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Latusa digital – ano 3 – N° 21 – março de 2006

A nobreza do sintoma*

Leonardo Gorostiza**

Introdução

É um prazer estar com vocês. Agradeço o convite da EBP-Rio, por meio de sua
diretora, Mirta Zbrun, e desejo a todos uma intensa jornada de trabalho. “A
nobreza do sintoma” – trata-se de uma fórmula que expressa um pequeno
deslocamento em relação àquela introduzida por Jacques-Alain Miller em seu
último curso, Pièces détachées, no qual ele fala da “nobreza do sinthoma”.
Minha idéia é ampliar essa dimensão e falar da nobreza do sintoma em geral.
Creio que essa é a melhor maneira de nomear o que quero trabalhar com
vocês.

Sendo uma Jornada de Cartéis, me pareceu que esse tema deveria ser
trabalhado de modo aberto, não conclusivo, fazendo interrogações, arriscando
algumas hipóteses, não nos contentando, enfim, com a reiteração e a
segurança do já sabido. Quer dizer, nos colocando ao trabalho.

De certo modo, a idéia de trabalharmos nosso tema sob o modo próprio do


cartel se resume a uma variação da escrita dos discursos, proposta por
Jacques-Alain Miller, há vários anos, em um famoso texto chamado “Cinco
variações sobre o tema da elaboração provocada”1. É o que ele nomeou de
matema do mais-um. Ou, na minha opinião, o matema de todo cartelizante.

*
Conferência ministrada na Jornada de Cartéis da EBP-Rio em 26 de novembro de 2005.
**
Analista Membro da Escola – AME. Membro da Escuela de la Orientación Lacaniana (EOL),
Membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP) e diretor do Instituto Clínico de Buenos
Aires (ICBA).
1
MILLER, J.-A. “Cinco variações sobre o tema da elaboração provocada.” Em: O cartel –
conceito e funcionamento na escola de Lacan. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1994, p. 6.

1
a $ S1

(x) S2

Trata-se de uma articulação entre o discurso analítico e o discurso histérico,


que resumo assim: o ideal é que cada cartelizante esteja na posição de sujeito,
causado pelo agalma implícito no saber que supomos a Freud, a Lacan, a
Jacques-Alain Miller e a outros colegas da AMP, para interrogar um aspecto de
uma questão e produzir um saber novo, ainda que seja pequeno, modesto.

Nesse sentido, minha idéia seria colocar, no lugar do S1, esta variação da
fórmula de Miller, perguntando: o que quer dizer a nobreza do sintoma? Trarei
minha resposta, uma primeira aproximação, apenas no final da conferência.
Primeiramente, retomarei com vocês algumas notas do que apresentei em
duas noites da EOL, há dois meses atrás, nas quais alguns de nós
interrogamos o que foi chamado de “Incidências do último ensino de Lacan na
prática analítica”. Eu as retomei agora pelo viés do sintoma, perguntando-me:
quais são as incidências da última noção de sintoma em Lacan na prática
analítica na atualidade? Achei interessante retomar essas notas e tentar
avançar mais um passo, fazendo o que é, propriamente falando, um trabalho
de Escola.

Talvez eu pudesse ter intitulado essa conferência de outra maneira: por


exemplo, “Panorama a partir do sintoma”, parafraseando Arthur Miller. Por
que? Ora, o plano da exposição é o seguinte: situarei primeiramente algumas
indicações de Jacques-Alain Miller em sua conferência em Comandatuba, na
qual ele falou de “inventar” a prática lacaniana de nossos dias a partir do
último ensino de Lacan e introduziu algumas indicações sobre o sintoma. A
seguir, recordarei sucintamente a noção de sintoma no último ensino de Lacan,

2
que corresponde ao que chamamos de sexto paradigma do gozo. Finalmente,
situado neste ponto de perspectiva, tentarei estabelecer uma espécie de
panorama, interrogando seis incidências possíveis deste conceito de sintoma
sobre:
1. o diagnóstico
2. a entrada em análise
3. a interpretação
4. a ética
5. a política, no sentido mais amplo
6. o final de análise.

Contudo, rapidamente me dei conta de que teria sido um contra-senso chamar


essa conferência de Panorama a partir do sintoma. Por que? Porque a noção de
panorama supõe um ponto de perspectiva, aquele em que nos situamos, a
partir do qual vislumbramos todo o panorama. Ora, esta é a posição do
teórico, daquele que contempla o que ocorre no espetáculo do mundo a partir
de uma exterioridade. Existe uma relação entre a posição do teórico, que
supostamente descortina todo o panorama, e a posição do Sujeito suposto
saber. No Seminário, livro 15: o ato psicanalítico, Lacan relaciona o onividente
e o Sujeito suposto saber. Teria sido um contra-senso chamá-la assim porque
a última noção de sintoma em Lacan, na medida em que põe o acento no real,
deixa de lado o teórico, sublinhando o aspecto de uso do sintoma, sua vertente
pragmática. Miller acentua isso, dizendo: “[...] quando se assinala o que Lacan
realmente chamava de real, o teórico desvanece, dando lugar apenas a um
uso, a um certo tipo de saber fazer com”.2

Eu poderia então ter nomeado essa conferência O pragmatismo do sintoma,


título que se sustenta para pensar o sintoma no último ensino de Lacan. Mas
meu título acabou sendo A nobreza do sintoma. Como disse, ele traduz meu
desejo de avançar um pouco em relação à fórmula de Miller “a nobreza do

2
MILLER, J.-A. “El analista-síntoma”. Em: El psiconalista y sus síntomas. Buenos Aires: EOL-
Paidós, Colección Orientación Lacaniana, n° 3, 1998, p. 14.

3
sinthoma”. Como podem perceber, não reduzi-la ao sinthoma, que só se
produz no final da análise, mas estendê-la ao sintoma implica pensar a
importância e o valor que pode ter isolar a singularidade do sujeito desde o
início da análise, justamente dos “sujeitos contemporâneos”, tão bem
figurados na imagem escolhida para a divulgação dessas Jornadas: homens
reduzidos a corpos sem rosto, nos quais não aparece a diferença sexual ou
qualquer outra marca de sua singularidade.

Inventar a prática lacaniana

Em sua conferência intitulada “Uma fantasia” Jacques-Alain Miller usou este


termo crucial: “inventar a prática lacaniana de nossos dias”. Ele declinou três
respostas que se esboçam na psicanálise contemporânea frente ao que
chamou discurso hipermoderno, que situa o mais-de-gozar – o objeto a, objeto
gadget produzido pelo mercado – no zênite da civilização. Poderíamos dizer
que não se trata propriamente de um discurso, pois os quatro elementos estão
disjuntos.

Essas respostas são:


1. O que ele chamou de psicanálise fundamentalista ou reacionária, que
quer voltar ao tempo do S1 da tradição, ou seja, que tenta restaurar o
discurso do mestre tradicional.
2. Uma psicanálise passadista que supõe o inconsciente como um saber
eterno e que pensa que, aconteça o que for, isso vai continuar
funcionando.
3. Uma psicanálise que ele nomeou ironicamente de progressista,
orientada para um suposto futuro, que faz aliança com as ciências e as
falsas ciências, produzindo uma tradução “neurocognitivista” da
metapsicologia. Podemos dizer que o neurocognitivismo psicanalítico
não passa de uma variedade do discurso universitário, que, por sua
vez, é uma variação do discurso do mestre.

4
Essas três posições, que Miller reconduz respectivamente a uma exaltação do
Simbólico (o passado), do Imaginário (o presente) e do Real científico (o
futuro), não passam afinal de práticas sugestivas. Ao me perguntar porque
Miller diz isso, a primeira resposta que me veio foi: porque elas são orientadas
por um “isso anda” (Ça marche).

