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TEXTOS E TEMAS DA MÍSTICA

4. MARIA PETYT

Composto por Hein Blommesteijn e Loet Swart

Tradução do Neerlandês por Arie Kallenberg


Revisão por Augusto Castro

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MARIA PETYT

1. VIDA

Maria Petyt nasceu no dia 01 de Janeiro de 1623 em Hazebroek, uma pequena


aldeia na Flandres, nos Países Baixos. A mãe da Maria Petyt, Anna Folque, era
natural de Poperinge e tinha dois filhos, ambos nascidos dum matrimónio
anterior. A Maria nasceu do segundo matrimónio de Anna Folque com Jan
Petyt, um comerciante abastado de Hazebroek. Era a mais velha de seis filhas.
Aos oito anos, quando estava ocasionalmente na casa da avó, foi vítima da
varíola que lhe causou várias cicatrizes. Curada achou-se menos bonita e já
não se sentia a filha predilecta do pai. A sua piedade também começou a
decrescer. Quando tinha onze anos, foi mandada pelos pais para o convento
das freiras em St. Omaers a fim de receber ensino escolar. Depois de ter
estado aí um ano e meio, rebentou a peste pelo que teve de fugir
repentinamente, juntamente com os irmãos e as irmãs, para a casa do seu tio
na cidade de Poperinge. Aos dezasseis anos de idade foi mandada para a casa
duma senhora piedosa na cidade de Rijssel. Foi na casa desta senhora que a
Maria teve, pela primeira vez, uma forte experiência religiosa, depois de ter
passado, ora por períodos de intensa piedade, ora de exterioridades e
coquetismo superficiais. De volta em Hazebroek, continuou sob a influência
dessa experiência e passou por um segundo período de conversão. Começa a
levar uma vida de eremita, renuncia a um matrimónio oferecido e quer
novamente entrar no convento. O pai opõe-se e não quer que ela siga a sua
vocação para a vida religiosa, mas a mãe ampara-a. Entretanto a Maria passa
o tempo lendo e meditando livros espirituais e místicos. Finalmente obteve
licença para entrar no convento. Apresenta-se, então, às Canónicas Regulares
de Santo Agostinho em Gande. Entretanto, rebenta a guerra com os Franceses
o que impede a sua entrada no convento. A fim de se subtrair às violências da
guerra - o pai perdeu uma grande parte dos seus bens - a Família Petyt fugiu
para a cidade de Menen.
Decorrido algum tempo, a Maria Petyt entra, finalmente, no convento das
Religiosas de Gande. Um ano antes de receber o hábito religioso, recebe a
notícia do falecimento da mãe. Alguns meses depois de ter recebido o hábito,
teve que deixar novamente o convento por causa de problemas com a vista,
que a impedem de tomar parte na reza do ofício coral. Refugia-se, então, numa
comunidade de beguinas, na cidade de Gande, onde leva uma vida interior sob
a direcção espiritual dum sacerdote Carmelita. Continua leiga durante o resto

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da sua vida, o que não a impede de fazer a profissão sobre a Regra da Ordem
Carmelita. Passados quatro anos, o famoso Carmelita Frei Miguel de Santo
Agostinho tornou-se o seu confessor e Director Espiritual. No ano de 1657,
muda, juntamente com duas outras mulheres, para a cidade de Malinas onde
vive numa casa pertencente a um convento, perto da igreja. É aí que a sua vida
interior começa a ter características místicas cada vez mais nítidas. Faleceu no
dia 01 de Novembro de 1677.

2. OBRAS

Maria Petyt não deixou nenhum livro nem tratado sobre a mística. Devido aos
frequentes e demorados períodos de ausência do seu confessor, o Frei Miguel
de Santo Agostinho, a Maria fazia, a pedido dele, anotações das suas
experiências. Após a sua morte, o Frei Miguel de Santo Agostinho resolveu
ordenar e publicar as cartas dela substituindo, em parte, a ordem cronológica
por uma temática. Ficou uma bela e fascinante autobiografia, escrita numa
linguagem muito viva, cuja descrição bibliográfica reza assim:
Het leven vande weerdighe Moeder Maria a Sta Theresia, alias Petyt…
(A vida da venerável Madre Maria de Sta. Teresa, alias Petyt…)
Ganda, 1681, 4 vol., 1320 p.

3. AS CARACTERÍSTICAS DA MÍSTICA DE MARIA PETYT

Como a obra mística de Maria Petyt se baseia em anotações pessoais em que


descreve a sua experiência diária, dificilmente se descobre aí uma linha
sistemática. Ela descreve a sua viagem interior. Antes de tudo, para ela, é
importante a constante e incessante aniquilação de qualquer actividade e
esforço pessoal que a alma faz, não apenas por poder fazer progresso naquilo
que já conseguiu mas também por poder, desta forma, retê-lo definitivamente.
De outro lado, também é importante o intenso encontro amoroso durante o qual
a alma é consumida, sem cessar, por um ardente fogo de amor e elevada por
cima de si própria, enquanto é, ao mesmo tempo, reivindicada por um Amante
ciumento que exige doação total, sem compromisso e sem limites, e abandono
completo de todo o resto.

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1. A transição da meditação para a contemplação

Maria Petyt tinha a ingénua ousadia e pretensão de querer viver apenas para
Deus. Empenhou-se ao máximo por progredir na oração. Com a ajuda dos seus
directores espirituais, exercitou-se nos métodos usuais. No princípio, ficou
bastante satisfeita com os mesmos porque lhe causaram grande concentração
e uma apaixonada exaltação. Esforçando-se, era capaz de provocar
sentimentos afectuosos e fantasias ricas com muita abundância. No entanto,
Deus ficou inalcançável. Maria encontrou-se apenas a si própria nas falhas
pessoais. Teve de aprender a deixar atrás de si a realidade própria da
meditação. Compreendeu que o ser humano se deve calar, se quer ouvir a voz
de Deus. Na realidade, isto tornou-se tarefa pesadíssima, em que
necessariamente tinha que falhar, exactamente porque queria fazer progresso
no caminho da perfeição. Desta forma aprende, a custo, a largar as próprias
capacidades e a já não fazer tentativas pessoais. Aprendeu que a mais alta
preparação se efectua quando desaparece o caminho preferido, escolhido
pessoalmente. Tem de aprender a entregar-se cegamente.

2. A adesão de simplicidade ao ser Divino inconfigurável

Maria Petyt passa então para a oração de simplicidade ou de recolhimento


infuso. Deixou as obras pessoais atrás de si e voltou para a profundidade
essencial da sua existência, para o centro em que repousa nas mãos de Deus
e onde Deus habita nela. Tudo se torna simples porque a sua vida interior se
concentra na propensão para a profundidade. Tal vai acompanhado dum
processo de dissolução, a saber, as faculdades humanas deixam de funcionar
de maneira múltipla e, na oração de simplicidade, já não há “mistura” com
actividades de ordem pessoal. Vivendo na profundidade, a oração transforma-
se em adesão nua da vontade ao Ser não afigurado de Deus. Em vez de agir,
ela é absorvida pelo silêncio.
Albert Deblaere escreveu: “As experiências místicas, por onde Maria Petyt irá
passar, serão múltiplas: desolação e desespero, entusiasmo e amor ardente,
elanguescimento e sucumbir em Deus, esmagada pela delícias do Seu Amor,
repentinas iluminações, como relâmpagos que a deixam arrebatada horas e
horas em contemplação insondável. No entanto, todas essas experiências
serão de natureza passageira: surgirão da “oração de simplicidade” e
reconduzirão, em seguida, o seu espírito, para o mesmo estado. A união
crescente com Cristo e a assimilação a Ele aprofundarão a simplicidade da

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oração da mesma forma como a maravilhosa mística Mariana de Maria Petyt,


não só não estará sujeita a ”mistura”, como se tornará mais íntima ainda…
A luz sob a qual a alma experimenta Deus, transcende a compreensão das
faculdades humanas: fantasia e imaginação, memória e raciocínio reconhecem
a própria impotência e calam-se. Trata-se, por um lado, duma presença escura
- escuridão que não pode ser iluminada pela razão - e por outro lado, duma
presença tão intensa que ultrapassa toda a razão…”

3. A purificação horrorosa

Alguém podia ter a impressão que Maria Petyt estava, nessa altura, bastante
adiantada no caminho místico. Também ela própria pensava assim.
Constantemente caía na tentação de descobrir, nas suas próprias experiências,
as práticas de outros místicos. Ainda era (ou tornava a ser) muito activa e
confiava nas próprias obras, embora pensasse, ter-se entregue inteiramente à
acção de Deus. Pensa ser capaz de obter, por meios próprios, aquilo que lhe
foi dado gratuitamente. Não quer perder as experiências felizes. Sem se dar
conta, apega-se aos dons de Deus em vez de, sobretudo, se apegar a Ele. É
necessário que se convença, cada vez mais, do fracasso absoluto da própria
realidade pessoal em que perseverava obstinadamente, do fracasso da auto-
suficiência e da inclinação de, constantemente, atribuir a si própria o que não é
dela. Chegou a cair numa horrível desolação. A forte experiência de Deus
desapareceu. A aflição é sufocante. Em relatos emocionantes, descreve como
foi levada ao desespero. Até pensamentos de suicídio lhe passam pela cabeça,
visto tudo ter resultado em fracassos e vãs fantasias!

