio de seus pais e os seus próprios batizados, munidos de um
Auto de Justificação necessário para a inclusão dos eventos nos livros de registro da paróquia.
Foram então adicionados aos livros da Sé, um casamento e seis batismos que compreendiam
um período de 15 anos entre o primeiro e o último evento. O pedido de Justificação permitiu-
nos acompanhar, entre 1821 e 1836, parte da trajetória daquela família (que nesse ínterim
viveu em quatro localidades diferentes), evidenciando os seus usos sociais do compadrio.252

O ponto de partida dessa trajetória é o próprio casamento de João e Maria, ocorrido em


1821, na vila de Macapá. O registro indica o nubente como tenente coronel, patente que ele só
veio a possuir anos mais tarde. Nele, não há referências aos nomes dos pais desse casal, nem
mesmo à data específica em que ocorreu o enlace. Sabemos, apenas, que entre aquele evento e
o batismo de sua primeira filha, o capitão João Batista e sua esposa se deslocaram à cidade de
Belém. Antônia foi batizada no dia 06 de junho de 1824, na capela pessoal do tenente coronel

250
TEIXEIRA, Paulo Eduardo. Compadrio entre as famílias da elite campineira: 1774-1854. XVI Encontro
Nacional de Estudos Populacionais, 2008. Caxambu/MG. Anais... Belo Horizonte/MG: Associação Brasileira de
Estudos Populacionais, 2008. 11p.
251
ACMB. Livro III de Registros de Batismo do Curato da Sé de Belém, p. 61(v).
252
ACMB. Livro III de Registros de Batismo do Curato da Sé de Belém, pp. 39-40.
106

Ambrósio Henriques da Silva Pombo, que lhe apadrinhou juntamente a sua irmã, D. Antônia
Henriques da Silva Pombo. A patente de capitão e a relação aparentemente mais próxima com
o tenente coronel Ambrósio Henrique e a família Pombo evidenciam a boa inserção social de
João Batista na alta sociedade paraense. Mas, talvez por conta de uma transferência, ele teve
que deixar Belém, retornando à Vila de Macapá.

Lá, em 25 de outubro do ano seguinte (1825), foi a vez de Marcolina ir à pia batismal.
A inocente foi apadrinhada pelo capitão Francisco de Siqueira Monte Roso e por d. Caetana
Francisca da Conceição. Em 1827, na mesma localidade, batizou-se Maria, filha do já major
João Batista da Silva. Dela foram padrinho o capitão José Ferreira Lisboa e madrinha, mais
uma vez, d. Caetana Francisca da Conceição. Contudo, antes de batizar o seu outro filho, João
Batista foi transferido novamente, agora à vila de Santarém, na região do Baixo Amazonas;
onde, em 25 de outubro de 1831, foi batizado seu filho João, que foi apadrinhado pelo alferes
Vitório Antônio Pimentel e por sua mulher, d. Maria Bárbara. Após esse batizado houve ainda
outra transferência.253

No ano de 1836, em São Luís do Maranhão, foram batizados outros dois filhos de João
Batista da Silva e Maria Vicência da Fonseca. O primeiro deles, Vicente, no dia 24 de junho,
tendo como padrinhos o tenente de engenheiros José Joaquim Rodrigues Lopes e sua mulher,
d. Teresa de Jesus Lopes. A segunda, Raimunda, foi batizada no dia 24 de outubro e teve os
mesmos padrinho e madrinha.254 No que os batismos dos seis filhos de João Batista e Maria
Vicência podem nos ajudar a compreender outra nuance da lógica de ação da elite paraense no
que diz respeito às relações de compadrio?

Inicialmente, devemos observar que todos os padrinhos possuíam patentes militares e


relações pessoais com as madrinhas (eram marido e mulher ou ainda irmãos, como no caso de
Ambrósio e Antônia Henriques). Isso evidencia que a escolha dos padrinhos foi condicionada,
em grande medida, pelos espaços de sociabilidade nos quais João Batista transitava. Espaços
esses que, devido às suas constantes transferências, acabavam por circunscrever-se ao meio
militar. Cabe-nos salientar ainda que, exceto o alferes Vitório (destacado em Santarém, onde
João permaneceu por menos tempo), os padrinhos escolhidos eram de patentes militares mais
destacadas que iam desde tenente de engenheiros a tenente-coronel. Ainda assim, todos (até
mesmo Vitório) pertenciam a graus distintos do oficialato, o que é indicativo da sua posição
social de destaque.

253
Idem.
254
Idem.
107

Em segundo lugar, podemos destacar não apenas as preferências em torno da escolha


dos padrinhos, mas também as preferências em torno do dia do rito batismal. Ao longo de 12
anos, João Batista e Maria Vivência batizaram seis de seus filhos. Nada menos do que quatro
deles foram à pia batismal entre os dias 24 e 26 de outubro, de diferentes anos. Considerando
que esses quatro filhos foram batizados em três lugares diferentes (Macapá, Santarém e São
Luís) e que o intervalo entre o nascimento e o batismo dos quatro foi oscilante (de dois meses
a quatro anos), podemos afirmar que João e Maria se organizavam de maneira a proceder aos
batismos naquele período que de alguma forma era, provavelmente, especial para a família.
Talvez a data de nascimento de um membro mais destacado, a ascensão a um cargo de maior
prestígio, ou mesmo (o que bem possível), a data de festividade de algum santo do qual eram
devotos.

Outro ponto a ser destacado, e que aproxima os batismos dos filhos de João Batista das
práticas de compadrio da elite de Belém nos meados do século XIX, é a presença feminina
enquanto madrinhas. Naturalmente, ser “madrinha” era um papel evidentemente destinado às
mulheres, mas que algumas vezes acabava por ser exercido por “santas” – especialmente, por
Nossa Senhora de Belém, padroeira da cidade. Exceto em casos esparsos, quase sempre havia
mulheres amadrinhando as crianças da elite local, mesmo que fosse por procuração. Ademais,
ainda nas raras situações em que havia “santas” como madrinhas o manto, a coroa ou a prenda
daquelas eram “tocados” por mulheres, evidenciando mais uma presença feminina no ato de
batismo.

A João Batista da Silva e sua família, o compadrio serviu não apenas como um eficaz
mecanismo de manutenção do status social, mas, notadamente, de inserção social. Em cada
mudança de moradia era necessário estabelecer outra gama de inter-relações, reproduzindo o
status e a condição social galgados pela família. Foi o compadrio um dos elementos que, no
caso em questão, propiciou a João Batista e Maria Vicência estabelecerem-se socialmente em
tantos lugares diferentes, num intervalo de tempo relativamente curto (pouco mais de 12 anos)
e mantendo sua condição social mais destacada.

O COMPADRIO ENTRE A ELITE E OUTROS SEGMENTOS SOCIAIS

A segunda estratégia da lógica de ação da elite no que respeita ao compadrio consistia


em fornecer padrinhos e madrinhas para indivíduos de condição social menos privilegiada. A
108

prática, ao mesmo tempo em que ajudava a reiterar o seu status social, contribuía também
para a formação de uma de uma clientela em torno das famílias de elite – elementos de grande
importância na estrutura política do Brasil oitocentista. Esse segundo uso social do compadrio
pela elite paraense é o objeto desta seção. Interessa-nos, a princípio, verificar a presença de
indivíduos da elite como padrinhos ou madrinhas nos batismos de crianças livres, e delimitar
um rol desses indivíduos que exerceu esses papéis por mais vezes. Em seguida, analisamos as
implicações desses vínculos tanto às elites, quanto para os sujeitos de condição social menos
privilegiada que com elas interagiam. Tracemos alguns apontamentos iniciais, sobre os 1.775
registros de batismo de crianças livres pesquisados.

Em 10% (178) dos casos, os padrinhos das crianças livres foram relacionados a algum
termo de distinção social. Desse grupo de padrinhos, 60% estava associado a alguma patente
militar (de alferes a coronéis), 30% ao exercício de profissões liberais (“doutores”), 05% a
predicados de grande distinção social (como títulos nobiliárquicos ou a vinculação às Ordens
de Cristo ou da Rosa) e os 05% restantes a ocupações diversas (como juízes, por exemplo).
Esses termos e a vinculação a atividades que eles indicam devem ser considerados dentro de
certos parâmetros. Não se trata, é bom deixarmos isso claro desde já, de grupos ocupacionais.
As atividades atribuídas àqueles sujeitos poderiam ser apenas formais e não necessariamente
excludentes entre si. Uma mesma pessoa poderia ter parentes militares, títulos de nobreza e
ocupar postos na administração pública ao mesmo tempo. Ademais, outros signos de riqueza,
como a posse de escravos e terras, não estão sendo ainda considerados.

Em 24,4% (433) dos casos, as madrinhas de crianças livres foram associadas ao termo
“dona”. Se considerarmos apenas as situações em que havia madrinhas humanas, deixando de
lado os casos em que papel foi atribuído a Nossa Senhora, esse percentual sobe para 42,5%.
Ou seja, em dois de cada cinco batizados de crianças livres que tiveram madrinhas humanas,
o papel foi exercido por uma mulher de condição social um pouco mais elevada. No entanto,
o termo “dona” também deve ser considerado dentro de parâmetros específicos, sem os quais
poderíamos estar comprometendo os dados apresentados. A nosso ver, longe de refletir uma
preferência maior por madrinhas do que padrinhos de condição social mais elevada, o quadro
é indicativo de uma maior plasticidade com que o termo provavelmente era arrogado.255

255
Um exemplo mais evidente dessa questão remete-se a um aspecto geracional. Enquanto um homem da elite,
de menor idade, muito dificilmente teria seu nome associado a um termo de prestígio social, as mulheres da elite,
desde a mais tenra idade, já eram referidas como “donas”. Se, por um lado, essa questão acabar supervalorizando
a presença das mulheres da elite como madrinhas, por outro, acaba também subvalorizando a participação dos
homens dessa condição como padrinhos.
109

Por mais que esse panorama precise ser relativizado, na medida em que ele acaba por
abarcar igualmente os casos em que os sujeitos da elite apadrinharam crianças da sua mesma
condição social, ele é também sugestivo da participação desses sujeitos nos batismos de livres
em geral. Se, por um lado, o panorama pode evidenciar um esforço dessa elite tradicional em
estabelecer vínculos sociais verticalizados, por outro lado, também pode evidenciar que uma
gama variada dos segmentos da população livre de Belém procurava relacionar-se com a elite
por meio do compadrio, a procura de padrinhos e compadres mais bem situados socialmente.

Os registros paroquiais de batismo não são sugestivos da real condição social desses
outros segmentos que formavam laços de compadrio com a elite. Contudo, o fato de boa parte
das crianças batizadas pela elite ser de condição legítima pode ser um indício nesse sentido.
Se considerarmos que (1) essas crianças só seriam legítimas se seus pais tivessem tido acesso
ao matrimônio e que (2) o casamento passava por um recorte socioeconômico bem definido, o
que fazia com que nem todos os segmentos sociais, particularmente os mais pobres, tivessem
acesso a ele, podemos inferir que, possivelmente, tratava-se de segmentos sociais situados em
posições intermediárias na hierarquia social. Entretanto, qualquer conclusão mais contundente
em relação a esse aspecto ainda careceria de estudos mais específicos, que dialogassem com
outros tipos de fonte.

Para esboçarmos a importância dessa prática, selecionamos, dentre todos os padrinhos,


aqueles que exerceram esse papel por mais de cinco vezes nos anos arrolados. Esse patamar
pode ser, concomitantemente, super ou subestimado, dependendo de situação para situação.
Superestimado, na medida em que pode se remeter a apadrinhamentos dentro de uma mesma
rede familiar, o que não constituiria um indicador efetivo para a discussão desenvolvida nesta
seção. Subestimado, haja vista as amostragens realizadas. Alguns indivíduos podem ter sido
padrinhos justamente nos anos intervalares àqueles arrolados em nossa pesquisa e, além disso,
não estamos considerando outras paróquias da cidade, onde outros sujeitos porventura podem
ter sido padrinhos com maior assiduidade.

Dentre esses indivíduos que foram, na feliz expressão de Silvia Brügger, “campeões
de batismo”,256 destacam-se nomes dos proeminentes da sociedade local como: Ângela Joana
Pereira Martins Marques (escravista); Antônio de Lacerda Chermont (futuro Barão de Arari e
presidente da província); Antônio Pereira da Silveira Frade (de rica família proprietária de
terras no Marajó); Bento José da Silva (escravista); Camilo José do Vale Guimarães (médico

256
BRÜGGER, Silvia Maria. Jardim. Minas Patriarcal: família e sociedade (São João Del Rei – Séculos XVIII e
XIX). São Paulo: Annablume, 2007.
110

e fidalgo da Casa Real de Portugal); Geraldo José de Abreu (coronel e um rico escravista);
Hilário Ferreira Muniz (escravista); João Lourenço Paes de Sousa (“doutor” e futuro vice-
presidente da província); José da Gama Malcher (doutor e futuro presidente da província);
Manoel Corrêa de Miranda (escravista); Teodósio Constantino da Silveira Frade (de rica
família proprietária de terras no Marajó), Teodósio Constantino Chermont (coronel) e Vicente
Antônio de Miranda (comendador).257

Os “campeões de batismo” eram, portanto, em sua grande maioria, homens ligados a


símbolos de riqueza tradicionais, o que distinguia a sua condição social de elite. Eram, assim,
membros da alta administração provincial e de ordens honoríficas, e possuidores de títulos de
nobreza, altas patentes militares, terras e escravos. Comparando esse grupo ao panorama mais
geral dos membros da elite que serviram de padrinhos e madrinhas, podemos observar alguns
distanciamentos que gostaríamos de pontuar. Em primeiro lugar, no que diz respeito ao perfil
marcadamente masculino dos “campeões”. Enquanto naquele panorama, as “donas” se faziam
mais presentes do que os homens correlacionados a algum termo de distinção social, entre os
“campeões de batismo” havia apenas uma mulher, e que levou grande quantidade de escravos,
de sua propriedade, ao batismo e ao casamento durante o período pesquisado. Em segundo
lugar, no que é atinente a diferença nas ocupações formalmente atribuídas aos “campeões”. Se
30% dos homens da elite que serviram de padrinhos tiveram a sua condição distinguida em
relação ao exercício de profissões liberais, somente dois dos “campeões” possuíam formação
acadêmica e exerciam essas atividades.

O fato de o rol dos “campeões de batismo” ser composto, em sua grande maioria, por
homens é amplamente compreensível tendo em vista o caráter marcadamente patriarcal da
sociedade brasileira oitocentista. Não desconsiderando a atuação das mulheres em importantes
esferas da vida pública,258 distintas daquelas ocupadas pelos homens, eram sem dúvida eles
que tinham acesso ao poder decisório nas mais distintas instâncias – do ambiente familiar à
política. Tendo também o compadrio uma lógica que se assentava “tanto no poder econômico
das partes envolvidas, como principalmente, no prestígio e status que poderiam ser auferidos

257
As referências à condição social desses indivíduos foram retiradas dos próprios registros paroquiais. No caso
do termo escravista consideramos os sujeitos que levaram seus cativos ao batismo e ao casamento. É interessante
notarmos que todos esses indivíduos levaram pelo menos cinco escravos ao batismo ou cinco ao matrimônio, o
que pode sugerir serem eles proprietários de escravarias mais robustas. As referências ao Silveira Frade foram
retiradas de: ACEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth. Alianças matrimoniais na alta sociedade paraense no
século XIX, op. cit., p. 158.
258
Ver: CAPÍTULO III, p. 169.
111

da relação”,259 era particularmente interessante tornar-se compadre de um rico proprietário de


terras e escravos, e com acesso à alta administração provincial.

A diferença nas “ocupações” dos padrinhos merece atenção especial. Já na década de


1840, mas principalmente com o entrar nos anos de 1850 e 1860, podemos verificar, mais nos
batismos do que nos casamentos, referências a uma nova geração de indivíduos pertencentes à
elite tradicional com formação acadêmica e atuação em profissões liberais, notadamente nas
áreas do Direito e da Medicina. Essa maior presença evidencia um esforço dessa elite em
prover uma formação acadêmica mais sólida a alguns dos seus membros, numa iniciativa que
contava com o apoio da própria administração provincial do Grão-Pará. Especialmente entre
os anos de 1846 e 1855, promulgou-se, por meio de leis e de resoluções, a concessão de uma
série de pensões a jovens locais, para que eles obtivessem formação educacional mais sólida
em diversos cursos superiores, tanto no Brasil, quanto no exterior.260

Há vários casos ilustrativos dessa prática. José Cândido Firmino Ardasse e Antônio
José Campelo foram ambos enviados a Bruxelas, na Bélgica, para estudarem Engenharia Civil
e Medicina, respectivamente. Felipe Honorato da Cunha Meninéa, por sua vez, foi estudar
Direito no Recife, enquanto José Augusto de Castro Martins e Marcelino Oliveira Perdigão
Ribeiro partiram para a Escola Militar do Rio de Janeiro, tendo em vista a formação na área
de Engenharia Civil.261 Podemos observar, pelos sobrenomes dos bacharelandos para quem
foram concedidas as pensões, que as mesmas se destinavam, naturalmente, a membros de uma
elite tradicional, que detinha o controle da administração provincial no Grão-Pará. Os Castro
Martins, por exemplo, tinham nas suas duas ramificações ascendentes (os Rodrigues Martins
e os Castro), importantes famílias de proprietários de terras e de escravos na região, além de
um grande envolvimento no comércio.262

Esses indivíduos com formação acadêmica mais sólida, embora atuantes em profissões
liberais, não deixavam também de envolverem-se nas esferas políticas, nem mesmo de buscar
títulos de distinção. Porém, aquelas formação e atuação profissional levaram alguns sujeitos
da elite local, particularmente aqueles de uma geração mais recente, a interagirem em novos
espaços de sociabilidade ligados ao trabalho e às relações profissionais. Caso interessante para
pensarmos a questão, e que será retomado no próximo capítulo, ocorreu no batizado de José,
259
OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. Negócios de famílias. Mercado, terra e poder na formação da cafeicultura
mineira, 1780-1870. Bauru/SP: EDUSC, 2005, p. 175.
260
RPP. Índice ou repertório geral das leis da Assembleia Legislativa da província do Grão-Pará (1838-1853),
por André Curcino Benjamim (Chefe de Seção da Tesouraria de Fazenda da mesma província), 1854.
261
Idem.
262
Ver: CAPÍTULO III, p. 164.
112

filho de José Luís da Gama e Silva, de uma tradicional família do Pará oitocentista. Batizado
em dezembro de 1867, logo após a morte de sua mãe, Luís teve como padrinho Luís Ferreira
Lemos e, por madrinha, Adelaide Cândida da Silva.263 Luís Ferreira de Lemos não pertencia a
famílias tradicionais do Pará, mas conseguiu formar-se em Medicina. Sua destacada atuação
em frente à Santa Casa de Misericórdia (para qual doou grande quantidade de aparelhos) e na
organização dos serviços de saúde e higiene pública concedeu-lhe certo prestígio social.264 À
altura do batizado, estavam no comando da Santa Casa os doutores Francisco da Silva Castro
(primo da esposa de José Luís) e José da Gama Malcher (cunhado de José Luís), que também
pertenciam à rede familiar dos Gama e Silva.

As formações acadêmicas e o exercício de uma profissão liberal por parte de Malcher,


Silva Castro e Ferreira Lemos permitiram que uma família da elite tradicional (no caso, os
Gama e Silva) estabelecesse relações com um indivíduo que, muito embora não pertencesse à
outra família com tradição, possuía destaque social, por conta da sua sobressalente atuação
profissional. De qualquer forma, Luís Ferreira Lemos provavelmente ainda não possuía uma
posição social consolidada ao ponto de podermos considerar o vínculo estabelecido enquanto
horizontal, nem tampouco uma posição social tão inferior ao ponto de podermos considerar o
vínculo como marcadamente vertical. Tratava-se, no nosso entendimento, de um indivíduo em
pleno processo de ascensão social.

A relação estabelecida por intermédio do compadrio pode ter tido implicações sociais
compensatórias para ambas as partes. Se, por um lado, Ferreira Lemos angariaria seu acesso à
alta administração provincial e municipal (à época, a rede familiar dos Gama e Silva, como
veremos no próximo capítulo, já havia consolidado seu espaço na política local) e a espaços
de sociabilidade da alta sociedade paraense; por outro lado, os Gama e Silva agregariam à
clientela da família um sujeito com destaque social e que decerto tinha renda suficiente para
garantir-lhes voto.265

263
ACMB. Livro IX de Registros de Batismo do Curato da Sé de Belém, p. 58(v).
264
MIRANDA, Aristóteles Guilliod de. A medicina no Estado do Pará, Brasil: dos primórdios à Faculdade
de Medicina. In: Revista Pan-Amazônica de Saúde, Belém, (1)3, 2010, p. 13.
265
Em clássico trabalho sobre o sistema político do Império, Richard Graham verificou que a estrutura política
brasileira no século XIX sustentava-se por intermédio de um sistema clientelista que ligava o poder central – o
Imperador, seu Conselho de Estado e o Gabinete ministerial – às elites locais e essas aos seus “séquitos
eleitorais”. A lógica do sistema era vencer as eleições, a instituição legitimadora do poder político (exceto o do
Imperador). Por mais manipulado e fraudulento que pudesse ser, o sufrágio deveria transparecer honestidade,
inclusive dando voz e cargos à oposição de forma limitada. Para os candidatos da situação e sua clientela, a
vitória eleitoral não era somente uma obrigação, mas questão de sobrevivência política. Ocupar os cargos da
administração pública, nas suas mais variadas instâncias, com indivíduos próximos ou mesmo de sua rede
clientelista, significava, ao mesmo tempo, o fortalecimento da posição social da elite agrária e o recrudescimento
113

Outro caso interessante, nesse sentido, é o do nosso já conhecido Felipe Meninéa, que
foi pensionista da província do Grão-Pará na Faculdade de Direito do Recife:

“Aos vinte e oito dias do mês de dezembro de 1866, na capela da


Fazenda Tapanã, propriedade do Ilustríssimo Senhor Manoel Joaquim
Ribeiro Seabra,[...] pus os Santos Óleos à inocente Júlia, filha legítima
de Manoel e Andreza, escravos do mesmo Senhor Doutor Manoel
Joaquim Ribeiro Seabra. Foram padrinhos o Ilustríssimo Doutor
Felipe Honorato da Cunha Meninéa e D. Inês Chermont de
Miranda”.266

Meninéa, diferentemente dos demais pensionistas da província, não pertencia a alguma


família tradicional do Grão-Pará, embora a sua “pensão” seja sugestiva de que sua família ao
menos conhecia alguém com maior influência. No batismo de Júlia, o que mais importa não é,
naturalmente, o vínculo criado entre seus pais, Meninéa e Inês Miranda. Mas, o quanto o caso
é ilustrativo da posição social que Meninéa havia escalado, ao evidenciar as relações que ele
mantinha com a elite tradicional depois de bacharelado em Direito. A referência feita a ele no
registro batismal como um “Ilustríssimo Doutor” também é indicativa dessa posição.

A ausência de procurações pode indicar que tanto ele, quanto Inês Miranda passaram o
fim de ano na fazenda de propriedade de Manoel Seabra, possivelmente um rico escravista. A
presença Meninéa e Inês naquela fazenda, que provavelmente fez com que batizassem Júlia,
pode ser tomada como uma evidência da circulação de Meninéa em espaços da alta sociedade
local. Manoel Seabra foi um dos indivíduos que mais batizou e casou cativos no período por
nós pesquisado. Inês Miranda, por sua vez, é a mesma pessoa a qual nos referimos no início
desta seção, filha de Antônio José de Miranda com Inês de Lacerda Chermont. As interações
sociais que aquela circulação lhe ensejava podem ter valido a Felipe Meninéa uma indicação
como Juiz de Direito no início dos anos de 1870.

Mais uma vez, estamos diante de um caso em que a formação acadêmica e o exercício
de uma profissão liberal provavelmente foram determinantes para o acesso de indivíduos em
ascensão social à elite tradicional da província, por meio dos laços de compadrio. Se, como
demonstramos no capítulo anterior, as alianças matrimoniais entre essa elite tradicional eram
marcadamente endógenas, podemos verificar no compadrio um elemento de flexibilização das

de sua clientela. Para tal, a elite valia-se do uso do aparato governamental e de diversas instituições públicas,
como por exemplo: o Senado, as administrações provinciais, a Magistratura, a polícia, a Igreja etc. Uma
importante família de elite poderia ter, em sua clientela, diversas outras famílias de elite menores ou famílias de
camadas intermediárias, e assim por diante. Ver: GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século
XIX. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 1997 [1990].
266
ACMB. Livro IX de Registros de Batismo do Curato da Sé de Belém, p. 38(v).
114

alianças sociais constituídas por essas famílias, seja com indivíduos de condição social menos
privilegiada, seja com indivíduos em ascensão social, como Meninéa e Ferreira Lemos.

No entanto, o estabelecimento de vínculos de compadrio verticais entre aquela elite


tradicional e outros sujeitos de condição social menos favorecida prescindia de uma interação
cotidiana mais forte. Um caso interessante para pensarmos a questão é o batismo de Salomão
(José) Amazalac:

“Aos 27 dias do mês de abril de 1845, nesta Igreja da Sé e Catedral


do Pará, Sua Excelência Reverendíssima o senhor Bispo D. José
Afonso de Moraes Torres batizou com o nome de José e pôs os santos
óleos ao adulto Salomão Amazalac (judeu), filho legítimo de Moisés
Amazalac e de Megóia Amazalac, tendo abjurado antes os erros do
judaísmo e feito a profissão da Fé, na forma da Bula de Pio IV; foram
padrinhos Suas Majestades Imperiais o senhor D. Pedro II, Imperador
do Brasil, e a senhora D. Teresa Cristina Maria, Imperatriz do Brasil,
representados na pessoa do excelentíssimo vice-presidente da
Província [do Pará - DSB] João Maria de Moraes, que apresentou
autorização competente”.267

O batismo de José chama atenção por vários aspectos. Em primeiro lugar, por tratar-se
do batismo de um judeu adulto, que oficialmente abdicava da sua fé e entrava na cristandade
por meio do batismo. Em segundo lugar, pelas pessoas (in)diretamente envolvidas naquela
cerimônia. A mesma foi celebrada pelo então Bispo do Pará e teve como padrinho e madrinha
nada menos que o Imperador e a Imperatriz, representados pelo vice-presidente da província
do Pará, João Maria de Moraes. As pessoas envolvidas indicam o prestígio social de Salomão.
Aliás, a sua própria conversão ao catolicismo pode ter sido, em grande medida, condicionada
justamente por sua posição social. Porém, Salomão conheceria a Família Imperial e manteria
com ela uma relação tão próxima ao ponto de ter o Imperador e sua a esposa como padrinhos?
É provável que não. Sendo assim, então quem teria intermediado a formação desse laço de
compadrio?

Acreditamos que, nesse caso, o apadrinhamento tenha sido conformado pela atuação
de “intermediários sociais”. De acordo com Renato Venâncio, eles poderiam interceder social,
política e/ou economicamente diante de indivíduos de condição social mais elevada, em prol
daqueles menos bem posicionados na escala social.268 Eram, nesse sentido, responsáveis pelo
dinamismo de extensas redes sociais que poderiam interligar pessoas em lugares distintos na
hierarquia social: da maior autoridade do Império (D. Pedro II) a um judeu adulto e recém-

267
ACMB. Livro III de Registros de Batismo do Curato da Sé de Belém, p. 148.
268
VENÂNCIO, Renato Pinto et al. O Compadre Governador, op. cit., p. 287.
115

convertido na Amazônia. Trata-se, sem dúvida, de um caso-limite, mas que nos ajuda a pensar
a possível atuação desses intermediários sociais nas relações entre a elite tradicional paraense
e os indivíduos de condição social menos privilegiada.

Em linhas gerais, as relações verticais, que deixavam de lado o caráter pretensamente


igualitário do compadrio, poderiam ser interessantes para ambas as partes. Aos indivíduos de
condição social menos privilegiada ou em ascensão, os vínculos com a elite mais tradicional
valiam-lhes proteção e amparo social, assim como a indicação a postos e cargos de diversas
ordens. Por outro lado, para aquela elite, a possibilidade de estabelecer-se vínculos verticais,
com sujeitos de condição social menos privilegiada ou em ascensão social, além de demarcar
a sua própria posição social enquanto elite, garantir-lhes-ia o estabelecimento de uma rede
clientelista, de grande importância para a manutenção de sua influência política. Como bem
entende Richard Graham:

“Embora um pouco mais tênues, os laços de parentesco ritual também


eram importantes. Ser padrinho, afilhado, compadre ou comadre no
Brasil, como em outras culturas ibéricas, envolvia obrigações
religiosas e materiais importantes e, portanto, de influência e até de
autoridade. Todos os laços familiares implicavam obrigações mútuas
de ajuda nas eleições ou na garantia de cargos no governo”.269

OUTRAS NUANCES DO COMPADRIO DE LIVRES

Esta seção tem por objetivo refletir sobre alguns elementos que podem ter permeado
as relações de compadrio de pessoas de condição livre em geral, mas que apareceram apenas
de forma muito fragmentada nos registros pesquisados; não se tornando, portanto, passíveis
de quantificação. Almejamos analisar de que maneira o gênero, a geração, a naturalidade e o
estado conjugal poderiam influir, de diferentes formas, na escolha dos padrinhos e madrinhas.
Esses elementos muito provavelmente condicionaram aquelas relações como um todo, tanto
as verticais, quanto as horizontalmente estabelecidas. É importante destacarmos, de antemão,
que não se trata de um esforço de analisar tendências de compadrio em torno desses aspectos,
nem muito menos de homogeneizar e generalizar comportamentos específicos; trata-se apenas
de problematizá-los.

269
GRAHAM, Richard. Clientelismo e política, op. cit., p. 37.
116

Todos esses aspectos acabaram aparecendo nas reflexões desenvolvidas até o presente
momento, de forma mais ou menos evidente. Quando tratamos do compadrio entre as elites,
observamos que em alguns casos buscava-se indivíduos de geração ascendente ou então um
casal como padrinhos, o que pode sinaliza para a importância da geração e do estado conjugal
dos indivíduos na sua escolha como padrinhos. Ao analisarmos como aquela elite tradicional
flexibilizava suas relações ao apadrinhar crianças de condição menos privilegiada, sejam de
indivíduos em ascensão social e enriquecimento, ou não, sugerimos que o compadrio poderia
representar um mecanismo de inserção social para indivíduos recém-chegados, o que abre a
possibilidade para pensarmos no seu uso pela população migrante, e assim por diante.

O primeiro ponto que gostaríamos de analisar é o gênero. Enquanto não encontramos


quaisquer referências a santos no papel de padrinho, as Nossas Senhora perfaziam 24,5% das
madrinhas de crianças livres. Essa diferença tem ao menos dois desdobramentos. Em primeiro
lugar, corroborando com a perspectiva já apontada em relação às testemunhas de casamento,
evidencia uma preocupação maior no estabelecimento de relações sociais com os homens. O
fato de todos os padrinhos por nós pesquisados serem humanos é indicativo de uma sociedade
marcadamente patriarcal, na qual o poder decisório estava, em geral, nas mãos do masculino.
Em segundo lugar, enquanto uma consequência dessa primeira questão, temos um indício dos
aspectos religiosos do parentesco espiritual. Por mais que essa prática não fosse permitida, o
“sagrado” entrava na família através do papel de madrinha, tornando evidente a dimensão
religiosa do rito batismal.

Em alguns casos, igualmente em total desacordo com as normatizações eclesiásticas


do batismo, chegava a haver dois padrinhos do sexo masculino. No ano de 1857, Pedro, filho
legítimo de João José Horácio e de D. Teresa de Jesus Sodré Horácio e Silva, teve enquanto
“padrinhos o capitão Augusto César Sampaio e o tenente Pedro Gomes do Amaral”. 270 Essa
prática, tal como a anterior, ia de encontro às determinações das Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia. Segundo a legislação, os papéis de padrinho e madrinha não poderiam
ser exercidos por pessoas do mesmo sexo (dois padrinhos homens ou duas madrinhas), nem
pelos: pais do batizado; “infiéis”, “hereges” ou públicos excomungados; interditos, surdos,
mudos, e acatólicos. Além deles, ainda não poderiam ser padrinhos frades, freiras, cônegos ou
qualquer outro religioso.271

270
ACMB. Livro VI de Registros de Batismo do Curato da Sé de Belém, p. 35(v).
271
VIDE, Sebastião Monteiro da. Título XVIII, n. 64. In: Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia.
São Paulo: EDUSP, 2010 [1707], pp. 152-153.
117

Outro aspecto que gostaríamos de considerar é a presença de migrantes nos registros


batismais, e os possíveis usos sociais do parentesco espiritual por parte desse grupo. Embora a
naturalidade dos pais das crianças e dos padrinhos não seja quase nunca especificada, sendo
referida apenas em casos específicos e de forma fragmentada, é plausível pensarmos que com
a intensificação do fluxo migratório destinado à região, a partir da década de 1850, a presença
desse grupo à pia batismal tenha se tornado cada vez mais constante. Nas décadas de 1850 e
1860, as referências às naturalidades começam a aparecer com uma tímida frequência, mesmo
que apenas nos casos em que houve Autos de Justificação (ou seja, quando o rito foi realizado
em data anterior e registrado posteriormente).

Dois Autos chamaram-nos atenção em particular, um do início dos anos 1850 e outro
do final dos anos 1860. Conquanto sejam casos particulares que não podem ser generalizados,
eles podem sinalizar dois estágios distintos de interação da população migrante na cidade. O
primeiro, concernente a um período de intensificação nesse fluxo e, o segundo, pertinente a
um contexto em que a presença desse grupo provavelmente já estava consolidada no cotidiano
da cidade de Belém. O primeiro caso é o batismo de Francisco:

“Aos 25 dias do mês de dezembro de 1853, [...], em altar privado ereto


nas casas de residência de Francisco Joaquim Fiúza da Cunha, [...],
[batizou-se – DSB] solenemente ao inocente Francisco, nascido no dia
primeiro de junho deste ano, e filho legítimo de Francisco Joaquim
Fiúza da Cunha, natural de Portugal, e sua mulher Irina Guilhermina
de Lima e Cunha, natural da província do Maranhão. Neto pela parte
paterna de Francisco Joaquim da Cunha (já falecido), e de Maria
Custódia do Carmo, residente em Ponte de Lima, no Reino de
Portugal. E, por parte materna, de José Antônio Pereira de Lima e de
Ana Francisca de Mesquita, já falecidos. Foram padrinhos [?] Antônio
Corrêa e d. Carlota Adelaide da Rocha Leão”.272

Os pais de Francisco eram de distintas naturalidades. Seu pai, também Francisco, era
português e sua mãe, Irina, maranhense. O registro não faz qualquer referência às origens do
padrinho e da madrinha, mas, por outro lado, apresenta alguns indícios que podem nos ajudar
a compreender o laço de parentesco espiritual estabelecido. É importante considerarmos que o
casamento muito provavelmente não representou, nem para Francisco, nem para Irina um
mecanismo de inserção na sociedade paraense. Francisco possivelmente migrou sozinho, ideia
que é corroborada pela permanência de sua mãe em Portugal. Talvez o mesmo tenha ocorrido
com Irina. Embora o assento não apresente qualquer menção nesse sentido, não encontramos
referências a ela ou aos seus pais em todos os registros pesquisados.

272
ACMB. Livro VI de Registros de Batismo do Curato da Sé de Belém, p. 01.
118

Cruzando esse registro aos assentos de casamento pesquisados, encontramos algumas


“pistas” que podem nos ajudar a entender o laço estabelecido. Em setembro de 1863, outra
filha de Francisco e Guilhermina, chamada Benedita, contraiu núpcias.273 Esse enlace teve
como uma de suas testemunhas, José Eutíquio da Rocha Leão. Pelo registro do casamento em
segundas núpcias de Eutíquio, descobrimos que ele era de naturalidade portuguesa. 274 O fato
de o seu sobrenome (Rocha Leão) ser o mesmo da madrinha de Francisco pode não ser mera
casualidade ou coincidência. É possível que eles fossem parentes e, ela, também portuguesa.
Se essa suposição estiver correta, o vínculo de compadrio firmado pelo batismo de seus pais
pode ser servido para consolidar relações sociais entre duas famílias portuguesas na província
do Grão-Pará, fortalecendo uma comunidade lusitana na região.

Saindo da esfera das suposições, partimos para um caso mais concreto. Em 1867, por
ocasião do dia da Santíssima Trindade (sete de junho), um conjunto de indivíduos reuniu-se
na capela de Nossa Senhora da Conceição, de propriedade de Mariana Campbell, para realizar
uma cerimônia de batismo coletivo. Tratava-se de um grupo bastante heterogêneo do ponto de
vista social, que compreendia escravos, migrantes de diversas naturalidades e membros da
elite tradicional (a exemplo da própria d. Mariana Campbell). A ata de batismo permite-nos
observar, num contexto marcado pela consolidação de um intenso fluxo migratório destinado
ao Grão-Pará, parte da cotidianidade das interações sociais que diferentes sujeitos e grupos
mantinham no dia-a-dia da cidade de Belém. Vejamos um excerto do registro:

“No dia da Santíssima Trindade, sete de junho do Ano de Nascimento


de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e sessenta e sete, na
capela de Nossa Senhora da Conceição da Olaria denominada Tauaú,
da propriedade de D. Mariana Leocádia Pombo Campbell, filial da
Freguesia de Nossa Senhora da Graça da Sé, competentemente
autorizado batizei solenemente e pus os Santos Óleos aos inocentes
Felinto, nascido aos onze dias do mês de junho do ano passado, filho
legítimo do português Pedro Antônio Pontes e de D. Elísia Maria
Engracia da Silva Pontes, natural desta província; foram padrinhos
João Roberto Wallace, e sua mãe D. Maria Clara Vieira, naturais
aquele desta e esta da província do Amazonas.”275

Ao casar-se com Elísia Silva, uma paraense, Pedro Antônio fez parte de uma tendência
geral dos portugueses em relação ao casamento em Belém, e evidenciou o seu interesse em
inserir-se socialmente no Pará. Pedro buscou, igualmente no compadrio, um mecanismo de
inserção social, evidenciando uma estratégia diferente daquela adotada pelo seu conterrâneo,

273
ACMB. Livro I de Registros de Casamento do Curato da Sé de Belém, pp. 169(v)-170.
274
ACMB. Livro I de Registros de Casamento do Curato da Sé de Belém, p. 244.
275
ACMB. Livro IX de Registros de Batismo do Curato da Sé de Belém, p. 69.
119

Francisco Fiúza. João Wallace era paraense e, sua mãe, natural do Amazonas. Mesmo assim,
considerando que a criação dessa província é datada dos meados do século, é muito provável
que Maria Clara Vieira também tivesse estabelecida toda uma ampla gama de inter-relações
em Belém, de onde era originário o seu filho João Roberto. Embora isso não se aplique ao
laço constituído por Francisco Fiúza, Pedro Antônio e suas respectivas esposas, o compadrio
poderia servir como um mecanismo de grande importância à inserção social dos migrantes,
particularmente àqueles que não dispunham de recursos materiais para contrair o casamento
com mulheres locais ou que já vinham casados de suas localidades de origem.

O batismo de Felinto é ilustrativo de outra perspectiva que gostaríamos de analisar: a


influência da geração no delineamento dos laços de compadrio. Maria Clara e João Roberto
eram, respectivamente, mãe e filho, e pertenciam, portanto, a gerações distintas. Se, por um
lado, o estabelecimento de laços de compadrio com padrinho e madrinha de tamanho grau de
parentesco pode evidenciar o interesse em consolidar as relações existentes com determinada
parentela, por outro lado, pode evidenciar uma preocupação com a questão geracional. Em um
meio marcado por uma alta mortalidade, poderia ser particularmente interessante criar laços
com um compadre e uma comadre de gerações distintas, sendo eles aparentados ou não. Ao
mesmo tempo em que se usufruiria de toda a gama de inter-relações sociais do mais velho,
garantir-se-ia, hipoteticamente, que o padrinho de menor idade pudesse acompanhar a criança
batizada por mais tempo, conferindo-lhe suporte e amparo social.

Deixando de lado essa perspectiva geracional e retomando a perspectiva de um reforço


das relações com uma mesma parentela por meio do compadrio, não podemos desconsiderar
os casos onde o padrinho e a madrinha eram casados entre si. O estado conjugal dos padrinhos
é uma informação que, pelo menos em tese, deveria constar sempre nos assentos de batismo,
como regulamentam as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Porém, na prática,
quase nunca se referia à questão, sendo o estado conjugal dos padrinhos quase que um termo
ausente nos registros batismais da freguesia da Sé de Belém. Vejamos uma situação em que a
informação fazia-se presente:

“Aos 14 dias do mês de agosto de 1857, [...], no oratório da chácara


de Antônio Fernando Sodré e Silva, batizei solenemente e pus os
Santos Óleos, às inocentes Augusta, nascida em 18 de outubro de
1855, e à inocente Amélia, nascida em 16 em março deste ano; filhas
legítimas de Antônio Fernando Sodré e Silva e d. Ana Clecks Nina
Sodré e Silva, [...]. Foram padrinhos daquela o Dr. Augusto Tiago
120

Pinto e sua mulher d. Maria da Glória Paes Pinto, e dessa o major


Hilário Maximiano Antunes Gurjão [...].”.276

O batismo de Augusta, descendente de duas tradicionais famílias paraenses e irmã de


Lauro Sodré, que viria a ser o primeiro governador republicano do Pará, é mais um caso no
sentido de mostrar a preferência de alguns indivíduos em estabelecerem laços de compadrio
com casais; prática que, como demonstramos anteriormente, ocorria com maior frequência
entre a elite paraense. Aproveitando o ensejo, não podemos deixar de considerar tratar-se de
outro caso em que o exercício de profissões liberais (Augusto era médico) levou indivíduos
em ascensão social a firmar laços de compadrio com a elite local, como também ocorreu com
os nossos já conhecidos Ferreira Lemos e Felipe Meninéa.