Como alternativa a essas concepções da psicanálise, existe a prática lacaniana,


ou melhor, existirá – como sublinha Miller – já que se trata de inventá-la. É
claro, acrescenta ele, “que não se trata de inventar ex-nihilo. Trata-se de
inventá-la na via que, em particular, o último Lacan abriu”.

Ele indica a seguir que, para que “a prática lacaniana por vir se sustente, se
distinga das outras”, é preciso situar bem qual é seu princípio. À diferença das
outras, cujo princípio é isso anda, o princípio da prática lacaniana é isso falha,
rateia, que traduziria o Ça ne marche pas (isso não anda), e que, em francês,
traduz uma sutil equivocidade, mediante uma ligeira mudança de acento, com
Ça ne marché pas (isso mercado não).

Entramos aqui de cheio na noção de sintoma do último ensino de Lacan. Em


dois textos de 1974, “A Terceira” e “O triunfo da religião”, Lacan caracteriza o
real como “o que não anda”, enquanto que “o que anda” é o mundo, o que gira
em círculo. Por seu lado, o sintoma – embora não seja a mesma coisa que o
real, ele é o que vem do real – também se põe em cruz diante do discurso do
mestre. “O sintoma – diz Lacan – não é ainda verdadeiramente o real. É a
manifestação do real em nosso nível de seres vivos. Como seres vivos,
estamos carcomidos, mordidos pelo sintoma. Estamos doentes, é tudo. O ser
falante é um animal doente. ‘No princípio era o Verbo’ diz a mesma coisa”.3

Trata-se então da noção de sintoma como acontecimento de corpo, que está


indissoluvelmente ligada ao princípio fundamental da prática lacaniana, o
princípio do isso rateia. Quero sublinhar a extrema importância disto e o valor

3
LACAN, J. O triunfo da religião. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005, p. 76.

5
de atualidade que tem. Se, como diz Lacan, é necessário que a psicanálise
fracasse para que o real continue existindo, já que, se tem êxito, a psicanálise
se extinguirá por ser um sintoma esquecido, pois este é o destino da verdade,
isso implica um desafio, que proponho como primeiro ponto para a discussão:
como articular o saber fazer dos sucessos terapêuticos, como tornar público os
resultados de uma análise mantendo, ao mesmo tempo, a dimensão do isso
falha?

Outro ponto a sublinhar é o termo inventar usado por Miller. Entendo que não
se trata de que seria preciso inventar a prática lacaniana de nossos dias, e que
ela, uma vez inventada, passaria a existir. Ou seja, estaríamos tranqüilos,
teríamos chegado ao Cristo Redentor e, lá de cima, poderíamos ver tudo. Ao
contrário, o termo invenção significa que se trata de reinventar a prática a
cada dia. Esse termo também é congruente com a última noção de sintoma.

Em O Seminário, livro 21: Os não tolos erram, Lacan faz uma declinação do
termo invenção: “[...] todos sabemos porque inventamos um truque para
encher o furo (trou) no real [...]. Ali onde não há relação sexual, há
troumatisme. Cada um inventa o que pode” 4. Inventa-se o saber, inventa-se o
masoquismo, o inconsciente inventa, o escrito é invenção, a lógica é uma
invenção, etc. Podemos dizer então que o próprio sintoma é uma invenção: a
invenção privilegiada de uma fórmula ali onde não há relação sexual.

“O sujeito”, diz Miller, “é sempre obrigado a inventar seu modo de relação com
o sexo, sem estar guiado por uma programação natural. Esse modo de relação
inventado, sempre particular e peculiar, sempre claudicante – rengo – sublinho
isso por sua relação com “o que não anda” – é o sintoma, que vem no lugar
dessa programação natural que não existe”5. O gozo, a invenção libidinal que o
sujeito inventa, jamais será a boa fórmula, sempre haverá déficit.

4
LACAN, J. Le Séminaire XXI: Les non-dupes errent. Inédito. Aula de 19 de fevereiro de 1974.
5
MILLER, J.-A. “El ruiseñor de Lacan”. Em: Del Édipo a la Sexuación. Buenos Aires: ICBA-
Paidós, 2001, pp. 260-261.

6
Em “Uma fantasia”, Miller dá algumas indicações preciosas sobre o sintoma e o
lugar que ele pode ter nessa nova prática lacaniana. Resumidamente, diz que a
psicanálise surgiu como uma infração ao saber científico. A ciência silenciou o
Universo, e afirmou: há um saber no real que não fala. A base da invenção
freudiana é que há algo no real, ou seja, o sintoma, que quer dizer algo, que
possui um sentido a ser decifrado. Isso foi, inclusive, a “condição de
possibilidade” da psicanálise. “O sentido no real”, diz ele, “é o suporte do ser
do sintoma, no sentido analítico”. Porém acrescenta que, após suportar por um
tempo esta transgressão ao saber da ciência, produziu-se na atualidade “uma
cisão do ser do sintoma”. Uma cisão entre o real e o sentido. Talvez se possa
pensar que Miller se refere ao ser do sintoma para separar a dimensão de
sentido do sintoma, sua dimensão de semblante, vinculada ao ser, e sua
dimensão de sinthoma, isto é, sua dimensão real, mais opaca, vinculada à
escrita. Miller afirma que, nessa cisão entre o real e o sentido, se produz uma
transformação do sintoma em transtorno, disorder em inglês. Ou seja, o
sintoma é concebido como uma desordem em relação a uma suposta ordem
existente no real. No título das Jornadas da EOL, perguntávamos: sintoma ou
transtorno? Vemos claramente que o transtorno supõe uma lei que funcionaria
no real como saber científico, uma lei já inscrita, enquanto o sintoma é uma lei
que o próprio sujeito inventa e que, portanto, não pressupõe nenhuma lei no
real. Essa é a diferença entre transtorno e sintoma.

Miller diz que existem duas respostas possíveis: tratar o real do sintoma, fora
do sentido, com a química; é o que fazem as neurociências. E, do lado do
sentido, há os tratamentos de apoio, que tomam duas formas: a escuta de
puro semblante, ou seja, as terapias charlatães, sem nenhuma conseqüência,
e as terapias autoritárias e sugestivas das TCC. Trata-se de uma refutação, de
uma recusa do sintoma em seu valor de verdade.

Qual é a resposta imaginada por Miller? Nem recusar o saber no real, nem se
alinhar a ele. Assim, a prática lacaniana a ser inventada seria definida como

7
“uma renovação do sentido do sintoma”. É o que Lacan introduziu, diz Miller,
“com o nome de sinthoma”. O que é surpreendente, pois o sinthoma é o que
resta de uma análise, da decifração do sentido, o que implica que não haja
uma renovação do sentido do sintoma a partir do sinthoma.

Deixo aqui outra pergunta para a conversação: se Lacan diz, no Seminário 23:
O sinthoma, que o sintoma ou o sinthoma são o Pai – ele faz uma equivalência
dos três termos – poderíamos dizer que, tal como devemos renovar o sentido
do sintoma, deveríamos renovar também o sentido do Pai?

Na perspectiva do sinthoma, o sintoma não é em si mesmo uma mensagem,


mas “um signo da não relação sexual”, um signo de gozo, gozo que nunca é o
bom, aquele que deveria ser o da suposta relação sexual, se ela existisse.
Entendo que, ao mesmo tempo em que é uma solução, o sintoma também é
uma “claudicação”, isto é, índice do que não anda no real.

O sintoma como acontecimento de corpo

Como vocês sabem, esta definição de Lacan aparece apenas uma vez, em seu
breve escrito “Joyce, o Sintoma” 6, e foi trabalhada por Miller in extenso em
7
seu curso A experiência do real no tratamento psicanalítico.