Através de torturas físicas e psíquicas, ficou abalada a inclinação natural de se


deleitar em si própria e nos resultados já obtidos. Desta forma, Maria Petyt
aprende a abandonar-se a si própria e a encontrar Deus verdadeiramente. São
as Leis do Amor (cfr. Hadewijch, mística neerlandesa) que a conduzem para a
receptibilidade autêntica e entrega total de si própria. A plenitude e a
inevitabilidade do sofrimento purificam-na de qualquer egocentrismo e egoísmo.
A este processo apenas pode submeter-se passivamente e com repugnância
natural visto que, purificações por iniciativa própria, resultariam numa nova
tentativa de alcançar a perfeição por meios próprios. Devido ao facto de tudo
lhe ser tirado, ela experimenta a sensação de ter largado tudo. Chama a isso o
“ego” poderoso reduzido a nada, a fim de ser unido ao “Todo”. A fim de criar
lugar para a acção generosa de Deus é, sobretudo, necessário que seja
desbaratada a pretensão de pertencer à classe melhor dos homens, a saber:

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aos corajosos, aos predilectos de Deus ou aos místicos. Desta forma, o maior
progresso espiritual aparece ser, ao mesmo tempo, a maior tentação.

Maria Petyt experimenta, pouco a pouco, até fisicamente, a sua vulnerabilidade,


indigência e impotência de fazer algum bem por meios próprios. ‘É necessário
que sinta na sua vida a veracidade das palavras do Senhor, quando disse “sem
Mim nada podeis”, de forma tão intensa que as mesmas se tornem fundamento
e pedra angular da sua existência’. (Deblaere). Tal não significa que Maria
Petyt fosse dotada dum carácter depressivo ou que se achasse a si própria
uma criatura nula e sem valor. Pelo contrário, compreendeu perfeitamente que
o ‘Encontro’ com Deus nunca pode ser manipulado, merecido ou forçado visto
tratar-se dum dom que lhe sobrevém gratuitamente do outro lado. Dá-se conta
que o seu próprio ‘eu’ e os ‘meios próprios’ impedem, como um muro
impenetrável, o autêntico e directo encontro com Deus. O ‘eu’ não é mau nem
inferior, mas é reduzido a nada e fracturado quando, dobrando-se sobre si
próprio, apenas se encontra a si próprio como num espelho. Desta forma, Maria
Petyt aprende a viver no fundo de si própria, que está escondido no abismo de
Deus.

4. A união amorosa

Através de todas essas experiências a vontade de Maria Petyt é unida, cada


vez mais intensamente, com a Vontade Amorosa de Deus. Devido ao amor
apaixonado que sente, a consciência dessa união fá-la sair para fora de si e faz
com que ela esteja, com toda a sua existência, orientada para Deus. Esta
experiência não é provocada por sentimentos humanos e ultrapassa, ao
mesmo tempo, aquilo que a sua natureza é capaz de suportar. No princípio,
experimenta em si própria a imediata presença do Amor de Deus, através de
toques passageiros que a tornam ébria de amor. É uma experiência
esmagadora que a arrasta e faz sucumbir. Nesta primeira fase da plena união
afectiva, o namoro é tão intenso que Maria Petyt não se sente capaz de
dedicar-se a outras coisas. Entrega-se, com toda a intensidade, ao beijo
recíproco ou abraço amoroso ou cai num profundo sono amoroso. Na segunda
fase, a experiência amorosa é de tal forma integrada na sua vida, que ela
descobre ter mais níveis de consciência. Embora esteja apenas atenta ao
Noivo, é, simultaneamente, capaz de prestar atenção às coisas da vida
quotidiana. É deificada, não através dos seus próprios esforços ascéticos, mas
pelo fogo do Amor Divino que a consome e transforma.

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5. O processo de transformação em Deus

Maria Petyt não fica apenas consciente do toque do Amor Divino mas
experimenta também que, cada vez mais profundamente, é transformada em
Deus. Em medida crescente, a sua vida é impregnada, totalmente, da
existência de Deus. Torna-se Deiforme. Começa a ver-se a si própria com os
olhos de Deus, ama o que Deus ama. Deus age nela e o Espírito de Deus reza
nela. Há unanimidade com Deus: a Vontade de Deus constitui o seu desejo
mais profundo e ela não pode imaginar-se ser capaz de afastar-se
voluntariamente disto. Às vezes escreve que esse estado de estar perdida na
Vida de Deus se tornou, após as vicissitudes de outrora, firme e estável. No
entanto, o mais característico da evolução mística de Maria Petyt consiste no
facto de que as novas experiências parece terem ficado até ao fim. O processo
nunca acabou. Por conseguinte, a linguagem mística é deficiente. Leu os textos
místicos clássicos, principalmente da tradição dos Países Baixos, a fim de
poder compreender e exprimir as suas experiências pessoais, mas empregava
a mais elevada linguagem cedo demais! Embora parecesse estar já
completamente transformada em Deus, tal experiência pareceu estar, mesmo
assim, misturada com sentimentos, imagens e esforços pessoais. Tal, no
entanto, é verificado sempre posteriormente e a partir de perspectivas
subsequentes. O abismo de Deus continua insondável para ela e, por isso, é
necessário que ela desça cada vez mais na profundidade de si própria. Para
nós, o caminho de Maria Petyt parece perder-se no labirinto confuso das
anotações no seu diário, que cada vez são mais numerosas e diferentes. É a
história duma mulher do tempo do Barroco que conheceu ideais elevados e
desejos apaixonados, acompanhados dum entusiasmo esmagador de viver e
da consciência do movimento perpétuo dum mundo que se alarga cada vez
mais, sem ser capaz de recuperar a tranquilidade.

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4. BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA

Petyt, Maria (TOCarm) NCI I 1541


L'Union mystique à Marie / par Marie de Sainte-Thérèse ; texte traduit du
flamand par L. van den Bossche.
Juvisy : Éditions du Cerf, [1936].
(Les Cahiers de la Vierge ; 15).

Petyt, Maria (TOCarm) NCI I 296 /1


Vie Mariale / Maria a Sancta Teresia (1623-1677) ; (Fragments traduits
du flammand par Louis Van den Bossche).
Bruges ; Paris : Desclée De Brouwer, [s.a.] [imprim. 1928].

Petyt, Maria (TOCarm) NCI I 526 /2


La Vida de union con María / Miguel de San Agustín y María de Santa
Teresa.
Madrid : Ediciones Rialp, 1957.
(Nebli, Clásicos de Espiritualidad ; 11).

Petyt, Maria (TOCarm) NCI II 2953


Union with Our Lady : Marian writings of the Venerable Mary Petyt of St.
Teresa, T.O.Carm. / translated and arranged by Thomas E. McGinnis,
O.Carm.
New York : The Scapular Press, [s.a.] [imprim. 1954].

Michael a S. Augustino (OCarm) NCI II 3271


Tratado de vida mariana / Frei Miguel de Santo Agostinho, Carmelita ;
tradução e notas: Frei Tinus van Balen, O.Carm.
1ª Edição.
Curitiba, PR : Editora do Carmo ; Goiana, PE : Instituto de Espiritualida-
de Tito Brandsma, 1994.
Título original Holandês: Het mariavormig leven [= Mariaal Vereen-i
gingsleven

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5. ALGUNS TEXTOS

1. A transição da meditação para a contemplação

1.1. 1657. Costumamos dizer: Deus é Bondade, Deus é Misericórdia, é Amor,


Deus é Abismo, é Escuridão, é Luz, Deus não tem medida, é Infinito, é
Sapiente, Todo-Poderoso etc. Tudo isso não nos diz o que Deus é, porque,
acima de tudo isso, Ele é Inefável. Todas essas expressões são apenas
produtos de pinta-monos… (IV, 53).

