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O Reerguer do Portador da Luz

Nos últimos anos do século XV, a Europa e o resto do mundo passam


por grandes acontecimentos. Na Grécia, o domínio bizantino sobre a milenar
cidade de Constantinopla caiu, e esta passou às mãos dos turcos otomanos. O
Santuário convivia em harmonia com os cristãos, mas a chegada dos turcos
trouxe algumas turbulências à diplomacia do Santuário. Entretanto, o foco
principal dos acontecimentos naquele dia não era na Grécia, mas sim na região
onde hoje se localiza o Iraque, e que antigamente havia sido a cidade da
Babilônia, capital do Império Sumério.

Ali, sob o forte sol que imperava no céu, queimando os olhos e secando
o solo, dois vultos envolvidos em mantos negros se aproximavam de uma
formação rochosa. O mais baixo e atarracado desses vultos caminhava com
alguma dificuldade, enquanto o outro vulto, de contornos esbeltos e caminhar
suave, parecia deslizar sobre o solo.

- Minha senhora – disse o dono do menor vulto -, não entendo por que a
senhora teve de vir até aqui. Eu poderia trazê-lo de volt...

- Por acaso pretendes questionar minhas decisões, Eliphas? O tom de voz da


bela mulher, dona da graciosa silhueta escondida sob o manto, era delicado e
perigoso, como veneno oculto em uma doce taça de vinho. Se eu vim até aqui,
é porque tenho meus motivos. Agora me responda: trouxeste o que te pedi?

- Sim, divina Astarte.

O velho retirou um cantil de couro de dentro de suas vestes, e ofereceu-


o à mulher. Percebendo o olhar de desprezo que ela lhe lançou, ele
rapidamente se dirigiu às rochas que assomavam a sua frente, e derramou o
conteúdo no solo. O líquido, de um vermelho intenso, tingiu o solo, e revelou
uma forma geométrica curiosa, onde uma estrela de seis pontas se encontrava

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dentro de um círculo. Astarte dirigiu-se até onde Eliphas havia parado e,
olhando com atenção, murmurou:

- O Selo de Davi. Então é realmente aqui que meu pai foi aprisionado. Agora, é
hora de executar o próximo passo do meu plano.

- Do nosso plano, não é mesmo divina Astart...

A voz do homem foi embargada pelo sangue que começava a lhe subir à
garganta. Com um movimento extremamente veloz, Astarte abriu um finíssimo,
porém profundo, corte na garganta de Eliphas, que caiu de joelhos, tentando
respirar. O sangue encharcava suas vestes, e os últimos suspiros de vida
começavam a escoar. Com um olhar de súplica, que misturava horror e
surpresa, ele consegue murmurar, com grande esforço, suas últimas palavras:

- Por...porque?

Sem se importar com o corpo ensangüentado caído a seus pés, Astarte


se dirige à frente das rochas, e começa a entoar palavras em uma língua
desconhecida. A visão daquela cena começa a ficar embaçada, tornando-se
menos nítida a cada segundo. Ao passo que a visão se torna mais desfocada,
um som começa a se tronar mais claro, como um chamado de alguém que está
distante.

“- Mestre? Mestre? O senhor está bem?”

No alto de Star Hill, um homem vestindo um longo manto branco,


ostentando um elmo que esconde seu rosto, começa a se levantar do chão.
Um jovem alto, trajando uma reluzente armadura dourada, ajudava o Grande
Mestre do Santuário a se levantar. A capa e os longos cabelos negros do
jovem Cavaleiro de Ouro ondulavam sob o vento que soprava na colina. Já de
pé, o Grande Mestre olha para o rosto assustado do rapaz, e pousa
suavemente sua mão no ombro deste.

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- Acalme-se, Cristos, eu estou bem. O que aconteceu comigo, e por que você
deixou a 12ª Casa Zodiacal sem a minha permissão?

- Perdoe-me Grande Mestre, disse o pisciano enquanto de prostrava de


joelhos. Senti um grande cosmo agressivo dirigindo-se até aqui, e depois senti
a sua cosmo energia enfraquecer muito. Fiquei preocupado com o senhor, e
resolvi vir dar uma olhada no que estava acontecendo, e encontrei o senhor
desmaiado.

O silêncio que se seguiu por um breve instante só era quebrado pelo


som do vento. Então, o Grande Mestre caminhou até as escadas que levavam
à entrada, e disse ao jovem cavaleiro.

- Volte ao seu posto, Cristos de Peixes. Em breve eu deverei dar instruções


mais precisas a você e aos demais guerreiros de Atena. Até lá, permaneça na
12ª Casa.

- Sim, senhor.

Enquanto descia as escadas, o Grande Mestre pensava.

- “Eu não esperava que isso fosse acontecer nesta Era. Atena ainda é muito
jovem, assim como a maioria dos Cavaleiros. Se eu interpretei corretamente os
sinais que vi hoje, logo teremos de iniciar uma nova Guerra Santa, e não será
somente Atena que lutará contra esse novo adversário. Devo enviar uma
mensagem à Roma. O Papa estava certo no que me disse no último ano:
Lúcifer está prestes a voltar à Terra, e vai querer se vingar de Atena por ter
ajudado na luta que acarretou seu aprisionamento. Tempos negros nos
esperam.”

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CAPÍTULO I: O Inimigo em Comum

Foi difícil para o Grande Mestre dormir naquela noite. Antes de se


recolher aos seus aposentos, ele teve de despachar alguns Cavaleiros para
diferentes localidades, a fim de realizarem missões específicas. O Grande
Mestre estava sentado em seu trono, em silêncio, quando o som de passos
começa a ecoar em sua sala, despertando-o do seu estado de concentração.
Uma jovem belíssima vinha em direção a ele. Os olhos dela eram negros e
brilhantes, ostentando um olhar doce e resoluto. Seus longos cabelos
trançados estavam presos à nuca, e sua pele morena, da cor das amêndoas,
contrastava com o alvíssimo branco de suas vestes. Ao aproximar-se do
Grande Mestre, este saiu do trono e prostrou-se de joelhos na frente da
menina.

- Sagrada Atena, o que faz fora de sua câmara de repouso?

- Estava preocupada com o senhor, e resolvi vir vê-lo. Percebi uma estranha
movimentação no Santuário, e fiquei sabendo que alguns Cavaleiros foram
enviados em missões confidenciais. Poderia me explicar o que está
acontecendo?

- Naturalmente que sim, Atena.

A voz do Grande Mestre, embora firme, transparecia preocupação, e


suas mãos, cuja pele clara e levemente rugosa refulgia à luz do sol que
adentrava pelas janelas, contraíram-se em um claro sinal de nervosismo.

- Chame-me de Sara, esse é meu nome. – protestou a menina.

Um riso leve escapou dos lábios do Grande Mestre, e ele respondeu em


um tom paternal.

- Eu já lhe disse outras vezes, Sara: o seu nome de nascença não é mais
importante do que o seu nome real, o nome do espírito divino que habita em

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seu corpo. Você é a reencarnação de Atena, e deve atender por este nome,
mesmo que prefira o primeiro, entendeu?

- Sim. Mas, agora me diga: o que está acontecendo?

O líder do Santuário, após perceber que a jovem Atena não tomaria


assento no trono, levantou-se e dirigiu-se até ele. Então ele fez uma longa
pausa, contemplando as cortinas carmesim que vedavam parte das janelas, e
então sentou-se no trono. Mirou o chão por alguns segundos, ao que se
sucedeu um breve suspiro, e ele começou a falar.

- Antes de mais nada, é essencial que você saiba que os deuses gregos não
são os únicos existentes no mundo. Embora algumas divindades recebam
nomes diferentes em outras culturas, há uma variedade grande de deuses que
protegem e governam o mundo. Tendo lhe explicado isso, ficará mais fácil
compreender o que vou dizer agora.

“Há milhares de anos, quando Zeus ainda reinava poderoso no Olimpo, houve
um grande problema entre os deuses. Alguns deles reclamavam que os
homens estavam sendo mais amados e protegidos do que o necessário, e que
os homens não estavam correspondendo a isso como deveriam. O maior
responsável por esses desentendimentos era um Anjo, um dos guardiões do
Deus dos hebreus. Esse Anjo era chamado de Lúcifer, que significa “o portador
da luz”. Ele recebeu esse nome porque irradiava uma poderosa luz de seu
corpo, e tão grande eram sua beleza e seus conhecimentos que ele era
comparado a alguns dos deuses, e a muitos ele superava em poder e
esplendor.”

“Aconteceu, então, de Zeus e YHVH, o Deus dos hebreus, se irritarem


profundamente com algumas ações dos homens, e terem jurado não interferir
abertamente no que aconteceria com eles. Assim, Atena assumiu a chefia do
que pertencia ao seu pai, Zeus, e Yeshua (também chamado de Jesus),
assumiu a parte que pertencia ao seu pai, YHVH. Como se sabe, Atena teve de

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enfrentar Posseidom, Hades e Ares inúmeras vezes para garantir o domínio da
Terra, mas nem de longe esse foi o maior problema dela.”

“Antes de se iniciarem os confrontos entre eles, Lúcifer resolveu agir


abertamente, agora que YHVH não estava mais interferindo. Sendo o mais
poderoso dos Anjos, e uma das mais poderosas criaturas divinas que já
existiram, Lúcifer aliciou outros Anjos, bem como deuses de diferentes
panteões. O exército de Lúcifer contava com um terço das potências divinas, e
a batalha que se seguiu foi sem precedentes. Miguel, o líder dos Anjos, não foi
páreo para o poderoso Lúcifer, e foi derrotado rapidamente. Foi então que
Yeshua entrou em combate direto, mas tão grande era o poder do seu opositor
que ele teve de pedir auxílio. Foi então que Atena se juntou a ele e, juntos, eles
conseguiram derrotar Lúcifer e deter a rebelião por ele causada.”

“Os deuses e Anjos que haviam se juntado a ele foram esconjurados do mundo
divino, e passaram a ser denominados apenas como daimons, ou seja,
espíritos comuns. Porém, mesmo exilados do plano celeste, eles continuaram
agindo com maldade, e embora a palavra daimon não indique se esse espírito
é bom ou mau, logo começou-se a associar a palavra apenas com o mau, e o
termo demônio surgiu como uma oposição ao termo Deus. Você me
compreendeu até aqui, Atena?”

A jovem assentiu brevemente com a cabeça, e seu rosto expressava


tanto interesse quanto preocupação. O Grande Mestre prosseguiu.

- Como eu dizia, Lúcifer foi derrotado, mas seu espírito não podia ser destruído.
Atena e Yeshua decidiram, então, aprisioná-lo no mais oculto e negro local do
Hades, muito além do Érebo. Esse local chamava-se Infernum, significando,
literalmente, as profundezas. Antes de ser aprisionado, Lúcifer predisse que um
dia ele seria libertado e que, quando isso acontecesse, ele iria eliminar Atena e
Yeshua, pois nem os homens e nem os deuses são dignos do mundo que ele
pretendia dominar. Já no inferno, Lúcifer manifestou seu poder, e conseguiu
influenciar levemente nas ações dos homens.

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“Então sucederam-se as muitas Guerras Santas entre Atena e outras
divindades do mundo grego, ao mesmo tempo em que Yeshua descia à Terra
tentando passar uma mensagem de amor diretamente aos humanos. Ele teve
de se sacrificar para isso, e mesmo assim não alcançou seu intento.
Glorificado, ele juntou-se ao seu pai, e aguarda o dia em que deverá se
manifestar novamente. Sendo assim, a Terra ficou entregue por completo aos
cuidados de Atena, e ela tem reencarnado frequentemente quando sente que
há um grande perigo aproximando-se.”

“Nessa Era, Sara, você é a reencarnação de Atena, e veio para enfrentar um


novo inimigo. Porém, dessa vez não será nem Hades, nem Posseidom, nem
Ares. Se meus presságios estiverem corretos, alguém está tentando libertar
Lúcifer, e está sendo bem sucedido, pois está prestes a libertar o maior dos
capitães de seus exército: Baal. Se Lúcifer chegar a ser libertado, e ele retomar
o seu poder total, será praticamente impossível que possamos derrotá-lo
sozinhos. Por esse motivo, enviei emissários à Roma, onde fica o Santuário
dos Cristãos. Em breve, o líder deles deverá vir ao Santuário de Atena, e então
planejaremos uma ação conjunta para impedir esse inimigo, que é com certeza
o pior de todos os tempos. Você compreendeu a gravidade da situação?”

A jovem hesitou por alguns instantes, e então ergueu sua cabeça,


olhando para a luz que penetrava no salão. Embora fosse um dia quente, com
um forte Sol brilhando no exterior do Santuário, Sara sentia um arrepio
percorrer seu corpo. Tentando manter seu tom de voz o mais calmo possível,
ela perguntou ao Grande Mestre.

- Então...então quer dizer que uma nova Guerra Santa começou? Quer dizer
que todos os Cavaleiros que protegem Atena...que me protegem – corrigiu-se
ela depois de uma breve menção de interrupção do Grande Mestre – terão de
arriscar as suas vidas? Até mesmo o...

- Sim, Atena. Até mesmo o seu irmão terá de arriscar a vida para protegê-la.

- Mas ele é só um Cavaleiro de Bronze! – protestou ela, tremendo inteiramente.

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- Um Cavaleiro de Bronze que jurou protegê-la, Atena. E seria muito
vergonhoso para Ícaro se ele soubesse que você não queria que ele se
arriscasse por você. O nome dele e a sua constelação protetora, Pégasus, tem
algo de similar: as asas. Isso significa liberdade, vontade, espirituosidade.

Ao dizer isso, o Grande Mestre levantou-se, caminhou em direção a


Atena e ajoelhou-se. Ele retirou seu elmo. Seus longos cabelos brancos
pendiam-lhe sobre os ombros, ainda fortes e firmes, emoldurando seu rosto
belo e rugoso, porém com olhos viva e jovialmente vivos, de um castanho
profundo. Ele exibiu um sorriso sincero e doce, como o de um pai que quer
acalmar um filho, por saber o que se passa em sua mente. A seguir, ele
pousou gentilmente sua mão no ombro da jovem, e Sara sentiu como se um
mar de tranqüilidade brotasse em seu corpo.

- Deixe-o voar para onde ele quiser – disse o Grande Mestre -, deixe-o ser livre
para decidir o que ele quer fazer. Eu sei que você o ama, mas deve temer por
igual pela vida de todos os que lhe protegem, tenham vocês laços sanguíneos
ou não. Agora, Atena, acho que seria melhor se você se recolhesse em sua
câmara até a hora do almoço. Concorda?

Ela assentiu com a cabeça e, com um sorriso pálido, se despediu do


líder do Santuário. Ele acompanhou com os olhos enquanto ela se afastava, e
não pode deixar de pensar em quanto sangue jovem teria de ser derramado
em mais uma Guerra Santa.

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CAPÍTULO II: A Primeira Batalha

Fazia um dia quente e seco, e a areia do deserto parecia drenar toda e


qualquer umidade que pudesse haver. Ao longe, duas figuras envoltas em
mantos negros se aproximavam de uma formação rochosa. Entretanto, estas
duas figuras não tinham conhecimento de que eram observados de longe por
dois jovens trajando reluzentes armaduras prateadas, que se encontravam no
alto de uma colina, ocultados por grossas colunas em ruínas, em um lugar
onde, provavelmente, deveria ter existido um templo. Um deles, que tinha loiros
cabelos curtos, e olhos de um verde intenso, estava vivamente interessado no
que acontecia ao longe, e mantinha um olhar vidrado nos vultos lá embaixo. O
outro jovem, de cabelos prateados e longos, mirava-os com um olhar
aparentemente frio e desinteressado, mas havia um brilho intenso e profundo
nos seus olhos negros, como se estudasse tudo o que era feito por eles.
Secando o suor com as costas da mão, o rapaz loiro se dirige ao outro, com
uma voz jovial e um tanto empolgada.

- Vamos descer lá embaixo, Izzak. São apenas dois, e nós somos dois
também. Pelo que me lembro do que o Grande Mestre disse, um deles é um
velho, e o outro é uma mulher. O que você me diz?

- Em primeiro lugar, Komodo – disse Izzak em tom calmo, sua voz grave
conferindo a suas palavras um ar de censura – se você descer, logicamente
será para baixo. Em segundo lugar, mas não menos importante, você deve se
lembrar, também, que o Grande Mestre deu ordens explícitas para que
aguardássemos até que o velho fosse morto por ela. Eu lhe pergunto, Komodo
de Lagarto: será que você vai querer desobedecer às ordens do Grande
Mestre? Acho que ele não iria ficar contente com isso. Aliás, acho que ele
ficaria enfurecido com você.

O suor pareceu afluir com maior intensidade do rosto de Komodo. A


simples menção de poder causar a fúria do líder do Santuário era algo
amedrontador. Todos sabiam que o velho Grande Mestre tinha a fama de ser
uma pessoa muito sábia, calma e gentil, mas ele também era famoso por mais

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duas coisas. A primeira delas era o fato de ele ser o mais poderoso Cavaleiro
de Atena há centenas de anos. A segunda delas, e a mais surpreendente, é
que ele era extremamente velho: tinha bem mais de 1000 anos.

Ninguém sabe ao certo como isso era possível, mas sabia-se que ele
era o Grande Mestre do Santuário de Atena há pelo menos 13 séculos, e já
havia participado de mais de 5 Guerras Santas. Isso fazia dele um homem
extremamente temido e respeitado, e mesmo já fazendo mais de 200 anos que
ele não entrava em combate, o nome Girtab de Escorpião (ou Girtab, o
Escorpião Imortal, como ele também era chamado) era suficiente para causar
apreensão e medo em todos os adversários de Atena. Desse modo, era
perfeitamente compreensível o medo que Komodo sentia em causar fúria no
Grande Mestre.

- De... de modo algum, Izzak – gaguejou o Cavaleiro de Lagarto. - Eu jamais


iria desobedecer a uma ordem dele. As ordens do Grande Mestre são as
ordens de Atena, e desobedecer a ele significa desobedecer a Ela.

- Então se acalme e espere.

***

Enquanto isso, no Santuário, um Cavaleiro corria desabalado em direção


as 12 Casas Zodiacais. Ele entra correndo na primeira Casa, a Casa de Áries,
mas rapidamente é projetado com força para fora dela. Ao levantar-se do chão,
ele olha para a entrada do Templo de Áries, e vê uma enorme e imponente
figura dourada parada entre as colunas. Seus fortes braços estavam ocultos
atrás do tronco, sua grande capa branca cobria-lhe os largos ombros, e um
elmo com dois pontiagudos chifres dourados cingiam-lhe a fronte. Sua voz,
grave e retumbante como um trovão, ressoou na morada às suas costas.

- Como ousa entrar de forma tão atrevida na Casa de Áries, Cavaleiro de Altar?

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O Cavaleiro que havia se levantado faz uma breve e respeitosa
reverência. A diferença de altura entre ambos chegava a ser cômica, pois o
Cavaleiro de Touro tinha praticamente a altura de dois homens.

- Peço perdão pela forma como entrei, Gerion, mas é que eu tenho uma
mensagem urgente para o Mestre.

- Não me interessa, Sacros. Regras são regras, e você deveria obedecê-las de


forma exemplar, já que é o braço direito do Grande Mestre.

- Sim, sim Gerion, você está certo. Agora...o que você está fazendo fora da
Casa de Touro? Onde está Frixo?

- Embora eu não lhe deva satisfações, vou lhe dizer onde ele está: ele foi atrás
dos Cavaleiros de Triângulo e Lagarto. Eles foram enviados em uma missão,
mas o Grande Mestre sabia que ela poderia ser muito arriscada, então mandou
o Cavaleiro de Áries em segredo, para vigiá-los e salvá-los caso entrem em um
perigo muito grande.

- Mas...

- Você está perdendo muito tempo aqui fora, Sacros – interrompeu-o Gerion.
Se não me engano, você estava com pressa, não?

Sacros não respondeu, apenas assentiu rapidamente com a cabeça, e já


saiu em disparada, passando como uma lufada de vento pelo gigantesco
Cavaleiro de Touro. Ele passou sem problemas pelas demais Casas Zodiacais,
mas não cruzou com nenhum Cavaleiro de Ouro pelo caminho. Ao chegar no
Salão do Grande Mestre, o líder do Santuário parecia estar esperando-o.

- Seja bem-vindo de volta, Sacros de Altar. Você voltou muito mais rápido do
que eu esperava. Teve algum contratempo?

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- Não, Mestre – respondeu Sacros, prostrando-se de joelhos. Na realidade, tive
uma sorte muito grande. Encontrei-o antes de chegar à Roma. Pelo que ele me
disse, um de seus homens também teve uma visão igual a sua, e assim que
ele foi informado disso, ele resolveu se dirigir até o Santuário. Dentro de alguns
dias ele deve estar chegando.

- Excelente, Sacros. É de fundamental importância que Giovanni venha até o


Santuário.

- Perdão, Grande Mestre, mas quem é Giovanni?

- Giovanni é o homem que você foi procurar, Sacros, embora agora ele seja o
Papa dos cristãos e tenha adotado o nome Inocêncio VIII.

- Ah, perdão pela minha ignorância, senhor. Agora, se me permite uma


pergunta, Mestre, o senhor poderia me explicar porque mandou Cavaleiros de
Prata em uma missão tão arriscada que foi necessário enviar Frixo de Áries
como reforço em segredo?

- Claro que lhe perdôo e lhe permito a pergunta, Sacros – respondeu o Grande
Mestre em um tom casual -, mas será que você me perdoa se eu me negar a
lhe responder?

O Cavaleiro de Altar ficou desconsertado, e apenas balançou a cabeça


em sinal de concordância. Em seguida, ele se levantou e se retirou, enquanto
pensava em qual seria o motivo do Grande Mestre estar tomando tais medidas.

***

Kuuki no Ugyoheki! (Parede de Defesa)

Uma parede invisível, formada pela pressão do ar, projetou-se das mãos
do Cavaleiro de Lagarto, impedindo que lâminas extremamente afiadas
rasgassem sua pele.

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- Essa sua defesa ridícula não vai funcionar se eu o atacar de verdade
-zombou Astarte. Se este é o poder dos Cavaleiros do Santuário de Atena,
então eu não devia estar preocupada. Um possui uma ridícula técnica
defensiva, e o outro sequer resolveu lutar. Acaso tens medo, rapaz?

Ela se referia a Izzak, o Cavaleiro de Triângulo, que apenas observava a


luta.

- Os Cavaleiros de Atena não lutam de forma covarde – disse Izzak -, e dois


contra um é uma grande covardia. Agora, se Komodo fizer a gentileza de se
retirar do combate, eu poderei lutar com você.

- Ora, ora, que rapaz honrado. Se pretendes lutar sozinho comigo, acho que
seria mais prudente eliminar o empecilho.

Lunar Blades! (Lâminas Lunares)

- Komodo, cuidado!

Mas já era tarde demais. Centenas de flashes de luz prateada, no


formato de semi-círculos, saíram a uma surpreendente velocidade das mãos de
Astarte, e dilaceraram o corpo do Cavaleiro de Lagarto antes que ele pudesse
utilizar sua técnica defensiva. Sangrando muito, e com uma expressão de
horror no rosto, o jovem Komodo caiu inerte no chão, criando uma grande poça
de lama avermelhada a sua volta.

- Agora somos só nós dois, rapaz.

Izzak, embora chocado com o que acabara de presenciar, rapidamente


retomou a calma, e seu tom de voz era quase indiferente quando se dirigiu a
mulher a sua frente.

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- Espero que você possua outras técnicas, por que isso não funcionará comigo.
Prepare-se para enfrentar Izzak, o Cavaleiro de Prata da Constelação de
Triângulo.

Izzak ergueu as duas mãos, deixando levantados apenas os polegares e


os indicadores. Em seguida, ele juntou-os de modo que eles formaram um
triângulo, de onde começou a emanar uma grande quantidade de cosmo
energia.

Triangula Sigillum! (Selo dos Triângulos)

Um enorme triângulo se formou sob os pés de Astarte, e ela não


conseguiu se mover. Sua aflição era visível.

- Maldito! Como um reles mortal como você ousa prender uma deusa como
eu?! Assim que eu me libertar, irei fazê-lo sofrer muito antes da morte.

- Sinto muito, mas não tenho a mínima intenção de permitir que você se liberte.
Agora, é você quem irá morrer, e se arrependerá do que fez a Komodo.

O Cavaleiro de Triângulo flexionou seus braços na altura do peito, de


forma a fechar um triângulo com seus braços e seu tórax.

Hastam Argenteam! (Lança de Prata)

Uma fina e prateada rajada cósmica projetou-se da ponta de seus


dedos, e rumou em direção ao peito de Astarte. Porém, algo impediu que ela
fosse atingida. Uma poderosa aura escura havia se formado ao redor do corpo
dela, e havia uma crescente e tenebrosa cosmo-energia irradiando de um local
próximo a eles. Uma rajada de energia negra atingiu Izzak no peito,
derrubando-o no chão.

Astarte começou a rir, enquanto uma figura alta e envolta em escuridão


começou a se materializar. Mais uma rajada de energia se projetou contra

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Izzak, mas de alguma forma estranha, ela não o atingiu. Parado a frente dele,
com os braços estendidos, havia alguém trajando uma armadura dourada.
Seus cabelos longos e ruivos eram jogados para trás por causa do vento, e
embora ele estivesse de costas, Izzak sabia quem era ele.

- Obrigado, Frixo. Acho que se não fosse a sua intervenção, eu estaria morto
agora. Mas me diga, o que está fazendo fora da Casa de Áries?

- Não é o momento adequado para conversarmos, Izzak – respondeu o ariano.


Seria mais prudente se você voltasse ao Santuário, e informasse ao Mestre
que ele foi liberto.

- Ele quem, Frixo?

- Baal, o Comandante dos Exércitos de Lúcifer. Você é forte, Izzak, mas não
tem a mínima chance contra ele. Saia daqui agora, e deixe essa batalha para
mim.

Uma sinistra gargalhada ressoou em meio ao deserto, e mesmo com o


forte calor que fazia, Izzak sentiu um frio arrepio na espinha.

- E quem és tu – falou em tom gutural a forma enegrecida que se formava ao


lado de Astarte -, que se julga páreo para o grande Baal?

- Eu sou Frixo de Áries – respondeu o rapaz ruivo, seus olhos castanhos


faiscando -, e fui enviado por um velho conhecido seu.

- E quem seria este meu conhecido?

- Nada mais nada menos do que Girtab, o Escorpião Imortal, e atual Grande
Mestre do Santuário.

- Girtab? Girtab de Escorpião ainda está vivo? Se isso é verdade, então o avise
de que nós nos encontraremos muito em breve, e que é somente pelo

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vislumbre desse encontro que eu permito que vocês vivam mais um pouco.
Partam, e avisem-no de que temos velhas pendências a acertar.

Dizendo isso, uma forte tempestade de areia se formou rapidamente, e


quando ela cessou, nem Baal e nem Astarte estavam mais lá.

- Bem, essa foi por pouco. Vamos embora Izzak, o Grande Mestre quer falar
com você. Recolha o corpo de Komodo, pois ele deve ser sepultado. Por que
será que o Mestre arriscou a vida de vocês dois em uma batalha sem
perspectivas de vitória?

Izzak não disse nada. Apenas recolheu o corpo do companheiro e


desapareceu de lá junto com o Cavaleiro de Áries. A primeira de muitas
batalhas havia acontecido, e o Santuário havia sofrido a primeira derrota e a
primeira baixa em seu exército. Quantos mais ainda irão morrer?

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CAPÍTULO III: A Bela e a Fera

A diferença climática não podia ser mais brusca. O sol que, há pouco,
brilhava intensamente, e se refletia na argêntea armadura de Izzak, agora era
ocultado completamente por espessas e cinzentas nuvens, que despejavam
furiosamente grandes quantidades de água sobre o solo grego. O Santuário
estava quase escondido pela tempestade, tamanha era a intensidade e a
quantidade de chuva que caia, tornando difícil discernir as Casas Zodiacais
através da cortina pluvial que se formava.

Lenta e gradualmente, tornavam-se identificáveis duas figuras que


subiam as escadarias rumo à primeira Casa. Um deles carregava algo nos
braços, e parecia perdido em pensamentos enquanto galgava os degraus. O
outro, que trajava uma brilhante armadura dourada - em contraste com a
armadura prateada do seu companheiro -, parecia despreocupado, embora sua
expressão permitisse o vislumbre de um leve tom de apreensão. Ao se
aproximarem da entrada da Casa de Áries, percebem que há alguém a espera
deles, escorado em uma das colunas. Sua voz, tão forte e clara quanto os
trovões que ribombavam naquela tempestade.

- Então, parece que o Grande Mestre começou a mostrar sinais de sua


senilidade. Eu disse a você, Frixo, que ele havia enviado esses dois para uma
missão suicida, e veja que eu não me enganei.

- Seria melhor que você não falasse assim do Mestre, Gerion de Touro –
respondeu o Cavaleiro de Áries em um tom cortes -. Sei que você não aprova a
maioria das escolhas dele, mas questioná-lo abertamente, da forma hostil
como você tem feito, meu amigo, faz parecer que você está se rebelando às
ordens dele.

- Humpf, mais um! Agora não se pode mais falar das sandices daquele velho,
que já aprece alguém para me acusar de rebeldia – disse o gigante taurino,
virando as costas para o ariano e mirando, à distância, o Salão do Grande
Mestre -. Ser contra as decisões insensatas dele não faz de mim um rebelde,

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Frixo de Áries. Olhe para o rapaz ao seu lado, e para o outro que ele traz nos
braços, e você verá que eu estou com a razão.

- Vejo que mais alguém já lhe alertou sobre as suas palavras, meu amigo.
Posso arriscar um palpite sobre quem foi? Talvez Cristos?
- Não, você se enganou, Frixo. Não foi o Cavaleiro de Peixes quem me falou
isso, embora seja bem o tipo de coisa que ele diria. Não, quem me disse algo
semelhante ao que você falou foi aquela sonsa da Maria.

- Não fale assim da minha mestra! – explodiu Izzak.

- Ora, ora! Tinha até me esquecido que você era pupilo dela, Izzak de
Triângulo. Diga-me, como se sente tendo de aprender com uma mulher?

- Acalmem-se os dois – adiantou-se Frixo, percebendo a irritação crescente de


Izzak, que se deixava levar pelas provocações do Cavaleiro de Touro -. Não se
esqueça que nós lutamos para proteger uma mulher, Gerion, e tanto ela quanto
o Grande Mestre não vem nenhum problema em ter Maria como a guardiã da
Casa de Virgem.

- Isso só corrobora com minha opinião sobre o duvidoso tipo de julgamento do


Grande Mestre - retorquiu Gerion, agora se virando para encarar os dois -. Se
ele acha que aquela son...digo, aquela menina é suficientemente poderosa
para ocupar o posto de Cavaleiro de Ouro de Virgem, ele pode muito bem
achar dois Cavaleiros de Prata são suficientemente poderosos para enfrentar
um inimigo como Baal.

- Baal?! Mas...como você...?

- Sim, Frixo, eu já sei quem é o inimigo do Santuário. Só por que eu sou


poderoso fisicamente não significa que eu seja aleijado de inteligência.

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- Assim como o fato de eu ser mulher não me impede de ser poderosa o
suficiente para me tornar um Cavaleiro de Ouro – disse uma voz suave vinda
do interior da Casa de Áries.

Caminhando com suavidade, a guardiã da sexta Casa Zodiacal se


aproximava. Seu rosto estava oculto por uma máscara dourada, que tinha um
semblante calmo e um leve sorriso. Seu corpo era alto e esguio, com uma pele
alvíssima, onde se destacavam seus longos cabelos lisos e ondulados, que
pendiam até a altura da cintura. Ao mesmo tempo em que ela emanava paz e
feminilidade, também emitia um poderoso cosmo.

- Humpf! Parece que marcaram uma reunião aqui na Casa de Áries, e todos os
Cavaleiros de Ouro foram convidados. Será que vai demorar muito até os
outros nove se juntarem a nós? – zombou Gerion. O que você faz fora do seu
posto, Maria?