Resumidamente, podemos dizer que o falasser não é um corpo – como ocorre


no reino animal, pois o animal está totalmente identificado a seu corpo – mas
ele tem um corpo. Ter um corpo e não ser um corpo quer dizer que ele é
também sujeito, portanto afetado pela falta-a-ser que introduz o significante
que divide seu ser e seu corpo. Insisto: para ter sintomas, é preciso ter um
corpo e não ser um corpo.

6
LACAN, J. “Joyce, o Sintoma”. Em: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003,
p. 565.
7
MILLER, J.-A. La experiencia de lo real en la cura psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós, 2003,
especialmente as aulas XXI e XXII.

8
Os sintomas surgem, na última versão de Lacan, do acontecimento traumático
que implica a incidência da alíngua – desses S1 sozinhos, que não formam
sistema ou estrutura – no corpo, o que pode ser resumido na fórmula: “o
significante é causa de gozo”, ou seja, causa de efeitos que são afetos. Quer
dizer, o significante não tem somente efeitos de significado – o próprio sujeito
é um desses efeitos –, mas também efeitos de gozo num corpo. Assim, a
alíngua veicula o traumático – troumatique – da não relação sexual, deixando
efeitos duradouros, marcas desse encontro sempre traumático do qual algo
não cessará de se escrever, não cessará de se repetir. É o que diz Miller: “A
não relação sexual é o acontecimento lacaniano no sentido do trauma, esse
que deixa marcas em cada um – não como sujeito, mas como falante – no
corpo, marcas que são sintoma e afeto”.8

Pensando o final de análise, mas também a finalização de certos ciclos


terapêuticos, o fundamental é conseguir provocar um deslocamento em
relação à repetição, para que ela não seja a simples reiteração, a repetição
cega do mesmo, mas traga algo novo. Isso supõe que não há saída do
sintoma. Entramos pelo sintoma, saímos pelo sintoma, morremos com o
sintoma – esta é sua nobreza...

Como disse, essa caracterização do sintoma corresponde ao sexto paradigma


do gozo, o da “não relação”, que tem como ponto de partida O Seminário, livro
20: Mais, ainda. Trata-se da não relação sexual entre Um e o Outro, o que
implica que Há gozo de um corpo vivo em disjunção com o Outro. Neste
paradigma, todos os termos que garantiam a conjunção entre Um e o Outro –
O Outro, o Nome-do-Pai, o falo – se revelam como simples semblantes
conectores. Já não há estrutura transcendental prévia e autônoma que
determine as condições da experiência. Passamos à primazia da prática, na
qual é preciso determinar de que maneira se produz, em cada um, a suplência
da relação entre Um e o Outro. Miller diz que há duas formas de suprir o laço
sexual, frente à inexistência da relação com o Outro: segundo a rotina ou

8
Idem, ibidem, p. 386.

9
segundo a invenção. A rotina é apegar-se ao Nome-do-Pai, ao universal da
cultura, enquanto a invenção é criar algo novo. Entramos aqui na temática das
psicoses não desencadeadas. Creio que estas duas formas são cruciais para
situar a incidência desta nova perspectiva do sintoma no diagnóstico.

A arte do diagnóstico

A primeira pergunta é se essa última caracterização do sintoma – que implica


uma espécie de “somos todos delirantes”, já que todos deliramos a partir de
um “não há”, todos inventamos um saber para responder ao troumatisme da
não relação sexual – invalida o diagnóstico clássico de estruturas. O próprio
Miller disse, de maneira irônica, que, desse ponto de vista, as neuroses
poderiam ser consideradas como uma variedade clínica, como um subconjunto
da psicose, o que, contudo, não autoriza a estabelecer uma continuidade entre
neurose e psicose.9

Devo lhes dizer que, da minha parte, continuo tendo muito cuidado em relação
ao diagnóstico diferencial entre neurose e psicose durante as entrevistas
preliminares. Poderíamos, inclusive, nos perguntar se, ao detectarmos que a
solução sintomática implementada por um sujeito é de rotina – o Nome-do-Pai
como sintoma –, podemos afirmar que se trata de uma neurose. O que se
torna mais obscuro é o caso em que a solução é uma invenção. Ou seja, se
nesses casos podemos afirmar que nos encontramos sempre diante de
psicoses não desencadeadas. Em outras palavras: a partir dessa perspectiva,
seria possível pensar em modos de suplência por invenção “neuróticos”?
Sabemos que isso é crucial para tomarmos a decisão de comprometer alguém
no dispositivo, no qual inicialmente “todo sem sentido se anula”.10 De qualquer
forma, fica claro que essa nova perspectiva nos obriga a prestar atenção

9
Ver Los inclassificables de la clínica psicoanalítica, Coleção ICBA n° 1. Buenos Aires: ICBA-
Paidós, 1999, p. 395.
10
Idem, ibidem, p. 413.

10
especial no sintoma, avaliando, em cada caso, a função que ele cumpre como
reparação da falha no real.

Se seguirmos as indicações de Miller em “El ruiseñor de Lacan”, essa nova


perspectiva nos conduz ao que ele chamou de “arte do diagnóstico”: a arte de
julgar um caso sem regra nem classe pré-estabelecida, o oposto a um
diagnóstico automático. “O ser falante – diz Miller – nunca pode subsumir-se a
si mesmo como um caso sob a regra da espécie humana. O sujeito sempre se
constitui como exceção à regra, e esta invenção ou reinvenção da regra que
lhe falta, ele a faz sob a forma do sintoma. É claro – acrescenta ele –, que há
sintomas típicos, mas, ainda que tenham a mesma forma, cada um é peculiar,
particular [...]”. Assim, o sintoma é a regra própria de um sujeito, segundo a
qual sua libido se distribui.11

Poderíamos então afirmar que o correlato da nova noção de sintoma a respeito


do diagnóstico é precisamente a própria noção de “arte do diagnóstico”.

Esta indicação, que mostra uma espécie de aprofundamento da dimensão


eminentemente singular da prática analítica, nos permite passar à segunda
incidência.

Na entrada: a singularidade do sintoma

Várias perguntas poderiam ser formuladas acerca da incidência da última


concepção de sintoma na problemática das entradas em análise.

Em primeiro lugar, se o acento posto na dimensão de gozo do sintoma e em


sua vertente “pragmática” de reparação da falha estrutural, assim como um
certo “desprezo” pela vertente do sentido – já que o real exclui o sentido –,
tornam obsoletas certas afirmações clássicas, como por exemplo, a
“formalização do sintoma”, isto é, sua articulação com o Sujeito suposto saber.

11
MILLER, J.-A. “El ruiseñor de Lacan”, op. cit., p. 261.

11
Dito de modo mais simples: é necessário passar ainda pela via do sintoma
como formação do inconsciente para chegar à sua dimensão de sinthoma? É
viável pensar uma prática que intervenha, desde a entrada, sem a instalação
do Sujeito suposto saber – isto é, sem passar pelo sentido, pela decifração,
numa uma espécie de curto-circuito? No momento, me inclino a responder:
não. Sempre é necessária a produção do sujeito suposto ao sentido do
sintoma.

Em seu último curso, Miller dá algumas pistas a este respeito, que podem
parecer inicialmente contraditórias.

Na primeira aula, diz que “a definição inédita de sinthoma não deixa ilesa
nossa referência, na prática analítica, ao inconsciente”. Porque o inconsciente
já não é o dado primitivo da prática; o dado primitivo é o sintoma. A seguir,
enfatiza que “o sinthoma não é o sintoma como formação do inconsciente”. E
especialmente que o que ele chama de uso lógico do sinthoma se opõe ao uso
do decifrado. Embora remeta à verdade do sintoma, alimentando-o, o uso
lógico leva ao real do sinthoma. É muito forte! Neste ponto, ecoou em mim
outra velha indicação de Miller, no texto ∑ (x)12 – ∑, como vocês devem
lembrar, é a letra utilizada por Lacan, por volta de 1975, para nomear o
sinthoma, definido como função de uma letra, f(x), letra que não cessará de se
repetir – onde ele diz que o sonho de Lacan era poder prescindir – se o
sintoma é um traslado do simbólico ao real que não cessa de se repetir – da
mediação do sentido para ir do real ao simbólico.

