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A Nobreza Do Sintoma
A Nobreza Do Sintoma
A nobreza do sintoma*
Leonardo Gorostiza**
Introdução
É um prazer estar com vocês. Agradeço o convite da EBP-Rio, por meio de sua
diretora, Mirta Zbrun, e desejo a todos uma intensa jornada de trabalho. “A
nobreza do sintoma” – trata-se de uma fórmula que expressa um pequeno
deslocamento em relação àquela introduzida por Jacques-Alain Miller em seu
último curso, Pièces détachées, no qual ele fala da “nobreza do sinthoma”.
Minha idéia é ampliar essa dimensão e falar da nobreza do sintoma em geral.
Creio que essa é a melhor maneira de nomear o que quero trabalhar com
vocês.
Sendo uma Jornada de Cartéis, me pareceu que esse tema deveria ser
trabalhado de modo aberto, não conclusivo, fazendo interrogações, arriscando
algumas hipóteses, não nos contentando, enfim, com a reiteração e a
segurança do já sabido. Quer dizer, nos colocando ao trabalho.
*
Conferência ministrada na Jornada de Cartéis da EBP-Rio em 26 de novembro de 2005.
**
Analista Membro da Escola – AME. Membro da Escuela de la Orientación Lacaniana (EOL),
Membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP) e diretor do Instituto Clínico de Buenos
Aires (ICBA).
1
MILLER, J.-A. “Cinco variações sobre o tema da elaboração provocada.” Em: O cartel –
conceito e funcionamento na escola de Lacan. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1994, p. 6.
1
a $ S1
(x) S2
Nesse sentido, minha idéia seria colocar, no lugar do S1, esta variação da
fórmula de Miller, perguntando: o que quer dizer a nobreza do sintoma? Trarei
minha resposta, uma primeira aproximação, apenas no final da conferência.
Primeiramente, retomarei com vocês algumas notas do que apresentei em
duas noites da EOL, há dois meses atrás, nas quais alguns de nós
interrogamos o que foi chamado de “Incidências do último ensino de Lacan na
prática analítica”. Eu as retomei agora pelo viés do sintoma, perguntando-me:
quais são as incidências da última noção de sintoma em Lacan na prática
analítica na atualidade? Achei interessante retomar essas notas e tentar
avançar mais um passo, fazendo o que é, propriamente falando, um trabalho
de Escola.
2
que corresponde ao que chamamos de sexto paradigma do gozo. Finalmente,
situado neste ponto de perspectiva, tentarei estabelecer uma espécie de
panorama, interrogando seis incidências possíveis deste conceito de sintoma
sobre:
1. o diagnóstico
2. a entrada em análise
3. a interpretação
4. a ética
5. a política, no sentido mais amplo
6. o final de análise.
2
MILLER, J.-A. “El analista-síntoma”. Em: El psiconalista y sus síntomas. Buenos Aires: EOL-
Paidós, Colección Orientación Lacaniana, n° 3, 1998, p. 14.
3
sinthoma”. Como podem perceber, não reduzi-la ao sinthoma, que só se
produz no final da análise, mas estendê-la ao sintoma implica pensar a
importância e o valor que pode ter isolar a singularidade do sujeito desde o
início da análise, justamente dos “sujeitos contemporâneos”, tão bem
figurados na imagem escolhida para a divulgação dessas Jornadas: homens
reduzidos a corpos sem rosto, nos quais não aparece a diferença sexual ou
qualquer outra marca de sua singularidade.
4
Essas três posições, que Miller reconduz respectivamente a uma exaltação do
Simbólico (o passado), do Imaginário (o presente) e do Real científico (o
futuro), não passam afinal de práticas sugestivas. Ao me perguntar porque
Miller diz isso, a primeira resposta que me veio foi: porque elas são orientadas
por um “isso anda” (Ça marche).