Longe de buscarmos traçar tendências em torno desses elementos, almejamos mostrar


algumas das maneiras pelas quais eles poderiam permear as relações de compadrio de livres.
Os registros paroquiais de batismo pesquisados não são claros, como temos destacado, em
relação à geração, à naturalidade e ao estado conjugal dos padrinhos. Mas tratam-se, decerto,
de aspectos importantes e que poderiam demarcar de muitas formas os laços constituídos. Se,
por um lado, as fontes que dispomos não nos permitiram proceder a uma análise mais densa
sobre a questão, ficam em aberto algumas possibilidades de pesquisa a serem desenvolvidas
em estudos posteriores.

RESUMINDO...

Nessa última seção, analisamos a lógica de ação da população livre no que respeita ao
compadrio, particularmente na sua interação com uma elite mais tradicional, proprietária de
terras e escravos, possuidora de patentes militares, cargos na administração pública e títulos
honoríficos de diversas ordens. Dada à impossibilidade de realizarmos uma abordagem serial
dos registros de batismo de livres, com vistas a delinearmos as tendências desse segmento em
torno do compadrio, procuramos outra estratégia analítica. Sem a pretensão de apontarmos
aquilo que, entre aqueles segmentos, representava tendências de comportamento ou desvios
particulares, buscamos traçar alguns dos elementos que, a nosso ver, estariam no âmago das
relações firmadas. Para a elite, julgamos que esses elementos incidiriam na reprodução da sua

276
ACMB. Livro VI de Registros de Batismo do Curato da Sé de Belém, p. 36.
121

condição social e, em relação aos demais segmentos que com ela interagiam, no interesse por
proteção e amparo social.

Demonstramos que a lógica de ação da elite relativamente ao compadrio diluía-se em


duas estratégias complementares. Ao mesmo tempo em que sujeitos daquele grupo buscavam
e forneciam padrinhos dentro de sua própria camada social, igualmente não se furtavam em
fornecer padrinhos a crianças de condição social menos privilegiada, tornando-se compadres
de seus pais. Essas estratégias confluíam na formação de marcas de distinção que tonificavam
a sua própria condição social, na medida em que simbolizavam tanto relações objetivamente
constituídas em seu próprio meio social, como relações estabelecidas com demais segmentos
da sociedade. À manutenção de seu status social, constituir uma clientela e ser um “campeão
de batismo” era tão importante quanto o reforço das redes familiares. Por outro lado, para os
indivíduos de condição menos privilegiada ou, ainda, em ascensão social, seria certamente
interessante tornar-se compadres daquela elite mais tradicional, tendo em vista os benefícios
de ordem social, simbólica e econômica que a relação poderia lhes propiciar.

Por último, tecemos algumas considerações mais gerais sobre a influência do gênero,
da geração, da naturalidade e do estado conjugal dos nubentes no delineamento das relações
de compadrio de livres. Por mais que as fontes pesquisadas não tenham nos permitido ser
conclusivos a respeito, buscamos mostrar algumas nuances daqueles marcadores na formação
dos laços de compadrio entre a população livre de Belém.

2.2. O COMPADRIO DE ESCRAVOS

Desde a publicação do pioneiro estudo de Stephen Gudeman e Stuart B. Schwartz277


sobre o compadrio de cativos na Bahia setecentista, nos anos 1980, assiste-se na historiografia
brasileira à proliferação nos estudos acerca da temática, em relação aos mais diversos recortes
espaciais e temporais. Embora haja, nessa historiografia em particular, ampla concordância no
que diz respeito a alguns elementos (como a antítese entre os papéis de senhor e padrinho, e a

277
GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart B. Purgando o pecado original: compadrio e batismo de
escravos na Bahia no século XVIII. In: REIS, João José (Org). Escravidão e invenção da liberdade: estudos
sobre o negro no Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense: CNPq, 1988, pp. 33-59.
122

relação existente entre a dimensão dos plantéis e as práticas de compadrio, por exemplo), as
nuances da escolha dos padrinhos e das madrinhas apresentavam, por vezes, algumas grandes
variações, dependendo do evolver demo-econômico e da realidade social nos quais as relações
de compadrio estavam inscritas.278

A análise do compadrio entre escravos permite-nos a aproximação das sociabilidades


desses sujeitos e das relações por eles estabelecidas dentro e fora do ambiente do cativeiro.
Evidencia, portanto, outras vivências e formas pelas quais esse segmento social experimentou
suas relações familiares e a própria escravidão. Os laços constituídos poderiam ser, tal como
entre a população livre, horizontais ou verticais. Os laços horizontais ocorriam entre escravos
de um mesmo plantel ou de escravarias diferentes. Se, no primeiro caso, buscava-se fortalecer
o grupo, no segundo caso buscava-se uma aliança social mais larga com escravos de parentes
ou aliados do senhor. Por outro lado, os laços constituídos verticalmente tinham por objetivo
garantir proteção e amparo social de pessoas mais bem situadas socialmente, sejam forros ou
indivíduos de maior proeminência social.279

Atualmente, muito pouco ainda se sabe sobre o compadrio de escravos no Grão-Pará.


Exceto alguns apontamentos iniciais apresentados em dissertações de mestrado e, em menor
medida, em trabalhos de conclusão de curso de graduação, 280 nada se conhece a respeito. Essa
lacuna está relacionada, a nosso ver, à própria ausência de estudos mais consolidados acerca
da demografia e da família escrava na região. Não obstante, no caso particular do compadrio
entre os escravos, o caráter nem sempre conclusivo dos registros de batismo no que concerne
à condição social dos padrinhos, decerto um elemento central à análise da questão, pode ainda

278
BOTELHO, Tarcísio Rodrigues. Batismo e compadrio de escravos: Montes Claros (MG), século XIX. In:
Lócus: Revista de História, 3(1), jan.-jun/1997, p. 109.
279
BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os compadres e as comadres de escravos: um balanço da
produção historiográfica brasileira. Simpósio Nacional de História, 26, 2011. São Paulo. Anais... São Paulo:
ANPUH-SP, 2011, p. 02.
280
Referimo-nos, em especial, a uma dissertação de mestrado e a três monografias: PASTANA, Andréa da Silva.
Em Nome de Deus, Amém! Mulheres, escravos, famílias e heranças através dos testamentos em Belém do Grão-
Pará (1800-1850). (Dissertação de Mestrado em História). Belém: Universidade Federal do Pará, 2008; SILVA,
Iara Walena Freitas da. De ventre livres nascidos: o batismo de ingênuos na freguesia da Sé na Província do
Grão-Pará, 1871-1883. (Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação em História). Belém: Universidade
Federal do Pará, 2011; RAMOS, Ana Rita Oliveira. Estudo da ilegitimidade nos registros paroquiais: a inserção
de filhos de pais incógnitos na sociedade paraense católica (1810-1850). (Trabalho de Conclusão de Curso de
Graduação em História). Belém: Universidade Federal do Pará, 2011; ALVES, Daniel de Oliveira. As famílias
escravas nos registros paroquiais: batismos e casamentos na Paróquia de Nossa Senhora da Sé de Belém-PA
(1810-1850). (Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação em História). Belém: Universidade Federal do
Pará, 2009. Embora passem pela discussão, esses trabalhos fazem apenas considerações muito iniciais a respeito
da família escrava em geral, e do compadrio de cativos, em particular. Portanto, não há neles uma sistematização
mais concreta e sofisticada sobre a questão.
123

ter atenuado o interesse de um maior número de pesquisadores na temática.281 Mesmo tendo


em vista as dificuldades relacionadas à investigação, acreditamos ser o compadrio um aspecto
de grande importância para a compreensão dos modos pelos quais os cativos experimentaram
os meados do século XIX em Belém.

Esta seção tem enquanto objetivo delinear as tendências gerais e discutir as nuances do
compadrio de escravos em Belém, entre 1840 e 1870. Interessa-nos, num primeiro momento,
analisar quantitativamente as preferências em torno da condição sociojurídica dos padrinhos e
das madrinhas. Após apresentarmos o quadro geral dessas preferências, buscamos investigar
de que modo o sexo, a condição de legitimidade e a dimensão dos plantéis a que pertenciam
os cativos batizados poderiam incutir na escolha dos padrinhos e madrinhas de determinada
condição sociojurídica; procedendo, quando possível, a comparações entre o quadro paraense
e outras realidades já estudadas do compadrio de cativos no Brasil oitocentista. Os matizes
dessas tendências são discutidas em outros dois momentos; em relação, primeiro, à escolha de
padrinhos e madrinhas livre e, em seguida, à seleção de escravos para esses mesmos papéis.

TENDÊNCIAS GERAIS DO COMPADRIO DE ESCRAVOS

As crianças escravas perfizeram, nos anos pesquisados, aproximadamente um terço


(833) dos indivíduos batizados (2.608) na freguesia da Sé de Belém, com algumas oscilações
anuais nesse percentual. Em 1842, primeiro ano arrolado, o batismo de cativos correspondia a
35,2% (123) de todos os casos pesquisados (350). Em 1870, último dos anos arrolados, a sua
representatividade orbitava em torno de 11,6% (56 de 482 casos). É importante relembrarmos
que o número de escravos em meio ao universo total de crianças batizadas coaduna-se com a

281
A grande maioria dos assentos pesquisados não especificava a condição sociojurídica dos padrinhos. Como
no que respeita à presença de migrantes, aquela condição só era referida quando se tratava do registro de Autos
de Justificação. A falta de referências não inviabilizou a análise sobre a questão, por mais que tenha tornado o
trabalho mais moroso. Se a condição sociojurídica não era especificada diretamente, em muitos casos ela poderia
ser discernível por inferência. Com vistas a não corrermos o risco de falsearmos os indicadores estabelecidos,
tivemos de analisar caso a caso. Quando nos registros havia termos distintivos da condição sociojurídica dos
padrinhos, o procedimento era mais fácil. A indicação de certas ocupações, títulos, patentes militares ou do
“dona” sugeria a sua condição livre. As referências à “cor” (“preta”, “cafuza”, etc.) sugeria, por sua vez, uma
associação à escravidão. Nesse jogo de inferências foi mais fácil distinguir os padrinhos de condição livre, pois a
“cor”, posto que representasse naqueles casos uma mácula social, poderia também ser usada em relação aos
forros. De modo a termos uma maior margem de segurança na definição dos padrinhos de condição cativa,
tomamos como metadado os nomes dos senhores e procedemos ao cruzamento de todos os registros (incluindo
aqui os de casamento) atinentes aos escravos de um mesmo proprietário. Conseguimos desse modo, verificar um
bom número de padrinhos que de fato eram escravos. Ainda assim, continuou havendo certa quantidade de
padrinhos cuja condição sociojurídica não foi possível inferirmos.
124

representatividade desse grupo em relação à população de Belém, como tivemos oportunidade


de demonstrar no CAPÍTULO I. Isso se deve, em grande medida, ao fato de o batismo ser uma
prática universalizada que abrangia, certamente com menos distinções que o casamento, todos
os segmentos sociais do Brasil oitocentista.

Os escravos batizados possuíam algumas características gerais. Dos cativos levados à


pia batismal nos anos arrolados, 404 (48,5%) eram do sexo masculino e 429 (51,5%) do sexo
feminino. A irrefutável maioria deles era natural do Grão-Pará, sendo rarefeita a presença de
africanos sendo batizados; os únicos registros encontrados com a sua presença, e já em idade
adulta, remetem-se à década de 1840, o que é perfeitamente compreensível tendo em vista que
o último navio negreiro partido da África aportou na província do Grão-Pará, em 1834.282
Outro aspecto a ser considerado, ao qual também nos referimos no capítulo anterior, é o fato
de a grande maioria dos escravos batizados ser composta por filhos ilegítimos; cerca de 90%
(750) d eles eram de tal condição de legitimidade. O universo de análise é constituído,
portanto, de um grupo bem equilibrado quanto ao sexo, marcadamente crioulo e de condição
ilegítima. Feita essa caracterização inicial, podemos passar à discussão do compadrio em si.
Vejamos, inicialmente, a TABELA 2.1:

TABELA 2.1
CONDIÇÃO SOCIOJURÍDICA DOS PADRINHOS DE ESCRAVOS

CONDIÇÃO SOCIOJURÍDICA
LIVRE ESCRAVO(A) SANTO(A) INDEFINIDO
PADRINHO 58% 20,1% -- 21,9%
MADRINHA 25,6% 24,6% 21,5% 28,3%
FONTE: LIVROS III, IV, VI, VII, VIII E IX DE REGISTROS DE BATISMO DA FREGUESIA DA SÉ DE BELÉM

A TABELA 2.1 evidencia, em linhas gerais, as preferências de escolha dos padrinhos de


escravos em função da condição sociojurídica daqueles, suscitando algumas questões iniciais.
Em primeiro lugar, destacamos uma diferença de acordo com o sexo dos padrinhos. Nos anos
pesquisados, a maioria absoluta dos padrinhos era de condição livre, não havendo casos em
que esse papel foi atribuído a santos. Por outro lado, os percentuais de madrinhas livres e das
escravas são equilibrados, não configurando uma tendência nesse sentido. Havia, também, um
percentual significativo de Nossa Senhora nesse papel. 283 Em segundo lugar, chamamos a

282
SALLES, Vicente. O negro no Pará sob o regime da escravidão. Belém: IAP, 2005 [1971], p. 76.
283
Em 30,8% dos casos em que Nossa Senhora foi madrinha, não especificado de quais se tratavam. Nos outros
casos em que Nossa Senhora foi indicada como madrinha, em 21,4% tratava-se de Nossa Senhora de Santana,
em 17% tratava-se de Nossa Senhora da Conceição e, em 10,6% dos casos, de Nossa Senhora de Belém,
125

atenção aos percentuais dos casos em que não conseguimos delimitar com clareza a condição
sociojurídica dos padrinhos e madrinhas. A representatividade deles não é tão expressiva ao
ponto de inviabilizar sua análise, nem tampouco inexpressiva para poder ser desconsiderada.

Essa segunda questão atém-se, sobretudo, às preferências em torno da condição social


das madrinhas, visto que a preferência pelos padrinhos livres alcançou, como demonstramos,
uma maioria absoluta. Ainda que estatisticamente improvável, o percentual dos casos em que
a condição sociojurídica das madrinhas não pôde ser definida pode ter escondido tanto uma
predileção por madrinhas livres, quanto por madrinhas cativas, além de uma procura ainda
mais expressiva por padrinhos livres, ou mesmo, um maior número de casos que os padrinhos
eram escravos; por mais que os últimos não pudessem alcançar a maioria absoluta, que recaiu
necessariamente sobre os livres.

Em face do exposto, para a análise mais acurada de algumas nuances da preferência


pela condição sociojurídica dos padrinhos e das madrinhas de escravos, optamos por trabalhar
com percentuais mínimos e máximos, criando, grosso modo, uma “margem de erro” para os
indicadores apresentados. Os percentuais mínimos são calculados em função do total de casos
pesquisados. Já os percentuais máximos consideram os maiores percentuais possíveis a cada
indicador analisado, agregando aos seus percentuais mínimos correspondentes o percentual
dos casos em que não foi possível definirmos a condição sociojurídica dos padrinhos. Esse
procedimento, adotado em estudos anteriores com o mesmo problema de fontes,284 pode ainda
não estar suficientemente claro. A TABELA 2.2 exemplifica melhor o procedimento ao ponto
em que também apresenta as preferências pela condição jurídica dos padrinhos, em função do
sexo dos escravos batizados:

padroeira da cidade. Nos 20,2% casos restantes, tratava-se de diversas Nossa Senhora, dentre as quais se incluía
Nossa Senhora de Nazaré. É interessante destacarmos que, em alguns casos, havia uma tendência de escravos de
um mesmo proprietário terem enquanto madrinhas uma mesma Nossa Senhora, o que pode estar relacionado
tanto a uma opção do senhor, quanto da própria comunidade escrava.
284
A aplicação deste procedimento a outra realidade, com problema similar ao nosso, pode ser vista em:
MOTTA, José Flávio & VALENTIN, Agnaldo. Dinamismo econômico e batismo de ingênuos – a libertação
do ventre da escrava em Casa Branca e Iguape, Província de São Paulo (1871-1885). In: Estudos
Econômicos, São Paulo, 38(2), abril-junho/2008, pp. 211-234.
126

TABELA 2.2
CONDIÇÃO SOCIOJURÍDICA DOS PADRINHOS EM FUNÇÃO DO SEXO DOS ESCRAVOS
BATIZADOS

PADRINHO MADRINHA
SEXO DO BATIZANDO
LIVRE ESCRAVO LIVRE ESCRAVA N. SENHORA
MASCULINO
Percentual mínimo 55,5% 18,8% 22,7% 27,6% 20,9%
Percentual máximo 81,2% 44,5% 51,5% 56,4% --
FEMININO
Percentual mínimo 60,2% 21,2% 23,7% 26,3% 22,1%
Percentual máximo 78,8% 39,8% 51,6% 54,2% --
FONTE: LIVROS III, IV, VI, VII, VIII E IX DE REGISTROS DE BATISMO DA FREGUESIA DA SÉ DE BELÉM

Como podemos perceber, tanto nos batismos das crianças escravas do sexo masculino,
quanto nos batismos das crianças escravas do sexo feminino, a predileção recaía em padrinhos
de condição livre. Pelo menos 55,5% dos padrinhos dos homens e 60,2% dos padrinhos das
mulheres eram de tal condição. A “margem de erro” insinua, entretanto, que nos batizados das
crianças escravas do sexo masculino essa preferência por padrinhos livres pode ainda ter sido
timidamente maior. Entre as madrinhas, considerando tanto os percentuais absolutos, quanto a
“margem de erro”, verificamos relativo equilíbrio entre as preferências por livres ou escravas.
Ademais, podemos observar que o percentual de Nossas Senhoras no papel de madrinhas foi
ligeiramente maior nos batismos das mulheres, do que nos batismos dos homens escravos. De
qualquer forma, os dados apresentados na TABELA 2.2, comparados àqueles anteriormente
apresentados na TABELA 2.1, indicam que o sexo dos escravos batizados não representou um
fator determinante em relação às preferências desse segmento pela condição sociojurídica dos
padrinhos e madrinhas.

O segundo ponto que gostaríamos de analisar é se houve variações nessa predileção de


acordo com a condição de legitimidade dos cativos batizados; quadro que é evidenciado pela
TABELA 2.3:
127

TABELA 2.3
CONDIÇÃO SOCIOJURÍDICA DOS PADRINHOS EM FUNÇÃO DA CONDIÇÃO DE LEGITIMIDADE
DOS ESCRAVOS BATIZADOS

CONDIÇÃO DE
LEGITIMIDADE PADRINHO MADRINHA
DO BATIZANDO LIVRE ESCRAVO LIVRE ESCRAVA N. SENHORA
LEGÍTIMOS
Percentual mínimo 52,9% 17,6% 23,5% 11,7% 17,8%
Percentual máximo 72,4% 47,1% 70,5% 58,7% --
ILEGÍTIMOS
Percentual mínimo 58,8% 20,6% 26,6% 25,1% 22,1%
Percentual máximo 79,4% 41,2% 53,2% 51,7% --
FONTE: LIVROS III, IV, VI, VII, VIII E IX DE REGISTROS DE BATISMO DA FREGUESIA DA SÉ DE BELÉM

Mais uma vez, deparamo-nos com uma clara preferência por padrinhos livres tanto nos
batismos dos escravos legítimos, quanto nos dos cativos ilegítimos. Os percentuais mínimos e
máximos são sugestivos de que essa preferência pode ter sido um pouco mais acentuada nos
batizados dos ilegítimos. No que respeita à predileção pela condição jurídica das madrinhas,
notamos algumas pequenas diferenças. Entre os legítimos, o percentual mínimo de escravas
no papel de madrinhas era timidamente menor, o que pode sugerir uma leve preferência pelas
madrinhas livres. Podemos observar também que, no caso dos legítimos, a indicação de Nossa
Senhora como madrinha era um pouco menos recorrente do que nos batismos de ilegítimos,
sugerindo um esforço maior de consolidação das relações sociais, através do compadrio, por
parte dos pais do batizando, que já tinham estabelecido a sua união por meio do matrimônio.

As variações nas preferências pela condição sociojurídica dos padrinhos e madrinhas


das crianças escravas, conforme a sua condição de legitimidade, foram também analisadas por
Sílvia Brügger em relação à São João del Rei dos séculos XVIII e XIX; localidade que, assim
como Belém, era em geral marcada por pequenas posses de cativos. A autora observou que a
condição de legitimidade dos escravos batizados também condicionava leves preferências na
incidência da procura por padrinhos e madrinhas livres. À semelhança do que a TABELA 2.3
sugere a Belém, em São João del Rei os percentuais de padrinhos e madrinhas livres também
eram timidamente maiores nos batizados de crianças cativas ilegítimas.285

Parece-nos haver uma relação entre essa tímida tendência à variação e a estrutura da
posse de escravos, que será mais bem trabalhada adiante. Se levarmos em consideração (1)
que a condição de legitimidade dos cativos estava associada ao casamento dos seus pais e (2)

285
BRÜGGER, Sílvia Maria Jardim. Minas patriarcal, op. cit., pp. 285-303.
128

que o matrimônio entre escravos era mais frequente e fazia-se em maior número nas maiores
posses, aquela tendência à variação, de acordo com a condição de legitimidade do batizando,
se faz menos turva.286 A maior quantidade de crianças ilegítimas estaria agrupada em regiões
com posses menores, onde, em tese, também haveria menor número de escravos disponíveis
para serem padrinhos. Causa certa estranheza, no entanto, a tímida preferência por madrinhas
livres nos batismos das crianças legítimas, o que pode estar relacionado a problemas de fonte.

Embora se reconheça a existência de práticas distintas, de plantel para plantel, no que


diz respeito ao compadrio de escravos,287 há, na historiografia dedicada à questão, uma grande
concordância quanto à relação entre a dimensão das escravarias e as maneiras pelas quais os
cativos se organizavam em torno do parentesco espiritual,288 onde aquela condicionava, em
grande medida, estas. Argumenta-se, em linhas gerais, que quanto maior a escravaria, maiores
seriam as possibilidades de os escravos estabelecerem laços de compadrio com indivíduos de
condição análoga a sua, não apenas pelo maior número de cativos disponíveis aos papéis de
padrinho e madrinha no próprio plantel, mas também como uma forma de fortalecer o grupo e
a comunidade escrava instituída em volta.289 Assim sendo, a dimensão do plantel configura-se
como um elemento de grande importância para a compreensão das estratégias associadas ao
compadrio entre os escravos.

Acreditamos que o quantitativo de batismos de escravos de um mesmo senhor – mais,


inclusive, do que o número de casamentos – pode ser tomado como um indicativo do tamanho
da escravaria desse determinado proprietário, numa relação diretamente proporcional. Quanto
maior a quantidade de batizados, maior seria, por consequência, o plantel. Essa relação possui
alguns limites que precisam ser apontados de antemão. O primeiro diz respeito à amostragem
realizada, que tende inevitavelmente a subestimar essa relação. O segundo limite é atinente à
provável existência de subregistros para alguns casos. O terceiro desses limites é, por sua vez,
associado aos ritmos diferentes de natalidade e de fecundidade que podem ter existido de caso
para caso. Mesmo assim, conhecidos os limites do método em questão, aplicá-lo-emos para
fins de análise.

286
Ver dentre muitos outros: SLENES, Robert. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da
família escrava – Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999; MOTTA, José Flávio.
Corpos escravos, vontades livres. Posse de cativos e família escrava em Bananal (1801-1829). São Paulo:
Annablume/Fapesp, 1999.
287
Cf.: BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Criando porcos e arando a terra: família e compadrio entre
os escravos de uma economia de abastecimento (São Luís do Paraitinga, Capitania de São Paulo, 1773-
1840). III Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, 2011. Florianópolis/SC. Anais...
Florianópolis/SC: Universidade Federal de Santa Catarina, 2011. 16p.
288
BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os compadres e as comadres de escravos, op. cit., p. 02.
289
Idem.
129

Em atenção a essas considerações, particularmente à perspectiva subestimada ensejada


pela amostragem realizada, priorizamos nesta seção os casos em que um mesmo senhor levou
ao batismo cinco ou mais crianças cativas, durante os anos arrolados.290 Do pequeno grupo de
escravistas que ultrapassaram esse recorte, conseguimos determinar algumas características
comuns. Quanto aos proprietários em si, eram em sua maioria homens com distinção social
demarcada por meio de postos na Guarda Nacional. Quanto aos cativos, os registros sugerem
que eles moravam nas redondezas da Capital ou mais ao interior da província; 291 muitas das
cerimônias de batismo dos escravos desse grupo tiveram vez em sítios, fazendas ou engenhos
espalhados nessas regiões. Destacam-se, mais uma vez, o engenho Bom Intento, de Joaquim
Antônio da Silva, localizado na região do Bujaru; o São Mateus, pertencente à Bento José da
Silva; e a fazenda Bonfim, de Hilário Ferreira Muniz, situada à margem do igarapé Janipaúba.
Nos anos pesquisados, pelo menos 50 senhores levaram cinco ou mais cativos à pia batismal.
Seus escravos perfaziam em torno de 27,5% (229) de todos os cativos batizados no período.

TABELA 2.4
CONDIÇÃO SOCIOJURÍDICA DOS PADRINHOS EM FUNÇÃO DA DIMENSÃO DOS PLANTÉIS DOS
ESCRAVOS BATIZADOS

DIMENSÃO DOS PLANTÉIS A QUE PADRINHO MADRINHA


PERTENCIAM OS BATIZANDOS LIVRE ESCRAVO LIVRE ESCRAVA N. SENHORA
DOS SENHORES QUE BATIZARAM
CINCO OU MAIS ESCRAVOS
Percentual mínimo 31,1% 41,1% 8,2% 39,5% 26,2%
Percentual máximo 58,9% 68,9% 34,3% 65,6% --
DOS SENHORES QUE BATIZARAM
MENOS DE CINCO ESCRAVOS
Percentual mínimo 74,7% 12% 32,3% 19% 19,6%
Percentual máximo 88% 25,3% 61,4% 38,6% --
FONTE: LIVROS III, IV, VI, VII, VIII E IX DE REGISTROS DE BATISMO DA FREGUESIA DA SÉ DE BELÉM

290
Embora o recorte possa ser considerado baixo, não podemos deixar de considerar a amostragem realizada,
nem mesmo as particularidades da escravidão na Amazônia. Se tomássemos um parâmetro maior, poderíamos
tornar muito restrita e, portanto, não representativa do que nos propusemos a discutir.
291
As regiões guajarina e tocantina, próximas a Belém e onde estavam localizados os sítios, fazendas e engenhos
que sediaram os batismos desses escravos, eram votadas à agricultura, notadamente às culturas da mandioca, do
arroz, do açúcar e do algodão; sendo marcadas por uma expressiva presença de escravos. WEINSTEIN, Barbara.
A borracha na Amazônia: expansão e decadência (1850-1920). São Paulo: Hucitec/Edusp, 1992 [1983], p. 57. A
respeito das características mais gerais da economia na região, ver dentre outros: ÂNGELO-MENEZES, Maria
de Nazaré. Une histoire sociale des systèmes agraires dans la vallé du Tocantins – État du Pará – Brésil:
colonisation européenne dans la deuxième moitié du XVIIIè. siècle et la première moitié du XIX è.siècle. (These
de Doctorat de Troisième Cycle en Histoire et Civilisations). Paris: EHESS, 1998.
130

A TABELA 2.4 sugere que havia uma diferença nas preferências pela condição jurídica
dos padrinhos e madrinhas, conforme o indicativo do tamanho dos plantéis. Entre os cativos
pertencentes ao primeiro grupo (de senhores que batizaram cinco ou mais escravos), notamos
um percentual menor de padrinhos livres, configurando uma leve tendência à predileção pelos
cativos nesse papel. Porém, a “margem de erro” não deixa clara uma preferência nítida nesse
sentido. No caso das preferências desse grupo pela condição sociojurídica das madrinhas, é
patente a preferência pelas escravas. Mesmo considerando a “margem de erro”, o percentual
de madrinhas de condição livre não chegaria a sobrepor o das suas correspondentes cativas.
Podemos observar, ademais, uma maior incidência de Nossa Senhora no papel de madrinha.

Esse quadro se inverte, entretanto, quando voltamo-nos para a análise do outro grupo
(de senhores que batizaram menos de cinco escravos). Nele, havia uma grande preferência por
padrinhos livres, sendo ao menos três de cada quatro padrinhos de tal condição sociojurídica.
Entre as madrinhas, verificamos, igualmente, uma leve preferência por pessoas livres; ainda
que, considerando a “margem de erro”, seria difícil que o percentual de madrinhas escravas
acabasse superando o de livres. Deparamo-nos, também, com uma menor recorrência a Nossa
Senhora no papel de madrinha, evidenciando, mais uma vez, um esforço de estabelecerem-se
vínculos sociais a partir do compadrio.

Se a relação entre o número de batizados dos escravos de um mesmo proprietário, os


locais de batismo e a posse de cativos estiver correta, podemos entender que o mesmo grupo
social (os escravos), no mesmo período (1840-1870) e no que diz respeito ao mesmo elemento
(os laços de compadrio), apresentava tendências de comportamento diferenciadas conforme a
região em que se situava. No núcleo urbano central de Belém, o qual teremos oportunidade de
analisar mais detidamente na próxima subseção, a predileção era pelos padrinhos de condição
livre. Nas regiões mais afastadas, de aspecto rural, e marcadas por uma maior concentração de
cativos e pela presença de (se a hipótese estiver certa) plantéis mais robustos, a preferência
seria por padrinhos escravos. Essa segunda tendência será mais bem analisada adiante.

O quarto e último ponto que gostaríamos de discutir nesta seção é a correspondência


entre as condições sociojurídicas dos padrinhos. Com relação essa questão em particular, não
podemos considerar percentuais mínimos e máximos, nem mesmo uma “margem de erro”.
Cabe-nos esclarecer, portanto, que os dados apresentados na TABELA 2.5 remetem-se somente
a 64% (533) dos registros de batismos de cativos arrolados, em que conseguimos distinguir a
condição sociojurídica dos padrinhos e das madrinhas. O fato de necessariamente termos que
131

deixar de lado mais de um terço dos casos pesquisados certamente implicou limitações aos
dados obtidos, que devem ser considerados de maneira relativizada.

TABELA 2.5
CORRESPONDÊNCIA ENTRE AS CONDIÇÕES SOCIOJURÍDICAS DOS PADRINHOS E MADRINHAS
DOS ESCRAVOS BATIZADOS

CONDIÇÃO SOCIOJURÍDICA CONDIÇÃO SOCIOJURÍDICA DAS MADRINHAS


DOS PADRINHOS LIVRE ESCRAVA N. SENHORA
LIVRE 38,2% 10,7% 23,6%
ESCRAVO -- 20,6% 6,9%
FONTE: LIVROS III, IV, VI, VII, VIII E IX DE REGISTROS DE BATISMO DA FREGUESIA DA SÉ DE BELÉM

A TABELA 2.5 não dá indícios de uma preferência absoluta no arranjo dos padrinhos e
das madrinhas por sua condição sociojurídica. Sugere, contudo, que a procura por padrinhos e
madrinhas de condição livre era um pouco mais comum do que os outros dois arranjos mais
recorrentes, quais sejam, os padrinhos livres com Nossa Senhora enquanto madrinha, ou tanto
o padrinho, como a madrinha de condição escrava. Menos comum era escolha dos padrinhos
livres e das madrinhas cativas, ou de padrinhos escravos com Nossa Senhora como madrinha.
Embora isso talvez esteja provavelmente associado aos limites impostos à análise da questão,
não conseguimos identificar casos em que os escravos eram padrinhos com madrinhas livres.
Em alguns aspectos, esses apontamentos coadunam-se com a realidade verificada em relação
à Curitiba, entre 1800 e 1869, por Stuart B. Schwartz. Embora, naquela realidade, a incidência
de padrinhos e madrinhas livres fosse bem maior (70,8%), os padrinhos livres com madrinhas
escravas e, principalmente, os padrinhos escravos com madrinhas livres eram incomuns.292

O panorama construído nas últimas páginas desvela algumas das questões mais gerais
que permearam o compadrio de escravos na Belém oitocentista. A busca por padrinhos livres
e o equilíbrio entre os percentuais de livres, escravas e Nossas Senhoras enquanto madrinhas
pode revelar uma maior preocupação dos escravos com o estabelecimento de relações sociais
com homens de condição livre, que em tese poderiam garantir-lhes suporte social para fora do
cativeiro. Adicionalmente a isso, a introdução do “sagrado” nas vivências escravas por meio
das madrinhas e não dos padrinhos, é sugestiva da maior importância concedida aos padrinhos
na formação dos laços de compadrio. Mais do que evidenciar uma possível desvalorização da
mulher, esse aspecto pode relevar que os padrinhos tinham um papel muito importante na

292
SCHWARTZ, Stuart B. Abrindo a roda da família: compadrio e escravidão em Curitiba e na Bahia. In:
Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru/SP: EDUSC, 2001 [1992], pp. 281-282.
132

sociedade, talvez tão importante que não podia ser ocupado por um santo, consubstanciando o
compadrio como um meio de acesso a bens materiais e simbólicos... E, no caso particular dos
escravos, também como uma estratégia que poderia levar-lhes quem sabe à liberdade.293

Entretanto, por trás de cada escolha havia toda uma gama de motivações, interesses e
necessidades sociais que estava em jogo. As tendências gerais apresentadas até o momento
permitiram-nos verificar que em geral os cativos analisados buscaram indivíduos livres como
padrinhos e compadres. No entanto, não nos informaram sobre quem eram esses indivíduos,
nem mesmo sobre as prováveis implicações desse tipo de vínculo aos escravos. É justamente
acerca das diversas nuances que permearam tanto a procura por padrinhos e madrinhas livres,
quanto à procura por padrinhos e madrinhas escravos, que discutimos nas próximas seções.

QUANDO OS PADRINHOS ERAM LIVRES: ALGUMAS NUANCES

O compadrio de escravos em Belém, entre 1840 e 1870, foi marcado pela preferência
pelos padrinhos de condição livre. Acreditamos que essa predileção seja, em grande medida,
uma consequência direta dos predicados da escravidão naquele contexto, caracterizada pelas
pequenas posses e por um ambiente marcadamente urbano, que criava condições para uma
constante e inevitável interação entre escravos e livres no cotidiano da cidade. Trata-se de um
perfil que pensamos ser respeitante, sobretudo, ao núcleo urbano central de Belém, e que se
diferenciava dos perímetros rurais da Capital, em especial daqueles onde havia uma grande
concentração de escravos. Nessas regiões, o número de cativos escolhidos como padrinhos era
provavelmente mais expressivo, como sugerem a TABELA 2.5 e a sua análise subsequente.294

A maior incidência de padrinhos e madrinhas livres em regiões urbanas, caracterizadas


por pequenas posses, já foi apontada em estudos anteriores. As explicações concedidas a esse

293
RAMOS, Donald. Teias sagradas e profanas: o lugar do batismo e compadrio na sociedade de Vila Rica
durante o século do ouro. In: Vária História, Belo Horizonte, 31, jan./2004, p. 66; VENÂNCIO, Renato Pinto.
A madrinha ausente: condição feminina no Rio de Janeiro, 1795-1811. In: COSTA, Iraci del Nero. Brasil:
história econômica e demográfica. São Paulo: IPE/USP, 1986, pp. 95-102.
294
No CAPÍTULO III, discutimos as relações de compadrio numa escravaria específica, composta por 157
escravos e situada na região de Bujaru, marcadamente rural. As análises foram desenvolvidas a partir do diálogo
entre os registros paroquiais de batismo dos cativos e o inventário post-mortem do senhor. O cruzamento, além
de suprir parte dos problemas associados aos assentos batismais pesquisados, possibilitou-nos avançar em
diversos pontos apresentados neste capítulo. Mesmo havendo interação entre os escravos da propriedade e a
população livre da região do Bujaru, o grande plantel e a expressiva concentração de cativos local condicionaram
uma preferência pela criação de vínculos de compadrio endógenos ao ambiente da escravaria ou com escravos de
propriedades vizinhas, configurando uma experiência diametralmente oposta daquela encontrada relativamente a
Belém.
133

fenômeno passam pela ideia de que os perímetros urbanos não apenas permitiam uma maior
interação entre livres e escravos, como também limitavam a busca por padrinhos cativos, haja
vista à pequena dimensão das posses. Um exemplo dessa perspectiva é o importante trabalho
de Maria de Fátima das Neves em relação ao compadrio de cativos na São Paulo oitocentista.
A autora observou que a grande maioria dos padrinhos e madrinhas de cativos na cidade era
de condição livre. Embora essa preferência representasse aos escravos a criação de vínculos
verticalizados com indivíduos maior status social, os padrinhos e madrinhas eram geralmente
indivíduos de poucas posses e sem muito prestígio social.295

O perfil pouco abonado, do ponto de vista social e material, dos padrinhos de escravos
na cidade de São Paulo, encontrado por aquela autora, leva-nos a problematizar a procura dos
escravos belenenses por padrinhos livres, constante durante o período analisado, e que deve
ser lida de maneira mais matizada. As prováveis implicações dessa tendência somente podem
ser apreendidas, mesmo em suas linhas gerais, quando tivermos noção de quem eram, afinal,
esses padrinhos e madrinhas. As limitações impostas pelos registros paroquiais de batismo
não nos permitem quantificar a real condição social da grande maioria desses indivíduos. No
entanto, a articulação entre as tendências gerais apresentadas na seção anterior, e alguns casos
que apresentamos nesta seção, pode nos ajudar a clarificar o entendimento da questão.

“Aos 19 de outubro de 1867, na Ermida de Nossa Senhora de Nazaré


do Desterro, batizei solenemente e pus os Santos Óleos à inocente
Palmira, filha de Cordolina, escravas do Excelentíssimo Senhor
Visconde do Arari. Foram padrinhos Ambrósio Henriques da Silva
Pombo e D. Floripes Chermont de Miranda Pombo”.296

O batismo de Palmira, escrava do nosso já conhecido Visconde de Arari, ajuda-nos a


pensar algumas questões sobre o compadrio de cativos na Belém oitocentista. Dois aspectos,
em especial, chamam-nos a atenção no registro do evento. Em primeiro lugar, o local onde o
batismo de Palmira foi realizado. A capela de Nossa Senhora de Nazaré, que no seguinte ano
tornar-se-ia uma paróquia, encontrava-se numa área de expansão da cidade para a qual, como
demonstramos no capítulo anterior, a alta sociedade paraense estava se mudando. O batismo
ocorrido na capela pode ser um indício de que Palmira acompanhou uma possível mudança do
seu senhor, podendo ser responsável por trabalhos domésticos. Em segundo lugar, destacamos

295
NEVES, Maria de Fátima Rodrigues das. Ampliando a família escrava: compadrio de escravos em São
Paulo no século XIX. In:NADALIN, Sérgio Odilon & MARCÍLIO, Maria Luiza (Orgs.). História e População:
estudos sobre a América Latina. Belo Horizonte: Seade/ABEP/Iuspp, 1990, pp.240-249.
296
ACMB. Livro IX de Registros de Batismo do Curato da Sé de Belém, p. 55(v).
134

os padrinhos de Palmira, sugestivos de uma clara ingerência senhorial. Foram escolhidos, para
tais papéis, a sobrinha e afilhada do Visconde, Floripes,297 e o marido dela, Ambrósio Pombo.

Pouco mais de duas semanas após o batismo de Palmira, o Visconde de Arari levou
outro escravo seu à pia batismal. Era Bonifácio, filho da cativa Rosa. O batizado de Bonifácio
não foi cercado da mesma “pompa” que o rito batismal de Palmira. Ao contrário daquele, que
ocorreu num domingo, Bonifácio foi batizado em plena terça-feira, na freguesia da Sé, e não
teve enquanto padrinhos o dileto casal Ambrósio e Floripes Pombo. Foram padrinho Eduardo
e madrinha, Alexandrina, que não tiveram a sua condição sociojurídica sequer especificada
nos registros.298 A total ausência de sobrenomes pode indicar que os padrinhos tinham baixa
condição social, podendo inclusive serem forros, ou mesmo, cativos do Visconde. Não nos
cabe conjecturar por que dois escravos de um mesmo senhor foram batizados de formas tão
diferentes, porquanto os registros paroquiais de batismo não são sugestivos nesse sentido.
Entretanto, em última instância, os batismos de Palmira e Bonifácio podem nos ajudar a
problematizar a preferência dos escravos do perímetro urbano de Belém por padrinhos livres.

O batismo de Palmira, em particular, traz à análise uma primeira dimensão: a parentela


senhorial. Em 25,6% (213 casos) de todos os batismos de crianças escravas arrolados, havia
um parente ou membro da rede familiar do senhor no papel de padrinho ou madrinha. Esse
percentual é, ainda, subestimado, uma vez que se remete apenas aos casos em que os registros
sugeriam claramente um vínculo entre os padrinhos e o proprietário. Comparativamente, a
incidência desses casos na cidade de Belém é bem mais recorrente do que na Bahia estudada
por Stephen Gudeman e Stuart Schwartz, onde a parentela senhorial apadrinhou só 1,51% dos
casos.299 As diferenças entre as realidades paraense e baiana são condizentes, a nosso ver, às
diferentes características da escravidão nessas regiões, em especial em relação a um aspecto.

