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O QUE É PREGAÇÃO BÍBLICA?1


Por José Jairo do Amaral Filho2

RESUMO
Em tempos em que a arte de falar em público está em ascendência, a pregação bíblica
está em decadência. Pregação bíblica e falar em público não são atividades idênticas. Há uma
confusão na definição, expectativa e função em cada uma dessas duas atividades. A pregação
bíblica é obra de Deus através dos expositores bíblicos; enquanto que a oratória é apenas uma
arte humana. Diante disso, o propósito desse trabalho é fazer uma exposição e análise da
definição de pregação bíblica apresentada por John Stott, e promover um debate com alguns
aspectos do legado do liberalismo teológico na atualidade. Esse legado tem confundido
pregação com preleção; a verdade de Deus com a comunicação humana. Por isso, há uma
necessidade urgente de definir claramente pregação bíblica para atual geração com o legado
de John Stott.

PALAVRAS-CHAVE: John Stott, pregação bíblica, liberalismo teológico, falar em público,


moralismo religioso, Palavra de Deus, exposição bíblica.

ABSTRACT
In a time when the art of speaking in public is rising, biblical preaching is in decay.
Biblical preaching and public speaking are not identical activities. There is confusion in the
definition, expectation, and function in each of these two activities. Biblical preaching is the
work of God through the Bible exhibitors; While the speech is just a human art. Given this, the
purpose of this work is to make an exhibition and analysis of the definition of biblical preaching
by John Stott and promote a debate with some aspects of the legacy of theological liberalism.
This legacy has confused preaching with lecture; the truth of God with human communication.
Therefore, there is an urgent need to clearly define biblical preaching for the current
generation with the legacy of John Stott.

KEYWORDS: John Stott, biblical preaching, theological liberalism, public speaking, religious
morality, Word of God, Biblical Exposition.

1
Artigo apresentado como Trabalho de Conclusão de Curso realizado com a orientação do Profº Eduardo
Abrunhosa, para cumprimento das exigências do curso de integralização de créditos em teologia, turma especial
2016, na Universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo.
2
Aluno do Curso de Convalidação em Teologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Turma Especial.
Número do TIA: 31677551.
2

INTRODUÇÃO
Estamos vivendo o “renascimento da arte de falar em público”. (ANDERSON, 2016, p.
11). Cada vez mais surge o interesse de gente discursando em público; e público interessado
em ouvir gente discursando.
Há os que procuram ser palestrantes. Estes são aqueles que desejam aprender a falar
em público pela necessidade de alguma atividade profissional; como por exemplo, a
apresentação específica de um projeto. Existem também aqueles que sua profissão exige uma
expressão verbal mais aprimorada. Por exemplo: vendedores, professores, políticos. Estes
estão buscando se aperfeiçoar na arte de falar em público no contexto do mercado
profissional cada vez mais competitivo3.
Há também os que procuram ouvir palestras. Atualmente há um fenômeno na
comunicação social; a saber, o interesse do grande público por palestras, seja de cunho
motivacional4 ou educacional5. E ainda há o fenômeno dos youtubers6 da internet. Anônimos
se tornam famosos atrás de uma câmera amadora com um discurso que alcança milhares de
pessoas online. Cresce cada vez mais o auditório virtual muito atraído por pessoas que
comunicam alguma mensagem de interesse do grande público.
As palestras e os palestrantes estão cada vez mais em destaque na sociedade de
consumo. A palestra se tornou um produto de consumo, seja por capacitação profissional ou
educacional; ou, simplesmente, o entretenimento pelo entretenimento7. E dentro desse
contexto, o palestrante se tornou uma figura pública, um formador de opinião, uma
celebridade.

3
A procura por esses cursos demonstra o grande interesse de muitos profissionais pela arte de falar em público
para agregar seu currículo. Um exemplo de um grande mestre da retórica no Brasil é Reinaldo Polito. Ele oferece
muitos cursos e já escreveu vários livros sobre este tema. Para maiores informações acesse:
http://www.polito.com.br/
4
Palestras de autoajuda ainda fazem sucesso. Um grande exemplo são as palestras de Anthony Robbins. Ele é
um escritor e palestrante motivacional que tem atraído milhares de pessoas para suas palestras motivacionais.
Ele promove um evento chamado “Encontro com o Destino” onde pessoas passam uma semana ouvindo várias
de suas palestras a fim de mudarem suas vidas. A Netflix, uma provedora global de filmes e séries de televisão,
publicou um documentário, chamado de “Eu não Sou seu Guru”, muito interessante sobre esse palestrante nesse
evento.
5
Leandro Karnal, Clóvis Barros Filho, Luiz Felipe Pondé, Mário Sergio Cortella, atualmente, são os grandes
professores que tem lotado auditórios por suas palestras e ganhado milhares de visualizações em vídeos na
internet.
6
Em uma definição muito informal, “youtuber“ é aquele que grava vídeos e os publica no site de vídeos
https://www.youtube.com. Dentre esses “youtubers” há a categoria daqueles que simplesmente ficam atrás de
uma câmera amadora dentro de um quarto e passam a falar para um numeroso público online. Atualmente, a
curitibana Kéfera Buchmann e o piauiense Whindersson Nunes são considerados os mais famosos youtubers
brasileiros, por conseguirem milhares de visualizações. Esse fenômeno da comunicação online está produzindo
um novo tipo de trabalho, o profissional youtuber.
7
Um exemplo dos que falam em público como entretenimento são os comediantes do standup comedy. Nos
últimos anos, estes comediantes promoveram uma revolução na comédia. Atualizaram a comédia ao
promoverem espetáculos de humor, apresentado por apenas um comediante que fica em pé – por isso, o termo
¨stand-up¨ - sem fantasias, imitação, personagens, cenários.
3

Nesse contexto do renascimento da arte de falar em público, projetos como o TED


Talk8 tem sido referencial na arte de falar em público. Este evento promove várias palestras
curtas sobre diversos temas e que duram em média 12 a 15 minutos cada palestra. Os
auditórios estão lotados para ouvir essas palestras e os seus vídeos estão sempre quebrando
recordes de visualizações. O interesse por essas palestras é um bom sinal, pois tem produzido
a democratização da informação pela preleção e o bom gosto pelo aprendizado contínuo e
diverso.
Nesse contexto, há ainda a preleção religiosa cristã. O crescimento explosivo do
neopentecostalismo e do catolicismo carismático na mídia tem destacado o discurso religioso
no púlpito. Tem acontecido uma multiplicação desenfreada de pregadores famosos e
anônimos. Estes pregadores estão espalhados nas igrejas locais ou na mídia. Igrejas ficam
lotadas para ouvir um grande pregador famoso. As redes sociais compartilham rapidamente
vídeos desses preletores cristãos. Muitos deles se tornaram celebridades com suas legiões de
fãs, seguidores, admiradores e imitadores que os reproduzem. Há uma verdadeira tagarelice
nos púlpitos cristãos da atualidade. Tem pregação e pregadores para todos os gostos.
Uma vez que a oratória e a preleção religiosa estão crescendo, surgem perguntas com
inquietação em busca de discernimento bíblico dentro atual evangelicalismo protestante:
Qual o lugar da verdadeira pregação bíblica nesse contexto novo do renascimento da arte de
falar em público? Todo discurso religioso que usa o texto sagrado é uma pregação bíblica?
Qual a diferença entre uma preleção que usa o nome de Deus e a pregação do evangelho?
Diante disso, o presente trabalho tem o objetivo de definir a verdadeira pregação
bíblica, ao utilizar, como referencial teórico, os conceitos de John Stott. O recorte temático
deste trabalho excluiu os formatos clássicos de construção de sermão9, bem como as mais
avançadas técnicas de comunicação da atualidade para falar bem em público,10 com
sensibilidade para a epistemologia da nova geração. Esses assuntos são importantes. Mas,
mais importante ainda, é definir o que realmente é pregação bíblica dentro do contexto do
renascimento do interesse por palestras e palestrantes. Para isso, o roteiro deste trabalho
abordará o declínio da pregação e a diferença entre discurso religioso e a pregação bíblica,
com base nos conceitos bíblicos apresentados por John Stott.