Ele indica a seguir que, para que “a prática lacaniana por vir se sustente, se
distinga das outras”, é preciso situar bem qual é seu princípio. À diferença das
outras, cujo princípio é isso anda, o princípio da prática lacaniana é isso falha,
rateia, que traduziria o Ça ne marche pas (isso não anda), e que, em francês,
traduz uma sutil equivocidade, mediante uma ligeira mudança de acento, com
Ça ne marché pas (isso mercado não).
3
LACAN, J. O triunfo da religião. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005, p. 76.
5
de atualidade que tem. Se, como diz Lacan, é necessário que a psicanálise
fracasse para que o real continue existindo, já que, se tem êxito, a psicanálise
se extinguirá por ser um sintoma esquecido, pois este é o destino da verdade,
isso implica um desafio, que proponho como primeiro ponto para a discussão:
como articular o saber fazer dos sucessos terapêuticos, como tornar público os
resultados de uma análise mantendo, ao mesmo tempo, a dimensão do isso
falha?
Outro ponto a sublinhar é o termo inventar usado por Miller. Entendo que não
se trata de que seria preciso inventar a prática lacaniana de nossos dias, e que
ela, uma vez inventada, passaria a existir. Ou seja, estaríamos tranqüilos,
teríamos chegado ao Cristo Redentor e, lá de cima, poderíamos ver tudo. Ao
contrário, o termo invenção significa que se trata de reinventar a prática a
cada dia. Esse termo também é congruente com a última noção de sintoma.
Em O Seminário, livro 21: Os não tolos erram, Lacan faz uma declinação do
termo invenção: “[...] todos sabemos porque inventamos um truque para
encher o furo (trou) no real [...]. Ali onde não há relação sexual, há
troumatisme. Cada um inventa o que pode” 4. Inventa-se o saber, inventa-se o
masoquismo, o inconsciente inventa, o escrito é invenção, a lógica é uma
invenção, etc. Podemos dizer então que o próprio sintoma é uma invenção: a
invenção privilegiada de uma fórmula ali onde não há relação sexual.
“O sujeito”, diz Miller, “é sempre obrigado a inventar seu modo de relação com
o sexo, sem estar guiado por uma programação natural. Esse modo de relação
inventado, sempre particular e peculiar, sempre claudicante – rengo – sublinho
isso por sua relação com “o que não anda” – é o sintoma, que vem no lugar
dessa programação natural que não existe”5. O gozo, a invenção libidinal que o
sujeito inventa, jamais será a boa fórmula, sempre haverá déficit.
4
LACAN, J. Le Séminaire XXI: Les non-dupes errent. Inédito. Aula de 19 de fevereiro de 1974.
5
MILLER, J.-A. “El ruiseñor de Lacan”. Em: Del Édipo a la Sexuación. Buenos Aires: ICBA-
Paidós, 2001, pp. 260-261.
6
Em “Uma fantasia”, Miller dá algumas indicações preciosas sobre o sintoma e o
lugar que ele pode ter nessa nova prática lacaniana. Resumidamente, diz que a
psicanálise surgiu como uma infração ao saber científico. A ciência silenciou o
Universo, e afirmou: há um saber no real que não fala. A base da invenção
freudiana é que há algo no real, ou seja, o sintoma, que quer dizer algo, que
possui um sentido a ser decifrado. Isso foi, inclusive, a “condição de
possibilidade” da psicanálise. “O sentido no real”, diz ele, “é o suporte do ser
do sintoma, no sentido analítico”. Porém acrescenta que, após suportar por um
tempo esta transgressão ao saber da ciência, produziu-se na atualidade “uma
cisão do ser do sintoma”. Uma cisão entre o real e o sentido. Talvez se possa
pensar que Miller se refere ao ser do sintoma para separar a dimensão de
sentido do sintoma, sua dimensão de semblante, vinculada ao ser, e sua
dimensão de sinthoma, isto é, sua dimensão real, mais opaca, vinculada à
escrita. Miller afirma que, nessa cisão entre o real e o sentido, se produz uma
transformação do sintoma em transtorno, disorder em inglês. Ou seja, o
sintoma é concebido como uma desordem em relação a uma suposta ordem
existente no real. No título das Jornadas da EOL, perguntávamos: sintoma ou
transtorno? Vemos claramente que o transtorno supõe uma lei que funcionaria
no real como saber científico, uma lei já inscrita, enquanto o sintoma é uma lei
que o próprio sujeito inventa e que, portanto, não pressupõe nenhuma lei no
real. Essa é a diferença entre transtorno e sintoma.