Acreditamos que a recursiva presença da parentela senhorial apadrinhando os cativos


de Belém seja uma evidência do esforço de controle, por parte dos escravistas locais, sobre a
socialização dos escravos, numa atmosfera marcada pela profunda interação existente com a
população livre. Quando o filho, a nora ou outro parente próximo do senhor apadrinhavam um
cativo seu, reiteravam a assimetria social entre as partes. Haja vista a incoerência, apresentada

297
Floripes era filha de Antônio José de Miranda e Inês de Lacerda Chermont. Seu batismo, tal como o de sua
irmã Inês, foi referido no início deste capítulo. Veio a contrair núpcias com o aludido Ambrósio Pombo, de uma
tradicional família da elite paraense. Ver: CAPÍTULO II, p. 103.
298
ACMB. Livro IX de Registros de Batismo do Curato da Sé de Belém, p. 55(v).
299
GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart B. Purgando o pecado original, op. cit., pp. 44-45.
135

em estudos anteriores,300 entre os papéis de senhor e de padrinho, constituía-se indiretamente


uma relação de cunho paternalístico por intermédio dessa estratégia, reafirmando o controle
social e provavelmente coibindo as possibilidades de fugas escravas em um ambiente propício
a elas, como era a Belém da segunda metade do século XIX.301

Os 213 batismos em que a prática ocorreu correspondem a uma parte expressiva dos
casos em que conseguimos verificar com segurança a condição sociojurídica dos padrinhos,
como podemos verificar retomando a leitura dos dados da TABELA 2.1 (p. 124). Se, por um
lado, a presença parentela senhorial nos papéis de padrinho e/ou madrinha era relativamente
comum, só encontramos uma referência a cativos sendo batizados por seus próprios senhores.
O fato ocorreu no batismo da escrava Januária:

[Aos 20 dias do mês de julho de 1844, na freguesia da Sé, batizou-se –


DSB] à inocente Januária, filha da mulata Arcângela, escrava do órfão
Antônio Manoel de Góes; pai incógnito; foram padrinhos o dito
Antônio Manoel de Góes e d. Ana Jerônima de Lara, por procuração
que apresentou Leopoldo Francisco da Costa.”.302

O termo “órfão”, presente no registro de batismo de Januária, é indicativo de que o


evento teve vez num momento específico da trajetória de seu senhor, ao sugerir uma menor
idade do mesmo. Essa particularidade do caso em tela pode ter feito com que Antônio Manoel
de Goés apadrinhasse Januária e tornasse-se compadre de Arcângela, suas cativas. No batismo
de Luzia, outra escrava sua, ocorrido em 14 de janeiro de 1848, Antônio Manoel apresentava-
se já apenas como senhor, sendo indicado como padrinhos o casal Raimundo José Henriques
de Lima e Cândida Francisca de Lima.303

A presença da parentela senhorial nos papéis de padrinho e madrinha evidencia, como


está claro, uma preocupação dos escravistas paraenses em controlar as sociabilidades dos seus
escravos. É muito difícil imaginarmos um senhor alheio a um evento de tamanha importância
para socialização dos seus poucos escravos. Como entende Luís Farinatti, o controle senhorial
a respeito dos batismos dos cativos fazia-se presente ainda que nos casos aparentemente mais
independentes.304 Nesse sentido, mesmo nas situações em que não havia parentes ou amigos

300
Idem.
301
BEZERRA NETO, José Maia. Histórias urbanas de liberdade: escravos em fuga na cidade de Belém,
1860-1888. In: Afro-Ásia, Salvador, 28, 2002, pp. 221-250.
302
ACMB. Livro III de Registros de Batismo do Curato da Sé de Belém, p. 108.
303
ACMB. Livro IV de Registros de Batismo do Curato da Sé de Belém, p. 112(v).
304
FARINATTI, Luís Augusto. Os compadres de Estêvão e Benedita: hierarquia social, compadrio e
escravidão no sul do Brasil (1821-1845). XXVI Simpósio Nacional de História, 2011. São Paulo/SP. Anais...
São Paulo/ SP: Associação Nacional de História, 2011, p. 15.
136

dos senhores como padrinhos, é plausível pensarmos que a ingerência senhorial atuasse pelo
menos enquanto um limitante. Controle que talvez se fizesse de forma ainda mais intensa nos
batismos em regiões urbanas como Belém, marcadas por pequenas posses. Mas, para além da
parentela senhorial, quem eram os outros indivíduos de condição livre que atuavam como
padrinhos ou madrinhas de cativos em Belém?

Como destacamos anteriormente, a real condição social desses outros padrinhos acaba
sendo invisibilizada nos registros de batismo. Sabemos apenas tratar-se de pessoas livres, ora
pela referência direta à sua condição, ora pela presença de sobrenomes e outros elementos que
permitem-nos inferi-la. Alguns desses indivíduos, como Bernardino Henrique Diniz e Manoel
Rodrigues Bicho, eram padres ligados ao próprio Curato da Sé. Outros deles possivelmente
eram indivíduos que interagiam cotidianamente com os próprios cativos nos vários ambientes
da cidade, na compra e venda de mercadorias, por exemplo. Eram, provavelmente, sujeitos
sem muita projeção social, mas que representavam aos escravos tanto a criação de um vínculo
vertical, quanto um suporte social e uma possibilidade talvez um pouco maior de obter a sua
liberdade. Vejamos o caso que envolveu o batizado de Isidro:

“Aos sete dias do mês de agosto de mil oitocentos e quarenta e dois,


nesta freguesia da Sé, batizei solenemente e pus os Santos Óleos ao
inocente Isidro, filho da preta Maria Rita, escrava dos herdeiros de
Joaquim José Arrelias, cujo inocente foi declarado liberto na pia, por
um despacho do doutor Juiz de Órfãos, com o qual concordaram os
ditos herdeiros, mediante a quantia de trinta mil reis, paga pelo preto
liberto Isidro Pedro Antônio; serviram de testemunhas Tomás
Francisco e Geraldo Antônio que comigo assinaram; foram padrinhos
Isidro Pedro Antônio e Maria Teresa.”305

O batismo de Isidro é interessante em muitos aspectos. Em primeiro lugar, ele nos leva
a pensar que se por um lado a morte do senhor e a consequente transmissão de bens poderiam
representar um momento delicado para os cativos, no qual os pais poderiam ser separados de
seus filhos, e irmãos de irmãos; por outro, também poderia ser um momento particularmente
interessante para a compra da liberdade, como no caso em questão. As dívidas deixadas pelos
proprietários, adicionadas ao alto custo da abertura de um testamento e de um inventário,
poderiam fazer da venda de alguns escravos um meio rápido de angariar dinheiro, sem que as
demais propriedades, notadamente os bens de raiz, acabassem sendo, assim, prejudicadas; o
que parece-nos ter ocorrido no caso da compra da alforria de Isidro.

305
ACMB. Livro III de Registros de Batismo do Curato da Sé de Belém, p. 11(v).
137

Em segundo lugar, chama-nos a atenção a atuação de seu futuro padrinho, um forro,


na compra da liberdade do pequeno Isidro. Os forros constituem um grupo social bastante
invisibilizado nos registros paroquiais pesquisados. Sua escolha para os papéis de padrinho ou
madrinha poderia interessante para os escravos, no sentido de alcançarem sua liberdade. Um
vínculo formado possivelmente ainda no cativeiro fez com Isidro Antônio (um ex-escravo)
comprasse a alforria do pequeno Isidro (que pode ter sido nomeado assim em homenagem ao
padrinho), pelo valor de 30 mil réis. Possivelmente, em algum dia Isidro Antônio e Maria Rita
pertenceram ao mesmo plantel. Tendo ele conseguido a sua liberdade e acumulado algum
pecúlio, Isidro Antônio pode ter reafirmado seu vínculo com Maria Rita, não só apadrinhando
um filho dela, como concedendo-lhe a liberdade.306

O batismo de Isidro é uma evidência a mais do trânsito dos forros entre os mundos dos
escravos e dos livres. Ainda que, nesse caso, a questão central tenha sido a própria compra da
liberdade do batizando, não podemos deixar de considerar, outrossim, a criação de um vínculo
vertical entre Isidro Antônio, Isidro e sua mãe. A compra da alforria para o seu afilhado pode
ter concedido, também para Isidro Antônio, a consolidação da sua ascensão social como livre.
Se, para os forros, servir de padrinhos ou de madrinhas para os seus antigos companheiros de
cativeiro era interessante na medida em que acabava por reiterar sua nova condição social (de
livres) através do estabelecimento de um vínculo verticalizado, para os escravos tratava-se de
reforçar vínculos com indivíduos com quem, muito possivelmente, um dia tiveram relações
mais próximas, e que inclusive por terem experimentado a escravidão, poderiam ser, quem
sabe, mais atuantes em um eventual esforço de propiciar-lhes a liberdade.

Os casos apresentados estão longe de contemplarem a multiplicidade de elementos que


permeou as relações de compadrio entre escravos e livres na Belém oitocentista. Mas, talvez
por termos discutido situações extremas, vários dos matizes da criação de laços de parentesco
espiritual entre esses dois segmentos sociais tornaram-se mais evidentes. Se, por um lado, o
estabelecimento de relações de compadrio com livres pode ter representado o interesse dos

306
Sidney Chalhoub destacou que mesmo antes da Lei de 1871, mais conhecida como Lei do Ventre Livre, já era
costume a compra da alforria dos escravos por compra da liberdade, mesmo que sem a possibilidade de
intervenção judicial. Segundo o autor, tratava-se de uma prática consuetudinária com grande impacto ao longo
do século XIX. Quando efetivada a compra da alforria ante a pia batismal, o próprio registro de batismo passava
a valer como um atestado de liberdade para o indivíduo em questão. Cf.: CHALHOUB, Sidney. Visões da
Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 2009
[1990].
138

cativos em garantir proteção e o amparo social a si e aos seus filhos em um mundo hostil,307
por outro lado, acabaram igualmente representando a reiteração da assimetria social existente
entre eles e seus próprios senhores, através de um paternalismo indireto angulado por meio da
atuação da parentela senhorial.308

QUANDO OS PADRINHOS ERAM CATIVOS: OUTRAS NUANCES

Por mais que não tenham alcançado a maioria absoluta, os casos em que os escravos
buscaram seus próprios coniventes de cativeiro como padrinhos e madrinhas são igualmente
representativos e não podem ser considerados menos importantes. Eram mais corriqueiros,
como demonstramos anteriormente, entre os escravos pertencentes aos senhores que levaram
pelo menos cinco cativos ao batismo nos anos pesquisados. A maior parte dos escravos que
procuraram por padrinhos e madrinhas de sua mesma condição social não morava no núcleo
urbano central de Belém, mas nas cercanias da cidade e em regiões situadas mais ao interior
da província do Grão-Pará. Tratava-se, como destacamos, de regiões mais rurais, voltadas à
produção agrícola e que concentravam plantéis mais robustos.

Por trás dessa preferência havia um condicionante: a estrutura de posse. A preferência


daqueles cativos por vínculos horizontais estava certamente associada à maior disponibilidade
de escravos e à menor interação com livres existentes em seu meio social. Vários autores, a
exemplo Ana Lugão Rios, apontaram para a relação existente entre o percentual de escravos
enquanto padrinhos e os tamanhos planteis observados.309 No CAPÍTULO III, ao analisarmos
um robusto plantel com mais de 150 cativos, observaremos que praticamente todos os laços
foram constituídos com companheiros de cativeiro ou, quando não, com pessoas que faziam
parte uma comunidade escrava que englobava os cativos do Engenho Bom Intento, de outras
propriedades e até mesmo os forros da região.

Mas, não podemos deixar de considerar que esse tipo de vínculo também era formado
no núcleo urbano central de Belém, embora possivelmente com menor intensidade. Mesmo
307
SLENES, Robert. Senhores e subalternos no Oeste paulista. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de (Org.).
História da Vida Privada no Brasil, v. 2. Império: a Corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das
Letras, 2010 [1997], p. 271.
308
MACHADO, Cacilda. As muitas faces do compadrio de escravos: o caso da freguesia de São José dos
Pinhais (PR), na passagem século XVIII para o XIX. In: Revista Brasileira de História, São Paulo, 26(52),
Dez./2006, p. 68.
309
RIOS, Ana Maria L.. The politics of kinship. Compadrio among slaves in Nineteenth-Century Brazil. In:
The History of the Family: an International quarterly, 5(3), 2000, p. 291.
139

que aquele espaço tenha sido marcado pelas pequenas posses, havia ao menos 3.000 escravos
morando na freguesia da Sé entre os anos de 1848 e 1862.310 Cotidianamente, os cativos da
região central da cidade interagiam com escravos de outros senhores, com a população livre
natural do Pará e com migrantes de várias regiões do Brasil e do exterior. Relembremos o
caso do batismo coletivo realizado na Olaria Ituaú, de propriedade de dona Mariana Pombo
Campbell. Esse evento, que utilizamos para analisar a inserção dos migrantes nas relações de
compadrio em Belém, pode servir-nos, igualmente, enquanto um exemplo para pensarmos o
compadrio de cativos na região central da cidade.

Naquele dia votado à Santíssima Trindade, foram batizados ainda quatro escravos de
um mesmo proprietário: José Martins Pereira. Deles, o cativo Plácido foi único que teve como
padrinho e madrinha outros escravos de Martins Pereira. Jacinto foi apadrinhado por Benedito
Antônio, também de Pereira, e Anacleta Coleta, pertencente à Mariana Campbell. Martinha
teve enquanto padrinhos José de Oliveira e Valentina, escravos de Luís Calandrini Pacheco.
Teresa, a última cativa a ser batizada, foi apadrinhada pelo português Pedro Antônio Pontes e
sua mulher, D. Elísia Maria da Silva Pontes. Todos os quatros escravos batizados na ocasião,
de um mesmo senhor, tiveram arranjos diferentes de padrinhos e madrinhas, que variavam de
acordo com a condição sociojurídica, os plantéis e mesmo a origem desses.311 Não nos cabe
investigar essas variações em si, mas sim utilizá-las para problematizarmos o compadrio de
escravos em Belém.

O primeiro aspecto que gostaríamos de destacar é o evidente indício da influência de


José Martins Pereira no delineamento das relações de compadrio de seus escravos. Os cativos
e livres que serviram-lhes de padrinhos estavam, sem dúvida, associados à rede de parentes e
amigos de Martins Pereira. Devemos também considerar um segundo aspecto: é possível, ou
melhor, provável, que Martins Pereira possuísse uma escravaria de pequena para modesta. A
busca por padrinhos livres ou de outros plantéis para Jacinto, Martinha e Teresa é sugestiva
nesse sentido, assim como o próprio fato de Plácido ter sido por dois companheiros de plantel
de sua mãe. De que modo os batismos de quatro dos escravos de José Martins Pereira podem
nos ajudar a examinar novas nuances do compadrio de escravos na Belém oitocentista?

Primeiramente, ao evidenciar que, se por um lado, o perfil marcadamente urbano e de


pequenas posses existente no núcleo central da cidade poderia condicionar uma tendência dos
escravos belenenses em estabelecerem laços verticais de compadrio, por outro lado, esse meio

310
Ver: CAPÍTULO I, p. 43.
311
ACMB. Livro IX de Registros de Batismo do Curato da Sé de Belém, p. 69.
140

não inviabilizava a também criação de laços horizontais, de cativos entre si, mesmo que de
diferentes senhores. Como um desdobramento dessa primeira questão, temos uma evidência
de que aquele meio acabava influenciando também os laços horizontais, já que os escravos
tenderiam a buscar padrinhos e madrinhas em outros plantéis, como no caso dos escravos de
José Martins Pereira. Foram os batismos dos cativos de Joaquim Pereira Martins exceções ou
parte de práticas mais comuns? Vejamos o caso abaixo:

“[Na igreja de Santana da Campina - DSB], aos vinte dias do mês de


julho de 1845, [...] supri solenemente as cerimônias do batismo e pus
os santos óleos ao inocente Afonso, batizado por mim primeiramente
em casa, por se achar em perigo de vida nesse tempo, pertencente a
esta freguesia e hoje a da Santa Sé, filho da cafuza Lucinda e de pai
incógnito, escravos de Archibald Campbell, sendo padrinho das
solenidades o preto Elias José Raimundo, escravo do senhor
brigadeiro Marcos Antônio Brício, e a mulata Tomásia, escrava do
senhor supramencionado”.312

Mesmo considerando um caso-limite (o batismo teve vez primeiramente em casa, visto


que o batizando encontrava-se em perigo de morte), Afonso foi apadrinhado por escravos de
senhores diferentes. Como padrinho teve Elias José, cativo de Marcos Antônio Brício, e como
madrinha, Tomásia, do proprietário de sua mãe, Archibald Campbell. A urgência com que o
primeiro batismo foi sagrado pode ser considerada um indicativo de duas possibilidades não
excludentes. Se, por um lado, é possível pensarmos que Elias pode ter sido padrinho apenas
por conta da urgência de fazer-se o batismo; por outro, temos uma evidência de seu trânsito
entre os escravos de Archibald Campbell, afinal, Elias estava presente quando do primeiro
batizado, mesmo que possa ter sido chamado às pressas para participar do rito.

O cotidiano de uma cidade em movimento colocava os escravos em interação com


diversos outros sujeitos e grupos sociais. Além do perfil urbano da região central de Belém,
que dava ensejo a essa constante interação, devemos considerar igualmente que a população
escrava da província do Pará em geral, e da Capital em particular, era em sua essência crioula.
Adicionalmente, considerando, ainda, que o Grão-Pará era uma região pouco ligada ao tráfico
interprovincial de escravos, é plausível pensarmos que os escravos da cidade, nos meados do
século XIX, proviessem de famílias estabelecidas há tempos na região. Isso significa dizer
que possivelmente eles pertenciam a famílias que já haviam consolidado toda uma trama de
inter-relações dentro e fora do seu grupo social, que pode ter facilitado não somente esse
trânsito, como também a busca por compadres em outros plantéis.

312
ACMB. Livro III de Registros de Batismo do Curato da Sé de Belém, pp. 14-14(v).
141

A cotidianidade dessas relações não elidia, porém, o controle exercido pelos senhores
sobre as sociabilidades dos cativos. Ao contrário, pode inclusive tê-lo robustecido. Mais uma
vez, a presença senhorial fazia sentir-se ao menos como um limitante. Não podemos asseverar
se a escolha de Elias passou necessariamente pela anuência de Campbell ou de alguma pessoa
de sua confiança. Entretanto, é importante considerarmos o fato de que o seu senhor, Marcos
Antônio Brício, e Archibald Campbell possuíam relações ao menos bem próximas. Como já
demonstrou Luciana Marinho, eles e um outro irmão de Marcos Antônio, Jaime Davi Brício,
constituíram uma rede familiar com os Pombo, e mantinham com eles relações comerciais de
diversas ordens, inclusive sendo sócios na propriedade de alguns poucos escravos. 313 Muito
provavelmente, aos olhos de Archibald Campbell e de Marcos Antônio Brício, não haveria
maiores problemas em Elias tornar-se compadre de Lucinda.

Esse caso permite-nos verificar que para além da própria escravaria ou da parentela
mais próxima ao proprietário, os limites à seleção dos compadres poderia se expandir também
aos plantéis da rede familiar a qual o senhor pertencia ou, quem sabe, ainda a redes familiares
aliadas. Além disso, pode ser um indício da atuação de um escravo (Elias) como intermediário
entre dois plantéis, talvez entre dois senhores. A partir dos registros paroquiais e considerando
a população escrava como um todo, é difícil quantificarmos os casos em que as relações de
compadrio se constituíram entre escravos de diferentes senhores pertencentes a uma mesma
rede familiar, dado o emaranhado de nomes que a empreitada teria que dar conta. De qualquer
forma, pode ter se tratado de uma prática que na região central de Belém foi muito mais usual
do que poderíamos imaginar à primeira vista.

Os batismos de Afonso e dos quatro cativos de José Pereira Martins revelam outra face
do compadrio de escravos na região central de Belém. Ao evidenciar novas nuances, eles nos
ajudam perceber que, por trás da tendência à busca por padrinhos livres, sejam eles parentes
do senhor ou não, havia também a possibilidade de estabelecerem-se vínculos horizontais,
ainda que entre cativos de diferentes proprietários. Essa nova perspectiva também sinaliza, em
consequência, outra dimensão do controle senhorial sobre as sociabilidades dos escravos. O
controle sobre esse grupo não se fazia apenas por meio de um paternalismo indireto ou na
imposição de quais indivíduos livres poderiam ou não tornar-se compadres de cativos, mas
igualmente nas relações entre os próprios escravos. Ou seja, que mesmo nas relações mais

313
BATISTA, Luciana Marinho. Muito além dos seringais: elites, fortunas e hierarquias no Grão-Pará, c.
1850-c. 1870. (Dissertação de Mestrado em História Social). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de
Janeiro, 2004.
142

corriqueiras e aparentemente mais aleatórias (a exemplo do batismo de Afonso), havia uma


ingerência senhorial.

RESUMINDO...

Nas últimas páginas, voltamo-nos à reflexão sobre o compadrio de escravos na Belém


oitocentista. A princípio, tecemos considerações mais gerais sobre a temática, apontando sua
relevância ao estudo da família escrava e indicando os poucos trabalhos produzidos a respeito
na historiografia paraense. Sugerimos que a ausência de estudos mais aprofundados sobre o
compadrio reflete, na verdade, uma própria carência de pesquisas mais consistentes dedicadas
à família e à demografia da escravidão na Amazônia. Ainda antes de passarmos à análise da
questão propriamente dita, relembramos que o universo investigado abrangia, principalmente,
um grupo composto por escravos bem equilibrados quanto ao sexo, de origem crioula e com
um alto índice de ilegitimidade (na casa dos 90%). Dividimos a discussão em três seções. Na
primeira delas, procuramos delinear as tendências gerais do compadrio de escravos em Belém
e, nas seções seguintes, evidenciar algumas de suas nuances no que diz respeito à escolha de
padrinhos livres ou cativos, respectivamente.

Observamos que, em linhas gerais, as tendências de compadrio de escravos priorizava


a busca por padrinhos e compadres de condição livre – preferência que alcançou a maioria
absoluta dos casos. A seleção das madrinhas e comadres era bastante equilibrada entre livres e
cativas, sendo representativas as situações em que esse papel foi exercido por Nossa Senhora.
Logo de início, essa diferença evidenciou uma preocupação maior dos cativos em estabelecer
vínculos com homens livres, que poderiam dar-lhes amparo social e interceder em prol de sua
liberdade. Além disso, pudemos observar que era pelo papel de madrinha que o “sagrado”
entrava nas famílias. Essa tendência não variava conforme o sexo dos batizandos, todavia, nos
batismos de crianças legítimas encontramos um percentual um pouco maior de madrinhas
livres. As variações nessa tendência ocorriam, sobretudo, sob uma condicionante: a dimensão
das escravarias. Verificamos que entre os cativos dos senhores que batizaram cinco ou mais
escravos, a busca por padrinhos e madrinhas igualmente escravos foi bem mais expressiva.

Nas seções seguintes, examinamos as nuances da escolha de padrinhos e de compadres


livres ou escravos. Demonstramos que se por um lado, o estabelecimento de vínculos verticais
com pessoas livres poderia criar sólidos vínculos para além do cativeiro, dando suporte social
143

e possibilitando a conquista da alforria de alguns cativos, esse tipo de vínculo também poderia
revigorar o componente de dominação e de submissão entre cativos e senhores, nos casos em
que esses papéis eram exercidos pela própria parentela senhorial. Essa questão evidencia,
consequentemente, uma ingerência senhorial sobre as sociabilidades dos escravos que se fazia
presente não só na criação de vínculos verticais, como também nos laços constituídos entre
cativos, particularmente caso ambos fossem de diferentes plantéis.

Vimos, outrossim, que se o ambiente marcadamente urbano e de pequenas posses do


núcleo central de Belém propiciava uma constante interação entre livres e cativos e, também,
uma menor disponibilidade de escravos para serem padrinhos e compadres, esse quadro não
necessariamente inviabilizava a criação de vínculos horizontais de compadrio para esse grupo.
Ao contrário, somente implicava algumas características peculiares a essas relações, como a
procura por padrinhos e compadres em outros plantéis. Outras nuances dessas relações serão
analisadas no CAPÍTULO III, quando dedicamo-nos ao estudo de uma escravaria específica.

2.3. A DINÂMICA DO RITO BATISMAL

Esta subseção tem como finalidade apresentar a dinâmica do rito batismal em Belém,
entre 1840 e 1870. A discussão focaliza três aspectos: 1) os significados do batismo como um
ato concomitantemente religioso, cultural e social, e uma breve comparação entre os vínculos
sociais formados neles e nos casamentos; 2) o movimento sazonal dos batizados, ou seja, a
sua distribuição ao longo de dias da semana e dos meses; 3) o local das cerimônias batismais,
verificando, a exemplo dos casamentos, as relações entre a escolha dos locais e os segmentos
sociais envolvidos na cerimônia. As reflexões que se seguem vêm a complementar a análise
do compadrio de livres e escravos desenvolvida nas últimas páginas, trazendo à luz uma série
de aspectos que podem ter contribuído para o delineamento das relações consubstanciadas na
pia batismal.
144

BATISMO E COMPADRIO

“O batismo é o primeiro de todos os sacramentos e a porta por onde se


entra na Igreja Católica, e se faz, o que o recebe, capaz dos demais
sacramentos, sem o qual nenhum dos mais fará nele o seu efeito. [...].
Causa o sacramento do batismo efeitos maravilhosos, porque por ele
se perdoam todos os pecados, assim original, como atuais, ainda que
muitos sejam muitos e mui graves”.314

O batismo é o primeiro e o mais importante dos sacramentos; representa a entrada de


um indivíduo no mundo cristão e o momento solene de atribuição de um nome ao mesmo.315
Na sociedade brasileira oitocentista, assim como na colonial, o batismo era certamente um ato
para onde convergiam vetores de diversas ordens: social, simbólica, cultural e religiosa. Era
um momento em que o sagrado e o profano se entrecruzavam, numa cerimônia com uma
grande importância social.316 O vínculo de parentesco ritual engendrado a partir do batismo
tem sido tomado como uma característica fundamental da família ampliada no mundo ibérico,
em face da sua dimensão social para além da estrutura e da esfera estritamente eclesiástica.317
Tratava-se, em última instância, de um importante momento para a ritualização das relações
sociais estabelecidas anteriormente. Conquanto se pudesse estabelecer laços de compadrio de
diversas maneiras (por meio do casamento ou da crisma, por exemplo), era o ato do batismo o
momento mais importante de materialização do compadrio.318

Entretanto, havia diferenças dentre esses vários “tipos” de compadrio. Para o nosso
propósito, é importante delimitarmos, sobretudo, as distinções existentes entre os vínculos
estabelecidos no batismo (objeto deste capítulo) e no casamento (objeto no capítulo anterior).
Observemos, primeiramente, uma questão semântica. Os dicionaristas Rafael Bluteau (1728),
Antônio de Moraes e Silva (1789) e Luís Maria da Silva Pinto (1832) associavam a palavra
“compadre” a dois significados. O primeiro deles era o “padrinho do filho”. O segundo era
apresentado em forma de uma analogia: “estar compadre de alguém” para os dicionaristas, era
“estar em boa amizade”, expressão que à época possuía grande semelhança com o significado
atual do termo. Nesse sentido, a semântica do termo “compadre” abriria a possibilidade para

314
VIDE, Sebastião Monteiro da. Título X, n. 33. In: Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São
Paulo: EDUSP, 2010 [1707], pp. 138-139.
315
Sobre a importância e as motivações teológicas do batismo, ver: PROSPERI, Adriano. Batismo. In: Dar a
Alma: história de um infanticídio. São Paulo: Companhia das Letras, 2010 [2005], pp. 174-202.
316
Para uma discussão mais aprofundada a respeita do imbricamento entre as esferas sagrada e profana nos ritos
de batismo, ver: RAMOS, Donald. Teias sagradas e profanas, op. cit.
317
SCHWARTZ, Stuart B. Abrindo a roda da família: compadrio e escravidão em Curitiba e na Bahia. In:
Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru/SP: EDUSC, 2001 [1992], pp. 266 e ss.
318
SCHWARTZ, Stuart B., ibidem, p. 266.
145

entendermos que as relações de compadrio poderiam ser materializadas tanto nos batismos
(significado “a”), quanto cotidianamente (significado “b”); o que por certo compreenderia os
vínculos entre os nubentes e as testemunhas de casamento.319

Muito embora, na perspectiva da semântica, indicasse-se a possibilidade de firmarem-


se laços de compadrio através das cerimônias de casamento, tal como ocorria nos batismos,
tratava-se de diferentes “lugares” de efetivação que acabavam por impor, segundo a legislação
canônica vigente nos meados do Oitocentos (as Constituições Primeiras do Arcebispado da
Bahia), algumas especificidades aos vínculos oficializados em cada uma dessas cerimônias. A
primeira delas concerne à escolha dos padrinhos. Fora os requisitos impostos e as obrigações
imputadas pelas Constituições para a seleção dos padrinhos de batismo e das testemunhas dos
casamentos, havia uma predeterminação de gênero no caso daqueles. Enquanto nos enlaces
poderia haver duas testemunhas do mesmo sexo ou então de sexos diferentes, nos batismos,
pelo menos em tese, era necessário haver um padrinho (do sexo masculino) e uma madrinha
(do sexo feminino).

A segunda especificidade está relacionada à necessidade de fazer-se presente, ou não,


nos eventos. O apadrinhamento poderia ser concretizado, como apontamos neste capítulo, por
meio de uma procuração. Conquanto isso indique o interesse do padrinho ou da madrinha em
materializar aquele laço (a procuração precisaria ser registrada e, o padrinho ou a madrinha,
representados geralmente por um advogado), a presença física não era condição sine qua non
para a firmação do vínculo de compadrio nos batismos; o que abria a possibilidade para haver
santos ou santas nesses papéis. Em contrapartida, as testemunhas de casamento (e o próprio
termo “testemunhas” indicava isso) precisariam, necessariamente, fazer-se presentes no rito
nupcial,320 já que sua obrigação seria justamente testificá-lo quando necessário. Quais eram as
implicações que esses dois elementos poderiam trazer à escolha dos padrinhos de batismo e
das testemunhas de casamento?

A nosso ver, uma das implicações desses elementos é o maior destaque dado à escolha
das mulheres como testemunhas de casamento. Muito embora, como já apontamos no capítulo
anterior, a presença das mulheres enquanto testemunhas fosse rarefeita (não encontramos, por
exemplo, caso algum em que tenha havido duas mulheres como testemunhas de um mesmo

319
BBUSP. PINTO, Luiz Maria da Silva. Diccionario da lingua brasileira. Ouro Preto: Typographia de Silva,
1832; BBUSP. SILVA, Antônio de Morais. Diccionario da lingua portugueza composto pelo padre D. Rafael
Bluteau, reformado, e accrescentado por Antonio de Moraes Silva natural do Rio de Janeiro. Lisboa: Officina
de Simão Thaddeo Ferreira, 1789.
320
VIDE, Sebastião Monteiro da. Título LXXIII, n. 318. In: Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia.
São Paulo: EDUSP, 2010 [1707], pp. 264-265.
146

enlace), sua seleção denotava a importância daquela mulher para os nubentes e suas famílias.
Escolher uma mulher como testemunha significava, consequentemente, deixar de escolher um
homem para o mesmo papel; o que em um meio essencialmente patriarcal, como a sociedade
brasileira oitocentista, ganhava contornos e relevância ainda maiores. Com isso não estamos
relegando as madrinhas de batismo a um segundo plano, mas somente realçando a acuidade
que permeava a escolha das mulheres como testemunhas de casamento.

Outra implicação é a necessidade de estar-se presente no rito nupcial para poder ser
testemunha. Como destacamos ainda pouco, o apadrinhamento por meio de procuração (mais
comum em relações “verticais”) indicava o interesse em tornar-se padrinho e compadre. Mas,
esse mecanismo abria um precedente, já que era possível que os futuros compadres sequer se
conhecessem, sendo o compadrio articulado através de “intermediários sociais”. Trata-se de
um precedente que não poderia haver no caso das testemunhas, dadas às exigências para que o
papel fosse desempenhado. Posto isso, cabe-nos questionar: mesmo considerando o batismo
como o momento mais importante para a consubstanciação do vínculo de compadrio, não
poderia ser a presença obrigatória das testemunhas no casamento, uma evidência da existência
de um vínculo prévio mais consolidado entre as partes, principalmente no caso das relações de
caráter verticalizado?

É importante lembrarmos que, como destacamos no capítulo anterior, os casamentos


possuíam um recorte socioeconômico bem delimitado. Não eram todos os sujeitos que tinham
acesso a ele. Todo o processo que culminava na chegada ao altar era oneroso, especialmente
para quem era de outras regiões e não dispunha dos seus registros de batismo. Isso significa
dizer que, a despeito dos escravos, é muito provável que a grande maioria dos nubentes não
fosse formada por livres pobres; um quadro possivelmente diferente daquele encontrado nos
batismos –um evento mais democrático que abarcava com raras exceções, todos os segmentos
da população livre. Nesse sentido, considerando apenas os livres, é possível pensarmos que,
em grande parte dos casos, a diferença socioeconômica entre os nubentes e as testemunhas
pudesse ser menor do que aquela existente entre os pais e os padrinhos, reforçando a hipótese
aventada no parágrafo anterior.
147

MOVIMENTO SAZONAL DOS BATISMOS

Nosso objetivo, nesta seção, é investigar as preferências de livres e escravos por dias e
meses de batismo, verificando permanências e rupturas nessa predileção ao longo das décadas
de 1840, 1850 e 1860. Diferentemente do movimento sazonal dos casamentos, que sofria com
as interdições associadas à Quaresma e ao Advento, os batizados se alastravam de maneira
mais harmoniosa no decorrer dos anos, se comparados àqueles. Por mais que houvesse, como
evidenciaremos nas próximas páginas, preferências por alguns períodos do ano à realização
dos ritos, não havia uma nítida tendência de concentração dos batismos em meses específicos,
em total detrimento dos outros, salvo no caso de uma exceção destacada. No que diz respeito
a sua distribuição pelos dias da semana, percebemos, ao contrário, uma tendência à realização
dos batismos em partes específicas da semana, especialmente aos sábados ou aos domingos.

Antes de passarmos à análise da questão é importante destacarmos que, ao contrário


do que já se verificou em relação a outras regiões do Brasil para os mais variados contextos,
em Belém havia um intervalo por vezes significativo entre as datas de nascimento e as datas
de batismo. Não é possível medirmos com maior segurança esse intervalo, haja vista as datas
de nascimento constarem nos registros batismais de forma esparsa e fragmentada. No entanto,
pudemos verificar que às vezes esse interstício chegava, mesmo na região central da cidade, a
dois ou três anos, o que ia de encontro às normatizações eclesiásticas que definiam um tempo
oito dias entre um evento e o outro.321 Ao mesmo tempo em que esse aspecto inviabiliza uma
reflexão acerca do movimento sazonal das concepções na Belém oitocentista,322 ele pode ser
sugestivo de que os batismos não ocorriam aleatoriamente, sendo minimamente planejados.

Alguns estudos relativos a outras regiões do Brasil, nos mais diferentes contextos, vêm
demonstrando grande variação nesse intervalo de tempo entre os nascimentos e os batismos.
Maria Luiza Marcílio observou que em Ubatuba (litoral de São Paulo), entre o final do século
XVIII e as primeiras décadas do XX, havia um intervalo médio de 20 dias. 323 Por sua vez,
Marina Carneiro, Paula Chagas e Sérgio Nadalin verificaram em relação à vila de Curitiba dos
séculos XVIII e XIX, que a grande maioria dos batizados era realizada até no máximo um ano

321
VIDE, Sebastião Monteiro da. Título XI, n. 36. In: Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São
Paulo: EDUSP, 2010 [1707], pp. 152-153.
322
Sobre a relação entre os batismos e a sazonalidade das concepções, ver: BACELLAR, Carlos de Almeida
Prado. As estações da vida. In: Viver e sobreviver em uma vila colonial: Sorocaba, séculos XVIII e XIX. São
Paulo: Annablume/FAPESP, 2001, pp. 71-97.
323
MARCÍLIO, Maria Luiza. Caiçara: terra e população. Estudo de demografia histórica e da história social
de Ubatuba. São Paulo: EDUSP, 2006 [1986], p. 229.
148

após a concepção, em interstícios variáveis.324 Em ambos os casos, os intervalos existentes


entre os eventos eram superiores ao prazo de oito dias disposto pelas Constituições Primeiras
do Arcebispado da Bahia, e inferiores ao que encontramos em relação à cidade de Belém nos
meados do século XIX. O gráfico abaixo (GRÁFICO 2.1), seguindo a metodologia apresentada
no capítulo anterior, indica a sazonalidade dos batismos ao longo do período pesquisado:

GRÁFICO 2.1
MOVIMENTO SAZONAL DOS BATISMOS DE LIVRES E ESCRAVOS POR MESES (1842-1870)

Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez
160
140
120
100
80
60
40
20
0
Batismos de livres Batismos de escravos

FONTE: LIVROS III, IV, VI, VII, VIII E IX DE REGISTROS DE BATISMO DA FREGUESIA DA SÉ DE BELÉM

O GRÁFICO 2.1 evidencia que, em linhas gerais, não existiam diferenças significativas
entre os meses de batizado de livres e de escravos. Via de regra, as cerimônias ocorriam bem
no início, nos meados ou então bem no fim de cada ano. À exceção de dezembro, associado às
interdições do Advento, o movimento geral dos batismos em Belém, entre 1840 e 1870, era
semelhante ao movimento sazonal geral dos matrimônios. Durante todo o período pesquisado,
março foi o mês em que menos houve cerimônias. Ao que parece, tratava-se um mês em que
as igrejas belenenses eram pouco movimentadas, por ser também um período de interdito aos
casamentos. Contudo, esse panorama geral apresentou algumas pequenas variações ao longo
do tempo, tanto em relação aos batismos de livres, quanto em relação aos batismos de cativos,
que gostaríamos de analisar mais detidamente.

324
CARNEIRO, Marina Braga; CHAGAS, Paula Roberta & NADALIN, Sérgio Odilon. Nascer e garantir-se
no Reino de Deus; Curitiba, séculos XVIII e XIX. In: Revista Brasileira de Estudos de População, Rio de
Janeiro, 27(2), jul.-dez./2010, p. 371.
149

TABELA 2.6
VARIAÇÕES NO MOVIMENTO SAZONAL DOS BATISMOS DE LIVRES POR MESES (1842-1870),
EM NÚMEROS RELATIVOS

ANO JAN. FEV. MAR. ABR. MAI. JUN. JUL. AGO. SET. OUT. NOV. DEZ. TOTAL
1842 127 79 69 69 111 132 85 143 69 74 111 132 1200
1845 105 105 70 105 90 124 129 100 100 110 65 100 1200
1848 141 64 64 128 78 114 73 78 119 128 73 141 1200
1855 99 61 33 99 121 171 83 127 105 83 121 99 1200
1860 187 128 77 94 51 60 111 85 102 77 111 119 1200
1865 82 96 78 96 100 146 87 105 105 123 100 82 1200
1870 74 82 62 99 99 105 170 119 71 68 85 167 1200
FONTE: LIVROS III, IV, VI, VII, VIII E IX DE REGISTROS DE BATISMO DA FREGUESIA DA SÉ DE BELÉM

A distribuição dos batismos de livres ao longo dos meses era pouco equilibrada, sendo
concentrada no início, no meio e no fim de cada ano. Entre os livres, junho e dezembro foram,
em média, os meses mais procurados à realização dos batismos, seguidos de agosto, janeiro e
julho. Março foi, em seis dos sete anos arrolados na pesquisa, o mês menos procurado para os
batizados. Em 1870, por exemplo, o número de cerimônias ocorridas em março representou
pouco mais de um terço do número de cerimônias ocorridas em julho, o mês mais procurado
naquele ano. Em relação às décadas de 1840, 1850 e 1860, também não observamos variações
muito significativas na preferência por um ou outro mês para o acontecimento das cerimônias.
As variações de ano para ano parecem-nos ser aleatórias, indicando muito mais um limite da
amostragem realizada do que um rearranjo mais intenso nos meses preferenciais de batismo.

TABELA 2.7
VARIAÇÕES NO MOVIMENTO SAZONAL DOS BATISMOS DE ESCRAVOS POR MESES (1842-
1870), EM NÚMEROS RELATIVOS

ANO JAN. FEV. MAR. ABR. MAI. JUN. JUL. AGO. SET. OUT. NOV. DEZ. TOTAL
1842 78 49 78 68 166 68 156 244 39 88 88 78 1200
1845 121 104 112 78 69 181 129 104 78 95 78 52 1200
1848 171 120 86 94 77 129 94 129 120 94 26 60 1200
1855 50 60 0 99 129 139 50 149 79 149 159 139 1200
1860 252 104 74 44 133 104 89 104 89 74 59 74 1200
1865 103 72 0 95 151 95 135 111 64 143 111 119 1200
1870 105 84 0 147 42 189 147 84 63 42 147 147 1200
FONTE: LIVROS III, IV, VI, VII, VIII E IX DE REGISTROS DE BATISMO DA FREGUESIA DA SÉ DE BELÉM

Em linhas gerais, verificamos a mesma tendência em relação ao batismo de escravos,


como indica a TABELA 2.7. Podemos notar, contudo, que março simplesmente deixou de ser
um mês para batizar-se os escravos. Não conhecemos, na historiografia, exemplo semelhante.
150

A nosso ver, a questão não pode ser atribuída apenas a uma questão de fonte, já que se tratou
de uma tendência que vinha se configurando desde a década de 1850. É plausível pensarmos
que tenha havido algum tipo de interdição, por parte da Igreja, sobre a realização dos batismos
de cativos em março. É possível que uma conclusão mais concreta a respeito possa advir do
cruzamento entre os registros de batismo da paróquia da Sé e os de outras paróquias de Belém
do mesmo período, mas que não cabe nas pretensões deste estudo.