8
“TED começou como uma conferência anual, com palestras nos campos de Tecnologia, do Entretenimento e do
Design (daí o nome). Nos últimos anos, porém, o programa se expandiu e passou a cobrir qualquer tópico de
interesse público. Os palestrantes procuram difundir suas ideias entre as pessoas que não atuam em seu campo,
e para isso realizam palestras breves preparadas com todo cuidado. [...] No programa TEDx, organizadores locais
solicitam uma licença gratuita, o que lhes permite realizar uma experiência ao estilo TED. Entre oito e nove
eventos dessa natureza são realizados por dia em todo mundo”. (ANDERSON, 2016, p. 12 e 13)
9
Cf. BRAGA, James. Como preparar mensagens bíblicas. São Paulo: Editora Vida, 1986. James Braga apresenta
nesse livro clássico os principais tipos de sermões bíblicos: temático, textual e expositivo.
10
Cf. ANDERSON, Chris. TED Talks: o guia oficial do TED para falar em público. Rio de Janeiro: Intrínseca, 1º
edição, 2016. Este é considerado o mais recente e avançado livro sobre a arte e a ciência de falar bem em público.
4

1. O DECLÍNIO DA PREGAÇÃO BÍBLICA


A pregação bíblica está em declínio. É certeiro e atual esse diagnóstico de John Stott:
Quem quer ouvir sermões hoje em dia? As pessoas estão dopadas pela
televisão, hostis à autoridade, cansadas de tantas palavras. Quando começa
o sermão, elas ficam impacientes, inquietas e entediadas. Nós não podemos
pressupor que as pessoas queiram nos ouvir; temos de lutar para conseguir
sua atenção. (STOTT, 1998, p. 228)

Muitas igrejas e auditórios estão lotadas de gente atraída por programações religiosas
em que há preleções religiosas que usam o nome de Deus. Igrejas estão crescendo em número
e arrastando, acolhendo e acumulando multidões de ouvintes fiéis.
“Embora nos alegremos com as estatísticas de crescimento da igreja, temos
de admitir, para nossa vergonha, que este é geralmente um crescimento sem
profundidade. Existe muita superficialidade em toda parte. E eu mesmo, pelo
que tenho observado, estou convencido de que o baixo nível de vida cristã é
resultado, mais do que outra coisa, do baixo nível de pregação cristã. É
verdade que quem renova a igreja é o Espírito Santo, mas a espada do
Espírito é a Palavra de Deus. A meu ver, nada mais importante para a vida e
crescimento, saúde e aprofundamento da igreja contemporânea do que
resgatar uma pregação séria da Bíblia”. (STOTT, 1998, p. 229)

Hernandes Dias Lopes diz (1999 apud STOTT, 2008, p. 68) analisa a falta de pregação
bíblica expositiva hoje.
A verdadeira pregação cristã (ou seja, pregação ‘bíblica’ ou ‘expositiva’) é
extremamente rara na igreja de hoje. Jovens zelosos, em muitos países, estão
buscando por ela, mas não conseguem encontrá-la. Por quê? A principal
razão deve ser a falta de convicção da sua importância.

A relativização da veracidade das Escrituras e a pregação de moralismo religioso são


os principais motivos para o declínio da verdadeira pregação do evangelho. Eis a exposição
desses dois motivos a partir do contexto do liberalismo teológico do século XX:

a) A relativização das Escrituras


Atualmente há a disseminação da dúvida quanto à autoridade e à veracidade da
Palavra de Deus. Martyn Lloyd-Jones afirma que este é o primeiro fator do declínio da
pregação bíblica: “Eu não hesitaria em colocar na primeira posição a perda da confiança na
autoridade das Escrituras e uma diminuição na crença da verdade”. (LLOYD-JONES, 2008, p.
18). O resultado disso é a relativização da veracidade das Escrituras travestida por uma nova
5

configuração do antigo liberalismo teológico11. Os liberais adotam em maior ou menor medida


o método histórico-crítico12 de interpretação da Bíblia para a sua pregação.
O método interpretativo por excelência de liberais, neo-ortodoxos e
libertinos para ler a Bíblia é o histórico-crítico. Alguns deles não tem a menor
idéia do que esse método se propõe. Mas, todos os mais esclarecidos, são
adeptos dele. Como qualquer outro, esse método parte dos pressupostos
racionalistas e existencialistas que subjazem ao Iluminismo. Liberais jamais
poderiam adotar um método que já se inicie com a idéia de que a Bíblia, por
ser divinamente inspirada, está livre de erros nos originais”. (LOPES, 2008, p.
49)

O liberalismo teológico, como movimento acadêmico, teológico e filosófico, já


terminou historicamente13. Mas seus pressupostos filosóficos e seu conjunto de ideias
teológicas ainda está muito vivo e atuante no Brasil. Augustus Nicodemus diz que o “método
histórico-crítico continua sendo usado nos meios acadêmicos de estudo bíblico em muitos
países, dos quais o Brasil não é exceção”. (LOPES, 2005, p. 117).
O impressionante é que a doutrinação liberal tem saído do ambiente acadêmico e está
disseminada na cultura popular cristã. A mentalidade do liberalismo teológico dissemina a
negação do milagre do nascimento virginal de Cristo, sua obra vicária na cruz, a natureza
pecaminosa de toda humanidade, a veracidade de toda Escritura entre outras doutrinas do
cristianismo bíblico e histórico. Isso desemboca na relativização libertina de questões éticas
como aborto, eutanásia, homossexualismo, família, casamento, sexo, feminismo e afins.

11
Para uma melhor análise do liberalismo teológico em comparação com as doutrinas bíblicas leia: MACHEN, J.
Gresham. Cristianismo e liberalismo. São Paulo: Shedd Publicações, 2012. Veja principalmente o capítulo IV,
intitulado “A Bíblia”, onde o autor aponta que o liberalismo moderno interpreta a Bíblia como um livro antigo
sem relevância para a atualidade e, ainda, contém erros. Diante disso, Machen levanta a tese que “a salvação
realmente depende do que aconteceu muito tempo atrás, mas esse evento de muito tempo atrás tem efeitos
que continuam até hoje” (p. 64). O autor segue dizendo que os autores bíblicos foram preservados de erros,
apesar da permanência plena de seus hábitos de pensamento e expressão, de tal forma que o livro resultante é
uma regra infalível de fé e prática. A doutrina da inspiração plena é exposta pelo autor para combater os ataques
do liberalismo moderno à Bíblia. “A verdade é que a doutrina da inspiração plena não nega a individualidade dos
autores bíblicos; não ignora o uso que fizeram de meios ordinários para angariar informações; não envolve
nenhum tipo de interesse nos contextos históricos, que deram oportunidade para o surgimento dos livros
bíblicos” (p. 67).
12
FEE e SUART (1984, p. 245) dizem que o método histórico-crítico “não é, a rigor, um mas variados métodos de
estudo de um texto [...] Não há dúvida de que um dos principais elementos causadores do surgimento do
“método histórico-crítico” foi a pretensão de tornar os estudos bíblicos científicos, ou seja, fazê-los compatíveis
com o modelo científico e acadêmico da época”. Cf. O método histórico-crítico–uma avaliação, em FEE, Gordon,
e STUART, Douglas. Entendes o que lês? São Paulo: Edições Vida Nova, 1984, p. 237-318.
13
Do ponto de vista histórico, Grenz e Olson (2013, p. 58, 59) introduzem uma definição de liberalismo teológico:
“Do ponto de vista histórico, porém, o “liberalismo” refere-se a um movimento específico do protestantismo,
que dominou a teologia acadêmica entre o final do século 19 e o começo do século 20. Ele surgiu primeiramente
na Alemanha, entre os seguidores de Schleiermacher e Hegel, e encontrou sua forma de maior influência na
escola de Albrecht Rischl [...] Os termos “rtschliano” e “protestante liberal clássico” são quase sinônimos [...] Há
três pensadores que se destacam como os mais representativos da essência da teologia liberal do final do século
19 e início do século 20: Albrecht Ritschl, Adolf Harnack e Walter Rauschenbusch”.
6