Miller diz que existem duas respostas possíveis: tratar o real do sintoma, fora
do sentido, com a química; é o que fazem as neurociências. E, do lado do
sentido, há os tratamentos de apoio, que tomam duas formas: a escuta de
puro semblante, ou seja, as terapias charlatães, sem nenhuma conseqüência,
e as terapias autoritárias e sugestivas das TCC. Trata-se de uma refutação, de
uma recusa do sintoma em seu valor de verdade.
Qual é a resposta imaginada por Miller? Nem recusar o saber no real, nem se
alinhar a ele. Assim, a prática lacaniana a ser inventada seria definida como
7
“uma renovação do sentido do sintoma”. É o que Lacan introduziu, diz Miller,
“com o nome de sinthoma”. O que é surpreendente, pois o sinthoma é o que
resta de uma análise, da decifração do sentido, o que implica que não haja
uma renovação do sentido do sintoma a partir do sinthoma.
Deixo aqui outra pergunta para a conversação: se Lacan diz, no Seminário 23:
O sinthoma, que o sintoma ou o sinthoma são o Pai – ele faz uma equivalência
dos três termos – poderíamos dizer que, tal como devemos renovar o sentido
do sintoma, deveríamos renovar também o sentido do Pai?
Como vocês sabem, esta definição de Lacan aparece apenas uma vez, em seu
breve escrito “Joyce, o Sintoma” 6, e foi trabalhada por Miller in extenso em
7
seu curso A experiência do real no tratamento psicanalítico.
6
LACAN, J. “Joyce, o Sintoma”. Em: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003,
p. 565.
7
MILLER, J.-A. La experiencia de lo real en la cura psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós, 2003,
especialmente as aulas XXI e XXII.
8
Os sintomas surgem, na última versão de Lacan, do acontecimento traumático
que implica a incidência da alíngua – desses S1 sozinhos, que não formam
sistema ou estrutura – no corpo, o que pode ser resumido na fórmula: “o
significante é causa de gozo”, ou seja, causa de efeitos que são afetos. Quer
dizer, o significante não tem somente efeitos de significado – o próprio sujeito
é um desses efeitos –, mas também efeitos de gozo num corpo. Assim, a
alíngua veicula o traumático – troumatique – da não relação sexual, deixando
efeitos duradouros, marcas desse encontro sempre traumático do qual algo
não cessará de se escrever, não cessará de se repetir. É o que diz Miller: “A
não relação sexual é o acontecimento lacaniano no sentido do trauma, esse
que deixa marcas em cada um – não como sujeito, mas como falante – no
corpo, marcas que são sintoma e afeto”.8
8
Idem, ibidem, p. 386.
9
segundo a invenção. A rotina é apegar-se ao Nome-do-Pai, ao universal da
cultura, enquanto a invenção é criar algo novo. Entramos aqui na temática das
psicoses não desencadeadas. Creio que estas duas formas são cruciais para
situar a incidência desta nova perspectiva do sintoma no diagnóstico.
A arte do diagnóstico
Devo lhes dizer que, da minha parte, continuo tendo muito cuidado em relação
ao diagnóstico diferencial entre neurose e psicose durante as entrevistas
preliminares. Poderíamos, inclusive, nos perguntar se, ao detectarmos que a
solução sintomática implementada por um sujeito é de rotina – o Nome-do-Pai
como sintoma –, podemos afirmar que se trata de uma neurose. O que se
torna mais obscuro é o caso em que a solução é uma invenção. Ou seja, se
nesses casos podemos afirmar que nos encontramos sempre diante de
psicoses não desencadeadas. Em outras palavras: a partir dessa perspectiva,
seria possível pensar em modos de suplência por invenção “neuróticos”?