- Não me lembro de sua promoção a Grande Mestre, Gerion – respondeu a


Amazona de Virgem -. E, caso eu esteja enganada, ou tenha desaprendido a
contar, você não está na Casa de Touro, onde acredito ser o seu lugar.

Frixo e Izzak riram, e esperaram que o Cavaleiro de Touro


demonstrasse uma grande raiva pela zombaria, mas se enganaram. Gerion
apenas esboçou um brando sorriso, que conferiu ao seu rosto severo um tom
jovial. De fato, parecia estranho que o gigante de ébano que ali se encontrava,
com feições duras e olhar penetrante, fosse capaz de sorrir.

- Maria, assim como eu não sou o Grande Mestre, você também não é. Porém,
eu estou muito mais próximo disso do que você, como deve ser do seu
conhecimento. Entretanto, diferente de você, eu tive a permissão do velhote
para deixar o meu posto.

- Já lhe disse para moderar suas palavras ao se referir ao Grande Mestre,


Cavaleiro de Touro. E, caso seja de seu interesse, foi o próprio Grande Mestre
que me mandou vir até aqui, para levar Izzak até sua presença.

19
A voz de Maria assumiu um timbre de ameaça ao se dirigir a Gerion.
Parecia ser clara a divergência de opiniões que os dois tinham a respeito do
líder do Santuário. Ao passo que Gerion não escondia o seu descontentamento
com relação ao Grande Mestre, Maria parecia ter uma obediência e um
respeito acima do normal por ele. Maria acreditava que Gerion só tinha essa
postura por ambicionar o posto de líder do Santuário, já que ele era o favorito a
esse título por ser o mais poderoso, honrado e justo entre os Cavaleiros de
Ouro daquela geração, embora o seu senso de justiça e honra fosse
questionável quando se levava em conta suas opiniões sobre o Grande Mestre.

- Frixo – disse a Amazona -, o Mestre pede para que você reassuma sua
posição na Casa de Áries, o mesmo pedido que ele faz a você, Gerion,
referindo-se à Casa de Touro. Izzak, você deve me acompanhar.

Dito isso, Maria e Izzak atravessaram a Casa de Áries, e se dirigiram ao


Salão do Grande Mestre. Enquanto eles subiam as escadarias, Frixo
questionava o Cavaleiro de Touro.

- Devo admitir, Gerion, que também estranhei a decisão do Mestre em enviar


Komodo e Izzak para aquela missão. Se não fosse por mim, os dois teriam
morrido.

- Sim, Frixo, eu sei disso. É exatamente por esse tipo de ação que eu me
pergunto se o outrora sábio e poderoso Girtab de Escorpião não está ficando
velho demais.

Os dois ficaram ali, contemplando a chuva, enquanto ponderavam se o


Grande Mestre ainda seria a pessoa adequada para guiar o Santuário nesses
tempos. Porém, os dois não tinham percebido que estavam sendo observados
por alguém disposto a destruí-los.

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CAPÍTULO IV: Os Pecados

Ao longe, podiam-se divisar quatro grandes torres pontiagudas, firmes


colunas pétreas resistindo à forte e constante chuva que caia. Com calma e
graciosidade, alguém que trajava um pesado manto negro se dirigia até a bela
construção que encimava uma pequena elevação no terreno. Alguns guardas
se dão conta da presença desta figura, e assumem uma postura mais firme na
guarda do pórtico que guardavam. Um deles toma a dianteira e,
desembainhando sua cimitarra, grita.

- Identifique-se!

Foi o último movimento que aquele homem fez, e os demais que


tentaram seguir seu exemplo acabaram tendo o mesmo fim: foram rasgados
por algo afiado e quase invisível, pois apenas um borrão prateado era
distinguido no ar antes de serem atingidos. Em pouco tempo, muitos outros
guardas acorreram até o pórtico, mas já não havia ninguém lá.

Depois de caminhar um pouco, e de matar muitos outros que tentaram


impedi-la, Astarte chega até a entrada da Catedral de Santa Sofia. Abrindo as
pesadas e belas portas de cedro, ela adentra o local, caminhando em direção
ao altar. O local estava lotado, com muitas pessoas ajoelhadas prestando
reverência à algo localizado a oeste, mas que não estava visível ali.
Rapidamente, algumas pessoas viraram as cabeças para saber quem
interrompia sua oração, e ficam estarrecidos com a visão de Astarte
caminhando sensual e decididamente até o homem que estava ajoelhado no
patamar do altar.

- Pare com isso – disse Astarte -. Até quando vais fingir que crê nesse deus?

O homem a quem ela se dirigia era gordo e corpulento, e possuía uma


basta barba levemente grisalha, tendo um turbante encimando a cabeça. Ele
olha para ela e abre um largo sorriso, e em seguida se levanta, fazendo um
gesto largo com a mão, dispensando todos os presentes. Assim que todos

21
saem, ele faz uma reverência a ela, e indica um trono situado no centro do
altar.

- Sente-se, divina Astarte – disse o homem com uma voz pastosa, enquanto
seus olhos corriam pela catedral -. Não esperava vê-la tão cedo. Onde está
Eliphas, minha senhora?

Astarte caminhou até o trono, mas não se sentou. Parou ao lado dele, e
olhou o homem de meia idade que estava a sua frente, medindo-o de cima a
baixo, com uma expressão de desgosto no seu belo rosto.

- Eliphas está morto, Bayezid. Além do sangue de quem fez o selo, também era
necessária uma grande quantia de sangue fresco para realizar o ritual de
libertação do meu pai. Mesmo após tantos anos, o Selo de Davi ainda estava
forte.

- Então...então ele está livre?

- Sim, eu o libertei.

- E onde ele está?

- Estou aqui, mortal.

Uma grave e gutural voz ecoou no templo, e Bayezid, visivelmente


assustado, olhava de um lugar ao outro, procurando pelo dono da voz. Astarte
olhou em direção ao trono, com um brilho de fascínio quase doentio nos olhos,
e então prostrou-se de joelhos em frente ao trono. Ali, começava a materializar-
se uma densa sombra com contornos humanos, mas sem formas ou rosto
nítidos. No instante em que se deu conta da presença daquela sombra, o
homem também se colocou de joelhos. Ele mirava o chão, e o suor afluía em
seu rosto redondo, escorrendo até sumir em sua barba.

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- Este é o mortal com quem tu te aliaste para trazer-me de volta, minha filha?
Creio que deve haver outros melhores nestes tempos. Quem é ele?

-Meu sagrado pai – respondeu Astarte -, este homem é Bayezid II, e é o Sultão
do Império Otomano.

- Império Otomano....e o que viria a ser este império? Não há outros mais
poderosos?

- Receio que não haja, meu pai. Ainda sim, mesmo que houvesse, acho difícil
que outros quisessem se aliar a nós, pois eles cultuam deuses que se
opuseram a nós no passado.

- Este mortal estava prestando reverências a outro deus – retorquiu Baal com
uma voz ameaçadora -. Se ele pode querer servir a dois senhores, outros
imperadores de maior nobreza podem servir a mim e a outro deus
simultaneamente.

- Meu...meu senhor...eu acredito que...

- Não interessam-me as tuas crenças, medíocre mortal! – interrompeu-o Baal.


Apenas interessa-me saber a razão de teres libertado a minha filha e,
consequentemente, libertado a mim.

- Meu sagrado pai, eu irei explica-te. O pai deste homem, Mehmed II, recebeu
uma promessa de um sábio homem chamado Eliphas, dizendo que, caso eu
fosse liberta de minha prisão, o Império Otomano seria conduzido a uma glória
sem precedentes. De fato, quando Eliphas rompeu o lacre que me aprisionava,
eu auxiliei Mehmed a conquistar esta cidade. Nas décadas seguintes, eu e
Eliphas buscamos formas de libertá-lo, e encontramos uma que seria perfeita,
envolvendo o sangue daquele que te aprisionou.

- Davi morreu no mesmo instante em que eu fui aprisionado – interrompeu-a


Baal.

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- Sim, meu pai. Entretanto, como deves estar recordado, Davi havia abdicado
de suas funções como Cavaleiro de Atena, e abandou o Santuário para
constituir uma família. Foi com o sangue de uma de suas descendentes que eu
pude libertar-te. Entretanto, só o sangue puro de um descendente de Davi não
seria o suficiente para a conclusão do ritual. Para dar-te a possibilidade de um
invólucro semi-corpóreo, era necessário um dos velhos sacrifícios de sangue
que lhe eram ofertados no passado. Eliphas, para sua própria infelicidade,
desconhecia essa parte do plano, e foi do sangue dele que me vali.

- Somente isto tu prometeste a estes mortais, filha minha? Glória sem


precedentes?

- Não, amado pai. Prometi, atrevendo-me a supor o que se passa em tua


magnífica mente, algo em teu nome.

- E que seria isso? – indagou Baal, sua voz agora demonstrando insatisfação e,
ao mesmo tempo, curiosidade.

- Prometi que destruiríamos dois adversários que Mehmed e o senhor tem em


comum: o Santuário de Yeshua e o Santuário de Atena.

Por um breve instante, o silêncio imperou no local. O ar parecia


carregado de tensão e medo, pois Astarte agora pensava ter sido um erro
presumir os interesses que Baal poderia ter. Entretanto, passados alguns
segundos – que pareciam ter se estendido por horas a fio -, o silêncio foi
quebrado por uma gélida e ressoante gargalhada de Baal. O som, que deveria
expressar alegria, só serviu para intensificar o medo do sultão Mehmed, que
sentiu os cabelos de sua nuca se eriçarem, bem como um gélido tremor a
percorrer sua espinha.

- Excelente, minha filha. De fato, eu ficaria irritado com tua ousadia em


prometer algo em meu nome, mas há um fato, ocorrido há pouco, que me induz
a concordar com o teu estratagema.

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- E...e o que seria, meu pai? – perguntou Astarte, com a voz hesitante,
enquanto colocava-se em pé.

- Refiro-me ao que foi dito por aquele mortal guerreiro de Atena: Girtab ainda
vive.

- Girtab? Quem é Girtab? – atreveu-se a perguntar o sultão. Seu erro em se


meter na conversa entre Baal e Astarte ficou evidente no mesmo momento em
que as palavras haviam deixado seus lábios. Em um átimo, Mehmed foi
erguido do chão, e agora flutuava no alto da cúpula da catedral, calculando as
chances de sobreviver, sem ferimentos graves, a uma queda daquela altura.

- Girtab, seu insolente mortal – respondeu Baal, em um tom de desprezo -, é o


maior inimigo que já tive. É ele o responsável pelo meu aprisionamento, e eu
jurei vingar-me. Por uma grande ironia, e por um motivo que não sei explicar,
ele ainda está vivo, e parece estar a frente do Santuário de Atena.

Terminando de dizer isso, Mehmed foi trazido de volta ao solo, sendo


largado bruscamente quando estava a dois metros do chão, o que resultou em
uma dolorosa queda para o sultão. Foi Astarte quem rompeu o silêncio.

- Meu divino pai, devemos, então, atacar o Santuário agora mesmo, para que
tu possas ter tua vingança?

- Acaso os anos de clausura drenaram tua capacidade de raciocínio, minha


filha?

O tom de Baal agora era, decididamente, ameaçador. Astarte recuou


alguns passos antes do pai tornar a falar.

- Seria tolice atacar o Santuário agora. Primeiro, porque somos apenas dois.
Segundo, porque não assumi uma forma física, pois não encontrei um
hospedeiro digno de tal honra. Terceiro, porque Girtab já sabe que eu voltei e,

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neste exato instante, já deu ordens para tentar impedir-me de conseguir meu
intento. Além desses pontos que expus, minha filha, pergunto-te por qual
motivo eu deveria expor-me aos riscos e à desonra de matar reles mortais se
posso ordenar a outros esta tarefa?

- Meu pai, por acaso refere-te aos...

- Aos Marechais do Inferno, minha filha. Os deuses que juraram servir ao


poderoso Lúcifer, e que foram aprisionados no [i]Infernum[/i] junto a mim
quando Yeshua e Atena venceram a primeira batalha.

“Dentro do exército de deuses e espíritos que juraram servir a Lúcifer, há seis


que se destacam, e cada um deles corresponde a um dos maiores pecados
dos humanos: Asmodeus, a Luxúria; Mammon, a Ganância; Belphegor, a
Preguiça; Azazel, a Ira; e Leviatã, a Inveja. Eles são os Marechais do Inferno.”

- Me...meu senhor...e...e os outros dois? Não são sete os pecados?

Baal riu outra vez, o que surpreendeu Mehmed, que esperava ser
levitado até o teto mais uma vez.

- Sim e não. Muitos são os pecados possíveis às práticas humanas, mas há


sete que são considerados os principais. Assim sendo, há, sim, dois outros
pecados: a Gula e o Orgulho, seu mortal insolente. Eu represento o primeiro, e
o grande Lúcifer representa o segundo, que é o mais poderoso dos sete. Eu
sou o braço direito do poderoso Lúcifer e, sendo o líder dos Marechais, exerço
uma função que se equivale a do Grande Mestre do Santuário. Assim sendo,
eu formarei e conduzirei as hostes infernais a uma batalha contra os Santuários
de Atena e Yeshua, e irei liquidar pessoalmente Girtab de Escorpião. Para
tanto, necessito libertar meus companheiros, algo que já teve início no instante
em que fui liberto. Entretanto, não sei onde estão todos, e acredito que o tal
Eliphas seria de utilidade agora, minha filha.

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- Não necessariamente, meu pai. Há outro homem nesta cidade que tem vasto
conhecimento sobre os selamentos dos Marechais, e, ironicamente, ele
representa os seguidores de Yeshua. O nome dele é Néfon, e jurou auxiliá-lo
em tudo o que tu desejasses, meu pai.

- Ótimo. Traga-o até mim amanhã. Por ora, tenho de ir a outro lugar, pois
Mammon enfrenta um perigo para o qual ainda não está plenamente
preparado, pois despertou a pouco.

- E que perigo seria esse, meu pai?

- Há um guerreiro de Atena preparado para destruí-lo assim que ele romper


seus grilhões no Cáucaso.

Dito isso, Baal tornou a ser invisível, deixando Astarte e Mehmed


sozinhos.

27
CAPÍTULO V: A Ganância

A chuva havia se transformado em uma tempestade de neve, devido à


baixa temperatura do cume das montanhas. Um garoto, com feições tristes e
belas, galgava as rochas rumo ao topo, com seu manto já encharcado a lhe
pesar no corpo, embora o peso extra não significasse nada para ele. O frio
enregelante, que poderia matar qualquer pessoa normal, parecia não lhe
causar nada. Seu olhar, fixo em algo que não era visível, como o de alguém
que mira o horizonte calculando sua infinitude, era determinado. Sua pele
branca, agora com os malares tingidos de vermelho devido ao frio e ao esforço,
combinavam harmoniosamente com seus olhos dóceis e azuis, emoldurados
por cabelos curtos e loiros, que lhe caiam por sobre as sobrancelhas em uma
basta franja.

- Minha primeira missão como Cavaleiro – pensava ele. Não posso falhar, pois
o Grande Mestre disse que eu fui escolhido especialmente para ela.

Perdido em pensamentos de sua infância, o jovem Cavaleiro não se deu


conta que a temperatura estava mudando e que, paulatinamente, o frio cedia
lugar a um calor cada vez mais intenso. Quando finalmente ele se deu conta
disso, encontrava-se defronte a uma caverna, de onde uma estranha
luminosidade rubra emanava. Deixando de lado o medo (e também o bom
senso), ele entrou na caverna. Conforme caminhava, percebia que havia
muitos pássaros negros acomodados na caverna e, quando estava quase
chegando ao ponto de origem da aura quente que ele sentia, avistou uma
massa disforme estendida sobre uma mesa de pedra.

Aproximando-se, ele percebeu que havia estranhas marcas gravadas


naquela rústica mesa, embora alguns desses símbolos estivessem
desgastados. Olhando com atenção, o que havia lhe parecido uma massa
disforme era, na realidade, um homem, trajando belas vestes de seda,
ricamente ornamentadas com fios de ouro e pedras preciosas. A primeira vista,
ele parecia morto, mas logo ele abriu os olhos, de um escuro aveludado, e
colocou-se de pé. O jovem e ele ficaram se encarando por algum tempo, até

28
que, repentinamente, os olhos escuros tornaram-se vermelhos, e uma energia
violenta emanou do seu corpo.

Erguendo as mãos e crispando-as de forma que se tornassem


semelhantes às garras de um grande pássaro, ele investiu contra o jovem
Cavaleiro, liberando uma grande torrente de cosmo-energia.

Akbaba Pençeleri! (Garras de Abutre)

O garoto foi arremessado com grande violência contra as paredes da


caverna, e caiu no chão com um grande estrépito. O homem que lhe desferiu o
golpe virou de costas e, quando fez menção de deixar o local, foi surpreendido
pela voz do garoto.

- Você agiu de forma extremamente covarde, me atacando de surpresa


enquanto eu estava preocupado, achando que você era um inocente ferido.
Diga-me agora, quem é você?

Uma risada cristalina ecoou na caverna, fazendo com que muitos


pássaros levantassem vôo e fossem prostrar-se próximos ao inimigo. Aquela
risada esbanjava confiança e divertimento.

- Quem sou eu? É uma pergunta interessante, meu caro rapaz. Posso dizer
que sou a fonte das belas coisas do mundo. Sou a vontade que move os
homens a buscar sempre mais. Sou o espírito que habita os cofres e os
corações dos homens poderosos. Sou a riqueza. Sou o poder. Sou o grande
Mammon, a personificação Ganância. Agora diga-me quem é você, menino!

- Não tenho tantos adjetivos para me descrever, e não me considero tão


importante quanto você se considera. Eu sou Lupercus Baphomet de Molay,
Cavaleiro de Ouro de Capricórnio.

Agora era visível que havia algo dourado por baixo dos retalhos que
sobraram do que outrora havia sido o manto de Lupercus. Na verdade, agora

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parecia impossível a Mammon não ter se dado conta do forte brilho dourado
que agora era visível sob os rotos pedaços de pano que ainda pendiam do
corpo do jovem. Contudo, não foi a armadura dourada que impressionou
Mammon, mas sim o nome do jovem.

- Você disse que se cham...

- Não interessa como eu me chamo. Fui enviado pelo Santuário para derrotá-lo,
e é isso que farei.

Cri de Pã! (Grito de Pã)

Com um movimento rápido, Lupercus retirou uma siringe dourada de


trás de seu dorso, e levou-a próxima aos lábios. Seu cosmo intensificou-se
rapidamente, e ele começou a soprar o instrumento, emitindo um som que
oscilava rapidamente entre graves e agudos, e que dava a impressão de haver
muitas pessoas chorando e gritando em desespero. Por fim, com um sopro
mais intenso, carregado com um cosmo mais potente, um som assustador
ressoa do instrumento de Lupercus.

Enquanto o capricorniano tocava, a mente de Mammon era invadida


pelo som, e ele sentia-se aturdido e amedrontado até que, com a última nota
emitida pelo instrumento, ele cai de joelhos, com uma expressão de intenso
pavor no rosto.

Lupercus afastou o instrumento dos lábios e avaliou a cena a sua frente.


Caminhando lentamente até Mammon, ele ergueu o braço direito em um
movimento retilíneo e firme, e concentrou sua energia nele. Com uma
velocidade enorme, ele desceu o membro como se ele fosse uma espada, ao
mesmo tempo em que bradava.

Excalibur!

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Porém, ao verificar os estragos causados pelo golpe, Lupercus
encontrou o lugar vazio, mas com um profundo e preciso corte no exato lugar
em que, instantes antes, estivera o corpo de Mammon. Outra vez, a risada
cristalina ecoou pela caverna, e a voz de Mammon denunciou sua posição.

- É um belo golpe, mas jamais funcionaria comigo completamente. Eu sou um


deus, e não tenho medos. Entretanto, esse corpo que estou usando como
receptáculo possui alguns medos, e foi a esses medos que o corpo reagiu. Se
eu já estivesse plenamente desperto, nada teria me acontecido, mas faz pouco
tempo que dominei este mortal, e ainda não o controlo por completo.

- Sendo assim – retorquiu o jovem loiro -, não lhe darei tanto tempo dessa vez.

Cri de Pã!

Mais uma vez, Lupercus levou a siringe dourada aos lábios e começou a
tocar sua canção. Porém, assim que ele deu o primeiro sopro, muitos dos
abutres que estavam na caverna começaram a voar ao redor dele, batendo
suas asas com intensa força. A sua frente, Mammon sustentava um sorriso
zombeteiro, ao invés da expressão de pavor que deveria estampar seu rosto.
Tão repentinamente quanto começou a tocar, Lupercus parou, e encarou o
adversário.

- Seria muita presunção esperar que o mesmo golpe funcionasse comigo –


disse o demônio -. Sua técnica se baseia no som, e a corrente de ar criada
pelos meus pássaros impediu que ele chegasse até mim.

- Realmente foi uma defesa inteligente, mas eu não possuo apenas este golpe.
- Assim como eu também não – retorquiu Mammon, e seu tom de voz agora
era mais grave -. Não usei muito poder no meu primeiro ataque, mas isso não
significa que eu só saiba fazer aquilo. Você sentirá o poder das asas de um
grande pássaro negro.

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Mammon abriu os braços como se fossem duas grandes asas. Sua
energia hostil começou a ficar mais intensa conforme ele agitava os membros,
em um gesto semelhante ao bater de asas de um pássaro. Olhando a sua
volta, Lupercus percebeu que os grandes abutres também agitavam as asas,
espalhando penas por todo o chão.

Siyah Tüy Fırtına! (Tempestade de Penas Negras)

Repentinamente, uma corrente de vento começa a soprar contra o


capricorniano, e as penas são arremessadas contra o seu corpo, rasgando sua
pele como se fossem lâminas agudas. O sangue começa a escorrer, e as
penas começam a grudar em seu corpo e, pouco depois, as penas começaram
a grudar até mesmo onde não havia sangue. Lupercus tentava se livrar delas,
mas o vento que se arremetia contra ele era muito intenso, dificultando seus
movimentos. Ele começa a sufocar, pois as penas impedem sua respiração, e
uma camada cada vez mais grossa de penas começa a grudar em seu corpo,
formando um bizarro esquife de plumas negras.

- Bem – disse Mammon para si -, este é o fim de um jovem e tolo Cavaleiro de


Atena. Com ele já são dois da mesma fam... mas o que é isso!?

O cosmo de Lupercus se eleva incrivelmente, e as penas começam a


queimar e virar cinzas devido ao forte calor que seu cosmo depreendia. Uma
linha vertical de luz dourada se forma e, em seguida, rompe a prisão que
imobilizava o jovem Cavaleiro.

Excalibur!

O facho de luz corta tudo como uma espada, e é tão potente que chega
a atingir o corpo de Mammon, abrindo-lhe um profundo corte no peito, de onde
começa a esvair sangue em abundância.

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- Co..co...como você conseguiu sobreviver? – perguntou Mammon em um tom
aterrorizado - Como conseguiu me atingir de forma tão surpreendente, sem que
eu pudesse reagir.

- A resposta para teus questionamentos – respondeu uma voz grave e gutural,


que agora preenchia a caverna junto com um cosmo incrivelmente poderoso -,
meu velho amigo, será dada quando deixarmos este local.

Um vulto negro e disforme, como uma grande sombra humanóide,


chegava ao local onde eles lutavam. A energia que ele emanava era
compatível com o terror que transmitia.

- Baal! Então é por isso que eu fui liberto: chegou o momento!

- Eu odeio interromper o reencontro de vocês – disse Lupercus, com um quê de


ironia na voz -, mas espero não terem esquecido que eu estou aqui. Quem é
você?

- Quem sou não interessa a ti. É a segunda vez que um Cavaleiro de Atena
cruza meu caminho hoje, e não permitirei que isto se repita uma vez mais.

Com um movimento rápido e brusco, Lupercus foi preso na parede,


completamente impossibilitado de realizar qualquer movimento.

- Termine com isso, Mammon – ordenou Baal.

Com dificuldade, Mammon ergueu-se do chão, e ergueu seu punho


como se fosse uma garra.

Akbaba Pençeleri!

Dessa vez não havia como Lupercus escapar. Sentia que seu fim tinha
chegado prematuramente, e sentia o peso da vergonha por ter falhado na

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missão confiada pelo Grande Mestre. Envergonhado e assustado, ele fechou
os olhos e se resignou com o destino que se apresentava. Era o seu fim...

Sem saber como, Lupercus se deu conta que ainda estava vivo, sem ter
sofrido um único arranhão. Mas como? Abrindo os olhos, Lupercus teve a mais
feliz das surpresas: parado de costas para ele, imponente como uma grande
estátua de ébano e ouro erguida em honra a um poderoso guerreiro, estava a
sua salvação.

- Quem és tu – indagou Baal -, para te atreveres a ficar entre um deus e aquele


que receberá a punição divina?

Com uma expressão de pétrea e incandescente fúria no rosto, o homem


manteve sua mão, intacta, erguida no ar, enquanto respondia com uma voz
retumbante.

- Eu sou Gerion, o Cavaleiro de Ouro de Touro, e hoje serei eu quem irá


aplicar, em vocês, os castigos que merecem.

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[b]CAPÍTULO VI: [i]O Gigante Dourado[/i][/b]

- Outro Cavaleiro de Ouro. – escarneceu Baal, enquanto soltava o corpo de


Lupercus, que caiu com estrépito no chão rochoso - Parece-me que o
Santuário de Atena está em desespero. Que tolice enviar dois guerreiros para o
abate.

A expressão de fúria no rosto de Gerion pereceu se intensificar.

- Não fui enviado pelo Santuário. Se eu tivesse sabido antes que haviam
enviado este menino para uma batalha como esta, certamente eu teria
impedido.

Lupercus levantou-se e caminhou em direção a Gerion, e fez menção de


agradecê-lo. Porém, Gerion desferiu um rápido e potente golpe no jovem
Cavaleiro, que, por já estar ferido e cansado da batalha contra Mammon, caiu
inconsciente no chão. Porém, nos últimos instantes de consciência, conseguiu
discernir um quase inaudível “desculpe-me” saindo dos lábios do taurino.

- Ora, ora, o que temos aqui! Parece que Atena possui um rebelde entre os
seus! Imagino o que será que ela dir...

- Não tenho o mínimo interesse em saber o que você imagina ou deixa de


imaginar – interpôs Gerion. O menino apenas iria me atrapalhar. Agora, o alvo
sou apenas eu.

O cosmo de Baal tornou-se mais intenso e quente, como se as palavras


do Cavaleiro tivessem o ofendido.

- Como te atreves a interromper-me, mortal? – bradou Baal - Não dei-lhe


permissão para fal..

- E eu não me recordo de ter pedido qualquer tipo de permissão! Não vim até
aqui para perder meu tempo falando com você.

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- Claro que não.

A voz de Baal ficou mais calma, porém, mais ameaçadora. Era como se
o ar tivesse se impregnado de tensão, e a atmosfera se tornou mais pesada.
Em um átimo, uma rajada cósmica arremeteu contra Gerion, mas ele a
bloqueou com uma mão.

- É isso? Isso é todo o poder que você tem para usar contra mim? Isso é poder!

Em um movimento repentino, Gerion deslocou-se contra o vulto de Baal,


e desferiu um poderoso soco no local onde ficaria o rosto. Entretanto, seu
punho apenas transpassou as sombras.

- Humpf! Como te atreves a levantar o punho contra um deus?

- Acho que não é a primeira vez que alguém faz isso contra você. Sendo assim,
você sempre faz essa pergunta a todos que te atacam? Você disse isso
quando o Grande Mestre te derrotou no passado?

- Como te atreves?! – a voz de Baal tornara-se mais alta do que antes, era
agora quase um grito, e parecia haver raiva e ressentimento em suas palavras
- Achas que poderá repetir o feito dele?!

Gerion começou a rir alto, e, virando-se de costas para Baal, afastou-se


dele.

- Realmente eu não tenho o mínimo interesse no que ele fez ou deixou de


fazer. Só falei isso para irritar você, e parece que consegui.

Ele continuou rindo, mas seu riso foi abafado pelo grito de Mammon.

[i]Akbaba Pençeleri![/i]

36
Um flash dourado correu pela caverna, e Mammon foi arremessado para
o alto, chocando-se contra algumas estalactites. Assim que o corpo começou a
se precipitar para baixo, foi arremessado contra a parede onde, minutos antes,
Lupercus estivera preso.

- Quanta pretensão e covardia. – disse Gerion em um tom que mesclava


desprezo e sarcasmo – Me atacar pelas costas usando um golpe que eu já
conhecia.

- És mais poderoso do que parece a primeira vista, Gerion de Touro. Se


ingressasse nas fileiras do meu exército, eu poderia tornar-lhe o mais poderoso
dos mortais. Poderia dar-lhe a imortalidade. Poderia dar-l...

- Eu ficaria grato se você me desse o seu silêncio. Puxa vida, você fala demais.

O silêncio tomou conta do ambiente. Era evidente que Baal estava


ofendido com a insolência do gigante taurino, mas ele já percebera que Gerion
não seria um adversário tão simples quanto Lupercus, não enquanto ele não
tivesse um corpo físico a sua disposição. Ele precisava de tempo, tempo até
que o passo seguinte do plano de Astarte se concretiza-se.

- Bem, Gerion de Touro, permitirei que partas com o seu amigo de volta ao
Santuário de Atena. Vá agora.

Mais uma vez, Gerion começou a rir.

- Parece que você não entendeu bem: eu não vim aqui para salvar o menino,
eu vim para destruí-lo, Baal, e acabar com isso de uma vez por todas.

Dessa vez, foi o riso de Baal que preencheu o ambiente. Era uma risada
fria, carregada de escárnio e surpresa.

- Não seja tolo!

37
Assim que Baal terminou de falar, o gigantesco corpo de Gerion foi
arremessado contra a parede rochosa da caverna, causando um intenso
tremor. Algumas estalactites se desprenderam do teto, e caíram no chão.
Porém, no segundo seguinte, elas estavam suspensas no ar, mirando o corpo
de Gerion como flechas que miram um alvo.

- Essas paredes são realmente fortes. – disse Gerion, que mantinha um sorriso
nos lábios - Quantas vezes houve pessoas sendo arremessadas contra elas
hoje?

- Para um homem próximo da morte – retorquiu Baal -, tu pareces manter um


ótimo humor. Adeus, Cavaleiro de Atena.

As lanças de pedra foram arremessadas contra Gerion, que estava


incapacitado de se mover. Entretanto, desafiando o rumo dos acontecimentos,
elas pararam antes de atingi-lo.

- Mas...como...?

- Você acha que é o único a ter poder sobre a matéria, Baal? Seu egocentrismo
será o começo da sua derrota.

Agora, as estalactites giraram no ar, e o alvo era Baal. Elas voaram


contra ele mas, assim como ocorrera com o punho de Gerion, elas
simplesmente atravessaram as sombras que formavam a silhueta do seu
corpo.

- Tu não tens como atingir-me, guerreiro de Atena. Eu sou invulnerável

A segurança na voz de Baal não era convincente o suficiente, e Gerion


percebeu isso.

38
- Fisicamente, você é invulnerável. Porém, quem disse que eu me limito ao
poder físico? Só porque sou grande e possuo um corpo forte, não quer dizer
que eu só uso a força bruta.

[i]Great Horn Ghost![/i] (Grande Chifre Fantasma)

Um grande deslocamento de ar denunciou que algo estava se


movimentando, embora Gerion não tivesse feito gesto algum, pois permanecia
preso à parede. Baal esperou sentir, outra vez, algo transpassar inutilmente o
seu corpo etéreo. Porém, ele sentiu um grande impacto atingi-lo, como se ele
possuísse um corpo físico. Naquele instante, Baal sentiu duas coisas que há
muito não sentia: dor e medo.

- Isso é impossível. Como isso pode estar acontecendo? Tu és apenas um


humano, e eu sou um deus!!

- A mesma ladainha novamente. Será que não aprendeu nada da última vez
que lutou contra um Cavaleiro de Atena? Já não deveria ter percebido que para
nós, guerreiros de Atena, não interessa se você é um deus ou um ser humano?