1.2 Depois de nos termos exercitado, deste modo, durante dois ou três meses,
Ele conduziu-nos gradualmente para mais silêncio e simplicidade, obrigando-
nos a deixar a realidade da Meditação (pois nunca fui muito hábil em trabalhar
com o intelecto) e a adoptar a prática das três virtudes divinas, fé, esperança e
amor, tanto durante a oração, como fora dela, por meio de acções silenciosas e
doces, à guisa de aspiração1, mantendo a atenção dirigida para a presença de
Deus…
Quando tinha alguma habilidade com essa prática e parecia estar formada nela,
Sua Reverência2 exigiu que abandonasse, cada vez mais, a realidade do meu
próprio ser e que me exercitasse constantemente na fé nua da presença de
Deus e que, simultaneamente, me inclinasse para o amor para com Ele.
No princípio, esta prática era muito difícil e desagradável, por um lado porque o
facto de ser privada da consolação e doçura que sentia interiormente, me
custava muito… Por outro lado, porque não estava habituada a ocupar-me
interiormente com Deus mantendo a minha atenção fixa nEle, de forma tão

1
Maria Petyt usa na sua língua materna, o Holandês, a palavra “toegeesting”, sinónimo de
“aspiração”, com uma forte conotação da acção do Espírito Santo.
O CONGRESSO OC-OCD : A REGRA DO CARMO: UMA PROPOSTA DE VIDA, México, 25 a 29 de
Outubro de 2006, dedicou uma passagem à oração aspirativa que aqui se transcreve:
“Para o Venerável João de São Sansão, grande místico da reforma de Toraine, a Aspiração ou Oração
Aspirativa, como é mais comummente chamada pelos autores da Reforma Turonense, não é uma prática
de devoção entre as outras, nem um simples meio ligado a uma etapa particular da ascensão mística.
Ela é, propriamente, O PRÓPRIO MOVIMENTO DO AMOR, levando os que a praticam, através do amor e
no amor, até à sua perda definitiva em Deus. É nela que se insinua a acção divina no instante do “impulso
amoroso” daquele e daquela que exercem este tipo de oração. No mesmo momento em que faz a
aspiração, a pessoa é arrebatada, arrastada e inundada pelo espírito de Deus, por seu fluxo amoroso, até
se submergir totalmente no Amor de Deus. Existe, no coração da aspiração, a mais radical ultrapassagem
do amor-próprio e do “intermediário”, pois ela realiza nela própria, em resumo, a transformação repentina
do espírito em Deus.
Deste modo – ainda a explicação do Venerável - na aspiração que ultrapassa largamente as capacidades
humanas, os espirituais descobrem então que o Espírito Santo é o seu autor; é Ele que a move e dirige.
Ela realiza, no ponto mais alto, a fusão da iniciativa de Deus e da resposta do ser humano, num
movimento único que vai permitir pouco a pouco, no processo de sua interiorização, a sua contínua
acção”.
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O Padre Miguel de Santo Agostinho (1621-1684), Carmelita, era o seu Director Espiritual.
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desprovida, simples, espiritual e também porque não tinha acesso verdadeiro à


unidade do espírito…
Frequentemente estava muito cansada devido à luta contra os meus
pensamentos e ao esforço que fiz por os fazer calar, excluir ou perder; porque,
pensamentos distraídos e outras súbitas ideias enfadonhas, pareciam às vezes
submeter-me e causar ruído dentro de mim; os sentidos estavam às vezes
dissolutos e desenfreados como animais selvagens, sem que fosse capaz de
os fazer calar ou recolher, embora às vezes o conseguisse pela força da
oração. (I, c. 42, M. 89-91).

1.3 Embora a Oração me custasse muito e eu me sentisse fria, sem sentir


(como parecia) qualquer consolação, sabor ou alguma moção na boa direcção,
persistia, mesmo assim, na Oração, sem a omitir ou encurtar, apesar da grande
aversão, luta e tristeza que sentia: pelo contrário, dedicava mais tempo à
Oração, tanto quanto podia e perseverava nela, muitas vezes, durante horas e
horas em seguida; graças a isso, o espírito começou, pouco a pouco, a vencer
os sentidos e a encontrar alguma maneira de me manter na fé nua da presença
de Deus e, às vezes, de permanecer repousadamente em Deus.
Pouco a pouco, a natureza e os sentidos perderam a sua força e vivacidade
devido ao facto de eu me esforçar, com todos os meios interiores e exteriores
que estavam ao meu alcance, por tirar todo o alimento à desenvoltura, por meio
de severa mortificação, sem cessar, de todo o Humano. Apesar de eu me
encontrar, de acordo com o que sentia, em estado de aridez e abandono,
persistiu em mim, no entanto, o forte desejo de procurar a perfeição e de
praticar as virtudes e as mortificações da natureza. (I, c, 43, M, 92)

1.4 Era uma disposição da Divina Providência quando deixou o meu espírito
em estado reduzido e árido, apesar dos meus desejos ardentes e tentativas
diligentes. Ele quis que tal me sobreviesse a fim de me mortificar
profundamente e de me levar assim ao conhecimento e desconfiança profunda
de mim própria. Pois, eu confiava demais nas minhas próprias forças e na
minha inteligência e zelo. Desejava adquirir virtudes e graças interiores, como
se fosse possível conseguir tudo isso, apoiando-me nos meus trabalhos
próprios e no zelo com que me esforçava…
O facto de o Amado tirar a Sua mão cooperante com o intuito de apagar os
meus desejos apaixonados por obter a perfeição, era muito útil para mim
porque os mesmos estavam muito misturados com a procura de mim mesma,
com amor próprio, impaciência, inquietação e receio da natureza. Os
supramencionados bons desejos não estavam bem regulados, não eram

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moderados nem correspondiam, com a devida resignação, à vontade de


Deus...
(I, c, 44, M, 93).

1.5 As lições que me deu serviram, todas, para dar espaço à Graça Divina,
para purificar e esvaziar o homem interior e para desfazê-lo de todas as suas
propriedades, a saber, de todos os sentimentos desregrados, apegos, paixões
e vontade de procurar, por conta própria, os bens, dádivas e graças de Deus e
de fazer calar os desejos ardentes de fazer coisas boas e espirituais. Pois, eu
estava tão cheia de paixões, desejos e ambições por conseguir o bem
supremo, que não era capaz de me contentar com menos e de estar satisfeita
com o que tinha…
Quando fiquei livre, até ao fundo do meu ser, de todos os apegos desregrados,
das exigências que eu me impunha a mim mesma e das paixões da natureza,
Ele mostrou-me como facilmente podia obter paz interior constante, pureza de
coração, orientação interior para o objecto Divino etc., convivendo,
interiormente e de modo estável com Deus, mediante a fé e o amor que sempre
se ocupam com Ele, em conformidade com o Espírito Carmelitano e com as
claras instruções do mesmo, visto que todas as Suas diligências tinham por fim
imprimir este Espírito Carmelitano em nós. (I, e, 47, M, 96-98).

1,6 A fim de obter maior constância e facilidade com isso, Ele ensinou-me a
liberdade interior de espírito, a fim de já não ser arrastada para baixo na
natureza, devido a encontros interiores ou exteriores, ou por motivo de
mudanças do estado de espírito interior ou por motivo de qualquer outra coisa;
tal liberdade de espírito devia causar necessariamente ausência de desejos,
desinteresse e indiferença perante tudo o que aprazia a Deus efectuar ou não
em mim, ou seja, indiferença quanto a posses ou perdas, luz ou escuridão,
pobreza interior ou abundância, aceitando tudo da mão de Deus como sendo o
melhor possível para nós.
Ele ensinou-me que, por meio da simplicidade do espírito, devia esforçar-me
por chegar a tal ponto que já não dirigisse conscientemente a minha atenção
para o estado do nosso espírito interior, perguntando-me como começou ou
terminou ou o que estava a acontecer aí em baixo na natureza ou se sofria ou
não, a fim de que eu, fora de Deus, a nada prestasse atenção senão a Deus e
em nada repousasse senão em Deus; a fim de que me esforçasse por nadar
para cima, como faz um certo passarinho de que ele disse que faz o seu ninho
por cima das águas e que fica, apesar de as águas subirem e descerem de
acordo o estado do maré, seguro e descansado no seu ninho, sem se

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preocupar com a descida e subida das águas: deixa-se levar por onde as águas
o levem, pois, enquanto fica no ninho, a descida e subida da água não o
perturbam.
Esta parábola deu-me grande luz, pelo que compreendi que também eu devia
fazer o meu ninho e lugar de repouso em Deus e na sua vontade benévola…;
esta e outras parábolas ficaram dois anos na minha memória e eram para mim
de grande proveito. (I, c.48, M. 98-99)

1.7 Quando, devido a isto, estive sujeita a uma luta interior, Deus enviou, ao
mesmo tempo, um raio de luz para a minha alma, aliciando-me a atirar-me,
como uma criança, ao seu colo Paterno, com amor filial confiando apenas nEle;
este raio de graça começou, imediatamente, a operar em mim e surtiu efeito de
forma que me sentia repentinamente mais forte e fortalecida em Deus; todos os
meus sofrimentos e torturas desapareceram e já não me importava se sofresse
algo de alguém. Senti-me tão satisfeita e contente com o meu Amado, que já
não pedi mais nada e já não prestei atenção ao que outras pessoas diziam ou
pensavam de mim; isto irritava-me menos que o vento.
Tenho a impressão que esta graça ficou, desde então, quase sempre comigo.
Desde então, eu já não fazia questão se outras pessoas gostavam ou não de
mim ou se me davam favores ou eram ciumentas de modo que o meu coração
estava, desde então, desapegado e livre de coisas humanas… Apenas me
esforçava por fixar meus olhos no Amado que me aliciava constante e
amorosamente; este coração, despegado e livre de temores e sentimentos
humanos, constituiu uma grande ajuda e vantagem para o meu progresso no
caminho espiritual… (I, c. 25, M. 65).

1.8 Por conseguinte, ganhei coragem e atirei-me aos braços de Deus,


entregando-me sem reservas e abandonando tudo o que é deste mundo; a
partir daquele momento, recebi tanta força na minha alma que fiquei, desde
então, como uma rocha inabalável no meio das ondas do mar… (I, e.64, M.
124).