Sabemos que isso é crucial para tomarmos a decisão de comprometer alguém
no dispositivo, no qual inicialmente “todo sem sentido se anula”.10 De qualquer
forma, fica claro que essa nova perspectiva nos obriga a prestar atenção
9
Ver Los inclassificables de la clínica psicoanalítica, Coleção ICBA n° 1. Buenos Aires: ICBA-
Paidós, 1999, p. 395.
10
Idem, ibidem, p. 413.
10
especial no sintoma, avaliando, em cada caso, a função que ele cumpre como
reparação da falha no real.
11
MILLER, J.-A. “El ruiseñor de Lacan”, op. cit., p. 261.
11
Dito de modo mais simples: é necessário passar ainda pela via do sintoma
como formação do inconsciente para chegar à sua dimensão de sinthoma? É
viável pensar uma prática que intervenha, desde a entrada, sem a instalação
do Sujeito suposto saber – isto é, sem passar pelo sentido, pela decifração,
numa uma espécie de curto-circuito? No momento, me inclino a responder:
não. Sempre é necessária a produção do sujeito suposto ao sentido do
sintoma.
Em seu último curso, Miller dá algumas pistas a este respeito, que podem
parecer inicialmente contraditórias.
Na primeira aula, diz que “a definição inédita de sinthoma não deixa ilesa
nossa referência, na prática analítica, ao inconsciente”. Porque o inconsciente
já não é o dado primitivo da prática; o dado primitivo é o sintoma. A seguir,
enfatiza que “o sinthoma não é o sintoma como formação do inconsciente”. E
especialmente que o que ele chama de uso lógico do sinthoma se opõe ao uso
do decifrado. Embora remeta à verdade do sintoma, alimentando-o, o uso
lógico leva ao real do sinthoma. É muito forte! Neste ponto, ecoou em mim
outra velha indicação de Miller, no texto ∑ (x)12 – ∑, como vocês devem
lembrar, é a letra utilizada por Lacan, por volta de 1975, para nomear o
sinthoma, definido como função de uma letra, f(x), letra que não cessará de se
repetir – onde ele diz que o sonho de Lacan era poder prescindir – se o
sintoma é um traslado do simbólico ao real que não cessa de se repetir – da
mediação do sentido para ir do real ao simbólico.
12
MILLER, J.-A. Matemas II. Argentina: Manantial, 1988, p. 171.
12
para pensar a questão dos efeitos terapêuticos rápidos, que são atingidos sem
que se passe pela decifração.
Entendo que para que isso ocorra é necessário que, nas entrevistas
preliminares, a intervenção do analista – que podemos chamar de
interpretação – consiga isolar esse elemento do discurso, no qual o analisando
poderá, no final, reconhecer seu ser de gozo.13 É este S1, isolado desde o
início, que permite ao sujeito ler seu inconsciente. Aliás, desde o primeiro
Lacan, sempre foi privilegiado o traço singular, o que se torna cada vez mais
evidente na última versão do sintoma em Lacan, na qual se trata de sua
singularidade. Por exemplo, no Homem dos ratos, o importante não é o delírio
do pagamento da dívida, mas o significante rato que já aparece em seu próprio
sintoma. Hoje mais do que nunca, é preciso isolar esse significante privilegiado
desde o início. Para localizá-lo, é preciso que o analista, desde as entrevistas
preliminares, opere pela via da redução e não pela da amplificação do sentido.
Lacan fala da análise como uma operação de localização. Localizar não é
agregar sentido, mas situar. Devemos, desde a entrada, tentar localizar o
nome do sintoma daquele analisando.
13
“No final da análise se trata de outro uso de uma articulação que já existe desde do começo”.
LAURENT, E. “Síntoma y nombre proprio”. Em: Síntoma y nominación. Buenos Aires: DIVA,
2002, p. 98.