No entanto, na terceira aula de Pièces détachées, Miller não hesita em dizer


que, na análise, trata-se de encontrar o que “quer dizer” um acontecimento de
corpo. Ou seja, trata-se de começar a ler esse acontecimento de corpo, de
começar a decifrá-lo, de encontrar seu sentido, até tropeçar, se a leitura for
levada aos últimos entrincheiramentos, no ilegível. Nesse ponto limite se
encontra esse traço chamado sinthoma. Essa fórmula poderia ser interessante

12
MILLER, J.-A. Matemas II. Argentina: Manantial, 1988, p. 171.

12
para pensar a questão dos efeitos terapêuticos rápidos, que são atingidos sem
que se passe pela decifração.

De qualquer forma, penso que, na entrada em análise clássica, é preciso


passar necessariamente pela instalação da transferência. Miller também
afirmou isso em Comandatuba, dizendo que “o amor é condição do Sujeito
suposto saber”. É preciso isolar, inicialmente, um enunciado singular do
analisando incluído em seu sintoma – ou seja, não basta isolar um sintoma–
tipo, como por exemplo, a dúvida, a insatisfação, etc; é preciso isolar um
significante privilegiado daquele sujeito. Trata-se do significante da
transferência, que, ao se articular ao Sq encarnado pelo analista, permite que
o autismo do sintoma sem transferência se abone ao inconsciente, quer dizer,
permite que se abra a via do sentido.

Entendo que para que isso ocorra é necessário que, nas entrevistas
preliminares, a intervenção do analista – que podemos chamar de
interpretação – consiga isolar esse elemento do discurso, no qual o analisando
poderá, no final, reconhecer seu ser de gozo.13 É este S1, isolado desde o
início, que permite ao sujeito ler seu inconsciente. Aliás, desde o primeiro
Lacan, sempre foi privilegiado o traço singular, o que se torna cada vez mais
evidente na última versão do sintoma em Lacan, na qual se trata de sua
singularidade. Por exemplo, no Homem dos ratos, o importante não é o delírio
do pagamento da dívida, mas o significante rato que já aparece em seu próprio
sintoma. Hoje mais do que nunca, é preciso isolar esse significante privilegiado
desde o início. Para localizá-lo, é preciso que o analista, desde as entrevistas
preliminares, opere pela via da redução e não pela da amplificação do sentido.
Lacan fala da análise como uma operação de localização. Localizar não é
agregar sentido, mas situar. Devemos, desde a entrada, tentar localizar o
nome do sintoma daquele analisando.

13
“No final da análise se trata de outro uso de uma articulação que já existe desde do começo”.
LAURENT, E. “Síntoma y nombre proprio”. Em: Síntoma y nominación. Buenos Aires: DIVA,
2002, p. 98.

13
Isso nos permite avançar sobre a incidência da última noção de sintoma na
interpretação. Mas antes, quero marcar a importância, na época atual, – a do
discurso hipermoderno ou capitalista – de isolar o sintoma em sua maior
pureza na entrada no dispositivo numa época em que os sujeitos costumam se
apresentar sem referências identificatórias, ou seja, sem bússola. Isto abre à
honra da prática analítica e à sua articulação com a nobreza do sinthoma. Em
outras palavras, creio que é possível caracterizar a seguinte seqüência: o
“adoecer de honra” como condição de possibilidade para alcançar a “nobreza
do sinthoma”.

A interpretação homogênea ao sinthoma

Dizer que a interpretação é homogênea ao sinthoma significa que os dois


elementos são do mesmo gênero ou espécie: ambos surgem e participam da
dimensão equívoca e intraduzível da alíngua.

Uma caracterização da interpretação feita por Lacan, em seu último ensino, é a


que, a meu ver, melhor mostra esta homogeneidade. Refiro-me a esta frase da
“A Terceira” (1974): “a interpretação sempre deve ser o ready-made de Marcel
Duchamp”.

Que relação existe entre o equívoco e os ready-made de Duchamp? Duchamp


chamava seus objetos ready-made de trocadilhos em três dimensões. Sua
operação consistia em extrair um objeto de seu contexto habitual para expô-lo
de modo isolado. Ao fazê-lo, Duchamp provocava no espectador um efeito que
poderíamos chamar de “perplexidade”. Seu ready-made mais famoso, o urinol
– que ele próprio chama “Fonte” – mostra claramente o procedimento: extrair
o objeto do contexto habitual (o banheiro), onde ele tem uma função de
utilidade direta, e elevá-lo à dignidade de um objeto a-rstístico, como diz
Duchamp, que questiona as categorias do útil e do belo. A interpretação ready-
made faz algo semelhante: extrai um significante de seu contexto associativo,
separando-o de seu S2 por meio do equívoco homofônico, reduzindo-o ao seu

14
caráter de letra, que, como tal, é intraduzível. É o mesmo que faz Lacan
quando, em vez de traduzir Unbewusst para o francês por l’inconscient – que
seria acrescentar o S2, ou seja, o sentido desta palavra alemã na língua
francesa – ele a intraduz, como faz Joyce em Finnegan’s Wake, isto é, a
equivoca, por sua homofonia em francês, como “Une-Bévue”, “Uma-
equivocação”.14

Por isso, entendo que esta modalidade interpretativa pode ser situada no que
Miller chamou “a via da perplexidade”, que é um aprofundamento em Lacan do
que podemos nomear de uma orientação para a “ressonância a-semântica”.
Via que implica separar, de um modo ou de outro, S1 de S2.

Além disso, penso que, desse ponto de vista, a interpretação é homogênea ao


sinthoma, porque, como ele, ela também deve ser uma “peça solta”. Em seu
curso Pièces détachées, após citar como exemplo eminente de peça solta o
urinol ready-made de Duchamp – fora-do-sentido, um objeto “de puro gozo”,
que não serve para nada –, Miller afirma que o sinthoma inventado por Lacan
é precisamente uma peça solta, peça que trava as funções do indivíduo, mas
que tem, secretamente, como Lacan mostrará, uma função eminente e que, na
análise, trata-se de encontrar a sua função.15

Tanto a interpretação como o sinthoma são peças soltas, porque separados do


S2. Eles apontam o S1 em sua unicidade como tal; não se trata, então, do S1
que representa o sujeito para S2. Lacan diz que o sinthoma não é o S1 que se
conecta ao S2. No caso, trata-se do S1 isolado, homólogo ao objeto a. A
interpretação analítica que aponta para a localização de traços significantes
isolados é homogênea ao sinthoma. Poderíamos generalizar e dizer que
sempre a interpretação é homogênea ao sintoma. No primeiro Lacan, a

14
MILLER, J.-A. “O último ensino de Lacan”. Em: Opção Lacaniana, n° 35. Rio de Janeiro:
Edições Eólia, janeiro de 2003, p. 14.
15
MILLER, J.-A. Curso de Orientação Lacaniana (2004-2005). Inédito. Aula 1, de 17 de
novembro de 2004.

15
interpretação é metafórica e, portanto, homogênea ao sintoma, pois este é
concebido como uma metáfora.