Novamente, pensamos ser interessante comparar os movimentos sazonais dos eventos


vitais em Belém aos seus correspondentes na região do Xingu, analisados por Arlene Kelly.
Se a sazonalidade dos batizados em Belém aproximava-se, tal como a dos matrimônios, das
suas congêneres em Porto de Moz, no vale do Xingu; por outro lado, ela diferenciava-se das
realidades da freguesia de Souzel e do município de Gurupá, na mesma região. Em Souzel,
embora junho fosse igualmente um mês importante, havia muitos batismos em fevereiro e
poucos em dezembro. Em Gurupá, cerca de 80% desses eventos tinham vez em janeiro, junho
e julho, configurando uma nítida preferência por sua realização nos inícios e meados de cada
ano.325 Mesmo assim, devemos considerar que a autora trabalhou a sazonalidade como um
todo, sem considerar as especificidades nos movimentos sazonais dos batismos de livres e de
escravos, o que acaba não nos permitindo proceder a uma comparação mais efetiva entre as
realidades de Belém e do Xingu.

GRÁFICO 2.2
MOVIMENTO SAZONAL DOS BATISMOS DE LIVRES E ESCRAVOS POR DIAS DA SEMANA (1842-1870)

Domingo 2ª-feira 3ª-feira 4ª-feira 5ª-feira 6ª-feira Sábado


250

200

150

100

50

0
Batismos de livres Batismos de escravos

FONTE: LIVROS III, IV, VI, VII, VIII E IX DE REGISTROS DE BATISMO DA FREGUESIA DA SÉ DE BELÉM

325
KELLY-NORMAND, Arlene. Family, Church and Crown: a social and demographic history of the lower
Xingu valley and the municipality of Gurupá, 1623-1889. (PhD. Thesis in History). Florida: University of
Florida, 1984, pp. 358-421.
151

Assim como no decorrer dos meses, os batismos também não se alastravam de forma
harmoniosa em relação aos dias da semana, como deixa claro o GRÁFICO 2.2. Tanto entre os
livres, quanto principalmente entre os cativos, os batizados tinham vez preferencialmente aos
finais de semana, sendo domingo o dia predileto para a realização dos ritos. Era, portanto, no
Dia do Senhor que ocorria o maior número desses eventos. A preferência pelo domingo como
o principal dia de batismos marca, como entende Maria Luiza Marcílio, um comportamento
social típico das comunidades do Brasil arcaico, onde a influência da “cristandade europeia”
teve pouca atuação.326 É importante destacarmos que, diferentemente do movimento sazonal
dos casamentos, o sábado não chegou a obter uma maioria absoluta em qualquer um dos anos
pesquisados, embora tenham ganhado representatividade com o tempo. Observemos, agora, as
variações nessas preferências segundo a condição sociojurídicas dos batizandos:

TABELA 2.8
VARIAÇÕES NO MOVIMENTO SAZONAL DOS BATISMOS DE LIVRES POR DIAS DA SEMANA
(1842-1870), EM NÚMEROS RELATIVOS

ANO DOMINGO 2ª-FEIRA 3ª-FEIRA 4ª-FEIRA 5ª-FEIRA 6ª-FEIRA SÁBADO TOTAL


1842 142 111 111 80 74 52 130 700
1845 142 148 76 67 84 46 137 700
1848 192 88 80 51 90 83 117 700
1855 114 55 68 81 85 127 169 700
1860 194 94 70 70 79 60 134 700
1865 174 96 67 77 77 75 134 700
1870 128 82 66 53 99 62 210 700
FONTE: LIVROS III, IV, VI, VII, VIII E IX DE REGISTROS DE BATISMO DA FREGUESIA DA SÉ DE BELÉM

Os dados indicados na TABELA 2.8 evidenciam a distribuição dos batismos de livres


ao longo dos dias da semana, e a sua variação no transcorrer dos anos pesquisados. Podemos
observar que, no início da década de 1840, os eventos eram mais bem distribuídos ao longo da
semana, apresentando uma leve concentração nos sábados, domingos e segundas-feiras, e uma
retração nas sextas-feiras. Com o passar do tempo a maior parte dos batismos de livres passou
a ocorrer nos sábados, sendo os domingos e a quintas-feiras dias também bem representativos.
Ao contrário do que houve em relação aos casamentos, não percebemos, com o adentrar na
década de 1860, uma concentração mais contundente dos batismos nos sábados, que naquele
caso alcançaram maioria absoluta.

326
MARCÍLIO, Maria Luiza. Caiçara: Terra e População, op. cit., p. 219.
152

TABELA 2.9
VARIAÇÕES NO MOVIMENTO SAZONAL DOS BATISMOS DE ESCRAVOS POR DIAS DA SEMANA
(1842-1870), EM NÚMEROS RELATIVOS

ANO DOMINGO 2ª-FEIRA 3ª-FEIRA 4ª-FEIRA 5ª-FEIRA 6ª-FEIRA SÁBADO TOTAL


1842 273 108 46 74 74 51 74 700
1845 302 81 91 50 60 35 81 700
1848 342 74 47 53 42 37 105 700
1855 127 107 91 46 127 81 122 700
1860 121 138 17 112 112 86 112 700
1865 64 73 94 86 60 69 253 700
1870 200 38 13 75 88 50 238 700
FONTE: LIVROS III, IV, VI, VII, VIII E IX DE REGISTROS DE BATISMO DA FREGUESIA DA SÉ DE BELÉM

Os indicadores apresentados na TABELA 2.9 evidenciam a distribuição dos batismos de


escravos ao longo dos dias da semana, e a sua variação no transcorrer dos anos pesquisados.
Diferentemente dos batismos entre livres, os cativos eram, no início dos anos 1840, batizados
principalmente aos domingos. O rearranjo ocorrido em sua distribuição semanal foi bastante
semelhante ao ocorrido relativamente aos livres, com o sábado ganhando importância como o
dia predileto para batizar-se. No entanto, o domingo manteve sua importância como um dos
dias preferenciais, secundando por pouco os sábados. Se a concentração da maioria absoluta
dos batizados aos finais de semana acompanhou uma tendência mais geral, a manutenção dos
domingos entre os cativos pode ser sugestiva de uma clara interferência senhorial nos dias de
batizado desse grupo.

As condicionantes da mudança nos dias preferenciais de batismo foram, a nosso ver,


as mesmas apontadas no capítulo anterior, no que diz respeito ao casamento. Essas mudanças
deram-se, por um lado, sob a influência do reordenamento econômico na cidade, demarcado
por uma maior liquidez de capital, e pela ascensão das profissões liberais e do setor terciário,
o que acabava dificultando a ocorrência dos batismos no meio da semana; e, por outro lado,
sob a influência de um remodelamento dos aspectos de ordem simbólica dos ritos quanto ao
seu caráter público, o que por sua vez era intrínseco aos locais de realização dos batismos,
nosso objeto na próxima subseção.

OS LOCAIS DE BATISMOS

“Aos vinte e três dias do mês de maio de 1843, em altar portátil


ereto nas casas de morada de Paula Maria Perdigão, [...], batizou
153

solenemente ao inocente Hermenegildo, nascido em treze de abril do


corrente ano, filho legítimo de João Marcelino Perdigão e d. Inês da
Purificação Cardoso Perdigão; foram padrinhos Jaime Davi Brício e d.
Maria do Carmo Pombo Brício [...].”327

A realização de uma cerimônia de batismo e, por conseguinte, todos os seus aspectos


simbólicos, apresentavam características diferenciadas de acordo com o grupo social, étnico e
cultural dos sujeitos envolvidos. Uma cerimônia de um grupo menos abastado distinguia-se
bastante de uma cerimônia entre a elite. Tal como no caso dos casamentos, a dessemelhança
não estava centrada apenas em condições materiais desniveladas, mas, sobretudo, nas distintas
acepções relacionadas ao batismo como um ato (de representação) social.

O batismo de Hermenegildo, transcrito acima, evidencia em parte essa perspectiva. A


escolha da casa como o local da cerimônia, e não a Igreja, não foi uma opção feita somente
por João Marcelino e d. Inês Perdigão. Ao contrário, foi uma prática relativamente comum em
meio à elite paraense, a exemplo do que ocorria nos matrimônios. Ao longo do século XIX, os
ritos batismais passaram a ter graus cada vez maiores de sofisticação e valorização pública,
materializando signos de prestígio e de status social, especialmente entre as camadas mais
abastadas da população. Para a elite, as cerimônias de batismo e de casamento constituíam,
concomitantemente, marcas de distinção entre seus pares e também um parâmetro em relação
aos demais grupos sociais.328

Quando não tinham vez na Catedral, os batismos eram sacralizados em outras igrejas e
capelas; na casa dos nubentes, dos seus parentes ou de pessoas próximas; em fazendas ora nas
adjacências de Belém ora mais ao interior da província do Pará e em locais menos recorrentes.
Batizar-se na Igreja Matriz não era o mesmo que batizar-se em casa, não somente por uma
diferença de ambiente, mas, principalmente, pelas implicações que essa mudança de ambiente
trazia à dinâmica em torno da cerimônia de batismo. A preferência pela sagração em certos
locais realçava a perspectiva do batismo também como um ato cultural fortemente vinculado
ao seu entorno social e econômico.

A predileção pela realização das cerimônias em casa era motivada pelos dois motivos
que também levavam o casamento a esse local. O primeiro deles era caso a criança estivesse
em perigo de morte. Nesse tipo de situação, a necessidade era de efetivar-se o batizado o mais
rápido possível, em certos casos sem nem mesmo um padre e onde quer que fosse. Em face da

327
ACMB. Livro III de Registros de Batismo do Curato da Sé de Belém, p. 61(v). Grifo nosso.
328
MUAZE, Mariana. A caminho do altar. In: As Memórias da Viscondessa: família e poder no Brasil Império.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008, pp. 39-56.
154

alta mortalidade existente no passado brasileiro e da grande importância religiosa do batismo,


os ritos batismais poderiam ser realizados, em caso de urgência, em quaisquer lugares, sendo
procedidos inclusive por excomungados, “hereges” ou “infiéis”. 329 O segundo motivo era a já
destacada tendência da elite local em preservar uma privacidade comedida nos eventos dessa
natureza.

A grande maioria dos batismos ocorria na Catedral, tendo somente 11,7% (305) deles
ocorrido em outros lugares. Comparativamente, esse percentual é inferior ao de casamentos
tido vez fora da igreja, que perfez 25% de todos os enlaces. Ademais, também diferentemente
dos casamentos, encontramos batismos de membros da elite local sendo realizados em sítios e
fazendas no interior da província, como ocorreu com o inocente Domingos, filho do escravista
Hilário Ferreira Muniz:

“[...] no dia oito de dezembro de 1846, no oratório do senhor Hilário


Ferreira Muniz, no sítio Bonfim, [situado no - DSB] rio Janipaúba,
com licença do excelentíssimo senhor Bispo Diocesano, batizei
solenemente e pus os Santos Óleos ao inocente Domingos, filho
legítimo do mesmo senhor Hilário e de sua mulher dona Maria da
Soledade Rodrigues; foram padrinhos Joaquim Pedro Rodrigues das
Neves e Nossa Senhora da Conceição, cuja prenda foi apresentada por
dona Catarina Inácia Rodrigues de Andrade; nascido em doze de
setembro de 1846”.330

Essa diferença pode ser uma evidência da importância maior atribuída ao casamento
enquanto um ato social, por parte da elite. Como apontamos no capítulo anterior, em nenhum
registro constava a realização dos ritos nupciais de membros desse grupo no interior do Pará.
Considerando os limites impostos à amostragem (os assentos pesquisados são provenientes do
Curato da Sé), cremos que a realização dos casamentos na capital era motivada pelo interesse
da elite local em apresentar aos seus pares a nova condição de casados dos nubentes. No caso
dos batismos, embora possamos considerar a possibilidade de querer-se mostrar os frutos de
um (bem-sucedido) casamento, não havia o mesmo apelo público desse. Assim, é possível
pensarmos que faria menos diferença se a cerimônia batismal fosse realizada no interior ou na
capital da província, Belém.

Um indício dessa perspectiva pode ser o casamento de outro filho de Hilário Ferreira
Muniz. No sábado de 25 de setembro de 1868, na Catedral da Sé de Belém, Joaquim Ferreira

329
VIDE, Sebastião Monteiro da. Título XIII, n. 43. In: Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São
Paulo: EDUSP, 2010 [1707], p. 143.
330
ACMB. Livro IV de Registros de Batismo do Curato da Sé de Belém, p. 62-62(v).
155

Muniz contraiu núpcias com Maria Rodrigues das Neves, filha legítima de Joaquim Pedro e
dona Catarina Rodrigues das Neves.331 O enlace não apenas foi realizado em Belém, como
teve vez num sábado, dia que em tese permitia a presença dos convidados, da parentela e dos
aliados da família Muniz. Não apenas uma possível maior importância do casamento como
um ato social pode ter decorrido nessa diferença entre os locais de cerimônia. Outra questão
que pode justifica-la diz respeito à própria importância do batismo enquanto o primeiro dos
sacramentos, como aquele que marca a entrada na vida cristã e que deveria ser realizado tão
logo possível, mesmo que na prática isso não ocorresse com frequência em Belém.

RESUMINDO...

Nesta seção, buscamos tecer algumas considerações a respeito do rito batismal, com
foco nos significados do batismo, em seu movimento sazonal e nos locais das cerimônia. Em
linhas gerais, observamos que o batismo representava a entrada no mundo cristão, tratando-se
de um momento de grande importância para a ritualização de relações sociais entre as partes
envolvidas. O vínculo social formado pelo batismo distinguia-se daquele formado por meio
do testemunho em casamentos. Se por um lado, nos batismos havia uma predeterminação pelo
gênero dos padrinhos e a criação de um vínculo de parentesco entre eles, os pais e a criança;
por outro lado, no caso dos matrimônios era necessário que suas testemunhas fizessem-se
presentes, o que coibia a possibilidade de as partes não se conhecerem, que havia no batismo.

As cerimônias ocorriam, via de regra, na Igreja; sendo que nem mesmo entre a elite,
que relativamente aos casamentos procuravam por uma paradoxal noção de privacidade, os
batismos costumavam ocorrer fora de um ambiente sacro. Essas cerimônias também eram
distribuídas desarmoniosamente ao longo dos meses, sugerindo leve preferência pelo início,
pelos meados e pelo fim de cada ano. Já no respeita à sua distribuição pelos dias da semana,
podemos observar uma nítida concentração nos sábados e nos domingos, que permanecia em
praticamente todos os anos pesquisados.

331
ACMB. Livro I de Registros de Casamento do Curato da Sé de Belém, p. 224.
156

2.4. CONSIDERAÇÕES QUASE QUE FINAIS

Tendo enquanto base uma série de registros paroquiais de batismo composta por 2.608
assentos, analisamos neste capítulo de que maneira livres e escravos se articularam em torno
do compadrio, bem como da dinâmica dos ritos batismais. Pelas limitações documentais já
apresentadas não pudemos delinear as tendências gerais de compadrio da população livre,
nem mesmo investigar, de maneira mais aprofundada, a importância dos marcadores sociais
de gênero, geração e naturalidade em seu delineamento. Quanto aos escravos, embora parte
dos registros não fosse conclusiva da condição sociojurídica dos padrinhos – um elemento
central à análise –, conseguimos tracejar, ainda que dentro de certos limites, suas preferências
de acordo com a condição sociojurídica dos padrinhos.

Na primeira seção do capítulo, dedicamo-nos à análise do compadrio entre livres. Por


serem os registros de batismo pouco conclusivos quanto à efetiva condição social dos sujeitos
que não eram da elite, nem eram cativos, concentramos nossas discussões nas relações em que
havia interação com uma elite tradicional, sejam elas verticais (entre a elite) ou horizontais
(entre a elite e outros segmentos sociais). Observamos que para a elite, o compadrio acabava
por ser norteado por uma lógica de ação que arquitetava as relações de modo a reproduzir a
sua condição social. Essa lógica se desaguava em duas estratégias complementares: (1) o uso
do compadrio para consolidarem-se as redes familiares e (2) o uso do compadrio para formar-
se uma clientela para aquelas famílias de elite. Tratava-se, no caso da segunda estratégia, de
relações compensatórias para todas as partes. Se, por meio delas, a elite tradicional reiterava a
sua condição de grupo dominante, os demais grupos passavam a ter acesso à alta sociedade da
província do Grão-Pará.

Na segunda seção do capítulo, votamo-nos à reflexão sobre o compadrio de escravos.


Inicialmente, procuramos delinear as tendências gerais da questão. Verificamos, então, que a
busca por padrinhos e compadres de condição livre tonificou as relações estabelecidas, sendo
equilibradas as escolhas de madrinhas livres, cativas ou Nossa Senhora. A partir desse quadro
mais geral, tratamos de observar se havia variações naquelas preferências conforme o sexo e a
condição de legitimidade, e um indicativo de tamanho de posse. Enquanto os dois primeiros
não implicaram oscilações em sua preferência, o indicativo de posse representou um elemento
determinante nesse sentido. As preferências pela condição sociojurídica dos compadres na
região central de Belém, essencialmente urbano e caracterizado por pequenas posses, era bem
157

diferente daquele encontrado em regiões mais afastadas, marcadamente rurais e onde havia
uma maior concentração de cativos.

O compadrio foi, decerto, um importante elemento na constituição das relações sociais


e familiares em Belém naqueles meados de século. Prescindindo do caráter pretensamente
igualitário arrogado ao casamento, o compadrio dava maior flexibilidade às tessituras sociais.
Se, por um lado, as elites tradicionais eram um grupo extremamente fechado no que respeita
ao casamento, por outro lado, o compadrio serviu-lhes como um importante mecanismo de
interação com os outros segmentos sociais, particularmente com sujeitos em ascensão social
ou enriquecimento. Não obstante, permitiu ao outro extremo da hierarquia social – os cativos
– a criação de importantes e permanentes vínculos para além do cativeiro, que poderiam lhes
aproximar mais de uma experiência de liberdade. Outrossim, poderia significar um importante
mecanismo de inserção social para os migrantes, ou mesmo, o fortalecimento de comunidades
específicas. Foram as linhas gerais dessa diversidade de possibilidades que buscamos analisar
nas últimas páginas.
158

CAPÍTULO III

AS PRÁTICAS DE CASAMENTO E AS RELAÇÕES DE COMPADRIO DA


FAMÍLIA GAMA E SILVA E DOS ESCRAVOS DO ENGENHO BOM
INTENTO

Este capítulo tem como finalidade nuançar as reflexões a respeito do casamento e do


compadrio na Belém oitocentista, levadas a efeito nos dois capítulos anteriores. Seguindo os
procedimentos metodológicos propostos por Giovanni Levi,332 aplicamos a pergunta geral do
estudo a uma família de elite e uma escravaria específica. Interessa-nos verificar, portanto, de
que maneira uma família de elite (os Gama e Silva) e um plantel escravo (o do Engenho Bom
Intento) experimentaram o casamento e o compadrio num contexto marcado pelo início de um
evolver social, econômico e demográfico da província do Grão-Pará. Muito embora os casos
analisados não possam ser generalizados e tomados enquanto padrões de comportamento, a
análise pormenorizada de duas situações particulares permite-nos observar o quadro traçado
anteriormente de forma matizada, tornando mais elásticas e também dinâmicas as explicações
gerais apresentadas.333

A escolha da família Gama e Silva e da escravaria do Engenho do Bom Intento está


associada à maior disponibilidade de fontes, a elas atinentes, dentre as séries de batismo e de
casamento pesquisadas. O maior volume de dados encontrados em relação àquela família e
àquela escravaria nos registros paroquiais, ainda encorpado pelo diálogo com testamentos e
inventários post-mortem de membros dos Gama e Silva e do proprietário do engenho, ajudou
a “eleger” a família e o plantel a serem analisados. Além disso, como almejamos demonstrar
nas próximas páginas, são casos representativos para pensarmos as alianças matrimoniais e os
laços de compadrio entre uma família de elite e entre os escravos, pois ao mesmo tempo em
que se enquadram em algumas das tendências verificadas para os seus respectivos segmentos,
possuem singularidades próprias que ensejam um novo olhar àquelas mesmas tendências.
332
LEVI, Giovanni. Sobre Micro-História. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da História: novas perspectivas.
São Paulo: Editora UNESP, 1992, pp. 133-161.
333
Para uma noção mais aprofundada dos preceitos teóricos e dos procedimentos metodológicos da Micro-
História Italiana, ver dentre outros: LEVI, Giovanni. Sobre Micro-História, op. cit.; LIMA, Henrique Espada. A
Micro-História Italiana: escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006;
REVEL, Jacques (Org.). Jogos de Escalas: a experiência da micro-análise. Rio de Janeiro: Editora Fundação
Getúlio Vargas, 1998. VAINFAS, Ronaldo. Os protagonistas anônimos da História: a Micro-História. Rio de
Janeiro: Campus, 2002.
159

A proposta deste capítulo está diretamente articulada à Micro-História e seu empenho


de, a partir de um constante jogo de escalas, criar condições de análise que trazem ao lume os
indivíduos e as comunidades, ao longo do tempo, em todo o seu conjunto de inter-relações e
em contextos sociais diversos.334 Porém, como nos ensina Fredrik Barth, não basta apenas
reduzir a escala de observação. Para a apreensão da vida social em toda a sua multiplicidade,
é necessário relacionar também um “fragmento de cultura” e seus atores à particularidade de
suas experiências sociais e culturais, e ao todo onde se inserem; 335 ou seja, tanto em termos de
análise social, quanto em termos de análise cultural, o micro e o particular devem estar em
uma constante interface com o macro e o geral. Interface essa que é uma das bases do método
prosopográfico utilizado neste capítulo.336

A tentativa de realizarmos uma “biografia coletiva” dos Gama e Silva e dos cativos do
Engenho Bom Intento, no que tange ao casamento e ao compadrio, possui alguns limites que
precisam ser apontados de antemão. O primeiro deles é o fato de essa reflexão necessitar estar
contextualizada em meio ao todo da dissertação, o que implica a sua adequação a um recorte
cronológico não necessariamente pertinente a suas particularidades e às perguntas gerais feitas
neste estudo. Portanto, além de termos que relutar certos aprofundamentos e desdobramentos
que microanálise instiga a fazer – de modo a não perdermos o foco da discussão desenvolvida
na dissertação –, adotamos uma baliza temporal que provavelmente enviesa, de maneira não
ideal, o ciclo de desenvolvimento dos Gama e Silva e dos cativos do Engenho Bom Intento,
particularmente no que diz respeito à questão geracional.

O segundo limite remete-se à abrangência social direta dos sujeitos analisados e, por
conseguinte, ao porquê de nos propormos a analisar uma família de elite e um plantel escravo.
Essa opção se deu pelo fato de a elite e os escravos serem, a partir dos registros paroquiais, os
grupos sociais mais bem definidos. Os não escravos, nem elite, constituem um aglomerado
pouco discernível no que concerne à sua condição social. O problema não seria nem elencar
um caso de uma família livre “pobre” ou de condição intermediária, porém, principalmente,
verificar a representatividade desse caso em relação à sua respectiva camada social, tendo em
vista o fato dos registros paroquiais não permitirem a criação de um parâmetro nesse sentido.

334
GINZBURG, Carlo & PONI, Carlo. O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico. In:
GINZBURG et alli. (Orgs.). A Micro-História e outros ensaios. Lisboa: DIFEL, 1989, pp. 173-174.
335
BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contracapa, 2000,
pp. 128-130.
336
Sobre o método prosopográfico, cf.: STONE, Lawrence. Prosopografia. In: Revista de Sociologia e Política,
Curitiba, 19(3), jun./2011, pp. 115-137; BULST, Neithard. Sobre o objeto e o método da prosopografia. In:
Politéia: História e Sociedade, Vitória da Conquista, 5(1), 2005, pp. 47-67; HEINZ, Flávio (Org.). Por outra
história das elites. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 2006.
160

Este capítulo, diferentemente dos demais, encontra-se dividido em duas partes, cada
uma delas voltada à análise de um caso específico. Por sua vez, essas partes estão fracionadas
em subseções que separam o casamento do compadrio. No caso da análise do plantel, há ainda
uma terceira subseção dedicada notadamente a uma delineação do perfil sociodemográfico da
escravaria, sem dúvida importante para a contextualização das relações estabelecidas em seu
meio social. Procedidas algumas considerações iniciais, convidamos o leitor para de agora em
diante adentrar conosco no mundo das práticas de conjugalidade e dos laços de compadrio da
família Gama e Silva e do plantel escravo do Engenho Bom Intento. Um mundo singular, mas
nem por isso desarticulado de seu universo social mais amplo.

5.1. CASAMENTO E COMPADRIO ENTRE OS GAMA E SILVA

Esta seção tem enquanto objetivo analisar as práticas de casamento e de compadrio no


seio de uma família de elite do Grão-Pará oitocentista. Refletimos sobre a importância desses
aspectos na constituição de uma rede familiar em torno dos Gama e Silva, particularmente na
geração dos filhos de José Joaquim da Silva e Maurícia Josefa da Gama Lobo. Objetivamos
demonstrar que especificamente na construção dessa rede, as alianças matrimoniais foram, ao
mesmo tempo, um ponto de chegada e de partida. Um ponto de chegada, na medida em que
representaram a formalização de alianças sociais anteriormente estabelecidas. E, um ponto de
partida, no sentido de que não somente possibilitaram, como provavelmente fomentaram, o
estreitamento dos laços entre as famílias e a criação de uma clientela, através do testemunho
em casamentos e das relações de compadrio.

Foi justamente esse estreitamento, consubstanciado logo após os matrimônios, que deu
ensejo à manutenção de uma rede entre as famílias em questão, posteriormente a mudança,
em definitivo, de alguns dos seus membros para o Rio de Janeiro. Paralelamente à construção
do argumento exposto, procedemos a algumas comparações entre esse caso e as tendências de
casamento e compadrio da elite local, apresentadas nos dois capítulos precedentes. Ao mesmo
tempo em que esse procedimento imprime novas nuances para aquelas tendências, permite-
nos verificar o que no caso concreto dos Gama e Silva constituiu particularidades ou fez parte
da lógica de ação da elite paraense em torno do casamento e do compadrio.
161

A fundamentação teórica das discussões que se seguem está diretamente relacionada à


operacionalização do conceito de rede social, que suporta (por estar na base) à própria noção
de rede familiar. É a partir da operacionalização desse conceito que se tornam visíveis o grau
de coesão e as mudanças ocorridas em meio a redes familiares. Nesse sentido, acreditamos
que a conformação prática de uma rede de famílias, através do casamento, deve considerar
não uma estrutura social estanque, mas os processos e o conjunto de interações existentes
entre os seus membros em contextos sociais específicos; que, em muitos casos, extrapolam a
dimensão das alianças matrimoniais em si. Michel Bertrand atribui ao conceito de rede social
três aspectos interdependentes:

“O primeiro refere-se ao seu aspecto morfológico: a rede é uma


estrutura constituída por um conjunto de pontos e linhas que
materializam laços e relações mantidas entre um conjunto de
indivíduos. O segundo refere-se ao seu conteúdo relacional: a rede é
um sistema de trocas que permite a circulação de bens e serviços.
Finalmente, a rede consiste em um sistema submetido à dinâmica
relacional regida por um princípio de transversalidade, e suscetível de
mobilizar-se em torno de uma finalidade precisa”.337

Ademais, as redes familiares devem ser compreendidas, igualmente, à luz dos seus
respectivos habitus; ou seja, dos processos pelos quais os indivíduos interiorizam as estruturas
sociais, transformando-as em esquemas de classificação que orientam seus comportamentos,
condutas, escolhas e gostos.338 No caso das famílias de elite, devemos sempre ter em mente
uma perspectiva que contemple não somente os aspectos políticos339 ou econômicos,340 mas
também (e, talvez, principalmente) os instrumentos que atuavam no sentido de dar substância
às marcas de distinção simbólica que tonificavam sua condição social.341 Assim, a noção de
elite diria respeito, grosso modo, à percepção que os diferentes sujeitos possuem acerca das
condições sociais dadas aos indivíduos no desempenho de seus papéis sociais e políticos.342

As análises que se seguem são lastreadas nas séries de registros paroquiais de batismo
e casamento, bem como em testamentos e inventários post-mortem de determinados membros
337
BERTRAND, Michel. Elites y configuraciones sociales en Hispanoamérica colonial. In: Revista de
Historia, Nicarágua, 13, 1999, p. 07. Tradução nossa.
338
BOURDIEU, Pierre & CHARTIER, Roger. Habitus e campo. In: O sociólogo e o historiador. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2011 [2010], p. 57.
339
Como, por exemplo, em: CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010 [1980].
340
Como, por exemplo, em: DAUMARD, Adeline. Burgueses e a burguesia na França. São Paulo: Martins
Fontes, 1992 [1987].
341
Cf.: BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2009 [1974].
342
HEINZ, Flávio. O historiador e as elites – à guisa de introdução. In: Por outra história das elites. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 07.
162

da família. Todas essas fontes, inquiridas adicional e complementarmente, permitiram-nos


investigar parte do conjunto de inter-relações estabelecido pelos indivíduos partícipes da rede
familiar dos Gama e Silva, que culminou no delineamento dessa rede e de sua clientela. É
exatamente a respeito do processo de formação desses dois aspectos, em torno de uma mesma
geração da família em questão, que buscamos discorrer nas próximas páginas.

O CASAMENTO

Os consórcios dos cinco filhos de José Joaquim da Silva e Maurícia Gama Lobo não
são exatamente um tema novo na historiografia paraense. Nos idos da década de 1980, um dos
primeiros esforços de pesquisa em História da Família na região teceu algumas considerações
a respeito desses enlaces.343 Mais recentemente, no primeiro lustro da década passada, outro
estudo voltou a se debruçar sobre a trajetória daquela família, também nos meados do século
XIX.344 Todavia, ambos os trabalhos consideraram a formação de uma rede familiar em torno
dos Gama e Silva como, fundamentalmente, um fruto das alianças matrimoniais estabelecidas
pela família. A nosso ver, a compreensão do processo de formação de uma rede de famílias e
de uma clientela deve englobar, para além do matrimônio, os vínculos de parentesco espiritual
traçados pela família, que ajudavam a sedimentar as próprias alianças firmadas pelos enlaces.

Além disso, cada matrimônio deve ser considerado à luz do seu contexto específico,
atentando-se para suas singularidades e para o seu lugar em meio à “história de casamentos da
família”, para empregarmos uma expressão cara a Pierre Bourdieu. 345 A caracterização de
cada consórcio deve ser, então, a primeira etapa para a análise, criando bases explicativas que,
mais adiante, permitirão compreender a constituição da rede familiar e a consolidação da
clientela dos Gama e Silva, através da criação de vínculos de parentesco ritualístico.

***

Em agosto de 1841, contraíram o casamento o então vice-presidente da província do


Grão-Pará, Bernardo de Sousa Franco, filho legítimo de Manoel João Franco e de Catarina de

343
ACEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth. Alianças matrimoniais na alta sociedade paraense no século XIX.
In: Revista Estudos Econômicos, São Paulo, 15, pp. 153-167.
344
BATISTA, Luciana Marinho. Muito além dos seringais: elites, fortunas e hierarquias no Grão-Pará, c.
1850-c. 1870. (Dissertação de Mestrado em História Social). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de
Janeiro, 2004.
345
Cf.: BOURDIEU, Pierre. Les stratégies matrimoniales dans le système de reproduction. In: Annales:
Économies, Sociétés, Civilisations, Paris, 4-5, 1972, pp. 1105-1127.
163

Sousa Franco, com Teresa de Jesus da Gama e Silva, filha legítima de José Joaquim da Silva
e de Maurícia Josefa da Gama Lobo. O matrimônio, seguindo uma prática corriqueira da elite
de Belém à época (ver CAPÍTULO I, subseção: A DINÂMICA DO RITO NUPCIAL), foi realizado na
casa do pai da nubente e teve como testemunhas Jaime Davi Brício e José de Paes de Sousa.
Bernardo e Teresa de Jesus casaram-se, respectivamente, aos 36 e 31 anos de idade, ambos
em primeiras núpcias.346 Na altura do enlace, o noivo já despontava enquanto um promissor
político pelo menos no âmbito provincial.

Os pais dos nubentes, Manoel e José, haviam atuado em campos políticos opostos no
contexto da Adesão do Pará à Independência, no início dos anos de 1820. Enquanto Manoel
apoiava o movimento independentista, José participou da Segunda Junta de Governo do Pará,
ereta em 1822 com o objetivo de tentar frear a separação do Grão-Pará de Portugal. O próprio
Bernardo, envolvido nas lutas em prol da Adesão, chegou a ser preso e deportado para Lisboa.
Aparentemente, os embates entre as famílias Gama e Silva e Sousa Franco foram apaziguados
ao ponto de ser estabelecida, cerca de 20 anos depois, uma aliança matrimonial entre ambas,
através do casamento entre Bernardo e Teresa.347 Como se sugeriu anteriormente, é provável
que o matrimônio tenha sido articulado em meio às atividades comerciais desenvolvidas pelas
famílias dos noivos, sendo enredado por claros interesses de ordem econômica.

Após bacharelar-se pela prestigiada Academia de Direito de Olinda, um importante


espaço de socialização dos quadros que viriam a formar a elite política do Império,348
Bernardo veio a exercer importantes cargos na administração da província do Pará, a exemplo
do que ocupava na época do enlace. Com a sua carreira política em ascensão, não tardou a
deixar o Grão-Pará. Em 1844, ele assumiu a presidência de Alagoas e, ao final da década,
mudou-se definitivamente para o Rio de Janeiro, onde foi deputado geral, senador vitalício,
ministro em duas ocasiões (de Negócios Estrangeiros e da Fazenda) e conselheiro do Império;
tendo sido também nomeado visconde com grandeza e agraciado com as Grã-Cruzes da
Ordem de Cristo e da Imperial Ordem da Rosa.349 Anos mais tarde, tornou-se um político tão
prestigiado que sua nomeação à presidência da província do Rio de Janeiro, em novembro de

346
ACMB. Livro I de Registros de Casamento do Curato da Sé de Belém, p.05.
347
BATISTA, Luciana Marinho. Muito além dos seringais, op. cit., p. 225-226.
348
CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem, op. cit.
349
BORGES, Ricardo. Vultos notáveis do Pará. Belém: GRAFISA, 1970, pp. 93-103.
164

1864, chegou a ser considerada como um retrocesso na sua carreira, tendo em vista a posição
de proeminência ocupada por Bernardo na seara da política imperial.350

Anos depois, em data que não temos como precisar, subiram ao altar outras duas irmãs
de Teresa de Jesus, de nomes Ana Cândida e Maria José. Elas se casaram, respectivamente,
com José Malcher e Luís Colares.351 Levando em consideração que foram pesquisados todos
os matrimônios da freguesia da Sé entre 1840 e 1870, é muito provável que as cerimônias
tenham ocorrido em outra paróquia da cidade. Os batismos das primeiras filhas de ambos os
casais podem ser sugestivos do período em que ocorreram os enlaces. As duas chamavam-se
Maria e foram batizadas em 10 de novembro de 1844,352 o que leva-nos a considerar que os
enlaces de Ana Cândida e Maria José ocorreram pouco depois do casamento entre Bernardo e
Teresa. Luís Colares veio a falecer logo em seguida ao batizado de sua primogênita, pois no
batismo da sua segunda filha, Luísa Amélia, ocorrido em 28 de setembro de 1846, ele já havia
sido dado como falecido.353 Além disso, pouco sabemos da sua história, a não ser por têrmo-
lo encontrado batizando cinco cativos de sua propriedade, entre os anos de 1842 e 1845.

José da Gama Malcher, diferentemente de seu concunhado Bernardo, era formado em


Medicina. Filho de Aniceto Clemente Malcher e Maria do Carmo Malcher, José era natural de
uma tradicional família de Monte Alegre, na região do Baixo Amazonas. Viria a ser um dos
políticos mais influentes da província do Grão-Pará ao longo da segunda metade do século
XIX, tendo sido por diversas vezes (vice)presidente da província nas décadas de 1870 e 1880;
vereador, presidente da Câmara Municipal de Belém e, também, Comandante Superior da
Guarda Nacional na Capital.354 Construiu as bases de sua importante carreira política em sua
província de origem (o Grão-Pará), o que diferenciou sua trajetória da de Bernardo e de outro
concunhado seu: Ambrósio Leitão da Cunha.

Em 27 de abril de 1847, a família Gama e Silva reuniu-se mais uma vez. Maria José
voltava a casar-se, agora em segundas núpcias, com Ambrósio Leitão da Cunha. O noivo era
filho legítimo do major e cavaleiro da Casa Real Gaspar Leitão da Cunha e de Maria Antônia
da Fonseca e Cunha, ambos de origem portuguesa. O matrimônio ocorreu na casa da própria

350
GOUVÊA, Maria de Fátima da Silva. O Império das Províncias: Rio de Janeiro, 1822-1889. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2008, p. 195.
351
Em alguns documentos, como no testamento de seu pai, Maria José é referida como Maria Josefa. Optamos
por tratá-la pela primeira forma, pois é a que consta nos seus registros de casamento, tanto em primeiras, quanto
em segundas núpcias.
352
ACMB. Livro III de Registros de Batismo do Curato da Sé de Belém, pp. 118(v)-119.
353
ACMB. Livro IV de Registros de Batismo do Curato da Sé de Belém, pp. 54(v)-55.
354
BATISTA, Luciana Marinho. Muito além dos seringais, op. cit., pp. 232-233.
165

nubente e teve como testemunhas Archibald Campbell e José Malcher. Ambrósio e Maria
José contraíram casamento com, respectivamente, 22 e 30 anos de idade. 355 O matrimônio em
segundas núpcias de Maria José, que já era mãe de pelo menos duas filhas (Luísa Amélia e
Maria), pode justificar a diferença etária entre os cônjuges. Curiosamente, um dos filhos de
Archibald, chamado James Archibald Campbell, viria casar-se, anos depois, com Ambrosina,
filha primogênita de Ambrósio e Maria José.356

O nubente pertencia a uma família que se estabeleceu em Mazagão, nos fins do século
XVIII. Embora à época do seu casamento, talvez por conta da sua pouca idade, não tivesse a
mesma inserção política que Bernardo, o futuro barão com grandeza de Mamoré viria a ser
chefe de polícia; juiz na Capital e em várias comarcas do interior; desembargador e presidente
da província do Grão-Pará. A partir dos anos 1850, quando deixou em definitivo a região, foi
ainda presidente das províncias da Paraíba, do Maranhão, de Pernambuco e da Bahia, além de
senador e ministro do Império.357

Com as segundas núpcias de Maria José, todas as filhas de José Joaquim da Silva e
Maurícia Gama Lobo estavam definitivamente casadas. Foram escolhidos como seus noivos
três já proeminentes políticos que, nos anos subsequentes, viriam consolidar o seu lastro de
influência no âmbito da província do Grão-Pará e do Império do Brasil. Os casamentos delas
robustecem uma perspectiva apresentada no CAPÍTULO I, de um perfil ainda marcadamente
endógeno dos matrimônios entre a elite tradicional do Grão-Pará, nos meados do Oitocentos.
Retomaremos esses três casamentos mais adiante. Interessa-nos, agora, refletir a respeito dos
enlaces dos outros dois filhos daquele casal: José Joaquim e José Luís Gama e Silva.