Grenz e Olson (2013, p. 59, 60) relatam algumas características da teologia liberal.
Dentre elas, há essa que é um flagrante explícito de como o liberalismo teológico negou a
veracidade das escrituras:
...a maioria dos teólogos liberais procurava basear a teologia em alguma outra
fundação, que não fosse a autoridade absoluta da Bíblia. Acreditavam que o dogma
tradicional da inspiração sobrenatural das Escrituras havia sido irremediavelmente
enfraquecido pela pesquisa histórico-crítica. Não apenas as tradições da igreja, mas
também grande parte da própria Bíblia são como “palha do milho” que esconde
dentro de si os “grãos” preciosos da verdade imutável. Os liberais não desprezavam
a Bíblia e nem a consideravam completamente sem valor. Na verdade, procuravam
dentro dela o “evangelho” – o cerne e o referencial eterno da verdade que não podia
ser corroído pelos ácidos do conhecimento científico e filosófico moderno. Para eles,
a tarefa da teologia era identificar o grão, a “essência do cristianismo”, e separar
claramente toda a palha de ideias culturais e expressões que o envolviam. Para
muitos teólogos liberais, essa palha incluía os milagres, os seres sobrenaturais, como
anjos e demônios, e os acontecimentos apocalípticos.

Atualmente, mesmo sem a forte visão científica do iluminismo do século XX, mas com
os óculos do subjetivismo pós-moderno, as consequências do liberalismo teológico no
evangelicalismo popular, genérico e relativista produzem e disseminam algumas crenças
como essas: A Bíblia é apenas um manual ético de bons costumes e moralidade. Deus criou o
universo e o abandonou com leis de causa e efeito. A felicidade humana está em conhecer e
manipular essas leis universais com o poder da mente. Jesus foi apenas um modelo de mártir
exemplar e inspirativo. A salvação, exclusiva pela graça de Cristo, foi reduzida ao universalismo
de todas experiências espirituais, éticas, religiosas, transcendentais, sincréticas e salvadoras
através de todas as divindades, promotoras das chamadas “poligamias da alma”14. Essas
crenças pós-modernas herdadas do liberalismo teológico são fatais para a pregação bíblica.

b) Moralismo religioso
Outro motivo para o declínio da pregação bíblica é o moralismo religioso propagado
nos púlpitos da igreja. Mesmo com a ascensão da pregação religiosa na mídia, auditórios e
templos, há um declínio da verdadeira pregação bíblica. Não se pode confundir: Moralismo
não é evangelho. Discurso religioso não é pregação bíblica. O fato de um pregador subir ao
púlpito e pregar moralidade religiosa baseada no texto sagrado não significa,
necessariamente, que ele pregou biblicamente o evangelho de Deus. É preciso discernir essa
diferença.
O moralismo na pregação é uma das heranças do liberalismo teológico. O liberalismo
teológico é uma religião totalmente diferente do Cristianismo e muito pernicioso para a igreja
pois se utiliza da mesma terminologia cristã tradicional, porém com significados teológicos e
filosóficos totalmente diferentes da teologia bíblica e reformada. Por isso, muitos não

14
Essa expressão é usada por Machen (2012, p. 106) quando falava da pregação do evangelho por missionários
transculturais em países idólatras e sincréticos: “O Cristianismo não tem nada a ver com essas “poligamias da
alma”; exigia-se uma devoção absolutamente exclusivas; todos os outros salvadores, insistia-se, deveriam ser
abandonados em favor do único Senhor”.
7

conseguem perceber o declínio da pregação bíblica no contexto de ascensão do discurso


religioso.
É importante lembrar que uma das consequências do liberalismo teológico é reduzir a
mensagem do evangelho em ética universal. Para Grenz e Olson (2013, p. 59) “a teologia
liberal concentrava-se na dimensão prática ou ética do cristianismo”. Como um dos
pressupostos do liberalismo teológico foi propagar a história15 do mundo blindada ao
transcendente, o deísmo16 foi um postulado teológico do liberalismo de muito destaque e
principal fundamento para o moralismo religioso dentro do cristianismo. Se não há
transcendência, apenas leis de causa e efeito, a moralização da doutrina bíblica é o ideal do
liberalismo teológico.
Matos (2008, p. 213) lista, em síntese, três ideias básicas defendidas pelo deísmo:
1. O cristianismo autêntico deve refletir plenamente a religião e a moralidade
naturais, que são racionais e acessíveis a toda as pessoas. 2. A religião
verdadeira trata basicamente da moralidade social e pessoal. As crenças
religiosas, como a existência de Deus, a imortalidade da alma e as
recompensas e castigos futuros, servem apenas como suportes práticos para
a ética. 3. As pessoas esclarecidas devem encarar com ceticismo as alegações
de revelações e milagre sobrenaturais.

Abrecht Ritschl (1822-1889) foi o teólogo de maior influência na teologia liberal do


final do século 19 e início do século 20. Ele exerceu uma influência tão grande entre 1875 e
1925, que o ritschlianismo tornou-se sinônimo de protestantismo liberal. Em sua teologia,
Ritschl tinha pouquíssimo a dizer sobre o caráter de Deus, como também deu pouco destaque
a doutrina do pecado. “Ele afirmava que a teologia cristã só está interessada nos efeitos que
Deus exerce sobre as pessoas e nos julgamentos de valor apropriados a esses efeitos”.
(GRENZ, OLSON, 2013, p. 63). Ritschl dispensava a trindade e os atributos metafísicos
tradicionais de Deus.
“Para Ritschl, a principal afirmação teológica do cristianismo é “Deus é amor”
[...] Ritschl estava muito interessado no reino de Deus do que Deus em si.
Jesus havia proclamado o reino de Deus que, de acordo com Ritschl, é a
unidade dos seres humanos organizados de acordo com o amor [...] a ênfase

15
A neo-ortodoxia, principalmente na pessoa de Karl Barth, ao combater o liberalismo teológico, produziu a
distinção entre a historie (história, fatos brutos) e heilsgeschichte (história santa ou história salvífica). LOPES
(2008, p. 114) diz: “Essa distinção cria dois mundos distintos e não conectados, o mundo da história bruta, real,
factível e o mundo da fé, da história da salvação”. A neo-ortodoxia acabou produzindo o Jesus histórico e o Cristo
da fé. Com isso, interpretou a Bíblia afirmando que há erros e mitos na historie, porém, o que é mais importante
é a busca pela mensagem da salvação na heilsgeschichte. Ao renunciar todo conteúdo sobrenatural da história
da salvação registrado nas Escrituras, tanto a neo-ortodoxia como o liberalismo teológico reduziram a pregação
bíblica, que sempre foi baseada na inspiração plena das Escrituras, em moralismo religioso.
16
Do ponto de vista teológico, o Deísmo é a crença racionalista de um deus que criou o universo e o deixou
funcionando sozinho, regido pelas leis de causa e efeito. Do ponto de vista histórico, o deísmo, ou religião natural,
surge no contexto do Iluminismo pós-Reforma. Essa crença racionalista afirmou a autoridade suprema da razão
em todas as questões de fé bíblica. “O deísmo é considerado a religião do Iluminismo. Seu pensamento era
reconstruir o pensamento cristão, sob pena de que se tornasse irrelevante no novo mundo científico”. (MATOS,
2008, p. 210). Seus expoentes são os ingleses Hebert de Cherbury (1583-1648), John Locke (1632-1704), John
Toland (1670-1722), Matthew Tindal (1655-1733).
8

da doutrina de Deus no liberalismo estava na imanência dentro da história e


não na transcendência dele sobre ela”. (GRENZ, OLSON, 2013, p. 63, 64).