Recordemos ainda que, em Comandatuba, Miller faz, de passagem, referência


à interpretação. Diz precisamente que a poética da interpretação não se
vincula ao belo, mas sim ao materialismo – moterialisme, o materialismo da
palavra – da interpretação. Ele dá o exemplo de uma supervisão na qual o
analista obteve um efeito inédito com uma paciente, após nove anos de
análise, simplesmente lhe dizendo Basta!, de maneira virulenta, que
contrastava com o tom doce e habitual de sua voz. E Miller acrescenta: “É
preciso por o corpo para elevar a interpretação à potência do sintoma”.16

Poderíamos então falar da interpretação “como acontecimento de corpo” no


analista? Trata-se de outro modo de “descontextualização” ou há algo mais
aqui? E ainda, essa modalidade interpretativa não seria equivalente a
“perturbar a defesa”?

Deixo esta terceira incidência. Adianto que as três últimas incidências: a


questão ética, a dimensão política em geral e o final de análise se articulam e
se superpõem. Para nós, não há política que não se sustente em uma posição
ética. A política tem a ver com o desejo do analista, que é evidentemente ético
e que, ao mesmo tempo, está ligado necessariamente ao final de análise.
Portanto, vou expô-las separadamente apenas por uma questão de clareza
expositiva e para acentuar algumas facetas.

Passemos à quarta incidência, a da última versão de sintoma em Lacan na


questão ética, que resumirei na pergunta: falasser ou sujeito?

16
MILLER, J.-A. “Uma fantasia”. Em: Opção Lacaniana, n° 42. São Paulo: Edições Eólia,
fevereiro de 2005, p. 17.

16
Falasser ou sujeito?

Costumamos repetir, citando Miller, que o último ensino de Lacan opera uma
“depreciação” da noção de sujeito. Efetivamente, em “O osso de uma análise”,
ele o diz claramente. Se a noção de falasser implica que este goza ao falar –
na medida em que a simbolização não só não anula o gozo, mas o sustenta –
“[...] esta perspectiva comporta um questionamento do termo sujeito”. Por
que? Porque o sujeito é um elemento sempre mortificado, definido como falta-
a-ser. Ao questionar isso, Lacan faz entrar o corpo vivente “[...] substituindo o
termo sujeito por falasser, que é o contrário da falta-a-ser. O falasser é o
sujeito mais o corpo, é o sujeito mais a substância gozante”.17

Como o termo sujeito é crucial na consideração da perspectiva ética,


deveríamos nos perguntar se esta variação que Lacan introduz com a noção de
falasser afeta a dita perspectiva e, em caso positivo, de que maneira o faz.

Em primeiro lugar, recordemos que a noção de responsabilidade está


indissoluvelmente ligada à noção de sujeito. O sujeito como efeito de
significação é resposta do real e, como tal, é em si mesmo índice de
responsabilidade, já que “responsabilidade” deriva precisamente de
“responder”. Por isso, buscamos sempre produzir, desde o início de uma
análise, esse sujeito responsável por seus ditos e por seu gozo. Miller
trabalhou bastante isso, há muito tempo, em São Paulo, em “Patologia da
ética”.18

A pergunta que me faço é: será que a promoção da noção de falasser anula a


dimensão ética constituinte da experiência analítica? Apresso-me em
responder: Não. Não apenas não anula, mas, de certo modo, a aprofunda. Em
outras palavras, entendo que para que a experiência analítica ocorra é

17
MILLER, J.-A. “O osso de uma análise”. Em: Agente, revista da EBP-BA. Salvador: EBP-BA,
1998, p 102.
18
MILLER, J.-A. “Patologia de la ética”. Em: Logicas da vida amorosa. Buenos Aires: Manantial,
1991, pp. 70-74, e 79-87.

17
necessário que os dois componentes do falasser ($, a) – ou seja, o sujeito e o
gozo ou substância – se separem e emirjam em uma nova articulação, que é a
do discurso analítico. Único laço em que o objeto a pode se situar no lugar de
agente, como núcleo elaborável do gozo em uma análise. “Somente por meio
da psicanálise este objeto”, diz Lacan na “Terceira”, “constitui o núcleo
19
elaborável do gozo [...]”.

De certo modo é o mesmo que dizemos, por outro ângulo, ao afirmarmos que
“a operação própria à psicanálise consiste em um forçamento que conduz o
gozo ao sentido, para resolvê-lo e levá-lo ao ponto máximo de opacidade no
qual já se manifeste o ilegível”.20

Essa operação não pode ser realizada senão passando pela suposição de
sentido, pela crença de que o sintoma quer dizer algo. Suposição que surge
quando o próprio sujeito, como resposta do real, está realizado – o sujeito que
é suposto a um conjunto harmônico de significantes. Ou melhor, é o próprio
sujeito que introduz a dita harmonia, isto é, uma relação entre S1 e S2. E sua
condição é o amor ao inconsciente21 que faz o Outro nascer, que faz surgir o
inconsciente como semblante a partir do gozo do sujeito.22

Além disso, digo que esta nova perspectiva reforça ainda mais a dimensão
ética, porque a caracterização do sintoma como invenção frente ao furo da não
relação sexual implica a idéia de que o próprio sintoma é uma resposta. Ou
seja, é dessa fórmula singular que o falasser inventou, que ele deverá –
mediante o sujeito realizado na experiência analítica – tornar-se responsável.

19
LACAN, J. “La tercera”. Em: Intervenciones y textos 2. Buenos Aires: Manantial, 1993, p. 90.
20
MILLER, J.-A. “O último ensino de Lacan”, op. cit., p.10.
21
MILLER, J.-A. “Uma fantasia”. Em: Opção Lacaniana, nº 42. Rio de Janeiro: Edições Eólia,
fevereiro de 2005.
22
MILLER, J.-A. “∑ (x)”. Em Matemas II. Argentina: Manantial, 1988, p. 172.

18
Como recorda Miller, Lacan afirma, no Seminário 23: O sinthoma, que “não há
responsabilidade senão sexual”. Cada um tem que responder pelo sexo, e só é
possível, na medida em que não há relação sexual, responder “lateralmente”.
“Isso quer dizer”, assinala Miller, “que no que se pensa, responde-se sempre à
sexualidade e que a resposta dada é sempre sintomática: sempre quer dizer
que não se sai (disso)”.23 Ou seja, “disto – do sintoma – não se sai”. Já temos
aqui uma indicação sobre o final de análise como identificação ao sintoma, que
veremos adiante.

Podemos ainda sublinhar que, embora Lacan sempre tenha reservado um lugar
privilegiado para a “insondável decisão do ser” (1946)24 na determinação da
estrutura subjetiva – seja neurose ou psicose – é claro que suas formalizações
mais clássicas, baseadas na preexistência do Outro e na aceitação ou recusa
da metáfora paterna, permitem um deslizamento para uma espécie de lógica
mecanicista, que dá destaque à ação da estrutura em detrimento da invenção
do sujeito. Pelo contrário, esta última – em seu caráter de resposta
eminentemente ética – é o que o último ensino de Lacan destaca,
distanciando-se assim de toda caracterização deficitária da psicose que ainda
impregnava suas primeiras formulações25. Vemos aqui também ressaltada a
vertente pragmática do sintoma que, como tal, é ética.

Política do sentido ou Schreber contra Damásio

Penso que poderíamos interrogar várias incidências políticas da última noção


de sintoma e definir alguns eixos possíveis de debate. Por exemplo, com as
TCC, com o neopragmatismo (Rorty, Goodman), com as elaborações de alguns
pensadores contemporâneos da política (Toni Negri, Paolo Virno),

23
MILLER, J.-A. Curso de Orientação Lacaniana (2004-2005). Aula 3, p. 26.
24
LACAN, J. “Formulações sobre a causalidade psíquica”. Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1998, p. 179.
25
Cf. La Psicosis ordinária, Colección ICBA. Buenos Aires: ICBA-Paidós, 2003, pp. 47-61.

19
especialmente com a noção de “multidão”. Certamente esta lista poderia ser
ampliada.