2. A adesão de simplicidade ao ser Divino Inconfigurável

2.1 Então, a Oração (contemplativa) começou a ultrapassar, de alguma


maneira, o natural, devido, em grande parte, ao silêncio interior e ao repouso
em Deus, através da fé nua e viva na presença Divina; a rudeza da realidade e
a diversidade das forças interiores começaram a desaparecer de todo, com

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excepção da visão simples da Fé dentro de mim e da semelhante inclinação


doce e silenciosa para o amor para com Deus.

Qualquer outra realidade pessoal aborrecia-me e cansava-me muito, pois não


servia para mais nada do que estorvar o meu sossego interior, obscurecer a
claridade do meu interior e levar o espírito, fixado na simplicidade interior, para
alvoroço e diversidade nocivos...

Quando tinha a oportunidade de me exercitar, com a ajuda de algumas práticas


interiores, na virtude, fazia-o com a maior tranquilidade possível, a fim de
conservar melhor o espírito na sua pureza, desprendido de forças sensitivas e
afectivas, tanto quanto a graça de Deus me revelava sobre esta pureza e
desprendimento; pois, a Luz Divina era, no princípio, pouca, como a luz da
aurora nascente que, pouco a pouco, cresce gradualmente. (I,c, 51, M. 102-
103)

2.2 No dia 22 de Maio de 1662, ela escreve o seguinte: a Graça Divina produz
no nosso coração, na nossa alma e no nosso espírito, uma tal simplicidade e
tranquilidade que parece que estou sem pensamentos, que desconheço todas
as criaturas assim como a mim própria, também fora da oração… Não sei como
o dizer. Todas as forças da alma parecem estar suspensas: continuam aptas
para funcionar apesar de eu sentir serem detidas por alguém que as impede ou
proíbe de funcionar naturalmente. A alma sente-se repleta do conhecimento
puro e simples, dum Bem Supremo não afigurado e simples, sem saber O que
e como O conhece. Em seguida, sente também um doce fogo de amor que está
a arder ou a faiscar dentro dela, sem que ela seja capaz de prestar atenção ao
mesmo e sem saber como e de que forma tal acontece. Parece que se acha
absorvida e elevada no gozo extático dum Ser Infinito, Ilimitado e Inefável.
Sente, com certeza, que a sua felicidade consiste, agora e na eternidade, na
deleitação disto.

É milagroso como isso acontece: a alma conhece, contempla, ama e goza sem
ser capaz de compreender ou saber O que e como O conhece, o que e como O
ama, o que e como O contempla gozando etc., isto é, com claro discernimento.
Mais ainda: a alma vê que está aqui perante a Face de Deus, frente a frente
com Ele, com visão nítida e extática de Deus, e ao mesmo tempo, parece que
ela está a dormir ou descansar perante a face Deus. Como é que isto pode
ser? (IV, 141-142).

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2.3 1671? Embora eu comece a chegar, pouco a pouco, ao ponto de possuir o


meu solo e de habitar nele constantemente, mesmo assim encontro-me, em
outros dias, num outro estado de espírito, experimentando, frequentemente,
varias formas de amor, aproximação e repouso amoroso em Deus. Aceitava
tudo isto indiferentemente, conformando-me com o mesmo.

No entanto, em geral gozo, no fundo da minha alma, dum repouso silencioso no


Deus não afigurado, a modo de repouso, sossegando e saciando-me. Sou
como alguém que, estando amenamente deitado numa cama confortável,
descansa e, embora não durma, pensa nos seus empreendimentos e se ocupa
dos mesmos, sem que o seu descanso diminua ou seja interrompido. Da
mesma maneira gozo eu também, habitualmente, durante o dia inteiro, do doce
e amoroso repouso em Deus. Todas as outras coisas que ocorrem junto das
criaturas, ficam fora e não perturbam o meu repouso. Todas as criaturas se me
apresentam como feitas em Deus e sendo dEle; completamente
compenetradas dele, não impedem o meu repouso em Deus. Tudo o que vejo,
ouço, saboreio e sinto, coopera para o bem, para Deus e para esse repouso em
Deus.
O espírito é capaz de deixar passar tudo isto sem ser lesado por isto e de o
deixar atrás de si. Não se apodera disto, ou, com outras palavras, dirige tudo
isto para o fundo onde todos os objectos deiformes, todos os encontros e tudo
o que é semelhante à vontade divina são, por assim dizer, deificados. Assim, a
alma serve-se, duma certa forma divina, das criaturas, de acordo com as
necessidades. (IV, c. 24, 250-251).

2.4 Às vezes sinto no meu interior apenas uma inclinação real para o Divino
Objecto inconfigurável. Esta inclinação é realizada apenas pela simples visão
desse Objecto, com exclusão da outra realidade de forças e sentidos.

Às vezes estou sujeita a lutas e tentações e sinto-me inclinada a deixar vaguear


e andar desordenadamente a minha imaginação e os meus pensamentos,
conversação insensata, espalhada para a parte sensorial que pouco procuro.
Contudo, a minha fé na presença de Deus que está no meu interior, continua
com muita insistência, o melhor que posso. E, no caso em que, então, não sou
capaz de alcançar, no fundo, o Objecto Divino, mantenho as distracções,
torturas etc., fora de mim. Pela fé, nelas tento ver, sentir e descobrir Deus. E,
mesmo se isto acontecer no estado de aridez, sem sabor, sem afecção,
procuro, apesar disto, persistir de modo que não haja outra coisa na minha
mente, senão a lembrança e reminiscência de Deus. Desta forma, as

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distracções, torturas etc., se acalmam paulatinamente, diminuem e


desaparecem finalmente. (IV, c. 26, 252).

2.5 1672? Quando, uma vez, fui convidada, duma maneira especial, pelo
Amado, a deixar-me conduzir e talhar por Ele, sem qualquer actuação da minha
parte, e eu, por inadvertência, comecei a fazer alguma coisa por iniciativa
própria, fui detida por alguém mais forte que eu e notei, no meu interior, de
maneira afável, a presença do meu Amado e Tudo inconfigurável, que me
atraia e aliciava docemente a entregar-me inteiramente à Sua direcção. Era
como se Ele me tivesse dito: Daqui em diante devo e quero apenas viver e
trabalhar em ti, sem que acrescentes ou mistures algo de ti. Quero que, em
tudo o que faças ou omitas e em todas as criaturas, não vejas outra coisa
senão a Mim, ou em Mim, ou que Me vejas a Mim neles. Após uma tal
alocução, o Amado costuma acolher-me plenamente e levar-me dentro dEle de
forma que me sinta afogada no mar da sua grandeza divina. Vivendo nEle,
desta maneira, durante algum tempo, completamente unida a Ele, como se
estivesse sem corpo e alma e nadando aí um pouco, é fácil ver, durante todo o
dia, como Deus se encontra entranhado em todas as criaturas, tanto dentro,
como fora de mim. É como se não houvesse nada senão o Ser Ilimitado de
Deus, em que a Alma e todas as outras coisas parecem ser afogadas. (II, c. 5,
10 – 11).

2.6 Foi-me revelada uma efusão ou comunicação mais nobre e mais elevada
sem que houvesse qualquer imaginação ou revelação racional do seu Ser e da
Sua presença em mim. Este género de revelação é mais nobre e difere da
outra maneira, acima descrita, de encontrar a presença divina. A presença do
Amado realizava-se, naquela altura, mediante a exibição de alguma Imagem
racional, por exemplo, a realização de grandes feitos, a Honestidade e
Majestade de Deus. Isto causava na alma algum sabor sensível, prazer e
doçura, por O ter encontrado ou achado; também a parte sensitiva comunicava
e percebia algo como em enigma. Mas, tal presença de Deus é muito abstracta
ou derivada de sensações dos sentidos.

Da mesma forma que esta contemplação da presença de Deus é mais nobre,


também a união do espírito com o espírito de Deus é mais nobre, mais elevada
e mais espiritual. Em conformidade com isto, o espírito descobriu outro
aniquilamento mais nobre e orientado para uma certa e subtil auto-realidade e
para impressões misturadas com acções do espírito, sem que eu me desse
conta disto… Agora compreendo como essa subtil auto-realidade do espírito

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deve ser reduzida a nada, também no espírito. Não pelo facto de opor-me a
isso mediante alguma acção, mas estando, com certa coragem de espírito,
voltada para Deus com fé viva...

Frequentemente, sinto dentro de mim vários estados de espírito. Às vezes, com


nítidas percepções da presença divina dentro de mim, fora de mim e em todas
as criaturas, difusas no seu Ser que as repleta, tanto no céu como na terra. O
espírito vagueia, então, livremente e é capaz de nadar, voar, estar sentado ou
descansar, de modo igual, no seu Tudo Amado, em Deus que então está ao
seu lado em todas as coisas. Às vezes, sente dentro de si um amor flamejante,
outras vezes um amor intenso, abraçando Deus e sendo igualmente abraçado
por Ele, gozando ou, à guisa de união, repousando um no outro. (II, c. 6, 12 –
13).