Para o liberalismo teológico de Ritschl, o cristianismo - ou o reino de Deus - é apenas


o amor entre as pessoas para a transformação do mundo. A fé bíblica e o reino de Deus foram
reduzidos à moralidade ética de uma sociedade amorosa.
“O cristianismo não é uma religião referente a outro mundo, mas à
transformação deste mundo mediante a ação ética inspirada no amor. Ser
cristão é procurar estabelecer o reino na terra de modo relevante, racional e
prático [...] Ritschl reduziu o cristianismo à moralidade. Deu ênfase ao amor
de Deus, e não à sua justiça, dando pouco destaque ao pecado e à graça. Ele
também reinterpretou a divindade de Jesus. Ela somente significa que Jesus
cumpriu plenamente sua vocação de encarnar o reino de Deus entre os seres
humanos. Jesus não preexistiu à sua vida humana a não ser na mente de
Deus”. (MATOS, 2008, p. 218)

Matos (2008, p. 218) lista três temas principais que condicionaram a teologia de
Ritschl:
“...primeiro, a imanência divina, ou seja, a continuidade entre Deus e a
natureza numa espécie de panteísmo ou de panenteísmo (mutualidade entre
Deus e o mundo); segundo, por influência de Kant, a moralização do dogma,
isto é, a tendência de reinterpretar todas as doutrinas cristã em termos
éticos e morais; terceiro, a crença na salvação universal da humanidade
(universalismo).

É importante lembrar o fracasso liberal na promoção do moralismo. A modernidade17


tinha uma visão otimista do futuro da humanidade. A cosmovisão do projeto moderno
acreditava no progresso do humanismo secular. Se o homem liberasse a razão para investigar
o mundo cientificamente, seria impossível e inevitável o progresso humano. Mas o reino
soberano da razão humana na modernidade decepcionou a todos. As carnificinas humanas
das duas grandes guerras mundiais do século XX; e um mundo cheio de fome, miséria,
epidemias, violência urbana, depressão e niilismo18 demonstraram que o ideal moderno é
inalcançável, insatisfatório, irrelevante e incapaz de responder as mais profundas questões
existenciais do ser humano.
A primeira guerra mundial deu um golpe mortal no projeto moderno. Stalin
na Rússia e Hitler na Alemanha deram os últimos toques em seu
sepultamento. Filósofos e escritores como Derrida, Camus, Sartre e Rorty,
entre outros, deram o seu atestado de óbito, enquanto que artistas,
arquitetos e sociólogos começaram a entronizar o seu sucessor. (ESCOBAR,
SALINAS, 1999, p. 23)

As portas do século XXI se abrem para o relativismo do período pós-moderno. Este


período recebe, como umas das heranças, o liberalismo teológico diluído na cultura religiosa

17
“As opiniões quanto ao início da era moderna variam. Alguns consideram o Renascimento (séculos XIV e XV),
enquanto que outros optam pelo período do Iluminismo (século XVIII), conhecido também como o Século das
luzes. Também não há um consenso quanto aos limites, e quanto a uma definição clara do que seja
modernidade”. (ESCOBAR, SALINAS, 1999, p. 13).
18
Teoria filosófica que afirma não haver sentido fundamental na existência humana, não existe propósito, valor
nem virtude transcendente. Em última análise, existe apenas o nihil – das nicht – “o nada da existência humana”.
9

do ecumenismo. Agora, sem a cosmovisão da modernidade, o pós-moderno é totalmente


insubordinado a toda autoridade absoluta fora de si mesmo. Por isso, há ainda insubordinação
à autoridade suprema da Bíblia. A ciência nem a fé são a última palavra acerca da verdade.
Cada um tem e produz a sua verdade. A relativização da verdade e o individualismo abrem
espaço para todo sincretismo e ecumenismo. A Bíblia é crida, lida e aceita como qualquer
outro livro religioso. A herança do liberalismo na pós-modernidade não está na hermenêutica
científica da Bíblia, mas sim na sua aceitação plena como um livro de fé igual a qualquer outro,
com erros, verdades, incoerências, contradições, revelações, mitos, ilustrações morais. Sendo
assim, a pregação da Palavra de Deus é recebida como um bom livro de moral onde cada um
seleciona a coletânea de princípios morais e espirituais que quiser.
Na chamada pós-modernidade, a salvação de toda humanidade, a negação da natureza
pecaminosa do homem, a negação da divindade e ressurreição de Cristo, a salvação fora de
Cristo, a relativização do que é ser igreja e a inspiração das Escrituras recebem as mesmas
categorias, desconfianças e negações do liberalismo teológico da modernidade. Doutrinas
clássicas estão sendo trocadas por moralidade subjetiva.
Nesse contexto, Augustus Nicodemus relata a incredulidade de pregadores liberais da
pós-modernidade e sua incoerência no púlpito da igreja:
É o que vemos nas igrejas evangélicas históricas. Aos domingos, sermões
bíblicos, confessionais e conservadores. Durante a semana, nas conversas,
na sala de aula do seminário, nos congressos, declarações incompatíveis com
as crenças das denominações, muitas vezes até com o questionamento das
bases fundamentais do cristianismo histórico [...] Por não ter fé, o pastor
incrédulo tem que direcionar seu ministério e seu culto para áreas onde sua
incredulidade passe mais despercebida. Daí, a liturgia, o ritual litúrgico
elaborado, as recitações, as fórmulas, os paramentos, as cores, os símbolos,
tudo voltado para ocupar os sentidos de maneira que a fé não faça falta. A
mensagem deve evitar temas difíceis. O foco é em pontos morais, sociais e
políticos [...] evitando matérias de fé e pregando aquilo que um rabino,
mestre espírita ou líder muçulmano também pregaria: a honestidade, o amor
ao próximo, o voto pelo desarmamento. (LOPES, 2008, p. 75, 76)

Nesse quesito, o principal agente responsável pelo declínio da pregação bíblica é o


pregador cristão que aderiu a essa herança do liberalismo teológico. O pregador, como
docente da igreja no mundo, que nega a inspiração, a inerrância, a infabilidade, a suficiência,
a autoridade suprema e absoluta das Escrituras Sagradas nunca pregará a Palavra de Deus,
mesmo que suba no púlpito com a Bíblia. Este será um pregador religioso e nunca um
pregador bíblico.
É trágico diagnosticar que muito do conteúdo do pregador nasce da pressão e
influência do que o povo quer ouvir, está condicionado a ouvir e está pré-disposto a ouvir.
Nesse sentido, como a mentalidade contemporânea herdou esses pressupostos do
liberalismo teológico, o pregador infiel a Bíblia será induzido a negar as doutrinas essenciais
da fé cristã para agradar seu público.
Neste cenário liberal, a Bíblia deixou de ser a única regra de fé e prática. Não é
considerada como a Palavra de Deus escrita. Com isso, quando um pregador se levanta no
auditório eclesiástico para pregar a Palavra de Deus, há uma hostilidade, em maior ou menor
10

grau, quanto a autoridade, veracidade e relevância da mensagem bíblica pregada. Este é o


deslize fatal no declínio da pregação bíblica.
O pregador bíblico deve estar atento para a herança e influência dos pressupostos do
liberalismo teológico na sua atualidade, como fonte de declínio da verdadeira pregação bíblica
do evangelho. Ao mesmo tempo, o pregador bíblico deve, constantemente, firmar
profundamente sua convicção na Bíblia para extrair a definição sobre pregação bíblica.