Em 1849, logo dois anos após o segundo casamento de Maria José, quem se casou foi
o seu irmão José Joaquim. Sua noiva, Laura Joaquina Ribeiro Figueiredo, era filha legítima de
Joaquim Manoel de Oliveira Figueiredo e de dona Laura de Miranda Ribeiro e Figueiredo. O
matrimônio teve vez, mais uma vez, na casa do pai da nubente, que testemunhou o casamento
ao lado do pai do noivo. As referências às patentes militares dos pais de José Joaquim e Laura
Joaquina são sugestivas de que o enlace foi articulado naquele meio.358 Havia entre os filhos
de militares das patentes mais elevadas, certa espécie de endogamia associada a esse tipo de
ocupação, cuja lógica também era estendida à escolha das testemunhas – também geralmente

355
ACMB. Livro I de Registros de Casamento do Curato da Sé de Belém, p. 37(v).
356
Cf.: ACEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth. As alianças matrimoniais na alta sociedade paraense no século
XIX, op. cit.; BATISTA, Luciana Marinho. Muito além dos seringais, op. cit.
357
ACEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth. Ibidem, p. 160; BATISTA, Luciana Marinho. Ibidem, pp. 227-228.
358
ACMB. Livro I de Registros de Casamento do Curato da Sé de Belém, p. 51.
166

militares. É possível que a articulação do enlace possa ter passado, também, pelas relações
existentes entre os Oliveira Figueiredo e a família de José Malcher. Joaquim Manoel havia
sido testemunha do matrimônio de João Diogo Clemente Malcher, primo de José Malcher,
ocorrido em 1848, um ano antes do consórcio entre José Joaquim e Laura.359

No início dos anos de 1850, mais precisamente em 20 de janeiro de 1852, era a vez do
irmão mais novo, José Luís, contrair o matrimônio com a sua parenta de terceiro grau, Josefa
Florência de Castro Martins, filha legítima de José Joaquim Rodrigues Martins e de D. Maria
Emília de Castro Martins. A cerimônia ocorreu, novamente, na casa do pai do nubente, tendo
enquanto testemunhas: José Coelho de Abreu e Marcos Antônio Rodrigues.360 Casar-se com
parentes pode ter sido uma prática comum na família de Josefa. Sua irmã, Francisca Castro,
consorciou-se, anos mais tarde, com o então viúvo João Marcelino Rodrigues Martins, com
quem mantinha vínculo de parentesco em segundo grau.361

O casamento entre José Luís e Josefa ligava os Gama e Silva aos Rodrigues Martins e
aos Castro. A primeira era uma família muito tradicional da elite paraense, detentora de terras
e muitos escravos desde os fins do século XVIII, com destaque para o conhecido Engenho do
Murucutu.362 Os Castro, por sua vez, dedicavam-se principalmente ao âmbito das atividades
mercantis, sobressaindo-se: “na sociedade paraense do início dos oitocentos, com negócios
direcionados preferencialmente para o comércio de mercadorias em geral, e da borracha, em
particular”.363 Alguns dos membros dessa família ainda:

“[...] investiram também na aquisição de propriedades rurais,


ampliando seu leque de atividades, assim como na formação de seus
filhos, o que permitiu com que, já na segunda metade do século XIX,
eles fossem reconhecidos na sociedade local por atividades que
extrapolavam o âmbito do comércio”.364

Em linhas gerais, os casamentos dos cinco filhos de José Joaquim da Silva e Maurícia
Gama Lobo enquadram-se nas tendências gerais de casamento entre a elite paraense nos
meados do século XIX. Em primeiro lugar, todos foram norteados pela homogamia e tiveram
como objetivo a manutenção e ampliação do status social, patrimônio econômico e influência

359
ACMB. Livro I de Registros de Casamento do Curato da Sé de Belém, pp. 90-90(v).
360
ACMB. Livro I de Registros de Casamento do Curato da Sé de Belém, p. 69(v).
361
ACMB. Livro I de Registros de Casamento do Curato da Sé de Belém, p. 167.
362
ACEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth. As alianças matrimoniais na alta sociedade paraense no século
XIX, op. cit., p. 159.
363
CANCELA, Cristina Donza. Casamento e relações familiares na economia da borracha. (Belém, 1870-
1920). (Tese de Doutorado em História Econômica). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2006.
364
Ibidem.
167

política da família; os três elementos basilares que caracterizavam as chamadas “famílias de


elite” do Grão-Pará oitocentista.365 Em segundo lugar, foram concebidos em meio a círculos
limitados, muitas vezes ligados por laços de parentesco consanguíneo e espiritual. Em terceiro
lugar, tiveram vez em cerimônias pautadas pela paradoxal noção de privacidade apontada nos
dois capítulos anteriores. Em relação a eles, acrescentamos ainda outro aspecto: os enlaces de
Ana Cândida, Maria José, Teresa de Jesus, José Joaquim e José Luís representam, igualmente,
um exemplo do sucesso obtido por algumas famílias de origem portuguesa em estabelecer seu
lugar na alta sociedade paraense por meio do casamento, ainda que pautado (como nos casos
de Maria José e Ambrósio, Teresa de Jesus e Bernardo) por um comportamento caracterizado
pela endogamia oculta.366

As alianças matrimoniais estabelecidas pela prole de José Joaquim da Silva e Maurícia


Josefa da Gama Lobo são um exemplo a mais do perfil sobretudo endógeno, que marcou os
casamentos da elite tradicional paraense, nos meados do século XIX. Por mais que Bernardo
Franco, Ambrósio Leitão da Cunha e José da Gama Malcher possuíssem formação acadêmica
e pudessem desempenhar profissões liberais, eles não deixavam de fazer parte de um esforço
da elite tradicional em qualificar academicamente seus quadros; pertenciam, sim, a famílias
possuidoras de terras e escravos, com funções militares e na administração pública, que eles
também buscaram galgar ao longo de suas trajetórias. Esse quadro apenas viria a se plastificar
na segunda metade do século, com a consolidação e a expansão da economia da borracha, e a
transformação dos signos de riqueza da elite paraense, como demonstrou Cristina Cancela. 367

Uma primeira leitura desses enlaces matrimoniais nos levaria, muito provavelmente, a
entender que, por meio deles, José Joaquim da Silva “se prestigiou, pois [suas filhas – DSB]
lhe deram como genros nada menos do que um visconde e dois barões”. 368 Não obstante, os

365
Sobre a questão, ver: ACEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth. As alianças matrimoniais na alta sociedade
paraense no século XIX, op. cit.; BATISTA, Luciana Marinho. Muito além dos seringais, op. cit.; CANCELA,
Cristina Donza. Casamento e relações familiares na economia da borracha, op. cit.
366
Grosso modo, a endogamia oculta é um conceito que se aplica aos casos em que não há endogamia por
naturalidade formal, mas em termos culturais. Por exemplo: se um português casa-se com uma filha de
português, nascida no Pará, há exogamia do ponto de vista formal e endogamia oculta do ponto de vista relativo.
Sobre o conceito de “endogamia oculta”, ver: CAPÍTULO I, p. 74, nota 201.
367
Sobre as alianças matrimoniais e os signos de riqueza da elite paraense, na segunda metade do século XIX,
ver: CANCELA, Cristina Donza. Famílias de elite: transformação da riqueza e alianças matrimoniais.
Belém, 1870-1920. In: Topoi - Revista de História, Rio de Janeiro, jan.-jun./2009, pp. 24-38. Acerca dos
casamentos entre as elites tradicionais no século XIX, ver: LEWIN, Linda. Política e parentela na Paraíba, op.
cit.; Sobre a influência das profissões liberais, do individualismo e da formação de uma sociedade de classes nas
mudanças do pacto matrimonial, ao longo do Oitocentos, cf.: NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote:
mulher, família e mudanças sociais em São Paulo, 1600-1900. São Paulo: Companhia das Letras, 2001 [1991].
368
ACEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth. As alianças matrimoniais na alta sociedade paraense no século
XIX, op. cit., p. 163.
168

casamentos de seus dois filhos foram também bem-sucedidos. A “história de casamentos da


família”, para usarmos a feliz expressão de Pierre Bourdieu, levou a família a ter acesso ao
alto escalão do partido conservador (com Ambrósio), do partido liberal (com José Malcher) e
da própria província do Pará (com Bernardo e, anos mais tarde, com os demais). No campo
econômico, concretizaram sua relação com uma importante família proprietária de terras (os
Rodrigues Martins) e com duas importantes famílias ligadas às atividades mercantis (como os
Sousa Franco e os Castro).

No entanto, um olhar mais acurado sobre os enlaces pode revelar que suas implicações
sociais, políticas e econômicas devem ser mais bem examinadas. Se, por um lado, as alianças
matrimoniais podem ter ampliado os tentáculos da família em várias direções; por outro lado,
as proeminentes carreiras na política de particularmente dois dos seus membros (Bernardo e
Ambrósio) e o afastamento decorrente delas, podem ter posto em xeque a ideia de que a rede
familiar sedimentou sua influência em nível do Império. Mais ainda, é possível que a própria
concepção de rede familiar, lastreada pelo conceito de rede social, deva ser considerada, nesse
caso, de maneira muito matizada. Se isso for correto, a pretensa eficácia dos Gama e Silva em
alicerçar sua influência fora da província do Pará por intermédio de sua rede familiar, como se
apontou em estudos anteriores, 369 precisa ser relativizada principalmente no que diz respeito a
dois aspectos.

O primeiro aspecto é atinente à lógica de poder constituída por meio dos casamentos.
Como explica Linda Lewin, era a lógica do parentesco que no interior da família determinava,
em grande medida, o acesso a recompensas materiais, status social e, sobretudo, participação
nos processos decisórios.370 Por mais que os consórcios de Teresa, Ana Cândida e Maria José
possam ter trazidos benefícios de diversas ordens para os Gama e Silva, a lógica das relações
de força estabelecidas tenderia a situar o poder decisório nas mãos de Bernardo, Ambrósio e
José Malcher, por serem homens. Isso significa dizer, em outras palavras, que por mais que a
rede familiar pudesse usufruir de todo o prestígio social e político dos seus três membros mais
proeminentes, a atuação deles não estava necessariamente sob a gerência dos Gama e Silva e,
por vezes, poderia não ter estado sequer em conformidade aos interesses coletivos da família.
Conquanto não possamos desconsiderar a possibilidade de um trabalho conjunto em torno de
um interesse comum à família, a lógica de poder constituída tornava tênue um dos aspectos
que estava no âmago do conceito de rede social: a possibilidade de mobilizarem-se em prol de

369
Ibidem; BATISTA, Luciana Marinho. Muito além dos seringais, op. cit.
370
LEWIN, Linda. Política e parentela na Paraíba: um estudo de caso da oligarquia de base familiar. Rio de
Janeiro: Record, 1993 [1987], pp. 115 e ss.
169

uma finalidade específica e de interesse coletivo. No caso dos enlaces de José Joaquim e José
Luís, a situação era inversa.

Essa lógica de poder que punha o poder decisório nas mãos dos homens não suprimia,
entretanto, a importância da atuação social das mulheres da família. Mesmo que em espaços e
esferas diferentes daqueles ocupados pelos homens, as mulheres participavam ativamente de
sociedades beneficentes e confrarias, cumprindo o papel que era arrogado às mulheres casadas
da elite no Brasil oitocentista.371 Ana Cândida, em especial, era envolvida com os Lázaros do
Tucunduba, o Asilo de Santo Antônio e a Confraria de Nossa Senhora da Boa Morte, da qual
era presidente. Ao dispor sua terça testamentária, deixou 200 mil réis à Confraria e 500 mil
réis para os Lázaros e o Asilo, cada um. Ressaltou ainda que os valores deveriam ser líquidos,
sendo o imposto de décima da Fazenda pago por fora.372

O segundo aspecto, que respeita à partida de Bernardo e Ambrósio e à permanência de


José Malcher no Grão-Pará, precisa considerar duas questões associadas, igualmente, ao que
Michel Bertrand elencou como aspectos interdependentes da noção de rede social. São elas o
próprio caráter morfológico da rede (laços e relações mantidos por um conjunto de sujeitos) e
seu caráter relacional (sistema de trocas, circulação de bens e serviços). Os indícios presentes
nos registros paroquiais de batismo e de casamento da família e em geral, e os testamentos e
inventários da família Gama e Silva, sugerem que ambos os aspectos ficaram comprometidos
nos casos de Bernardo e Ambrósio e robusteceram-se no caso de Malcher, respectivamente,
em relação às suas partidas e permanências no Pará. Aqueles se tornaram praticamente termos
ausentes no seio dos Gama e Silva, enquanto José Malcher era quase sempre lembrado.

Os meados do século XIX representaram, no Brasil, um contexto de transição de uma


sociedade estamentária para uma sociedade de classes.373 Na organização social estamentária,

371
De acordo com Roderick Barman: “no século XIX, uma mulher casada de classe média ou alta tinha cinco
obrigações principais. A primeira e mais importante era servir ao esposo, dando-lhe apoio, afeição, fidelidade e
proteção irrestritos. Em segundo lugar, tinha de governar o lar, tornando-lhe a vida privada mais confortável. O
terceiro dever era desempenhar o papel de mediadora e facilitadora no interior da malhar familiar, conciliando os
quatro mais e outros parentes mais velhos que ela. Quarto, devia construir um círculo de conhecidos e amigos
a fim de empreender atividades sociais tanto para proclamar o status do marido como para criar uma
rede de amizades gratificantes. A última e nem menos importante das obrigações da esposa consistia em parir
e criar os filhos do esposo”. BARMAN, Roderick J. Princesa Isabel do Brasil: gênero e poder no século XIX.
São Paulo: Editora UNESP, 2005 [2002], pp. 120-121. Grifo nosso.
372
CMA. Cartório Santiago (7ª Vara Cível). Inventários post-mortem, 1894. Cx. 1894. Traslado do testamento,
p. 19.
373
Cf.: KUZNESOF, Elizabeth Ann. A família na sociedade brasileira: parentesco, clientelismo e estrutura
social (São Paulo, 1700-1880). In: Revista Brasileira de História, São Paulo, 09(17), set.-1988/fev.-1989, pp.
37-63. Muriel Nazzari em certa medida comunga com a perspectiva apresentada por Kuznesof, mas ainda vai
além, verificando mudanças significativas mudanças no “pacto matrimonial” durante o século XIX. Para aquela
autora, com a consolidação de uma sociedade de classes no Brasil e com a ascensão das profissões liberais, os
170

a linhagem era um elemento de grande importância; a posição social de um sujeito plasmava-


se muito mais em função da sua ascendência do que por seus méritos pessoais. 374 Entre a elite
e as camadas sociais mais tradicionais da população, essa ideia permaneceu forte por ainda
mais tempo.375 Posto nesses termos causa certa estranheza a ausência de Bernardo e Ambrósio
como padrinhos (poderiam sê-lo, como demonstramos no CAPÍTULO II, por procuração) de
batismo e a falta de referências a eles nos testamentos dos Gama e Silva da segunda metade
do Oitocentos, particularmente a partir da década de 1860.

O único membro da família a fazer referências a Bernardo e Ambrósio foi seu sogro,
José Joaquim da Silva, em seu testamento. Mesmo assim, as disposições de José datam de
1850, um período anterior, embora próximo, às partidas de Bernardo e Ambrósio. De todo
modo, devemos considerar a posição de maior destaque dada à Malcher, o único dos genros
de José Joaquim da Silva a ser indicado como testamenteiro. No testamento de José Joaquim
da Gama e Silva já não há qualquer menção a Bernardo, Ambrósio ou as suas irmãs que com
eles partiram. Mais uma vez, José Malcher é posto em posição de destaque. José da Gama e
Silva indicou: “meu bom cunhado e amigo, o Dr. José da Gama Malcher”376 como um dos
tutores de seus filhos menores, ao lado de sua esposa.

As fontes levantadas sugerem essa ambiguidade interpretativa. Não há dúvidas de que


José Joaquim constituiu, por intermédio do casamento de seus cinco filhos (sobretudo, os das
três mulheres), uma ampla rede familiar que atingia distintos lugares da administração pública
e da economia paraense do século XIX. No entanto, não fica claro o impacto da mudança de
Bernardo e Ambrósio na organização dessa rede. Teria a partida deles enfraquecimento àquela
ou não? E, consequentemente, podemos entender ou não que a família Gama e Silva expandiu
seu lastro de influência em nível imperial? O entendimento da efetividade dos enlaces passa
não pelo estudo do casamento em si, mas por uma questão mais ampla, que se relaciona não à
formação, porém à consolidação daquela rede familiar.

indivíduos passaram a ter maior liberdade na escolha de seus cônjuges, a despeito da coerção familiar. Ademais,
o papel social do marido passou de administrador de bens para provedor do lar, evidenciando o papel do trabalho
na sociedade que naquele período se conformava. Ver: NAZZARI, Muriel. O século XIX (1800-1869). In: O
desaparecimento do Dote: mulheres, famílias e mudança social em São Paulo, Brasil, 1600-1900. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001 [1991], pp. 150-161.
374
Sobre a relação entre a sociedade estamentária no Brasil e o papel na linhagem no delineamento das relações
e posições sociais, ver em especial: KUZNESOF, Elizabeth. A família na sociedade brasileira: parentesco,
clientelismo e estrutura social (São Paulo, 1700-1880). In: Revista Brasileira de História, São Paulo, 09(17),
set.-1988/fev.-1989, pp. 37-63.
375
Idem.
376
Testamento de José Joaquim da Gama e Silva, cujo traslado consta em seus Autos de Inventário. CMA/UFPA.
Cartório Odon (2ª Vara Cível). Inventários post-mortem, 1891. Cx. 1891.
171

O COMPADRIO

Ao considerarmos a formação da rede familiar em torno dos Gama e Silva apenas em


função das alianças matrimoniais estabelecidas, as implicações das partidas de Bernardo e de
Ambrósio podem ser lidas de duas maneiras distintas. Em primeiro lugar, comungando com
trabalhos anteriores, podemos entender que a ascensão política deles representou um alicerce
para a influência política dos Gama e Silva numa arena mais ampla: o Império do Brasil. 377
Por outro lado, o afastamento decorrente de suas partidas, somados à lógica das relações de
poder fundadas pelos casamentos, podem ter enfraquecido os três elementos interdependentes
que dão substância à ideia de rede social e, por conseguinte, de uma rede familiar entre os
Gama e Silva e, em particular, os Sousa Franco e os Cunha. Essa segunda leitura é ainda
corroborada pela ausência de referências a Bernardo e Ambrósio nos eventos associados à
família Gama e Silva, bem como nos testamentos dos seus membros remanescentes no Grão-
Pará.

Além de ter dado, nesse caso, margem a duas interpretações, a análise da constituição
de redes familiares fundamentalmente através de sua “história de casamentos” restringe a
compreensão de toda uma multiplicidade de aspectos que atuavam no sentido de conceder-
lhes forma e, posteriormente, de consolidá-las. Ademais, também limita o entendimento sobre
os mecanismos pelos quais as famílias de elite reproduziam seus status e condição social, ao
não considerar, outrossim, as relações estabelecidas verticalmente, com indivíduos e famílias
de condição social menos privilegiada. Como vimos demonstrando no decorrer deste estudo,
uma dada posição social é delimitada por marcas de distinção que se constituem tanto pelas
relações que indivíduos e famílias mantêm dentro da sua camada social, quanto pelas relações
objetivamente estabelecidas em relação a outros segmentos sociais.378

Um caminho para ampliar a compreensão sobre o processo de constituição das redes


familiares é considerar, no mesmo, a importância das relações de compadrio. Como parte da
historiografia vem demonstrando, os laços de parentesco espiritual, concebidos em meio ao
caráter marcadamente patriarcal da sociedade brasileira oitocentista, atuavam em duas frentes:
(1) reforçando a própria noção de rede familiar e (2) expandindo sua influência a partir da

377
Ver: ACEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth. Alianças matrimoniais..., op. cit.; BATISTA, Luciana Marinho.
Muito além dos seringais, op. cit.
378
Cf.: BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas, op. cit.
172

criação de uma clientela.379 É no bojo dessas duas frentes que devem ser analisados a lógica
de ação, as estratégias e os usos sociais do compadrio entre as famílias de elite.

Como destacamos anteriormente, as alianças matrimoniais firmadas pelos casamentos


dos cinco filhos de José Joaquim da Silva e Maurícia Josefa da Gama Lobo representaram, na
constituição da rede familiar dos Gama e Silva, concomitantemente um ponto de chegada e de
partida. Ponto de chegada, na medida em que simbolizaram, provavelmente, a formalização
de alianças estabelecidas anteriormente nas esferas comerciais, políticas, militares etc. Ponto
de partida, no sentido de que os enlaces não somente deram ensejo, como também certamente
fomentaram, ao estreitamento de laços entre as famílias através do testemunho em casamentos
e do compadrio. Acreditamos que foi justamente esse estreitamento de laços, levado a efeito
logo após os consórcios, que possibilitou a possível manutenção de uma rede entre as famílias
em questão, sustentando o argumento de que os Gama e Silva consolidaram o seu lastro de
influência também no âmbito da política imperial.

Analisamos essas questões em dois momentos. Inicialmente, interessa-nos examinar,


de forma específica, a importância do testemunho em casamentos e dos laços de compadrio na
constituição e na consolidação de uma rede familiar em torno dos Gama e Silva. Isso para, em
seguida, entendermos de que maneira esses elementos foram usados para alicerçar a clientela
da família, seja pelo estabelecimento de laços horizontais com outras famílias de elite, seja
pelo apadrinhamento de crianças advindas de famílias de condição social menos privilegiada.
As reflexões são desenvolvidas nessa ordem por ser a rede familiar, no nosso entender, a base
de organização de uma clientela.

***

Os usos do compadrio com o objetivo de sedimentar uma rede familiar em torno dos
Gama e Silva fizeram-se em três vetores. Primeiramente, ligando os cônjuges dos cinco filhos
de José Joaquim da Silva e Maurícia da Gama Lobo, entre si. Em um segundo plano, ligando
um cônjuge à família do outro. E, em terceiro lugar, reforçando os vínculos dos filhos José e
Maurícia com as famílias de seus respectivos consortes. É possível que essas estratégias ainda
não estejam suficientemente claras. Vejamos alguns exemplos de cada uma, a começar pelo
batismo de José, filho de Malcher e Ana Cândida:

379
A respeito do caráter patriarcal das relações de compadrio no Brasil oitocentista, cf.: BRÜGGER, Sílvia
Maria. Minas Patriarcal: família e sociedade (São João del Rei - Séculos XVIII e XIX). São Paulo: Annablume,
2007. Sobre a importância do parentesco espiritual na constituição das redes familiares e das clientelas, ver
dentre outros: LEWIN, Linda. Política e parentela na Paraíba, op. cit.; GRAHAM, Richard. Clientelismo e
política no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997 [1990].
173

“Aos vinte e cinco dias do mês de novembro de 1854, na Igreja de


Nossa Senhora de Nazaré, [...], [pôs-se - DSB] os Santos Óleos no
inocente José, nascido em 02 de novembro de 1843, filho legítimo do
Doutor em Medicina José da Gama Malcher e de sua esposa, D. Ana
Cândida da Gama e Silva Malcher. Neto pela parte paterna do falecido
Coronel Aniceto Clemente Malcher e de D. Maria do Carmo da Gama
Malcher; e pela parte materna, do Capitão de Mar-e-Guerra José
Joaquim da Silva e de D. Maurícia Josefa da Gama Silva, já falecidos.
Foi padrinho o Dr. Ambrósio Leitão da Cunha e tocou a coroa de
Nossa Senhora de Nazaré, o Dr. José Coelho da Gama Abreu”.380

O batismo de José, que décadas mais tarde viria a se tornar um importante maestro em
Belém,381 serviu para consolidar ainda mais as relações entre os pais da batizando e Ambrósio
Cunha; uma vez que Malcher havia sido testemunha do enlace entre Ambrósio e Maria José,
em 1847. Esse batismo foi o último evento em que encontramos Ambrósio Cunha no papel de
padrinho. Anos mais tarde, em 1859, ele viria a assumir a presidência da província da Paraíba,
para em seguida constituir sua sólida carreira na política imperial. A partir de então, não nos
deparamos mais com referências a relações entre Malcher e Ambrósio, sejam elas pessoais,
políticas e/ou econômicas. Sabemos apenas que ambos possuíam terrenos vizinhos na Vila do
Pinheiro, nas cercanias de Belém, sem precisarmos quando esses terrenos foram adquiridos,
nem mesmo se foram recebidos como dote.382

Antes do batizado de José, ainda no final dos anos 1840, Malcher e Ambrósio levaram
duas de suas filhas à pia batismal. No dia 20 de outubro de 1849, foram batizadas Josefina, a
quarta filha de Malcher e Ana Cândida, e Mância, a segunda filha de Ambrósio e Maria José.
Josefina teve como padrinhos seus tios, Bernardo e Teresa de Jesus. Já Mância, seguindo uma
prática arraigada à elite paraense no Oitocentos, foi apadrinhada pelo seu avô paterno, Pedro
Leitão da Cunha, tendo no papel de madrinha a sua tia Teresa. A partir desses eventos, o casal
Bernardo e Teresa solidificou as suas relações com José Malcher e Ambrósio. Os batismos de
Josefina e Mância foram, também, os últimos nos quais encontramos menções a Bernardo e à
Teresa. À altura, é possível que eles tivessem acabado de retornar de Alagoas, onde Bernardo
havia assumido a província, e estivessem prestes a partir para o Rio de Janeiro em definitivo.

380
ACMB. Livro VI de Registros de Batismo do Curato da Sé de Belém, p. 37.
381
Sobre a trajetória biográfica e artística do futuro maestro Gama Malcher, ver: SALLES, Vicente. Maestro
Gama Malcher – a figura humana e artística do compositor paraense. Belém: Editora da UFPA: Secretaria de
Estado de Cultura do Pará, 2005.
382
A referência foi encontrada no inventário post-mortem de José da Gama Malcher, datado de 1882. Os terrenos
na Vila do Pinheiro foram vendidos com a finalidade de pagar as dívidas deixadas por Malcher. No excerto de
jornal anexo ao inventário correspondente ao leilão público dos terrenos, especificava-se sua vizinhança aos lotes
pertencentes a Ambrósio Leitão da Cunha. José Malcher deixou um grande espólio, formado por poucos cativos,
mas por muitos terrenos, casas e sobrados espalhados por regiões centrais e de expansão da cidade. CMA/UFPA.
Cartório Odon (2ª Vara Cível). Inventários post-mortem, 1882. Cx. 1882
174

Os casos apresentados remetem-se ao primeiro dos usos do compadrio com o fim de


reforçar a rede familiar em torno dos Gama e Silva. Logo após casarem-se, respectivamente,
com Teresa de Jesus, Ana Cândida e Maria José, Bernardo, Malcher e Ambrósio passaram a
pertencer a uma mesma rede familiar, que trataram de fortalecer ao apadrinharem os filhos
uns dos outros. Assim sendo, no momento da partida de Bernardo e Ambrósio, suas relações
com o núcleo dos Gama e Silva que permaneceu no Grão-Pará não se limitava somente ao
casamento, mas abrangia, também, os laços de parentesco espiritual. Os três membros mais
proeminentes da rede familiar dos Gama e Silva passaram a ser igualmente compadres, o que
reforçava a própria dinâmica interna dessa rede.

Entretanto, antes mesmo das partidas de Bernardo e Ambrósio, um “segundo uso” do


compadrio foi feito com o propósito de sedimentar a rede familiar em torno dos Gama e Silva.
Trata-se dos casos em que um servia de testemunha de casamento ou de padrinho à família do
outro. Esses laços não apenas avigoravam as relações de Bernardo, Ambrósio e Malcher entre
si, como entre suas famílias de origem; o que consequentemente avigorava, outrossim, a rede
familiar entre os Gama e Silva. Um caso ilustrativo desse “segundo uso” envolve o casamento
da irmã de Bernardo, de nome Ana Rufina.

Em janeiro de 1846, na Catedral de Belém, Rufina contraiu matrimônio com Ângelo


Custódio Corrêa. O nubente, natural de Cametá, era filho de Francisco Custódio Corrêa e de
dona Joana Vitória de Sousa.383 O casamento selou uma união entre duas importantes famílias
da elite local. A influência política e econômica dos Sousa Franco já nos é conhecida. Ângelo
Custódio, bacharel em Direito, foi deputado geral por três vezes e presidente da província do
Grão-Pará numa ocasião. Seu engajamento no combate à cólera, nos meados da década de
1850, quando governava a província, conferiu-lhe o título de Barão de Cametá, que não pôde
assumir por motivo do seu falecimento. Ainda assim, sua viúva Ana Rufina, tal como o irmão
dela, Bernardo, ascendeu ao baronato.384

Considerando que Bernardo assumiu a presidência da província de Alagoas em 1844,


é provável que ele não estivesse presente no casamento de sua irmã, o que justificaria, então,
sua ausência como testemunha. Se estivesse em Belém, muito provavelmente Bernardo o teria
sido, sobretudo pelo fato de seus pais, Manoel e Catarina Franco, já encontrarem-se falecidos.
Ao papel de testemunhas do casamento entre Ângelo Custódio e Ana Rufina foram escolhidos
João José de Deus Silva e José da Gama Malcher. Nos termos em que se situava, a seleção de

383
ACMB. Livro I de Registros de Casamento do Curato da Sé de Belém, p. 38.
384
BORGES, Ricardo. Vultos notáveis do Pará, op. cit., pp.89-90.
175

Malcher pode ter ganhado contornos bastante particulares. Futuro compadre de Bernardo, ele
pode ter representado a família (ou melhor, uma rede familiar que abrangia os) Sousa Franco
no enlace de Ana Rufina.

O “terceiro uso” do testemunho em casamentos e do compadrio tinha a finalidade de


fortalecer os laços existentes entre um dos filhos de José Joaquim da Silva e Maurícia Josefa
da Gama Lobo, com as famílias de seus nubentes. Um exemplo desse terceiro uso é o enlace
de uma irmã da esposa de José Luís. Em 14 de junho de 1863, José Luís da Gama e Silva foi,
junto a José Malcher, testemunha do casamento de sua cunhada, Francisca Castro Martins,
com João Marcelino Rodrigues Martins. Esse testemunho serviu para solidificar as relações e
o envolvimento que José Luís mantinha com a família de sua esposa. Também não podemos
deixar de perceber, em relação a esse caso, a presença de José Malcher como testemunha.385
Trata-se, sob nosso ponto de vista, de um indicativo claro do estágio de consolidação de uma
rede familiar em torno dos Gama e Silva, anos depois de terem sido estabelecidas as alianças
matrimoniais que lhe deram origem.

Os três usos do testemunho em casamentos e do compadrio apresentados evidenciam o


esforço de consolidação de uma rede familiar em torno dos Gama e Silva, encetada por meio
dos casamentos dos cinco filhos de José Joaquim da Silva e Maurícia Josefa da Gama Lobo.
Os membros que se “agregaram” à família através do matrimônio buscaram estreitar os laços
existentes entre si e entre suas respectivas famílias de origem. A consolidação da rede familiar
foi, no caso dos Gama e Silva, o primeiro passo no sentido de constituírem sua clientela, que
cada vez mais se dilatava. A rede familiar, coesa internamente, expandiu, a partir de Bernardo
e Ambrósio, seu lastro de influência para além das fronteiras do Grão-Pará, alcançando um
patamar mais alto: o Império do Brasil. Restava-lhes, então, sedimentar sua influência em sua
própria província, ao que o parentesco espiritual representou, mais uma vez, um elemento de
grande importância.

Os usos do compadrio com a finalidade de constituir-se uma clientela à rede familiar


dos Gama e Silva deram-se em dois vetores: (1) a criação de vínculos com outras famílias de
elite e (2) a criação de vínculos com indivíduos e famílias de condição menos privilegiada.
Diferentemente do que foi feito até agora, analisamos esses “novos usos” do compadrio numa
via de mão-dupla; ou seja, não consideramos apenas as situações em que a rede familiar dos
Gama e Silva forneceu testemunhas e padrinhos, mas também os casos em que a rede foi

385
ACMB. Livro I de Registros de Casamento do Curato da Sé de Belém, p. 167.
176

“receptora”. No nosso entendimento, não considerar essa segunda direção implicaria retirar o
dinamismo inerente aos usos do compadrio com os objetivos em questão.

Antes de tudo é importante destacarmos que, no que se respeita à horizontalidade ou à


verticalidade dos laços estabelecidos, havia uma diferença comportamental nos casos em que
a rede familiar foi “fornecedora” e “receptora”. Não encontramos indicativos de que os Gama
e Silva “receberam” testemunhas ou padrinhos com condição social marcadamente “inferior”
à sua. Tanto no que tange às implicações sociais como no que concerne àquelas religiosas do
compadrio, é um comportamento perfeitamente compreensível. Por outro lado, a rede familiar
em torno dos Gama e Silva não se ladeou em fornecer testemunhas e, sobretudo, padrinhos,
aos demais segmentos sociais. Indivíduos de condição social intermediária, menos favorecida
e até mesmo alguns escravos tiveram determinados membros da rede enquanto testemunhas
ou padrinhos. Comportamento esse que também é perfeitamente compreensível. Refletimos
melhor sobre essa diferença ao longo do texto. Vejamos, a princípio, um exemplo de cada um
dos dois usos.

“Aos 17 dias [do mês de outubro de 1850 – DSB], [...], pus os Santos
Óleos ao inocente José, filho legítimo de José Rodrigues Gomes de
Andrade e de D. Ana Augusta Rocha de Andrade. Foi padrinho o Dr.
José da Gama Malcher e tocou com a prenda de Nossa Senhora dos
Remédios, D. Ana Cândida da Gama Malcher”.

José Rodrigues Gomes Andrade e sua esposa eram, respectivamente, filhos do tenente
coronel Joaquim Rodrigues de Andrade e do coronel José Narciso da Costa Rocha, pessoas de
proeminência no Pará durante a primeira metade do Oitocentos. 386 É possível que as atuações
dos pais dos batizando em algum momento tenham convergido com a trajetória do Capitão de
Mar-e-Guerra José Joaquim da Silva, pai de Ana Cândida e da geração analisada, nas esferas
militares da antiga Capitania do Grão-Pará. Não sabemos a trajetória de José Rodrigues e sua
família durante o século XIX, mas é certo que tanto ele quanto sua esposa ainda faziam parte
de uma elite mais tradicional da província, configurando o batismo de José como um exemplo
do primeiro uso do compadrio no sentido de constituir uma clientela entre os Gama e Silva.

Em alguns casos, os vínculos estabelecidos situavam-se entre o primeiro e o segundo


uso do compadrio, como no batismo de um dos filhos de José Luís e Josefa:

“Aos 25 dias de dezembro do ano de 1867, no oratório da Fazenda


Arapiranga, batizei solenemente e pus os Santos Óleos ao inocente
Luís, nascido no dia 10 de agosto do corrente ano, filho legítimo do

386
ACMB. Livro IV de Registros de Batismo do Curato da Sé de Belém, pp. 80-80(v).
177

capitão José Luís da Gama e Silva e de D. Josefa de Castro Martins e


Silva, já falecida [...]. Foram padrinhos o Dr. Luís Ferreira de Lemos
por procuração que apresentou o major José Joaquim Alves Picanço, e
D. Adelaide Cândida da Silva”.387

Naquela distante quarta-feira, o então viúvo José Luís levou seu filho mais novo, Luís,
à pia batismal. A referência à Fazenda Arapiranga é sugestiva de que a cerimônia foi realizada
nas cercanias de Belém ou no interior da província. Dado o intervalo entre o nascimento de
Luís e o seu batizado, é possível pensarmos que sua mãe, Josefa, morreu no parto ou pelas
complicações dele decorrentes. Sendo os pais de Josefa também falecidos à época, caberia a
José Luís escolher os padrinhos de seu filho. Mesmo com o recente falecimento de sua esposa
e distante do centro da cidade, José Luís não deixou de estar atento à importância dos laços de
parentesco espiritual. Tanto o padrinho Luís Lemos, quanto a madrinha Adelaide Cândida,
tinham sua posição social demarcada pelos termos distintivos “doutor” e “dona”. Podemos
observar, também, que a ausência de Luís Lemos foi suprida por uma procuração apresentada
pelo major José Joaquim Picanço, um importante escravista e proprietário de terras do Grão-
Pará.388

À altura do batismo, é provável que José Luís já estivesse ligado à Alfândega no Pará,
onde chegou a ser Inspetor dos anos 1870, possivelmente por indicação de José Malcher. O
padrinho escolhido para seu filho, Luiz Ferreira Lemos, esteve envolvido nos primórdios da
medicina moderna no Pará. Na década de 1870, foi um dos responsáveis pelos melhoramentos
da Santa Casa de Misericórdia, para onde doou uma vultosa quantidade de equipamentos.389 O
seu envolvimento na medicina pode tê-lo ligado tanto a Malcher, quanto a um membro da
família de Josefa, esposa de José Luís, de nome Francisco da Silva Castro. Gama Malcher e
Silva Castro – formados, respectivamente, na Bahia e em Lisboa, no final dos anos 1830 –
tiveram um papel de destaque na medicina paraense. No período do batizado do filho de José
Luís, Malcher, Silva Castro e Ferreira Lemos faziam parte do corpo médico da Santa Casa e,
portanto, eram colegas de trabalho e profissão.390

387
ACMB. Livro IX de Registros de Batismo do Curato da Sé de Belém, p. 58(v).
388
Cristina Cancela faz referência a José Joaquim Alves Picanço como um exemplo das mudanças na riqueza da
elite paraense. Rico proprietário de escravos e senhor de engenho de cana-de-açúcar, Picanço havia declarado em
suas terras a existência de seringais, evidenciando uma maior dinamização das atividades econômicas de uma
elite mais tradicional. CANCELA, Cristina Donza. Riqueza, alianças e contratos de dotação em Belém (1870-
1920). In: Revista Estudos Amazônicos, Belém, 5(2), jul.-dez./2010, p. 32.
389
MIRANDA, Aristóteles Guilliod de. A medicina no Estado do Pará, Brasil: dos primórdios à Faculdade
de Medicina. In: Revista Pan-Amazônica de Saúde, Belém, (1)3, 2010, p. 13.
390
Idem.
178

A relação de Ferreira com a rede familiar dos Gama e Silva era possivelmente anterior.
Na década de 1850, sob a coordenação de Silva Castro, presidente da Comissão de Higiene da
província, atuou juntamente a Malcher no combate à cólera.391 Naqueles anos, quem presidia
a província era Ângelo Custódio que, como destacamos anteriormente, chegou a ser indicado
ao baronato por sua atuação decisiva no combate à epidemia, e fora casado com Ana Rufina, a
irmã de Bernardo de Sousa Franco. José Malcher, Silva Castro e Ferreira Lemos participaram
ativamente da organização dos serviços de saúde e no combate às epidemias na província do
Grão-Pará nos meados do século XIX, o que certamente lhes conferiu um alentado prestígio
social e simbólico.

Portanto, o batismo de Luís evidencia o primeiro uso do compadrio entre os Gama e


Silva com vistas a consolidar a clientela da família. Foi escolhida como padrinho uma pessoa
com prestígio na sociedade local, dada a sua importante contribuição para a higiene pública, o
combate de epidemias e a organização dos serviços de saúde na província. É importante não
perdermos de mente que Ferreira Lemos já mantinha, há algum tempo, vínculos profissionais
com membros da rede familiar dos Gama e Silva. Sociabilidade essa que pôde abrir uma nova
dimensão para a compreensão do compadrio entre a elite oitocentista naquele período, em que
o trabalho, sobretudo por meio das profissões liberais, passava a ser cada vez mais valorizado.

Um caso interessante do segundo uso do compadrio é o casamento entre José Caetano


Ribeiro da Silva e Emília da Silva Rabelo, e o batismo da primogênita desse casal, de nome
Maria. José Caetano, um português natural de Braga, veio a ser proprietário de uma das mais
importantes firmas de aviamento da borracha no Grão-Pará, a “Ribeiro da Silva & Cia.”.392
Não conseguimos precisar a data de fundação da companhia. No entanto, considerando que a
ascensão de um complexo econômico votado à exportação da borracha começou a se articular
ainda nos anos 1850, mas somente veio a se consolidar a partir da década de 1870, é provável
que à altura de seu matrimônio com Emília (datado de 1855), José Caetano já tivesse alguma
posição social, porém distante da que viria a ter nas décadas seguintes, sendo ainda de uma
condição social inferior aos Gama e Silva.393

Por meio do seu casamento, José Caetano buscou inserir-se na sociedade paraense. Em
primeiro lugar, ao contrair núpcias com uma mulher local, cuja família já tinha estabelecido
toda uma gama de inter-relações de diversas ordens. Em segundo lugar, ao fazer uso dele para

391
Idem.
392
CANCELA, Cristina Donza. Famílias de elite, op. cit., p. 30.
393
ACMB. Livro I de Registros de Casamento do Curato da Sé de Belém, pp. 97(v)-98.
179

se aproximar da rede familiar dos Gama e Silva. Juntamente ao pai da noiva, Ambrósio Leitão
da Cunha foi escolhido como testemunha do enlace. Entretanto, ao chegar ao Pará e galgar
certa posição socioeconômica, o negociante José Caetano buscou não apenas no casamento,
mas também no parentesco espiritual, um instrumento de inserção na alta sociedade local.

O vínculo formado com a rede familiar dos Gama e Silva, firmado pelo testemunho de
Ambrósio, foi ainda realçado no final dos anos 1860, quando José Malcher apadrinhou Maria,
filha de José Caetano e Emília.394 No ano de 1867, em que ocorreu o batizado, provavelmente
a firma de José Caetano já estava mais consolidada. As relações que constituiu com os Gama
e Silva ligaram-no à alta administração provincial e a setores mais tradicionais da elite local.
Por outro lado, em caminho inverso, a rede familiar dos Gama e Silva passou a ter como parte
da sua clientela um proeminente e rico indivíduo ligado ao comércio e, consequentemente, à
exportação da borracha. As relações entre uma elite tradicional e comerciantes recentemente
enriquecidos foram impulsionadas pela maior dinamização econômica trazida pela borracha.
Nas décadas seguintes, paralelamente aos vínculos de parentesco espiritual, esses dois setores
passaram a ligar-se, igualmente, por meio das alianças matrimoniais.395

Casos como os laços de compadrio estabelecidos pela rede familiar dos Gama e Silva
com indivíduos como Luís Ferreira Lemos e José Caetano Ribeiro da Silva evidenciam uma
questão que sugerimos no capítulo anterior. Se as alianças matrimoniais da elite tradicional
paraense nos meados do século XIX ainda eram marcadamente endógenas, havia, por outro
lado, uma maior flexibilização em torno das relações de compadrio. A partir delas aquela elite
passava a interagir, de forma mais próxima, com sujeitos em plena ascensão social, seja pelo
destaque obtido por intermédio do exercício de profissões liberais mais prestigiadas, seja pelo
envolvimento com um setor da economia que cada vez mais se consolidava – o comércio da
borracha.

Por fim, não podemos deixar de destacar que José da Gama Malcher esteve entre os
“campeões de batismo” e entre os indivíduos que mais vezes foram testemunha de casamento,
como destacamos nos dois capítulos anteriores. O que é uma evidência da posição social da
rede familiar dos Gama e Silva em geral, e da de José Malcher, em particular. É possível que
tenha sido ele, Malcher, o incumbido a estabelecer laços de parentesco ritualístico tanto entre
uma elite mais tradicional, quanto entre os indivíduos de condição social menos privilegiada,
estando esses em processo de ascensão social e enriquecimento, ou não. Mesmo tratando-se

394
ACMB. Livro IX de Registros de Batismo do Curato da Sé de Belém, p. 55.
395
CANCELA, Cristina Donza. Famílias de elite, op. cit.
180

de um caso particular, a trajetória dos Gama e Silva nos meados do Oitocentos comungam
com a lógica de ação de seu grupo social – a elite tradicional –, no que concerne ao casamento
e ao parentesco espiritual.