2.7 No dia 27 de Junho de 1671, ela escreve assim: Vejo Deus na treva ou na
escuridão dentro do meu solo; ao mesmo tempo, há um sossego silencioso e
calam-se todas as forças da alma. Tal ocorre mediante visão simples e íntima
do espírito. Relativamente a tais visões, é mais questão de eu estar sujeita às
mesmas do que serem evocadas. Todos os conhecimentos que recebo de
Deus nesta oração, resultam em negações e desconhecimentos de tudo o que
a mente humana é capaz de saber ou conhecer de Deus. E o espírito deixa-se
afundar no abismo escondido do Tal Ser Insondável, com aniquilamento total
do seu próprio ser e de tudo o que lhe diz respeito, em Tal Ser. Pelo
aniquilamento e desaparecimento da alma no Tudo, ela torna-se una com o
próprio Tudo. (IV, c. 11, 13).

2.8 Parece que aprendi que o espírito tem de aniquilar e afundar


silenciosamente todos os conhecimentos, compreensões e sensações de algo
divino que ocorrem então na Alma, a fim de que o espírito, que se encontra
então abrasado pelo fogo de amor, não seja detido por tal imaginação e
sensação. Desta forma é mais fácil transferi-lo para o inconfigurável Ser Divino
não criado. (III, c. 80, 115).

3. A purificação horrorosa

3.1 Depois que a graça e a luz divina tiverem, durante muito tempo,
aumentado na minha alma como aconteceu numa determinada tarde perfeita,

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aprazou, a Deus (talvez por culpa minha e pela falta de eu não cooperar
adequadamente com essa graça e não me esforçar por conservá-la o mais que
podia) diminuir paulatinamente esta grande clareza interior e as acções íntimas
do espírito. As infusões da graça divina etc. não pararam repentinamente mas,
tão lentamente e tão pouco a pouco, que mal me dei conta, até que as perdi
completamente. Fiquei então inteiramente dependente da minha natureza nua,
sem sentir qualquer apoio ou ajuda de cima, como se fosse noite escura na
minha alma…
Era necessário que tal desolação de espírito me sobreviesse a fim ser provada
e purificada como o ouro no fogo, mediante muitas torturas interiores e
exteriores, sofrimentos e lutas. (I, c. 81, M. 149).

3.2 Por conseguinte, o Amado achou bem conduzir-me por um caminho, duro
e doloroso, para a natureza e o espírito, e deixar a minha alma num estado
infeliz e deplorável. Desta forma, deveria sentir e experimentar a minha
impotência e incapacidade de fazer o bem, a minha nulidade, fragilidade,
abjecção e miséria, a fim de me afundar profundamente e colocar no estado de
profunda humildade e conhecimento de mim própria. Empregou, para tal, meios
tão variados, que não podia deixar de ser profundamente aniquilada e
esmagada. (I. c. 83, M. 151).

3.3 … Passar uma só hora em oração, tornou-se uma tortura para mim. Tive
que remar contra a corrente. Frequentemente, não era capaz, durante o tempo
de uma meia Ave Maria, de recolher os meus pensamentos e dirigi-los para
Deus. Parecia que havia um muro de ferro entre Deus e mim…
Na Oração, acumulava esforço sobre esforço tentando ocupar-me, durante este
tempo, com Deus e concentrar-me nEle. Mas em vão! (I, c. 90, M. 160).

3.4 Às vezes sentia-me tão extremamente aturdida por contratempos,


angústias, sofrimentos, torturas do Espírito que o mundo parecia
demasiadamente estreito como se minha alma estivesse entalada entre duas
mós ou como se estivesse atravessada por espadas, pendente entre Céu e
Terra, sem nenhum apoio vindo de cima ou de baixo, isto é, nem de Deus nem
dos homens… (I, 92, M. 163).

3.5 Ai, que invenções o Amado tinha reservado para mim, empurrando-me
para Si e obrigando-me a uma profunda mortificação e renúncia a todas as
criaturas. Pois, se uma alma se vê sem consolo e sem conforto por parte das
pessoas e amigos mais queridos nos quais, ao lado de Deus, se apoiava e nos

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quais tinha confiança, então tal situação fornece-lhe um estímulo estupendo


para afastar o coração de tudo e deixar todos os homens de lado a fim de se
entranhar fortemente em Deus. Daqui em diante quer encontrar sossego e
apoio apenas em Deus. Pois, vê que uma paz estável apenas pode ser
encontrada nEle e que tudo o que resta não resulta em nada senão em
torturas, inquietação e falta de paz no coração. (I, c. 115, M. 197).

3.6 Senti-me insaciável com respeito a esta diminuição, submersão e descida


de mim própria no abismo. Quanto mais fundo baixava no meu nada e quanto
mais tomava a minha morada no vazio, tanto mais sentia inclinação para
afundar-me cada vez mais profundamente. Ai! Que grande graça o Amado me
dava!. (I, c. 131, M. 217)

3.7 O citado raio Divino forneceu-me alguma luz pelo que fui capaz de ver e
conhecer algumas propriedades e condições do Nada ou, com outras palavras,
da alma aniquilada, a saber, aquilo que causa a real aniquilação ou impede a
mesma e aquilo que a contradiz. No entanto, não sei como exprimir bem este
conhecimento da forma clara como me foi dada. Compreendi e vi que Deus
apenas pode estar no verdadeiro Nada. Todas as nossas intenções e esforços
deviam estar orientados para conseguir isto de forma perfeita e para possuir
isto permanentemente porque só Deus é capaz de viver, sem obstáculos, numa
Alma aniquilada e causar, nela e por ela, o seu deleite mais querido.

Pensava que o Nada consistia na completa morte espiritual, tanto do homem


interior como do exterior, e sempre, sem jamais permitir ou sentir alguma forma
de amor vivo ou afeição natural por criaturas fora de Deus. O Nada deixa todas
as coisas em tacto em Deus, destruindo-se e perdendo-se nele. O solo interior
deve estar completamente vazio, descontraído e não configurado sem deter a
atenção nestas coisas e fixar-se nelas fora de Deus. (I, c. 132, M. 219).

3.8 No dia 5 de Abril de 1659 senti grande aridez e abandono na parte afectiva,
sem que tivesse a sensação habitual de Deus e sem que deslizasse
assiduamente para dentro do Ser Indiviso e Inconfigurável de Deus. Apenas
restou uma faísca ou uma força subtil que no meu interior, no meu recôndito,
provocava secretamente o regresso para Deus e a adesão a Ele. Tal se efectua
essencialmente por meio da fé nua, de maneira inteiramente espiritual,
abstracta e insensível. Então, é preciso que eu preste mais atenção a mim
própria. Pois, quando a natureza não encontra, através dos sentimentos,
alimento e comida em Deus, a fraca alma facilmente se distrai e se afasta do

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objecto divino, visto estarem os sentimentos, de algum modo, vivos e haver


regresso para as criaturas…
Tal paz interior brota, em seguida, de esforços e buscas puras e sinceras de
Deus, isto é, privada de qualquer luz ou de quaisquer outros dons. Pois, todas
essas dádivas, por mais elevadas, excelentes e nobres que sejam, não são
Deus. Por isso, é necessário ultrapassar tudo isto e perder-se em Deus, a fim
de poder alcançar a verdadeira união com Ele. (I, e. 168, 212-213).

3.9 Nos dias 4 e 5 de Outubro de 1659 tive desejos e iluminações desabituais e


pratiquei exercícios constantes de humildade, acompanhados de afundamentos
profundos na minha nulidade. Fiquei aí enquanto a minha Alma estava
perfeitamente serena, sem desejar ou querer qualquer coisa que fosse, sem
pretender qualquer coisa. Estaria, de forma substancial, perfeitamente satisfeita
com Deus se pudesse ficar, desta maneira, na minha nulidade. (I, c. 174, 219).

3.10 Mas, que maravilha, que uma Alma tão pequena e aniquilada possa
permanecer, em todas as circunstâncias, tão calma e satisfeita. O NADA não
se perturba. Para o NADA não é possível dizer qualquer coisa de mal, nem é
possível cometer, contra O Mesmo, qualquer coisa má. Do NADA não se pode
roubar nada e não é possível ofender o NADA. O NADA não é capaz de
pretender qualquer coisa que seja ou queixar-se de qualquer coisa. O NADA
não conhece, nem quer, nem possui coisa alguma. O NADA não se preocupa
consigo mesmo. Não é insensível em relação a tudo! Oh, quem é capaz de
descobrir as propriedades do seu NADA? Que grande bem possui então! Oh,
santa humildade, tu encerras em ti todos os bens, toda a santidade, toda a
perfeição! Oh, humildade, que fértil Mãe és tu!