2. A DEFINIÇÃO DE PREGAÇÃO BÍBLICA POR JOHN STOTT


John Robert Walmsley Stott nasceu no dia 27 de abril de 1921, em Londres, na
Inglaterra; e morreu na mesma cidade no dia 27 de julho de 2011. Stott teve uma importância
muito grande dentro da Igreja Anglicana na Inglaterra, mas também na Igreja Global. Ele é um
dos escritores cristãos mais prolíficos do século XX. Publicou mais de quarenta livros sobre a
fé cristã em uma linguagem clara, didática, equilibrada e profunda.
Stott é considerado um dos maiores pregadores expositivos do século XX. Ele exerceu
grande influência sobre muitos pregadores da atualidade. Mesmo sendo um grande pregador,
e tendo escrito sobre sua fé na pregação19 e sobre o perfil do pregador20, Stott (1998, p. 228)
faz uma humilde colocação pessoal sobre a pregação:
Eu certamente não sou nenhum especialista no assunto. Ainda hoje, ao subir
ao púlpito, muitas vezes eu não sou invadido por uma sensação de frustração
quanto à minha comunicação. Raramente (se é que isso acontece) eu desço
do púlpito sem sentir a necessidade de confessar meu relativo fracasso e de
orar por graça para fazer melhor na próxima vez. Assim, eu espero que isto
nos coloque no mesmo nível. Todos nós temos a nossa luta neste
privilegiado, mas problemático ministério.

Em outro livro, Stott (2011, p. 10) confirma essa mesma confissão sobre sua limitação
na pregação: “É com hesitação que escrevo sobre o assunto. Não quero passar por
especialista; estou longe disso. Estou só começando a aprender os rudimentos da pregação”.
Diante dessa humilde confissão pessoal de Stott é importante perceber como é
desafiador a tarefa da pregação. Pregação bíblica não é simplesmente falar em público
algumas opiniões passionais sobre alguma posição teológica; não é um discurso religioso
original; não é um comentário subjetivo da fé cristã. Não. Por isso, o pregador é tão desafiado
a se aprimorar pela vida toda a pregar a Palavra de Deus com fidelidade e relevância. Diante
disso, Stott (2011, p. 10) confirma seu chamado para pregar e sua dedicação para ser um
melhor pregador, mesmo diante de seu contínuo aprendizado. “Mas como Deus, em sua
graça, me chamou a ministrar a Palavra, tenho profundo desejo de moldar meu ministério
segundo o padrão perfeito que ele nos deu nessa Palavra”. Essa declaração, de um dos
maiores pregadores bíblicos do século XX, é de uma simplicidade e humildade inspiradora e

19
Cf. STOTT, John. Eu creio da Pregação. São Paulo: Editora Vida, 2004.
20
Cf. STOTT, John. O perfil do pregador. São Paulo: Vida Nova, 2011.
11

desafiadora. É importante registrar que pregar as Sagradas Escrituras é um desafio contínuo,


uma prática perseverante e um aprendizado crescente.
John Stott oferece uma excelente definição bíblica de pregação: “Pregar é expor o
texto inspirado com tanta fidelidade e sensibilidade que a voz de Deus é ouvida e o povo de
Deus lhe obedece”. (STOTT, 1998, p. 229). Com essa definição, Stott apresenta seis
implicações: duas convicções acerca do texto bíblico, duas obrigações quanto à exposição e
duas expectativas resultantes da pregação21.

a) Inspiração da Bíblia
Na definição de pregação bíblica por Stott, há duas convicções acerca do texto bíblico.
A primeira convicção é: Pregar é expor o texto inspirado. Neste ponto Stott apresenta o
conceito de revelação, inspiração e providência como parte da doutrina da Escritura. Para
Stott (1998, p. 230 e 231), “revelação descreve a iniciativa que Deus tomou ao manifestar-se
ou revelar-se”. E “inspiração descreve o meio que Deus escolheu para revelar, ou seja, falando
aos autores bíblicos e através deles”. E por último, Stott define providência na doutrina da
Escritura.
Trata-se da amorosa providência e provisão de Deus, através da qual ele
cuidou atentamente para que as palavras que ela havia dito fossem primeiro
escritas, formando o que nós chamamos de “Escritura”, e depois preservadas
através dos séculos, ficando ao alcance de todas as pessoas, em todos os
lugares e em todos os tempos, para a salvação e enriquecimento destas.

b) Exposição Bíblica
A segunda convicção de Stott é a de que “o texto inspirado é um texto parcialmente
oculto”. (STOTT, 1998, p. 232). A mensagem central da Bíblia, o evangelho da salvação através
da fé no Cristo crucificado e ressuscitado, está clara e transparente em toda a Escritura.
Qualquer pessoa sem formação teológica poderá entender o evangelho. Porém, nem tudo
que está na Escritura é igualmente óbvio e claro. Ao falar da dificuldade de expor certos textos
bíblicos, Stott (STOTT, 1998, p. 233), baseado em II Pedro 3:16, exclama: “Se um apóstolo nem
sempre entendeu outro apóstolo, seria no mínimo falta de modéstia da nossa parte afirmar
que não encontramos problema algum!” E ainda diz, baseado em Efésios 4:11, que “a igreja
necessita de “pastores e mestres” para expor ou revelar as Escrituras, e o Cristo que ascendeu
aos céus ainda concede estes dons à sua igreja”.
Hernandes Dias Lopes (1999 apud STOTT, 2008, p. 68) apresenta o conceito de
pregação de John Stott como exposição bíblica.
Toda pregação cristã autêntica é pregação expositiva. Ela se refere ao
conteúdo do sermão (verdade bíblica) em lugar de seu estilo (um comentário
fluente). Explicar as Escrituras é extrair do texto o que está nele contido e

21
Cf. Capítulo treze intitulado “Expondo a Palavra” contido nas páginas 228 a 241 do livro: STOTT, John. Ouça o
Espírito, Ouça o Mundo – Como ser um cristão contemporâneo. São Paulo: ABU Editora, 1998.
12

expô-lo. O expositor abre o que parece fechado, torna claro o que é obscuro,
desembaraça o que está amarrado e revela o que se encontra empacotado.
O oposto da exposição é a ‘imposição’; que significa impor ao texto o que
não existe nele.

c) Fidelidade à Palavra
De acordo com a sua definição de pregação, depois de apresentar duas convicções
acerca do texto bíblico, John Stott ainda extrai e destaca duas obrigações ao expor o texto
bíblico. Pregar com fidelidade e sensibilidade. Fidelidade à Palavra antiga e sensibilidade para
com o mundo moderno. Para isso, Stott adere a exegese histórico-gramatical.
Augustus Nicodemus Lopes apresenta uma completa definição e caracterização do
método gramático-histórico. Ele diz:
...o método gramático-histórico é o nome que se dá ao sistema de
interpretação oriundo da Reforma, cujos proponentes se caracterizam pelas
seguintes atitudes (entre outras) para com a Bíblia: 1. Recebam-na como
Palavra de Deus, inspirada, autoritativa, infalível, suficiente e única regra de
fé e prática [...] 2. Entendem que, como texto, a Bíblia tem somente um
sentido, que é aquele pretendido pelo autor humano inspirado [...] 3.
Professam que a mensagem central das Escrituras é clara a todos e que seus
pontos essenciais são suficientes revelados, de forma que, pelo uso dos
meios normais, qualquer pessoa, sob a iluminação do Espírito, pode ter
conhecimento salvador dessa mensagem [...] 4. Reconhecem que as
doutrinas doutrinárias que porventura haja em seu meio são decorrentes
não de erros ou contradições das Escrituras, mas da incapacidade humana
decorrente do pecado e das limitações naturais para a plena compreensão
da revelação perfeita de Deus [...] 5. Esforçam-se para continuamente rever
pressupostos teológicos e características denominacionais à luz das
Escrituras. Entretanto, não rejeitam o legado hermenêutico das gerações [...]
Esse sistema interpretativo para com a Bíblia tem sido chamado de
gramático-histórico porque considera importante para seu entendimento
tanto a pesquisa do sentido das palavras (gramma, em grego) quanto a
compreensão das condições históricas em que foram registradas. (LOPES,
2008, p. 49, 50).