13
Isso nos permite avançar sobre a incidência da última noção de sintoma na
interpretação. Mas antes, quero marcar a importância, na época atual, – a do
discurso hipermoderno ou capitalista – de isolar o sintoma em sua maior
pureza na entrada no dispositivo numa época em que os sujeitos costumam se
apresentar sem referências identificatórias, ou seja, sem bússola. Isto abre à
honra da prática analítica e à sua articulação com a nobreza do sinthoma. Em
outras palavras, creio que é possível caracterizar a seguinte seqüência: o
“adoecer de honra” como condição de possibilidade para alcançar a “nobreza
do sinthoma”.
14
caráter de letra, que, como tal, é intraduzível. É o mesmo que faz Lacan
quando, em vez de traduzir Unbewusst para o francês por l’inconscient – que
seria acrescentar o S2, ou seja, o sentido desta palavra alemã na língua
francesa – ele a intraduz, como faz Joyce em Finnegan’s Wake, isto é, a
equivoca, por sua homofonia em francês, como “Une-Bévue”, “Uma-
equivocação”.14
Por isso, entendo que esta modalidade interpretativa pode ser situada no que
Miller chamou “a via da perplexidade”, que é um aprofundamento em Lacan do
que podemos nomear de uma orientação para a “ressonância a-semântica”.
Via que implica separar, de um modo ou de outro, S1 de S2.
14
MILLER, J.-A. “O último ensino de Lacan”. Em: Opção Lacaniana, n° 35. Rio de Janeiro:
Edições Eólia, janeiro de 2003, p. 14.
15
MILLER, J.-A. Curso de Orientação Lacaniana (2004-2005). Inédito. Aula 1, de 17 de
novembro de 2004.
15
interpretação é metafórica e, portanto, homogênea ao sintoma, pois este é
concebido como uma metáfora.
16
MILLER, J.-A. “Uma fantasia”. Em: Opção Lacaniana, n° 42. São Paulo: Edições Eólia,
fevereiro de 2005, p. 17.
16
Falasser ou sujeito?
Costumamos repetir, citando Miller, que o último ensino de Lacan opera uma
“depreciação” da noção de sujeito. Efetivamente, em “O osso de uma análise”,
ele o diz claramente. Se a noção de falasser implica que este goza ao falar –
na medida em que a simbolização não só não anula o gozo, mas o sustenta –
“[...] esta perspectiva comporta um questionamento do termo sujeito”. Por
que? Porque o sujeito é um elemento sempre mortificado, definido como falta-
a-ser. Ao questionar isso, Lacan faz entrar o corpo vivente “[...] substituindo o
termo sujeito por falasser, que é o contrário da falta-a-ser. O falasser é o
sujeito mais o corpo, é o sujeito mais a substância gozante”.17
17
MILLER, J.-A. “O osso de uma análise”. Em: Agente, revista da EBP-BA. Salvador: EBP-BA,
1998, p 102.
18
MILLER, J.-A. “Patologia de la ética”. Em: Logicas da vida amorosa. Buenos Aires: Manantial,
1991, pp. 70-74, e 79-87.
17
necessário que os dois componentes do falasser ($, a) – ou seja, o sujeito e o
gozo ou substância – se separem e emirjam em uma nova articulação, que é a
do discurso analítico. Único laço em que o objeto a pode se situar no lugar de
agente, como núcleo elaborável do gozo em uma análise. “Somente por meio
da psicanálise este objeto”, diz Lacan na “Terceira”, “constitui o núcleo
19
elaborável do gozo [...]”.
De certo modo é o mesmo que dizemos, por outro ângulo, ao afirmarmos que
“a operação própria à psicanálise consiste em um forçamento que conduz o
gozo ao sentido, para resolvê-lo e levá-lo ao ponto máximo de opacidade no
qual já se manifeste o ilegível”.20
Essa operação não pode ser realizada senão passando pela suposição de
sentido, pela crença de que o sintoma quer dizer algo. Suposição que surge
quando o próprio sujeito, como resposta do real, está realizado – o sujeito que
é suposto a um conjunto harmônico de significantes. Ou melhor, é o próprio
sujeito que introduz a dita harmonia, isto é, uma relação entre S1 e S2. E sua
condição é o amor ao inconsciente21 que faz o Outro nascer, que faz surgir o
inconsciente como semblante a partir do gozo do sujeito.22
Além disso, digo que esta nova perspectiva reforça ainda mais a dimensão
ética, porque a caracterização do sintoma como invenção frente ao furo da não
relação sexual implica a idéia de que o próprio sintoma é uma resposta. Ou
seja, é dessa fórmula singular que o falasser inventou, que ele deverá –
mediante o sujeito realizado na experiência analítica – tornar-se responsável.