Com um brusco movimento, Gerion se liberou da pressão telecinética


exercida pelo inimigo. Olhando agora, Baal enxergava no gigante negro e
áureo algo que não havia percebido anteriormente. Baal enxergava que ele
emanava uma aura dourada, intensa e quente. Baal enxergava que o seu
corpo alto e forte, agora que ele assumira uma postura ereta, mostrava-se
resistente e ameaçador, assim como as ondas de um mar em fúria ao se
abaterem contra uma muralha rochosa à beira da praia. Baal enxergava que
ele era, verdadeiramente, um touro, um gigantesco touro dourado, forte e
perigoso como um animal selvagem com o qual é perigoso se mexer. Ali, a sua
frente, Baal enxergava, pela primeira vez em muito tempo, um inimigo
perigosíssimo, com potencial suficiente para destruí-lo.

Não era hora de subestimar o adversário a sua frente. Chegara o


momento de usar o seu poder real, pois mesmo que ainda não fosse possível

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usar seu poder em toda a plenitude, ele ainda era poderoso o suficiente para
enfrentar e até mesmo derrotar Gerion, mas somente se lutasse a sério.

- Não penses que sou um adversário tão simples quanto Mammon – disse
Baal, e agora havia determinação em sua voz -. Se ele estivesse com acesso
total ao seu poder, certamente tua luta com ele não teria sido tão rápida, e eu
não teria de interpor-me entre ele e o outro jovem Cavaleiro contra o qual ele
lutava. Querias enfrentar-me? Pois então prepara-te para sentir o poder de um
Deus!

O vulto juntou suas mãos palma à palma, como alguém que se prepara
para rezar. Sua cosmo energia mudou radicalmente, e uma espécie de
tempestade magnética começou a se formar. Lentamente, Baal começou a
afastar suas mãos, e podiam-se ver raios passando entre elas. Gerion percebia
que a situação poderia mudar a qualquer instante, e também preparou o seu
golpe.

[i]Yarıçap Ilah![/i] (Raio Divino)

[i]Great Horn![/i] (Grande Chifre)

Os dois lançaram seus golpes ao mesmo tempo, e o choque entre


ambos foi tremendo. O corpo de Gerion foi projetado para trás, e ele foi
obrigado a recuar um passo, mas o vulto corpóreo de Baal continuava imóvel.
Ao passo que o golpe de Gerion já havia sido lançado e não havia obtido
resultado, o golpe de Baal continuava em atividade: muitos raios saiam de suas
mãos, e atingiam tudo o que estava ao seu alcance.

O taurino teve de correr para impedir que uma rocha desabasse sobre o
corpo de Lupercus, e acabou sendo atingido por um dos raios projetados por
Baal. A sensação era horrível: uma poderosa corrente elétrica passava por
todo o seu corpo, e ele sentia seus músculos estirarem, seus ossos trincarem,
sua pele e sua carne queimar. O gigante caiu de joelhos, e a sua armadura de

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ouro, cuja finalidade seria protegê-lo, acabou por prejudicá-lo, pois intensificou
a dor e serviu de condutora à corrente elétrica.

- Hahaha, como se sente agora, Cavaleiro de Touro? Como se sente frente ao


poder de um deus?

Com dificuldade e incrível força - tanto física quanto de vontade -, ele se


pôs de pé. Baal intensificou o seu golpe, mas Gerion não arrefeceu. Erguendo
o punho direito fechado, o Cavaleiro de Touro concentrou seu cosmo naquele
local, e bradou:

[i]Hammer Bahamut![/i] (Martelo Bahamut)

A potência do golpe foi tremenda. O impacto causado pela colisão dos


dois golpes fez com que o teto começasse a desabar, e os raios oriundos do
golpe de Baal cessaram. Percebendo o perigo do que havia ocasionado ao
usar seu golpe mais potente, embora não com poder total, Gerion correu para
apanhar o corpo de Lupercus, e precipitou-se a grande velocidade para fora da
caverna. Quando estava prestes a deixar o local, o Cavaleiro deu uma rápida
olhada para trás: Baal e Mammon haviam sumido.

Tendo escapado da caverna antes que ela desmoronasse, Gerion


observava o jovem Lupercus, agora deitado sobre o solo nevado do alto da
montanha. Mesmo tendo travado uma batalha perigosa, não era Baal ou
Mammon que estava em seu pensamento. Muito menos o jovem Lupercus. Ele
só conseguia pensar no Grande Mestre, e em como suas últimas ordens
haviam posto em risco tantas pessoas. Era necessária uma conversa direta
com ele, e essa conversa não poderia esperar mais.

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[b]CAPÍTULO VII: [i]O Risco de Atena e A Fúria do Leão Negro [/i][/b]

O fraco sol do poente entrava pelo Salão do Grande Mestre, dando um


tom purpúreo ao mármore branco que revestia o local. Sentado em seu trono, o
Grande Mestre estava perdido em pensamentos, segurando um rústico cálice
de madeira do qual bebericava alguns goles de água. Seus cabelos brancos
como o algodão pendiam-lhe sobre os ombros e, somados às rugas de suas
mãos, conferiam-lhe um aspecto venerável, como o de um ancião que já
vivenciou muitas coisas e sobreviveu a muitas batalhas.

Repentinamente, sua divagação é interrompida pela entrada de três


pessoas: uma mulher de cabelos loiros trajando uma resplandecente armadura
dourada, e dois homens trajando armaduras prateadas, um deles jovem e com
longos cabelos prateados, trazendo o corpo de alguém nos ombros, e o outro
mais velho e com a pele amorenada.

- Grande Mestre – disse Sacros de Altar, ajoelhando-se perante o líder do


Santuário -, Maria de Virgem e Izzak de Triângulo estão aqui para vê-lo,
conforme ordens suas.

Girtab repousou o cálice no braço do trono, cruzou as mãos sobre o colo


e suspirou profundamente.

- Obrigado por vir tão rápido para cá, Izzak – disse o Grande Mestre com
simplicidade, sua voz cristalina reboando no salão. – Sei que você passou por
uma situação de grande perigo, mas fico satisfeito em ver que retornou, e
trouxe consigo o corpo do jovem Komodo.

- Foi uma batalha difícil para ele – respondeu Izzak. – Se ele tivesse me
escutado, provavelmente ainda estaria vivo. Sinto muito pela morte dele.

- Não tanto quanto a irmã dele – retorquiu o Grande Mestre, e um tom casual.

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Uma expressão de surpresa tomou a face de Izzak. Ele nunca ouvira
falar que Komodo tinha uma irmã.

- Irmã? Eu não sabia que ele tinha uma irmã.

- Curioso – disse Girtab, sua voz calma e cristalina demonstrando um pequeno


interesse no desconhecimento de Izzak. – Realmente curioso, ainda mais pelo
fato de você conhecer ela tão bem.

A confusão mental de Izzak era evidente. Se ele não sabia que Komodo
tinha uma irmã, como é que ele poderia conhecê-la? Subitamente, como um
flash de entendimento, a resposta veio a sua mente, e escapou de seus lábios
como se ele soubesse-a há muito tempo.

- Minha mestra é a irmã dele.

- Ha! Vejo que seu raciocínio é rápido, Cavaleiro de Triângulo. Exato, Maria de
Virgem é irmã de Komodo de Lagarto.

A guardiã de sexta Casa Zodiacal permanecia em silêncio. Era como se


ela não estivesse ali. Será que a máscara em seu rosto escondia uma
expressão de pesar pela morte do irmão ou, talvez, olhos vermelhos devido ao
choro? Não era possível saber. Então, como se seu corpo aparentemente
inanimado ganhasse vida repentinamente, ela inspirou suavemente e dirigiu-se
ao líder do Santuário.

- Mestre, por que o senhor nos chamou aqui?

- Infelizmente, Maria, houve uma pequena mudança de planos, e não terei


tempo de falar com vocês agora. Peço desculpas por chamá-los até aqui a toa.
Agora, por favor, - disse Girtab em um tom simples e informal - retome seu
posto, Maria. Quanto a vocês, Izzak e Sacros, peço que levem o corpo de
Komodo para os responsáveis pelos sepultamentos. Se me dão licença, tenho
de me recolher agora. Uma boa noite.

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Izzak e Sacros estavam visivelmente aturdidos com a ação do Grande
Mestre. Que mudança de planos era essa?

- Mestre – começou Sacros, mas foi interrompido pela Amazona de Virgem .

- O Mestre nos dispensou, vamos embora.

E, dizendo isso, caminhou em direção a saída. Izzak e Sacros se


olharam um instante, ainda sem entender o que acabara de acontecer, e
depois acompanharam Maria para fora do Salão.

***

- Falta muito ainda?

- Não, já estamos chegando.

- Você disse isso antes e...

- E você deve se dar por satisfeito de obter uma resposta, uma vez que veio
escondido até aqui, Ícaro.

Durante o anoitecer, duas figuras caminhavam entre as árvores de um


pequeno bosque na ilha de Citera. Um deles era negro, alto e esguio, com
cabelos trançados com miçangas a pender-lhe às costas. Vestia uma reluzente
armadura dourada, que refulgia à luz do luar, e uma capa tão branca quanto a
lua que brilhava no céu. A outra figura era um menino, também negro, mais
baixo que o Cavaleiro de Ouro, um tanto magro, trajando uma armadura mais
simples, com um brilho esbranquiçado, e parecia desanimado com a
caminhada.

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- Se fosse qualquer outro cavaleiro no meu lugar, você seria levado até o
Santuário como um traidor, já que saiu sem a autorização do Grande Mestre.

- Eu sei, Sun, mas é que eu não podia deixar de vir ajudar você a...

- AJUDAR! – gritou o homem. – Você acha a sua vinda até aqui irá me ajudar,
Ícaro de Pégasus? Só estou deixando você me acompanhar por que jurei ao
seu pai que iria proteger você e a sua irmã, mas não tenho certeza se o mais
seguro seria você estar comigo neste momento.

- Eu sei disso, Sun – disse o jovem Cavaleiro de Bronze em um tom cômico e


apelativo. - Mas você concorda comigo que seria perigoso, para mim, voltar ao
Santuário depois de ter saído sem autorização, não é? Já imaginou o que
fariam comigo?

- Meu Deus, por que você saiu tão diferente da sua irmã? Sara é tão
comprometida, tão prudente. Ela jamais sairia do Santuário sem autorização.

Um pequeno ruído entre as árvores, que teria passado desapercebido


por qualquer um, despertou a atenção dos dois cavaleiros. Como uma lufada
de vento, Sundiata se deslocou para o local de onde viera o barulho e, lá
chegando, foi tomado por uma raiva aterradora, e por um medo descomunal.

- Não! – bradou o negro Cavaleiro de Ouro.

Assustado com o grito que ouvira, Ícaro correu ao encontro de Sundiata,


e teve uma grande surpresa: ali, sob o esconderijo das árvores e de uma leve
capa de viagem, estava a jovem Sara, a reencarnação de Atena que deveria
estar abrigada a salvo no Santuário.

- O QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO AQUI!? – berrou o Cavaleiro de Ouro.

- Calma, Sun – disse a menina em um tom meigo. – Eu só vim...

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- CALMA? – gritou ele mais uma vez, gesticulando freneticamente com os
braços, como se uma nuvem de mosquitos tivesse começado a atacá-lo. Uma
veia pulsava ameaçadoramente em sua testa, e o suor começava a afluir do
seu rosto.

Com uma breve pausa, e com visível esforço, Sundiata baixou os braços
junto ao tronco, e diminuiu o tom da sua voz. Ao contrário do que se poderia
esperar, esse gesto que deveria ser tranqüilizador acabou por torná-lo mais
assustador do que antes, pois era evidente que seu autocontrole não duraria
muito tempo e, quando terminasse, seria como se um vulcão explodisse depois
de muito tempo adormecido.

- Mana, eu não esperava te ver por aqui – disse Ícaro em um tom de voz
sereno, como se o encontro dos dois tivesse se dado no meio de um mercado,
e não em uma mata fechada, ao anoitecer, em uma ilha desolada e que,
positivamente, abrigava mais um dos demônios que estavam despertando para
se juntar a Baal.

- Eu sei que não – disse a jovem, com visível apreensão em seu rosto.

- Sabe, Sara, agora mesmo o Sun estava me dizendo que eu não sai igual a
você – começou o Cavaleiro de Pégasus com evidente sarcasmo e
divertimento em sua voz, e um brilho de divertimento nos olhos -, pois você é
comprometida e prudente, e jamais sairia do Santuário sem autorização. O que
você me diz agora, hein Sun?

- Digo que certamente serei xingado de todas as formas possíveis e


imagináveis pelo Grande Mestre, e ouvirei um sermão de horas e horas sobre
responsabilidades como Cavaleiro de Atena – respondeu Sundiata, com um
pesar no rosto.

Ele agora caminhava de um lado para o outro, balançando os braços


para o alto, olhando ora para o chão, ora para o nada. O desespero que ele
estava sentindo era quase palpável, e seu rosto, mesmo negro, havia ficado

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empalidecido. Seus olhos estavam desfocados e arregalados, e ele falava mais
para ele mesmo do que para Sara e Ícaro, que pareciam estar se divertindo
com o descontrole de Sundiata.

- Acredito que, depois de me xingar – continuou ele -, o Mestre e os outros


Cavaleiros de Ouro me punirão fisicamente, me causando ferimentos e dores
ao extremo. E, depois disso, serei destituído do posto de Cavaleiro de Ouro,
renegado com um traidor, e serei expulso do Santuário. Isso, claro, se eu tiver
sorte, pois o mais provável é que alguém me mate.

“Já seria muito delicado eu me responsabilizar por Ícaro ter saído do Santuário
sem autorização, mas ele é um Cavaleiro a serviço de Atena, e os riscos fazem
parte do seu cotidiano, e é provável que eu conseguisse o perdão do Grande
Mestre por isso. Porém, me responsabilizar pelo fato de você – e ele apontou
para Sara -, que é a reencarnação de Atena, ter saído sem autorização do
Santuário, onde deveria estar a salvo, é algo que não será perdoado.”

- E quem foi que disse que eu saí sem autorização? – indagou a menina. – O
Grande Mestre sabe que eu vim atrás de vocês, e me deu permissão para isso.

Foi como se um meteoro tivesse atingido o estômago de Sundiata. O ar


lhe faltou aos pulmões, o sangue pareceu congelar em suas veias, seu coração
estagnara as batidas constantes que indicavam que ele estava vivo. Aquilo era
simplesmente inacreditável, inadmissível. Como o Grande Mestre pode permitir
que Atena se expusesse a um perigo tão grande?

Ele sempre confiou tanto no julgamento do líder do Santuário. Tão sábio,


tão gentil, tão poderoso. Uma lenda viva que atravessou gerações, um nome
que causava temor nos adversários de ontem de hoje. Como ele pudera
cometer um erro tão grave? Será que Gerion estava certo em suas insinuações
de que o Grande Mestre estava velho demais para se manter em um posto tão
importante? Será que, de fato, a senilidade o alcançara? Ou será que... Não,
esse pensamento não podia lhe passar pela cabeça. Não havia a mínima

47
chance de Girtab ter traído Atena e tê-la posto em risco vital propositalmente.
Mas...será mesmo?

Sundiata foi arrancado de suas divagações por um turbilhão de vento e


fogo que voou em sua direção junto com o som de uma voz agressiva e
desvairada.

[i]Alaploé tes Futiás![/i] (Hálito de Fogo)

Ele teve pouquíssimo tempo para agir, mas não teria feito nada de
diferente do que fez: colocou-se na frente de Atena e Ícaro, para protegê-los
das chamas que queimavam tudo a volta. Quando o fogaréu cessou, havia um
cone de destruição e cinzas, que cercava Sundiata e os jovens irmãos que ele
protegera. Seu rosto estava levemente chamuscado, sua capa havia sido
desintegrada, e seus braços, estendidos abertos, estavam exalando fumaça
com o cheiro acre da carne queimada.

Uma risada tresloucada cortou o ar quente da floresta, uma risada


cristalina e exagerada, como de alguém que se diverte além do que seria
pudico. Parada aproximadamente a dez metros deles, estava uma mulher com
vestes curtíssimas, quadris curvilíneos, cabelos longos e sedosos: uma mulher
estonteante.

- Então o Santuário continua tentando dificultar as coisas. E, além de um idiota


feio, mandou duas crianças remelentas para morrerem junto.

A surpresa teria sido cômica se a situação não fosse tão perigosa.


Contrariando a bela aparência feminina que tinha a adversária, a voz que saiu
de seus lábios era indiscutivelmente masculina.

- Que negócio é esse, Sun – perguntou Ícaro. – Essa coisa é homem ou


mulher?

- Nenhum dos dois, Ícaro: é um demônio em um corpo feminino. Quem é você?

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- Eu? – perguntou o demônio em tom de zombaria – Eu sou Asmodeus, a
Luxúria. E você chama-se Sun, é isso? Que nome feio. Pelo menos combina
com a sua cara.

Mais uma vez, a risada lancinante cortou o ar. Ela foi abafada pela voz
firme do Cavaleiro.

- Meu nome é Sundiata, e sou o Cavaleiro de Ouro de Leão. Fui enviado para
destruir você. Prepare-se!

Inclinando o corpo, Sundiata arremessou-se como um grande leão negro


contra sua presa. Os dedos de sua mão direita se posicionaram de forma que
lembrassem um garra e, arranhando o ar, ele gritou:

[i]Umeme Makucha![/i] (Garras Relâmpago)

Foi possível ouvir o ar sendo rasgado pelo golpe de Sundiata. Muitas


árvores tombaram, cortadas em seu tronco como se um afiado machado as
tivesse atingido. Porém, não havia ninguém ali. Sundiata olhava para os lados,
procurando pelo adversário, quando, mais uma vez, a mesma risada denunciou
que Asmodeus estava no alto, às suas costas.

- Sabe, Sundiata também é um nome muito feio. Se espera me atingir com isso
que você chama de técnica, é melhor desistir: eu sou rápido demais para você.
Sou rápido como a volúpia, como a paixão irracional. Me movo rápido como o
vento, e meus golpes são mais perigosos que raios. Não tente isso novamente,
ou irá se arrepender.

[i]Umeme Makucha![/i] (Garras Relâmpago)

Sundiata não deu ouvidos ao inimigo. Mais uma vez, desferiu seu golpe,
agora contra a copa de um frondoso sicômoro, fazendo suas folhas em forma
de coração caírem com leveza em uma cascata de galhos cadentes. Mais uma

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vez, porém, o inimigo não estava no local que o golpe atingira. Foi então que
aconteceu.

Um grito, mesclado de dor e surpresa, chegou aos ouvidos do Cavaleiro


de Leão, congelando-lhe a espinha. Ele virou a cabeça, rezando para não ver o
que achava que estava as suas costas. Quando, porém, um grito feminino e
uma risada enlouquecida lhe chegaram aos ouvidos antes que ele terminasse
de virar o corpo, ele teve certeza de que seu temor estava correto.

Sara estava chorando e berrando o nome do irmão, enquanto Asmodeus


tinha o braço transpassado no peito de Ícaro, na altura do coração. A
expressão no rosto do menino era assombrosa e comovente: um misto de
desapontamento e dor. Com os olhos fora de foco, e a voz gorgolejante por
causa do sangue que lhe afluía à garganta, Ícaro dirigiu suas últimas palavras
aos amigos que ali estavam.

- Mana...Sun...me...me desculpem...eu, eu não pude... – uma tossida e um


escarro de sangue o atrapalharam e, com suas últimas forças, ele virou a face,
de um negro lânguido, e disse para o cavaleiro que estava, agora, olhando em
seus olhos – Sun, proteja ela por mim, por favor.

E ele não disse mais nada. Os sons que chegavam aos ouvidos de
Sundiata eram horríveis: os gemidos e soluços de Sara, a gargalhada de
Asmodeus, e, sobretudo, mais retumbante do que qualquer coisa, o silêncio de
Ícaro.

- Seu...seu MALDITO! – berrou o leonino e, com um movimento mais rápido do


que ele ou Asmodeus esperavam, ele agarrou o pescoço do inimigo.

Sundiata estava fora de si. Ali não havia mais um Cavaleiro de Atena,
não havia mais um homem: havia apenas uma besta assassina, despertada da
forma mais terrível possível, e que agora acordava com uma fúria capaz de
rasgar céus e terra. A força que Sundiata imprimia contra o pescoço de

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Asmodeus era tamanha que ele chegava a sentir dormência nos nós dos
dedos.

[i]Desmá tes Futiás![/i] (Algemas de Fogo)

Asmodeus havia apanhado Sundiata em uma armadilha. Tocando os


braços que tentavam estrangulá-lo, Asmodeus formou uma espécie de grilhões
de fogo em torno dos braços, pernas e pescoço do leonino, de modo que este
ficou paralisado.

- Viu só o que acontece com quem se opõe a mim, leãozinho? Antes de matar
você, vou matar essa menina sem graça também. Assim, seu sofrimento será
maior, pois nada pode fazer para salvar esses dois bebês remelentos.

[i]Alaploé tes Futiás![/i] (Hálito de Fogo)

As chamas dançaram e lamberam ao redor de Sara. Porém, elas não


podiam atingi-la, pois um poderoso cosmo brotara de seu corpo, conferindo-lhe
uma barreira de proteção contra o golpe de Asmodeus. Sentindo o poderoso
cosmo que brotava da menina, o demônio não demorou em concluir: era Atena
quem estava na sua frente.

- Então o Santuário resolveu mandar Atena para cumprir missões? Quanta


idiotice! Não sei quem é o maluco que está no posto de Grande Mestre, mas
gostaria de agradecê-lo pessoalmente pelo favor de enviar a tão preciosa
Atena para as garras da morte. Lúcifer irá me recompensar imensamente por
liquidá-la, e o posto de Baal será meu. Morra, Atena.

[i]Alaploé tes Futiás![/i] (Hálito de Fogo)

As chamas que saíram agora eram muito mais intensas e poderosas, e


Sara tinha dificuldades em repeli-las. Asmodeus não arrefeceu, e as chamas
tornavam-se cada vez mais fortes, fazendo com que o local parecesse o centro
de um vulcão.

51
Sundiata observava a cena aterrorizado, sem poder fazer nada para
salvar Atena e cumprir seu juramento como Cavaleiro. Ele observava Sara cair
de joelhos, cedendo ao cansaço físico de manter uma barreira tão potente sem
ter pleno controle de seu cosmo divino. Agora as chamas a alcançavam, e ela
gritava de dor, queimando e ardendo com uma perdiz na fogueira.

Isso não podia acontecer. Sara não poderia pagar por um erro dele. Não
poderia pagar por um erro do Grande Mestre. E, súbito como um relâmpago,
Sundiata se desprendeu de seus grilhões, mas Asmodeus não se deu conta
disso, pois estava focado no corpo de Sara, que agora estava desmaiada no
chão. Com a voz ecoando como um trovão, as mãos céleres como um corisco
que corta o céu em uma tempestade, Sundiata desferiu seu golpe, sua
esperança, sua única chance.

[i]Umeme Makucha![/i] (Garras Relâmpago)

A risada de Asmodeus cedeu lugar a um sugar desesperado, a uma


tentativa de levar ar aos pulmões, ao impulso biológico de sobreviver. Mas não
havia mais chance de se salvar, e foi com um baque seco que a cabeça
daquela bela mulher, receptáculo de um demônio cruel e sádico, caiu no chão
folhado da floresta. O leão havia abatido sua presa.

Com lágrimas nos olhos, e fúria no coração, o leonino correu até o corpo
de Sara e tocou-lhe o peito quente e queimado. Ele sentia, sentia as batidas do
coração dela contra o peito, e foi como se um bálsamo se derramasse sobre
ele: ela estava viva. Sem perder mais tempo, ele juntou os corpos dos dois
irmãos, e disparou rumo ao Santuário, com apenas um pensamento na cabeça:
o Grande Mestre deve explicações.

***

52
Algumas horas haviam se passado, e Sacros estava na Sala do Grande
Mestre, esperando que ele voltasse da sala de repouso, quando,
repentinamente, as portas do salão são escancaradas por dois homens
trajando armaduras douradas, ambos negros e carregando corpos em seus
braços.

- Onde está o Grande Mestre? – perguntou Sundiata em um tom furioso. –


Gerion e eu temos que falar com ele agora, pois ele nos deve sérias
explicações.

- Sinto muito – respondeu Sacros – mas eu não posso interromper a meditação


do Mestre. Se vocês puderem esper...

- Nós não vamos esperar! – explodiu Gerion – quero ver o velho agora! E você
não se atreva a tentar nos impedir, Sacros de Altar, pois um Cavaleiro de Prata
não terá a mínima chance contra dois Cavaleiros de Ouro.

- E se forem dois dourados contra dois dourados, Gerion?

A voz vinha das escadarias que levavam até a Câmara de Atena. Ali,
Maria de Virgem e um outro Cavaleiro de Ouro estavam parados, apenas
observando a situação.

- Humpf! Eu até poderia esperar uma atitude dessas vinda da Maria, mas
nunca de você, Cristos de Peixes. É melhor não interferirem, ou teremos de
nos confrontar.

- A escolha é sua, Gerion – disse Cristos com uma voz suave. – Eu não
permitirei que vocês ajam de forma tão desrespeitosa com o Mestre.

- Por acaso você é cego? – explodiu Gerion. – Não vê quem temos nos braços:
um Cavaleiro de Bronze morto, um Cavaleiro de Ouro ferido, e a reencarnação
de Atena, também ferida. Tudo isso por ordens do homem que vocês estão
tentando proteger. Não nos impeçam, ou serei forçado a entrar em combate

53
contra vocês, e aí vocês entenderão porque se diz de Gerion de Touro é um
homem a ser temido.

- Sinto muito, Gerion – começou Maria -, mas o Mestre deve ter suas razões
para ter dado essas ordens. Confie nele.

- Confiar nele? – disse Sundiata, incrédulo com o que ouvira. – como você
pode ser tão ingênua, Maria? Só há duas explicações racionais para isso: ou o
Grande Mestre está senil, ou ele traiu o Santuário. Saiam da frente!

Agora, os quatro se encaravam, e Sacros estava apreensivo. Era um


confronto perigoso: de um lado, os mais puros e pacíficos Cavaleiros do
Santuário, e do outro, duas feras enraivecidas. Se houvesse um combate, as
proporções seriam gigantescas, e certamente acarretaria uma tragédia sem
precedentes.

- Sinto muito, Sundiata – disse Cristos -, mas não posso permitir essa
desconfiança e essa falta de respeito com o Mestre. Se vocês tentarem
atravessar aquela porta, terão de me enfrentar.

- E a mim também – complementou Maria.

- Nesse caso – disse Sundiata, repousando no chão os corpos de Ícaro e de


Atena ao mesmo tempo em que Gerion fazia o mesmo com o corpo de
Lupercus -, vocês não nos dão outra escolha.

Os quatro elevaram o seu cosmo, e todo o Santuário pode sentir uma


energia avassaladora se erguendo da Sala do Grande Mestre. O que iria
acontecer ali?

54
[b]CAPÍTULO VIII: [i]O Escorpião Imortal[/i][/b]

- Vocês estão realmente dispostos a fazer isso? – perguntou Sacros – Estão


realmente convencidos de que devem lutar uns contra os outros ao invés de se
juntarem e enfrentar os inimigos que ameaçam o Santuário?

- A questão, Sacros – respondeu Sundiata, enquanto seu punho descrevia um


arco em direção ao Cavaleiro de Peixes – é que há o risco de haver um inimigo
no seio do Santuário, e existem dois cegos que se recusam a enxergar isso! –
berrou o leonino enquanto via Cristos se desviar de mais um golpe - Enquanto
eles tentarem nos impedir, estamos dispostos a lutar.

Enquanto Sundiata e Cristos lutavam de uma forma um tanto seca e


sem questões sentimentais envolvidas, o combate entre os Cavaleiros de
Touro e Virgem era muito diferente. Era como se faíscas surgissem no ponto
onde os olhares de Maria e Gerion se encontravam, e cada soco ou chute era
carregado de raiva, de uma vontade quase animalesca de causar dor no
adversário. Ao passo que Cristos e Sundiata estavam lutando por pontos de
vista, era mais do que evidente que o taurino e a virginiana estavam em um
embate que ambos esperavam e ambicionavam há muito tempo. Se havia dois
Cavaleiros da elite de Atena que não se gostavam, esses dois eram Gerion e
Maria.

- Você sempre me pareceu estúpido, Gerion – começou Maria, enquanto corria


da direção do seu gigantesco oponente – mas eu nunca imaginei que você
carregaria Sundiata em sua loucura. Logo ele, que foi o responsável por trazer
Atena até o Santuário – e agora ela desferia uma série impressionante de
chutes e socos combinados, dos quais Gerion se desviava com razoável
dificuldade. - Era de se imaginar que ele seria fiel ao Santuário.

- Eu sou fiel a Atena! – bradou Sundiata, ainda imerso em seu combate contra
Cristos – Se o Mestre e outros Cavaleiros estiverem contra ela, eu irei lutar
contra o Santuário sem pestanejar.

55
- Estamos gastando muito tempo com palavras inúteis – disse Gerion, evitando
um golpe de Maria com um empurrão violento, e cruzando os braços em
seguida -, pois é mais do que claro para mim que nossas opiniões são
diferentes e imutáveis. Se vocês realmente pretendem nos impedir, não me
resta outra escolha.

[i]Great Horn![/i] (Grande Chifre)

O ar se deslocou de uma forma violentíssima, e Maria foi atingida por um


golpe invisível desferido pelo Cavaleiro de Touro. Foi como se um animal
invisível tivesse partido em uma investida invisível, e seria de esperar que a
virginiana caísse ferida devido a potência do golpe, mas foi com espanto que
Sacros observou a virginiana permanecer em pé. Era incrível imaginar que
uma figura aparentemente tão delicada pudesse ter resistido a um ataque tão
violento.

- Se pretende me atingir, faça isso com um golpe de verdade, Gerion de Touro.

- Este golpe foi só um aviso. Você sabe muito bem que meu poder vai muito
além disso. Não me obrigue a lutar de forma séria com você.

Cristos e Sundiata cessaram seu combate, pois o cosmo de Maria


atingiu uma proporção gigantesca. Até mesmo Gerion esboçou surpresa, e
Sacros estava suando abundantemente. Maria levantou seus braços,
estendendo-os para os lados em seguida, e baixando-os depois, descrevendo
um círculo com um movimento aberto e fluido. Depois, ela juntou as mãos, com
as palmas estendidas e colocadas uma contra a outra, como alguém que se
prepara para rezar. O cosmo da amazona continuava a crescer de forma
fantástica.

- Não faça isso, Mestra!

Izzak havia irrompido pela porta de entrada da Sala do Grande Mestre, e


tinha uma expressão apavorada em seu rosto.

56
- Saia daqui, Izzak! – disse Maria – Isso é uma batalha entre Cavaleiros de um
nível muito superior ao seu. Vá embora antes que acabe se ferindo.

- Ouça o que ele diz, Maria – intercedeu Cristos. – Nosso objetivo não é matá-
los, apenas impedi-los de invadir o local onde o Mestre está meditando.

- Deixe, Cristos – disse Gerion. – Deixe que Maria extravase sua raiva de mim.
Quando ela perceber que não tem poder para me destruir, talvez ela passe a
me tratar com mais respeito.

- Você não conhece esse golpe – disse Izzak. – É uma técnica poderosíssima,
e poderia facilmente destruir todo o salão.

- Ouçam o rapaz vocês dois, Gerion e Maria – recomeçou Cristos. – Você não
vai falar nada, Sundiata?

Foi então que todos viram a expressão e estupefação no rosto do


leonino: ele olhava com os olhos arregalados para um local vazio.

- O que foi, Sundiata? – perguntou Gerion.

- Os corpos. Eles, eles sumiram!

E então todos se deram conta de que os corpos de Ícaro, Lupercus e


Atena não estavam mais repousados no piso. Quem os teria pego?