Stott valoriza esse método hermenêutico reformado como essencial para a pregação
bíblica. Ele diz: “Negligenciar esta disciplina, ou realizá-la de coração dividido, ou de maneira
displicente, é indesculpável, pois isso denota desdém pela forma escolhida por Deus para
falar”. (STOTT, 1998, p. 234). Também diz que “ pior asneira que poderíamos cometer é voltar
nossos pensamentos do século XX para a mente de autores bíblicos (o que é “exegese”),
manipular o que eles escreveram a fim de adaptá-lo àquilo que nós queremos que eles digam,
e então reivindicar o seu patrocínio para as nossas opiniões”.
Lopes (2008, p. 52) aplica o método gramático-histórico como fundamental a
pregação. Ele faz uma comparação entre o método gramático-histórico e histórico-crítico no
quesito pregação. Ele diz:
...a escola gramático-histórica de interpretação produziu grandes pregadores
e grandes expositores bíblicos, mais que as outras. Com seu método
13

histórico-crítico, os liberais costumam produzir mais professores acadêmicos


do que grandes pregadores. Já o método alegórico e as novas hermenêuticas
produzem contadores de experiências, visto que não lhes interessa o
conteúdo teológico, doutrinário e prático das Escrituras.

É importante perceber que a homilética e a hermenêutica andam juntas. O pregador é


também um intérprete. É um comunicador da interpretação do texto bíblico. O método de
interpretação bíblica adotada pelo pregador definirá se será uma pregação bíblica ou um
discurso baseado em preceitos religiosos. Por isso, o pregador deve ser um estudioso contínuo
e profundo das Escrituras, afim de ser fiel ao texto bíblico e evitar heresias no púlpito e no
coração. O pregador bíblico deve adotar o método gramático-histórico se quiser ser
verdadeiramente bíblico. É importante atentar para as palavras de Augustus Nicodemus no
uso do método gramático-histórico para reformar a Igreja brasileira.
“Em conclusão, eu diria que o uso corrente do método gramático-histórico
pode ser crucial para uma reforma no protestantismo brasileiro, como foi na
igreja do século XVI. Os reformadores utilizaram como ferramenta principal
uma nova postura para com a Bíblia e sua interpretação, rompendo laços
com os métodos alegóricos medievais. Foi esta atitude para com a Bíblia que
consolidou a Reforma. Acredito que a crise de identidade que vive o
evangelicalismo brasileiro hoje origina-se sobretudo da falta de consistência
e coerência no emprego do método de interpretação que sempre
acompanhou o cristianismo histórico. (LOPES, 2008, p. 53)

Como fiel expositor bíblico, o pregador deve saber onde é o depósito de sua mensagem
e qual o conteúdo de sua mensagem. Stott prova biblicamente algumas palavras que o Novo
Testamento usa para descrever o pregador e a tarefa que lhe cabe. Como expositor bíblico, o
pregador deve ser um despenseiro22.
O despenseiro é o empregado de confiança que zela pela correta utilização
dos bens de outra pessoa. Assim, o pregador é um despenseiro dos mistérios
de Deus, ou seja, da autorrevelação que Deus confiou aos homens e é
preservada nas Escrituras. Portanto, a mensagem do pregador cristão não
vem diretamente da boca de Deus – como se ele fosse um profeta ou
apóstolo – nem da sua própria cabeça – como os falsos profetas – nem das
bocas e mentes de outras pessoas, sem reflexão – como o tagarela – mas da
Palavra de Deus, uma vez revelada e para sempre registrada, da qual ele tem
a honra de ser despenseiro. [...] Despenseiro é um título que descreve todo
aquele que tem o privilégio de pregar a Palavra de Deus, especialmente no
ministério pastoral. (STOTT, 2011, p. 17 e 20)

A metáfora do despenseiro indica o conteúdo da mensagem do pregador. Stott diz:


“pregador não tem a fonte da mensagem em si mesmo; a mensagem é recebida de fora. Como
o despenseiro não alimenta a família de seu senhor do seu próprio bolso, o pregador também
não precisa fornecer a mensagem por habilidade própria. (STOTT, 2011, p. 21).
Também é importante sempre lembrar que a tarefa do pregador é sempre expor a
bíblia somente como a sua principal missão. Stott diz:

22
“Importa que os homens nos considerem como ministros de Cristo, e despenseiros dos mistérios de Deus”. (I
Co 4:1, 2).
14

A pregação é uma “manifestação”, fanerosis, da verdade registrada nas


Escrituras. Por isso, todo sermão deve ser, de algum modo, expositivo. O
pregador pode usar ilustrações da área política, ética e social para tornar
mais fortes e atraentes os princípios bíblicos que ele está desenvolvendo,
mas o púlpito não é lugar para comentário político, exortação ética ou
debate de temas sociais por si. Nosso dever é pregar a “Palavra de Deus” (Cl
1:25), nada mais do que isso. (STOTT, 2011, p. 22)

A tendência atual é levar ao púlpito da igreja pregadores que são comentaristas


políticos, palestrantes de auto-ajuda, contadores de experiências. Muitas igrejas e pregadores
usam o púlpito dessa forma tola na ganância de ganhar mais audiência. O resultado disso é
uma igreja lotada de falsos convertidos, gente imatura, ignorante e iludida. A exposição bíblica
está em extinção. Stott diagnosticou tal realidade.
Uma das maiores necessidades da igreja contemporânea é que se exponha a
Bíblia conscientemente no púlpito. Existe, por toda parte, uma grande
ignorância, até mesmo quanto aos rudimentos da fé. Muitos cristãos são
instáveis e imaturos. E a principal razão para este triste estado de coisas é a
escassez de pregadores bíblicos equilibrados, radicais e responsáveis. O
púlpito não é lugar de discutir opiniões, mas, sim, de expor a Palavra de Deus.
(STOTT, 1998, p. 189)

Na missão de ser fiel a exposição bíblica o pregador deve pregar a Palavra de Deus em
toda a sua abrangência23. A missão do pregador é expor a Bíblia de forma integral e completa.
Geralmente, os pregadores têm a mania de pregar apenas os textos fáceis, prediletos e
atraentes. Muitos pregadores caem na tentação de deixar de lado passagens e doutrinas
bíblicas mais complexas em detrimento de pregar apenas o que mais o povo gosta de ouvir.
Diante disso, Stott (2011, p. 22) diz que nós, como despenseiro, nos “tornamos culpados de
sonegar de algumas das provisões que o divino Pai, em sua riqueza e sabedoria, destinou à
sua família”.
A família de Deus precisa urgentemente de despenseiros fiéis que
distribuam sistematicamente toda a Palavra de Deus; não apenas o Novo
Testamento, mas o Antigo também; não apenas passagens conhecidas, mas
as menos conhecidas também; não apenas os textos que apoiam as
doutrinas favoritas do pregador, os que não as apoiam também. (STOTT,
2011, p. 23)

Stott, de modo inteligente, sugere um jeito proveitoso para a pregação fiel de toda a
Bíblia:
...trabalhar sistematicamente com livro da Bíblia, ou pelo menos capítulos
inteiros, sem preguiça de expor cada detalhe. Outra é planejar regularmente
ou de vez em quando séries de sermões, abordando de maneira abrangente
e equilibrada determinados aspectos da verdade revelada. (STOTT, 2011, p.
24)

O que se percebe na exigência de fidelidade à pregação da Palavra de Deus é que o


pregador deve ser muito disciplinado para cumprir sua missão. Usando ainda a metáfora