3.11 Deste recolhimento interior decorre também a união pura com Deus e a
visão interior e quase constante de Deus. Tal ocorre devido ao facto de que a
alma se torna capaz, através do resguardo fiel de si própria, de permanecer em
Deus acima de todas as coisas criadas. Tratando-se do tipo de recolhimento de
que estou a falar, a alma acrescenta pouca coisa de si própria e é objecto
habitual das acções de Deus. Por isso, encontra-se em Deus simultaneamente
assolada e aniquilada, juntamente com uma grande alienação de si própria.
Mas, mesmo se a acção de Deus não é muito forte, estando a alma mais
entregue a si própria, ela persevera no recolhimento. Ocupa-se então,
silenciosamente, com a aniquilação silenciosa e simples de si própria e de
todas as criaturas, no Ser Indefinido e Infinito de Deus. E desta forma ela

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continua a estar acima de tudo, superando todas as perturbações da parte


sensível. (II, c. 2, 4)

3.12 Este fundamento de humildade deriva, portanto, do conhecimento claro


do meu próprio NADA: a saber que eu em mim própria e de mim própria sou
um mero NADA. Este conhecimento que me adere essencialmente e que me
penetra, leva-me para uma profunda e doce humilhação do meu coração, de
todo o meu ser. Como se a humilhação e o rebaixamento de mim própria se
tivessem tornado parte da minha natureza. Senti-me docemente inclinada para
isso como se fosse levada por gentil coacção… Sinto-me nesta situação como
alguém que está contente com a sua afeição natural: na humilhação estou, por
assim dizer, no meu centro e pareço viver aí, com prazer e cheia de deleite,
como uma salamandra no fogo. (II, c. 34, 58 – 59)

4. A união amorosa

4.1 O amor ardente opera em mim muito silenciosamente, mediante chamas


ardentes que me unem com o meu Amado, fazendo-me morrer a mim mesma e
consumindo-me. Não faço outra coisa senão amar. O meu coração e o meu
interior assemelham-se constantemente a carvão incandescente. Tal fogo
amoroso arde sem cessar, sem que eu o alimente. A presença interior do
Amado e a visão constante dele fornecem alimento duradoiro ao fogo, de modo
a nunca se apagar nem se tornar menos intenso. (II, c. 123, 201 – 202).

4.2 Domingo de Natal de 1671. O Amado tinha-me consumido e tomado


posse de mim, de tal forma que não fui capaz de me lembrar de qualquer coisa
que fosse, nem de usar a minha inteligência, a fim de comunicar a Vossa
Reverência o estado da minha vida interior. No entanto, senti, então, que a
privação da memória e inteligência era muito benéfica para o estado de união e
transformação em que me encontrava frequentemente e também nos dias
anteriores. Durante todo aquele período de interiorização em Deus que
demorou bastante tempo, pareceu que estive completamente inconsciente de
tudo o que se passava em redor de mim e não me dava conta de
absolutamente nada, senão do Ser Ilimitado e Inconfigurável de Deus. Parecia
estar afogada e desaparecida na união deste SER. Neste estado, possuo uma
admirável pureza de alma que não pode ser expressa em palavras…

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No dia seguinte o contacto confidencial com o Amado continuou. Naquele dia,


recebi dele muitos favores e acolhimentos nupciais. Entreteve-se comigo
cobrindo-me, por assim dizer, com milhares de beijos de amor e abraços
afáveis. Antes e depois da santa Comunhão estava, por assim dizer, alienada
de mim mesma. Naquele dia, as uniões realizavam-se por um incêndio de amor
abrasador.
As uniões que me eram concedidas anteriormente, realizavam-se, em geral,
por meio da intimidade e simplicidade de espírito mas, as presentes, realizam-
se, por assim dizer, através dum fogo de amor ardente e consumidor. Operam
fortemente no coração e em toda a Alma. Pois, a Alma tornou-se inteiramente
fogo e ficou transformada em amor. (II, c. 124, 202-203).

4.3 É difícil acreditar quantos sinais e actos de amor Deus dá à sua Esposa: o
amor leva-O tão longe e faz com que Ele se humilhe e se incline para a Amada
de tal forma que parece esquecer-se da Sua Majestade, pondo-A de lado, a fim
de poder comunicar com ela de maneira confidencial, em pé de igualdade e
amigavelmente como se ela fosse o Seu semelhante. (II, c. 125, 204-205)

4.4 Agora, fico mais consciente do beijo do Amado. Por isso, sinto-me capaz
de explicá-lo melhor, se for necessário. Numa só palavra, não parece ser outra
coisa senão um encontro com o Amado .ou uma revelação perceptível do
mesmo: é uma união extremamente amorosa entre ELE e a Alma Amante. Sim,
uma tal Alma dá e recebe de todas as criaturas um doce beijo de amor o que
lhe proporciona imensa consolação interior e lhe vulnera o coração com amor
terno e atormentador. Desta forma, ela goza quase constantemente e por toda
a parte deste beijo amoroso uma vez que é causado por adesão amorosa e
consoladora ao Amado. Pois, quer a Alma coma, beba, trabalhe, reze, escreva
ou descanse etc…, parece que já não percebe senão o beijo do Amado. Tenho
a impressão que a minha Alma goza agora constantemente deste beijo, visto
encontrar-se imediatamente (sem intervenção) ligada ao Amado. (II, c. 131,
213-216).

4.5 Durante alguns dias do mês de Fevereiro de 1673…


Não seria capaz de dizer ou de explicar a alguém tudo o que o Amado - de
acordo com o mencionado espírito de Santa Maria Madalena - me fez gozar e
experimentar da vida angélica e divina, da interiorização da Alma em Deus, das
desconsciências e meios enlevos NELE, nem posso explicar como o meu
espírito encontra o Divino Espírito e como um é conquistado pelo outro,
perdido, consumido e como um é unido com o outro; não posso explicar como

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experimento, quase constantemente, que o meu espírito, as minhas forças e


sentidos estão, de maneira perceptível, cheios e imbuídos de Deus, muito mais
que uma esponja que está cheia de água; não sei explicar como o meu espírito
está diante de Deus, elevado e aberto com grande pureza e expurgação, igual
ao céu claro, subtil e extremamente puro que se abre ao Sol, a fim de ser
penetrado, sem qualquer impedimento, pelos raios dEle, receber o calor e as
sensações dEle e tornar-se uma só luz com Ele. Pois, estas e outras coisas
semelhantes, começam a ser perpetradas em mim, com uma tal intensidade,
que todas as anteriores graças e uniões etc…. parecem ter sido de pouca
importância, comparadas com as presentes..

Nunca teria acreditado que uma criatura pecadora podia chegar tão longe e tão
alto na união com Deus, a saber num grau tão elevado que ela pareça não
saber ou não se lembrar que é uma criatura. Parece ser Deus em Deus e
totalmente una com Deus, sem diversidade, como se fosse transformada
NELE. Anteriormente tinha experimentado qualquer coisa semelhante, mas
durante pouco tempo. Agora, porém, mais constantemente e com uma clareza
incomparavelmente mais nítida, tanto como a tarde difere da aurora. Pois, isto é
certo: quanto mais a Alma progride na perfeição, tanto mais as uniões e
comunicações divinas se tornam perfeitas, puras, elevadas e expurgadas de
todas as imagens e imperfeições. A Alma descobre isto cada vez mais, quando
o Amado lhe concede alguma nova luz . (II, c. 155, 255).

4.6 Oh, o que o amor divino não faz na alma em que encontra espaço para
trabalhar! Assim como anteriormente eu costumava descansar em Deus e
estava unida com Ele… pelo silêncio e simplicidade, pela expurgação e
desaparecimento em Deus, agora ocorrem a propensão para Deus e a
interiorização NELE, a adesão, contemplação, fusão e união através de amor
muito mais perceptível. Parece que o homem inteiro se transformou em amor,
amando desmedidamente, sem fim nem limites. Parece que estou agora tão
fecundada pelo espírito de amor, que já não há comparação com o amor que
tinha até agora para com Deus. Parece que nunca amei Deus durante dias. A
luz do sol faz desaparecer a luz das estrelas. Da mesma maneira o meu amor
actual excede todos os amores anteriores, pois o amor puro, expurgado e
divino, de que me torno agora ciente, parece ter tomado posse de nós, parece
mover-nos, dirigir e levar tudo, exclusivamente para Deus, por causa de Deus e
por Deus, saboreando Deus em tudo… (IV, c. 126, 155).

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4.7 1668? A maneira de viver em Deus, o que, pela graça de Deus, faço
desde há algum tempo, veio a ser o deleite íntimo do Ser Divino extremamente
claro, silencioso e inconfigurável. Esta maneira de gozar de Deus e de saborear
as coisas divinas, parece ser muito diferente de todas as maneiras anteriores.
Aqui, Deus revela-se com maior clareza. Faz com que a alma compreenda e
experimente NELE coisas maravilhosas que, mais tarde, ela não é capaz de
reencontrar nem de exprimir com palavras. Durante o saborear ela gostaria de
falar sobre isto profusamente com alguém capaz de o compreender,
exclamando em voz alta que Deus é um abismo de coisas maravilhosas e
inefáveis.
A alma sente-se então repleta e possuída por Deus milagrosamente. É
apreendida e subjugada por Ele tantas vezes e tão plenamente que não sente e
não percebe nada senão Deus e aquilo que Deus lhe quer revelar. Oh, como
aqui a unificação e união com Deus são grandes…

Parece que, até agora, nunca experimentei nem saboreei uma forma de
deleitar-me em Deus, mais silente, mais simples e mais no recanto interior da
minha alma, nem uma forma mais alheada das acções habituais das outras
forças, nem uma forma mais expurgada do que aquela que agora saboreio e
experimento. Sinto-me agora tão afastada e tão separada da forma de então,
como se tivesse havido duas pessoas em mim. (IV, c. 136, 168-169).