RESUMINDO...

Dialogando com o conceito de rede social, investigamos, nesta seção, de que maneira
o casamento e o compadrio atuaram no sentido de criar uma rede familiar e uma clientela em
torno dos Gama e Silva. Observamos que, através dos casamentos dos seus cinco filhos, José
Joaquim da Silva e Maurícia da Gama Lobo constituíram uma ampla rede familiar, ligando-se
aos mais diversos e tradicionais setores da elite paraense oitocentista. Dois dos genros daquele
casal, Bernardo de Sousa Franco e Ambrósio Leitão da Cunha, lançaram sua carreira política
no âmbito do Império. No entanto, o afastamento implicado por suas carreiras, aliado à lógica
de poder instituída pelos matrimônios, pôs em xeque dois dos elementos basilares da noção de
rede social e, consequentemente, da noção de rede familiar: a interação social e a capacidade
de mobilização em torno de um interesse comum.

Consideramos, então, que a análise da constituição de uma rede familiar em torno dos
Gama e Silva, focada unicamente no exame das suas alianças matrimoniais, dava margem a
duas interpretações distintas a respeito da efetividade dessas, assim como não possibilitava o
entendimento mais acurado sobre os processos pelos quais as famílias de elite reproduziam
sua condição social. Nesse sentido, partirmos à análise dos usos sociais do compadrio feitos
pelos Gama e Silva tanto no sentido de consolidarem uma rede familiar em torno si, tanto de
ampliá-la com a criação de uma clientela. Verificamos que, desse modo, os afastamentos de
Bernardo e Ambrósio não implicaram uma fissura na ideia de uma rede familiar em torno dos
Gama e Silva, já que, antes de suas partidas, eles arquitetaram o estabelecimento de laços de
compadrio entre si, suas famílias de origem e os membros remanescentes dos Gama e Silva
no Grão-Pará.

Paralelamente, demonstramos como a família fez uso do testemunho em casamentos e


do compadrio com o objetivo de alicerçar sua clientela. Por meio desses dois elementos, eles
formalizaram vínculos tanto com indivíduos de uma elite tradicional, quanto com indivíduos
enriquecidos pelo comércio da borracha ou prestigiados por meio do exercício de profissões
liberais mais destacadas. Além disso, não deixaram de “fornecer” testemunhas e padrinhos
181

para escravos e pessoas livres de condição social menos privilegiada. Os batismos dos cativos
serviam como um importante momento de socialização para reencontro da rede familiar dos
Gama e Silva com famílias aliadas, a quem pertenciam os escravos. Por sua vez, os batismos e
os casamentos do segundo grupo serviam para reproduzir a própria posição social da família
não mais ante seus pares, mas através de relações sociais de caráter verticalizado, importantes
no sentido de consolidar uma clientela para a família.

5.2. CASAMENTO E COMPADRIO ENTRE OS ESCRAVOS DO ENGENHO BOM INTENTO

A segunda parte deste capítulo tem como objetivo analisar o casamento e o compadrio
entre os cativos do Engenho Bom Intento, a partir do cruzamento entre os registros paroquiais
de batismo e casamento dos escravos e o inventário post-mortem do proprietário do engenho,
Joaquim Antônio da Silva.396 Almejamos cotejar as tendências de casamento e de compadrio
dessa comunidade cativa aos padrões encontrados em relação à cidade de Belém, apontando
aproximações e distanciamentos entre eles. O jogo de escalas 397 que ora propomos permite-
nos, por um lado, vislumbrar as influências estruturais e contextuais do período sobre uma
realidade particular e, por outro, matizar as tendências gerais apresentadas pela população
escrava de Belém, no que tange às temáticas em questão.

Esta análise desenvolve-se ao longo de três subseções. Na primeira delas interessa-nos


apresentar algumas características gerais (localização, importância econômica, estrutura física

396
CMA. Cartório Fabiliano Lobato (11ª Vara Cível). Inventários-post-mortem, 1862. Cx. 139. O inventário do
proprietário do Engenho Bom Intento, onde consta também o traslado do seu testamento, apresenta a descrição
de todas as posses de Joaquim Antônio da Silva. É importante destacarmos que sua escravaria, tal como nos
demais inventários paraenses da década de 1860, foi arrolada pelo sexo (primeiro os homens e depois as
mulheres), em ordem alfabética e pela geração (primeiros os escravos adultos e velhos, depois as crianças). Ao
não arrolar os cativos em função de suas famílias, o inventário inviabiliza o avanço na discussão de
determinados aspectos atinentes àquelas. Doravante, não citaremos mais o inventário em questão em notas de
rodapé. Todas as citações, indicadas no corpo do texto, remetem-se à aludida referência.
397
Os jogos de escala constituem o princípio basilar da Micro-História. A metodologia empregada pela corrente
consiste em proceder a perguntas gerais para casos particulares e, a partir da constante interação entre a micro e a
macro perspectiva, compreender aspectos globais por meio de situações e contextos específicos. Sobre a Micro-
História, sua inserção e relevância na historiografia contemporânea, bem como as críticas auferidas aos seus
pressupostos teórico-metodológicos, cf.: LIMA, Henrique Espada. A Micro-História Italiana: escalas, indícios e
singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006; REVEL, Jacques (Org.). Jogos de Escalas: a
experiência da micro-análise. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998; VAINFAS, Ronaldo. Os
protagonistas anônimos da História: Micro-História. Rio de Janeiro: Campus, 2002.
182

etc.) do Engenho Bom Intento e o perfil de sua escravaria, em função dos marcadores sociais
de gênero, geração e etnia,398 assim como da trajetória senhorial. Na segunda, objetivamos
analisar as práticas de casamento em si, com destaque às preferências matrimoniais, ao perfil
dos escravos que tiveram acesso ao casamento legítimo e aos mecanismos de reprodução dos
cativos. Na terceira e última seção, a reflexão incide sobre o compadrio, com a finalidade de
entrevermos as estratégias adotadas no processo de escolha dos padrinhos e compadres, bem
como a importância do parentesco espiritual na conformação da tessitura social presente no
seio daquela comunidade de escravos.

Convém rememorarmos que a discussão que se segue está diretamente articulada ao


restante da dissertação e que as mesmas perguntas gerais feitas, nos capítulos anteriores, sobre
o casamento e o compadrio de escravos, foram aplicadas a este caso específico. Nesse sentido,
embora a análise do Engenho Bom Intento amplie a compreensão dessas temáticas em relação
ao que foi apresentado anteriormente, optamos por não avançar com a discussão em direção a
determinados aspectos (como a estabilidade possível das famílias escravas e a importância
dos cativos na economia amazônica nos meados do Oitocentos, por exemplo) que, por mais
relevantes que possam ser, destoariam do todo deste estudo. Alguns desses aspectos foram
apenas referidos ao longo do texto de modo a ampliar a discussão desenvolvida, sem a devida
atenção que por certo mereceriam, carecendo ainda de novos estudos a respeito.

O ENGENHO BOM INTENTO: PLANTEL ESCRAVO, ESTRUTURA E COTIDIANO

O Engenho Bom Intento, propriedade do português Joaquim Antônio da Silva, estava


localizado nas margens do rio Guamá, à altura do distrito de Bujaru (cf. FIGURA 3.1). Situava-
se num ambiente predominantemente rural,399 marcado pela presença de posseiros (ainda
fruto das particularidades da colonização portuguesa na região) e pela grande concentração de

398
A historiografia que se dedica à família escrava tem destacado que o casamento e compadrio devem ser
analisados à luz da estrutura da posse de escravos. A dimensão das escravarias e suas razões de masculinidade e
africanidade são elementos que condicionam diretamente às práticas de conjugalidade, os mecanismos de
reprodução e a conformação dos laços de compadrio entre os cativos. Por isso, logo de início apresentamos o
perfil do plantel escravo do Engenho Bom Intento. Para uma discussão mais aprofundada sobre a relação entre a
posse de cativos e a família escrava, ver dentre outros: MOTTA, José Flávio. Corpos escravos, vontades livres.
Posse de cativos e família escrava em Bananal (1801-1829). São Paulo: Annablume/Fapesp, 1999.
399
O termo rural, em antagonismo ao termo urbano, foi apresentado no texto por questões explicativas.
Reconhecemos as limitações de analisar-se a realidade socioespacial do Brasil oitocentista a partir da dicotomia
rural/urbano. Ao caracterizarmos o distrito de Bujaru enquanto um espaço “predominantemente rural”, estamos
afirmando que não havia na região qualquer núcleo urbano consolidado, como Belém ou Cametá, por exemplo.
183

escravos.400 Com em torno de 250 léguas401 de extensão e delimitada pelas terras de Manoel
Joaquim Pinto da Silva e de Pedro Batista de Sousa Leal Aranha, a propriedade possuía, no
início dos anos 1860: uma casa de varanda, um oratório, um engenho, plantações de cana e
arroz, animais diversos e ranchos para moradia dos seus 157 escravos. Sob a administração de
Januário Antônio da Silva, irmão de Joaquim, o Engenho Bom Intento dedicava-se à extração
da madeira e à produção do arroz e de derivados da cana (aguardente e rapadura), como indica
o inventário do seu proprietário.
FIGURA 3.1
ENGENHOS NO ESTUÁRIO AMAZÔNICO

FONTE: MARQUES, 2004.

Na propriedade não havia senzala e os escravos habitavam em ranchos próprios para a


sua moradia. Esses “ranchos” nada mais eram do que cabanas rústicas feitas de material leve,
como a palha ou ramos de árvore. Foram, ao lado da casa principal, morada do administrador
do engenho, Januário Antônio da Silva, o único tipo de moradia especificado no inventário de
Joaquim. Nele, também não encontramos qualquer referência que pudesse indicar a presença

400
CASTRO, Edna. Terras de preto entre igarapés e rios. II Encontro da Associação Nacional de Pós-
Graduação e Pesquisa em Ambiente e Sociedade, 2004. Indaiatuba/SP. Anais... São Paulo: Associação Nacional
de Pós-Graduação e Pesquisa em Ambiente e Sociedade, 2004, 23p. Acerca das características da colonização
portuguesa na região do Baixo Tocantins, ver: ÂNGELO-MENEZES, Maria de Nazaré. Une histoire sociale des
systèmes agraires dans la vallé du Tocantins – État du Pará – Brésil: colonisation européenne dans la deuxième
moitié du XVIIIè. siècle et la première moitié du XIX è.siècle. (These de Doctorat de Troisième Cycle en Histoire
et Civilisations). Paris: EHESS, 1998.
401
O sistema de pesos e medidas do Brasil sofreu alterações no transcorrer do século XIX e diversas comissões
foram criadas com o escopo de reavaliá-lo. Assim, torna-se difícil precisarmos o significado daquelas 250 léguas
em função do sistema atual. Inclusive, no ano de conclusão do inventário de Joaquim Antônio da Silva, os pesos
e medidas brasileiros foram adequados ao sistema métrico francês. Cf.: CLIB. Lei 1.157 de 26 de junho de 1862.
184

de pessoas livres morando no Bom Intento. Na descrição dos “ranchos”, que poderiam servir
de moradia a esses indivíduos, especificou-se que eles se destinavam somente para a moradia
dos cativos. Do mesmo modo, a descrição da casa principal também não faz qualquer alusão a
espaços destinados à população livre, que não ao próprio Januário.

Todavia, a interação entre os escravos da propriedade e a população livre que morava


na região era relativamente contínua, assim como a sua interação com os cativos de outros
plantéis. Robustecendo a hipótese aventada nos dois capítulos anteriores, o Bom Intento fazia
as vezes de igreja em uma região onde a estrutura eclesiástica não era tão bem organizada e
presente. Com isso, a propriedade ajudava a sedimentar a base clientelista de poder local de
Januário Antônio da Silva tanto em relação à população livre pobre, como em relação aos
demais escravistas da região do Bujaru que, outrossim, faziam uso do oratório do engenho.402
A realização dos “eventos vitais” no oratório do Bom Intento configurava-se em verdadeiras
cerimônias coletivas que contavam com a presença de indivíduos das mais distintas condições
sociais.

A realização dos ritos batismais e nupciais na propriedade era condicionada por certa
distinção hierárquica. Em alguns dias, ocorriam separadamente os batizados e os casamentos
de pessoas de uma condição social mais elevada, muitas delas próximas a Januário Antônio da
Silva. Envolviam, por exemplo, os filhos e os netos de Manuel Joaquim de Paiva e Pedro Leal
Aranha, proprietários das terras vizinhas ao Bom Intento, que tinham Januário como padrinho
de batismo ou testemunha de casamento. Em outros dias, era a vez de batizar-se e casar-se os
cativos do Bom Intento, de propriedades vizinhas e os livres da região. Esses eventos, por sua
vez, deveriam passar pela sanção de Januário Antônio da Silva. Muito dificilmente fariam uso
do oratório do engenho indivíduos cuja presença desgostasse a seu administrador.

Mais numerosas e corriqueiras, as cerimônias coletivas de batizado e de casamento do


segundo grupo (escravos do engenho, de demais proprietários e da população livre da região)
apresentavam uma sazonalidade característica, por certo influenciada pela dinâmica produtiva
e econômica do Engenho Bom Intento. Como boa parte dos engenhos do estuário amazônico,
o Bom Intento tinha a água das marés e das chuvas como força motriz. Indícios arqueológicos
têm ajudado a esclarecer a lógica desse mecanismo. Muitas vezes situados à margem de rios
ou igarapés caudalosos, os engenhos locais tinham um complexo sistema compartimentado de

402
KUZNESOF, Elizabeth Anne. A família na sociedade brasileira, op. cit., p. 41.
185

canais, análogos às atuais eclusas, que os punha para funcionar. 403 Embora se apropriassem
ainda da pluviosidade, eram as águas das marés que concebiam de fato o seu funcionamento.
Quanto mais altas as marés, maior seria a sua produtividade.

Considerando que na região de Bujaru o período de maior maré vai de outubro a abril
ou maio de cada ano, é absolutamente compreensível a aglutinação de cerimônias entre junho
e setembro. Deixava-se para batizar-se ou casar-se no período em que o engenho era menos
produtivo. Nesse interstício menos fecundo na produção do arroz e dos derivados da cana, a
preferência por meses ou por dias para a realização das cerimônias poderia estar relacionada,
também, aos períodos de visita pastoral ao Engenho do Bom Intento. Essa propriedade não se
destacava, entretanto, apenas como um local para batismos e casamentos das populações livre
e escrava da região, mas, de igual maneira, como uma importante unidade produtiva na zona
Guajarina e do Baixo Tocantins.

Em meio aos demais estabelecimentos agrícolas e manufatureiros da região de Bujaru,


cuja dinâmica econômica era lastreada, em grande medida, pelo escravismo, o Engenho Bom
Intento sobressaía-se por toda sua expressividade econômica e seu grande plantel.404 Formava
juntamente a outros engenhos, sítios e fazendas, a paisagem característica daquela região, que
contrastava com todo um universo de pequenos sitiantes que rompeu “com a tendência de
monocultivo e ordenaram [sic] um sistema de policultivo (mandioca, arroz, milho, feijão,
algodão, café e outros) em pequenas extensões de terra com tendência à dispersão e que [...]
[mantinha - DSB] vínculos regulares com o mercado”.405

A propriedade evidencia, igualmente, a importância que ainda mantinha o escravismo


como esteio produtivo na agricultura da província, num período já marcado pela consolidação
da borracha enquanto o principal produto de exportação do Grão-Pará. Embora se trate de um
caso específico, é um indicativo a mais no sentido de demonstrar que a escravidão negra na
Amazônia, assim como as principais atividades econômicas para as quais ela servia de mão-
de-obra – a agricultura e a pecuária –, não necessariamente perdeu força (ou deixou de existir,

403
MARQUES, Fernando Luiz Tavares. Modelo da agroindústria canavieira colonial no estuário amazônico:
estudo arqueológico de engenhos dos séculos XVIII e XIX. (Tese de Doutorado em História). Porto Alegre:
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2004.
404
Cf.: CASTRO, Edna. Terras de preto..., op. cit.
405
Ver: ACEVEDO MARIN, Rosa. Camponeses, donos de engenhos e escravos na região do Acará nos
séculos XVIII e XIX. In: Papers do NAEA, Belém, 2000. (Disponível em www.ufpa.br/naea/pdf_tcc.php?id=65,
acessado em 23 de setembro de 2011).
186

como já se sugeriu) com a ampliação e o fortalecimento da “economia da borracha”; um tema


que merece estudos mais detalhados.406

O plantel do Engenho Bom Intento era composto por 157 escravos, dos quais 15 foram
alforriados pelas disposições testamentárias de Joaquim Antônio da Silva. Contextualmente
tratava-se de uma escravaria de grandes proporções. Entretanto, como veremos de agora em
diante, havia poucos escravos em idade produtiva, um número pequeno de especializados em
algum ofício e uma quantidade razoável “quebrados”, “aleijados” ou “doentes”. Além disso, a
população escrava do engenho apresentava uma alta razão de dependência total. Todos esses
elementos, somados, tinham por certo implicações diretas na produtividade econômica do
Engenho Bom Intento e poderiam condicionar, de múltiplas formas, os arranjos matrimoniais
e as escolhas dos compadres no seio daquela comunidade escrava.

Dos 142 cativos remanescentes, 65 eram do sexo masculino e 77 do feminino. A razão


de sexo407 do plantel era portanto de 84,4; um patamar relativamente baixo, principalmente ao
considerarmos a dimensão da escravaria, sua localização num meio predominantemente rural
e a principal atividade econômica da propriedade, mas que, grosso modo, era proporcional à
razão de masculinidade da região em que se achava.408 A proporção entre homens e mulheres
escravos do engenho variava de acordo com os grupos etários. Entre os jovens (0 a 14 anos), a
razão de sexo era de 71,4; entre os adultos (15-49 anos), de 50; e entre os mais velhos (50 ou
mais anos), de 164,7.

A nosso ver, essas oscilações na proporção entre os sexos em consonância aos grupos
etários dizem respeito a dois fatores intervenientes: o tráfico de escravos e a mortalidade. A

406
A manutenção da agricultura e da pecuária como importantes atividades econômicas do Pará, no período de
consolidação da economia da borracha, já foi demonstrada com clareza por Luciana Marinho. Mas, a nosso ver,
autora deu pouca importância aos escravos como mão-de-obra nesses setores. Entendemos que a importância dos
cativos enquanto um fator econômico de produção no aludido contexto ainda carece de estudos mais específicos.
BATISTA, Luciana Marinho. Muito além dos seringais, op. cit.
407
A razão de sexo indicada é uma razão de masculinidade. Considera, portanto, o número de homens para cada
grupo de 100 mulheres. Existe também uma razão de feminilidade, não usada neste estudo, e que corresponde à
razão inversa (o número de mulheres para cada 100 homens).
408
O Recenseamento de 1872 indica para a população escrava de Santana de Bujaru uma razão de sexo na casa
dos 90. Além disso, evidencia também uma representativa quantidade de escravos “jovens”, sendo a aglutinação
de “velhos” uma particularidade do Engenho Bom Intento. Aparentemente, esse perfil com um maior número de
mulheres em idade adulta foi a tônica das escravarias do Pará nos meados do século XIX, como apresentou
Luciana Marinho em sua pesquisa. Ver: BATISTA, Luciana Marinho. Muito além dos seringais, op. cit.. Se de
fato isso estiver correto, o perfil dos plantéis da região diferia-se bem dos seus correspondentes, por exemplo, no
agreste e no sertão de Pernambuco ou na zona rural da cidade de São Paulo, no mesmo período. A respeito
dessas outras realidades, ver respectivamente: MELLO, Zélia Cardoso de. Os escravos nos inventários
paulistas da segunda metade do século XIX. In: BARRETO, Antônio Emílio Muniz (Org.). História
Econômica: Ensaios. São Paulo: IPE/USP, 1983, pp. 59-104; VERSIANI, Flávio Rabelo & VERGOLINO, José
Raimundo Oliveira. Posse de escravos e estrutura da riqueza no agreste e sertão de Pernambuco: 1777-
1887. In: Estudos Econômicos, São Paulo, 33(2), abril-junho/2003, pp. 353-393.
187

predominância feminina nos dois primeiros grupos (0-14 e 15-49 anos) indica claramente uma
evasão de cativos que, acrescida à mortalidade da população escrava, concebeu uma diferença
de contingente entre os sexos dentre esses grupos etários. Não podemos deixar de considerar,
principalmente no que é atinente à questão da evasão, o papel desfavorável associado ao Pará
como um fornecedor de peças no tráfico interprovincial, em especial a partir da interdição do
tráfico Atlântico em 1850.409 No caso da preponderância masculina no terceiro grupo etário, é
possível que a diferença de contingentes fosse decorrente de uma maior mortalidade entre as
mulheres, que poderia estar relacionada tanto às suas condições de trabalho (no Engenho Bom
Intento as mulheres deveriam exercer um papel produtivo ainda mais importante dada a quase
ausência de homens em idade adulta), quanto a complicações com o parto, por exemplo.

A respeito da estrutura etária do plantel escravo do Engenho Bom Intento, vejamos o


gráfico abaixo (GRÁFICO 3.1):

GRÁFICO 3.1
PIRÂMIDE SEXO-ETÁRIA DA ESCRAVARIA DO ENGENHO BOM INTENTO
70 ou mais anos
65-69 anos
60-64 anos
55-59 anos
50-54 anos
45-49 anos
40-44 anos
35-39 anos
30-34 anos
25-29 anos
20-24 anos
15-19 anos
10-14 anos
5-9 anos
0-4 anos
-25% -20% -15% -10% -5% 0% 5% 10% 15% 20%

Homens Mulheres

FONTE: Inventário post-mortem de Joaquim Antônio da Silva

409
Por mais que a historiografia tradicional associe ao Pará um papel de fornecedor no tráfico interprovincial de
escravos, essa perspectiva já foi matizada desde a década de 1870, pela importante estudo de Robert Slenes. Em
sua tese de doutoramento, o autor observou que o Grão-Pará também havia se tornado um interesse mercado
para os cativos saídos do Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba. Ademais, a província também destacava-
se pelo alto preço pago pelos escravos ingressos, tal como o Maranhão, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia.
Cf.: SLENES, Robert. The demography and economics of Brazilian slavery: 1850-1888. (PhD. Thesis in
History). Stanford: Stanford University, 1976.
188

A pirâmide sexo-etária (GRÁFICO 3.1) evidencia tanto entre os homens, quanto entre
as mulheres, uma concentração nas idades mais altas e baixas. Se tomarmos como parâmetro
de escravos jovens os menores de 15 e de escravos velhos aqueles maiores de 50 anos, 410 tem-
se um quadro em que cerca de 70% dos homens e 55% das mulheres cativos da propriedade
eram jovens ou velhos, categoria última na qual se incluíam todos aqueles de origem africana.
Esse perfil tinha, como destacamos, implicações diretas na extração da madeira e na produção
do arroz e derivados cana no Bom Intento, uma vez que os escravos pretensamente inativos
do ponto de vista econômico (ou seja, aqueles jovens ou velhos) eram em maior número do
que os cativos economicamente ativos, perfazendo uma considerável razão de dependência
total, na casa dos 190.411

O desenho do GRÁFICO 3.1 sinaliza, igualmente, para uma alta natalidade e uma baixa
mortalidade entre os escravos daquela propriedade. A grande quantidade de velhos, em idades
chegavam até os 80 anos, pode ser considerada enquanto um indicativo de uma mortalidade
relativamente baixa. Já a alta natalidade é sugerida pelo também grande número de jovens
(particularmente de crianças) existente no plantel e pela elevada razão-criança de 1187,5 – um
índice comparável às suas correspondentes para outras regiões do Império que, a exemplo do
Grão-Pará, dependiam quase que essencialmente da reprodução endógena das escravarias.412
Tanto a baixa mortalidade, como a alta natalidade, destoam daquilo que Maria Luiza Marcílio
conceituou como sendo o sistema demográfico da população escrava no Brasil oitocentista.413

410
A classificação dos escravos acima dos 50 anos como “velhos” foi proposta por José Flávio Motta para o caso
da província de São Paulo. Em termos produtivos e em face das características particulares da escravidão na
Amazônia, é possível que esse patamar tenda a ser majorado. De todo modo, neste trabalho, adotamos como
parâmetro a classificação proposta pelo autor. Ver: MOTTA, José Flávio. O tráfico de escravos velhos
(Província de são Paulo, 1861-1887). In: História: Questões & Debates, Curitiba, 52, jan.-jun./2010, pp. 41-73.
411
A razão de dependência total é um conceito caro à Economia e à Demografia, muito utilizado na análise das
populações economicamente ativa e dependente. Calcula-se enquanto a razão entre a população economicamente
dependente (0-14 anos / 65 ou mais anos) e a economicamente ativa (15-64 anos), vezes 100. É importante
destacar que as faixas etárias tomadas na fórmula dissonam dos grupos etários adotados neste estudo. Ainda
assim, optamos por adotá-las sem alterações, para que não se perca a possibilidade de comparação entre essa e
outras realidades. Não obstante, entendemos que se trata de uma razão que deve ser relativizada, particularmente
quando se atém à população cativa.
412
A razão criança-mulher é tomada como um indicativo da natalidade, sendo bastante utilizada em trabalhos
sobre escravidão que tenham por fonte listas nominativas e inventários post-mortem. A razão remete-se ao
número de mulheres em idade reprodutiva (15-49 anos) existente para o número de crianças (0-9 anos), vezes
1000. As faixas etárias das mulheres em idade reprodutiva e das crianças variam de pesquisa para pesquisa. Em
seu estudo sobre Mariana, Heloísa Teixeira verificou um aumento na razão criança-mulher entre o final da
década de 1850 e o início do decênio de 1860, provavelmente decorrente da proibição definitiva do tráfico
Atlântico. A autora verificou que, nesse período, os planteis com mais de 20 escravos apresentavam também
uma alta razão criança-mulher, na casa dos 1.300, o mesmo patamar verificado em relação ao sul dos Estados
Unidos. Cf.: TEIXEIRA, Heloísa Maria. Família escrava, sua estabilidade e reprodução em Mariana, 1850-
1888. In: Afro-Ásia, Salvador/BA, 28, 2002, pp. 179-220.
413
Em clássico artigo, já referido anteriormente, Maria Luiza Marcílio delineou as linhas gerais de sistemas
demográficos que coexistiram nos Brasil oitocentista. O que a autora classificou como o “Sistema demográfico
189

Embora o perfil dos escravos de Joaquim Antônio da Silva, em função do gênero e da


geração, concorresse em certa medida com o perfil das escravarias das regiões do Bujaru e do
Acará, não podemos deixar de analisar a estrutura etária dos cativos do Engenho Bom Intento
sob sua ótica particular – intimamente associada às próprias trajetórias de vida de Joaquim e
Januário Antônio da Silva. Nesse sentido, o perfil envelhecido de parte do plantel e a rarefeita
quantidade de escravos do sexo masculino, em idade adulta, não podem ser lidos apenas à luz
de um “enquadramento contextual”, mas, outrossim, como aspectos diretamente relacionados
à trajetória e ao ciclo de vida do então proprietário do Engenho Bom Intento, o que torna a
experiência analisada um caso ainda mais singular.

É provável que o estado de envelhecimento de parte do plantel, indicado no GRÁFICO


3.1, seja decorrente, também, do processo de envelhecimento de Joaquim Antônio da Silva.414
Haveria, então, uma associação entre o ciclo de vida da escravaria e o do senhor. Ao falecer
em julho de 1861, Joaquim tinha 77 anos de idade, doze a mais que Januário.415 Eram, ambos,
da mesma geração que grande parte dos seus escravos. Com o chegar da idade e, sobretudo,
com sua partida definitiva para Lisboa em 1834 (deixando, desde então, a administração do
Engenho Bom Intento a cargo de Januário), é possível que a capacidade de Joaquim Antônio
em renovar o seu plantel tenha se atrofiado gradualmente, e não só por questões econômicas.

das populações escravas” era marcado pelas baixas taxas de fecundidade de nupcialidade, e pelas altas taxas de
mortalidade. Segundo Marcílio, as populações escravas também tenderiam ao desequilíbrio nas razões de sexo
em prol dos homens e teriam o seu crescimento vegetativo normalmente negativo, só contornado pela reposição
das peças por meio do tráfico. Embora a própria autora reconheça tratar-se apenas de um esquema inicial, ainda
passível de revisão, alguns dos seus aspectos, em especial no que tange à dinâmica demográfica da população
escrava, devem ser relativizados na realidade paraense. Entre o início do século XIX e a década de 1870, o
contingente escravo da província do Grão-Pará manteve-se pouco alterado, muito em função da reprodução
endógena dos plantéis. Cf.: MARCÍLIO, Maria Luiza. Sistemas demográficos no Brasil do século XIX. In:
MARCÍLIO, Maria Luiza (Org). População e Sociedade: evolução das sociedades pré-industriais. Petrópolis:
Editora Vozes, 1984, pp. 193-207.
414
Para um aprofundamento na discussão sobre a relação entre os ciclos de vida dos plantéis e dos senhores, ver:
COSTA, Iraci Del Nero. Nota sobre ciclo de vida e posse de escravos. In: LUNA, Francisco Vidal et. alli.
(Orgs.). O escravismo em São Paulo e Minas Gerais. São Paulo: EDUSP, Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2010, pp. 441-447.
415
Os registros de batismo de Joaquim e Januário Antônio da Silva constantes no acervo do Arquivo Nacional da
Torre do Tombo, em Portugal, nos foram gentilmente enviados pelo Prof. Dr. João Ramalho Cosme, a quem
agradecemos de antemão. Por meio deles sabemos que os irmãos, filhos legítimos de José Joaquim Figueiredo e
Maria Teodora, foram batizados na freguesia do Castelo, Sertã, na cidade de Lisboa. O primeiro no dia 04 de
março de 1785 e o segundo, no dia 02 de abril de 1797. No mesmo acervo, consta também o registro de óbito de
Joaquim. “Proprietário” e viúvo de d. Maria da Assunção, ele faleceu aos 77 anos de idade no dia 02 de julho de
1862, recebendo todos os sacramentos. ANTT. Paroquiais do Distrito de Castelo Branco, Freguesia do Castelo,
Sertã, Baptismos, Livro 05, fl. 104 (v); ANTT. Paroquiais do Distrito de Castelo Branco, Freguesia do Castelo,
Sertã, Baptismos, Livro 06, fl. 64; ANTT. Paroquiais, Freguesia Nossa Senhora da Lapa, Óbitos, Livro 04, fl.
264(v), Reg. nº 59.
190

Devemos considerar, igualmente, que Joaquim era viúvo e não possuía filhos, o que pode ter
ocasionado, por sua parte, uma perda de interesse na aludida renovação.416

Além disso, também não podemos deixar de considerar que os meados do século XIX
representaram um contexto marcado pela intensificação no controle e pela extinção do tráfico
Atlântico, fatores que podem ter acrescentado ainda mais dificuldades a um hipotético esforço
de renovação da escravaria do Engenho Bom Intento. Ademais, não apenas é possível que
tenha havido empecilhos para a efetivação desse esforço, como Joaquim e Januário podem ter
acabado por perder cativos no tráfico interprovincial, tornando-se ainda mais dependentes da
reprodução endógena dos escravos que permaneceram na propriedade. Levando em conta que
a importação de cativos pelo Sul e pelo Sudeste priorizava os homens em idade produtiva,417
o provável movimento de refluxo dos escravos do engenho pode justificar a pouca quantidade
de homens adultos em sua escravaria já no limiar dos anos de 1860.

No entanto, as intempéries relacionadas à dinâmica do tráfico de escravos, no caso do


Engenho Bom Intento, aparentemente foram anteriores ao período analisado. Um indicativo,
nesse sentido, é a presença quase inexistente de “africanos” no plantel. No início da década de
1860, segundo o inventário de Joaquim Antônio da Silva, havia tão-somente cinco escravos
(um homem e quatro mulheres) de origem africana na escravaria. Deles a mais nova, a cativa
Catarina Angola tinha cerca de 50 anos de idade. Todos os outros possuíam 70 ou mais anos.
Considerando que os cativos “africanos” eram comprados ordinariamente em idade produtiva,
é provável que os últimos cativos da África tenham aportado na propriedade até o limiar dos
anos de 1830, em um dos últimos navios negreiros destinados à província do Grão-Pará.418 E,

416
Os engenhos eram, do ponto de vista produtivo, unidades indivisíveis. Dada essa particularidade, constituíam
um problema real no momento da transmissão dos bens via herança, que não ocorreu no caso analisado pelo fato
de haver um herdeiro universal. Em Senhores da Terra, Carlos Bacellar verificou que, frente à impossibilidade
de fracionamento dos engenhos, três mecanismos eram usados para contornar o problema e conciliar os
interesses dos herdeiros: 1) o engenho era entregue somente a um herdeiro, sendo os demais compensados com
outros bens; 2) o engenho era repartido entre todos os herdeiros, como em uma sociedade, com administração
conjunta e lucros repartidos entre as partes; 3) o engenho era partilhado entre todos os herdeiros que, em seguida,
vendiam suas partes a um único herdeiro. Cf.: BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os Senhores da Terra:
família e sistema sucessório entre os senhores do Oeste Paulista, 1765-1855. Lógica igualmente interessante
ocorria com os senhores viúvos ou solteiros sem herdeiros descendentes. Robert Slenes verificou que, nessas
situações, os proprietários não apenas deixaram de renovar suas escravarias, como também acabavam libertando
seus cativos ao final de sua vida. Um comportamento semelhante ao que ocorreu com Januário Antônio da Silva.
Ver: SLENES, Robert. Senhores e subalternos no Oeste Paulista. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de (Org.).
História da Vida Privada no Brasil, v. 2: Império, a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das
Letras, 2010 [1997], pp. 266-267.
417
SLENES, Robert. The demography and economics of Brazilian slavery, op. cit.
418
De acordo com Vicente Salles, o último navio negreiro aportou no Pará em 1834, rompendo com o comércio
direto com as praças da África. Nos anos seguintes, ainda segundo o autor, a importação de cativos de outras
províncias brasileiras continuou, estimulada pela isenção de direitos fiscais, até as vésperas da assinatura da Lei
191

desde lá, que a manutenção dessa escravaria tenha passado a depender, basicamente, de sua
autorreprodução.

O CASAMENTO

O estado da arte da escravidão na Amazônia, nos meados do Oitocentos, praticamente


condicionava a manutenção da escravatura local a sua autorreprodução. Com a rearticulação
do escravismo levada a efeito pela proibição definitiva do tráfico Atlântico e a incapacidade
das elites locais em proceder a uma renovação efetiva na escravaria da província do Pará por
intermédio do tráfico interprovincial, fazia-se necessário fomentar a reprodução endógena dos
cativos. Tratava-se de uma reprodução demográfica, e também de caráter social, que embora
perpassasse pela instituição familiar, não dependia fundamentalmente do matrimônio para
concretizar-se. Uma primeira resposta àquela rearticulação, muito provavelmente orquestrada
por parte dos escravistas paraenses, foi evidenciada pelo aumento quase que instantâneo da
taxa bruta de nupcialidade da população escrava em Belém.419

O padrão de casamento dos cativos do Engenho Bom Intento coadunava-se, em seus


aspectos basilares, com as tendências de casamento de escravos verificadas relativamente à
cidade de Belém. No engenho, os enlaces eram igualmente marcados pela endogamia social e
“étnica”: os escravos casavam-se entre si, respeitando os limites do plantel e, na medida do
possível, a correspondência “metaétnica”.420 Sem considerar a ocorrência de subregistros,421
pesquisamos, entre os anos de 1840 e 1870, um total de vinte e cinco assentos de casamento
envolvendo cativos do Bom Intento, que nos servirão de base para análise. Em todos os casos
arrolados, ambos os noivos eram escravos do próprio engenho.

Áurea. . SALLES, Vicente. O negro no Pará sob o regime da escravidão. Belém: Instituto de Artes do Pará,
2005 [1971], p. 76.
419
Como apresentamos no primeiro capítulo deste trabalho, a taxa bruta de nupcialidade da população escrava de
Belém apresentou um expressivo aumento entre o final da década de 1840 e o início dos anos 1850, com uma
tendência à estabilização a partir do primeiro lustro dos anos 1870. Em 1848, a taxa foi 0,93; em 1854, 3; em
1862, 1,66; em 1872, 1,72. Sugerimos, na ocasião, tratar-se de um incentivo à nupcialidade escrava decorrente
da proibição do tráfico Atlântico. Ver: CAPÍTULO I, p. 49.
420
Como também já destacamos, as “nações” escravas não corresponderiam necessariamente a sua origem
étnica, mas, sobretudo, a sua origem “metaétnica”, associada à região dos portos de procedência dos cativos.
Para uma discussão mais aprofundada a respeito, ver: CAPÍTULO I, p. 65, nota 178.
421
Através dos assentos batismais, observamos haver casos de subregistros de casamentos dos escravos do Bom
Intento. Pelo fato de a análise proposta incidir nos padrões de casamento daquela comunidade escrava, optamos
por não considerá-los em meio à discussão.
192

A partir do cruzamento entre os registros paroquiais de casamento, os de batismo e o


inventário post-mortem de Joaquim Antônio da Silva conseguimos ir muito além dos aspectos
elencados no parágrafo anterior. O diálogo entre esses diferentes tipos de fonte fez emergir
realidades multifacetadas, praticamente imperceptíveis nas atas de matrimônio, e que nos
possibilitam vislumbrar muitos dos sentidos e dos significados atribuídos ao casamento no
seio da comunidade escrava do Engenho Bom Intento. A articulação entre casos particulares –
como o enlace entre os cativos Domingos e Juliana – e as tendências de casamento do plantel
e da cidade de Belém, norteia o empreendimento de um novo esforço de compreensão do que
foi casamento entre escravos no Grão-Pará oitocentista.

No dia 19 de agosto de 1841, o cativo Domingos Dias, filho de pais incógnitos, casou-
se com Juliana Joaquina, filha legítima dos também escravos Joaquim e Joaquina Maria. A
cerimônia teve enquanto testemunhas os cativos José e Joana Batista, seus companheiros de
cativeiro.422 Por meio do registro do enlace sabemos apenas que, naquela distante quinta-feira,
contraíram matrimônio, em primeiras núpcias, dois escravos de um mesmo senhor; ele filho
legítimo e ela, filha ilegítima. Também podemos conjecturar que Domingos e Juliana não
eram de origem africana e que a família da noiva (ela era fruto de uma união legitimada) já
estava estabelecida na escravaria há algum tempo. Mas, cotejando esse registro ao inventário
abrem-se outras instigantes possibilidades de análise.

A primeira delas é concernente a uma questão geracional. Descobrimos que, na época


do casamento, Domingos possuía entre 40 e 50 anos. Juliana, provavelmente falecida, não foi
arrolada nos bens, porém a idade de sua mãe pode ser um indício. Se Joaquina Maria tinha em
torno de 50 anos quando do consórcio de sua filha, podemos concluir que Juliana era mais
nova que Domingos. A segunda possibilidade diz respeito à prática de um ofício. O inventário
indica que Domingos era carapina, uma espécie de carpinteiro de construções rurais diversas,
de grande importância para o funcionamento de engenhos. Além disso, o documento permite-
nos assegurar, ainda, que Domingos e Juliana eram de origem crioula. De que modo esses três
marcadores (geração, ofício especializado e naturalidade) poderiam conformar as práticas de
casamento no Engenho Bom Intento? Eram características específicas desse casal ou faziam
parte das tendências mais gerais de matrimônio na propriedade?

Assim como Domingos Dias, grande parte dos escravos homens do engenho casava-se
em idades geralmente superiores aos 40 anos. Sete em cada dez nubentes haviam ultrapassado
esse patamar ao terem acesso ao primeiro casamento. Inclusive, a maioria deles já possuía 50
422
ACMB. Livro I de Registros de Casamento do Curato da Sé de Belém, p. 05(v).
193

ou mesmo 60 anos à época do matrimônio. Os outros três de cada dez nubentes casaram-se
com menos de 40 anos, em idades que variavam, mas que nunca foram inferiores aos 20 anos.
Comparativamente, as idades das mulheres à altura do primeiro casamento eram menores,
porém mais diversificadas, em alguns casos evidenciando a preocupação com o seu período
fértil.423 Não pode ser aferido um padrão nesse sentido. Vitória e Venância, as mulheres mais
jovens a subir ao altar, tinham entre 15 e 20 anos de idade. Joaquina Maria Bibiana, a mais
velha, possuía aproximadamente 60 anos de idade à altura do seu enlace, mas já se casava em
segundas núpcias.

Nesse bojo, a diferença etária entre os cônjuges oscilava muito mais em função das
idades das noivas (variáveis) do que das idades dos noivos (relativamente mais constantes).
Essa tendência dos homens casarem-se com mais e as mulheres com menos idade, que foi a
tônica dos matrimônios no Engenho Bom Intento, sugere que a articulação dos enlaces no
plantel perpassava por um evidente recorte geracional. Na experiência analisada, os homens
entravam mais tarde, no entanto permaneciam por mais tempo no mercado matrimonial. As
mulheres, por seu turno, tinham acesso ao casamento mais jovens, porém saíam mais cedo do
mercado matrimonial.