[i]Deditionem Divin![/i] (Rendição Divina)

A exclamação de Maria desviou-os todos de volta ao combate. Uma


poderosíssima rajada de cosmo disparou das palmas das mãos da amazona
virginiana, e foi como se o Sol tivesse diminuído e irrompido de suas mãos.
Gerion havia desviado sua atenção, e não estava totalmente preparado para
receber um golpe tão poderoso. Ainda assim, ele conseguiu conter o golpe com
suas mãos, e agora tentava neutralizá-lo.

57
- Não seja idiota, lance essa energia toda para longe de você! – berrou
Sundiata desesperado.

- Não, ele vai conseguir neutralizá-la – disse Cristos em um tom ameno.

- Mas isso é impossível! – gritaram Sacros e Izzak em uníssono.

- Não, não é – retorquiu Cristos com calma -. De todos os Cavaleiros,


excetuando-se o Mestre, eu sou o segundo que está há mais tempo no
Santuário, mas sou o único que conhece as técnicas de todos os Cavaleiros de
Ouro. Conheço a força descomunal da técnica de Maria, e posso afirmar duas
coisas com certeza: Maria não usou todo o seu poder nesse golpe, e Gerion vai
conseguir neutralizá-lo. Tomara que eu tenha a sorte de nunca precisar entrar
em um combate vital contra qualquer um deles.

Uma risada grave e trovejante, porém espontânea, escapou dos lábios


do gigante taurino, ao mesmo tempo em que ele neutralizava o globo cósmico
correspondente ao golpe da Amazona de Virgem.

- Você está nos superestimando e se subestimando, Cristos de Peixes – falou


Gerion com um brilho nos olhos. - Sei muito bem que o Mestre pretende
colocá-lo como seu sucessor, e não seria por falta de méritos. Entristece-me ter
de lutar contra você, meu amigo, principalmente ao ver que você não está
atacando, apenas se defendendo.

- Gerion, meu velho amigo, peço-lhe então que reconsidere suas ações – pediu
Cristos em um tom amigável. - Espere até que o Mestre termine sua
meditação, e então fale com ele. Será melhor assim, pois você manterá seu
juramento de obediência e sua honra permanecerá incólume.

- Sinto muito, mas não posso esperar. Já esperei demais, e as coisas saíram
completamente de controle. Esse velh...

58
- Cale a boca, Gerion! – explodiu Maria, e havia raiva em sua voz – Demonstre
ao menos um pouco de respeito, mesmo que você não o respeite de verdade.
Ele liderou o Santuário durante centenas de anos, e os Cavaleiros de Atena
nunca perderam uma única guerra.

- Sempre há uma primeira vez para tudo, Maria – intrometeu-se Sundiata. – Eu


sempre confiei no Mestre, mesmo com as constantes suspeitas de Gerion
acerca da sanidade dele. Porém, essa noite ele fez algo inacreditável.

- E o que foi de tão grave? Por um acaso ele tentou matar Atena? – perguntou
Maria em um tom sarcástico.

- Praticamente sim – respondeu o leonino com pesar. – Ele permitiu que Atena
saísse do Santuário para vir atrás de mim, sendo que ele havia me enviado
para Citera, com o objetivo de enfrentar um dos demônios que estão
despertando.

- Não, Sundiata – disse Maria com incredulidade na voz -, deve haver algum
engano. Provavelmente Atena fugiu para procurar por você, e você interpretou
como se o Mestre tivesse permitido a saída dela. Se você tivesse perguntado a
ela...

- Eu perguntei, Maria – disse Sundiata em um tom inconformado -, perguntei


porque ela saiu escondida, e disse lhe que, quando o Mestre soubesse da fuga
dela, as coisas iriam ficar ruins para mim. Porém, para minha surpresa e
desespero, ela disse que o Mestre sabia e autorizara a saída dela.

Houve um pequeno período de silêncio, mas que pareceu durar horas. O


ar parecia pesado, e a alvíssima sala em que se encontravam parecia
carregada de eletricidade, como se uma tempestade de raios fosse irromper a
qualquer instante, tamanha a tensão que se formara.

- Isso é muito sério – disse Cristos com seriedade em sua voz, rompendo a
quietude que se instaurara. – O Mestre nos deve explicações sobre isso.

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- Finalmente você caiu em si, meu amigo – disse Gerion, agora caminhando
calmamente em direção à porta da sala onde Girtab estava meditando. – Entre
conosco então, pois tenho certeza que Maria não tentará impedir três
Cavaleiros de Ouro sozinha.

- Desculpe, Gerion, mas acho que não me expressei de uma forma


compreensível – falou Cristos em um tom sereno. – Eu não pretendo invadir a
sala e interromper a meditação do Mestre, pois isso seria extremamente
desonroso.

- Mas...mas você disse que... – começou Sundiata.

- Eu disse que o Mestre devia explicações para nós, Sundiata – falou o


pisciano – não que eu iria desrespeitá-lo em sua meditação. Eu quero
respostas porque sei que ele tem explicações satisfatórias e justificativas
plausíveis para suas decisões, não porque acredito que ele esteja senil ou que
esteja do lado dos inimigos.

Gerion e Sundiata olharam um para o outro, e depois olharam,


incrédulos, para Cristos. Como ele podia estar tão calmo? Como ele podia
manter-se tão confiante no Grande Mestre, mesmo depois de tantos
acontecimentos estranhos?

- Você não me deixa outra opção a não ser lutar contra você, Cristos – disse
Gerion, cruzando os braços.

- Se é dessa forma hiperbólica que você coloca as coisas, meu velho amigo,
então não vejo outra opção – respondeu o Cavaleiro de Peixes, assumindo
uma postura de ataque.

- Esperem – interpôs-se Sundiata. – Eu sou o seu adversário, Cristos de


Peixes. Se tem de lutar com alguém, lute comigo.

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- Desculpe-me, Sun – disse o gigantesco taurino com sua voz reboante -, mas
é mais do que evidente que Cristos não quis lutar a sério com você, pois sabia
que a situação estava sob controle. Agora – disse ele com um leve quê de
presunção -, quanto a mim, ele sabe que deverá dar tudo de si se pretende
opor resistência, afinal de contas, todos sabem que eu sou o mais poderoso
dentre os Cavaleiros de Atena.

- Agora sou eu quem lhe pede desculpas, Gerion – falou Cristos com um tom
casual -, pois terei de ferir o seu orgulho. É mais do que sabido por todos que
você é o mais poderoso dentre nós – e ao ouvir isso Gerion estufou levemente
o peito -, mas se você tentar passar por mim, não terei outra escolha a não ser
derrotar-lhe.

Todos pareceram prender a respiração. As palavras de Cristos foram a


coisa mais inesperada que poderiam ter ouvido. Logo ele, tão pacífico, disposto
a lutar contra alguém como Gerion. Ainda mais sabendo do poder descomunal
do adversário.

- Cristos – falou Sundiata -, você tem noção do que acaba de dizer? Como
pretende derrotar Gerion, ainda mais admitindo que ele é mais poderoso do
que você?

- Hahaha. Isso é simples, Sun – disse o pisciano com um tom leve e


descontraído, como o de alguém que explica uma coisa simples e divertida aos
amigos em um bar. – Eu estou lutando com meu coração carregado de
certezas e de Fé, tanto em Atena quanto no Grande Mestre. Apenas boas
intenções e bons sentimentos guiam minhas ações, e isso fará com que meu
cosmo queime mais forte.

Gerion arregalou os olhos, desconcertado, ao passo que Sundiata


esboçou um sorriso, misto de compreensão e admiração pelo homem que
estava a sua frente.

61
- Você, meu amigo – disse Cristos apontando para Gerion -, está com o
coração e com a mente carregados de dúvidas, e seus impulsos tem sido
movidos pela violência e pelo orgulho. Enquanto você agir assim, por mais
poderoso que seja, não conseguirá me derrotar. Entendeu?

- Humpf! Isso é uma das coisas mais idiotas que eu já ouvi – bradou o taurino.
– Espera me vencer com esse discurso barato? Vamos ver se seus
movimentos são mais rápidos do que a sua língua.

[i]Great Horn![/i]

Como acontecera anteriormente, o ar pareceu se deslocar celeremente,


mas dessa vez o golpe parecia estar carregado de maior potência. Entretanto,
com uma potência maior do que o cosmo contido no ataque taurino, o cosmo
de Cristos se elevava fantasticamente, e ele usou apenas uma mão para deter
o golpe de Gerion.

- Impossível! – gritaram Gerion e Sundiata.

- Fantástico! – gritaram Sacros e Izzak.

Apenas Maria permanecera em silêncio, não apenas analisando o que


acontecia, mas também reunindo energia para regressar ao combate.

- Você realmente esperava que essa técnica, que há pouco foi usada na minha
frente, tivesse efeito contra mim? Não, meu amigo. Não será simples passar
por mim. Agora, permita que Cristos de Peixes lhe mostre, pela primeira vez,
suas técnicas de combate.

E ele abriu os braços. Perecia uma loucura ficar com o peito


desprotegido diante de um oponente tão formidável, mas Gerion parecia
paralisado, fascinado pela oportunidade de ver Cristos usar o seu poder. Mas,
não era só isso. Ele realmente estava paralisado, e agora percebia que seu
corpo não estava obedecendo aos comandos do seu cérebro. Lentamente,

62
seus braços também começaram a se abrir, fazendo com que ele parecesse
um reflexo gigantesco da imagem de Cristos.

[i]Stávrosi![/i] (Crucificação)

- Eu...não...posso...me...mexer! – falou o taurino com dificuldade.

- E não poderá enquanto eu não sair desta posição. Em suma, você só poderá
fazer os mesmos movimentos que eu.

- Humpf! Essa técnica será inútil contra mim. Meus poderes não se limitam ao
físico.

[i]Great Horn Ghost![/i] (Grande Chifre Fantasma)

Como fizera contra Baal, Gerion utilizou seu golpe enquanto estava
paralisado. Ouve um baque surdo, e ele esperou ser libertado de sua paralisia
a qualquer momento. Mas nada aconteceu. Olhando com atenção, Gerion
percebeu que havia pétalas de rosas flutuando a frente de Cristos, formando
uma barreira protetora.

- Eu já disse antes, Gerion: conheço todas as técnicas de todos os Cavaleiros


de Atena – falou Cristos com calma. - Sei muito bem que você possui uma
técnica psíquica, e estava preparado para ela. Essa é a [i]Kourtína tou
Triantáfylla[/i] (Cortina de Rosas), e serve para me proteger de qualquer tipo de
ataque de potência mediana.

- POTÊNCIA MEDIANA! – berrou Gerion – COMO SE ATREVE!?

- Sim, Gerion – respondeu o Cavaleiro de Peixes -, potência mediana. Seu


poder físico é incomparável, e eu jamais poderia barrar uma de suas técnicas
físicas com a minha [i]Kourtína tou Triantáfylla[/i]. Porém, sua técnica psíquica
possui apenas um nível mediano se comparada às outras.

63
Sundiata agora avançava rumo à sala onde o Mestre estava meditando.
Maria colocou-se na frente dele.

- Onde pensa que vai?

- Vou falar com o Mestre – disse ele com simplicidade, a voz carregada de
urgência. – Não vou ficar aqui e lutar com meus iguais por mais tempo.

- Se insistir em passar – falou a amazona -, eu irei enfrentá-lo, Sundiata.

- Não faça isso, Maria. Não quero machucá-la.

Ambos assumiram suas posições de ataque.

- [i]Umeme Makucha![/i] (Garras Relâmpago) – gritou Sundiata.

- [i]Deditionem Divin![/i] (Rendição Divina) – bradou a virginiana.

Simultaneamente, Gerion conseguiu libertar um de seus braços, e


disparou seu golpe.

- [i]Great Horn!![/i] (Grande Chifre) – gritou o gigante de ébano.

- [i]Stávrosi![/i] (Crucificação) – gritou Cristos, tentando paralisar Gerion


novamente e impedir a conclusão do ataque.

Sacros e Izzak foram arremessados no chão, devido a potente onda


cósmica que se formou no local, e eles se prepararam para uma gigantesca
explosão de energia, pois quatro Cavaleiros de Ouro haviam elevado seus
cosmos e disparado suas técnicas. Foi então que aconteceu.

Um cosmo superior a todos os outros se elevou em um átimo, e um grito


mais alto do que a combinação das vozes dos quatro guerreiros dourados
ecoou no salão.

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[i]Ostrakiá Belóna![/i] (Agulha Escarlate)

Gritos lancinantes de dor reboaram no ar. A cena que se apresentava


agora era incrível: quatro Cavaleiros de Ouro caídos no marmóreo piso do
salão, com sangue escorrendo por pequenos orifícios em suas armaduras até
então incólumes; dois Cavaleiros de Prata com um olhar de incredulidade
estampado no rosto, mirando os dourados guerreiros caídos no chão e alguma
coisa parada na soleira da porta.

E ali estava o Grande Mestre: Girtab, o Escorpião Imortal, parado com a


mão direita estendida na direção de Gerion e dos outros. Seus brancos e
longos cabelos esvoaçando às suas costas. Sem a cobertura da Máscara
Sacerdotal, era possível ver que o seu velho rosto possuía uma expressão dura
e impassível, e que havia uma aura de fúria e poder percorrendo cada ruga de
sua face. Havia um brilho quase assassino emanando de seus profundos olhos
castanhos, e parecia impossível que aquele ancião pudesse ter disparado um
golpe tão poderoso de forma tão célere.

- Chega – disse ele com uma voz calma, descarregando seu semblante
daquela expressão furiosa, voltando a parecer apenas um velho sábio e gentil,
como sempre aparentara ser. – Não quero mais que irmãos briguem entre si
como inimigos. Os verdadeiros inimigos estão fora do Santuário.

- Seu...velho...maldit... – começou Gerion, mas ele se calou quando o cosmo


de Girtab começou a se elevar rapidamente, atingindo um patamar aterrador.

- Modere suas palavras, Gerion de Touro – disse o Mestre em um tom firme e


ameaçador. – Você não está falando com qualquer um. Eu vi muitas coisas que
você jamais viu ou verá. Participei e sobrevivi a guerras e batalhas que você
não poderia imaginar nem nos seus mais ambiciosos sonhos. Enfrentei e
derrotei inimigos com poderes maiores que os seus, mas com egos muito
menores. Sei de muitas coisas que você desconhece e despreza.

65
“Se você não me respeita como Grande Mestre do Santuário de Atena, mesmo
eu estando neste posto há mais de um milênio, pelo menos não seja
desrespeitoso comigo. Posso ser velho, mas não estou senil, e ainda conservo
poder suficiente para fazer com que o jovem e arrogante Cavaleiro de Touro
sinta-se como um bezerro que cresceu desproporcionalmente e agora se vê
frente a um predador de verdade.”

Gerion não teve reação. O homem a sua frente assumira uma postura
de uma imponência impar, e sua cosmo energia conferia-lhe um aspecto quase
divino. Mesmo assim, uma dúvida continuava martelando em sua mente: como
um homem tão fantástico pudera tomar tantas decisões erradas?

- Desculpe – disse Gerion se levantando com dificuldade -, mas não posso


mais lhe respeitar, pois perdi a confiança na sua liderança. Enquanto eu não
receber explicações sobre as suas últimas e insanas decisões, eu não poderei
lhe respeitar com o devido merecimento.

- Gerion está certo – falou Sundiata, também se colocando de pé. – O senhor


nos deve explicações.

- Não, Sundiata de Leão – respondeu o Mestre com simplicidade. – Eu não


lhes devo explicação alguma. Porém, ainda sem vocês merecerem, eu irei
explicar o que me motivou a tomar essas decisões que vocês consideram
insanas. Vocês não estão mais duvidando de mim: você tem certeza de que eu
estou velho demais, ou que eu os traí.

Maria e Cristos colocaram-se de pé, ao mesmo tempo em que Sacros e


Izzak faziam o mesmo, recuperando-se do choque. Sundiata e Gerion trocaram
olhares apreensivos, carregados de significados. Parecia que o Grande Mestre
estava prestes a dar as tão esperadas explicações.

- Entendam uma coisa: a certeza é mais inimiga da verdade do que a mentira.


Eu vou sanar as suas dúvidas, não porque vocês merecem, mas sim para que

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vocês percebam que as suas certezas são a insanidade que vocês estão
enxergando em minhas ações.

Então, ele caminhou até o trono, e acomodou-se calmamente. Ele


suspirou profundamente, juntou as pontas dos dedos na frente do seu rosto, e
perguntou.

- Por onde querem que eu comece?

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[b]CAPÍTULO IX: [i]Perguntas e Respostas[/i][/b]

- Por onde querem que eu comece? – perguntou Girtab.

- Comece por onde quiser – respondeu Gerion com raiva -, desde que explique
tudo, não haverá problemas.

- Muito bem, então – falou o Grande Mestre. – Começarei do princípio desses


acontecimentos.

Todos fizeram extremo silêncio para ouvir as tão esperadas justificativas


do Mestre. Cada ruído, por menor que fosse, parecia retumbar no salão,
tamanho o silêncio que se fez.

- Há dois dias, eu estava em Star Hill, contemplando as estrelas na busca de


algum sinal de mudança. Foi quando eu fui arrebatado por uma visão terrível:
alguém tentava despertar Baal.

“Cristos foi em meu socorro quando alguma energia maligna tentou impedir-me
de prosseguir vendo os acontecimentos futuros, pois ele sentiu o meu cosmo
enfraquecer. De fato, ele me encontrou caído no chão, tamanho foi o esforço
que fiz.

Dispensei Cristos, e passei a madrugada inteira pensando nas decisões que eu


deveria tomar no dia seguinte. A primeira delas foi enviar Sacros até Roma,
para informar o líder do Santuário de Yeshua de que havia um perigo enorme a
nossa frente.”

- Então foi por isso que ele estava tão apressado quando voltou e tentou
passar desabalado pela Casa de Áries – disse Gerion.

- Exato – concordou o Grande Mestre -, e você impediu-o de passar sem


dificuldades por pura soberba. Da próxima vez que isso acontecer, será para
mim que você deverá se justificar.

68
O tom de Girtab foi suave, mas a ameaça por detrás dessa suavidade
era evidente, e Gerion preferiu ficar em silêncio ao invés responder as coisas
que passaram em sua mente.

- Prosseguindo de onde eu parei, Sacros voltou rapidamente até o Santuário, e


informou-me de que o líder do Santuário cristão está a caminho daqui.

- Essa informação foi inútil para mim – disse Gerion com insolência.

- Gerion de Touro – falou o Mestre com um tom firme -, se você me interromper


mais uma vez para disseminar suas bravatas, eu terei de pô-lo para fora daqui.
Fique em silêncio, ou saia.

Era evidente que Gerion estava a ponto de explodir, e dizer ao Grande


Mestre tudo que estava preso em sua garganta. Porém, sua curiosidade era
maior que a sua raiva, e ele ficou em silêncio.

- Pois bem – prosseguiu Girtab -, eu sabia que alguém estava tentando libertar
Baal, e sabia que era Astarte, filha dele. Porém, um espírito sempre precisa de
um corpo para se apossar, e eu conhecia a mulher cujo corpo ela escolheu. O
nome da mulher era Helena, e ela era a mãe de Komodo e de Maria.

Maria ficou em silêncio. Será que ela já sabia disso, ou será que ela
simplesmente não queria demonstrar seus sentimentos.

- A oportunidade gerada por esse ato de Astarte foi única – falou Girtab. – Não
é tão fácil dominar um corpo alheio, pois alguns pensamentos continuam
perpassando a mente de quem foi dominado.

“Foi por isso que eu enviei Komodo para o local onde ela estava. Ao ver o
próprio filho se opondo a ela, havia uma grande chance de Helena expulsar o
espírito de Astarte do seu corpo. Porém, como todos sabem, isso não
funcionou, e Komodo acabou sendo morto.”

69
- Mas porque Izzak foi enviado junto então? – perguntou Gerion – Frixo já havia
sido enviado como reforço, pois você sabia que Komodo não seria páreo para
essa tal Astarte.

- Frixo de Áries não foi enviado para proteger Komodo – disse Gerion em um
tom brando. – Izzak poderia defendê-lo de Astarte, pois ele tem poder para
isso.

- Então – falou Sundiata em um tom de compreensão – Izzak estava lá para


proteger Komodo.

- Quando foi que eu disse isso? – perguntou o líder do Santuário.

- Mas...o senhor disse...

- Eu disse que Frixo não foi enviado para proteger Komodo, e não que Izzak foi
enviado para proteger Komodo.

- Então? – perguntou Gerion.

- Então o que? – perguntou o Mestre em um tom leve.

- Então por que Izzak e Frixo foram enviados? – falou o taurino.

- Ah, sim. Frixo foi enviado para proteger Izzak. Izzak foi enviado para aprender
um nova técnica, uma técnica de extrema necessidade no momento.

- Uma técnica? – questionou Izzak, que estivera em silêncio até então.

- Sim, Izzak – disse o Grande Mestre -, uma técnica muito poderosa, e que
somente o portador da armadura de Triângulo poderia utilizar. Ela se chama
[i]Davi Sigillum[/i] (Selo de Davi), e é uma técnica de aprisionamento. Ela foi

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usada por Davi, o Cavaleiro de Triângulo da minha geração, para aprisionar
Baal.

“Uma vez que Komodo estava morto, e Izzak estava em perigo, já que o
próprio Baal havia sido liberto, Frixo teve de interferir na batalha, conforme
ordens minhas.”

- Muito bem – disse Gerion -, isso explica apenas uma das suas menos
insensatas decisões. O que tem a dizer sobre a quase morte de Lupercus, que
você enviou para a morte contra Mammon?

- Ele não foi enviado para a morte – retorquiu Girtab. - Eu sabia que ele tinha
poder equivalente ao de Mammon, e grandes chances de derrotá-lo

- Grandes chances!? – explodiu Gerion – Porque não enviou um Cavaleiro com


mais experiência para essa missão? Você arriscou a vida dele à toa.

- Não, Gerion de Touro. Eu não arrisquei a vida dele à toa. Não é tão simples
assim lutar contra um demônio como Mammon e os outros. Existem espíritos
destinados a isso, e Lupercus tinha uma pendência a acertar com Mammon.

- E qual seria ela, Mestre? – quis saber Maria.

- Lupercus descende de um bravo Virtus chamado Jacques De Molay, e que foi


morto por intermédio de Mammon.

- Virtus? – perguntou Gerion – O que é isso?

- Virtus, ou Virtude, é o nome dado aos principais guerreiros do Santuário de


Yeshua. Jacques se tornou grande entre eles, e poderoso também. Isso fez
dele um empecilho para duas pessoas importantes: Filipe IV, Rei da França, e
Bertrand, ou Clemente V, como ele era chamado, o líder do Santuário de
Yeshua, que recebe o prenome de Papa.

71
- Mas o que Mammon tem a ver com isso? – questionou Gerion.

- Mammon é a ganância, e ele estava hospedado no corpo de Filipe. Como


Jacques havia percebido isso, tentou alertar o Santuário de Roma, mas não foi
lhe dada atenção, pois o Papa estava ciente de tudo, mas estava do lado de
Mammon. Jacques conseguiu avisar todos os Virtus sobre isso, mas um deles
também era um traidor, e repassou o ocorrido ao Papa.

Agora Girtab assumira um tom triste, e seus olhos castanhos e


brilhantes pareciam fora de foco, pois focavam algo que não podia ser visto
pelos demais, algo que estava perdido no passado e nas memórias do velho
guerreiro ali sentado. O silêncio era absoluto, e ele prosseguiu.

- Logo iniciou-se uma batalha interna no Santuário cristão, pois embora muitos
confiassem em Jacques, o Papa disseminou uma pérfida mentira, dizendo que
Jacques e seus amigos haviam traído Yeshua, e agora serviam a um demônio
chamado Baphomet. Porém, Baphomet é uma cifra criptográfica hebraica e
cabalística que, quando traduzida, origina a palavra [i]sophia[/i], ou seja,
sabedoria.

“Esse nome era um epíteto para Salomão, considerado o mais sábio dos reis, e
responsável pela construção do Templo de Jerusalém, templo cuja proteção foi
designada pelo próprio Papa do Santuário de Yeshua, no começo do século
XII, a um grupo de Cavaleiros e Virtus denominados como Cavaleiros
Templários.

Porém, quando uma mentira é bem plantada, ainda mais por uma pessoa cuja
honra e moral estão acima de suspeitas, acontece de a mentira soar como
verdade, e a verdade parecer uma absurda mentira. Jacques e alguns de seus
amigos foram aprisionados por ordem do Rei Filipe, que na verdade era o
receptáculo de Mammon, e foram submetidos a torturas com o objetivo de que
eles se declarassem inimigos do Santuário e inocentassem Bertand da trama
que ele havia criado. O Mestre do Santuário de Yeshua, num ato vergonhoso e

72
sádico, quis lavar suas mãos perante os seus guerreiros e fiéis, e deixou tudo a
cargo dos homens do rei.

Vendo que não haveria confissão nenhuma, Mammon decidiu que Jacques
deveria ser morto como um herege, e ele foi queimado vivo em uma fogueira.
Porém, antes de morrer, ele jurou que sua morte seria vingada, tanto pelos
seus amigos quanto por alguém do seu sangue, e predisse que em menos de
um ano os traidores seriam mortos. De fato, Jacques possuía muitos amigos
valorosos e leais, que lutaram para derrubar Bertand, o Papa traidor, vingar a
sua morte e aprisionar Mammon.”

- E como o senhor sabe de tudo isso, Mestre? – quis saber Sundiata.

- Por que eu era um desses amigos, Sundiata de Leão – disse o Mestre do


Santuário com um brilho intenso nos olhos, revelando uma chama de
jovialidade que não havia se evanescido com o tempo. - O Santuário de Atena
lutou ao lado dos outros guerreiros que ainda eram leais aos princípios de
Yeshua, e eram chamados de Templários. A batalha durou menos de um ano,
conforme Jacques previu, mas aconteceu de o corpo de Filipe vir a adoecer, e
Mammon abandonou o corpo doente do Rei e tomou para si o corpo do próprio
Papa. Bertrand era poderoso, e Mammon estava completamente desperto.
Então, para evitar o derramamento de sangue dos guerreiros dos dois
Santuários, eu lutei pessoalmente contra ele.

Naquele instante, todos os presentes fitaram o Grande Mestre com


reverência e respeito. Mesmo Gerion, que não gostava do Mestre e havia se
defrontado com Mammon sem nenhuma dificuldade, ficou admirado com isso.
Era raro que um Grande Mestre do Santuário de Atena se envolvesse
pessoalmente nos combates, e levando-se em conta a idade de Girtab e o fato
de Mammon estar plenamente desperto, a atitude do líder dos Cavaleiros de
Atena era algo de uma coragem fantástica, e de uma lealdade marcante para
com a memória do seu amigo.

- E o que aconteceu com Mammon, Mestre? – perguntou Sacros de Altar.

73
- Eu exauri o corpo do Papa durante o combate, e levei-o à força até o
Cáucaso. Quem me acompanhou foi um outro Virtus, também chamado
Jacques, que foi o responsável pelo selamento de Mammon. Depois disso,
esse Virtus foi escolhido como o novo líder do Santuário de Yeshua, adotando
o nome de João XXII.

- E por que escolheu o Cáucaso? – questionou Gerion - Não havia nenhum


outro lugar?

- O Cáucaso é uma região desolada, e dificilmente alguém iria até lá, correndo
o risco de libertar Mammon. Além do mais, eu poderia vigiar o Cáucaso daqui
do Santuário de Atena, e poderia tomar medidas rápidas, como eu fiz.

- E por que enviou Lupercus? – perguntou Sundiata.

- Não prestaram atenção ao que eu falei? Alguns demônios, principalmente os


do porte de Mammon, não podem ser derrotados por qualquer pessoa, pois
existem espíritos destinados a derrotá-los. Jacques jurou que alguém de seu
sangue iria vingá-lo, e ao fazer isso, vinculou e delegou essa missão ao destino
daquele dentre os seus descendentes que vivesse na mesma época em que
Mammon se libertasse.

“Eu já sabia que Lupercus descendia de Jacques antes dele chegar ao


Santuário. Eu suspeitei que logo chegaria o dia em que Mammon seria liberto,
mas nem nos meus piores sonhos eu imaginei que sua libertação estaria
associada ao retorno de Baal, ou mesmo a um possível reerguer do Portador
da Luz.

Quando Baal foi liberto, fiquei atento a qualquer acontecimento no Cáucaso, e


percebi quando um viajante indiano, rico e ambicioso, entrou na caverna onde
Mammon estava aprisionado. Imediatamente, enviei Lupercus para lá, pois ele
seria o único que poderia derrotá-lo de forma efetiva e definitiva. Qualquer
outro Cavaleiro que eu enviasse não teria êxito. Infelizmente, eu não contava

74
que Baal fosse aparecer para tentar salvar Mammon. Porém, felizmente, a
intromissão e as ações autônomas de Gerion de Touro acabaram por salvar o
jovem Lupercus, já que eu não podia protegê-lo.”

Sundiata ficou estupefato. Antes, ele pensara o mesmo que Gerion,


pensara que o Grande Mestre tivesse tomado tais atitudes por senilidade, mas
agora ele percebia o quão astucioso havia sido o plano dele. Mas, ainda assim,
ele arriscara a vida de dois jovens Cavaleiros, e um deles havia morrido.

E ainda havia algo mais grave. Ele havia permitido a saída de Atena,
havia permitido que ela se expusesse ao perigo. Se isso não era um indício da
loucura do Grande Mestre, era algo mais grave, pois era um forte indício de
que o Mestre havia traído o Santuário.

- O que mais desejam saber? – perguntou Girtab com a mesma voz calma que
tinha usado até então.

- O que mais!? O que mais!? – gritou Gerion – Você por um acaso espera que
nós acreditemos que você permitiu a saída de Atena do Santuário, expondo-se
a perigo mortal, pois ela tinha chances de derrotar um demônio sozinha?

- Gerion de Touro – e agora Girtab havia se levantado, sua expressão


carregada de pesar e cansaço. Era a primeira vez que o Grande Mestre
realmente parecia um idoso abatido pelos anos. – Vocês queriam que eu me
explicasse, e é isso que estou fazendo. Se você não quiser acreditar em mim,
não há nada que eu possa fazer.

- Responda, então – falou Gerion -, por que permitiu a saída de Atena?

- Foi um erro meu. Um erro tolo.

- Não – falou uma voz doce vinda de trás de todos. – Não foi um erro seu. Eu
me expus ao perigo porque quis.

75
Atena havia saído da câmara onde Girtab estava meditando. Seu corpo
apresentava apenas algumas leves queimaduras, e sua roupa estava
chamuscada. Fora isso, ela estava perfeitamente bem. Ao vê-la, todos os
Cavaleiros, incluindo o Grande Mestre, viraram-se em sua direção e se
ajoelharam. Ela seguiu caminhando até onde estava Girtab e, tocando em seu
ombro, fez um gesto indicando-lhe o trono. Ele sentou-se, e ela postou-se ao
seu lado, falando aos presentes.

- Eu pedi ao Mestre que permitisse a minha saída.

- Sagrada Atena – falou Gerion, ainda com a cabeça curvada -, perdoe-me pelo
que vou dizer, mas o Grande Mestre jamais deveria ter permitido sua saída,
pois o risco era muito grande.

- Ele me disse isso, Gerion – falou Atena com uma voz plácida e afetuosa. – Eu
perguntei ao Mestre por que ele enviou Sundiata na missão, e ele me explicou
que Sun era o espírito destinado a derrotar um demônio chamado Asmodeus.

- Mais uma vez essa conversa de destinação – falou Gerion com uma
impaciência evidente em sua voz. – E qual é o motivo dessa vez? Vai me dizer
que o velhote lhe disse que Sundiata tinha um ancestral que lutou contra esse
demônio, e que ele jurou que um de seus descendentes o vingaria?

Um soco célere e inesperado atingiu o rosto de Gerion, derrubando-o


com estrépito no piso de mármore. Aprumando-se rápida e aturdidamente, o
taurino percebeu que Sundiata estava em pé na sua frente, e que ele havia o
golpeado.

- Sundiata, como se atreve... – começou Gerion.