4.8 Também parece que percebi, no início dessa união, que Cristo se inclina,
por assim dizer para a Alma, puxando-a um pouco para si e dando-lhe um beijo
na boca, um beijo de paz. Duma certa maneira, Ele leva-a para dentro de Si,
fundindo-a, aniquilando-a e unificando-a Consigo. Isto dá-se quase da mesma
maneira como a união que se dá apenas com a Divindade, embora não com
tanta intimidade e consolação sensível. (II, c. 47, 81-82).

5. O processo de transformação em Deus

5.1 Aconteceu uma vez, depois da comunhão, que Deus me concedeu a graça
de compreender o que é o encontro substancial e o gozo do Seu Ser
Inconfigurável através da fé e que mo fez experimentar um pouco. Pareceu-me
muito diferente daquilo que conhecera ou compreendera até àquele momento.
Esse deleite substancial de que acabo de falar não depende, nem está sujeito a
uma iluminação ocasional, de alguma luz divina que diminui ou aumenta, fica
mais escura ou mais clara. O deleite vem acompanhado de uma luz Divina

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constante, simples, não configurada e substancial, sem que se note ou sem


que se dê conta de tratar-se de luz, visto ser simples, silenciosa e subtil NELE.
Os resultados produzidos são os seguintes: repleta e possui os sentidos
interiores e exteriores, as forças mais sublimes e as mais humildes, com todas
as afeições da Alma. Reúne e unifica-as todas numa só massa. Desta maneira
produz a visão simples daquele ser Divino Imutável, Simples, Inconfigurável e
fica detido nisto com aspiração simples, como se estivesse num doce ar,
embora a aspiração ocorra substancialmente em Deus e não por força própria,
nem misturado com empenho próprio ou discernimento engenhoso.
Esta aspiração simples em Deus é o deleite substancial de que falo. Não deve
ser chamada visão ou deleite íntimo de Deus, mas deleite simples e
substancial. Pois, o deleite íntimo efectua-se com interiorização, alienação e
separação de tudo… mas este é, quanto à forma, muito diferente. Não é
interiorizado nem exteriorizado, mas simples. É forte e não tenro como o deleite
íntimo. Também tem mais liberdade e domínio sobre todas as coisas. Pois, os
sentidos e as outras forças não estão contra ele e não o impedem de,
constantemente, contemplar a Deus, de a Ele aderir e de gozar DELE, visto os
mesmos estarem tão unidos com o espírito, que ambos têm um só objecto.
Embora o corpo se ocupe com obras simples, etc…, os sentidos ficam tão
afastados e separados, que não parece fazerem delas formas ou aparências,
como se as criaturas com que lidam, que ouvem, vêem, saboreiam e sentem,
se encontrem, duma certa maneira, igualmente transformadas e consumidas
em Deus. (I, c. 145, M. 233-234).

5.2 Este género de amor não se realiza com ardor e inflamação perceptíveis
como os outros tipos de Oração de que falámos anteriormente. Também não
vai acompanhado de alguma visão contínua ou percepção de Deus que lhe
estaria perto ou intimamente presente. É um tipo de amor que opera na Alma e
a leva para uma tal unificação e união com o Amado, que ela se encontra nEle
consumida e transformada, sem prestar atenção a isto ou sem se dar conta do
mesmo. Quando a Alma se tornou assim toda amorosa e divina, sinto, duma
certa maneira milagrosa que não sei definir, que Deus Se ama a Si mesmo
nesta Alma e por esta Alma, com um amor infinito e incompreensível, como Se
amou a Si mesmo desde toda a eternidade e Se amará durante toda a
eternidade.

Neste tipo de oração acabam todas as contemplações, aspirações e procuras


amorosas de Deus por parte da Alma, pois esse amor opera numa tão grande
unidade que coloca a alma imediatamente no estado de união.

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5.3 Por conseguinte, se o espírito é conservado longe de toda a impureza,


pluralidade e de todas as coisas corpóreas e criadas, a Alma e Deus juntam-se
e tornam-se imediatamente um. O espírito é, através de amor simples, de novo
formado e transformado em Deus, assim como duas gotas de água juntas
desaparecem uma na outra e se tornam uma só. (II, c. 150, 246).

5.4 Quando, às vezes, acontecia que eu era levada mais longe e mais para o
fundo, parecia perder-me e esquecer-me de mim mesma, enquanto
contemplava e nada percebia senão o Ser Claro, Informe e Divino, com quem
fiquei unificada através de perda total NELE. Isto ocorria com extrema e íntima
tranquilidade enquanto as forças da Alma dormiam amorosamente no Deus
inconfigurável, sem que houvesse qualquer acção própria, com excepção duma
descontracção intima e muito simples da Alma em Deus, como uma gota que
se dispersa e perde no Mar.

O Amado concedeu-me poder exercitar-me na máxima taciturnidade interior e


na mais pura simplicidade. Esta taciturnidade era tão grande que nenhuma
força se mexia. As forças mais potentes estavam ocupadas em Deus sendo, ao
mesmo tempo, consumidas sem conhecer ou saber como isto acontecia. Todas
as exercitações perdem aqui o seu nome visto que aqui já se tornam simples.
Aqui, todas ficam unas em Deus, acima ou fora de qualquer percepção dos
sentidos e acima da compreensão e entendimento da inteligência.
Não sou capaz de explicar a informidade em que o meu espírito se encontrava,
nem a maneira como todas as formas ou aparências são excluídas. Igualmente,
não sei explicar como me posso portar, no íntimo do meu espírito, de maneira
mais informe ou mais inconfigurável, mesmo quando não reflicto sobre aquilo
que Deus, de facto, em mim faz. Também não sou capaz de explicar como
estava ocupada em Deus de forma mais elevada e mais inefável. Senti-me
derretida no meu Amado, desapareci NELE e fiquei una com Ele. Ou melhor:
por meio duma extrema simplicidade e informidade e só por meio da visão
íntima do meu Amado, as comunicações Divinas atravessavam,
milagrosamente, como um fluxo, a minha Alma.
Esta visão do Amado era tão silenciosa, tão íntima, tão imprecisa e afastada da
parte sensitiva que eu durante todo o tempo de oração, estava sem
pensamentos, como se estivesse num doce sono amoroso: era o grande
Silêncio dos Carmelitas em que palavras, sinais ou gestos, mal são permitidos.
Entretanto, vi a minha Alma numa grande luz e com divina clareza tal qual
anteriormente, às vezes, tinha acontecido. O que isto é, não pode ser explicado

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e ninguém é capaz de o compreender, senão quem já o experimentou. Apraz


ao Amado fazer-me repousar NELE. (II, c. 156, 256-257).

5.5 A aniquilação que me é proposta agora, é uma fuga constante, uma


retirada e esvaziamento de mim própria de forma que não me é permitido
encontrar-me e ver-me a mim mesma como algo criado ou algo separado de
Deus mas como una em Deus. Por isso, já não posso agir interior ou
exteriormente nem ter a intenção de fazer ou omitir algo por mim própria como
pessoa própria. Todas as acções da alma devem, daqui em diante, ser feitas
em Deus, com Deus e por Deus: não agindo, não amando, nem sequer a Deus,
algo, por mim própria, como se fosse acção minha, mas por Deus e em Deus.
Pois, Ele próprio quer e deve elaborar tudo neste nada, e com este nada, em
qualquer momento e por toda a parte. E, de facto, Deus entende, conhece,
goza e ama a Si mesmo neste nada.
Compreendo que uma Alma tão mortificada, vazia, separada e aniquilada, já
não pode perder Deus ou ser separada DELE, como a vida não pode ser
separada da Alma. Pois, pertence agora mais a Deus que a si própria. Por isso,
dá-se agora conta duma vida completamente diferente, a saber, da vida divina
em Deus: oh, como este solo aniquilado é facilmente consumido por Deus!
Como esta alma respira docemente em Deus! Como ela é iluminada e
ensombrada pela luz divina! De que maneira milagrosa e inefável Deus se lhe
manifesta! Que aspirações, toques, encontros e beijos de amor por parte de
Deus não ocorrem nesta Alma!
No entanto, esta Alma aniquilada, não sente nem conhece ou experimenta as
acções divinas em si, como se fossem dela. Ela deixa Deus agir, o qual faz com
que o espírito penetre amorosa, simples e intimamente na unidade escondida
do Ser Divino mas, de tal forma que ela não seja capaz, sem sair para fora de
si própria, de descobrir se Deus efectua ou difunde isto nela. Pois, o nada não é
capaz de receber ou de perceber. Todas as coisas ficam encerradas no Tudo,
em Deus, sem que a alma atraia qualquer coisa para si. Durante o primeiro
encontro, algo disto parece emanar de Deus para ela, mas ela abandona
imediatamente esta reflexão e memória de si e deixa tudo voltar para Deus,
para o Tudo, na sua origem. A alma leva as operações e dons divinos,
juntamente consigo própria, para Deus e assim todas as coisas se tornam
unas. Assim, ela desfruta estes dons, etc. em Deus e com Deus, como se todos
fossem unos NELE. Deus opera nela, acarinha-a, irradia-a, abraça-a e faz com
que o fogo de amor arda nela docemente. Pela grande simplicidade, ela quase
já não sabe como ou para que fim isto acontece. Julga que tudo isso sucede
mais por Deus e em Deus que nela, devido (como parece) à grande distância

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de si própria. Constitui um novo grau de aniquilação que antes não conhecia.