Também como Domingos, que era carapina, uma parcela significativa dos homens que
tiveram acesso ao matrimônio possuía um ofício. Para um escravo, ser carpinteiro, pedreiro
ou ferreiro significava ser uma mão-de-obra especializada, que exprimia sua valorização não
apenas em termos econômicos,424 mas também no âmago das relações sociais estabelecidas no

423
As escravas do Engenho Bom Intento davam à luz em idades que variavam, geralmente, dos 15 aos 30 anos.
A ausência de registros de óbito e a possível existência de subregistros de batismo atinentes aos cativos do
plantel, não nos permitem calcular com precisão os intervalos genésicos desse grupo. Um período de quatro anos
entre um nascimento e outro poderia, por exemplo, dar a impressão equivocada de um intervalo mais extenso;
quando, na verdade, o interstício entre uma concepção e outra pode ter sido “falseado” por limites documentais.
Mesmo assim, feitas as devidas ressaltas, verificamos um intervalo médio de dois a três anos entre cada
nascimento, durante um período variável; variação essa que não pode ser mensurada neste estudo, visto que a
baliza temporal do mesmo compreende somente trinta anos, ou seja, pouco mais de uma geração. Em que pesem
outros fatores, muito provavelmente esse intervalo estava associado a um maior ou menor tempo de lactância.
Não obstante, como vem sendo verificado em outras pesquisas, é possível que existisse uma relação direta entre
o intervalo genésico e a geração: quanto maior a idade das escravas, maior o intervalo entre um nascimento e
outro. A estimativa dada assemelha-se bastante aos intervalos genésicos encontrados para as populações cativas
de outras regiões da América Latina. Aisnara Diaz e María Fuentes se depararam com um intervalo médio de
dois anos para as escravas de Santiago de Cuba, no país homônimo. Por sua vez, Manolo Florentino e José
Roberto Goés encontraram um intervalo médio de três anos entre as crioulas da escravaria de Manoel de Aguiar
em Bananal, São Paulo; um padrão que também era parecido àquele apresentado pelas cativas do sul dos Estados
Unidos. Ver: DÍAZ, Aisnara P. & FUENTES, María M. Esclavitud, familia y parroquia en Cuba. Otra
mirada desde la microhistoria. In: Revista Mexicana de Sociología, Ciudad de México, 68(1), enero-
marzo/2006, pp. 137-180; FLORENTINO, Manolo & GOÉS, José Roberto. A paz das senzalas: famílias
escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro. c.1790-.c1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: 1997.
424
Os critérios de avaliação dos escravos do Engenho Bom Intento foram praticamente os mesmos adotados nos
inventários paulistanos da segunda metade do século XIX, analisados por Zélia Cardoso de Mello. Notamos que
194

seio do plantel. No arrolamento dos cativos do Engenho Bom Intento, feito por ocasião do
inventário post-mortem de Joaquim Antônio da Silva, somente os homens foram classificados
como detentores ou não de um ofício, o que não nos possibilitou traçar um paralelo, quanto a
esse aspecto, com as mulheres da escravaria.425

O terceiro aspecto que influenciava o casamento legítimo na propriedade era a origem


africana ou crioula dos cativos. A origem dos escravos não era determinante na conformação
dos enlaces, haja vista a parca presença de cativos “africanos” na escravaria do Engenho Bom
Intento. Por mais que os poucos “africanos” tenham procurado pela endogamia metaétnica, o
maior impacto da naturalidade no delineamento dos arranjos matrimoniais entre os escravos
da propriedade reside, no nosso entendimento, no fato de os crioulos provavelmente estarem
estabelecidos há mais tempo na comunidade, o que, em tese, permitiria a cunhagem de um
conjunto de inter-relações mais consolidado. Retomaremos essa questão mais adiante.

Os três aspectos elencados (geração, ofício e naturalidade) podem ser considerados um


indício das inter-relações que permeavam o casamento legítimo no Bom Intento. Uma maior
idade e o capital simbólico referente à especialização em um ofício, somados a outros fatores,
ajudavam os escravos a demarcar seus lugares dentro da hierarquia social da escravaria. Não
obstante, poderiam encorpar o próprio poder de barganha dos cativos perante o senhor. Nesse
sentido, eram elementos que acabavam por consubstanciar, mesmo dentro de um grupo social
específico, marcas distintivas da posição social diferenciada de determinados indivíduos.

Consoante Sílvia Lara, essa diferenciação social se plasmava: “através de critérios que
envolviam tanto a dinâmica das relações específicas que [os escravos - DSB] mantinham entre
si quanto a de suas inserções num universo mais amplo de outras relações”. 426 Os elementos
demarcadores do lugar social dos cativos eram, portanto, complementares e atuavam de forma
articulada em relação ao senhor e à própria comunidade escrava. A especialização num ofício,

havia uma relação entre o preço dos cativos e, em primeira instância, o gênero e a geração; e, em segunda
instância, a aptidão ao trabalho (principalmente o especializado) e a possibilidade de reprodução (no caso das
mulheres). Nesse sentido, eram mais valorizados os escravos homens especializados em ofícios e em idade
adulta e as mulheres adultas com menor idade, aptas à procriação. Quanto mais novos ou velhos os cativos,
menor a sua avaliação. Ademais, alguns outros aspectos, como as “doenças” ou as “deficiências físicas”, também
diminuíam o seu valor. Para uma discussão mais sofisticada sobre a questão, ver: MELLO, Zélia Cardoso de. Os
escravos nos inventários paulistanos..., op. cit., pp. 83 e ss.; GARAVAZO, Juliana. Riqueza e Escravidão no
Nordeste Paulista: Batatais, 1851-1887. (Dissertação de mestrado em História Econômica). São Paulo:
Universidade de São Paulo, 2006, pp. 173-192.
425
Cerca de um terço dos homens do plantel possuía ofício. Grande parte deles já se enquadrava no grupo etário
dos “velhos”. Embora haja na historiografia referências ao trabalho especializado das mulheres escravas, esse
acabava por ser, em grande medida, inviabilizado. Basta observarmos, por exemplo, os dados do Recenseamento
de 1872. De acordo com a fonte, as cativas de Belém trabalhavam somente como costureiras ou lavradoras.
426
LARA, Sílvia Hunold. Campos da Violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro (1750-
1808). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 351.
195

a maior idade e o pertencimento a um grupo (como uma família, por exemplo) estabelecido
no plantel há gerações eram alguns dos aspectos que ajudavam a moldar a posição social de
alguns sujeitos na hierarquia interna da escravaria. O prestígio em meio à comunidade escrava
ainda se constituía, contudo, em função de mais um elemento que ainda não consideramos: a
possibilidade de uma maior autonomia galgada por determinados cativos, ensejada tanto pelas
relações que os cativos mantinham com o senhor, como pela prática de um ofício.427 Vejamos
o caso dos escravos Manoel Carlos e Felipa Maria.

Em setembro de 1868, no oratório do Engenho Bom Intento, contraíram casamento os


escravos Manoel Carlos, filho legítimo de Antônio Pedro e Francisca Libânia, e Felipa Maria
das Dores, filha natural de Marcelina Maria de Nazaré. O consórcio teve como testemunhas
dois antigos companheiros de cativeiro: os agora forros José Joaquim e Alberto Germano. 428
No mesmo dia, casou-se ainda outra filha de Marcelina Maria, de nome Maria da Bênção,
com o cativo Pedro Antônio, filho de Gregória Maria. 429 Deixemos esse segundo casamento
para mais adiante. Manoel Carlos, especializado em calafetagem, foi um dos poucos escravos
a ter acesso ao matrimônio antes dos 40 anos de idade. O ofício de calafate, combinado à sua
idade e à ausência a quaisquer referências a problemas físicos ou de saúde, fizeram dele o
cativo mais valorizado da escravaria. Quando do arrolamento dos escravos do Bom Intento,
Manoel foi avaliado em cerca de 800 mil réis.

Três aspectos em particular ajudam-nos a mapear a posição de Manoel Carlos dentro


de hierarquia social do plantel do engenho. O primeiro remete-se ao fato de Manoel ser filho
legítimo, o que pode ser tomado como um indicativo de uma posição social diferenciada, pois
pertencia pelo menos à segunda geração de uma família que teve acesso ao matrimônio. Além
dele e de seus pais, sua irmã Geralda também subiu ao altar. 430 O segundo aspecto, também
atinente ao caso de Domingos, era o exercício de um ofício, que lhe adjudicava prestígio ante
os escravos e o senhor. O outro aspecto é a presença de Alberto Germano como testemunha.
Alberto foi um dos 15 escravos agraciados com a liberdade pelas disposições testamentárias

427
Sobre a questão da autonomia escrava, ver: MACHADO, Maria Helena. Em torno da autonomia escrava:
uma nova direção para a história social da escravidão. In: Revista Brasileira de História, São Paulo, 8(16),
mar.-1988/ago.-1988, pp. 143-160; MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade
no sudeste escravista, Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999 [1995], p. 138 e ss.; LUNA,
Francisco Vidal & KLEIN, Herbert S. Escravismo no Brasil. São Paulo: EDUSP/Imprensa Oficial do Estado de
São Paulo, 2010, p. 234.
428
ACMB. Livro I de Registros de Casamento do Curato da Sé de Belém, p. 226(v).
429
Idem.
430
ACMB. Livro I de Registros de Casamento do Curato da Sé de Belém, p. 158.
196

de Joaquim Antônio da Silva; alforria essa que é sugestiva da provável boa relação que ele
mantinha com o testamenteiro, herdeiro universal e senhor de fato, Januário Antônio.431

Muito embora o mesmo não se aplique, necessariamente, aos casos semelhantes, é


plausível considerarmos, ainda, que o conjunto de inter-relações na qual Manoel Carlos e sua
família estavam imersos tenha ensejado a ele entrar no mercado matrimonial com uma menor
idade, sobrepondo o recorte geracional imposto aos homens da escravaria no diz que respeito
à idade de casamento. O pertencimento a uma família bem estabelecida na propriedade, as
relações que Manoel mantinha com sujeitos mais bem posicionados socialmente (a exemplo
de Alberto Germano) e o capital simbólico relacionado à prática do ofício mais valorizado no
Engenho Bom Intento (o de calafate) foram, decerto, determinantes nesse sentido.

Em linhas gerais, o casamento entre os escravos do Bom Intento seguia as tendências


apresentadas. Tinham acesso ao matrimônio os cativos bem situados na hierarquia social do
plantel. Usualmente, os homens casavam-se com maior idade, sendo mais velhos que as suas
nubentes e especializados em algum ofício, como nos casos de Domingos e Manoel Carlos.
Além disso, tanto os homens, quanto as mulheres respeitavam, em termos matrimoniais, os
limites da escravaria e, no caso dos poucos cativos “africanos” existentes no plantel, também
a correspondência metaétnica.

Paralelamente a esse panorama, um pormenor ainda não elencado chamou-nos atenção


especial: o casamento em segundas núpcias era mais comum entre as mulheres do que entre
os homens. Ora, com uma razão de masculinidade na casa dos 80 era de esperar-se justamente
o contrário! Afinal, o desequilíbrio entre os sexos tenderia a criar um excedente de mulheres
no mercado matrimonial do engenho; aspecto que, em última instância, deveria abrir maiores
possibilidades aos homens no que é atinente ao recasamento, e não às mulheres. A questão
leva-nos a problematizar o porquê desse comportamento: o que fazia com que alguns cativos
casassem uma ou mais vezes, enquanto outros não tinham sequer acesso ao matrimônio?

De acordo com Stuart B. Schwartz, o problema do casamento entre os escravos deve


ser analisado através de quatro perspectivas inter-relacionadas: as normais legais e canônicas
do matrimônio; a realidade na sociedade, as atitudes à ação dos senhores e as percepções e
atuação dos escravos.432 Era o amálgama desses quatro vieses que levava os escravos ao altar.

431
Como testamento e herdeiro universal de seu irmão, foi Januário Antônio da Silva quem por certo determinou
quais escravos seriam alforriados. É bem possível considerarmos nesse caso, que foram libertados cativos que
mantinham relações mais próximas a ele e/ou que fossem influentes na comunidade escrava do engenho.
432
SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial (1550-1835). São Paulo:
Companhia das Letras, 1988 [1985], p. 314.
197

A partir do cruzamento entre os registros paroquiais de batismo e casamento dos escravos e o


inventário post-mortem e o testamento de Joaquim Antônio da Silva, verificamos que grande
parte dos matrimônios havidos no Engenho Bom Intento orbitava em torno de alguns mesmos
cativos, que estabeleceram relações de compadrio entre si e que mantinham uma relação mais
estreita com o administrador da propriedade, Januário Antônio da Silva.

Por certo, os escravos que tiveram acesso ao casamento no Bom Intento pertenciam ao
topo da hierarquia social do plantel, sobretudo aqueles que conseguiram contrair matrimônio
em segundas núpcias. As fontes pesquisadas não nos autorizam a afirmar se se tratava de um
ou dois grupos dentro da comunidade. De todo modo, pudemos concluir que o casamento
legítimo era mais comum entre algumas famílias da escravaria; as mesmas que tiveram alguns
dos seus membros alforriados e que concentravam um maior número de escravos com ofício.
Vários dos seus componentes casaram uma ou mais vezes, enquanto os outros cativos foram
legados a constituir suas uniões consensualmente, sem legitimá-las por meio do matrimônio.
O esforço de compreensão do conjunto de inter-relações que poderia levar certos escravos ao
altar tem como diretriz três das mulheres do plantel: Joaquina Maria Bibiana e as nossas já
conhecidas Francisca Libânia e Marcelina Maria de Nazaré.

As trajetórias dessas três mulheres tiveram mais em comum do que à primeira vista
poderíamos imaginar. Para além do gênero, condição social e pertencimento a um mesmo
plantel, Joaquina, Francisca e Marcelina casaram-se uma ou mais vezes, e conseguiram levar,
cada uma, pelo menos dois de seus filhos ao casamento legítimo. As inter-relações que elas
estabeleceram podem nos ajudar a apreender mais a fundo quem se consorciava no Engenho
Bom Intento e, ao mesmo tempo, alguns dos sentidos e significados atribuídos ao casamento
naquela comunidade escrava.

Em julho de 1862, o cativo Rafael Arcanjo, filho legítimo dos pretos Luís e Agostinha,
contraiu núpcias com a escrava Geralda, filha também legítima de Antônio Pedro e Francisca
Libânia. Rafael e Geralda tiveram como testemunhas de casamento, José dos Reis e Leocádia
Maria. Passados cinco anos, em setembro de 1868, era a vez do nosso já conhecido Manoel
Carlos, irmão de Geralda, casar-se com Felipa Maria das Dores, filha natural de Marcelina
Maria de Nazaré. Nesse mesmo dia e com as mesmas testemunhas desse casamento (Alberto
Germano e José Joaquim), casou-se outra filha de Marcelina, chamada Maria da Bênção, com
Pedro Antônio, filho de Gregória Maria.433

433
ACMB. Livro I de Registros de Casamento do Curato da Sé de Belém, p. 226(v).
198

Por meio do enlace entre Manoel Carlos e Felipa Maria, as mães dos noivos, Francisca
Libânia e Marcelina Maria de Nazaré, passaram a pertencer a uma mesma rede familiar dentro
da comunidade escrava. O lugar de prestígio na hierarquia social do plantel era evidente para
os nubentes e suas respectivas famílias. Por mais que Felipa fosse filha natural de Marcelina
Maria, provavelmente por ter nascido antes do casamento entre sua mãe e Francisco Antônio
Germano (pai de Maria da Bênção e, quem sabe, irmão, parente ou alguém com afinidade a
Alberto Germano), ela havia experimentado, em seu meio familiar, o casamento legítimo.434
O mesmo podemos dizer de Manoel Carlos. Além disso, ambos possuíam entre 30 e 40 anos
ao casar-se e, como destacamos anteriormente, ele era calafate – um ofício muito valorizado.

Como temos argumentado, o acesso ao casamento legítimo estava, no caso do Bom


Intento, diretamente relacionado à posição social dos escravos dentro da hierarquia do plantel.
Consideramos, ainda, que para além de uma maior idade, da especialização num ofício ou do
grau de autonomia galgado pelos cativos, sua posição social era delineada pela trama de inter-
relações nas quais estavam imersos.435 As teias sociais tecidas pelos indivíduos, suas famílias
e grupos no interior da escravaria, que materializavam um sentido de comunidade escrava no
engenho, eram determinantes no sentido de levá-los ao altar, legitimando, assim, suas uniões.
Até o presente momento, não consideramos, contudo, a provável influência de determinados
escravos que poderiam intermediar a costura dessas teias.

Os casamentos das filhas de Marcelina Maria de Nazaré tiveram enquanto testemunha


o forro Alberto Germano, que, como já aventamos, provavelmente mantinha uma boa relação
com Januário Antônio da Silva e um papel de liderança em meio à tessitura social do Engenho
Bom Intento. Além de ter sido um dos escravos libertados pelas disposições testamentárias de
Joaquim Antônio da Silva, Alberto também teve acesso ao matrimônio ao casar-se, em 1845,
com a escrava Esperança. O fato de ter sido testemunha dos matrimônios de dois filhos de
Marcelina Maria evidencia a boa relação que mantinha com a mesma. É possível que, nesses
casos, Alberto tenha atuado enquanto um intermediário social. Embora Marcelina e sua prole
estivessem, pelos já aludidos elementos, situados em uma posição de prestígio na hierarquia

434
A partir da uma análise das listas de matrícula de escravos de Campinas, na década de 1870, Robert Slenes
verificou a plasticidade com que a condição de legitimidade dos cativos era vista pelos senhores. Em certos
casos, esses consideravam os escravos nascidos antes do casamento como legítimos. Ver: SLENES, Robert. Na
senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava – Brasil Sudeste, século XIX. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 77.
435
A respeito da importância das inter-relações na conformação da posição de indivíduos e famílias no contexto
da escravidão ver especialmente: MACHADO, Cacilda da Silva. A trama das vontades: negros, pardos e brancos
na construção da hierarquia social do Brasil escravista. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008.
199

social do plantel, a sua provável boa relação com Januário Antônio pode ter facilitado, mais
ainda, o acesso ao matrimônio por parte da família de Marcelina Maria.

O mesmo papel pode ter tido o cativo José Antônio, que era “capitão”, nos consórcios
de Joaquina Maria Bibiana (em segundas núpcias) e as suas duas filhas: Basília Maria e Maria
Antônia. Ou o igualmente liberto Veríssimo, alforriado juntamente a Alberto Germano, nos
matrimônios de Porcino e Venância, Conrado e Custódia. A atuação desses intermediários
sociais realça a importância da trama de inter-relações estabelecida em meio ao ambiente do
plantel, seja de escravos para escravos, ou entre os escravos e o senhor. Não obstante, reforça
a perspectiva de que os enlaces entre os cativos do Engenho Bom Intento eram engendrados
em um jogo entre duas hierarquias sociais interpostas: uma endógena a sua condição social e
outra atinente à relação estabelecida com o senhor de fato, Januário Antônio da Silva.

O papel exercido por Januário Antônio do delineamento dos casamentos merece igual
atenção. Como apontamos no primeiro capítulo deste estudo, os senhores atuavam pelo menos
como limitantes da conjugalidade escrava. Embora os cativos muito provavelmente tivessem
a possibilidade de escolher seus consortes com relativo grau de autonomia, muito dificilmente
seriam legitimadas relações que não fossem vistas com “bons olhos” pelos senhores; o que, na
prática, ia diretamente de encontro às normas eclesiásticas que versavam sobre o casamento
de cativos. No caso do Bom Intento, a ingerência de Januário nos consórcios foi especificada,
inclusive, nas próprias atas de casamento. Os registros relativos aos cativos do engenho foram
os únicos dos assentos pesquisados em que se explicitava que os enlaces tiveram vez “sob a
autorização do administrador da propriedade, Januário Antônio da Silva”.

É interessante notarmos que nas propriedades confinantes ao engenho, pertencentes a


Pedro Leal Aranha e Manoel Joaquim de Paiva, os limites do plantel se dispunham de forma
mais elástica que no que diz respeito ao matrimônio. Em 14 de fevereiro de 1844, o forro João
Batista casou-se com a escrava Justiniana Maria, de Pedro Leal.436 Cinco meses depois, em 13
de julho daquele ano, foi a vez do cativo José, pertencente a Manoel Paiva, contrair núpcias
com a liberta Maria Joaquina, de nação Benguela.437 É possível que João e Justiniana tenham
pertencido um dia ao mesmo senhor dos seus nubentes escravos e que, galgada sua liberdade,
tenham permanecido morando naquelas propriedades, como Veríssimo e Alberto Germano no
caso do Engenho Bom Intento. Se isso estiver correto, por mais que na teoria os dois enlaces
tivessem formalmente ultrapassado os limites do cativeiro, eles seriam endógenos na prática,

436
ACMB. Livro I de Registros de Casamento do Curato da Sé de Belém, p. 18(v).
437
ACMB. Livro I de Registros de Casamento do Curato da Sé de Belém, p. 20(v).
200

pois os noivos continuaram a fazer parte de uma mesma comunidade escrava. Ainda assim,
esses casos podem desvelar práticas diferenciadas, de plantel para plantel, no que concerne ao
casamento legítimo.

A interferência de Januário pode não ter se limitado somente ao casamento legítimo e,


como veremos mais adiante, às relações de compadrio estabelecidas por seus escravos. Se no
que concerne ao matrimônio a intervenção senhorial é evidente (todos os escravos casaram-se,
sem exceção, com companheiros de cativeiro), pode ter havido maior flexibilidade em relação
às uniões ilegítimas. Entre 1840 e 1870, três de cada quatro cativos do Engenho Bom Intento
foram concebidos fora do matrimônio. Parte deles nasceu antes da legitimação das uniões de
seus pais. Outros tantos provavelmente foram frutos de uniões consensuais e estáveis, ou
mesmo esporádicas, dentro do plantel. Mas, também não podemos descartar, nesse meio, as
crianças nascidas de relações que extrapolaram os limites da escravaria: de cativas do Bom
Intento com escravos de outras posses, forros ou livres da região. Relações que podem ter sido
inclusive incentivadas, em face do excedente de mulheres em idade fértil existente no plantel.

Antes de passarmos à discussão das relações de compadrio, gostaríamos de tecer mais


algumas considerações a respeito de duas questões ainda não tratadas: (1) a relação existente
entre os enlaces e a reprodução demográfica (no sentido estritamente biológico) dos plantéis e
(2) o grau de estabilidade possível galgada pelas famílias do Engenho Bom Intento. As fontes
de que dispomos, tal como se apresentam, não nos ensejam evocar maiores conclusões acerca
desses elementos. De qualquer forma, haja vista a sua relevância à compreensão das relações
familiares no engenho, acreditamos ser importante proceder a ao menos alguns apontamentos
sobre eles.

Em 20 de agosto de 1851, casaram-se em segundas núpcias os cativos Bento Mateus e


Joaquina Maria Bibiana; viúvos, respectivamente, dos também escravos Maria do Carmo e
Antônio Manoel.438 À época do enlace, o nubente possuía cerca de 50 e, a nubente, cerca de
60 anos de idade. Ambos eram, portanto, “velhos” ao terem acesso ao recasamento. A questão
principal desse matrimônio é a idade de Joaquina. Sexagenária e já mãe de pelo menos duas
filhas àquela altura casadas, ela provavelmente não poderia mais ter filhos. Nesse sentido, o
casamento não possuía, certamente, fins de reprodução biológica. Quando em sua idade fértil,
Joaquina já havia sido mãe. Por que, então, Bento casou-se com uma mulher que não poderia
mais lhe dar filhos se havia disponíveis, no mercado matrimonial do engenho, mulheres mais

438
ACMB. Livro I de Registros de Casamento do Curato da Sé de Belém, p. 67.
201

jovens e aptas à reprodução? Por que também Januário Antônio da Silva deu sua anuência ao
enlace, mesmo ciente de que ele não representaria a ampliação da sua escravaria?

Casos como esse podem sugerir que, em relação ao caso específico do Engenho Bom
Intento, o matrimônio, na prática, atuava muito mais como um mecanismo de reprodução da
posição social dos cativos em meio à hierarquia social do plantel e de tentativa, por parte de
Januário Antônio da Silva, em proceder ao controle social de sua escravaria, do que como um
incentivo efetivo para a reprodução biológica dos cativos; que, como demonstramos antes,
prescindia do matrimônio para concretizar-se. O alto índice (75%) de concepções ilegítimas
no ambiente do plantel (algumas das quais de filhos nascidos antes da legitimação das uniões
de seus pais) e a necessidade de prestígio social para ter-se acesso ao matrimônio levam-nos a
refletir sobre a questão. Porém, uma conclusão concreta nesse sentido careceria dos índices de
fecundidade legítima e ilegítima no engenho, dos quais não dispomos.

A estabilidade possível das famílias cativas do Engenho Bom Intento é outro ponto a
ser considerado. Como o inventário de Joaquim Antônio da Silva não dispôs os escravos em
função das famílias e já que nele também não constam (pelo período em que foi feito) as listas
de matrícula dos cativos da propriedade, a discussão acerca da questão acaba por ser deveras
limitada. Contudo, os registros paroquiais e o próprio inventário post-mortem dão-nos alguns
indícios nesse sentido. Primeiramente, devemos considerar que se a longevidade senhorial, a
dimensão da escravaria e a partilha dos bens eram três dos elementos que atuavam no sentido
de propiciar uma maior ou menor estabilidade a famílias escravas, o Engenho do Bom Intento
constituiria, pelo menos em tese, um lócus ideal para a manutenção dos laços familiares dos
cativos por longos períodos de tempo.439 Explicamos melhor.

Joaquim Antônio da Silva faleceu aproximadamente aos 80 anos, possuidor de 157


escravos e deixando praticamente todos os seus bens (exceto os legados por terça testamental)
a um único herdeiro: seu irmão, Januário Antônio da Silva. Por si só, o fato de haver apenas
um herdeiro muito provavelmente contribuiria para a manutenção da estabilidade familiar dos
escravos da propriedade. Mas não se tratava somente disso. Januário já era o administrador da
propriedade (e, por conseguinte, de sua escravaria) desde 1834, quando seu irmão deixou em

439
Sobre a estabilidade possível das famílias escravas, cf.: MOTTA, José Flávio & VALENTIN, Agnaldo. A
estabilidade das famílias em um plantel de escravos de Apiaí (SP). In: Afro-Ásia, Salvador, 27, 2002, pp.
161-192. A esse respeito, também ver o importante estudo: SLENES, Robert. Escravidão e família: padrões de
casamento e estabilidade familiar numa comunidade escrava (Campinas, século XIX). In: Estudos
Econômicos, São Paulo, 17(2), 1987, pp. 217-227.
202

definitivo a Amazônia rumo a Portugal. Ou seja, quando se tornou, de fato, o proprietário do


Engenho Bom Intento, Januário Antônio da Silva já o administrava há quase três décadas.

Nesses termos é possível que, no caso em tela, os impactos da morte do senhor tenham
sido minimizados ou mesmo, quem sabe, inexistentes. Infelizmente, a ausência de referências
à formação de famílias cativas no inventário de Joaquim Antônio da Silva e a inacessibilidade
do inventário de Januário Antônio da Silva, associadas à igual ausência de listas nominativas
ao período, não dão ensejo à evocação de maiores conclusões. Apenas conseguimos verificar
certa estabilidade nos registros dos batismos de filhos legítimos de um mesmo casal, quando
se especificava os nomes do pai e da mãe dos batizandos em eventos seguidos durante certo
espaço de tempo.

Sejam esporádica, consensual ou legítima as formas pelas quais se constituía, a família


escrava era uma realidade presente em meio à comunidade cativa do Engenho Bom Intento. É
muito provável, ainda, que tenha sido uma realidade fortemente presente na região do Acará e
de Bujaru, bem como no restante da província do Pará.440 O grau de incidência, os modos de
organização, reprodução e sua estabilidade possível na região ainda carecem de novos estudos
que tenham nela, a família escrava, seu eixo central de análise.

O COMPADRIO

A noção de comunidade cativa está diretamente associada, como indica Hebe Mattos,
às bases institucionais da família e da religião no interior da escravaria, onde as relações entre
senhores e escravos se perfaziam, perseverando uma dose de autonomia (ou distanciamento)
nas formas de sociabilidade de cada grupo social e nas leituras que faziam das relações nas
quais estavam envolvidos.441 Para além do casamento, seja ele de uso costumeiro ou legítimo,

440
Os dados do Recenseamento de 1872 apontam que a proporção dos escravos alguma vez casados nas regiões
Guajarina e do Baixo Tocantins era maior do que em Belém. Enquanto na freguesia do Acará cerca de 10,5%
dos cativos eram casados ou viúvos, na freguesia da Sé de Belém esse percentual era de 5,75%. A nosso ver, a
diferença pode ser decorrente de diferentes estruturas de posse de escravos e das maiores possibilidades de
casamento encontradas em plantéis maiores.
441
MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio, op. cit., p. 125 e ss. A ideia da existência de uma comunidade
escrava foi recuperada pela historiografia brasileira sob a influência da historiografia americana, particularmente
do trabalho pioneiro de Herbert Gutman. A comunidade cativa não é, entretanto, um consenso na historiografia
brasileira. Hebe Mattos entende a formação das comunidades em associação anseio de experimento da liberdade.
Robert Slenes apreende que as mesmas são concebidas em meio à experiência do cativeiro e à construção de
uma identidade comum entre os escravos. Já Manolo Florentino e José Roberto Goés põem em xeque a ideia das
comunidades escravas, compreendendo o cativeiro muito mais enquanto um espaço demarcado pelo conflito
entre crioulos e africanos de diversas origens étnicas, que elidiria a construção de uma identidade e comunidade
203

o compadrio constituía-se como uma peça-chave na conformação das comunidades escravas.


O seu caráter ao mesmo tempo social e religioso, 442 sem dúvida bastante arraigado em grupos
essencialmente crioulos como o da escravaria do Engenho Bom Intento, fazia do parentesco
espiritual materializado nos batismos um importante mecanismo mantenedor e de ampliação
das ditas comunidades.443

A diversidade encontrada no compadrio entre escravos, em relação à cidade de Belém,


aplica-se igualmente ao caso do Engenho Bom Intento. Assim sendo, este novo esforço trata
muito mais de indicar tendências do que padrões de comportamento propriamente ditos. Por
mais que grande parte dos escravos do engenho tenha constituído relações de compadrio com
seus companheiros de cativeiro,444 havia certamente uma maior flexibilidade nessas relações.
Diferentemente do casamento, os limites do plantel se dispunham de maneira mais elástica no
que concerne ao parentesco espiritual. No caso do compadrio, a interação existente entre a
escravaria de Joaquim e de Januário Antônio da Silva, os escravos de outras propriedades e a
população livre da região fazia-se valer pelo estabelecimento de laços exógenos ao ambiente
da escravaria.

A preferência pela formação de laços endógenos à comunidade cativa do Bom Intento


destoava das tendências verificadas em relação ao núcleo urbano central de Belém, analisado
no capítulo anterior. Sugerimos, na ocasião, que a busca por padrinhos livres, que tonificou o
compadrio de escravos na cidade, estava diretamente relacionada ao fato de aquele espaço ser
marcado por pequenas posses. No caso do engenho, ao contrário, sua grande escravaria abria
possibilidades maiores para a seleção de padrinhos e madrinhas em seu próprio meio. Como

comuns. Cf.: GUTMAN, Herbert. The black family in slavery and freedom, 1750-1925. New York: Vintage
Books, 1976; MATTOS, Hebe Maria. Ibidem; SLENES, Robert. Na senzala, uma flor. op. cit.; FLORENTINO,
Manolo & GOÉS, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro.
c.1790-.c1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: 1997; KLEIN, Herbert S. & LUNA, Francisco Vidal. O
escravismo no Brasil, op. cit., 229-269; KLEIN, Herbert S. La esclavitud africana em America Latina y el
Caribe. Lima: Alianza America, 1986 [1984], pp. 107-120; FARIA, Sheila de Castro. Identidade e comunidade
escrava: um ensaio. In: Tempo, Niterói, 11(22), 2007, pp. 122-146.
442
Cf.: RAMOS, Donald. Teias sagradas e profanas: o lugar do batismo e compadrio na sociedade de Vila
Rica durante o século do ouro. In: Vária História, Belo Horizonte, 31, jan./2004, pp. 41-68.
443
Ver: GÓES, José Roberto. O cativeiro imperfeito: um estudo sobre a escravidão no Rio de Janeiro da
primeira metade do século XIX. Vitória (ES): SEJC/SEE, 1993; MACHADO, Cacilda. As muitas faces do
compadrio de escravos: o caso da freguesia de São José dos Pinhais (PR), na passagem século XVIII para
o XIX. In: Revista Brasileira de História, São Paulo, 26(52), Dez./2006, pp. 49-77.
444
Como destacamos no CAPÍTULO II, a maioria dos registros paroquiais de batismo produzidos em Belém, nos
meados do século XIX, é inconclusiva no que respeita à condição jurídica dos padrinhos, o que nos fez buscar
por metodologias de análise alternativas, devidamente explicadas no capítulo em questão. No caso do Engenho
Bom Intento, o inventário post-mortem e o testamento de Joaquim Antônio da Silva, bem como os registros de
casamento dos cativos da propriedade, foram de vital importância para definirmos não apenas à condição
jurídica dos padrinhos no caso em foco, mas também para definir se se tratavam de relações endógenas ou
exógenas ao ambiente da escravaria.
204

já apontou Ana Maria Lugão Rios, havia uma relação íntima entre o percentual de escravos
padrinhos e o tamanho dos plantéis observados,445 embora isso não fosse, no entanto, um fator
determinante. Estudos anteriores observaram que propriedades vizinhas poderiam ter práticas
de escolha dos compadres diametralmente distintas, configurando culturas diferenciadas em
relação ao compadrio de plantel para plantel.446

Por trás da escolha dos padrinhos, havia todo um conjunto de inter-relações, interesses
e motivações que as direcionava. Naturalmente, tal como no que diz respeito ao casamento, os
laços formados eram condicionados pelo “lugar social” dos envolvidos. A trama de relações
vivenciada pelos escravos, o grau de autonomia angariado, as necessidades momentâneas e a
preocupação com o futuro de prole eram aspectos que aquiesciam as relações de compadrio.
O esforço de compreensão das tendências de compadrio no Engenho Bom Intento e da sua
importância à constituição e à dinâmica de uma comunidade escrava na propriedade considera
as relações fundadas de forma endógena ou exógena ao ambiente da escravaria, bem como as
pertinências dos marcadores sociais de gênero e geração nesse processo. Vejamos, a princípio,
o batismo dos inocentes Juliana e Teodósio.

No dia 22 de fevereiro de 1846, no oratório do Engenho Bom Intento, foi batizada a


pequena Justina, filha de Cristina Maria e pai incógnito, em uma cerimônia isolada, diferente
dos dias em que havia vários batismos e casamentos na propriedade. Estiveram presentes, no
papel de padrinho e madrinha, os cativos Conrado e Apolinária, companheiros de cativeiro. 447
O assento paroquial de batismo não é sugestivo do tipo de relação existente entre os padrinhos
e entre eles e Cristina Maria. Quatro anos antes, no mesmo local, foi batizado Teodósio, filho
de Luciana Maria e também de pai incógnito. Selecionaram-se, outrossim, companheiros de
cativeiro como padrinho e madrinha. Foram escolhidos Agostinho e Guilhermina do Carmo,
cujas relações entre si e com Luciana também não foram insinuadas pelo registro paroquial.448

Cotejados os assentos ao inventário post-mortem, as escolhas dos padrinhos de Juliana


e Teodósio ganham novas dimensões. Sabemos através dos registros de batismo que a seleção
privilegiou companheiros de cativeiro de Cristina e Luciana Maria, com quem, supomos, elas

445
RIOS, Ana Maria Lugão. The politics of kinship. Compadrio among slaves in Nineteenth-Century
Brazil. The History of the Family: an International quarterly, 5(3), 2000, p. 291.
446
Ver: BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Criando porcos e arando a terra: família e compadrio entre
os escravos de uma economia de abastecimento (São Luís do Paraitinga, Capitania de São Paulo, 1773-
1840). III Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, 2007. Florianópolis/SC. Anais...
Florianópolis/SC: Universidade Federal de Santa Catarina, 2007. 16p.
447
ACMB. Livro IV de Registros de Batismo do Curato da Sé de Belém, p. 24(v).
448
ACMB. Livro III de Registros de Batismo do Curato da Sé de Belém, p. 33(v).
205

tinham relações mais próximas. Também podemos apreender que foram conformados laços
horizontais, uma vez que partes possuíam a mesma condição social e jurídica. Além disso,
como é notório, foram escolhidos um homem e uma mulher enquanto padrinho e madrinha de
cada criança, ao invés de algum santo ou santa em um dos papéis. O inventário possibilita-nos
verificar que, não obstante a esses elementos, as seleções dos padrinhos de Juliana e Teodósio
implicaram diferentes estratégias a respeito da questão geracional.

Conquanto o GRÁFICO 3.1 indique uma baixa mortalidade no Engenho Bom Intento, o
que diferenciava sua experiência do comportamento demográfico das populações escravas do
Império,449 a idade dos padrinhos não deixava de ser por certo uma preocupação.450 Na altura
do batizado de Justina, Conrado e Apolinária tinham, respectivamente, 15 e 25 anos de idade.
À época do batismo de Teodósio, seu padrinho Agostinho já possuía 50 anos. Sua madrinha
possivelmente morreu entre o rito batismal e o arrolamento dos cativos de Joaquim Antônio
da Silva (1861), pois não constava na lista dos escravos do plantel. No primeiro caso, foram
selecionados um padrinho e uma madrinha jovens; e, no segundo, a escolha recaiu sobre um
padrinho com uma maior idade. Quais seriam as implicações dessas diferentes estratégias na
constituição dos laços de compadrio em meio à comunidade escrava do engenho?

Inicialmente, é importante destacarmos que a escolha dos padrinhos e madrinhas no


Engenho Bom Intento, no que se atém à questão geracional, incidia sobre as duas estratégias
aludidas. Poucos foram aqueles na casa dos 30 ou dos 40 anos escolhidos como padrinhos.451
Via de regra eram selecionados, sem diferenças quanto ao gênero, indivíduos que acabaram
de entrar na idade adulta (como Conrado e Apolinária) ou que já se enquadravam no grupo
etário dos “velhos” (50 ou mais anos de idade), a exemplo de Agostinho. As estratégias, que
não eram necessariamente excludentes e poderiam alternar de filho para filho, evidenciam
distintos usos do compadrio entre os escravos da propriedade.

449
Cf.: Maria Luiza Marcílio. Sistemas demográficos no Brasil do século XIX, op. cit.
450
BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os compadres e as comadres de escravos: um balanço da
produção historiográfica brasileira. XXVI Simpósio Nacional de História, 2011. São Paulo/SP. Anais... São
Paulo/ SP: Associação Nacional de História, 2011, p. 7.
451
A escolha de compadres mais jovens ou mais velhos pode ter estado relacionada, também, à estrutura etária
da escravaria. Embora tenhamos apresentado, no GRÁFICO 3.1, somente uma fotografia dessa estrutura num
dado momento, é provável que a pouca quantidade de cativos (sobretudo de homens) em idade adulta tenha sido
a tônica do plantel durante todo o período pesquisado (1840-1870), com poucas variações. Ainda assim, não se
diminui a importância questão da geração no processo de escolha. Cacilda Machado, pesquisando uma região em
que a distribuição etária da população escrava era bem equilibrada (São José dos Pinhais, na virada do século
XVIII para o XIX), encontrou resultados semelhantes, com uma tendência a selecionar-se padrinhos jovens (18-
25 anos). Cf.: MACHADO, Cacilda da Silva. As muitas faces do compadrio de escravos, op. cit., pp.71-72.
206

Ao eleger Conrado e Apolinária como padrinhos de sua primeira filha, Cristina Maria
manifestou sua preocupação em assegurar proteção e amparo aos seus filhos ao longo da vida.
A menor idade dos padrinhos permitir-lhes-ia, pelo menos em tese, acompanhar a criação de
Justina por um longo período de tempo, inclusive cuidando dela na possível ausência da mãe.
Conrado foi eleito padrinho próximo da idade mínima imputada pela legislação canônica. 452
Exceto se pertencesse a uma família bem situada na hierarquia do plantel, é bem provável que
em face de sua pouca idade, ainda não tivesse estabelecido seu lugar na mesma. O fato de ser
padrinho de Justina pode ter representado, para ele, um primeiro passo no estabelecimento de
sua trama de inter-relações. Apolinária, por sua vez, já era mãe de Sabina, que teve enquanto
padrinho o escravo Clementino, um dos que por mais vezes foi escolhido para esse papel.

Por outro lado, a escolha de Agostinho como padrinho pode indicar o interesse mais
imediato, por parte de Luciana Maria, em estabelecer uma aliança com alguém de prestígio
em meio à hierarquia social do plantel. Além da idade de Agostinho e do fato de ele pertencer,
muito possivelmente, a uma família já estabelecida há tempos no plantel, o escravo exercia o
ofício de pedreiro, o que provavelmente lhe aferia, em complementaridade aos outros dois
aspectos, um status diferenciado em meio à comunidade cativa do Engenho Bom Intento. É
possível pensarmos que a madrinha de Teodósio, a escrava Guilhermina Maria do Carmo,
também tivesse uma maior idade no momento do batismo, e que tenha vindo a falecer nos
anos subsequentes.

Nesse sentido, entendemos que a escolha de padrinhos jovens, ainda entrando na idade
adulta, espelhava a preocupação dos cativos com o futuro de sua prole, garantindo amparo e
proteção até que os seus filhos pudessem galgar seu “lugar social” por meio de inter-relações
próprias. Por seu turno, a seleção de padrinhos com mais idade pode ser tomada enquanto um
indicativo de uma necessidade mais premente de consolidação das relações entre os futuros
compadres. No entanto, como já aventamos, essas duas estratégias de eleição dos padrinhos e
das madrinhas, de acordo com a geração, não eram necessariamente opostas, podendo ser, ao
contrário, complementares uma à outra, mesmo em relação a uma família específica. Foi o
caso dos filhos de Antônio e Francisca.