- Não ouse, nunca mais, usar esse tom com Atena – falou Sundiata com a voz
grave e nitidamente controlada para evitar um grito. Havia um tom de ameaça e
fúria em sua voz, fazendo parecer que um verdadeiro leão havia despertado do
sono, e estava furioso. – Já é bastante grave a nossa desconfiança sobre o

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Mestre, e isso tem me dividido o espírito e a mente. Mas nunca, jamais, ouse
tratar Atena com essa falta de respeito que você usa com o Mestre. Não se eu
estiver vivo.

Gerion ficou em silêncio por um tempo, fitando os olhos furiosos de


Sundiata. Por fim, ele se virou na direção de Atena, ajoelhou-se novamente, e
falou.

- Perdão, Atena. Sundiata está correto, eu não deveria falar assim com a
senhora. Agora, se puder responder-me, poderia nos dizer o que o Grande
Mestre lhe falou?

- Eu mesmo posso lhe falar, Cavaleiro de Touro – disse o Grande Mestre.

“Asmodeus era um demônio que, há muitos séculos, se encarregou de matar


todos os homens que pretendiam se casar com uma bela jovem chamada
Sara. Um dos Anjos de YHVH, chamado Rafael, foi enviado para guiar um
jovem chamado Tobias para acabar com esse demônio. Juntos, e por amor a
Sara, eles conseguem derrotar o demônio e aprisioná-lo, por muito tempo, na
montanha Sagarmatha ou Chomolangma, nas cordilheiras do Himalaia. Lá ele
permaneceu por muito tempo, até que Baal o libertou em uma época remota,
logo que eu havia me tornado Cavaleiro de Atena.”

- E quando foi isso, velhote? – indagou Gerion, com ironia e desprezo na voz –
Foi quando os romanos tomaram Constantinopla?

- Não, Gerion – falou Girtab com simplicidade. – Foi alguns séculos antes,
quando o filho de YHVH esteve na terra. Antes de ele e eu nos conhecermos.

Todos ficaram espantados, mas nenhum ficou mais espantado que


Gerion. Essa informação era a mais antiga das lembranças que o Grande
Mestre já contara a qualquer um deles. Ele já tinha ouvido um rumor – que ele
considerara um exagero – de que Girtab havia conhecido Jesus, mas parecia

77
ser apenas mais uma das lendas em torno da figura do Mestre do Santuário.
Porém, agora o próprio Mestre dissera isso.

- O senhor conheceu Jesus? – perguntou Cristos, espantado.

- Sim, Cristos de Peixes, eu o conheci, mas não é essa história que vocês
estão querendo ouvir, e não é, tampouco, a história que eu pretendo contar
hoje.

“Como eu dizia, Asmodeus estava aprisionado até o momento em que Baal


apareceu. Houve muitas batalhas, e conseguimos impedir que Baal libertasse
todos os seus aliados, mas Asmodeus foi um dos que foi libertado, juntamente
com Mammon. Esse último acabou fugindo em um corpo quase morto, e
acabou se escondendo por muitos séculos, até achar que as coisas estavam
propícias ao seus planos. Foi quando ele tomou o corpo de Filipe, e o resto da
história eu já lhes contei antes.

Quanto a Asmodeus, ele teve de enfrentar o primeiro e mais poderoso dos


Virtus que se tornaram apóstolos de Yeshua. Seu nome era Pedro, e ele foi
escolhido com o primeiro Grande Mestre do Santuário de Yeshua, mesmo que
o Santuário deles ainda não existisse em Roma. Pedro seguiu Asmodeus até a
ilha de Citera, e lá ele o derrotou e aprisionou, usando o [i]Davi Sigillum[/i], que
o próprio Davi havia lhe ensinado. Porém, Pedro não tinha poder suficiente
para isso, e Davi teve de usar sua cosmo energia para reforçar o selo.

Quase na mesma hora em que Davi fez isso, Baal e eu estávamos nos
defrontado, e eu estava quase o derrotando. Eu convoquei Davi ao meu
encontro, e ele veio rapidamente, extremamente cansado pelo gasto de
energia cósmica e física que havia tido com o selamento de Asmodeus. Assim
que eu derrotei Baal, Davi de Triângulo o aprisionou com seu selo, e o esforço
de fazer dois selamentos tão poderosos foi grande demais para ele, e ele
morreu antes de poder me ensinar essa técnica.

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Pouco antes de morrer, Davi me disse que os dois selos estavam ligados, pois
foram feitos em um intervalo de tempo muito pequeno, e pela mesma pessoa.
Assim, quando o selo que prendia Baal foi rompido, o mesmo aconteceu com o
selo que prendia Asmodeus. Eu sabia que ele estava na ilha de Citera, e enviei
Sundiata.”

- Mas por que eu, Mestre?

- Simples, Sundiata de Leão – respondeu o Grande Mestre em um tom


paternal. – De todos os Cavaleiros do Santuário, você é o que mais ama Atena,
pois você era amigo íntimo dos pais dela, e foi o responsável por trazê-la ao
Santuário. Você jurou ao pai dela que iria protegê-la, lembra-se? O nome do
pai dela era Rafael também, e o nome de batismo de Atena é Sara. Assim,
tínhamos já a repetição da história do primeiro aprisionamento de Asmodeus.
Tínhamos e bela Sara, o protetor Rafael, pai dela, e você, Sundiata.

- Mas o nome do homem da história não era Tobias? – questionou Sundiata.

- Tobias, em hebraico – respondeu Girtab -, significa “Amado por Deus”. Você,


Sundiata de Leão, junto com Ícaro de Pégasus, são os Cavaleiros mais
amados por Sara, que é a reencarnação de Atena. Ele, por ser irmão dela, e
você, por ser quase um pai para ela. Você é o mais devoto protetor da jovem
Sara, e acabou de nos dar uma demonstração disso ao atacar Gerion. Você é
um “amado por deus”, pois é amado por Atena.

Sundiata ficou sem palavras. Para Gerion, porém, as respostas ainda


não haviam se completado.

- E por que Ícaro foi mandado com Sundiata?

- Ele fugiu ao meu encontro, Gerion. O Mestre não o enviou comigo.

79
- Tudo bem – falou Gerion, que ainda não havia se convencido -, mas por que
o senhor deixou que Atena saísse? Sundiata não era o destinado a derrotar o
demônio chamado Asmodeus?

- Ele era, Gerion – falou Girtab -, mas sozinho ele talvez não tivesse poder para
isso.

A expressão facial de Sundiata foi digna de pena. Se o Grande Mestre


não acreditava que ele teria chance, por que o enviara?

- Desculpe-me por dizer isso, Sundiata – falou o líder do Santuário -, mas você
só despertaria o seu real poder se passasse por uma situação de tensão.
Atena estava comigo quando Frixo de Áries me informou que Ícaro havia fugido
sem autorização para acompanhar Sundiata. Imediatamente ela me pediu para
eu enviar alguém para proteger o irmão dela, mas eu disse que Sundiata já
estaria com ele, e que certamente ele o mandaria de volta.

“Imaginem como foi duro para ela pensar que as duas pessoas que ela mais
ama poderiam morrer por tentar protegê-la. Então ela me pediu, me implorou
para que eu a deixasse ir atrás deles. Eu neguei, evidentemente, mesmo com
as lágrimas dela a me molharem a túnica. Foi então que aconteceu uma coisa
que mudou tudo.

Um cosmo gigantesco, terno e quente, emanou dela, e ela parou de chorar.


Naquele momento, na minha frente, estava Atena plenamente desperta. Ela me
conduziu até Star Hill, e me mostrou, nas estrelas, que Asmodeus só seria
derrotado se ela estivesse presente, e ela já havia se decidido a sair. Então, foi
a minha vez de pedir e implorar, e eu mesmo chorei, por temer pela vida dela.
Eu tentei impedi-la, mês ela me fez cair de joelhos, paralisado e impotente
contra seu poder divino. Então eu percebi que eu nada poderia fazer para
impedi-la, e permiti a sua saída ao encontro de Sundiata e do irmão. O resto da
história, você pode contar a todos, Sundiata.”

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Tudo fazia sentido agora. Tudo. Sundiata não tinha mais dúvidas quanto
à integridade do Grande Mestre, pois agora ele via o quão sábio ele havia sido
em suas decisões. A própria Atena decidira sair, o Mestre tentara impedi-la,
como ele esperara que ele fizesse. Somente um sentimento o amargurava: a
vergonha. Como ele pudera ser tão descrente no Grande Mestre? Como
pudera agir dessa forma tão desrespeitosa com o homem que tão sabiamente
vinha controlando a situação? Por que ele não se mantivera fiel como Maria e
Cristos? Ele não sabia as respostas, mas sentia-se envergonhado, e sentia as
lágrimas escorrerem-lhe pelo rosto.

Gerion, porém, parecia não ter digerido as informações que recebera.


Tudo se explicava, é claro, mas os riscos a qual Ícaro e Komodo se
submeteram foram apenas um capricho, um desleixo cometido por Girtab para
que seu maquinado plano desse resultado. Vidas poderiam ter sido salvas, e
isso ele não esquecera.

- Perdão, Mestre, perdão – falava Sundiata, agora prostrado de joelhos na


frente do Grande Mestre, chorando copiosamente. – Perdão por ter
desconfiado tão cegamente do senhor. Maria, Cristos, perdoem-me por ter
erguido o punho contra vocês, quando vocês estavam defendendo a verdade e
a honra do Santuário. Atena – e agora ele olhava para Sara, com uma
expressão de tristeza e vergonha que causavam um aperto no coração da
menina -, me perdoe por não ter conseguido salvar Ícaro. Eu deveria tê-lo
mandado de volta ao Santuário, mas não fiz isso. Se ele está morto, a culpa é
minha.

- A culpa não é sua, Sundiata – falou Gerion, agora de pé, imponente como um
titã. – Duas mortes aconteceram por causa dos planos do Grande Mestre,
mortes essas que poderiam ter sido evitadas. Ele poderia ter ordenado que
alguém protegesse Komodo, e poderia ter mandado alguém atrás de Ícaro.

- Gerion de Touro – falou o Grande Mestre, a agora a sua voz era grave e
áspera, e sua feição era ameaçadora, de modo que Gerion sentiu as
perfurações dos golpes desferidos por Girtab voltarem a doer, como se elas

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estivessem perfurando-o novamente. – Você obteve as respostas que queria,
mas mesmo assim se recusa a aceitar os fatos. Não é por que você não queira
admitir que eu estava certo, mas sim por que não quer admitir que você estava
errado.

- Você estava certo?! – explodiu o taurino – Duas mortes aconteceram por que
você não se preocupou. Você mesmo disse que Frixo estava lá para proteger
Izzak, e não Komodo.

- Sim, por que era eu quem estava protegendo Komodo – falou Izzak.

- Não só você, Izzak – falou o Mestre. – Maria havia sido enviada para proteger
o irmão. Porém, ela provavelmente ficou sem ação ao ver sua própria mãe
como inimigo. Komodo era muito pequeno quando veio para o Santuário junto
com Maria, por isso ele talvez não se lembrasse do rosto da mãe. Maria,
entretanto, deve tê-lo reconhecido imediatamente. Não é fácil enfrentar alguém
que se ama, mesmo que seja apenas o corpo dessa pessoa. Por isso, não
culpo Maria por esse acontecimento. Eu fui o culpado.

- Não, Mestre – falou Maria. – A morte de meu irmão foi culpa minha, pois fui
eu quem pediu ao senhor para protegê-lo, mesmo sabendo de quem era o
corpo que Astarte estava usando.

- Não se culpe, Maria – falou Gerion, surpreendendo a todos com essas


palavras. – Qualquer um de nós poderia ter feito a mesma coisa. Porém, a
morte de Ícaro continuará sendo culpa sua, velhote – desse ele apontando para
Girtab. – Se você tivesse ordenado que alguém o impedisse, ele poderia estar
vivo.

- Você é louco, Gerion? – perguntou Sundiata – Que obsessão é essa em


querer culpar o Mestre? Há muito tempo você ambiciona ascender ao posto de
Grande Mestre, e talvez por isso você queira, desesperadamente, penalizá-lo
por alguma coisa, a fim de denegrir a imagem dele para poder assumir o seu
lugar. Mas isso nunca acontecerá. Todos sabem que, mesmo você sendo o

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mais poderoso dentre nós, o favorito ao posto de Grande Mestre é Cristos de
Peixes. Não culpe o Mestre por um erro meu. Ícaro morreu, e a culpa é minha.

- Não, Sundiata... – começou Girtab.

- Perdão, Mestre – interrompeu-o Sundiata – mas não há nada que o senhor


possa dizes que vá me tirar a culpa pela morte de Ícaro.

- Mas quem foi que disse que ele está morto? – perguntou Girtab com a voz
branda.

A expressão de Sundiata era confusa. Na verdade, a expressão de


todos os presentes era igual. Eles tinham certeza da morte do jovem Pégasus.
Sundiata e Sara o viram ser atingido no coração pelo golpe de Asmodeus.

- Mas, Mestre – falou Atena com a voz abalada -, nós vimos ele ser atingido no
coração.

- Ele não foi atingido no coração – falou o Grande Mestre com simplicidade –
ele foi atingido na altura do peito, onde deveria estar o coração. O corpo de
Ícaro possui uma configuração levemente diferente da configuração dos nossos
corpos: ele possui dextrocardia, ou seja, seu coração fica do lado direito, não
do lado esquerdo.

Todos ficaram estupefatos. Ninguém sabia o que dizer, e então Girtab


prosseguiu.

- Eu acompanhei todo o combate. Eu havia chamado Maria e Izzak até aqui,


mas os dispensei assim que percebi que o cosmo de Atena estava próximo ao
de Sundiata e Ícaro. Eu me recolhi na minha câmara de meditação não para
meditar, mas sim para enviar meu cosmo para proteger Atena e Ícaro. Mesmo
que o coração de Ícaro não tenha sido atingido, o golpe de Asmodeus
transpassou o peito dele, e esse ferimento por si só já seria letal.

83
“Foi o meu cosmo que o manteve vivo, pois eu enviei minha energia vital para
garantir-lhe a vida. Quando Atena foi atacada, e seu cosmo não foi suficiente
para protegê-la das chamas, foi a minha cosmo energia que a salvou também.
Quando vocês chegaram até a minha sala, eu não os recebi por que precisava
manter a minha concentração, pois qualquer desvio poderia acarretar a morte
de Ícaro. Quando vocês quatro começaram a lutar, a minha vontade era de vir
impedi-los, mas eu tinha algo mais importante a fazer.

Com minhas habilidades psicocinéticas, eu transportei os corpos dos três


feridos até onde eu estava, mas vocês estavam tão envolvidos no combate que
nem perceberam três corpos flutuando em direção à câmara de meditação. Eu
já tratei o ferimento de Ícaro, e ele está fora de perigo. Logo, ele estará
plenamente recuperado. Vocês tem alguma outra dúvida?

Sundiata chorava abraçado em Sara, mas agora era um choro de


alegria. Maria e Cristos haviam se levantado, e já estavam prestes a sair,
acompanhados por Izzak. Gerion, porém, permanecia parado, com uma
expressão dura no rosto. Ele fez um breve aceno de cabeça para o Grande
Mestre e disse.

- Nenhuma, senhor. Com sua licença - e dizendo isso, deixou o local, passando
por Maria e Cristos sem falar ou fazer nada.

Lá fora, um sol tímido e quente começava a se erguer, tingindo o céu


escuro com seus rubros raios. Mais um dia começava no Santuário de Atena, e
muitas coisas ainda estavam para acontecer.

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[b]CAPÍTULO X: [i]As Virtudes[/i][/b]

- Meu pai... a culpa não foi minha... eu não... AHHHH!

Uma potente carga elétrica atingiu Astarte no peito, e agora ela estava
caída ao lado de Mammon, que também havia sido castigado por Baal. A voz
etérea e grave do demônio ecoava na catedral.

- Estou cercado por incompetência e ineficiência. Um dos grandes deuses do


passado, poderoso e prestigiado entre os guerreiros de Lúcifer, não conseguiu
ser páreo para um mísero rapazote – disse Baal olhando para Mammon. - E o
pior ainda és tu, minha própria filha, que carrega no corpo a minha sagrada
linhagem, que não foi sagaz ou célere o suficiente para auxiliar Asmodeus, que
teve a oportunidade de matar Atena. Parece que eu mesmo terei de agir.

Astarte se levantou com dificuldade, assim como Mammon, que estava


ferido do combate contra Lupercus de Capricórnio. Ela prostrou-se de joelhos
perante o pai, mas Mammon ficou em pé. Foi ele quem reuniu coragem para
perguntar o mesmo que Astarte estava pensando.

- Mas, Baal, você ainda não possui corpo físico para lutar, pois você teve de
fugir do combate contra o Cavaleiro de Touro.

Baal elevou sua energia cósmica e preparou outro golpe contra


Mammon, mas este também elevou sua energia cósmica, e bradou.

- Não se atreva a me tratar como um escravo, Baal – e ao falar isso, sua voz
ribombou ameaçadoramente no local. - Também sou um dos Marechais do
Inferno, e estou apenas um posto atrás de você. Trate-me com o respeito que
eu mereço.

- Respeito? – indagou Baal com desprezo e escárnio. – E que respeito eu devo


ter por um deus que foi humilhado por uma criança? E tu tinhas um corpo físico
ao teu dispor. Mesmo eu estando em minha forma etérea, lutei de igual para

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igual com o Cavaleiro de Touro, e foi a minha chegada que te salvou,
Mammon. Então, se queres que eu te trate como tu mereces, terei de tratar pior
ainda, pois tu não és digno nem de que eu te dirija a palavra. Caso estejas
descontente, confronte-me, se fores capaz!

E agora a cosmo energia de Baal, grandiosa, ameaçadora e tenebrosa,


preenchia todo o local, suplantando o cosmo de Mammon. Era como se apenas
Baal existisse ali, naquele espaço gigantesco, e tudo que havia além dele era
pequeno e insignificante demais para ser levado em conta.

- E qual é o seu plano, Baal? – perguntou Mammon após abrandar seu cosmo
e seu temperamento.

- É simples. Preciso de algum infiltrado no Santuário de Atena e no Santuário


de Yeshua, alguém de minha plena confiança.

- Mas, Baal – interpôs Mammon -, todos os Cavaleiros e Virtus são leais aos
seus respectivos Santuários. Como você vai fazer para conseguir infiltrar
alguém entre eles?

Baal riu. E dessa vez a sua risada era puro escárnio, e carregada de um
prazer quase lascivo. Foi com desdém que ele respondeu à pergunta que lhe
fora feita.

- Se minha mente fosse tão simplória quanto a tua, certamente eu também


estaria em dúvida. Mas, como podes ver, não é apenas o meu grande poder
que me coloca na liderança das hostes de Lúcifer, mas também o meu
prodigioso intelecto. Serei bondoso e compartilharei meu estratagema contigo.
Ouça atentamente, pois não repetirei.

“O Grande Mestre do Santuário de Yeshua e os sete Virtus se encaminham,


neste momento, para o Santuário de Atena. Invocarei alguns espíritos para
auxiliarem-me a atacá-los, e farei com que algum destes espíritos assuma o
controle do corpo de um deles, que eu debilitarei em combate. Depois,

86
permitirei que eles “vençam” a batalha e, quando prosseguirem viajem,
chegarão ao Santuário de Atena carregando um espião de minha confiança.
Dessa forma, saberei os planos dos dois inimigos de uma só vez.”

E novamente, Baal riu, mas desta vez era um riso de triunfo, de glória,
como se ele já desse por certo o sucesso do seu plano.

- E que demônio irá auxiliá-lo neste plano tão sagaz, Baal? – perguntou
Mammon.

- Isso, meu caro Mammon, é uma informação que vai além da sua alçada.
Agora, devo partir, e ficarei ausente por algum tempo, enquanto busco um
corpo físico para mim. Nesse entremeio, irei despertar os demais Marechais, e
darei ordens a vocês no devido momento. Não se atrevam a tomar decisões
sem o meu consentimento. Estejam alertas ao meu chamado.

E, com estas últimas palavras, ele passou por eles como uma frígida
lufada de vento.

***

Um belíssimo dia havia clareado, e o Grande Mestre já havia dado


ordens para que um dos Cavaleiros de Ouro partisse em uma missão só
conhecida por eles dois. Nada de diferente aconteceu naquela manhã, embora
os Cavaleiros de Ouro tivessem recebido ordens explícitas de assumir os seus
postos e não abandoná-los por nada. O Santuário estava em alerta.

No meio do dia, uma comitiva à cavalo chegava até o Santuário. Ela era
formada por quatro homens, sendo que um deles, bem mais velho que os
demais, vinha cercado pelos outros três. Estes trajavam uma longa túnica
branca, coberta por uma leve capa de viagem azul clara. No peito deles, havia
o símbolo de duas chaves – uma dourada e uma prateada – que se cruzavam
por trás de um escudo vermelho, que possuía uma faixa azul estrelada
estampada em forma diagonal.

87
Ao chegarem nos limites de entrada do Santuário, uma guarda de
soldados rasos forma uma barreira, e um dos soldados, com a lança em punho,
fala aos viajantes.

- Auto! Este território é sagrado e proibido a visitantes. Voltem agora por onde
vieram, pois adentrar este espaço sem permissão acarretará em morte.

O cavaleiro que ia a frente da comitiva se adianta. Ele possuía uma pele


levemente amorenada, cujo contraste era belíssimo com seus olhos de um
verde intenso. Seus cabelos curtos e crespos, de uma cor escura, coroavam
um rosto bonito e jovem, e sua voz era plácida ao se dirigir aos guardas do
Santuário.

- Abrandem-se, defensores do Santuário de Atena. Não somos


necessariamente visitantes: somos convidados do Grande Mestre Girtab, e
viemos aqui prestar auxílio. Sou Isar, um dos Virtus a serviço da Santa Madre
Igreja Católica Apostólica Romana, e acompanhamos e protegemos Sua
Santidade, o Papa Inocêncio VIII.

Os soldados entreolham-se, trocando breves comentários sobre o que


acabaram de ouvir. Novamente, o mesmo soldado fala.

- Sabemos que há reforços a caminho, mas como podemos saber se vocês


falam a verdade?

- Por que eles estão comigo.

Um homem trajando uma reluzente armadura dourada se aproximava da


comitiva e dos soldados, sendo acompanhado por mais quatro homens
vestidos da mesma forma que Isar. O Cavaleiro de Ouro possuía uma pele
branca, em harmonia com seus cabelos loiros e curtos, e seus olhos negros
ostentavam um olhar firme. Olhando com atenção, era possível ver algumas
escoriações em seu rosto, e sua capa branca estava rasgada.

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- Senhor Kabouri, o senhor está acompanhando esses viajantes? – perguntou
o soldado.

- Não exatamente – respondeu Isar no lugar do Cavaleiro de Ouro. – O


Cavaleiro de Câncer acabou sendo o nosso auxílio e proteção durante o
ataque que sofremos. Se não fosse a ajuda dele, talvez o Papa tivesse que vir
sem escolta alguma até o Santuário.

- Não exagere – falou o canceriano amistosamente. – Os inimigos não eram


tão fortes. O verdadeiro perigo foi a aparição de Baal. Mas isso não é assunto
para discutirmos aqui. Se nos dão licença – disse ele olhando para os
soldados, que imediatamente abriram passagem.

Os que estavam montados em seus cavalos apearam, e deixaram os


animais aos cuidados de alguns homens do Santuário. Eles iniciaram a subida
pelas Doze Casas Zodiacais, pois somente os membros do Santuário de Atena
podiam se valer das passagens secretas existentes no local e, de fato, poucos
as conheciam.

Eles passaram pelas Casas de Áries a Virgem sem trocarem nenhuma


palavra com os Cavaleiros de Ouro que lá estavam para protegê-las, pois estes
limitavam-se a prestarem uma silenciosa reverência quando o Grande Mestre
do Santuário de Yeshua e seus guerreiros passavam por suas Casas. Quando
chegaram na Casa de Libra, porém, havia um homem de prontidão,
aguardando-os. Ele era jovem, mas possuía uma aparência austera, o que
denunciava que era um pouco mais velho que os demais Cavaleiros até então
vistos. Seus cabelos castanhos e curtos, levemente crespos, encimavam seus
olhos assombrantemente azuis, de uma agudez e profundidade que pareciam
tentar ler a mente de quem eles fitavam. Sua pele branca - suavemente mais
escura que o gibão branco que lhe cobria o corpo -, era brevemente escondida
no seu rosto por uma basta barba castanha, o que lhe conferia um ar grave e
solene. Ele fez um breve aceno com a cabeça para os guerreiros que

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passavam por sua Casa Zodiacal, e trocou breves palavras com o Cavaleiro de
Câncer.

- Parece que você teve um pouco de diversão hoje, Kabouri. Estou certo? –
perguntou o homem.

- Certíssimo, Salomão. Embora eu ache que não tenha sido tão divertido
assim, pois dois guerreiros quase morreram com o ataque surpresa.

- E quem seriam eles? – quis saber Salomão.

- Foram estes dois: Odisseu - falou apontando para um homem branco, com
longos e embaraçados cabelos ruivos, barba também ruiva, e olhos azuis, cujo
ombro direito possuía um corte profundo e vários cortes menores no rosto – e
Alonso – e apontou para um homem branco e careca, com um cavanhaque
negro e olhos alertas e profundamente negros, que tinha o braço direito
imobilizado em uma tipóia feita com a capa de viagem, mancava com a perna
esquerda e estava com o pescoço manchado de sangue.

Salomão olhou para os dois atentamente, avaliando os seus ferimentos,


e depois dirigiu-se novamente ao Cavaleiro de Câncer.

- Bom, parece que vocês aproveitaram o dia melhor do que eu. De toda forma,
seria melhor que vocês dois fossem tratados por alguém, pois esses ferimentos
são bem feios.

- E quem o senhor sugere que procuremos? – perguntou Odisseu com uma voz
grave.

- Ora, Odisseu – falou Kabouri de Câncer -, você tem a sorte de estar falando
com Salomão de Libra, o homem que tem os mais avançados dons de cura
dentre todos os que vivem no Santuário, excetuando-se Atena, obviamente. O
que você acha, Salomão? Pode cuidar deles?

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- Ele é um Cavaleiro de Ouro? – surpreendeu-se Isar – Mas porque ele não
está trajando uma armadura?

- Porque eu não vejo necessidade em ficar usando-a quando não há um


combate em evidência – respondeu o libriano diretamente. - Há mais seis
Cavaleiros de Ouro antes de se chagar até mim, e acho que eu teria tempo de
vestir minha armadura caso percebesse o perigo. Agora – e então ele olhou
para o Cavaleiro de Câncer -, respondendo a sua pergunta, eu não me importo
em cuidar dos ferimentos deles, a não ser que eles se importem.

- De maneira alguma. - respondeu Alonso antes de se virar para o Papa e


perguntar - Vossa Santidade permite que fiquemos para trás com a finalidade
de tratarmos nossos ferimentos?

- Claro que permito, meu bom Alonso – respondeu o velho Papa com uma voz
cansada, porém simpática.

Assim, os dois Virtus ficaram para trás, aos cuidados de Salomão de


Libra. O resto da comitiva cristã acompanhou Kabouri, mas nenhum outro
Cavaleiro de Ouro prontificou-se a recebê-los da mesma forma que o libriano, e
eles passaram pelas demais Casas Zodiacais sem conversarem com nenhum
outro guardião. A subida transcorreu com alguma demora, pois o Papa
Inocêncio VIII era um homem idoso, e não era um guerreiro como os demais.
Ele era de uma altura mediana, obeso – mas sem ser exagerado – e com a
pele levemente flácida. Seus cabelos grisalhos, quase totalmente brancos,
eram cortados ao estilo franciscano, e seu rosto, embora visivelmente velho,
tinha coradas e reluzentes bochechas, o que lhe dava um leve ar jovial e bufão.
Seus olhos cor de mel eram opacos e cansados, e ele parecia doente.

Da casa de Libra até a Casa de Peixes, transcorreu aproximadamente


uma hora, pois o velho Papa parou para descansar e retomar fôlego algumas
vezes, recusando veementemente todas as ofertas de auxílio na subida.
Finalmente, chegaram até a escadaria que ligava a Casa de Peixes e a Sala do
Grande Mestre. Girtab estava parado no topo da escadaria, com um largo

91
sorriso a contrair as rugas em torno de seus olhos muito brilhantes, e Sacros
de Altar estava parado ao seu lado.

Subindo com visível dificuldade, o Papa cristão para no meio do


percurso, curva-se apoiando as mãos nos joelhos e respira profundamente
algumas vezes. Por fim, após retomar o fôlego, ele recupera sua postura e fala
com uma voz ofegante.

- É muito bom revê-lo depois de tanto tempo, Girtab, mas confesso que ficaria
muito mais contente se nosso encontro tivesse se dado por motivos menos
sombrios e, logicamente, com menos degraus no caminho.

Girtab riu entusiasmadamente, e desceu os degraus que o separavam


do Papa com uma agilidade inesperada. Ao chegar perto do Papa, ele abraçou-
o e, sem seguida, fez uma leve reverência, gesto que foi repetido pelo líder do
Santuário de Yeshua. Depois, Girtab cumprimentou cada um dos Virtus que ali
estavam, e em seguida dirigiu suas palavras ao Papa.

- Receio que meus pensamentos quanto ao nosso encontro sejam os mesmos


que o seu, Giovanni, ou devo chamá-lo de Vossa Santidade Inocêncio VIII? –
perguntou Girtab com divertimento explícito em sua voz.

- Chama-me apenas de Inocêncio, meu amigo – falou o cansado Papa. - Ao


assumir este posto, abdiquei de meu nome de batismo, como é o costume
entre aqueles que chegam ao papado. Entretanto, não vejo necessidade de
formalidades entre nós dois. Receio que lhe deva explicações sobre a ausência
de dois dos meus Virtus.

“Estávamos quase chegando até o Santuário, sem passar por qualquer tipo de
problemas, até que uma tempestade de areia caiu sobre nós. Soubemos,
naquele instante, que uma batalha contra um demônio estava prestes a
acontecer, pois aquela tempestade não se formou naturalmente, já que não
havia areia suficiente, muito menos vento suficiente, para que uma tempestade
daquelas proporções”

92
- Eu sei disso – interrompeu-o o Grande Mestre -, e eu pude sentir um cosmo
poderoso e maligno regendo a tempestade ao seu encontro, e foi por isso que
mandei Kabouri de Câncer auxiliá-los a chegar até aqui.

- Agradeço a sua vigia e a sua preocupação conosco, Girtab – falou o Papa. –


Como eu dizia, a tempestade se fechou sobre nós, e nos preparamos para
enfrentar um demônio. Mas nos enganamos.

- Então não era um demônio, Vossa Santidade? – perguntou Sacros de Altar,


que agora descia ao encontro dos visitantes, colocando-se ao lado do Grande
Mestre.

- Não, meu rapaz – disse o Papa com simplicidade. – Erramos no número, pois
não era um demônio, e sim vários. Pude identificar poucos deles, tais como
Moloch, Orobas e Agaras, mas havia um muito pior dentre eles: o próprio Baal
veio nos atacar.

Sacros mostrou-se surpreso com a informação dada pelo Papa, mas


Girtab permaneceu aparentemente indiferente, embora tivesse contraído
ligeiramente a fronte. O Papa fez menção de prosseguir o seu relato, mas o
Grande Mestre falou antes dele.

- Meu amigo, aqui não é o local adequado para falarmos sobre isso,
principalmente pela falta de cortesia que estou demonstrando ao receber as
visitas na soleira da porta ao invés de convidá-los a entrar e tomar assento.
Acompanhem-me, por favor, até a minha sala.

E, dizendo isso, fez um largo gesto indicando os degraus restantes que


levavam até o patamar onde se localizava a Sala do Grande Mestre. Com um
aceno de cabeça, indicando concordância, o Papa e os seus guerreiros
subiram em direção ao local indicado, acompanhados de perto por Girtab e
Sacros.