Mas o fundamental é que, nos três eixos, o princípio que continua nos guiando
é o sintoma, que implica, por um lado, “um funcionamento e um gozo” e, por
outro, é índice do que não anda, índice de que há uma dimensão traumática
constituinte e um núcleo de gozo impossível de ser reabsorvido, do qual o
sintoma é a testemunha e o lugar em que se situa a responsabilidade do
sujeito.

Situarei apenas as coordenadas de um possível debate com as TCC a partir da


última noção de sintoma em Lacan. Como o espectro das TCC é amplo e
difuso, localizarei três de suas variantes principais.

Podemos afirmar de modo geral que as formas chamadas do “condutismo


radical” (ao modo de Skinner), na medida em que recusam a noção de
“psíquico”, por considerá-la uma suposição metafísica, também recusam a
pergunta sobre a causalidade psíquica e, com isso, evacuam a interrogação
sobre a responsabilidade do sujeito. Trata-se apenas de condutas e de seu
reforço (positivo ou negativo), ou seja, a determinação está no entorno do
indivíduo.

Outras correntes, as cognitivo-comportamentais mais duras (Jean Cottraux) –


porém não “radicalmente condutistas” – convocam a responsabilidade do Eu
ou do indivíduo, mas somente para cumprir as tarefas propostas.

Outras, mais sutis – como, por exemplo, o “construtivismo” ou “cognitivismo


pós-racionalista” – consideram que, para que o paciente possa elaborar um
novo guia da relação com o mundo através do vínculo com o terapeuta, é
necessário que ele formule uma “atribuição interna” do mal-estar. Porém esta
espécie de retificação subjetiva, chamada “declaração do mal-estar”, que
reintroduz a causalidade psíquica, não vai muito longe. O objetivo é obter uma

20
nova narração – trata-se de uma psicoterapia narrativa –, uma nova “estrutura
de significado” ou nova “construção” que permita ao paciente uma nova
adaptação funcional. Para eles, uma construção é “funcional” quando as
estruturas que a compõem são sintônicas, harmônicas e coerentes, e
asseguram o equilíbrio da identidade pessoal.26 É uma operação terapêutica
narrativa limitada ao patamar inferior do Grafo do desejo e que, portanto, é o
oposto à nossa caracterização do sinthoma como peça solta!

Nesta concepção, o sintoma é pensado como uma disfunção que é preciso


resolver, já que se supõe a idéia de que existe, para a espécie humana, uma
ordem no real.

Trata-se de uma concepção semelhante à de Antonio Damásio, que supõe a


existência de uma série de estruturas hierárquicas, cada uma se apoiando e
integrando as anteriores, tal como se observa nas estruturas sociais e
biológicas27. Em Spinoza avait raison. Joie et tristesse, le cerveau des
emotions, Antonio Damásio diz: “Spinosa e James nos convidam a uma
adaptação benéfica sob a forma da vida natural do espírito. Seu Deus é
terapêutico, no sentido de que restaura o equilíbrio hemodinâmico perdido
como conseqüência da angústia”.28

Ainda que se possa ler e questionar isso com o que Lacan diz na última aula do
Seminário 11, na qual afirma que a posição de Spinoza – de um Deus todo
significante, evacuado de gozo – é insustentável para nós, analistas, e que
nisso, Kant – lido com Sade – é mais certeiro29, ao nos situarmos na última
noção de sintoma, podemos objetá-lo a partir da experiência do Presidente
Schreber.

26
FERNÁNDEZ Álvarez, Héctor. Fundamentos de un modelo integrativo en psicoterapia.
Argentina: Paidós, 1992, p. 129.
27
Idem, Ibidem, p. 190.
28
Na página 278 da versão francesa. Paris: Odile Jacob, 2003.
29
LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quarto conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988, p. 260.

21
Em A experiência do real no tratamento psicanalítico, Miller recorre
precisamente às Memórias de Schreber para ilustrar o sintoma como
acontecimento de corpo. Ele se refere ao “vai-e-vem divino” entre Schreber e
Deus, por meio do qual Schreber deve pensar sem cessar para que Deus goze
e ele próprio possa obter, em compensação, um gozo a mais. Se, pelo
contrário, Schreber para de pensar, Deus se retira e ele para de gozar,
sentindo-se à deriva, o que pode levá-lo à morte.

“As Memórias”, diz Miller, “são, por excelência, o texto que evidencia que o
pensamento é condição de gozo e que o saber do significante aparece como
seu meio [...]”30. Pelo contrário – como acabo de acentuar –, ao surgir o
“pensar em nada”, Schreber verifica que Deus se retira, assim como o gozo.

Porém o central é que, desse modo – precisamente pela retirada de Deus –


Schreber pode afirmar que Deus apresenta um furo em seu conhecimento da
vida, do corpo vivo; que há algo da vida e do corpo vivo que excede à ordem
simbólica, ao significante. É porque Schreber testemunha esta falha em Deus,
que podemos dizer que ele objeta o Deus spinoziano de Damásio, que seria um
Deus terapêutico que saberia tudo sobre a vida e que serviria de base
imanente para uma espécie de “utilitarismo biológico”. Então, para Damásio,
há um saber, uma espécie de Deus terapêutico que seria o equilíbrio
homeostástico, que, ao ser abalado, precisa ser restaurado. Penso que este
“utilitarismo biológico” de Damásio se aproxima do que Miller chamou, de
modo enigmático, de “bioteologia”, ou seja, a idéia de um Deus que estaria no
vivo enquanto tal, e que toma a forma dessas supostas cientificidades.

Em oposição a esta suposição de um Outro evacuado de gozo, ou melhor, de


um Outro que poderia passar todo o gozo à contabilidade, reabsorvê-lo

30
MILLER, J..-A. La experiencia de lo real en la cura psicoanalítica, op. cit., p. 394.

22
completamente, – cito Miller – dizemos que “[...] não existe sujeito sem
sintoma, e isso até o final dos tempos”.31

Esta afirmação nos conduz à incidência sobre o final de análise.

A identificação ao sintoma

Em seu último ensino, Lacan desloca a perspectiva sobre o final de análise: se,
a partir do Seminário 11, ele o concebia em termos de “travessia da fantasia”,
passa a situar suas coordenadas em termos de “identificação ao sintoma”.

Miller caracterizou com precisão o deslocamento operado pelo último ensino de


Lacan especialmente em seu curso O lugar e o laço (2000-2001)32. Ele assinala
ali que o traço diferencial estabelecido pelo último ensino de Lacan é um
questionamento do ponto de basta. Um questionamento porque se o acento é
colocado no real como fora de sentido e o ponto de basta é precisamente o que
introduz um sentido retroativo à experiência, a própria noção de ponto de
basta deve ser reconsiderada. Em outras palavras, a noção mesma de finitude
é questionada e, com ela, a idéia de um “além”. “O ponto de basta”, diz Miller,
“é um fenômeno de sentido e é a isso que convém renunciar quando o fora de
sentido domina o assunto”.33

Desse modo, o passe como ponto de basta, o passe-relâmpago, o passe


relativo a um “além” que implicaria o atravessamento da fantasia – mais
solidário ao terceiro paradigma do gozo (do gozo impossível, alcançado por
transgressão) – fica reduzido ao que podemos chamar de uma “iluminação da
fantasia” e ligado a um efeito de verdade.

31
MILLER, J.-A. Curso de Orientação lacaniana (2004-2005). Pièces détachées. Inédito. Aula 3,
p. 27.
32
Cf. Freudiana n° 32. Aulas de 10 e 17 de janeiro de 2001.
33
Idem, Ibidem.

23
Pelo contrário, no último ensino de Lacan ganha relevo a instância central do
sintoma. Já não se trataria de alcançar, para além do sintoma, a fantasia e
atravessá-la, mas sim a identificação ao sintoma, pois do sintoma, dessa
instância que agora é o sinthoma (sintoma + fantasia), já não se pode sair.