Também não sabia que tal aniquilação podia ser exigida de nós.
O Nada tem sempre uma vista imediata (sem impedimento) de Deus, acima de
todas as criaturas, acima de si própria, acima do tempo e do lugar. Encontra-se
fundamentado na eternidade, não tendo nada de comum com algo transitório.
Pareceu que uma pergunta era formulada em mim a que se seguiu
imediatamente uma resposta. Aquele que fez a pergunta respondeu, também
imediatamente, dizendo o que vem a ser a verdadeira aniquilação. Respondeu-
se: a verdadeira aniquilação não é outra coisa senão a inefável pureza de
espírito. E, imediatamente foi aberta, dentro de mim, uma espécie de cortina e
compreendi claramente o que essa inefável pureza de espírito vinha a ser.
Também compreendi imediatamente que, no mesmo momento em que a Alma
se volta para essa pureza, também Deus responde necessariamente a esse
solo puro e aniquilado, com uma revelação e comunicação de Si Próprio, à
Alma. Deus não pode deixar de fazer isto, da mesma maneira que o Sol não é
capaz de reter os seus raios da parte de tarde, quando não há neblina ou
nuvens. (II, c. 3, 6-7)

5.6 Quando pareceu que todas as visões e acções do espírito amante estavam
a acabar, fui puxada (sem saber como), perdida e afogada no abismo divino,
como num Mar desmedido, em que não vi nem princípio nem fim. Também não
fui capaz de me ver a mim mesma com alguma distinção, nem qualquer outra
coisa no céu ou na terra. Fui aniquilada, tomada, afogada e perdida no abismo
divino com tal intensidade, como se nunca tivesse tido vida própria e ser
próprio.
Aí fiquei plena e integralmente Una com Deus e formei com Deus, tão
perfeitamente, um só espírito que, se alguém então me tivesse visto, teria dito
que eu estava transformada em Deus, não estando eu presente, mas sim
apenas Deus. Pois, Deus tinha puxado a minha alma completamente para
dentro de Si e tinha-a transformado…. (III, c, 31, 54-55).

5.7 Neste estado de perfeita união com Deus, já não há na Alma visões nem
comunicações de verdades, nem operações de amor distinguíveis ou
perceptíveis, nem forças por parte da Alma. Ela está então aqui, acolá, em
cima. Pode entender-se que ela esteja a contemplar no alto, onde Deus se
contempla a Si mesmo, Se conhece, exalta, adora e ama…
Este afogamento, perda e aniquilação, etc., da Alma em Deus, não se dá por
algum arrebatamento do espírito ou numa exaltação, como antes foi dito, mas
através dum afundamento dentro do seu solo, em profunda intimidade e

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silêncio de todas as forças da Alma. Tal acontece com tão grande intimidade e
silêncio que não era permitido que uma das forças da Alma se movimentasse
de qualquer maneira que fosse. Pois, o mínimo movimento teria causado dano
à perfeita aniquilação a qual é, no entanto, necessária para a transformação e
unificação de espírito com Deus. Pois, enquanto houver movimento ou acção
própria, por pouco que seja, a Alma permanece em si própria. Da mesma
maneira como Deus leva a Alma, repentinamente, dentro de Si, também
suspende imediatamente as forças da Alma. Impede o funcionamento das
mesmas, enquanto a união e transformação duram, de modo a que a Alma seja
capaz de fazê-las calar facilmente.
Mas, quando o Amado não a atrai muito fortemente, a Alma pode, com uma
certa habilidade espiritual, empreender alguma coisa a fim de afundar-se e
permanecer no seu Nada. E, quando ela é capaz de entrar no seu Nada e de
aniquilar tudo aquilo que ela notar, sentir, encontrar e perceber fora do seu
Nada, o solo aniquilado é tomado por Deus e em seguida possuído por Ele. (III,
c.32)

5.8 É estranho e difícil compreender o que eu estou a dizer, a saber, que sou
una com Deus e que nesta unidade vejo Deus. Pois, de acordo com a nossa
maneira de falar, uma pessoa não é una com aquilo que vê. Uma coisa é aquilo
que se vê, outra, aquilo com que se está unificado. Pois um é um, e no ver há
dois, a saber, aquele que vê e aquele que é visto. Mas na contemplação e
união de que eu falo, as coisas são diferentes. Neste momento, vejo, de
repente, como é e como o posso definir. Pois, Deus contempla-se a Si mesmo,
conhece-Se, deleita-Se em Si mesmo e ama-se. Mesmo assim, está unido
consigo mesmo e em Si mesmo da forma mais íntima e mais substancial.
Da mesma maneira Deus concede, pela graça, à Alma, aquilo que Ele é por
natureza, enquanto a união dura. A Alma forma com Deus um só espírito, um
só ser, um só conhecimento, uma só operação, uma só vontade, um só amor e
uma só caridade. Não se dá conta de distinções, do eu ou do mim. Conhece ou
compreende apenas o UM. Por isso, quando reza, é o espírito de Deus que
reza nela, quando contempla e ama, é Deus que Se contempla e ama a Si
mesmo, nela.
Este estado de união encerra em si outra pureza, simplicidade, intimidade e
sublimidade de espírito e é diferente da anterior, quando o espírito amoroso
fecundava e dirigia as forças da minha Alma. Nessa união cooperava muito,
embora dirigida e movida pela graça e pelo fogo de amor. Aí estava mais ciente
de mim própria e de outras coisas (embora ocorressem em Deus), mas não
estava tão una com Deus, como agora. Cooperava com a graça e o espírito de

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Deus, de maneira agradável e perceptível. Agora, parece que sou


completamente una com Ele e transformada NELE. Aqui o espírito de Deus faz
quase tudo sozinho, sem saborear, sem algo experimentar e sem distinção
entre forças mais baixas e mais sublimes. Tudo o que contemplo, saboreio ou
experimento em Deus, é consumido na unidade do seu Ser Divino (III, c. 59,
89).

5.9 Alguém me perguntou se não estava sujeita a volubilidades e modificações


de disposições interiores como Ele: uma vez na luz, outra vez na escuridão;
agora vir, mais tarde abandonar etc. Respondi que não e que o meu espírito
ficava sempre no alto, numa incessante vida Divina em Deus onde parece já
não haver modificações. A graça Divina fixou-me, por assim dizer, e confirmou-
me nesta Santa liberdade de espírito, a fim de contemplar apenas Deus, de me
deleitar só NELE, de O encontrar só a Ele e por toda a parte etc…
A vida silenciosa, simples, íntima, divina, repousando e unificando em Deus,
tornou-se natural para mim. Sim, parece que já não conheço nem me lembro de
outra vida. (I, c. 179, 225-226)

5.10 1670? Depois de o Amado ter produzido fruto, em mim, durante algum
tempo, por meio daquele doce e fluente espírito de amor, como descrevi
anteriormente, tirou-me daquele estado e colocou-me no estado de união
íntima de espírito com Ele, num grau mais elevado e mais puro que nunca.
Estas mudanças e novos convites para graus de perfeição e união íntima com
Ele cada vez maiores, causaram-me grande admiração ao reflectir sobre isto.
Pois, todas as vezes que o Amado me propôs um grau de maior perfeição, de
maior pureza e de maior união com Ele, tive a impressão que não conseguia
chegar mais alto. Era como se já estivesse no grau mais elevado onde o
Amado queria que estivesse. E veja! Quando tinha subido àquele grau de
perfeição, de pureza e unificação com Ele e me tinha exercitado nele, o Amado,
mais uma vez, suspendeu aquele grau, de modo que já não era capaz de me
exercitar nele…
Este novo passo e esta nova subida do espírito é dum tal vigor que me parece
que tudo o que antes era direito, agora está torto, o que antes era puro, agora
está impuro, o que antes era simples, agora está múltiplo, o que antes era
expurgado, agora está misturado com a natureza. Numa só palavra: toda a
minha perfeição anterior parece ter sido de má qualidade, um começo de
perfeição, em comparação com o que me é ensinado agora e com o que me é
exigido agora, a saber: a imediata (não mediada) união do espírito com o
Espírito Divino. Pois, Este quer ter a supremacia sobre todas as forças da alma,

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sobre todos os sentidos e sobre todos os membros do corpo, a fim de viver e


operar totalmente nisto e por isto. (IV, c. 169, 210-211).

5.11 No dia 29 de Novembro de 1668 o Amado concedeu-me, durante algum


tempo, a mercê e a graça de uma união muito grande e muito íntima com Ele.
Esta união é tão intensa que me encerra em Si e é o remate de todas as
anteriores disposições interiores e deleites em Deus, do sono amoroso, do
repouso interior do espírito em Deus, dos abraços do Amado, dos tenros
desfalecimentos de amor, das iluminações e abrasamentos de Deus ou de
outra coisa divina etc.. (IV, c. 144, 180)

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