19
LACAN, J. “La tercera”. Em: Intervenciones y textos 2. Buenos Aires: Manantial, 1993, p. 90.
20
MILLER, J.-A. “O último ensino de Lacan”, op. cit., p.10.
21
MILLER, J.-A. “Uma fantasia”. Em: Opção Lacaniana, nº 42. Rio de Janeiro: Edições Eólia,
fevereiro de 2005.
22
MILLER, J.-A. “∑ (x)”. Em Matemas II. Argentina: Manantial, 1988, p. 172.
18
Como recorda Miller, Lacan afirma, no Seminário 23: O sinthoma, que “não há
responsabilidade senão sexual”. Cada um tem que responder pelo sexo, e só é
possível, na medida em que não há relação sexual, responder “lateralmente”.
“Isso quer dizer”, assinala Miller, “que no que se pensa, responde-se sempre à
sexualidade e que a resposta dada é sempre sintomática: sempre quer dizer
que não se sai (disso)”.23 Ou seja, “disto – do sintoma – não se sai”. Já temos
aqui uma indicação sobre o final de análise como identificação ao sintoma, que
veremos adiante.
Podemos ainda sublinhar que, embora Lacan sempre tenha reservado um lugar
privilegiado para a “insondável decisão do ser” (1946)24 na determinação da
estrutura subjetiva – seja neurose ou psicose – é claro que suas formalizações
mais clássicas, baseadas na preexistência do Outro e na aceitação ou recusa
da metáfora paterna, permitem um deslizamento para uma espécie de lógica
mecanicista, que dá destaque à ação da estrutura em detrimento da invenção
do sujeito. Pelo contrário, esta última – em seu caráter de resposta
eminentemente ética – é o que o último ensino de Lacan destaca,
distanciando-se assim de toda caracterização deficitária da psicose que ainda
impregnava suas primeiras formulações25. Vemos aqui também ressaltada a
vertente pragmática do sintoma que, como tal, é ética.
23
MILLER, J.-A. Curso de Orientação Lacaniana (2004-2005). Aula 3, p. 26.
24
LACAN, J. “Formulações sobre a causalidade psíquica”. Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1998, p. 179.
25
Cf. La Psicosis ordinária, Colección ICBA. Buenos Aires: ICBA-Paidós, 2003, pp. 47-61.
19
especialmente com a noção de “multidão”. Certamente esta lista poderia ser
ampliada.
Mas o fundamental é que, nos três eixos, o princípio que continua nos guiando
é o sintoma, que implica, por um lado, “um funcionamento e um gozo” e, por
outro, é índice do que não anda, índice de que há uma dimensão traumática
constituinte e um núcleo de gozo impossível de ser reabsorvido, do qual o
sintoma é a testemunha e o lugar em que se situa a responsabilidade do
sujeito.
20
nova narração – trata-se de uma psicoterapia narrativa –, uma nova “estrutura
de significado” ou nova “construção” que permita ao paciente uma nova
adaptação funcional. Para eles, uma construção é “funcional” quando as
estruturas que a compõem são sintônicas, harmônicas e coerentes, e
asseguram o equilíbrio da identidade pessoal.26 É uma operação terapêutica
narrativa limitada ao patamar inferior do Grafo do desejo e que, portanto, é o
oposto à nossa caracterização do sinthoma como peça solta!
Ainda que se possa ler e questionar isso com o que Lacan diz na última aula do
Seminário 11, na qual afirma que a posição de Spinoza – de um Deus todo
significante, evacuado de gozo – é insustentável para nós, analistas, e que
nisso, Kant – lido com Sade – é mais certeiro29, ao nos situarmos na última
noção de sintoma, podemos objetá-lo a partir da experiência do Presidente
Schreber.