Se antes havia a idéia de cura do sintoma, mas mantendo o incurável com


referência à fantasia – que não se cura, mas se atravessa –, na nova
perspectiva, o próprio incurável se situa no interior do sintoma como sinthoma.
Quer dizer, no interior do que podemos chamar de gozo opaco do sinthoma em
oposição ao gozo transparente, que é o gozo ligado ao sentido34 e que pode
ser reduzido pela operação analítica, o que comporta efeitos terapêuticos. A
redução do gozo transparente é apenas a redução do gozo fálico do sintoma
(gozo semântico), aquele que se alimenta de sentido.

Há uma indicação de Éric Laurent a este respeito que me parece especialmente


esclarecedora: “No final da análise se trata de outro uso de uma articulação
que já existe desde o começo”.35 Isto é: se há algo incurável no próprio
sintoma, trata-se de fazer um uso diferente do uso neurótico. Voltarei a isso,
mas me parece conveniente nos determos no que seria a condição de
possibilidade desse “outro uso”, quer dizer, a identificação ao sintoma.

A referência precisa de Lacan está no Seminário, livro 24: L´insu que sait de
l´une-bévue s´aile à mourre, na aula de 16 de novembro de 1976. No
contexto de uma caracterização do traço unário, Lacan pergunta a que alguém
pode se identificar no final de uma análise. Certamente ele descarta a via da
identificação ao analista e também ao próprio inconsciente, porque “o
inconsciente permanece sempre Outro”, portador dos significantes que
determinam o sujeito. E acrescenta: “Em que consiste, então, essa localização
que é a análise? Por acaso isso não seria identificar-se – tomando disso as

34
MILLER, J. -A. Curso de Orientação lacaniana (2004-2005), Pièces détachées. Inédito. Aula 6,
p. 51.
35
LAURENT, E. “Síntoma y nombre proprio”, op. cit., p. 98.

24
suas garantias36, uma espécie de distância – com seu sintoma?”. E, após
estabelecer uma espécie de homologia entre o sintoma e o que o homem faz
com sua imagem, conclui: “Saber fazer com – se virar – com seu sintoma,
esse é o final de análise. É preciso reconhecer que isso dura pouco.
Verdadeiramente não vai longe!”

Vou lhes dizer o que me ocorre a partir dessa frase: a identificação do final de
análise supõe uma identificação ao sintoma, cujo nome posso pronunciar, mas
o que conta não é tanto o nome que pronuncio, mas sim que este nome indica
algo impronunciável, a dimensão opaca do sinthoma. Entendo que a homologia
com a imagem indica que, como o falasser não é um corpo, mas tem um
corpo, ele também tem sintomas e, se ele os tem e carece de identidade, o
que lhe resta é identificar-se com.

O sintoma viria, como a imagem, responder ao vazio do sujeito ($), mas


jamais esta identificação poderia conformá-lo totalmente.37 Isso seria a idéia
de que entramos divididos na experiência analítica e saímos com a divisão
(castração) suturada pelo sintoma! Ora, como não é possível eliminar a
castração, trata-se de outra relação com a divisão que não a de
indeterminação.

Neste ponto me parece crucial a sutil indicação de Lacan sobre “identificar-se


tomando disso – dessa identificação – suas garantias, uma espécie de distância
[...]”. É como se ele dissesse que é uma identificação que preserva uma certa
distância em relação ao sintoma.

Isto poderia ter, pelo menos, três conseqüências:

1. Mudou a relação com a repetição. Não se trata de uma identificação


ao sintoma reduzida à cega necessidade, ao que não cessa de se

36
No original: “s’ identifier en prenant ses garanties...”.
37
TIZIO, Hebe. “El Pase n”.

25
repetir do sintoma. Isso se refere mais à identificação ao sintoma
prévia à análise, que supõe um estatuto imaginário, do que ao
sujeito que se identifica sem solução de continuidade com sua
própria vida.38 A identificação do final implica, ao contrário, que se
tenha feito uma experiência do impossível, que deixou uma abertura
entre o sujeito e o sintoma como condição de possibilidade para uma
disposição à contingência. Nesse sentido, cabe lembrar que Miller
assinala que, no nível da pulsão – onde o sujeito é sempre feliz –
tudo é puro logro, ali não há um real (impossível) verificado. É isto
precisamente o que a operação analítica introduz: um limite ao gozo
da apparola, ao seu monólogo, introduzindo o impossível da relação
39
sexual.

2. Aqui se situaria também o tema da criação ou da invenção no final da


análise. Proponho apenas uma conjectura: talvez seja porque Lacan
abandona, em seu último ensino, o paradigma da travessia da
fantasia, que ele substitui o termo criação (que é sempre ex nihilo e
ligado ao terceiro paradigma) por invenção, sempre feita a partir de
algo, e não a partir de nada.

3. Se no início, o sujeito é, no nível do sintoma, poema, no final, trata-


se de que, a partir de seu sintoma, possa ser poeta40. Em outras
palavras, se no início o sujeito é usado pelo saber fazer do sintoma,
onde isso goza sem que ele saiba, no final cabe a possibilidade de
saber fazer com, ou seja, cada vez um uso diferente – uma
pragmática da contingência41, poderíamos chamá-lo – daquilo que

38
MILLER, J-A. “CTS”. Em: Clínica bajo transferencia, p. 8.
39
MILLER, J.-A. “El monólogo da apparola”. Em: Opção Lacaniana, n° 23. São Paulo: Edições
Eólia, dezembro de 1998.
40
MILLER, J.-A. “Reflexiones sobre la envoltura formal del síntoma”. Em: La envoltura formal del
síntoma. Buenos Aires: Manantial, 1989, p. 15.
41
LAURENT. E. “Politique de l´unaire”. Em La Cause freudienne, n° 42, “Politique lacanienne”.
Paris: Seuil, 1999, p. 30.

26
estava articulado desde o início. Aqui, a intervenção do analista na
entrada se torna crucial para isolar o que, no enunciado singular,
talvez possa ser reencontrado no final: algo da ordem da letra do
sintoma.

Um testemunho de um ex-AE, Vicente Palomera, publicado na Cause


freudienne n° 50, com o título “Corpo e sintoma”, ilustra muito bem essa
seqüência. Em um capítulo chamado “Dar fim à repetição”, ele relata que, no
começo da análise, se repetiam resfriados e rinites. Otites e rinites eram
sintomas que haviam se repetido amplamente em sua infância. Diz, a seguir,
que “A entrada em análise foi franqueada quando me encontrei sem palavras
logo após começar o relato, que sempre escutei, do menino que havia se
encontrado no limite da morte devido a uma provável cianose, sobrevinda nos
dias que se seguiram ao seu nascimento. O relato materno insistia unicamente
na cor arroxeada do menino que morria”.

A análise consistirá numa reprodução deste significante e do que foram suas


eflorescências. No curso desta, diz ele, “eu iria evocar amiúde uma imagem
acústica, fora de sentido, cuja emergência me turvava a razão. Trata-se do
nome de um peixe estranho, de cor arroxeada, chamado em zoologia Angelrina
Squatina. Hoje tenho dificuldade de extrair da imagem acústica do peixe o
elemento que insistia: Angelrina (do grego rinos, nariz) e seu enlaçamento
com o corpo. Esta imagem constituía uma tela em relação à descoberta da
castração. Sentado no chão com uma irmãzinha, ao olhar um álbum de
zoologia, repetíamos inúmeras vezes, caindo na gargalhada, o nome desse
estranho animal. Esse momento coincidia com o início da aprendizagem da
leitura. [...]. Este significante, Angelrina, extraído no final de análise, é o
mesmo no qual convergia a neurose, reproduzida na análise. Reproduzir este
significante era chegar a se confrontar com a estranheza radical nesse
reencontro que constitui a experiência analítica, na qual o significante se
desdobra, mostrando-se irredutível a si mesmo”.42

42
PALOMERA, V. Em: La Cause freudienne, n° 50. Paris: Seuil, fevereiro de 2002, pp. 80-85.

27
Creio que se vê bem como na entrada – seguramente isolado pela intervenção
do analista – já estava localizado um significante, arroxeado (morado) que
logo se mostraria intimamente articulado a outro significante crucial e
insensato, Angelrina, verdadeiro índice da incidência da equivocidade da
alíngua no corpo.