23
Paulo disse aos presbíteros de Éfeso sobre a abrangência de sua pregação: “...jamais deixei de vos anunciar
todo o desígnio de Deus” (Atos 20:27)
15

bíblica do despenseiro, como perfil do pregador bíblico, Stott destaca muito bem a disciplina
pessoal do pregador.
O despenseiro fiel procura ficar a par de todo o conteúdo da despensa. A
despensa das sagradas Escrituras é tão vasta, que nem uma vida inteira de
estudos nos permitirá conhecer toda a riqueza e variedade que ela encerra
[...] A pregação expositiva é disciplina das mais árduas. Talvez por isso seja
tão rara [...] É impossível pregar sistematicamente sem estuda-la
sistematicamente. Não basta passar os olhos sobre alguns versículos em
nossa leitura bíblica diária, ou estudar uma passagem só quando tivermos
que pregá-la. Não. Precisamos estar saturados das Escrituras. Precisamos
não apenas estudar, como por microscópio, os mínimos detalhes de alguns
versículos nas línguas originais, mas também lançar mão de nosso telescópio
e abranger as grandes vastidões da Palavra de Deus, assimilando seu tema
principal, a soberania divina na redenção da humanidade. (STOTT, 2011, p.
28)

Stott não esconde a dificuldade, a exigência e o sacrifício do estudo exegético da Bíblia


para pregação. Ele recomenda
...dedicar de maneira especial ao versículo ou passagem bíblica escolhida
para ser exposta no púlpito. Precisamos ser firmes para evitar os atalhos.
Precisamos gastar tempo estudando nosso texto detalhadamente,
meditando sobre ele, preocupando-nos com ele como um cachorro se
preocupa com o seu osso, até que o sentido fique claro para nós. Esse
processo será às vezes acompanhado de suor e lágrimas. Precisamos
também usar todos os recursos de nossa biblioteca nesse trabalho – léxicos,
concordâncias, traduções modernas e comentários. (STOTT, 2011, p. 28)

d) Sensibilidade para com o mundo moderno


Somente depois de Stott descrever a exegese pelo método gramático-histórico, ele
enfatiza a segunda obrigação ao expor o texto bíblico como consequência da exegese: “a
pregação bíblica exige sensibilidade para com o mundo moderno”. (STOTT, 1998, p. 235). Aqui
a intenção é como o significado original do texto é aplicado ao mundo atual. Stott diz: “O
exegeta explica o significado original do texto; o expositor vai mais além, aplicando-a ao
mundo contemporâneo”. (STOTT, 1998, p. 235).
Acima de tudo, porém, devemos orar sobre o texto, porque o Espírito Santo,
o verdadeiro autor do Livro, é seu melhor intérprete também. “Pondera o
que acabo de dizer” – Paulo escreveu a Timóteo – “porque o Senhor te dará
compreensão em todas as coisas” (2Tm 2.7). Realmente, precisamos pensar,
mas a compreensão vem de Deus. Mesmo quando houver entendido
plenamente o texto, o trabalho do pregador ainda estará pela metade,
porque a elucidação do seu sentido precisa levar à sua aplicação a alguma
situação real da vida do homem moderno. (STOTT, 2011, p. 28)

Stott foi um grande teólogo e pregador preocupado com a voz de Deus no mundo
moderno. Ao mesmo tempo que foi um exímio exegeta bíblico e um pregador expositivo da
Palavra de Deus, Stott também foi muito sensível ao mundo moderno. Em muitos de seus
escritos, Stott tinha o propósito de apresentar “um cristianismo bíblico, ortodoxo, histórico e
16

original, sensivelmente relacionado com o mundo moderno”. (STOTT, 1998, p. 15). Ele deixa
bem claro:
...Deus continua a falar através daquilo que ele já falou. Sua Palavra não é
um fóssil pré-histórico, a ser exibido numa redoma de vidro, mas, sim, uma
mensagem viva para o mundo de hoje. O lugar dela é no mercado e não no
museu. Através de sua antiga Palavra Deus se dirige ao mundo moderno,
pois, como diz o Dr. J. I. Packer, “a Bíblia é Deus pregando. (STOTT, 1998, p.
17, 18)

Na tentativa de aplicar a teologia bíblica ao mundo moderno, Stott sempre combateu


as tentativas de modernizar Jesus24 (STOTT, 1998, p. 18). Essas tentativas sempre geraram
falsificações absurdas de Jesus. Nesse contexto, Stott apresenta um desafio: “O desafio que
temos diante de nós é o de apresentar Jesus à nossa geração de tal forma que seja, ao mesmo
tempo, histórico e contemporâneo, autêntico e atrativo, novo no sentido de recente (neos),
mas não no sentido de ser uma novidade (kainos)”. (STOTT, 1998, p. 17, 18).
Stott sempre fez o apelo para a Igreja ouvir em dobro, ou seja, ouvir tanto a Palavra
quanto o mundo. O pregador deve ser o primeiro a ouvir em dobro. A aplicação sensível ao
mundo contemporâneo das doutrinas bíblicas deve ser o grande desafio do pregador fiel. Stott
diz que “temos que aplicar a Palavra, mas não manipulá-la. Temos de nos esforçar ao máximo
possível para certificar-nos de que ela fale aos nossos dias, mas não corrigi-la a fim de garantir
uma falsa relevância. Nosso chamado é para sermos fiéis e relevantes, e não simplesmente
tendenciosos. (STOTT, 1998, p. 29).
As pregações e escritos de John Stott sempre foram coerentes com a fidelidade da
exposição bíblica e sensibilidade para com o mundo moderno. Ele sempre trouxe as verdades
bíblicas e as aplicou com profundidade e compaixão aos dilemas do homem contemporâneo.
Por isso, sempre tratou de temas sociais e contemporâneos, como a relação entre
evangelização e responsabilidade social da igreja, missões transculturais, ateísmo entre
universitários, escravidão moderna, mortalidade infantil, sexualidade, casamento,
discipulado, vocação, ministério, carreira profissional, sociedade secular, tendências heréticas
etc. Há uma dimensão de aplicações bíblicas para diversos temas. O pregador bíblico, firmado
na rocha da Palavra de Deus, enfrenta e consola a igreja e o mundo de seu tempo.

e) Ouvir a voz de Deus


Após apresentar as duas convicções acerca do texto bíblico e as duas obrigações ao
expor o texto bíblico, Stott apresenta as duas expectativas como consequência da pregação.
A primeira é “esperamos que se ouça a voz de Deus...o Deus que falou no passado também
fala no presente através daquilo que ele falou”. (STOTT, 1998, p. 239). Nesse sentido, Stott
sempre deixa bem claro que a Escritura é a principal maneira pela qual Deus fala hoje.

24
Stott apresenta algumas tentativas feitas por parte da igreja para apresentar um retrato contemporâneo de
Cristo. Ele registra o Jesus aceta, o pálido galileu, o Cristo cósmico, o mestre do senso comum, inteiramente
humano e nada divino, o palhaço de Godspell, Jesus Cristo Superstar, o fundador dos negócios modernos, o
economista, o capitalista, o socialista, um grande revolucionário, Profeta Carpinteiro, o Mágico
17

Ainda hoje Deus fala, se bem que há certas discordâncias na igreja quanto à
forma como ele o faz. Eu mesmo não creio que ele fale conosco hoje em dia
de maneira direta e audível [...] A principal maneira pela qual Deus nos fala
hoje é através da Escritura, como o tem reconhecido a Igreja geração após
geração. As palavras que Deus falou através dos autores bíblicos e que ele
providenciou para que fossem escritas e preservadas não são uma letra
morta. Um dos principais ministérios do Espírito Santo é tornar a Palavra
escrita de Deus ‘viva e eficaz” e “mais cortante do que qualquer espada de
dois gumes”25. Portanto, nunca devemos separar a Palavra do Espírito ou o
Espírito da Palavra, pela simples razão de ser a Palavra de Deus “a espada do
Espírito”26, a principal arma usada por ele para realizar seu propósito na vida
de seu povo. É essa confiança que nos capacita a pensar nas Escrituras tanto
como texto escrito quanto como mensagem viva [...] Através da sua antiga
Palavra Deus se dirige ao mundo moderno. Ele fala através do que já falou
uma vez. (STOTT, 1998, P. 117, 118)