Entre 1842 e 1848, o casal Antônio e Francisca batizou pelo menos três de seus filhos.
Em 1842, batizou-se Geralda; em 1844, Susana e, em 1848, Luísa. Antônio era “intendente”,

452
De acordo com as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, homens e mulheres só poderiam servir
de padrinhos a partir dos 14 e dos 12 anos, respectivamente. Abaixo dessas idades, para sê-los, apenas com
Licença Especial do Bispado. Ver: VIDE, Sebastião Monteiro. Livro Primeiro, Título XVIII. In: Constituições
Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: EDUSP, 2010 [1707], pp.52-54.
207

possivelmente um dos responsáveis pela organização produtiva do engenho. Possuía, na altura


do batismo de Geralda, cerca de 50 anos de idade. Sua mulher Francisca, destoando do padrão
de concepção da comunidade escrava, deu a luz a suas três filhas entre os trinta e os quarenta
poucos anos de idade. As elevadas idades do casal, sobretudo a de Antônio, provavelmente
condicionaram a escolha dos padrinhos de suas três meninas. Não obstante, dada à posição de
prestígio em que o “intendente” se encontrava,453 ainda era necessário estabelecer relações de
compadrio com indivíduos bem situados na hierarquia social do plantel.

A primeira filha batizada, Geralda, teve como padrinhos os escravos Luís e Apolinária
Maria, a mesma que havia sido madrinha da pequena Justina.454 Não encontramos maiores
referências a Luís, mas sabemos que Apolinária possuía 20 anos no período do batizado. A
segunda filha, Susana, foi apadrinhada por Felipe Nery e Inácia Maria. 455 Não dispomos de
informações mais precisas a respeito da madrinha, contudo, descobrimos que Felipe Nery
também foi padrinho de Umbelina, primeira filha do nosso já conhecido Alberto Germano
com a escrava Esperança, batizada no oratório do Engenho Bom Intento em 24 de abril de
1847.456 Já a terceira filha do casal, Luísa, teve Carlos enquanto padrinho e Nossa Senhora457
das Dores como madrinha.458 Carlos muito provavelmente foi vendido ou veio a falecer nos
anos subsequentes, pois não conta na lista dos escravos do engenho, elaborada por ocasião do
inventário de Joaquim Antônio da Silva.

Cada um dos batismos das três filhos de Antônio e Francisca apresenta características
específicas. No batismo da primogênita Geralda, o casal priorizou a criação de vínculos com
indivíduos mais jovens, que pudessem dar apoio a sua filha, caso Antônio e Francisca viessem
a falecer. Por meio do batismo de Susana, o casal provavelmente tencionou estabelecer laços
com sujeitos igualmente bem posicionados na hierarquia do plantel. Por sua vez, a seleção de
Nossa Senhora das Dores como madrinha de Luísa (não podemos tecer muitas considerações
a respeito de Carlos) evidencia uma escolha assentada muito mais numa questão religiosa, do
que na concepção de vínculos de natureza social.

453
É de pensarmos que a função de “intendente” fosse análoga à de “feitor”. No entendimento de Hebe Mattos,
tratava-se de um ofício que indicava a posição de prestígio de terminado escravo vis-à-vis à comunidade cativa e
ao senhor. Não seriam feitores aqueles que não tivessem o respeito de ambas as partes. MATTOS, Hebe Maria.
Das cores de silêncio, op. cit., pp.124 e ss.
454
ACMB. Livro III de Registros de Batismo do Curato da Sé de Belém, p. 34.
455
ACMB. Livro III de Registros de Batismo do Curato da Sé de Belém, p. 115(v).
456
ACMB. Livro IV de Registros de Batismo do Curato da Sé de Belém, p. 95.
457
A escolha de Nossa Senhora como madrinha não foi expressiva em meio à comunidade escrava do Engenho
Bom Intento. Detectamos apenas cinco casos em que isso ocorreu. Em dois desses casos, a escolhida foi Nossa
Senhora das Dores. Nos outros três não foi especificada.
458
ACMB. Livro IV de Registros de Batismo do Curato da Sé de Belém, p. 119.
208

Em alguns casos, diferentemente do que fizeram Antônio e Francisca, as preocupações


com a geração e a manutenção do prestígio confluíam no batismo de um único filho. Em 15
de junho de 1846, foi batizada a inocente Maria, filha legítima de Jerônimo e Matilde. Foram
padrinho Pedro Antônio e madrinha, Josefa Maria. Josefa possuía em torno de 50 anos na
altura do batizado. Embora não possamos precisar claramente a idade do padrinho supomos
que ele tivesse entre 20 e 30 anos de idade na altura do batismo de Maria. 459 Em específico
nesse caso, a escolha de um padrinho (Pedro Antônio) com menor idade não implicou apenas
a preocupação com o futuro da sua prole, tendo representado, igualmente, uma estratégia de
consolidação do conjunto de inter-relações de Jerônimo e Matilde.

Na seção precedente, mencionamos que tiveram acesso ao matrimônio determinados


cativos situados no topo da hierarquia social da escravaria e que possuíam laços de compadrio
entre si. Adicionalmente, destacamos tratar-se de algumas famílias que tiveram vários de seus
membros casando e que compunham um ou dois grupos em meio à comunidade escrava do
Engenho Bom Intento. Por mais que tenhamos apresentado, àquela ocasião, diversos aspectos
que podem nos ajudar a entender as relações que levaram aquelas famílias a legitimar suas
uniões, não desenvolvemos a discussão sobre a importância do compadrio nesse processo. A
trajetória do cativo Pedro Antônio, padrinho de Maria, pode ser elucidativa nesse sentido.

Pedro Antônio era filho da escrava Gregória Maria e pai incógnito. Contraiu núpcias,
em setembro de 1868, com Maria da Bênção, filha de Marcelina Maria de Nazaré. Por meio
do batismo de Maria, tornou-se compadre de Jerônimo e de Matilde. Quatro anos antes, em
1842, ele serviu de padrinho para seu irmão mais novo, também chamado de Pedro, que teve
no papel de madrinha a cativa Esperança, esposa de Alberto Germano. 460 Através desses três
eventos (dois batizados e um casamento), Pedro Antônio estabeleceu uma rede de relações
diretas e indiretas que alcançava dois dos extremos da escravaria: desde os poucos cativos
africanos remanescentes no plantel a Januário Antônio da Silva.

Por intermédio do seu casamento, Pedro Antônio passou a integrar a rede familiar de
Marcelina Maria de Nazaré. O fazer parte a essa rede ligou Pedro Antônio ao nosso conhecido
calafate Manoel Carlos, que se casou no mesmo dia com outra filha de Marcelina, Felipa. O
matrimônio serviu também para solidificar sua relação com o nosso igualmente já conhecido

459
ACMB. Livro IV de Registros de Batismo do Curato da Sé de Belém, p. 51(v). Pedro Antônio casou-se em
1868. Considerando que os homens do plantel se casavam com idades acima dos 40 e, em geral, dos 50 anos, é
provável que ele tivesse entre 20 e 30 anos de idade, a altura do batismo de Maria. ACMB. Livro I de Registros
de Casamento do Curato da Sé de Belém, p. 226(v)-227.
460
ACMB. Livro III de Registros de Batismo do Curato da Sé de Belém, p. 34.
209

Alberto Germano, testemunha do casamento e a quem conhecia há anos. Como destacamos


anteriormente, Pedro apadrinhou, junto à Esperança (mulher de Alberto), a inocente Maria,
filha de Jerônimo e Matilde. O vínculo entre Pedro e Jerônimo, materializado pelo batismo de
Maria, indiretamente levou Pedro Antônio à possibilidade de ter relações com Joaquina Maria
Bibiana, de quem Jerônimo foi testemunha de matrimônio, e com as suas filhas, Basília Maria
(casada com João de Angola) e Maria Antônia. O envolvimento de Pedro Antônio naquele
conjunto de inter-relações pode ter feito dele um intermediário social por excelência e traz à
luz, pelo menos em parte, as costuras feitas na tessitura social do Engenho Bom Intento, e que
poderiam levar certos escravos ao altar e outros não. Paralelamente, leva-nos a problematizar
sobre o grau de autonomia concedido aos cativos, por parte de Januário Antônio da Silva, na
escolha de seus compadres.

Decerto, o controle senhorial sobre os escravos do Engenho Bom Intento incidia muito
mais em relação ao matrimônio do que à formação dos laços de parentesco espiritual. Se no
que respeita ao casamento, os limites da escravaria eram arrogados, no caso do compadrio o
controle era mais latente. A procura por padrinhos/compadres fora do plantel evidencia que o
parentesco espiritual era mais “independente” da ingerência senhorial do que o matrimônio,
embora as sociabilidades dos escravos não deixassem de ser controladas. Algumas hipóteses
podem ser levantadas acerca desses diferentes graus de controle. A principal delas, a nosso
ver, é atinente à estabilidade familiar pretensamente possibilitada pelo matrimônio. Uma vez
casados perante a Igreja, a separação dos escravos de seus cônjuges e sua prole passava a ser
dificultada, até ser definitivamente proibida no final dos anos de 1860.461

Grande parte da historiografia que se dedica sobre o compadrio de escravos indica que
a presença senhorial fazia-se sentir pelo menos como um elemento delimitador.462 No caso do
Bom Intento, em que os batismos ocorriam em meio a verdadeiras cerimônias coletivas que
envolviam, para além dos cativos do próprio engenho, os escravos de outras propriedades e a
população livre da região, é difícil imaginarmos um Januário Antônio da Silva totalmente

461
O matrimônio certamente constituía um empecilho a mais à separação das famílias escravas, seja por venda,
seja por partilha dos bens. A partir de um decreto aprovado em 1869, a separação por venda foi definitivamente
proibida. Cf.: CLIB. Decreto 1695 de 15 de setembro de 1869.
462
Por mais que se reconheça certa dose de autonomia dos cativos na escolha dos compadres, a historiografia
que se dedica ao compadrio admite, quase que unanimemente, a ingerência senhorial nesse processo. Dentre
outros, comungam com essa perspectiva: SLENES, Robert Wayne. Na senzala, uma flor, op. cit.; SCHWARTZ,
Stuart B. Abrindo a roda da família: compadrio e escravidão em Curitiba e na Bahia. In: Escravos, roceiros
e rebeldes. Bauru/SP: EDUSC, 2001 [1992], pp. 263-292; MACHADO, Cacilda da Silva. A trama das vontades,
op. cit; BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Criando porcos e arando a terra..., op. cit.
210

alheio a essa movimentação nas terras que administrava. A esse respeito, como entende Luís
Augusto Farinatti:

“Não há dúvidas de que se tratava [o batismo - DSB] de uma


importante oportunidade para o estabelecimento ou ritualização de
relações significativas para os escravos e seus senhores. [...] como
tudo que era importante para os cativos, o momento da [sic] batizar os
filhos se constituía em uma [sic] espaço para negociações com os
senhores. A presença senhorial certamente se fazia sentir, mesmo nos
casos mais autônomos, aparecendo como um limitante”.463

Os assentos de batismo não são claros no sentido de sugerir a interferência de Januário


nos laços de compadrio formados entre escravos do Engenho Bom Intento. Naturalmente, isso
não significa dizer que não houvesse intervenção nas relações em meio à comunidade escrava
do plantel. As sociabilidades dos escravos, formalizadas pelos laços de compadrio, eram por
certo acompanhadas de perto por Januário ou por alguém da sua mais inteira confiança.
Conquanto pudesse não se tratar, como no caso dos matrimônios, de uma intromissão direta, a
injunção fazia-se presente ainda que maneira tácita, como salientou Farinatti, mesmo sobre as
situações aparentemente mais “independentes”.

Por outro lado, a ingerência senhorial torna-se mais manifesta nos casos em que a
escolha dos padrinhos extrapolava os limites do plantel, configurando o estabelecimento ou,
ainda, a ritualização de uma relação exógena ao ambiente da escravaria, seja com cativos das
fazendas vizinhas ou com a população livre da região. Essa escolha exógena dos padrinhos
perpassava, assim como o matrimônio, pelo imbricamento entre a esfera dos escravos e a
esfera senhorial. É pertinente considerarmos que os escravos tivessem plena consciência dos
indivíduos com quem poderiam estabelecer laços de compadrio, sem que a escolha acabasse
por ser vetada por Januário Antônio da Silva.

A nosso ver, dois aspectos são sugestivos dessa consciência. Em primeiro lugar, é bem
provável que os escravos soubessem que, no oratório do Engenho Bom Intento, apenas seriam
realizados batismos e casamentos com a autorização de Januário Antônio da Silva. Em outras
palavras, isso quer dizer que eram batizadas ou casavam pessoas cuja presença sua ou de seus
proprietários (no caso dos cativos) não desgostasse Januário. Sendo as cerimônias coletivas de
batismo e casamento importantes espaços de socialização dos escravos do Bom Intento com
sujeitos externos ao ambiente da escravaria, ampliava-se o leque de possibilidades possíveis

463
FARINATTI, Luís Augusto. Os compadres de Estêvão e Benedita: hierarquia social, compadrio e
escravidão no sul do Brasil (1821-1845). XXVI Simpósio Nacional de História, 2011. São Paulo/SP. Anais...
São Paulo/ SP: Associação Nacional de História, 2011. 16p.
211

para a seleção dos padrinhos. Em segundo lugar, também é razoável pensarmos que os cativos
tivessem ciência, mesmo que superficialmente, das relações entre Januário Antônio da Silva e
os demais senhores da região. Afinal, não esqueçamos que, no próprio oratório do engenho,
Januário foi padrinho de um filho e de um neto dos proprietários das terras vizinhas.464

A utilização do testamento e do inventário post-mortem de Joaquim Antônio da Silva


em complementaridade aos registros batismais e de casamento de sua escravaria, potencializa
o mapeamento dos vínculos que foram de fato exógenos àquele ambiente. Nesse sentido, por
meio do diálogo entre os diferentes tipos de fonte, suprimos as limitações relacionadas aos
assentos de batismo de Belém que diz respeito à condição sociojurídica dos padrinhos. Sem
dúvida, a investigação calcada apenas nos assentos paroquiais poderia nos levar a conclusões
precipitadas sobre alguns dos laços formados pelos escravos do Engenho Bom Intento. Caso
interessante é o do forro Veríssimo.

Durante os anos 1860, Veríssimo foi responsável por testemunhar e servir de padrinho
em algumas cerimônias de casamento e batismo de escravos do Bom Intento. O testamento e
o inventário de Joaquim Antônio possibilitou-nos ter ciência de que o forro fora, na verdade,
cativo da propriedade, tendo sido libertado pelas disposições testamentárias do antigo senhor.
A recorrência ao seu nome nos registros paroquiais sugere que, mesmo após a concessão de
sua alforria, Veríssimo não se distanciou do engenho. Considerando tão-somente os assentos
paroquiais, ele seria fatalmente tomado como um sujeito que, em face da sua (nova) condição
social, não pertencia ao ambiente da escravaria; quando, ao contrário disso, tratava-se de um
membro da comunidade, onde há tempos exercia o ofício de carpinteiro.

Para Veríssimo, Alberto Germano e outros tantos egressos do Engenho Bom Intento, a
experiência da liberdade e a nova condição social que lhes foi adjudicada por meio da alforria
não implicaram o seu afastamento da comunidade escrava do engenho. A recursiva presença
desses indivíduos no papel de testemunhas de casamento e de padrinhos de batismo sugere,
inclusive, que eles tenham permanecido enquanto agregados na propriedade. Muitas hipóteses
podem ser elencadas para explicar o porquê dessa possível permanência. A nosso ver, a mais
concreta das hipóteses é atinente aos vínculos familiares que os agora forros estabeleceram no
ambiente da escravaria. Conquanto Alberto, por exemplo, tenha sido alforriado, a sua esposa

464
ACMB. Livro IV de Registros de Batismo do Curato da Sé de Belém, p. 13.
212

Esperança e a sua filha, Umbelina, permaneceram no cativeiro, como indica o inventário de


Joaquim Antônio da Silva.465

Não há muitas referências ao compadrio exógeno na experiência analisada. Como já


destacamos, diferentemente do que ocorria no núcleo urbano de Belém, a maior dimensão do
plantel proporcionou que a maioria dos laços de compadrio estabelecidos pelos escravos do
Bom Intento remetesse-se a companheiros de escravaria. A dimensão do plantel ofertava aos
escravos um rol maior de possibilidades de escolha de padrinhos e compadres em seu próprio
meio, distintamente do que ocorria na região central da capital, Belém, marcada por pequenas
posses e pelo convívio diário entre escravos e a população livre.

Um dos únicos casos concretos nesse sentido é o batismo de Miguel. Em 04 de junho


de 1848, no oratório do engenho, o segundo filho da escrava Lúcia era batizado. Miguel teve
como padrinho ninguém menos que Manoel Joaquim Pinto de Paiva.466 Proprietário das terras
vizinhas ao Bom Intento, Manoel era compadre do próprio Januário Antônio da Silva. Não
sabemos ao certo o que motivou a firmação desse laço; porém, parece-nos claro que o mesmo
ocorreu sob evidente concordância de Januário. Como bem frisou Carlos Bacellar em relação
a um caso semelhante: “não seria de todo irreal supor que seus senhores interferiam, até para
facilitar as coisas, abrindo as portas, fazendo de seu compadre um compadre de seu cativo,
implementando redes de solidariedade mais complexas”.467 Lúcia mantinha, provavelmente,
uma relação próxima com Januário Antônio da Silva. Além de ser comadre de um compadre
seu, esteve entre os 15 escravos por ele alforriados.

A escolha de padrinhos mais bem posicionados socialmente, como no caso de Manoel


Joaquim Pinto de Paiva, acabava por constituir um importante mecanismo de reprodução
social, em termos diferentes do que foi o casamento legítimo naquela comunidade escrava. A
assimetria social existente entre as partes, responsável por conferir o caráter verticalizado às
relações estabelecidas, contribuía para reiterar a posição social dos envolvidos e, desse modo,
acabava por suprimir a pretensa ideia de igualdade entre os compadres. 468

465
As alforrias não elidiam, instantaneamente, os vínculos dos libertos com o antigo cativeiro. Observamos, no
CAPÍTULO II, casos em que forros apadrinhavam escravos de seus outrora senhores. Naturalmente, não eram em
todas as situações que os libertos permaneciam tão ligados à antiga escravaria, como no caso de Veríssimo e
Alberto Germano. Em relação à Veríssimo, que já era viúvo, a especialização em um ofício poderia facilitar sua
inserção no mercado de trabalho livre, conferindo-lhe uma ainda maior ascensão social. Sobre as trajetórias de
projeção social dos forros, ver especialmente: GUEDES, Roberto. Os egressos do cativeiro: trabalho, família,
aliança e mobilidade social (Porto Feliz, São Paulo, c.1798- c.1850). Rio de Janeiro: Mauad/FAPERJ, 2008.
466
ACMB. Livro IV de Registros de Batismo do Curato da Sé de Belém, p. 134.
467
BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Criando porcos e arando a terra, op. cit., p. 06.
468
Cf.: MACHADO, Cacilda da Silva. A trama das vontades, op. cit., p. 199.
213

Os escravos do Engenho Bom Intento não apenas buscavam, como também forneciam,
padrinhos e testemunhas de casamento a outros plantéis da região, embora as fontes sugiram
ter sido essa uma prática rara. Esses vínculos serviam, como apontamos anteriormente, para
dilatar, ainda mais, os limites daquela comunidade escrava. Na seção anterior, ao indicarmos
que escravarias distintas poderiam distintas práticas no que concerne ao casamento, citamos
como exemplo o caso do forro José Batista, que se casou com a escrava Justiniana Maria, de
Pedro Leal Aranha, em fevereiro de 1844.469 O enlace teve o escravo Clementino, pertencente
a Joaquim Antônio da Silva, como uma das suas testemunhas. O cativo havia sido, também,
padrinho de pelo menos outras duas crianças do Bom Intento: Sabina, filha da Apolinária, e
Porfino, filho de Joaquim e Francisca, referidos anteriormente.

Em paralelo ao casamento, o compadrio consubstanciava a ideia de uma comunidade


cativa em meio à escravaria do Engenho Bom Intento, cujos limites transcendiam as fronteiras
da propriedade e do próprio cativeiro. Serviam, nesse sentido, como um importante elemento
de constituição de redes sociais dentro e fora da própria comunidade, e que não apresentava
variações aparentes em função da condição de legitimidade e do sexo das crianças batizadas.
O perfil dos vínculos de compadrio constituídos pelos cativos do Bom Intento trouxe ao lume
outra face do compadrio de escravos na Belém oitocentista, que se diferia essencialmente das
tendências verificadas em relação à região central da cidade, ajudando a matizá-las.

RESUMINDO...

O Engenho Bom Intento, distante do núcleo urbano de Belém e com a sua escravaria
robusta, permitiu-nos ir além das discussões sobre o casamento e o compadrio de escravos na
cidade, apresentadas nos capítulos anteriores. As práticas de conjugalidade e de compadrio na
propriedade evidenciaram o que vimos destacando ao longo deste trabalho: um mesmo grupo
social (os escravos) apresentava, no mesmo período (1840-70), comportamentos diferenciados
no que respeita aos mesmos aspectos (casamento e compadrio). Se nos dois últimos capítulos,
sugerimos essa questão fundamentalmente a partir de uma condicionante – a posse de cativos
–, neste demonstramos que mesmo relativamente a um grupo específico, que partilhava de
muitas características comuns (local de moradia, condições de trabalho, origem “étnica” etc.),
havia diferenciações internas.

469
ACMB. Livro I de Registros de Casamento do Curato da Sé de Belém, p. 18(v).
214

Inicialmente, dedicamo-nos a analisar o perfil do plantel, a estrutura física do engenho


e aspectos cotidianos (como o movimento sazonal dos batismos e dos matrimônios) do Bom
Intento. Procedemos a essas reflexões não só como modo de situar o leitor em relação ao meio
social que analisamos, como também por considerarmos o mútuo condicionamento existente
entre estrutura de posse, casamento e compadrio de escravos; aspectos igualmente sugeridos
nos dois capítulos anteriores. Verificamos tratar-se de um grande plantel, mas que apresentava
uma razão de sexo particular, uma alta razão de dependência total e indicativos de natalidade
baixa e alta mortalidade. Mas não apenas isso... Além de maioria dos escravos do engenho ser
do sexo feminino, havia expressiva quantidade de escravos “jovens” e “velhos”. Apresentadas
essas considerações iniciais, passamos à discussão a respeito do casamento e do compadrio
propriamente ditos.

Articulando casos particulares às tendências de casamento no engenho e na cidade de


Belém, observamos que os cativos que legitimaram suas uniões na propriedade apresentavam
algumas especificidades. Os homens eram, em geral, maiores de 40 anos e possuidores de um
ofício, e as mulheres casavam-se em idades variadas. Além dessas características, observamos
que parte dos noivos era de condição legítima e pertencia a famílias muito provavelmente
estabelecidas na escravaria há algum tempo. Todos esses elementos, somados, levaram-nos a
concluir que o matrimônio perpassava, no caso em questão, pela posição dos escravos numa
hierarquia social endógena ao plantel, que se plasmava tanto pelas relações que os escravos
mantinham entre si, quanto pelas que mantinham com o senhor de fato, Januário Antônio da
Silva. O que fez com que os casamentos orbitassem em torno de algumas mesmas famílias,
que concentravam os cativos com ofício e que provavelmente mantinham uma boa relação
com Januário Antônio da Silva.

Essas poucas famílias eram ligadas entre si não apenas por casamentos, mas também
pelo compadrio, o nosso segundo objeto de análise. Tal como o matrimônio, o compadrio era
enviesado por uma clara perspectiva senhorial, não apresentando diferenciações quanto ao
sexo ou à condição de legitimidade dos batizandos. Nesse sentido, algumas vezes buscava-se
como padrinhos indivíduos com uma menor idade, que poderiam acompanhar os escravos
num mundo marcado por uma alta mortalidade. Em outras, procurava-se por compadres de
maior idade, detentores de algum ofício. Menos passíveis de uma ingerência senhorial do que
o casamento, porém ainda limitados pelas vontades e pelas relações de Januário, os laços de
parentesco espiritual constituem um elemento-chave para a compreensão de uma comunidade
215

escrava no Engenho Bom Intento, que extrapolava os próprios limites do plantel, abarcando
livres, forros e cativos de outras propriedades.

5.3. CONSIDERAÇÕES QUASE QUE FINAIS

Ao longo deste capítulo, discutimos o casamento e o compadrio focando numa família


de elite e num plantel específico, com a finalidade de matizar a compreensão das tendências
gerais, atinentes a esses aspectos, apresentadas nos capítulos anteriores. Optamos por analisar
o comportamento matrimonial e as práticas de compadrio dos Gama e Silva e dos escravos do
Engenho Bom Intento. Essa escolha deveu-se, como justificamos logo de início, pelo fato de
termos encontrado, em meio às séries de registros de batismo e de casamento pesquisadas, um
maior número eventos relacionados àquela família e àquela escravaria. O mérito não incide,
necessariamente, em avaliar a representatividade da família e do plantel analisados em relação
ao comportamento de seus congêneres, mas na possibilidade de podermos lançar mão de um
maior número de fontes para analisamo-los.

Inicialmente, concentramo-nos na família Gama e Silva. Observamos que, a partir dos


enlaces matrimoniais dos seus cinco filhos, o português José Joaquim da Silva constituiu uma
rede familiar presente na alta administração provincial e em importantes setores econômicos
tradicionais e mercantis da sociedade paraense oitocentista. Três de seus genros (Bernardo
Franco, José Malcher e Ambrósio Cunha) assumiram por diversas ocasiões a presidência da
província do Grão-Pará. Bernardo e Ambrósio foram ainda mais longe, ascendendo as suas
sólidas carreiras no âmbito da política imperial. O afastamento delas consequente, ao invés de
arrefecer a rede familiar instituída pelos cinco enlaces, pouco teve implicações nesse sentido.
Imediatamente após os matrimônios, as diversas ramificações familiares que faziam parte da
rede, outrora isoladas, passaram a interligar-se por meio dos testemunhos em casamentos e
das relações de compadrio endógenos à rede. Esses mesmos dois elementos foram utilizados,
ainda, com vistas a ampliar a clientela da família.

Partimos, em seguida, à análise do casamento e do compadrio no seio de um plantel


específico. Logo de início, em face do mútuo condicionamento existente entre a estrutura de
posse e a família escrava, procedemos à caracterização do engenho e do perfil de seu plantel.
216

Observamos que a grande dimensão da escravaria, a baixa presença de cativos africanos, uma
razão de sexo desnivelada e uma estrutura etária bem particular condicionaram o casamento e
o compadrio de escravos naquela propriedade de forma específica, diferenciando-a, dentro do
que pudemos verificar, das suas propriedades vizinhas. Ademais, examinamos como diversos
marcadores sociais (notadamente, o gênero e a geração) influenciavam aqueles aspectos de
diferentes formas, bem como a posição de cada cativo e de suas famílias em meio à hierarquia
social do plantel.
217

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste estudo, analisamos de que maneira diferentes grupos sociais experimentaram o


casamento e o compadrio em Belém, num contexto marcado pelo início de um evolver social,
demográfico e econômico no Grão-Pará. As três décadas abarcadas na pesquisa, constituintes
de um período intermediário entre a reestruturação na ordem social e econômica da província
no pós-Cabanagem, e a configuração de um novo complexo econômico dedicado à borracha,
nos possibilitaram investigar de que forma aquele evolver implicou mudanças e permanências
nas experiências familiares de diversos grupos sociais. De uma elite tradicional aos escravos,
passando por migrantes nacionais e estrangeiros, verificamos de que maneira esses diferentes
grupos fizeram uso do casamento e do compadrio com finalidades as mais diversas possíveis,
associadas ao interesse de reproduzir a sua condição social, de reforçar o seu pertencimento a
uma comunidade ou, ainda, de inserir-se socialmente.

O primeiro capítulo do estudo foi dedicado ao casamento. Observamos, inicialmente,


que as mudanças ocorridas no traçado urbano e na população de Belém decorreram nalgumas
alterações no perfil dos noivos que contraíram núpcias na freguesia da Sé. Em primeiro lugar,
os nubentes passaram a ser cada vez mais oriundos da região central da cidade, tornando-se
rarefeita a presença de indivíduos que se deslocavam a Belém só para casar-se. Em segundo
lugar, demonstramos que houve, também, uma alteração no perfil dos nubentes quanto à sua
naturalidade. Com a intensificação do fluxo migratório destinado à região, a partir da década
de 1850, o percentual de matrimônios que envolviam migrantes dobrou, subindo de 15 para
30%. Mas não apenas isso: uma antiga imigração marcadamente masculina passou a coexistir
igualmente com uma migração interprovincial, menos seletiva no que diz respeito ao sexo.

Além disso, verificamos que naqueles anos houve um aumento geral na nupcialidade
em Belém, tanto entre livres, como entre escravos. Embora tenha se tratado de um movimento
concomitante, operado a partir dos anos 1850 e que tendeu a estabilizar-se até mais ou menos
1870, acreditamos que ele tivesse diferentes causas. A nosso ver, o aumento na nupcialidade
dos escravos dizia muito mais respeito à rearticulação da escravidão brasileira, que teve o seu
caráter de transitoriedade consubstanciado com a proibição definitiva do tráfico Atlântico, do
que ao próprio evolver socioeconômico da região. A nupcialidade dos livres estava, por sua
vez, muito mais associada a questões locais. A reestruturação da Igreja e um possível aumento
218

na renda da população belenense levaram a uma ampliação do recorte social do casamento,


que passou a abarcar, muito provavelmente, um maior número de segmentos sociais.

Nesse meio, alguns grupos sociais apresentavam, também, diferentes comportamentos


matrimoniais. Demonstramos que, entre a elite tradicional, os enlaces eram diametralmente
endógenos, e tinham como objetivo ampliar suas redes familiares e reprodução sua condição
social. Entre os escravos, esse comportamento variava de acordo com a região da cidade em
que se situavam, mas em geral era marcado pelas endogamias social e étnica, e pelos enlaces
entre cativos de uma mesma escravaria. Havia, no comportamento matrimonial desse grupo,
uma pequena diferença em função do gênero. Comparativamente, os homens tinham maior
acesso ao casamento com livres e forras do que as mulheres escravas, o que poderia decorrer
tanto do fato de a condição sociojurídica da prole ser transmitida por via uterina, quanto de
um maior controle senhorial exercido sobre a conjugalidade das cativas.

Saindo da seara de discussão dos comportamentos matrimoniais dos dois extremos da


hierarquia social do Brasil oitocentista – a elite e os cativos –, passamos a analisar dois grupos
de migrantes: os portugueses e os cearenses. Entre os portugueses, um grupo bem arraigado
na sociedade paraense, as preferências pela endogamia ou pela exogamia étnica variavam em
consonância ao gênero. Os homens portugueses, em maior número, procuravam casar-se com
mulheres nativas, o que poderia ser-lhes particularmente bem interessante, no caso de estarem
envolvidos em atividades comerciais. As mulheres portuguesas, em menor número, buscavam
seus conterrâneos para casar-se. Os cearenses, com seu pequeno contingente recém-chegado
naqueles anos, apresentavam em geral uma tímida tendência à endogamia, justificada tanto
por um interesse no retorno à sua terra natal, como pela pouca interação que os indivíduos
analisados mantinham com a sociedade paraense.

No entanto, o casamento não se reduzia às alianças estabelecidas entre as famílias dos


noivos, nem mesmo à sua importância enquanto um importante mecanismo de reprodução ou
de assimilação social. O rito nupcial, além de representar por seu movimento sazonal um rico
indicador do cotidiano, também poderia representar um importante ato social, tanto no sentido
de evidenciar aos pares sociais a aliança matrimonial firmada e a nova condição dos noivos (a
de casados), quanto através das relações que se estabeleciam entre os nubentes, suas famílias
e as testemunhas do matrimônio. Se o movimento sazonal dos casamentos não dissonava de
acordo com a condição social de quem contraia núpcias, a dinâmica dos ritos matrimoniais era
idiossincrática ao grupo social envolvido. Entre a elite, por exemplo, existia uma tendência a
uma paradoxal noção de privacidade, que objetivava restringir o acesso público aos enlaces.
219

Concluída a primeira parte das discussões sobre o casamento, passamos a refletir sobre
o compadrio. Pelas limitações documentais apresentadas, a discussão centrou-se nas relações
estabelecidas pela elite e pelos escravos, grupos sociais mais fácil e seguramente discerníveis
pelos assentos batismais. Sem a pretensão de delimitarmos as tendências de comportamento
da daquela elite mais tradicional em torno do compadrio, o que seria igualmente infactível por
meio das fontes privilegiadas, adotamos uma estratégia analítica diferenciada, que tinha como
foco a tentativa de delinear uma lógica de ação desse grupo no que concerne ao compadrio. A
partir dessa perspectiva, verificamos que não somente havia uma lógica, como ela desaguava
em duas estratégias distintas. Com vistas a reproduzir a condição social da elite seus membros
procuravam estabelecer vínculos tanto entre seus pares sociais, reforçando as redes familiares
constituídas, quanto em relação a sujeitos de condição social menos privilegiada, engendrando
uma clientela – elemento de grande importância para a lógica política do Brasil oitocentista.

Se, por um lado, os enlaces daquela elite tradicional eram diametralmente endógenos,
havia no compadrio uma maior flexibilidade, ao ponto de estabelecerem laços com indivíduos
de muitos outros segmentos sociais. Essa interface pode ter sido ainda robustecida por novos
espaços de interação, relacionados ao trabalho e às atividades profissionais, que passaram a
ser ocupados por membros daquela elite. Essas novas sociabilidades que se criaram por meio
do exercício de profissões liberais, proporcionaram à elite expandir sua clientela igualmente
em relação a sujeitos em pleno enriquecimento ou ascensão social. Para esses sujeitos também
poderia ser particularmente interessante estabelecer relações de parentesco espiritual com
aquela elite, o que poderia lhes valer tanto a indicação a postos e cargos diversos, como a
inserção em circuitos de sociabilidade da alta sociedade paraense.

Os escravos foram o outro grupo que teve suas relações de compadrio examinadas. Em
relação a eles, apontamos que havia uma tendência mais geral de estabelecimento de relações
verticais, com a população livre. Essa tendência não apresentava variações conforme o sexo
ou a condição de legitimidade das crianças batizadas. Porém, ao considerarmos um indicativo
de posse, observamos que essa preferência se plasmava de acordo com as estruturas de posse
e os diferentes caráteres de socialização em que os cativos estavam imersos. Na região central
de Belém, marcada pelas pequenas posses pela grande interação com livres, aquela tendência
aos vínculos verticais era intensificada. Nas cercanias da cidade, espaços rurais e com grande
concentração de cativos, a preferência se invertia em direção aos vínculos horizontais. Essas
diferentes relações serviam tanto fortalecer um grupo de escravos, como também para buscar
amparo social vis-à-vis indivíduos de condição social superior.
220

As sociabilidades dos escravos não deixavam de ser controladas, mesmo que nos casos
aparentemente mais independentes. A ingerência senhorial, também presente nos casamentos
desse grupo, fazia-se presente tanto nas relações horizontais, quanto nas verticais. A parentela
e as redes familiares dos senhores tinham interposição direta nesse controle. Primeiramente,
quando os parentes do senhor serviam de padrinhos ou madrinhas aos cativos, o que ocorreu
em 25,6% dos casos. Essa prática reiterava o controle e a assimetria social entre os senhores e
sua escravaria, criando um componente a mais de dominação e submissão. Em segundo lugar,
quando as redes familiares dos senhores constituíam um limite para o estabelecimento de
laços de horizontais de compadrio entre escravos de diferentes plantéis. Nos casos em que
identificamos essa prática, pudemos observar que os proprietários eram de famílias aliadas. O
controle senhorial sobre os batismos dos escravos fazia-se sentir, inclusive, nos dias em que
ocorriam esses eventos, concentrados nos domingos.

Em geral, os locais onde ocorriam os batismos, e o seu respectivo movimento sazonal,


possuíam aproximações e distanciamentos com os locais, e a sazonalidade dos matrimônios.
Aparentemente, os casamentos eram um evento com maior projeção social que os batismos,
pelo menos para a elite. Enquanto esse grupo insistia em realizar os matrimônios em Belém e
em ambientes mais “privados”, os batismos também costumavam ocorrer nas igrejas ou em
suas propriedades no interior da província. Havia, todavia, uma grande aproximação quanto à
realização preferencial dos batismos e dos casamentos em períodos específicos do ano e da
semana, salvo as exceções impostas à realização dos enlaces em determinados meses. Via de
regra, os “eventos vitais” ocorriam nos meados dos anos e aglutinavam-se em fins de semana
(aos sábados ou domingos).

As mesmas perguntas feitas para o casamento e o compadrio em geral, foram feitas em


relação a dois casos específicos. Buscamos examinar de que maneira uma família de elite (os
Gama e Silva) e uma escravaria (a do Engenho Bom Intento) específicas experimentaram o
casamento e o compadrio naqueles anos. O esforço de compreensão, a partir da microanálise,
permitiu-nos ir além das tendências gerais e das lógicas de ação apontadas anteriormente. Os
comportamentos matrimoniais dos escravos, por exemplo, não mais se dividiam entre homens
e mulheres, mas entre cativos que possuíam ou não ofício, que tinham mais ou menos idade,
que pertenciam ou não a famílias estabelecidas há mais tempo naquele plantel. Ou então, ver
mais amiúde o processo de conformação das redes familiares por meio do matrimônio, de sua
consolidação e da posterior criação de uma clientela através do compadrio. Articulando esses
casos às tendências gerais apontadas, abriram-se interessantes possibilidades de análise.
221

A análise da trajetória dos Gama e Silva permitiu-nos observar, mais claramente, de


que modo o casamento e o compadrio atuavam articuladamente com vistas a estabelecer redes
familiares, evidenciado a complexidade das tessituras sociais nas quais os sujeitos analisados
estavam incrustados. Na constituição de sua rede familiar, os casamentos representaram, ao
mesmo tempo, um ponto de chegada e um ponto de partida. De chegada, na medida em que
simbolizaram a ritualização de relações estabelecidas anteriormente nas esferas comerciais,
militares e políticas. E, de partida, ao ponto em que possibilitaram não apenas o estreitamento
das relações mantidas entre as famílias que deram origem àquela rede, como ao darem ensejo
à criação de uma parentela por meio do apadrinhamento de crianças de condição social menos
privilegiada e do testemunho em casamentos de indivíduos de diversos segmentos sociais.

Tanto a “história de casamentos” dos Gama e Silva, quanto a lógica de ação da família
no que respeita ao compadrio, comungavam com seus congêneres mais gerais. Os casamentos
ocorreram com outras famílias da mesma elite tradicional, havendo uma maior flexibilidade
relativamente ao compadrio. Entretanto, um caso particular envolvendo os Gama e Silva nos
permitiu avançar na discussão sobre o compadrio entre as famílias de elite. Eles não somente
tornaram-se compadres de indivíduos em ascensão social associada ao exercício de profissões
liberais, como se conectaram a sujeitos em pleno processo de enriquecimento, relacionado ao
comércio da borracha. Essa evidência é sugestiva de que a interação de uma elite tradicional
com indivíduos ligados à borracha pode ter sido anterior ao próprio boom econômico da goma
elástica, ocorrido da década de 1870 em diante.

Por sua vez, a investigação do casamento e do compadrio dos escravos do Engenho


Bom Intento, ensejou-nos vislumbrar algumas novas nuances que permearam as experiências
familiares dos escravos na Belém oitocentista. As características particulares da propriedade
(de grande escravaria e situada num ambiente rural) constituíram um meio social diferenciado
daquele existente na região central da cidade. A análise desse plantel levou-nos a observar que
a compreensão do casamento e do compadrio de escravos deve ir muito além dos elementos
apontados anteriormente. Não só o gênero no caso dos enlaces, ou a condição de legitimidade
no caso do compadrio, poderiam condicionar diferentes preferências. A questão é muito mais
complexa, e envolve o entendimento das próprias posições sociais dos cativos em meio a uma
hierarquia social interna do Engenho Bom Intento, em grande parte demarcadas pela prática
de um ofício, pela geração ou pelo pertencer a um grupo (como uma família) estabelecido há
mais tempo na propriedade.
222

Em paralelo a essas discussões, observamos que, se por um lado, o casamento servia


para consolidar o grupo e a posição de determinados escravos em seu meio, o compadrio ia
além disso, criando laços fora do escravaria e do próprio cativeiro, consubstanciando à ideia
de uma comunidade escrava que extrapolava os limites da propriedade, abrangendo cativos de
outros plantéis, forros e livres da região. Ao evidenciar outra das muitas faces do casamento e
do compadrio de escravos na Belém oitocentista, a análise do Engenho do Bom Intento veio a
matizar a compreensão dada às relações familiares dos escravos naqueles anos.

As últimas páginas, que vieram a sintetizar as conclusões do estudo apresentado, são


elucidativas das múltiplas formas pelas quais diferentes grupos, enviesados por marcadores
sociais e caráteres de socialização específicos, experimentaram as relações familiares em um
período marcado pelo limiar de um evolver social e demo-econômico na província. Assim,
esperamos ter contribuído não apenas ao melhor entendimento de um contexto ainda pouco
estudado, mas também ao apontarmos outras nuances que permearam as relações familiares
de livres e escravos no Grão-Pará oitocentista.
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Livro VI de Registros de Batismo da Freguesia da Sé de Belém
Livro VII de Registros de Batismo da Freguesia da Sé de Belém
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