Fica a questão de se, no final de análise, haveria um dar fim à repetição ou


uma mudança de posição em relação a ela. Talvez isso se esclareça se
lembrarmos, como faz Palomera em seu texto, que o que existe é uma
mudança do estatuto da repetição, que deixa de ser “vã”, quer dizer, deixa de
repetir sempre o mesmo. Sua referência para argumentar isso, a partir de sua
própria experiência como analisando, é uma importante indicação de Lacan em
O saber do psicanalista, na aula de 4 de maio de 1972. Lacan diz ali: “O que é
a psicanálise? É a localização do que se compreende do obscurecido, daquilo
que se obscurece na compreensão, pelo fato de que um significante marcou
um ponto no corpo. A psicanálise é o que reproduz uma produção da neurose
[...]. Todo pai traumático está definitivamente na mesma posição que a do
psicanalista. A diferença está no fato de que o psicanalista, por hipótese,
reproduz a neurose, enquanto o pai traumático a produz inocentemente. Trata-
se de reproduzir este significante a partir do que foi sua eflorescência. Fazer
um modelo da neurose é, em suma, a operação do discurso analítico. Por que?
Porque retira uma dose de gozo. O gozo exige efetivamente um privilégio:
para cada um, não há duas formas de consegui-lo. Toda reduplicação o mata.
Ele só sobrevive se a repetição for vã, quer dizer, sempre a mesma”.

A nobreza do sintoma

Tentarei situar as coordenadas do que antecipei, dizendo que na entrada em


análise caberia pensar, no tratamento dos sujeitos contemporâneos, no
“adoecer de honra” como condição de possibilidade para alcançar a “nobreza
do sinthoma”.

28
Isso se esclarece se recordarmos o discurso capitalista que Lacan escreveu
apenas uma vez, em 1972, e que foi trabalhado por Miller, em seu Curso Um
esforço de poesia. Minha pergunta é porque ele passa do discurso capitalista
ao discurso hipermoderno.

Tomemos o discurso do mestre, no qual o sujeito se identifica ao S1, o


significante-mestre. Vocês sabem que as setas indicam circulação e a dupla
barra do piso inferior é “a chave da impossibilidade dos quatro discursos”,
como Lacan indica no Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise.

Que inversões são operadas no discurso capitalista? A inversão da seta entre o


lugar do agente e o da verdade, e a inversão do S1 e do $. Como não há
relação possível entre o produto e a verdade, isso indica que é obscurecida a
dimensão de castração. O discurso capitalista produz a foraclusão da dimensão
da impossibilidade estrutural, que implica a não relação sexual, o que está
indicado, nos quatro discursos, pela dupla barra oblíqua no piso inferior. Ele
não é propriamente um discurso – trata-se de um pseudodiscurso, diz Lacan –
porque não estabelece laço entre Um e o Outro, como ocorre nos quatro
discursos, mas remete o sujeito à sua solidão.

Discurso do mestre Discurso do capitalista

S1 S2 $ S2
$ // a a S1

É que vemos na contemporaneidade, nesses sujeitos sem referências


identificatórias, que não fazem laço com o outro e que tamponam a sua divisão
com o falso mais-de-gozar implícito na mercadoria, ou seja, nos gadgets.

29
Trata-se de um sujeito sem honra e sem vergonha, já que não é representado
por um traço singular com o qual possa se apresentar frente ao Outro e pelo
qual – se for o caso – possa dar a sua vida. Sua vida é ignominiosa, pois só
vale enquanto vida. Além disso, ele é sem nobreza, se entendemos por
nobreza a barra singular que marca o sujeito e que este recebe do traço
unário, a primeira identificação que traumatizou seu corpo de falasser.

Ao recebermos estes sujeitos que chegam na posição do discurso capitalista,


precisamos introduzir um ordenamento de discurso, no sentido estrito. Ou
seja, é preciso que o analista, competindo com os gadgets, consiga introduzir a
dimensão da impossibilidade estrutural, e isto, desde o início, pois é
fundamental que o sujeito localize o nome que o nomeia, seu primeiro S1, no
qual possa se reconhecer, e que lhe permitirá tornar legível a sua história e,
conforme o caso, o seu inconsciente. É justamente isso o que propiciaria a
entrada no discurso analítico.

No discurso analítico, a seta entre a e $ indica o amor, ou seja, diante do


objeto, o sujeito responde com o amor de transferência. Como o discurso
capitalista elimina essa seta, também elimina o amor. Zygmunt Bauman diz,
em “O amor líquido”, texto que é muito interessante: “Antes Mussil falava do
Homem sem qualidades; agora podemos falar de homens sem laços”. O
discurso analítico implica a reinstalação da dimensão do amor, via pela qual é
possível situar a invenção estrutural da impossibilidade da relação sexual.

A hipótese que proponho acerca da nobreza do sintoma é que, na entrada em


análise, o fundamental é instalar o amor, mas também produzir o isolamento

30
do S1, o primeiro nome do sintoma daquele sujeito. Isso implica entender o
discurso analítico não meramente como uma desidentificação, como eu
pensava anteriormente. Implica pensar que na entrada em análise, produz-se
o primeiro nome do sintoma, o primeiro S1 do sujeito que lhe valerá como
carta de apresentação frente ao Outro. É essa produção que Lacan chama, no
Seminário 17, de novo estilo do significante-mestre. Não se trata do
significante da tradição que constitui o grupo, mas daquilo que constitui a
nobreza do sintoma de um sujeito, a invenção de sua máxima singularidade, o
que faz de cada um de nós incomparável a qualquer outro.

É um outro modo de ler o S1 no lugar da produção no discurso analítico: não


como queda de uma identificação, mas como primeira localização do traço
sintomático. É a sua produção no início da análise que dá a chance ao sujeito
de alcançar, no final, no limite do legível, a opacidade fundamental que o
constitui, quer dizer, alcançar a nobreza de seu sinthoma.

Para concluir, lerei a referência de Miller da qual parti e que suscitou essas
considerações que trouxe para compartilhar com vocês. Ela está na terceira
aula (01/12/2004) do seu Curso Pièces détachées:

“A psicanálise se oferece para resolver este gozo doloroso (do


traumatismo da alíngua) pelo sentido. Mas ficar no gozo resolvido pelo
sentido (gozo transparente) é chato, e o convite de Lacan em O
sinthoma, é que é preciso deixar um relevo. É necessário que reste
sempre um relevo, na medida em que cada um é inigualável, e que
sua diferença reside na opacidade que sempre permanece, esse resto.
Esse resto é o que constitui o valor de vocês, por pouco que saibam
fazê-lo passar ao estado de obra. É sem dúvida nele que cada um
peca, tropeça, claudica. Porém é também o que constitui, para cada
um, sua diferença ou sua nobreza. Lacan fala do traço que barra o S
de seu sujeito como um traço de nobre bastardia 43. No Seminário: O
sinthoma, essa nobreza da bastardia encontra sua divisa: não há
sujeito sem sintoma, e isso até o final dos tempos. Então não
sonhemos, não tenhamos como ideal somente, simplesmente, curar”.

Tradução e estabelecimento do texto: Elisa Monteiro e Maria Angela Maia.

43
LACAN, J. “A direção do tratamento e os princípios do seu poder” (1958). Em: Escritos. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 641.

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