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Enquanto isso, na Casa de Libra, Salomão ouvia atentamente o relato
de Alonso e Odisseu sobre os acontecimentos durante o ataque que sofreram,
ao mesmo tempo em que terminava o processo de cura no ombro ferido deste
último.

- Então eles caíram sobre nós – dizia Alonso -, e rapidamente nos preparamos
para combatê-los com todas as nossas forças, visando, sobretudo, a proteção
do Papa. Isar e Galen ficaram ao lado dele, para protegê-lo, e o combate
começou.

- Nós nos dividimos – disse Odisseu, agora examinando o seu ombro que,
aparentemente, estava perfeito -, pois eram muitos inimigos. Cada um de nós
combateu no mínimo dois demônios, com a exceção de Francesco, que
combateu apenas um.

Salomão agora havia se levantado, e caminhava na direção de Alonso,


que estava sentado no chão a alguns metros dele e de Odisseu. Os olhos do
libriano correram por todos os ferimentos de Alonso, e então ele se abaixou ao
lado do guerreiro e removeu a tipóia. Enquanto analisava o braço ferido, o
libriano conversava com os dois.

- E porque esse Francesco lutou apenas contra um, é a pergunta que você
imaginou que eu faria, correto? – perguntou Salomão muito sério –
Provavelmente não é por ele ser fraco. Acredito que deve ter sido por que o
único inimigo que ele enfrentou era o mais poderoso de todos os que
apareceram, correto?

- Correto – falou Odisseu em um tom feliz e visivelmente surpreso. – Francesco


é o mais forte dentre nós, e foi ele quem se lançou contra Baal, enquanto nós
combatíamos os outros demônios. Foi um combate fantástico, mas era
evidente que Baal era mais forte. Quando ele se preparava para dar um golpe
certeiro em Francesco, Kabouri apareceu.

94
- Exato – complementou Alonso. – E então os dois lutaram contra Baal, que se
viu acuado e conjurou novamente sua tempestade de areia, deixando-nos às
cegas, sem que pudéssemos ver sequer um ao outro, mesmo estando
próximos. Quando tudo cessou, não havia mais demônio algum, mas nós
permanecemos alertas. Francesco, então, ordenou que Sua Santidade fosse
escoltada até o Santuário, enquanto ele, Óliver, Kabouri de Câncer, Odisseu e
eu, que estávamos feridos pelo combate, ficamos para trás, como retaguarda
em alerta para um possível novo ataque.

Salomão havia se levantado para pegar um pouco de água em uma


bacia que estava próxima a Odisseu, e já havia mergulhado um pano limpo no
líquido – que seria utilizado para limpar a ferida no braço de Alonso -, quando
ele ouviu as palavras de Odisseu.

- Mas...como você pode saber disso? Você estava desmaiado quando a


tempestade de areia cessou.

[i]Tel Basilistak El Paçar[/i]! (Olhar de Basilisco)

Por um breve segundo, que se sucedeu ao grito de Alonso, um flash


pareceu preencher toda a Casa de Libra. Afora isso, nada de diferente
aconteceu. Levantando-se do chão onde estivera sentado, Alonso contemplou
as duas figuras imóveis, que ele acabara de paralisar, a olharem fixamente
para ele. A expressão no rosto de Odisseu era de surpresa, e seus olhos
demonstravam terror. Entretanto, a expressão no rosto de Salomão era a
mesma de antes, e seus olhos continuavam penetrantes e impassíveis.

- Maldito idiota – falou Alonso, mas agora sua voz parecia emitir um leve silvo
ofídico. - Agora terei de arrumar uma desculpa convincente para a morte dos
dois. Se não fosse por esse mero deslize, tudo teria passado despercebido.
Agora irão suspeitar de que existia alguém infiltrado.

E ele caminhava de um lado para o outro, pensando no que iria fazer.

95
- Você poderia dizer - falou Salomão repentinamente, pegando Alonso de
surpresa -, que ele estava possuído por um demônio, e ele me atacou de
surpresa e de forma covarde. Quem é você?

Era evidente que Alonso não esperava que isso acontecesse. Ao seu
susto, sucedeu-se uma breve pausa, e então ele explodiu falando.

- Como você pode estar falando? Como pode estar se movendo? Você deveria
estar paralisado pelo meu golpe. Certamente, você devia estar de costas, mas
não terá essa chance novamente.

[i]Tel Basilistak El Paçar[/i]!

E mais uma vez a Casa de Libra foi iluminada por um flash. Alonso olhou
esperançoso para o Cavaleiro de Libra, e regozijou-se quando viu que ele não
se mexia, que ele sequer piscava. Porém, ele não iria arriscar novamente.

Com um movimento rápido, ele se projetou para o alto, e aplicou um


forte chute no rosto do libriano, que caiu como uma estátua de cera no chão.
Com uma risada medonha e carregada de silvos, ele se abaixou ao lado do
corpo de Salomão, de modo que sua boca ficou a centímetros do ouvido do
libriano.

- Admito que você me assustou. Por um momento, pensei que tivesse


escapado incólume ao meu golpe. Hahaha, mas que idéia a minha, como se
alguém como você, idiota o suficiente para ficar sem a Armadura de Ouro
durante um período de ameaça constante, pudesse ter alguma chance contra
mim.

E ele gargalhou satisfeito, e chutou o peito do Cavaleiro aos seus pés.


Então, novamente ele se abaixou, e falou no ouvido de Salomão.

- De toda forma, mesmo com a sua armadura você não teria chances contra
mim. Você perguntou quem eu sou, não é? Bom, eu sei que as vítimas da

96
minha técnica, embora paralisadas, ainda conseguem ouvir, portanto irei
responder sua pergunta antes de lhe matar: eu sou Apep, o Grande Demônio
Serpente, e estou aqui a serviço de Baal. Minha função é me infiltrar entre os
inimigos e repassar as informações para Baal.

“Meu disfarce teria sido perfeito se não fosse por esse deslize. Mas agora vou
corrigir tudo e, de quebra, tirar dois trastes do caminho sem levantar suspeitas.
Adeus Cavaleiro de Ouro!”

E ele ergueu sua mão esticada, descendo-a velozmente como uma foice
prestes a ceifar a vida de alguém. Porém, apenas o chão foi atingido. Salomão
havia sumido.

- Obrigado por me contar tudo – disse o Cavaleiro de Libra, que agora estava
para às costas de Apep, que se virou horrorizado para encarar o adversário. –
Agora eu entendo por que Baal quis confrontá-los pessoalmente: ele seria uma
distração e, ao mesmo tempo, uma garantia. Se ele não estivesse presente, as
atenções seriam dispensadas apenas aos inimigos que cada um enfrentava.
Porém, com a presença dele, todos estariam preocupados com o que ele
pudesse fazer, e foi assim que Alonso foi derrotado rapidamente e você tomou
o corpo dele. Estou certo?

Apep fitava com ódio Cavaleiro de Libra, que parecia encará-lo com
superioridade. Como ele não fora afetado por sua técnica mais poderosa?

- Humpf! Não sei como conseguiu a proeza de se livrar do efeito de minha


técnica, mas garanto que não terá o mesmo êxito ao me enfrentar. Você foi tolo
demais ao se apresentar para o combate sem trajar sua armadura. Logo você,
que disse que teria tempo de vesti-la caso percebesse o perigo. EU SOU O
PERIGO!! – berrou o demônio – E passei por debaixo dos seus olhos sem que
você percebesse.

- E quem foi que disse que você representa algum perigo para mim? –
perguntou Salomão em um tom seco. – Eu sabia que havia alguma coisa

97
errada com você, pois sua perna machucada é a direita, mas você insiste em
mancar com a esquerda. Eu simplesmente esperei pelo momento certo, e eis
que você falou tudo que eu queria sem que eu precisasse fazer nada além de
esperar. Você não é um demônio poderoso como os outros que já foram
enfrentados pelos meus amigos, e eu não precisarei da minha armadura para
liquidar você. Agora chegou a minha vez de me despedir de você.

[i] Xífos tis Diké[/i]! (Espada do Julgamento ou Espada de Diké)

Com um movimento rápido e preciso, o braço de Salomão cortou o ar


com uma força avassaladora, produzindo um agudo e perfeito corte no peito de
Apep, que caiu para trás com um grande baque. Com a voz gorgolejante, ele
tentou falar algo, mas não conseguiu. Apep, o Demônio Serpente, havia sido
derrotado.

Salomão caminhou até Odisseu, que agora começava a recuperar os


movimentos do corpo, e ajudou-o a ficar de pé. Com um olhar carregado de
surpresa e admiração, ele falou ao Cavaleiro que acabara de lha salvar.

- Eu pude ouvir tudo o que vocês falaram – disse ele com a voz levemente
trêmula. – Se não fosse por você, certamente todos nós teríamos sido
enganados por esse demoníaco impostor. Você salvou a todos nós.

- Não exagere – falou o libriano com simplicidade. – Certamente o Grande


Mestre não teria sido enganado, e logo um de vocês perceberia o engodo,
como você percebeu.

- Sim – respondeu Odisseu -, mas não teríamos resistido ao golpe dele. Você
deve ser o mais poderoso dos Cavaleiros de Ouro, pois esse golpe não fez
nada com você.

- O mais poderoso dentre os Cavaleiros de Ouro é o guardião da Casa de


Touro – falou Salomão -, mas provavelmente ele teria sido capturado pelo
golpe de Apep.

98
- Então – interpelou-o Odisseu –, você pode me explicar qual a técnica que
usou para não ser afetado por Apep?

- Eu não usei técnica nenhuma – respondeu o libriano com simplicidade. – a


resposta para a sua pergunta está gravada nas paredes desta Casa Zodiacal.
Olhe atentamente e encontrará o que procura. Agora, se me dá licença, tenho
de explicar ao Grande Mestre o que aconteceu aqui. Se quiser ficar por aqui,
eu informarei ao Papa e ao Grande Mestre que você ainda está se
recuperando.

E, dizendo isso, Salomão saiu caminhando tranquilamente. Odisseu


ficou alguns instantes pensando no que o libriano havia lhe falado, tentando ver
algum significado implícito naquelas palavras. Como não obteve sucesso,
resolveu seguir literalmente o que Salomão havia lhe dito e, analisando as
paredes, encontrou algo curioso. Havia uma escrita em letras gregas onde se
lia “A grega Diké e sua versão romana, Iustitia”.

Acima dessas palavras, havia a imagem de duas mulheres. A primeira,


simbolizando Diké, segurava uma balança em uma mão e uma espada na
outra. A segunda mulher, simbolizando Iustitia, segurava os mesmos objetos, e
de fato a forma física e o rosto das duas mulheres era praticamente igual. A
única diferença era que Iustitia tinha uma venda a lhe cobrir os olhos.

Foi então que ele compreendeu a resposta para a pergunta que fizera. A
constelação de Libra representava a mesma balança que as duas deusas
carregavam, simbolizando o equilíbrio. Porém, ao passo que a técnica de
Salomão fazia alusão à espada de Diké, o seu corpo fazia alusão a Iustitia: tal
qual a deusa da justiça romana, Salomão também era cego, e era por isso que
ele não havia sido paralisado.

- Que homem notável – falou Odisseu em voz baixa, incapaz de não


exteriorizar o que estava pensando. – Sua deficiência em nada o atrapalha, e
ele ainda se valeu dela como arma. Espero poder retribuir o seu favor um dia.

99
E então, silenciosamente, ele também deixou a Casa de Libra para ir se
juntar aos seu companheiros.

100
[b]CAPÍTULO XI: [i]A Humildade[/i][/b]

O Sol já estava alto e forte no céu, anunciando que já havia completado


metade do seu percurso diário. Raios fortes e dourados da grande estrela
entravam no Salão do Grande Mestre, fazendo o mármore resplandecer. Em
uma sala anexa, havia uma pomposa mesa com comida e bebida em grande
quantidade, sendo que em uma cabeceira sentava-se Atena, e na outra
sentava-se Girtab, com o Papa Inocêncio VIII sentado imediatamente a sua
direita. No resto do corpo da mesa acomodavam-se os Virtus e Sacros de Altar,
que prestavam grande atenção nas palavras trocadas por seus líderes.

- É realmente uma pena que um dos seus já tenha perecido, Inocêncio – falou
Girtab referindo-se ao que ocorrera com Alonso. – Tivemos uma baixa no
Santuário também, e sabemos plenamente que estamos apenas no começo de
uma Guerra Santa sem precedentes. Temos de reunir todas as nossas forças e
as informações que nós temos sobre os inimigos.

- Se Sua Santidade me permite – falou um dos Virtus, que possuía cabelos


loiros e curtos, e olhos castanhos muito atentos -, acho que o acontecido hoje
nos mostra o quão perigosa é a situação em que nos encontramos.
Aparentemente, Baal não tenciona apenas nos destruir por meio da força, mas
também por meio da desconfiança e da mentira. Agora, todos nós iremos
suspeitar uns dos outros, e será difícil manter a união.

- Meu bom Galen – falou o Grande Mestre com calma -, não precisa me tratar
de forma tão formal. Se quiser manter a diferença de hierarquia, chame-me
apenas de Mestre, mas eu não me importo se você me chamar de Girtab.
Quanto ao que você falou, a maior arma de Lúcifer e seus seguidores tem sido
o de por amigos uns contra os outros. Há sempre o risco de uma traição, mas
se formos viver com isso em nossas mentes constantemente, nos tornaremos
paranóicos.

- Mas, Sua Sant... perdão, Mestre – corrigiu-se o jovem Galen -, com a ameaça
de infiltrados, não poderemos trocar segredos entre nós.

101
- Galen – falou um dos Virtus, e todos os outros prestaram muita atenção ao
que ele disse -, a única forma de guardar um segredo é não o compartilhando
com ninguém. No instante em que você conta algo para outra pessoa, por mais
confiável que ela seja, essa informação deixa de ser um segredo. Como o
Mestre do Santuário de Atena acabou de falar, iremos apenas nos tornar
paranóicos se ficarmos pensando nisso o tempo inteiro. Há perigos bem
maiores do que esse para nos preocuparmos, pois a vida de todas as pessoas
desse mundo está em perigo.

Todos os Virtus se olharam, trocando olhares e gestos de concordância


com as palavras ditas por Francesco, que era o líder dos sete Virtus que
serviam ao Papa. Ele era um homem robusto, com uma pele clara e olhos
castanhos escuro. Seu cabelo curto era da mesma cor que sua barba, que era
mantida aparada com perfeição, mas ainda assim cobria toda a superfície por
onde se estendia.

- Sábias as suas palavras, Francesco – disse o Papa Inocêncio. – Embora um


dos seus tenha perecido, Girtab, ainda resta um grande número de guerreiros
ao seu dispor, dos quais os mais poderosos permanecem intocados. Quanto
aos meus poucos, porém poderosos e valorosos combatentes, nosso número
foi reduzido a seis. Entretanto, o número de demônios que enfrentamos já foi
reduzido também, e sabemos exatamente que são seis, dos quais um foi
morto.

- Receio que Sua Santidade esteja equivocada nesse ponto – falou Sacros de
Altar. – Tivemos hoje mesmo um exemplo de que não são apenas os seis que
teremos de enfrentar, pois Apep não corresponde ao grupo principal.

- Marechais do Inferno – disse Girtab após beber um gole de seu cálice. – Essa
é a denominação para os seis principais demônios que auxiliaram Lúcifer em
sua rebelião. Atentem para o fato de que são os seis principais, pois há um
número grande de outros demônios que servem a eles, e esse número é
incerto.

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Todos ficaram silenciosos por um tempo, até que o silêncio foi rompido
pelo mais jovem dos Virtus, um jovem de revoltos cabelos castanhos claros e
curtos, com expressivos e alegres olhos verdes que combinavam com a
expressão jovial em seu rosto muito branco e com algumas sardas.

- Mestre... eu...eu poderia lhe fazer uma pergunta? – indagou o jovem com
visível constrangimento.

- Sim, eu o conheci, Benício – respondeu Girtab ao jovem, antecipando-se à


pergunta. – Foi há muitíssimos séculos, e foi por causa dele que a Guerra
Santa daquela era começou. Não vou mentir a você e dizer que Yeshua e eu
fomos os melhores amigos desse mundo, pois nossas formas de ver e lidar
com as coisas eram um pouco diferentes. Entretanto, ele era um homem
notável.

- Homem? – indagou Benício – Ele não era um simples homem, Mestre, ele
era...

- Um homem – respondeu Girtab categoricamente. – Assim como Atena é uma


mulher. Os espíritos divinos que estão neles precisam de um corpo mortal, e
assim como o corpo de Atena é o de uma jovem mulher, o de Yeshua era o
corpo de um homem.

- Meu amigo Girtab – intercedeu Inocêncio -, dentro da análise teológica da


figura de Jesus Cristo, nós podemos...

- Não seja teimoso como seu antecessor era, Inocêncio – interrompeu-o Girtab
com gentileza, porém de forma firme. – Francesco, ou Sisto IV, como ele foi
chamado, era um homem brilhante, mas se recusava a acreditar em uma
testemunha ocular, preferindo seguir as escrituras que eu mesmo vi serem
construídas e modificadas ao longo dos séculos. Eu conheci Yeshua, lutei por
ele, e quase lutei contra ele.

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O espanto produzido por essas palavras foi enorme. Aquele detalhe era
uma novidade que surpreendia e assustava a todos os presentes, pois a
imagem que se tinha de Girtab, além do enorme poder, era de sua sabedoria e
bondade. Como aquele homem pode quase entrar em conflito com Jesus?

Francesco se levantou de repente, fazendo um gesto que pedia silêncio


enquanto ele fechava os olhos e se concentrava. Após alguns instantes,
finalmente, ele falou.

- Sinto a presença de invasores nas imediações deste Santuário. Se os


senhores me dão permissão, irei ver pessoalmente do que se trata.

E, após uma leve reverência com a cabeça, ele saiu rapidamente da


sala de banquetes. Inocêncio olhou para Girtab e perguntou-lhe.

- Você não enviará nenhum dos seus guerreiros para averiguar a suspeita de
Francesco?

- Não será necessário – respondeu o Grande Mestre com simplicidade. – Eu


havia sentido a presença dos invasores antes mesmo que o banquete
começasse, e já tomei minhas precauções.

***

- É inútil tentarem prosseguir. Não passaram por mim, nem que eu tenha de
morrer enfrentando vocês.

[i]Teíchos tou Krystállou[i]! (Muralha de Cristal)

Frixo de Áries mantinha-se parado com os braços abertos, enquanto


dois inimigos tentavam destruir a barreira que ele havia criado. Embora os
golpes desferidos pelos inimigos fossem potentes, a muralha erguida pelo
ariano parecia ser intransponível, e devolvia os golpes contra eles.

104
- Agora, criaturas demoníacas – bradou Frixo -, me digam quem são vocês.

A ordem, porém, não foi atendida. Os inimigos continuaram atacando a


muralha, mesmo sem sucesso. Em meio aos sons dos golpes dos inimigos,
Frixo pode ouvir um rápido galopar, e um poderoso cosmo preencheu o
ambiente. Repentinamente, uma rajada de energia destruiu a barreira de Frixo
com uma violência tremenda, e ele foi arremessado ao chão pelo
deslocamento de energia. Erguendo a cabeça enquanto levantava-se do chão,
o Cavaleiro de Áries contemplou o demônio que havia destruído sua barreira.

A frente de Frixo apresentava-se uma figura imponente e aterradora,


montada em um grande cavalo negro com patas de dragão. O seu rosto, visível
através do grosso capuz de uma pesada capa de viagem, era belo e feroz, e
não era possível saber o que era mais ameaçador: o seu rosto avermelhado
com traços felinos ou os seus olhos flamejantes e carregados de terror.

- Quem... quem é você? – perguntou o ariano surpreso e levemente ofegante.

- Sou o seu algoz – respondeu-lhe o demônio com gravidade.

Os outros demônios, que outrora haviam tentado passar por Frixo, agora
ficavam às costas do demoníaco cavaleiro que havia chegado. Os seus olhares
para ele eram mistos de medo e reverência, e havia um sorriso maldoso
estampado em suas faces, como se já se divertissem com o que poderia
acontecer depois.

- Meu algoz? – indagou Frixo com ironia, agora que estava plenamente
recomposto – Acho que o único algoz aqui serei eu. Preparem-se para sentir o
verdadeiro poder de um Cavaleiro de Ouro.

E, com essas palavras, o ariano começou a elevar o seu cosmo. Porém,


algo estranho começou a acontecer no céu: o brilho do Sol, em seu ápice,
estava sendo coberto por nuvens escuras, e rapidamente todo o Santuário de
Atena foi envolto por sombras noturnas, mesmo durante o dia.

105
- E o que é que você pretende fazer contra mim, Cavaleiro? Vai criar outra
proteção cósmica tão ridícula quanto a anterior?

- Não possuo apenas uma técnica defensiva – respondeu Frixo enquanto


erguia a mão direita com a palma estendida. – E aquela barreira não havia sido
criada com todo o meu poder, pois os inimigos que eu enfrentava eram fracos.
De qualquer maneira, isso não importa agora, pois chegou o seu fim!

E então, o cosmo que o Cavaleiro de Áries havia reunido se concentrou


em sua mão erguida, e as pontas de seus dedos começaram a emitir um brilho
intenso e pulsante.

[i]Myriádes Astéria[/i]! (Miríades de Estrelas)

Os flashes de luz que disparavam das pontas dos dedos da mão do


ariano eram como milhares de estrelas que começavam a brilhar e, em meio a
emissão de luz, disparavam na direção do inimigo com grande força e
velocidade, produzindo um brilho cada vez mais intenso, que acabava por
ofuscar a visão de todos. Por fim, quando as luzes cessaram e os olhos
voltaram a enxergar, Frixo contemplou o corpo dos inimigos caídos ao chão. Ali
estavam os dois demônios que haviam tentado passar por ele, o cavalo com
patas draconianas e... onde estava o cavaleiro?

- É realmente uma técnica belíssima, mas infelizmente, para você, ela é muito
lenta e fraca. Sinta agora o verdadeiro poder dos astros.

Frixo virou-se imediatamente, e viu que o inimigo estava às suas costas,


com os braços cruzados por sobre o tórax. Frixo teve um átimo para perceber
que agora era o demônio que preparava um ataque.

[i]Galaktikakan Payt’yun[/i]! (Explosão Galáctica)

[i]Teíchos tou Krystállou[i]! (Muralha de Cristal)

106
Uma violentíssima explosão de energia atingiu o Cavaleiro de Áries, e
tudo que estava a sua volta, em um perímetro de vinte metros, foi
desintegrado, abrindo uma cratera no chão. O demônio agora estava com os
braços estendidos na direção do corpo de Frixo, que estava caído inerte no
chão.

- Humpf, esse bastardo era mais forte do que eu havia imaginado – falou o
inimigo. – Seria de esperar que ele se desintegrasse quando recebeu o meu
golpe, mas sua barreira ainda conseguiu salvá-lo. Embora não tenha morrido
com o primeiro golpe, não terá chance de escapar agora que está inconsciente.

- E você acha que o fato de tê-lo atacado pelas costas não contribuiu em nada
para que ele fosse atingido? – perguntou uma voz vinda de trás do demônio.

Ao virar-se, ele contemplou um homem com uma longa túnica branca,


coberta por uma leve capa de viagem azul clara. No peito havia o símbolo de
duas chaves que se cruzavam por trás de um escudo vermelho.

- E quem é você? – perguntou o demônio com rispidez.

- Diga seu nome, e eu lhe direi o meu. Embora eu ache que sei quem você é:
Aloccer.

- Ha,ha,ha! Parece que você não é tão estúpido assim – falou Aloccer. – Você
acertou o meu nome, mas eu ainda não sei que você é. Mas, isso não me
interessa, já que irei matá-lo também.

- Também? Não vi você matar ninguém até agora – falou o Virtus.

- Ele escapou por pouco, mas você não terá a mesma chance.

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- De fato ele escapou por pouco, o que só mostra o quanto ele era mais
poderoso do que você, pois ele foi atacado pelas costas e de surpresa. Em
condições normais, você não teria tido chance.

- Não teria tido chance? – indagou Aloccer furiosamente – A técnica dele não
me fez nada, e a minha técnica quase o matou.

- Não, e você sabe muito bem disso.

- Você é cego por um acaso? Não viu o que aconteceu?

- Eu vi tudo, Aloccer – respondeu o Virtus com calma. – Vi quando sua


montaria ficou eriçada com o ataque eminente de Frixo, avisando a você que
era hora de escapar. Vi quando você colocou sua montaria em sua frente para
tentar bloquear os ataques e, quando viu que era impossível, colocou os dois
demônios na linha do ataque por meio de telecinese. Vi também quando,
aproveitando-se da explosão ofuscante de luz, você saltou para traz de Frixo.
Você é um covarde, embora rápido, eu devo admitir.

- Mas... como você viu isso...quem é você?

- Meu nome é Francesco, e sou o Virtus que representa a Humildade.

- Entendo – falou Aloccer fazendo uma breve pausa para assimilar as coisas. –
Então vocês chegaram em segurança até aqui. Humpf, mas isso será inútil,
pois há uma surpresa nefasta reservada para vocês.

- Se você se refere ao demônio que estava infiltrado entre os nossos – disse


Francesco com calma -, informo-lhe que ele já foi descoberto e eliminado. E
agora é a sua vez.

- Quanta presunção para alguém que deveria ser humilde – caçoou o demônio,
mas era visível que a descoberta do plano de Baal havia lhe surpreendido e
assustado. – Acha que tem chances contra mim?

108
- Eu sei que eu irei derrotá-lo. Sua técnica já foi vista por mim, e eu sei como
evitá-la. Aliás, eu não fui o único a vê-la, pois havia outro Cavaleiro de Ouro
observando a luta. Caso eu seja derrotado, ele virá para enfrentá-lo.

- Que besteira! Se vocês dois estavam olhando, por que não vieram ajudar o
seu amigo?

- Por que nós temos honra o suficiente para deixar que um guerreiro termine
sua batalha. Além do mais, nós percebemos que vocês três juntos não seriam
ameaça para Frixo. Entretanto, quando você atacou covardemente, me vi
obrigado a intervir. Agora, é hora de dizer adeus a esse mundo.

E Francesco ergueu o braço esquerdo completamente esticado no ar, e


uma grande energia cósmica emanou de seu corpo.

- Você se arrependerá por isso. Vire poeira!

[i]Galaktikakan Payt’yun[/i]! (Explosão Galáctica)

[i]Gladius Dei[/i]! (Espada de Deus)

Uma violenta explosão, como a provocada anteriormente pelo golpe de


Aloccer, estremeceu o local. Francesco e Aloccer continuavam de pé: o
primeiro com o braço estendido da direção do demônio, e o outro com os dois
braços estendidos na direção do Virtus.

- Realmente você escapou do meu golpe, mas a sua técnica foi inútil contra
mim – falou Aloccer.

Francesco virou-se de costas e começou a caminhar na direção das


Doze Casas, enquanto o inimigo o observava intrigado.

- Hei! Volte aqui, covarde! Venha terminar o noss... ahhh!

109
E o sangue afluiu do seu corpo em uma linha vertical exata e, segundos
depois, o seu corpo caía ao chão, com uma metade caindo para cada lado. A
batalha havia terminado. Francesco agora passava por um Cavaleiro de Ouro
que tinha observado toda a luta, e fala com ele.

- Eu esperava que o Cavaleiro de Touro viesse ao socorro de Frixo, já que ele


é o guardião da próxima Casa Zodiacal.

- Gerion não quis abandonar a Casa de Touro por que confiou plenamente em
Frixo antes mesmo de o combate começar – respondeu o Cavaleiro. - Eu
precisei vir até aqui para perceber que ele estava certo. Mas, parece que eu
não precisava ter me dado ao trabalho, já que você acabou vindo até aqui.

- Nunca é demais ficar preocupado por um amigo – disse o Virtus com bondade
e sinceridade. – Eu também precisei vir até aqui para me dar conta
completamente do poder de um Cavaleiro de Ouro. Dificilmente algum demônio
poderia destruir guerreiros tão poderosos como vocês tem demonstrado ser.
Talvez nossa vinda até aqui não seja tão útil para vocês.

E, com essas palavras, Francesco caminhou em direção às Casas


Zodiacais para se reunir ao Grande Mestre e ao Papa. O Cavaleiro de Ouro
acompanhou a caminhada do Virtus com um olhar intrigado e, em seguida,
dirigiu-se até o local onde Frixo estava caído e recolheu o corpo desmaiado do
amigo. Enquanto isso, ele deu uma última olhada no Virtus antes dele sumir de
vista, e então pensou consigo mesmo.

- “[i]Esse homem é mais poderoso do que aparenta ser. O demônio que ele
enfrentou não era um adversário simples de se derrotar. Frixo, mesmo sendo
um Cavaleiro de Ouro, teria tido alguma dificuldade na batalha, embora eu
tenha quase certeza que ele venceria. Porém, a velocidade do inimigo era
muito grande, e ele poderia apanhar qualquer um de nós de surpresa, e isso
poderia encerrar o combate a seu favor. Mesmo assim, Francesco conseguiu
ver todos os seus movimentos em meio às luzes do golpe de Frixo, e estava

110
preparado não apenas para evitar a técnica dele, mas também para contra
atacá-lo nesse meio tempo. Será que todos os Virtus são tão poderosos?[/i]”

Deixando as divagações para depois, ele levou o corpo do ariano rumo à


primeira Casa Zodiacal. Em uma análise final, essa batalha havia sido útil para
ele em diferentes aspectos. Logo, seria sua vez de lutar.

111
[b]CAPÍTULO XII: [i]A Profecia do Apocalipse[/i][/b]

Francesco já havia voltado à Sala do Grande Mestre, e estava reunido


com quatro dos demais cinco Virtus que haviam permanecido no local. Galen, o
Virtus que representava a Paciência, havia saído antes do retorno de
Francesco, durante a batalha contra Aloccer.

Ambos aguardavam pelo retorno do Papa e de Girtab, que estavam há


algum tempo trancados na Sala de Meditação. O Sol já estava ficando com um
tom avermelhado, tingindo o céu de rubro enquanto se preparava para
mergulhar nos confins do ocidente, dando término há mais um dia. Antes,
porém, que a luz solar desaparecesse completamente, Girtab e Inocêncio se
reuniram a eles novamente. A expressão no rosto do Papa cristão era de
cansaço e apreensão, enquanto que o Grande Mestre do Santuário de Atena
ostentava uma expressão inflexível.

- Eu insisto mais uma vez, Girtab...

- Chega – disse o Grande Mestre categoricamente, com uma voz cansada e


beirando à irritação. – Nós discutimos isso por horas, e eu já lhe provei que
essa é uma medida urgente e necessária.

- Mas deve haver outra solução – falou o velho Papa. – Você sabe o quão
perigoso isso pode ser.

- E você também sabe que será mais perigoso nos arriscarmos a não fazer
nada para impedir. Mesmo que não seja o plano dele, não devemos nos
descuidar.

- Mas parece que você está se esquecendo de o quanto isso pode ser perigoso
– insistiu Inocêncio.

Girtab caminhara em direção ao seu trono, e os Virtus baixaram sua


cabeça em respeito enquanto ele passava por eles. Então, ele sentou-se,

112
apanhou o seu cálice, e bebeu um longo gole de água. Por fim, ele falou com
uma voz clara e calma, seus olhos mirando o líder dos cristãos.

- Parece que você se esqueceu de uma coisa, Inocêncio.

- E o que seria? – indagou o Papa.

- Estamos vivendo um momento de periculosidade extrema, e não podemos


nos dar o prazer de refutar tarefas que pareçam, ou que realmente sejam,
difíceis e perigosas. Chegou o momento de escolhermos.

- Escolhermos? – perguntou Inocêncio, com curiosidade evidente em sua voz.


– Escolhermos o que?

- Escolher entre o que é certo e entre o que é fácil – respondeu o Grande


Mestre com simplicidade, como se aquilo fosse a coisa mais simples e
dedutível no mundo. – Quanto mais ponderarmos sobre isso, mais tempo Baal
terá para trazer Lúcifer de volta. Nesse exato momento, um dos seus
guerreiros está prestes a entrar em uma batalha mortal, Inocêncio, e o demônio
que ele enfrentará é um dos mais poderosos do exército luciferiano.