Para Stott, o pregador deve ser o primeiro a ouvir a Deus enquanto se prepara para
pregar e no ato da pregação. “...as Escrituras tornam-se vivas para a igreja somente se antes
tiverem se tornado vivas para o pregador. Somente quando Deus houver falado pessoalmente
com ele através da Palavra que ele prega, os outros poderão ouvir a voz de Deus nos seus
lábios. (STOTT, 2011, p. 27). Por isso, o pregador se prepara em oração e estudo diligente da
Palavra. Deve pregar com reverente fidelidade ao que Deus está falando através do texto
inspirado. O resultado é que a igreja ouvinte abre o coração para o que Deus tem a falar por
meio da pregação de Sua Palavra. A igreja fica mais admirada com a pregação do que com o
pregador. Se o pregador ficar mais evidente, conhecido e admirado do que a Palavra de Deus,
o pregador falhou. A glória não foi devida a Deus. E a igreja não foi realmente edificada.
O ideal do sermão é que a Palavra de Deus fale, ou melhor, Deus fale através
de sua Palavra. Quanto menos o pregador se interpuser entre a Palavra de
deus e seus ouvintes, melhor. O que realmente alimenta a família é a comida
que o dono da casa compra, não o mordomo que a distribui. O pregador
cristão fica mais satisfeito quando sua pessoa é ofuscada pela luz que brilha
das Escrituras e sua voz é abafada pela voz de Deus. (STOTT, 2011, p. 27)

f) Obedecer a Deus
Além disso, a segunda expectativa “é a de que o povo de Deus lhe obedeça”. (STOTT,
1998, p. 240). A pregação da Palavra de Deus exige resposta. A resposta é obediência. “Nós
não devemos ser ouvintes esquecidos, mas praticantes obedientes da Palavra de Deus”.
(STOTT, 1998, p. 240). A conclusão do pregador dará chance às pessoas de reagirem a Palavra
de Deus, permitindo que o Espírito Santo conduza cada pessoa a uma obediência apropriada.
Stott (1998, p. 241) conclui:
“É esta, pois a definição de pregação que eu me arrisco a dar a vocês.
Ela contém duas convicções (o texto bíblico é um texto inspirado que ainda
precisa ser desvendado), duas obrigações (nós precisamos expô-la com
fidelidade ao próprio texto e sensibilidade para com o contexto moderno) e

25
Hb 4:12
26
Ef 6:17
18

duas expectativas (através da exposição e aplicação da Palavra escrita de


Deus mesmo irá falar, e seu povo irá ouvir sua voz e responder a ele em
obediência)”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Estamos vivendo uma época em que a definição de pregação bíblica precisa ser
rencontrada, aprofundada e ensinada. A herança do liberalismo teológico do século XX ainda
está presente na pós-modernidade, promovendo relativização das Escrituras e redução do
evangelho em moralismo religioso. Nunca antes foi tão necessário diferenciar discurso
religioso com pregação bíblica. A disseminação da religiosidade sincrética nos púlpitos das
igrejas tem se confundido com pregação do evangelho. O discernimento é necessário para
diferenciar o evangelho da religião. E, com isso, resgatar a pregação bíblica nesse contexto de
abertura a toda preleção religiosa.
John Stott deu sua contribuição para o resgate da pregação bíblica. Alicerçado na
crença na inspiração divina das Escrituras como a Palavra de Deus e no método gramático
histórico de interpretação, Stott extrai o conteúdo da pregação. Com a sensibilidade de ouvir
a voz do mundo para entender suas ideias, necessidades e clamor, Stott ensina a importância
da aplicação. É nesse quesito que o pregador bíblico se diferencia do preletor religioso e do
exegeta.
O pregador bíblico não apresenta uma preleção religiosa, moral, ideológica. Não há
espaço no púlpito do pregador bíblico para doutrinação baseada na contação de
autobiografias de experiências espirituais subjetivas; conselhos morais baseados na tradição,
usos e costumes morais; e comentários políticos baseado na passionalidade ideológica
partidária. Não! O pregador bíblico é um despenseiro da Palavra de Deus. Ele tem a Bíblia
como a fonte inesgotável do conteúdo da pregação. Ele tem o chamado e a missão de pregar
somente as Escrituras. Só há espaço para a Palavra de Deus no púlpito do pregador bíblico.
O pregador bíblico também não é um exegeta no púlpito. Seu propósito não é
estacionar no antigo mundo bíblico e nos textos das línguas originais. Ele vai além. O pregador
bíblico expõe a exegese bíblica em princípios doutrinários aplicados a realidade contextual do
destinatário da pregação. Ele provoca a conexão entre o antigo texto bíblico com o contexto
atual e suas perguntas, crises e necessidades.
A grande importância de John Stott é que ele sabe muito bem transitar entre a
ortodoxia (doutrina correta), a ortopraxia (prática correta) e a ortopatia (sentimentos
corretos) em sua teologia da pregação.
Todo seu pensamento teológico sobre pregação é extraído unicamente das Escrituras.
Quem lê os escritos de Stott percebe logo e claramente a riqueza bíblica de seus temas
teológicos e comentários exegéticos de livros inteiros da Bíblia. Através de seu estilo literário,
Stott é didático, objetivo, persuasivo, argumentativo, lógico e toda sua mentalidade é
enraizada na Bíblia. Por indução, é possível perceber que seu estilo literário ensina como deve
19

ser uma firme e verdadeira pregação doutrinária que atinge a mente cristã no mundo pós-
moderno.
Quem lê os escritos de Stott também percebe como ele é sensível ao mundo
contemporâneo. Ele traz a imutável Palavra de Deus para a inconstante e mutante sociedade
pós-moderna. A pregação bíblica, conceituada por Stott, é a missão da igreja na sociedade
contemporânea não cristã. Ele é um teólogo contextualizado. Por isso, ensina a pregação
bíblica contextualizada que gera missão na igreja. John Stott não estaciona na conservação de
elucubrações teológicas de séculos passados como apenas um exercício intelectual. Não! O
conceito de pregação dele está baseado numa teologia que gera prática missionária.
A pregação bíblica de Stott também gera sentimentos corretos. Um dos últimos livros27
de Stott há o foco do discipulado como uma vida em semelhança com Cristo. Stott trata muito
da ortopatia no discipulado ao tratar de temas como: maturidade integral do ser humano;
cuidado com a criação no contexto de crise ecológica; vida simples em meio ao consumismo
desenfreado e injusto; vida equilibrada entre discipulado individual e comunhão corporativa,
trabalho e adoração, peregrinação neste mundo e cidadania celestial; também fala sobre
dependência do amor dos outros; e, finalmente, a reação quanto a realidade da morte. Este
é apenas um exemplo de como Stott produz uma ortopatia em seus escritos e inspira, com
esse exemplo, uma pregação que gere sentimentos corretos produzidos pelo poder do
Evangelho.
A teologia de Stott mostra o quanto a pregação bíblica deve tratar tanto a doutrina, a
missão e o discipulado. O pregador bíblico deve atingir a mente cristã, ensinar a prática
missionária e tratar do coração do discípulo. A pregação bíblica deve ensinar a amar a Deus
de todo coração, alma, força e entendimento. Realmente, John Stott é um excelente e
indispensável referencial teórico sobre a definição bíblica de pregação para a atualidade. É
muito necessário e inspirador continuar pesquisando sobre a teologia bíblica de pregação
deste grande teólogo, missionário e pregador inglês, John Robert Walmsley Stott.

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STOTT, John. O discípulo radical. Viçosa, MG: Ultimato, 2011.
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