26
FERNÁNDEZ Álvarez, Héctor. Fundamentos de un modelo integrativo en psicoterapia.
Argentina: Paidós, 1992, p. 129.
27
Idem, Ibidem, p. 190.
28
Na página 278 da versão francesa. Paris: Odile Jacob, 2003.
29
LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quarto conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988, p. 260.
21
Em A experiência do real no tratamento psicanalítico, Miller recorre
precisamente às Memórias de Schreber para ilustrar o sintoma como
acontecimento de corpo. Ele se refere ao “vai-e-vem divino” entre Schreber e
Deus, por meio do qual Schreber deve pensar sem cessar para que Deus goze
e ele próprio possa obter, em compensação, um gozo a mais. Se, pelo
contrário, Schreber para de pensar, Deus se retira e ele para de gozar,
sentindo-se à deriva, o que pode levá-lo à morte.
“As Memórias”, diz Miller, “são, por excelência, o texto que evidencia que o
pensamento é condição de gozo e que o saber do significante aparece como
seu meio [...]”30. Pelo contrário – como acabo de acentuar –, ao surgir o
“pensar em nada”, Schreber verifica que Deus se retira, assim como o gozo.
30
MILLER, J..-A. La experiencia de lo real en la cura psicoanalítica, op. cit., p. 394.
22
completamente, – cito Miller – dizemos que “[...] não existe sujeito sem
sintoma, e isso até o final dos tempos”.31
A identificação ao sintoma
Em seu último ensino, Lacan desloca a perspectiva sobre o final de análise: se,
a partir do Seminário 11, ele o concebia em termos de “travessia da fantasia”,
passa a situar suas coordenadas em termos de “identificação ao sintoma”.
31
MILLER, J.-A. Curso de Orientação lacaniana (2004-2005). Pièces détachées. Inédito. Aula 3,
p. 27.
32
Cf. Freudiana n° 32. Aulas de 10 e 17 de janeiro de 2001.
33
Idem, Ibidem.
23
Pelo contrário, no último ensino de Lacan ganha relevo a instância central do
sintoma. Já não se trataria de alcançar, para além do sintoma, a fantasia e
atravessá-la, mas sim a identificação ao sintoma, pois do sintoma, dessa
instância que agora é o sinthoma (sintoma + fantasia), já não se pode sair.
A referência precisa de Lacan está no Seminário, livro 24: L´insu que sait de
l´une-bévue s´aile à mourre, na aula de 16 de novembro de 1976. No
contexto de uma caracterização do traço unário, Lacan pergunta a que alguém
pode se identificar no final de uma análise. Certamente ele descarta a via da
identificação ao analista e também ao próprio inconsciente, porque “o
inconsciente permanece sempre Outro”, portador dos significantes que
determinam o sujeito. E acrescenta: “Em que consiste, então, essa localização
que é a análise? Por acaso isso não seria identificar-se – tomando disso as
34
MILLER, J. -A. Curso de Orientação lacaniana (2004-2005), Pièces détachées. Inédito. Aula 6,
p. 51.
35
LAURENT, E. “Síntoma y nombre proprio”, op. cit., p. 98.
24
suas garantias36, uma espécie de distância – com seu sintoma?”. E, após
estabelecer uma espécie de homologia entre o sintoma e o que o homem faz
com sua imagem, conclui: “Saber fazer com – se virar – com seu sintoma,
esse é o final de análise. É preciso reconhecer que isso dura pouco.
Verdadeiramente não vai longe!”
Vou lhes dizer o que me ocorre a partir dessa frase: a identificação do final de
análise supõe uma identificação ao sintoma, cujo nome posso pronunciar, mas
o que conta não é tanto o nome que pronuncio, mas sim que este nome indica
algo impronunciável, a dimensão opaca do sinthoma. Entendo que a homologia
com a imagem indica que, como o falasser não é um corpo, mas tem um
corpo, ele também tem sintomas e, se ele os tem e carece de identidade, o
que lhe resta é identificar-se com.