- Eu sei disso, Girtab, mas...

- Já discutimos muito esse assunto, Inocêncio – falou o Grande Mestre em um


tom firme, porém gentil, decidido a encerrar a discussão. – Você e seus
homens fizeram uma viagem muito longa, e devem descansar por hoje.
Batalhas cada vez mais duras nos esperam, e é melhor que os corpos e as
mentes de vocês estejam descansadas.

- Eu não sou uma criança que você pode mandar dormir quando quer, Girtab
de Escorpião! – bradou o Papa com um tom insatisfeito – Eu sou o Santo
Padre, o Bispo de Roma, o Sumo Pontífice da Santa Madre Igreja Católica
Apostólica Romana, o Líder dos Cristãos no mundo, e minha opinião e minha
autoridade devem ser levadas em conta, Girtab!

113
- Por favor, Inocêncio, abrande-se – disse o Grande Mestre em uma voz calma
e baixa.

- Eu não irei dormir até que tenhamos chegado a um consenso! – bradou o


Papa, indiferente ao pedido de Girtab.

O Grande Mestre repousou o seu cálice de volta na pequena mesa que


ficava ao lado do seu trono. Ele ficou em silêncio enquanto o Papa alteava a
voz e gritava, e agora ele mantinha os olhos fechados, como se tentasse
abstrair o que se passava ali. Mais uma vez, porém, a voz do Papa chegou,
alta e irritada, aos seus ouvidos.

- Se for preciso ficar a noite inteira lá dentro – falou Inocêncio apontando para a
Sala de Meditação -, nós ficaremos.

- Por favor, eu insisto: modere-se, Inocêncio – apelou novamente o líder do


Santuário de Atena, e agora sua voz já assumia um tom que indicava um
grande esforço para manter-se controlada.

- Enquanto você não me convencer de que a sua idéia realmente é a melhor –


gritou o Papa, ainda ignorando os pedidos de Girtab -, nós não sairemos de lá!
A minha experiência me diz...

- Sua experiência? – falou Girtab em um tom extremamente baixo, de modo


que Inocêncio não o ouviu com clareza.

- O que disse, Girtab? – questionou o Papa.

- Sua experiência? – repetiu Girtab com a voz controlada, ainda de olhos


fechados – Que experiência você tem? Se minha memória não falha, você
nunca esteve em um combate como esse, Inocêncio.

114
- Como Sumo Pontífice, já estive em meio há muitas guerras, Girtab, e foi a
minha experiência e a minha autoridade que... – começou o Papa com
arrogância e autoridade, alteando sua voz mais uma vez.

Porém, dessa vez o Grande Mestre não pode se controlar, pois tanto os
gritos quanto o tom arrogante que o Papa cristão estava utilizando eram
inaceitáveis em uma situação como aquela. Inocêncio estava claramente se
considerando em uma posição superior ao do Grande Mestre do Santuário de
Atena, e não estava respeitando-o com o devido merecimento que alguém em
uma posição tão elevada merecia.

Repentinamente, Girtab pusera-se de pé, com os olhos abertos e


ameaçadores, como se algo colérico tivesse sido desperto em seu interior. Seu
olhar era aterrorizante, e uma aura dourada e quente emanava de seu corpo,
como se o próprio Sol estivesse dentro dele. Porém, o havia algo mais a se
temor: a sua voz. Tomado pela ira, a voz do Grande Mestre soava como um
trovão, anunciando que uma perigosa tempestade estava para vir.

- Você se atreve a comparar as pequenas guerras territoriais que você mediou


em segurança, no seu palácio em Roma, com uma situação como essa?! –
explodiu Girtab, e o Papa recuou vários passos para trás, ficando próximo aos
Virtus que, nesse instante, colocaram-se em posição defensiva ao seu líder. –
Você nunca esteve em uma guerra! Você nunca lutou em uma guerra! Você
nunca perdeu amigos e pessoas amadas em meio a guerra! Como pode ter a
audácia de dizer que tem alguma experiência?!

O local estava completamente envolto pela cosmo energia do Grande


Mestre, e parecia que uma corrente elétrica e um poderoso vendaval se
formavam naquela sala. Os Virtus olhavam uns para os outros, com apreensão
nos rostos.

- Então...então é esse o lendário guerreiro que lidera o Santuário de Atena!? –


falou Odisseu, abismado e admirado com o que via. – Eu nunca senti uma

115
energia tão assombrosa como essa. Como é possível um homem ter tamanho
poder?!

As portas do Salão do Grande Mestre são abertas de repente, e dois


Cavaleiros de Ouro adentram o local apressadamente.

- O que está acontecendo aqui? – indaga Cristos de Peixes, que viera


acompanhado por um jovem esbelto de cabelos castanhos na altura dos
maxilares.

- Pudemos sentir o cosmo do Grande Mestre se elevar em uma explosão –


falou o Cavaleiro que o acompanhava -, e pensamos que algum inimigo tivesse
aparecido por aqui.

- Não há inimigo algum por aqui, Ganimedes de Aquário – falou o Grande


Mestre fitando os olhos verdes do defensor da décima primeira casa zodiacal.

Após dizer isso, Girtab pareceu recuperar o autocontrole, e sentou-se


novamente em seu trono. Todos o olhavam com atenção, como se esperassem
por mais uma súbita onda de ira, mas isso não aconteceu. O Grande Mestre
baixou a cabeça, colocou as mãos por sobre os olhos, e respirou
profundamente. Por fim, ele ergueu o rosto e abriu os olhos, e estes, agora,
eram novamente os plácidos e brilhantes olhos castanhos de sempre.

- Não vou me desculpar pelo que aconteceu – falou ele em seu tradicional tom
calmo -, pois não sou do tipo de homem que faz as coisas e depois expressa
arrependimentos apenas por meio de palavras. Arrependimentos se mostram
por meio de ações, e garanto-lhes que uma situação como essa não se
repetirá, pois não haverá outra oportunidade para isso.

- Como assim, Mestre? – perguntou Cristos.

- Cristos e Ganimedes – falou o Grande Mestre -, não lhes foi dada permissão
para deixarem suas casas zodiacais. Retornem imediatamente aos seus

116
postos. Quando Kabouri retornar, peçam que ele venha me ver pela manhã,
pois estou cansado e preciso descansar.

- Não – falou o Papa. – Não terminamos o nosso assunto ainda, Girtab.

- Mas não será agora que o terminaremos, Inocêncio – falou o Grande Mestre
enquanto se levantava e se dirigia aos seus aposentos. – A noite e a ira são
péssimos conselheiros, de modo que acho melhor nos acalmarmos e voltarmos
a conversar amanhã pela manhã. Eu já estou decidido, e nossa conversa
consistirá unicamente em convencer você de que eu estou certo. Boa noite a
todos.

E, assim, o líder dos guerreiros de Atena foi dormir, deixando os


presentes com uma expressão intrigada no rosto. Inocêncio agora caminhava
em direção aos aposentos que lhe foram preparados, e um dos Virtus não se
conteve e fez a pergunta que todos ali desejavam fazer.

- Sua Santidade me permite uma pergunta? – falou Benício.

- Sim, meu bom rapaz – falou o Papa em um tom cansado e preocupado.

- O que é essa coisa tão perigosa que vós dois tem discutido? O que pode ser
tão perigoso?

- O Grande Mestre do Santuário de Atena está pensando em matar um dos


seus guerreiros – respondeu o Papa Inocêncio em um tom apreensivo. – Mas,
como ele disse, esse não é um bom momento para discutirmos isso. Amanhã,
sob os raios do Sol, poderemos conversar novamente. Descansem bem, e
durmam sob a proteção de Deus, Nosso Senhor.

Então, deixando os outros a trocarem olhares intrigados, o Papa se


retirou do Salão. Francesco, que ficara em silêncio total desde que retornara do
combate, perguntou aos demais Virtus.

117
- Onde Galen foi? Pelo que entendi das palavras do Grande Mestre, um dos
Virtus está prestes a enfrentar um inimigo, e esse Virtus é o Galen. Onde ele
foi?

- Ele foi até o Areópago – respondeu um jovem de cabelos castanhos longos.

- Ao Areópago? – questionou Francesco pensativo. – E o que ele foi fazer lá,


Óliver?

- O Grande Mestre suspeitou que naquele local pode estar aprisionado o


espírito de Azazel, o demônio que representa a Ira – explicou Óliver.

- Mas por que ele suspeitou isso, nós não sabemos – comentou Isar, com seus
olhos verdes cintilando.

- Não, Isar. Eu nunca disse que eu não sabia o motivo da suspeita – comentou
Odisseu em um tom casual. – Eu sou grego, e conheço bem o Areópago e o
seu significado, de modo que eu consegui entender o pensamento do Grande
Mestre. Só não expliquei antes para vocês por que achei que mais alguém
havia entendido.

- Então conte-nos, Odisseu, por favor – pediu Isar.

- O Areópago serve para designar duas coisas: um local, e um acontecimento.


Há muito tempo, os líderes atenienses se reuniam no topo de uma colina para
decidirem os rumos que a cidade deveria tomar. Lá eles falavam sobre cultura,
política e guerra. O nome desse conselho de líderes era Areópago, pois ele se
realizava numa colina com o mesmo nome.

“Em grego arcaico, a palavra é [i]Areópagus[/i], e significa Colina de Ares. Ares


é o deus da guerra e, como os líderes que se reuniam eram os generais da
cidade, o local era também utilizado como conselho de guerra.”

118
- Mas eu pensei que Atena fosse a deusa da guerra – questionou o jovem
Benício.

- Não, Benício – falou Isar. – O deus da guerra para os gregos é Ares.

- Nenhum dos dois está errado – completou Francesco. – Ares e Atena são os
deuses da guerra, mas cada um representa um lado dela. Ao passo que Atena
simboliza o lado estratégico e justo da guerra, Ares representa o seu lado
sanguinário e agressivo. Dentre os dois, Atena sempre foi a predileta dos
gregos, estou certo, Odisseu?

- Sim, Francesco.

- Mas, eu ainda não entendo no que isso tem relação com o demônio que
Galen foi enfrentar – comentou Benício, ainda confuso.

- Permita-me esclarecer as coisas para você, Benício – falou Odisseu com


bondade. – O demônio que Galen deve estar enfrentando nesse instante se
chama Azazel, e ele representa a Ira. Ares, como deus da guerra sanguinária e
da agressividade, se relaciona com ele. Assim, o Grande Mestre suspeitou que
o espírito de Azazel, quando foi derrotado, refugiou-se na colina do Areópago
mas, de alguma forma que eu não sei como explicar, o espírito dele acabou
ficando adormecido no local. Com o retorno de Baal, porém, ele deve ter
sentido que era o momento de despertar novamente, e Galen foi enviado para
destruí-lo.

- Claro, pois Galen simboliza a Virtude da Paciência, que é o oposto da Ira –


concluiu Benício.

- Faz sentido – falou Francesco. – Porém, como o Grande Mestre disse, Azazel
é um dos demônios mais poderosos do exército luciferiano. Por que apenas
Galen foi enviado? Por que nenhum de vocês se prontificou a ir junto?

119
- Por que foram ordens de Vossa Santidade – respondeu-lhe Odisseu. –
Segundo Vossa Santidade, deve haver um equilíbrio espiritual no combate, e
uma Virtude deverá se opor a um Pecado.

- E o Grande Mestre não se opôs? – perguntou Francesco apreensivo com o


perigo que o amigo corria.

- Ele falou que as ordens de Vossa Santidade eram absolutas – respondeu-lhe


Isar com gravidade -, e que nós não poderíamos nos opor a elas.

- Entendo – disse Francesco com um leve desapontamento na voz.

- Mas – disse Benício com uma voz animada –, o Grande Mestre também disse
que a autoridade de Vossa Santidade era apenas sobre nós, e que ele tomaria
as decisões que lhe convinham. Por isso, ele ordenou que Kabouri de Câncer
fosse enviado como reforço, caso a batalha seja demasiado complicada. Esse
homem não é incrível? – perguntou o jovem Virtus com alegria e admiração.

Francesco caminhou até a saída, e contemplou o céu, agora escuro,


enfeitado por muitas constelações. Quando se preparava para sair, Odisseu o
interrompe perguntando:

- Aonde vai, Francesco? Por acaso não ouviu as recomendações do Grande


Mestre e de Vossa Santidade? É melhor que descansemos agora,
principalmente você, que acaba de retornar de um combate.

- Infelizmente, meu amigo – disse Francesco em um tom apreensivo -, não


conseguirei dormir tão facilmente.

- Está preocupado com Galen?

- Não apenas com ele. Estou preocupado com o que Vossa Santidade nos
disse.

120
- Como assim?

- O Grande Mestre do Santuário de Atena está pensando em matar um dos


seus guerreiros. Você, com toda a sua sabedoria, conseguiu captar o
significado disso?

- Hum, vejo que você partilha do mesmo pensamento que eu – falou Odisseu
em um tom amistoso. – Não entendo qual é o plano do Grande Mestre, mas
acho que Vossa Santidade não deveria ficar tão preocupado, afinal de contas,
todos nós estamos preparados para a morte, não é mesmo?

- Sim, você está certo como sempre, meu amigo. É melhor eu tentar dormir, e
pedir ao Nosso Senhor que proteja Galen, se assim for de Seu desígnio.

E assim, os Virtus foram dormir, imaginando como andaria o combate


entre Galen e Azazel. Porém, nem nos seus sonhos eles poderiam imaginar o
que estava acontecendo realmente.

***

- Eu já lhe disse que não há nada que possa ser feito.

Galen estava caído no chão, coberto de sangue e ferimentos. Uma


figura imponente o encarava: um homem alto e robusto, trajando uma reluzente
armadura vermelha, encarava-os com superioridade. Seus olhos quase
flamejantes pareciam sedentos por sangue, e seus cabelos dourados
esvoaçavam com o vento quente que corria no alto da colina.

Com visível dificuldade, o Virtus se levantava mais uma vez, colocando-


se em posição de combate. O homem o olhou com fúria, e agora ele apontava
uma aguda espada para ele.

121
- Ainda não percebeu que jamais deveria ter erguido um dedo contra um deus
como eu? Isso é um pecado que deverá purgar com a própria vida. Eu, Ares,
filho de Zeus, irei conduzi-lo ao mundo dos mortos.

- Você não percebe que Lúcifer irá dominar tudo se você se juntar a ele? –
bradou Galen – Lúcifer destruirá o mundo inteiro, e você não reinará sobre
nada.

- Hahaha – riu o deus com desdém. – E quem disse que eu me importo se


Lúcifer estiver no poder? O que me importa é que eu estou livre para lutar
quando eu quiser, algo que meu pai jamais permitiu, e que a maldita Atena tem
me impedido Era após Era. Agora é o seu fim: morra!

E ele ergueu sua lâmina no alto, fazendo com que ela reluzisse
friamente à luz do luar. Porém, no instante em que a espada descia, uma voz
parecia subir a colina, tornando-se mais nítida, o que fez com que o deus
cessasse seu golpe por um instante.

- Uma situação como essa é vergonhosa – falou uma voz que se tornava cada
vez mais alta.

Com surpreendente calma, um homem trajando um traje dourado, com


uma alvíssima capa ondulando ao sabor do vento, caminhava em direção ao
topo da colina.

- Kabouri – disse Galen, ainda caído no chão. – Você, mais uma vez, vem para
salvar um aliado. Infelizmente, esse adversário e por demais poderoso para
nós.

- Humpf, vejo que Atena mandou mais um de seus brinquedos para me


enfrentar – falou Ares com desdém.

- Não – respondeu o canceriano com uma calma sobre-humana. – Atena não


me enviou para enfrentá-lo, pois ela não sabia que você estaria liberto e, caso

122
soubesse, jamais teria me enviado, pois não sou o inimigo adequado para lhe
vencer. Entretanto, parece que sua condição de divindade está sendo posta de
lado, e agora você está servindo a uma criatura de menor grau.

- O QUE!? Como se atreve a falar isso?! – gritou Ares – Eu sou Ares, o Grande
Deus da Guerra, filho de Zeus. Jamais eu serviria a alguém inferior a mim.

- Sinto muito, mas perece-me que você está servindo de soldado raso para os
exércitos de Lúcifer. Pensando bem – disse o canceriano com ironia -, eu até
entenderia se você obedecesse a ele, pois ele é poderoso. Mas eu não consigo
entender como um deus que se orgulha de sua posição divina pode estar
servindo a um demônio como Azazel, afinal de contas, era ele quem deveria
estar aqui para nos enfrentar, mas parece que ele deixou você no lugar dele.

- Kabouri, cuidado! – gritou o Virtus enquanto reunia energias para se levantar.

Uma explosão cósmica poderosíssima arremessou o canceriano para


longe, fazendo com que ele caísse estatelado de costas no chão. O ar havia
ficado terrivelmente quente, e Ares bufava como um touro raivoso. A situação
havia ficado terrivelmente perigosa.

- Eu jamais servirei a alguém inferior a mim – gritou Ares, sua voz potente
sobrepujando a voz de Galen.

- Mas..você...você está servindo. Você está sendo usado – falou Kabouri com
dificuldade enquanto se levantava, ainda firme em seu plano. – A prova disso é
que irá nos matar agora, cumprindo as ordens que lhe foram dadas. Vamos,
termine com isso de uma vez.

E, com essas palavras, o Cavaleiro de Câncer abriu os braços,


abdicando completamente de sua defesa. Então, com um lampejo seguido de
um baque metálico, a espada que Ares segurava foi arremessada contra
Kabouri, que caiu com a arma cravada em seu peito, de forma que apenas um
pedaço dela ficava visível alem do punho. O Cavaleiro, no último instante,

123
havia tentado deter o golpe letal, de modo que suas mãos seguravam
inutilmente um pedaço da lâmina que estava enterrada em seu corpo.

- NÃÃÃOOO! – gritou Galen em desespero, correndo na direção do corpo do


Cavaleiro de Atena e colocando-se de frente para o inimigo, disposto a lutar
para vingar a morte de Kabouri. – Esse homem se arriscou para salvar a mim e
aos meus companheiros hoje pela manhã. Não posso permitir que ele morra
por mim agora.

- Hahaha – riu Ares com desdém, ainda furioso. – Então parece que sua dívida
para com ele acaba de ser dobrada, pois o sacrifício dele salvou a sua pele,
humano. Não irei matá-lo agora por que isso seria o mesmo que obedecer aos
desígnios daqueles que são inferiores a mim, conforme o Cavaleiro de Atena
disse há pouco. Entretanto, eu não poderia permitir que ele permanecesse vivo
depois de tudo o que me disse. Aproveite a breve extensão de vida que lhe foi
concedida.

E, como uma tempestade que avança para outras paragens, Ares


enveredou para outra direção, criando um turbilhão furioso de vento e calor por
onde ele passava como uma nuvem. Agora, Galen colocava-se de joelhos ao
lado do Cavaleiro de Câncer, cujo sangue agora tingia de carmim a capa que
antes fora branca.

- Kabouri – disse Galen em um lamento -, duas vezes você me salvou hoje, e


dessa vez a sua vida foi o preço por isso. Ficarei em dívida eterna com você.

E ele começou a chorar, e esse choro não era apenas um lamento por
perder um amigo, mas também um pranto que mesclava a sensação de
inutilidade e impotência frente ao ocorrido. Com esforço, Galen cessou o choro,
e recolheu o corpo de Kabouri do chão. Agora, o Virtus caminhava
solenemente com o heróico Cavaleiro de Câncer em seus braços, em uma
espécie de cortejo fúnebre solitário e sofrido.

124
Após algum tempo caminhando, o Virtus assustou-se a jogou o corpo do
canceriano no chão.

- Hei! Por que essa brutalidade? – disse Kabouri levantando-se do chão.

- Você... você está morto? – perguntou Galen aturdido.

- Bem, na verdade não, mas foi por muito pouco – respondeu ele com uma voz
grave.

- Há quanto tempo você está acordado?

- Acho que desde que eu fui ajudá-los hoje pela manhã.

- Quer dizer que você não foi atingido pela espada de Ares? – perguntou o
Virtus com incredulidade, vendo um pedaço da arma do deus caída no mesmo
local onde ele havia jogado o corpo de Kabouri.

- Não – disse o canceriano com simplicidade.

- Então...então por que você se deixou carregar por mim?

- Ora, por que eu estou cansado de salvar você toda hora – respondeu o
canceriano com um largo sorriso jocoso. – Além do mais, você mesmo disse
que está em dívida comigo, e eu pensei que uma carona até o Santuário seria
uma boa forma de começar a pagar essa dívida.

Galen ficou com uma expressão de extrema fúria em seu rosto, e


começou a gesticular descontroladamente, como alguém que não consegue
encontrar palavras suficientes para expressar o que está sentindo. Por fim, seu
rosto se abrandou em uma expressão de sincera e intensa felicidade, e ele
soltou uma alta risada de felicidade, como a de uma criança que acabara de
ganhar um presente que queria muito.

125
- Você me deve explicações, Kabouri de Câncer – falou o Virtus com um
sorriso estampado no rosto.

- Muito bem – disse o Cavaleiro, agora concentrando sua cosmo energia para
curar os cortes em suas mãos. – Antes de você ser enviado para enfrentar
Azazel, o Grande Mestre já suspeitava que Ares poderia ser liberto e se juntar
a Baal. Por isso, ele me deu instruções para esperar até que o Papa lhe
enviasse e...

- Espere um pouco – interrompeu-o Galen. – Quer dizer que o Grande Mestre


sabia que eu seria escolhido para enfrentar Azazel?

- Galen, Galen, Galen – falou Kabouri em um tom descontraído. – Você ainda


vai se surpreender muito com os planos do Grande Mestre. Aquele homem é
simplesmente brilhante. Mas, voltando ao que eu dizia antes, o Grande Mestre
me deu instruções de esperar até que você fosse designado pelo Papa, para
depois enviar-me como se ele houvesse me escolhido repentinamente, e...

- Mas por que isso? – interrompeu-o novamente o Virtus.

- Eles não ensinam bons modos na Igreja? – disse Kabouri aborrecido. – Não
sabia que é falta de respeito interromper os outros enquanto eles falam? Não
me interrompa mais, ou eu não conto mais nada para você.

- Desculpe-me, Kabouri. Não irei mais interrompê-lo.

- Bom. Como eu dizia, eu seria enviado como se o Mestre tivesse decidido


aquilo de repente, embora eu não saiba o motivo disso, e deveria ter certeza
que Ares estivesse furioso, pois o Grande Mestre me disse para esperar que a
ira fosse o ponto fraco da ira. Na hora eu não entendi, mas acatei o que me foi
dito.

“Aí eu segui você, e observei Ares lutar com você, e percebi que eu seria inútil
ao tentar travar um combate contra ele. Nós dois morreríamos. Foi então que

126
me lembrei de uma coisa que o Mestre me disse uma vez: ‘Você pode
conseguir as coisas de duas formas: pela força ou pela inteligência’. Bem, pela
força seria impossível para mim, então tive de agir com inteligência.

Comecei a provocá-lo, para tentar distraí-lo até você fugir, mas você não fez
nada. Então, quando ele me arremessou contra o chão, eu percebi que havia
sido um ataque a esmo, sem mira nenhuma. A razão para isso era simples: a
ira deixa as pessoas cegas. Ares, por mais que seja um deus, foi tomado pela
raiva de ser considerado inferior, e não pensava com clareza, de modo que não
premeditava nada do que fazia, agindo apenas por impulso. Então, eu o
provoquei para que me matasse, esperando que ele usasse a espada, e
felizmente a sorte me sorriu, pois ele arremessou a espada contra mim.

Enquanto ela voava em minha direção, eu quebrei a lâmina em duas partes, e


desviei um dos pedaços com meu poder mental, e mantive o outro rente ao
meu peito, como se a espada houvesse me atravessado quase até o cabo. Eu
apenas cortei minhas mãos para garantir um pouco de sangue, e deixar tudo
um pouco mais real.”

Galen mantinha um sorriso de felicidade e incredulidade estampado em


seu rosto, e não conseguia falar nada.

- Imagino que a carona esteja fora de questão, não é? – brincou Kabouri –


Nesse caso, acho melhor voltarmos correndo o mais rápido possível.
E então, eles saíram do Areópago, aproveitando a chance que a astúcia
de Kabouri e do Grande Mestre havia lhes proporcionado.

***

O Sol já estava se levantando no leste, anunciando que outro dia se


iniciava. O Grande Mestre, o Papa, Sacros e os Virtus - incluindo Galen -,
estavam sentados à mesa, apreciando um desjejum farto em frutas, pão e mel,
quando, repentinamente, o Papa quebra o silêncio.

127
- Ainda temos um assunto a debater, Grande Mestre.

- Grande Mestre? – falou Girtab enquanto apanhava um pedaço de pão fresco.


– Quando foi que você começou a me tratar de maneira tão formal, Inocêncio?
Ainda está bravo por causa do ocorrido ontem a noite?

- O assunto é sério – falou o Papa categoricamente.

- Claro. Sua Santidade poderia fazer-me o favor de me passar a taça com mel?
– pediu Girtab imitando um tom aristocrático, de modo que todos, inclusive o
Papa, acabaram rindo.

- Você não tem jeito mesmo, Girtab – disse o Papa com um sorriso contrariado.

- Velhos amigos não devem ficar brigados por maus entendidos. Mas, o pedido
do mel continua sendo válido.

Naquele momento, Kabouri entrava no Salão do Grande Mestre,


prostrando-se de joelhos próximo ao assento ocupado pelo líder do Santuário.

- O senhor queria falar comigo, Mestre? – perguntou o canceriano.

- Sim, Kabouri, preciso de um favor seu.

- E qual seria, Grande Mestre?

- Girtab – interrompeu-o o Papa. – Nós ainda não discutimos isso com a devida
cautela.

- Inocêncio – começou o Grande Mestre -, não há mais o que discutir. Meus


presságios se mostraram corretos, e Ares agora está ao lado de Baal. Ele
tenciona reunir os quatro.

- Os quatro? – indagou Isar – O senhor poderia nos explicar isso, Mestre?

128
Com um aceno de cabeça, Girtab saiu de seu assento e foi até sua Sala
de Meditação. Rapidamente, ele retornou com um volumoso livro em suas
mãos.

- Poderia abrir e ler para nós o livro do Apocalipse, capítulo seis, versículos um
a cinco, e depois versículos sete e oito? – falou Girtab entregando uma bíblia
nas mãos de Isar.

Este prontamente o fez, encontrando a passagem citada pelo Grande


Mestre e lendo-a:

“[i]Depois, vi o Cordeiro abrir o primeiro selo e ouvi um dos quatro Animais


clamar com voz de trovão: Vem! Vi aparecer então um cavalo branco. O seu
cavaleiro tinha um arco; foi-lhe dada uma coroa e ele partiu como vencedor
para tornar a vencer. Quando abriu o segundo selo, ouvi o segundo animal
clamar: Vem! Partiu então outro cavalo, vermelho. Ao que o montava foi dado
tirar a paz da terra, de modo que os homens se matassem uns aos outros; e
foi-lhe dada uma grande espada. Quando abriu o terceiro selo, ouvi o terceiro
animal clamar: Vem! E vi aparecer um cavalo preto. Seu cavaleiro tinha uma
balança na mão. Quando abriu o quarto selo, ouvi a voz do quarto animal, que
clamava: Vem! E vi aparecer um cavalo esverdeado. Seu cavaleiro tinha por
nome Morte; e a região dos mortos o seguia. Foi-lhe dado poder sobre a quarta
parte da terra, para matar pela espada, pela fome, pela peste e pelas feras.[/i]”

Todos ouviram em silêncio, e então o Grande Mestre falou, enquanto


Isar fechava o livro sagrado.

- Essa passagem se refere aos Quatro Cavaleiros do Apocalipse. Essa profecia


foi feita por um dos sábios Virtus da época em que Yeshua desceu à Terra, e
ele previu que chegaria o momento em que quatro poderosos seres se
juntariam quando a batalha contra Lúcifer estivesse próxima. Meus temores
foram confirmados, e Ares se juntou a Baal, simbolizando a Guerra,
representado nessa profecia como o cavaleiro montado no cavalo vermelho e

129
portando uma espada. Meu receio é que agora os outros Cavaleiros do
Apocalipse estejam prestes a ser recrutados.

- E o senhor tem idéia de quem sejam os outros três, Mestre? – perguntou


Kabouri.

- Girtab desconfia que Thánatos, a divindade grega da morte – disse o Papa -,


seja justamente o Cavaleiro da Morte, simbolizado pelo cavalo verde, o último a
aparecer. Por esse motivo, Girtab planeja enviar um de seus Cavaleiros até o
Mundo dos Mortos, para impedir que ele se junte às hostes de Lúcifer.

- Então é por isso que Sua Excelência disse que o Grande Mestre planejava
matar um dos seus guerreiros – concluiu Odisseu.

- Exatamente. E é por isso que temos discutido tanto, pois eu considero muito
arriscado mandar alguém para os domínios de Hades, principalmente em se
tratando de um Cavaleiro de Atena, que é inimiga de Hades desde os tempos
mitológicos.

- Por isso o senhor mandou me chamar, Mestre? – perguntou Kabouri – Como


eu tenho o poder de abrir o portal que leva até a entrada do mundo dos mortos,
o senhor planeja que eu vá até o Hades e convença Thánatos a não se juntar a
Baal e seu exército luciferiano. É isso?

- Não, meu plano não é esse – disse o Grande Mestre com simplicidade.

- Como não? – indagou o Papa, surpreso – Você foi bem claro ao dizer que
suspeitava que Thánatos seria o Cavaleiro da Morte, e que seria necessário
impedir isso. Eu perguntei se você pretendia enviar homens meus e seus para
a morte certa, e você disse que essa tarefa pertencia aos assuntos do
Santuário.

- Exato – disse Girtab quase displicentemente.

130
- E então? – questionou o Papa, aturdido com a reação do Grande Mestre. –
Como você pode me dizer agora que este não é o seu plano?

- Por que não é – disse o líder do Santuário com calma.

- Eu não entendo o que se passa pela sua cabeça, Girtab – falou o Papa
zangado. – Poderia me explicar qual é o seu plano então?

- Claro – disse Girtab sentando-se novamente à mesa e apanhando uma fruta.


– Eu jamais enviaria um dos meus guerreiros para uma missão suicida como
essa, principalmente pelo fato de que Thánatos iria se recusar a colaborar com
o Santuário de Atena.

- E então? – indagou o Papa, ainda sem entender.

- É um plano simples, Inocêncio, embora sua execução seja trabalhosa: eu irei


até o Mundo dos Mortos, confrontarei Thánatos e irei aprisioná-lo até termos
derrotado Baal. Eu irei me sujeitar aos riscos dessa missão, pois eu jamais
arriscaria a vida dos outros em algo tão perigoso quanto isso. É por isso que
preciso de você, Kabouri: você precisa transportar-me até a entrada dos
domínios de Hades, para que eu possa confrontar a morte.

Ao terminar de falar isso, Girtab mordeu um suculento figo, exibindo uma


fisionomia de quem se delicia com o sabor.

– Vocês tem que provar os figos, estão maravilhosamente doces – falou o líder
do Santuário descontraidamente, como se tudo o que fora discutido
anteriormente não passasse de uma breve e descontraída conversa sobre o
tempo.

Todos estavam atônitos, sem reação alguma. Como ele podia se manter
tão calmo? Será que o Grande Mestre estava realmente falando sério?

131
[b]CAPÍTULO XIII: [i]A Morte e o Imortal[/i][/b]

- Agora que você explicou, esse plano parece realmente simples – falou o Papa
com ironia. – A missão consiste pura e simplesmente em mandar o Grande
Mestre do Santuário de Atena, provavelmente o homem mais poderoso da face
da Terra, até os domínios de Hades, um inimigo eterno de Atena. Nesse lugar
onde os seus poderes de Cavaleiro serão anulados ou reduzidos, o Grande
Mestre irá confrontar, derrotar e aprisionar um deus. É isso mesmo, ou eu
esqueci algum detalhe dessa SANDICE! – gritou ele, não podendo mais se
controlar.