36
No original: “s’ identifier en prenant ses garanties...”.
37
TIZIO, Hebe. “El Pase n”.
25
repetir do sintoma. Isso se refere mais à identificação ao sintoma
prévia à análise, que supõe um estatuto imaginário, do que ao
sujeito que se identifica sem solução de continuidade com sua
própria vida.38 A identificação do final implica, ao contrário, que se
tenha feito uma experiência do impossível, que deixou uma abertura
entre o sujeito e o sintoma como condição de possibilidade para uma
disposição à contingência. Nesse sentido, cabe lembrar que Miller
assinala que, no nível da pulsão – onde o sujeito é sempre feliz –
tudo é puro logro, ali não há um real (impossível) verificado. É isto
precisamente o que a operação analítica introduz: um limite ao gozo
da apparola, ao seu monólogo, introduzindo o impossível da relação
39
sexual.
38
MILLER, J-A. “CTS”. Em: Clínica bajo transferencia, p. 8.
39
MILLER, J.-A. “El monólogo da apparola”. Em: Opção Lacaniana, n° 23. São Paulo: Edições
Eólia, dezembro de 1998.
40
MILLER, J.-A. “Reflexiones sobre la envoltura formal del síntoma”. Em: La envoltura formal del
síntoma. Buenos Aires: Manantial, 1989, p. 15.
41
LAURENT. E. “Politique de l´unaire”. Em La Cause freudienne, n° 42, “Politique lacanienne”.
Paris: Seuil, 1999, p. 30.
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estava articulado desde o início. Aqui, a intervenção do analista na
entrada se torna crucial para isolar o que, no enunciado singular,
talvez possa ser reencontrado no final: algo da ordem da letra do
sintoma.
42
PALOMERA, V. Em: La Cause freudienne, n° 50. Paris: Seuil, fevereiro de 2002, pp. 80-85.
27
Creio que se vê bem como na entrada – seguramente isolado pela intervenção
do analista – já estava localizado um significante, arroxeado (morado) que
logo se mostraria intimamente articulado a outro significante crucial e
insensato, Angelrina, verdadeiro índice da incidência da equivocidade da
alíngua no corpo.
A nobreza do sintoma
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Isso se esclarece se recordarmos o discurso capitalista que Lacan escreveu
apenas uma vez, em 1972, e que foi trabalhado por Miller, em seu Curso Um
esforço de poesia. Minha pergunta é porque ele passa do discurso capitalista
ao discurso hipermoderno.
S1 S2 $ S2
$ // a a S1
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Trata-se de um sujeito sem honra e sem vergonha, já que não é representado
por um traço singular com o qual possa se apresentar frente ao Outro e pelo
qual – se for o caso – possa dar a sua vida. Sua vida é ignominiosa, pois só
vale enquanto vida. Além disso, ele é sem nobreza, se entendemos por
nobreza a barra singular que marca o sujeito e que este recebe do traço
unário, a primeira identificação que traumatizou seu corpo de falasser.
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do S1, o primeiro nome do sintoma daquele sujeito. Isso implica entender o
discurso analítico não meramente como uma desidentificação, como eu
pensava anteriormente. Implica pensar que na entrada em análise, produz-se
o primeiro nome do sintoma, o primeiro S1 do sujeito que lhe valerá como
carta de apresentação frente ao Outro. É essa produção que Lacan chama, no
Seminário 17, de novo estilo do significante-mestre. Não se trata do
significante da tradição que constitui o grupo, mas daquilo que constitui a
nobreza do sintoma de um sujeito, a invenção de sua máxima singularidade, o
que faz de cada um de nós incomparável a qualquer outro.
Para concluir, lerei a referência de Miller da qual parti e que suscitou essas
considerações que trouxe para compartilhar com vocês. Ela está na terceira
aula (01/12/2004) do seu Curso Pièces détachées:
43
LACAN, J. “A direção do tratamento e os princípios do seu poder” (1958). Em: Escritos. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 641.
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