Girtab continuava sentado à mesa, com uma expressão de aparente


indiferença ao tom usado pelo Pontífice, e apenas acenava levemente com a
cabeça para confirmar as palavras que ouvia. Por fim, após um pequeno
intervalo silencioso - que se estendeu até ele terminar de mastigar um pedaço
de pão -, Girtab levantou-se, mirou o teto por um momento, como se
ponderasse sobre tudo o que ouvira, e falou ao Papa.

- Em suma, é isso mesmo – disse com simplicidade.

Foi a vez de Inocêncio se sentar, mas sua expressão era um misto de


pavor e raiva. Como Girtab podia estar pensando em fazer uma coisa suicida
como essa? Ele era o homem que tinha quase todas as informações sobre os
demônios que eles estavam enfrentando, o homem que tinha planos perfeitos
para sanar os problemas que apareciam, e o homem cujo nome era suficiente
para causar apreensão nos inimigos. Não havia dúvidas: era uma loucura.

- E você pretende morrer sozinho, – perguntou Inocêncio com seriedade -, ou


irá levar o seu acompanhante para a morte também?

- Inocêncio – começou Girtab em um tom ainda descontraído -, não sei se você


captou um detalhe importante e essencial do meu plano: eu não tenho a
mínima intenção de morrer.

132
- Mas você está indo para os braços da morte, literalmente.

- Sim, e pretendo voltar vivo. Aliás, nós voltaremos vivos.

- Então você assegura a vida de Kabouri? – indagou o Papa.

- Sim. A vida dele e dos outros – complementou o Grande Mestre enquanto


punha o seu elmo sacerdotal.

O Papa olhou para os lados, como que buscando as palavras certas


para externar as muitas perguntas que passavam por sua mente. Outros?
Então não seria apenas Kabouri que iria com ele? Foi só então que ele se
lembrou que os Virtus estavam ali, acompanhando em silêncio toda a
discussão. Para todos os fins, Girtab e ele eram os líderes e mentores de toda
a situação, e os planos deles deveriam ser debatidos em segredo, para que
ninguém compartilhasse das possíveis dúvidas que podiam surgir. A
privacidade e o segredo eram boas formas de manter a moral dos guerreiros
dos dois Santuários.

- Girtab – falou ele -, acredito que seria mais prudente se terminássemos nossa
conversa na Sala de Meditação.

- Mas nós já terminamos a conversa – falou o Grande Mestre, agora alinhando


seu manto sacerdotal sobre os largos ombros.

E foi então que, pela primeira vez desde que chegara ao Santuário de
Atena, o Papa viu Girtab trajado com todos os paramentos de Grande Mestre.
Seu rosto velho e rugoso agora estava oculto por uma máscara, e seus ombros
largos e firmes eram encimados por um suntuoso manto branco. Sob aquelas
roupas e máscara poderia estar um jovem e viril guerreiro, pois apenas as
mãos – levemente enrugadas – denunciavam a velhice no corpo daquele que
estava por debaixo do traje de Grande Mestre.

133
- Poderia me explicar o porquê da vestimenta? – indagou o Papa com
curiosidade.

Girtab ainda se demorou alguns segundos antes de responder, pois


estava ajustando os colares de contas e o elmo. Por fim, ele falou, e sua voz
transparecia surpresa e sarcasmo.

- Estou surpreso com a sua pergunta, Inocêncio. Eu achei que você soubesse,
mas não custa nada te explicar: essa é a vestimenta do Grande Mestre do
Santuário de Atena, e já que eu sou o Grande Mestre, eu devo vestir isso.

A resposta foi tão desconcertante e tão descabida, que todos esboçaram


um tímido sorriso ou riram brevemente, até mesmo o Papa.

- Não se passe por desentendido, Girtab – censurou-o o Papa. – Você


entendeu perfeitamente a pergunta.

Dessa vez foi Girtab quem riu, um riso breve e descontraído, como o de
uma criança que foi bem sucedida em uma travessura.

- Em uma ocasião especial como essa, eu devo estar vestido apropriadamente.

- Mas você não se vestiu assim para nos receber – retorquiu o Papa.

- Não me leve a mal, Inocêncio, mas eu vou confrontar um Deus. Eu acho que
essa é uma ocasião um pouco mais especial do que receber um velho amigo,
concorda?

Eles foram interrompidos pela chegada de dois Cavaleiros de Ouro: dois


jovens rapazes esbeltos, brancos e de altura mediana. A diferença é que um
deles tinha longos cabelos ruivos e plácidos olhos castanhos, enquanto o outro
tinha cabelos negros e bem curtos, com argutos olhos azul-escuros cintilando
em seu rosto. Ambos dirigiram-se até o local onde se encontrava o Grande
Mestre e prostraram-se de joelhos, retirando os elmos.

134
- Ainda bem que vieram rápido, Frixo e Janus – disse o Grande Mestre. – Não
se preocupem com as suas Casas Zodiacais, pois embora a Casa de Áries
tenha ficado vazia, dificilmente alguém vai passar por Gerion, em Touro, e
chegar até a Casa de Gêmeos, também vazia.

Os Cavaleiros de Áries e Gêmeos permaneceram em silêncio. Haviam


recebido um chamado do Grande Mestre alguns instantes após a chegada de
Kabouri, e não sabiam o porquê de estarem ali.

- Então são esses os homens que você irá levar convosco, Grande Mestre? –
perguntou Francesco – Eu já vi Frixo de Áries lutar, e sei que ele é poderoso,
mas não posso dizer o mesmo sobre o Cavaleiro de Gêmeos, pois embora ele
tenha estado presente em minha luta contra Aloccer, ele foi apenas um
espectador.

Janus permanecia em silêncio. Era verdade que havia apenas ficado


observando quando Aloccer lutou contra Frixo e, depois, contra Francesco,
mas não ficara nessa situação por covardia ou por fraqueza. Ele tinha reais
motivos.

- Francesco – começou o Grande Mestre com seu tom habitual -, nenhum


Cavaleiro de Ouro é fraco. Aliás, na minha opinião, talvez você e Odisseu
sejam os únicos com poder equiparável a eles. Janus ficou apenas como
expectador por ordens minhas.

Francesco ficou calado, tentando compreender mais uma atitude


inusitada do Grande Mestre, mas que com certeza deveria ter alguma
explicação

- O senhor está dizendo que somos fracos, Grande Mestre? – questionou o


jovem Benício.

135
- De modo algum, Benício. Apenas estou dizendo que os Cavaleiros de Ouro
são mais poderosos, e que, dentre os Virtus, Francesco e Odisseu são os mais
poderosos. Isso não significa que vocês não sejam poderosos.

- E por que apenas os Cavaleiros de Atena irão nessa missão com o senhor? –
perguntou Odisseu – Por que não levar convosco um dos Virtus?

- Meu bom Odisseu – falou o Grande Mestre com leveza -, a resposta é


simples: por que eu decidi fazer desse jeito. Não se ofenda, Inocêncio –
acrescentou Girtab ao ver a expressão de contrariedade no rosto do Papa -,
mas é que tem certas coisas que apenas os Cavaleiros de Atena podem fazer.

- Como o suicídio, por exemplo? – indagou o Papa em um tom de desafio.

- Não – falou Frixo inconformado com as palavras usadas pelo Papa. – O


Grande Mestre nunca nos expôs a uma situação de perigo sem que houvesse
real necessidade disso. Se não houvesse nenhuma possibilidade de fazermos
isso e permanecermos vivos, certamente o Mestre não pediria que nós o
acompanhássemos. A mente dele funciona de uma forma muito além da nossa
compreensão, mas suas decisões sempre são as mais acertadas que poderiam
existir. Eu confiaria a minha vida nas mãos dele sem pestanejar, e é isso que
estou fazendo agora.

Frixo havia ficado levemente rubro ao falar isso. Era evidente que,
depois de tudo que já aconteceu, ele não aceitaria que ninguém duvidasse dos
planos do Grande Mestre, muito menos de suas intenções.

- Obrigado pelo voto de confiança, Frixo – disse o Mestre com visível comoção
em sua voz. – É bom saber que tenho sua confiança.

- Não apenas a dele, Mestre – falou Janus levantando-se.

- Exato – concordou Kabouri também. – Nós temos plena confiança em sua


liderança, Mestre, e se o senhor acha que essa é a melhor forma de agir, tenho

136
convicção de que qualquer outro Cavaleiro, até mesmo Gerion, iria concordar
em segui-lo.

- Diante disso que vocês falaram – disse Odisseu -, e por meio de tudo o que
soube sobre o Grande Mestre, acho que eu também o seguiria sem hesitar.

Todos os Virtus fizeram um aceno afirmativo com a cabeça, indicando


que compartilhavam da opinião de Odisseu. Até mesmo o Papa, que havia
mostrado relutância em aceitar o plano de Girtab, se viu forçado a, finalmente,
ter de concordar com o que ele considerava como uma loucura.

- Está bem – falou o Papa com contrariedade -, vejo que não há nada que eu
possa dizer ou fazer para demovê-lo desta idéia. Você é, com toda a certeza, o
homem mais teimoso que eu já conheci, Girtab.

Girtab começou a rir, e sua risada foi seguida pelo riso do Papa. Era
evidente que ali estavam dois amigos se reconciliando e rindo de sua briga,
como se o motivo dessa briga tivesse sido uma besteira sem nenhuma
importância.

- É bom saber que, finalmente, tenho a sua permissão para fazer isso – falou o
Grande Mestre em tom humorado. – Bom, temos de fazer isso agora mesmo,
pois cada segundo é precioso – disse ele agora assumindo um tom mais sério.
– Janus e Frixo, façam a gentileza de colocarem-se ao meu lado. Kabouri, por
favor, você sabe o que fazer.

- Transportar-nos para a entrada que leva ao pórtico? – perguntou o canceriano


para ter certeza.

- Não. Leve-nos para a entrada oriental, na colina – respondeu o Grande


Mestre, ao que Kabouri assentiu.

E então, o Cavaleiro de Câncer colocou seus dedos indicadores em


suas têmporas, fechou os olhos, e começou a concentrar sua cosmo energia.

137
Uma aura dourada envolveu o corpo de Kabouri, e começou a irradiar-se de
sua fronte em direção ao local onde estavam o Grande Mestre e os Cavaleiros
de Áries e Gêmeos. Então, quando ele abriu os olhos, ele exclamou.

[i]Pýli tou Ypókosmos[/i]! (Portão do Submundo)

Num flash, os corpos do Grande Mestre e dos Cavaleiros de Ouro


desapareceram do local.

***

Uma grande colina rochosa, de uma extensão incalculável, se


apresentava diante deles. Uma multidão de corpos disformes e com a pele
mutilada caminhava em direção a um único local, onde aparentemente era o
centro da colina. Ali, elas desapareciam, e foi para esse ponto que o Grande
Mestre e os Cavaleiros de Ouro se dirigiram.

Chegando ao local, puderam ver que o centro era formado por um


grande buraco, cujo fundo não podia ser visto. Aqueles corpos que eles haviam
visto caminhando acabavam por formar longas filas em direção buraco e,
quando um deles lá chegava, se precipitava em seu interior.

- É por ali que devemos entrar, Mestre? – indagou Janus.

- Não. De forma alguma podemos cair ali – respondeu Girtab.

- Exato. Aquela é a entrada oriental para o mundo dos mortos – explicou


Kabouri. – Há outras entradas possíveis, mas o Grande Mestre escolheu essa.
Os orientais chamam esse local de Yomotsu Hirasaka, mas não sei o que
significa.

- Significa “Colina dos Mortos”, ou “Colina da Morte” – informou o líder do


Santuário. – Esse buraco dá diretamente no Submundo, e esses corpos que

138
vemos caindo são almas de pessoas mortas. Se nós cairmos por esse buraco,
também morreremos.

- Então, se não podemos passar por ele, por que viemos por aqui? – perguntou
Frixo sem entender o propósito do Grande Mestre.

- Meu propósito é aprisionar Thánatos, e não desafiar Hades e despertar sua


ira no momento errado – falou o Grande Mestre.

Porém, após observar a expressão de incompreensão no rosto dos


Cavaleiros de Ouro, ele acrescentou:

- Por enquanto, Hades ainda está adormecido, mas poderia acordar a


qualquer instante. Se eu entrasse diretamente em seus domínios, e eu digo EU
por que vocês ainda não estão prontos para isso, Hades sentiria minha
presença, e poderia considerar isso como um ataque do Santuário, e isso
poderia fazer com que ele despertasse, o que acarretaria em mais um inimigo
para darmos conta. Porém, enquanto ele estiver dormindo, Thánatos e Hypnos
são os responsáveis pelo Submundo, sendo que Thánatos cuida do que
concerne a chegada das almas e seus respectivos julgamentos, enquanto
Hypnos cuida da aplicação das punições e da manutenção das prisões e
prisioneiros.

“Assim sendo, minha idéia é impedir que essas almas entrem no Submundo,
forçando Thánatos a vir verificar pessoalmente o que está acontecendo. Dessa
forma, ele estará fora dos dominós de Hades, e Hades não será desperto por
nossa presença, entenderam?”

Os Cavaleiros de Ouro ficaram em silêncio, processando as informações


que receberam. De fato, o plano do Grande Mestre fazia muito sentido, mas
eles não entendiam como fariam para impedir a entrada das almas no
submundo.

- E como podemos ajudá-lo, Mestre? – perguntou Kabouri.

139
- Vocês três vão se dispor ao redor deste buraco de modo a forma um
triângulo. Você, Kabouri, irá impedir a aproximação das almas por meio do seu
poder telecinético.

- E eu farei isso com minha Muralha de Cristal, correto? – perguntou Frixo.

- Exato – confirmou Girtab.

- E eu usarei a Muralha de Cristal também, é isso? – indagou Janus.

- Sim – assentiu o Grande Mestre. – Essa é uma técnica útil para você utilizar,
Janus. Analise-a com atenção, da mesma forma que você fez com a técnica de
Aloccer. A sua habilidade de mimetização é fantástica, mas ela não consegue
reproduzir com perfeição as técnicas de proteção e restrição. Por outro lado,
devido a natureza do seu poder natural, as técnicas de destruição e explosão
cósmica se tornam muito mais poderosas quando você as usa.

- Então foi por isso que o senhor enviou-o para assistir a minha luta – falou
Frixo em um tom de quem acaba de compreender algo.

- Sim – ratificou Girtab. - Há centenas de anos, quando eu enfrentei Baal,


Aloccer era um dos demônios que estava a seu serviço, e eu tive a
oportunidade de vê-lo utilizando a Explosão Galáctica contra os demais
Cavaleiros da minha época. Assim, eu sabia que, nas mãos de Janus, essa
técnica poderia se tornar muito mais poderosa, mais poderosa do que qualquer
uma das técnicas que ele já possui.

Após as explicações do Grande Mestre, os Cavaleiros de Ouro


dispuseram-se ao redor do buraco, formando um triângulo. As almas que se
dirigiam à entrada do mundo dos mortos simplesmente desviavam-se de onde
eles estavam, e continuavam se atirando no buraco. Então, Frixo de Áries
concentrou sua cosmo energia, estendeu os braços para frente e gritou:

140
[i]Teíchos tou Krystállou[/i]! (Muralha de Cristal)

Uma muralha invisível se estendeu para a esquerda e direita do ariano,


formando a primeira mediatriz do triângulo. As almas que chegavam até o local
onde a muralha estava formada eram projetadas para trás, sendo impossibilitas
de prosseguir.

Janus havia observado com atenção a execução da técnica do Cavaleiro


de Áries, e agora preparava-se para reproduzi-la. Tal qual o ariano havia feito,
o Cavaleiro de Gêmeos agora concentrava sua energia e estendia os braços
para frente. Então, ele gritou.

[i]Teíchos tou Krystállou[/i]! (Muralha de Cristal)

Infelizmente, a muralha invisível que ele criou logo se dissipou, e ele


teve de repetir a técnica mais duas vezes até conseguir executá-la de forma
correta, embora ela não tenha saído perfeita como a de Frixo. Do mesmo modo
que as almas não conseguiam passar por Frixo, elas não puderam passar por
Janus.

Na última mediatriz do triângulo estava Kabouri, repelindo para longe as


almas por meio de sua telecinese. Girtab se mantinha próximo a Kabouri, mas
de costas para ele, observando o buraco. Agora não havia mais nenhuma alma
caindo no buraco, e uma multidão embolada começava a se formar ao redor
das duas muralhas.

- Muito bem – elogiou-os o Grande Mestre. – Isso pode levar algumas horas,
mas tenho convicção de que Thánatos virá verificar. Teremos de esperar.

E lá ficaram eles, os três Cavaleiros de Ouro impedindo a aproximação


das almas, e o Grande Mestre aguardando Thánatos. Muito tempo havia se
passado, minutos, horas, eles não sabiam definir. Para manter a concentração,
todos haviam ficado em silêncio, mas este foi rompido por uma risada de

141
Kabouri, que já aparentava algum cansaço por ter de usar suas habilidades
psíquicas com freqüência.

- Do que está rindo, Kabouri? – perguntou Janus, ainda concentrado na


manutenção de sua muralha.

- É que eu estive pensando nessa situação em que estamos, e percebi que


teremos uma ocasião rara aqui – respondeu o canceriano.

- E que situação é essa? – indagou Frixo, interessado no assunto.

- Bem...é que o Grande Mestre é...digamos...imortal – falou Kabouri um tanto


envergonhado por expor sua opinião sobre o Grande Mestre na frente dele. –
Entendem o que eu digo, não é? Ele está vivo há centenas de anos, e ninguém
jamais conseguiu derrotá-lo. E agora ele está aqui, esperando por Thánatos,
que é o deus da morte. Ou seja: temos um imortal, literalmente, esperando pela
morte.

Janus e Frixo permaneceram em silêncio, constrangidos com a idéia de


rir, na frente do Grande Mestre, sobre uma coisa que falava dele. Mas, para o
espanto deles, foi o Grande Mestre quem começou a rir.

- Realmente, é uma ocasião rara, e isso chega a ser engraçado – concordou o


líder do Santuário. – Isso só comprova que todos, até mesmo os imortais, terão
de enfrentar a morte um dia.

- Então... então o senhor é realmente imortal? – perguntaram os três


Cavaleiros de Ouro quase em uníssono.

- Digamos que minha imortalidade está chegando ao fim – respondeu o Grande


Mestre de forma vaga.

142
Frixo ia pedir para que o Grande Mestre fosse mais específico, mas ele
foi impedido de falar qualquer coisa, pois uma explosão de energia arremessou
ele, Kabouri e Janus para longe do buraco. Apenas Girtab permaneceu de pé.

- Thánatos! – exclamou o Grande Mestre. – Esperávamos por você.

Um homem de cabelos e olhos prateados, vestindo uma longa túnica


branca, apareceu pairando sobre o buraco.

- E o que o Mestre do Santuário de Atena veio fazer nos domínios do


Imperador Hades? – perguntou o deus com uma voz rouca e agressiva.

- Não estamos nos domínios de Hades, e você sabe disso – retorquiu Girtab.

- A mim não interessam esses pequenos detalhes – disse o Thánatos com


indiferença. – Tua ousadia está interferindo em assuntos pertinentes aos
domínios do Imperador Hades. Pagarão com a vida por isso.

Os Cavaleiros de Ouro agora estavam parados ao lado do Grande


Mestre, em posição de combate. Eles começavam a elevar sua cosmo energia,
até serem surpreendidos pelas palavras do Grande Mestre.

- É o momento de irem embora – disse ele com autoridade. - Kabouri, leve


todos de volta ao Santuário, e aguarde por lá o meu chamado para que me
conduza de volta também.

- Mestre, o senhor não pode... – começou Kabouri, mas foi interrompido pelo
Grande Mestre.

- Isso foi uma ordem, Kabouri de Câncer – disse Girtab em um tom severo e
sério. – Não ouse questionar-me. Se vocês ficarem aqui, só irão estragar uma
das partes mais importantes do meu plano.

- E que parte seria essa? – perguntou o geminiano.

143
- Mantê-los vivos – falou o Mestre ainda sério, mas em um tom que beirava um
tom paternal. – Vão depressa.

- Sim, Mestre – assentiu Kabouri. – Aguardarei o seu chamado.

- Estão esquecendo-se de uma coisa – interrompeu-os Thánatos. – Eu não


permiti que saíssem.

E então ele elevou seu cosmo, atingindo um patamar assustador. Uma


aura de um dourado intenso começou a emanar de seu corpo, e uma intensa
corrente de vento se formou, arremessando para longe as almas que tentavam
chegar ao buraco de entrada do mundo dos mortos. Com uma explosão de
cosmo, centenas de raios dourados começaram disparar de seu corpo,
rumando a grande velocidade contra os guerreiros de Atena.

Porém, nenhum deles atingiu os Cavaleiros de Ouro, pois na mesma


hora em que Thánatos lançou o seu ataque, o cosmo do Grande Mestre se
elevou de uma forma nunca vista por eles, atingindo o mesmo nível do de
Thánatos. Frixo estava boquiaberto, enquanto Janus e Kabouri olhavam
estupefatos para o Grande Mestre, que agora estava de braços abertos na
frente deles, anulando todos os golpes lançados por Thánatos.

- Eu sou o Mestre do Santuário, e é a minha autoridade que eles obedecem,


Thánatos – disse Girtab em um tom firme. – Se eu ordenei que eles voltassem
ao Santuário, eles vão voltar, mesmo contra sua vontade. VÃO!

Rapidamente, Kabouri repetiu a mesma posição que havia assumido


quando utilizou sua técnica na Sala do Mestre, e fechou os olhos. Dessa vez,
entretanto, ele não falou nada, apenas abriu os olhos e, em um átimo, ele e os
outros haviam desaparecido.

144
- Tu continuas te atrevendo a desafiar os deuses! – falou Thánatos com fúria. –
Não entendeste que os humanos são inferiores a nós, deuses, e que jamais
deveriam tentar enfrentar-nos!

- Isso não me impediu de liderar o Santuário até a vitória nas duas vezes em
que Hades tentou eliminar Atena e tomar a Terra para ele – respondeu Girtab
em tom de desafio. – E acho estranho que a mente de um deus fique tão fraca
devido ao passar dos séculos, mas eu ainda lembro que fui eu quem te deteve
há quase trezentos, quando você tentou destruir o Santuário.

- Foi Atena, não tu, quem me derrotou! – bradou Thánatos.

- Não. Foi Atena quem te aprisionou, mas fui eu quem agüentou uma luta
contra você por quase duas horas, e eu me lembro da sua expressão de pavor
quando viu que seu poder não era suficiente para me matar.

- Mas você também não teve poder para me derrotar.

- Sim, mas eu sou um humano, enquanto você é um deus – replicou Girtab


com em tom irônico. – Acho que, para um deus que vive exaltando sua
superioridade perante os humanos, ser incapaz de derrotar um deles deve ser
uma vergonha.

- Cale-se, e ponha-se no seu devido lugar!

- Desculpe, mas eu ainda tenho muitas coisas para falar, e não pretendo ficar
calado por caus...

[i]Apaísio Prónoia[/i]! (Terrível Providência)

Uma gigantesca esfera elétrica de cor púrpura, carregada com um


poderoso cosmo, foi arremessada contra o Grande Mestre. Ele desviou-se dela
no último instante, pois fora atacado de surpresa. Milhares de almas foram
desintegradas pelo poder depreendido por Thánatos em seu ataque, e o chão

145
da colina do Yomotsu estremeceu violentamente quando sofreu o impacto do
golpe, projetando pelos ares incontáveis rochas e pedaços de solo, e
levantando uma grande e densa nuvem de poeira. Quando a poeira assentou,
pode-se ver que uma enorme cratera, muito profunda e com um raio de quase
cem metros, havia surgido exatamente no local onde o Grande Mestre estava
há alguns instantes.

- Tu não podes te esconder de mim, Girtab – falou Thánatos, com os olhos


fechados e um sorriso de superioridade no rosto.

- Não estou escondido, estou bem atrás de você.

E Thánatos virou-se no ar, e quase foi atingido no rosto por um poderoso


soco desferido por Girtab, que havia saltado da outra margem do buraco do
Yomotsu para atacá-lo. O deus da morte conseguiu se desviar, mas aquele era
apenas o primeiro de uma série de golpes que Girtab estava aplicando,
pulando de uma margem à outra do buraco na tentativa de acertar o
adversário.

A agilidade de Girtab era surpreendente, e Thánatos estava tendo


dificuldade em se defender e esquivar dos golpes. Finalmente, com uma
velocidade assombrosa e inimaginável em alguém tão velho, o Grande Mestre
desferiu um poderoso chute que acertou em cheio o lado esquerdo do rosto de
Thánatos. Foi tamanha a força do golpe que o deus da morte desestabilizou-se
no ar, e foi arremessando contra o chão da colina. Porém, ele conseguiu
recuperar-se em pleno ar, e caiu em pé.

- Como tu te atreves a atacar um deus?

- Você me atacou de surpresa, eu pelo menos te avisei antes de atacar.

- Chega de brincadeiras!

146
Thánatos estendeu sua mão direita e esticou o indicador, lançando um
fino raio de energia contra o elmo de Girtab, rachando-o exatamente no meio.
O olhar do Grande Mestre estava firme, e suas rugas, ao invés de lhe darem
uma aparência velha e frágil, conferiam-lhe uma aparência venerável.

- Tu continuas velho, mas teu rosto não mudou em nada desde a última vez em
que tive o desprazer de te ver. Você vai se arrepender amargamente por ter me
desafiado.

[i]Apaísio Prónoia[/i]! (Terrível Providência)


Mais uma vez, uma poderosa esfera energética foi lançada contra
Girtab, mas dessa vez ele estava preparado. Em um movimento célere, ele
esticou o seu dedo indicador e apontou-o em direção ao globo púrpuro que
vinha em sua direção no exato instante em que Thánatos havia lançado o
ataque.

[i]Ostrakiá Belóna![/i] (Agulha Escarlate)

Pequenos e agudos fachos de luz saíram da ponta do dedo indicador do


Grande Mestre, e atingiram a esfera de energia em diferentes pontos, fazendo
com que ela se dividisse em pleno ar. Quase todos os fragmentos seguiram em
direções diferentes, causando destruição no local que atingiram, mas um deles
atingiu Girtab no peito, fazendo com que ele fosse arremessado contra o chão.

- Hahaha! Tu devias saber que eu, Thánatos, jamais permitiria que o Santuário
de Atena tentasse qualquer coisa contra o Imperador Hades. É isso que um
humano recebe ao tentar se opor a um deus – disse Thánatos apontando para
o sangue que começava a tingir de rubro, na altura do abdômen, o manto de
Girtab. –. Não há nada que tu possas fazer para mudar esse fato: eu sou
super... augh!

E Thánatos percebeu que ele também havia sido atingido praticamente


no mesmo ponto que Girtab, e que seu corpo também estava sangrando.

147
Como isso acontecera? Ele era um deus, não poderia ser surpreendido por
uma técnica tão simplória quanto aquela.

- Thá...Thánatos – disse Girtab com dificuldade, levantando-se do chão e


ostentando uma expressão séria -, dessa vez o assunto não tem relação
alguma com Hades.

- Então por que vieste até aqui? – indagou Thánatos, ainda

- Para.. para impedir que você se junte ao exército de Lúcifer.

- Lúcifer? – perguntou Thánatos. – Acha que o Imperador Hades se aliaria a


Lúcifer?

- Não estou falando de Hades, estou...estou falando de você – respondeu


Girtab com a voz carregada de dor devido ao ferimento causado pelo golpe de
Thánatos. – Baal, provavelmente, pretende convocar você para lutar em seus
exércitos.

- Isso jamais aconteceria – falou Thánatos com superioridade, apreciando com


visível satisfação o sofrimento de Girtab.

- E por que não? – perguntou Girtab ofegando, não conseguindo mais se


manter de pé devido a dor.

- Vocês humanos não entendem, mas os deuses já foram muito preocupados


com a humanidade, quando ela ainda era pura e merecia ser protegida –
respondeu Thánatos cruzando os braços, como que considerando sua vitória
sobre Girtab como um fato consumado. - Eu tenho certeza que isso que vou
lhe contar vai te surpreender: certa vez, há milhares de anos, eu lutei ao lado
de Atena contra as hostes de Lúcifer, e meu adversário foi o próprio Baal. Ele e
eu praticamente nos equivalíamos, mas ele fugiu do combate quando percebeu
que poderia ser derrotado.

148
- Eu também lutei contra Baal...e eu..

- Conheço essa história – interrompeu-o Thánatos. - Foi na batalha que se


seguiu à morte do filho de YHVH.

- Exato. Mas não é disso que eu vim falar – disse Girtab pondo-se de pé. –
Pelo que entendi do que foi dito, você jamais se juntaria a Baal por que ele
jamais iria procurar o seu auxílio, já que se sente humilhado por ter fugido do
combate contra você. Nesse caso, não há mais nada para eu fazer aqui.

- Claro que há – disse Thánatos. – Tu ainda podes morrer aqui.

[i]Apaísio Prón...[/i]!

Thánatos interrompe o seu golpe ao perceber que ele possui mais


ferimentos do que havia percebido: um no ombro esquerdo, um em cada perna,
e mais dois no abdômen. Agora e dor era muito mais intensa, como se algo o
corroesse por dentro. Quando aquilo acontecera? Será que ele tinha sido
atingido pelas mesmas agulhas que dissolveram o seu último golpe?

- Eu fui atingido propositalmente por um dos fragmentos do seu golpe,


Thánatos – disse Girtab, parecendo ter lido a mente do deus. – Meu plano
original era aprisioná-lo, para impedir que você se juntasse a Baal. Eu sabia
que, se eu permanecesse incólume, você não iria baixar a guarda nunca, e
jamais perderia o foco do combate, não me dando nenhuma oportunidade de
agir. Além do mais, eu poderia ser derrotado a qualquer momento, pois não
estou trajando nenhuma armadura.

“Assim sendo, ao mesmo tempo em que fui atingido por um pequeno resquício
do seu golpe, eu usei minhas Agulhas Escarlate em você para que, no
momento certo, o efeito debilitante delas me oferecesse uma chance de lançar
um golpe mais poderoso, que pudesse destruir o seu corpo e forçar a sua alma
a tentar fugir novamente para o submundo, e seria neste instante que eu te
aprisionaria. De fato, seu golpe só não me causou um dano realmente sério

149
porque ele, em quase sua totalidade, atingiu exatamente esse artefato que eu
usaria para te aprisionar.”

Falando isso, o Grande Mestre retirou de dentro do manto uma pequena


caixa dourada com muitos símbolos, dentre os quais havia um selo com o
nome de Atena.

- A Caixa de Pandora – falou Thánatos em um tom de surpresa. – Então tu


tinhas tudo preparado para tentar me aprisionar?

- Sim - respondeu Girtab prontamente. – Apenas o fator surpresa poderia me


ajudar em uma batalha contra um deus que já lutou contra mim no passado e
conhece quase todas minhas técnicas. Se não fosse pela resistência divina
dessa caixa criada por Hefestos, mesmo aquele fragmento do seu golpe
poderia ter sido fatal para mim.

Thánatos estava desconcertado. Mesmo não gostando de Girtab, ele


não podia ignorar o quão brilhante havia sido o seu plano.

- Tu te esqueceste de um detalhe, Girtab: agora eu conheço o teu plano, e não


vou ser iludido por ti em mais nenhum momento desse combate. Vou te atacar
até reduzir o teu corpo a cinzas!

E agora Thánatos havia reassumido a sua postura imponente, e seu


cosmo começava a de elevar de forma assustadoramente perigosa.

- Acho que foi você que esqueceu de um detalhe, Thánatos – falou o Grande
Mestre. – Esse combate já não é mais necessário para mim. Kabouri, agora!

E com esse chamado, que Kabouri recebeu extra-sensorialmente, o


Cavaleiro de Câncer foi alertado de que era o momento de trazer o Grande
Mestre de volta ao Santuário. As últimas coisas que Girtab viu antes de deixar
a colina do Yomotsu foram a expressão de fúria no rosto de Thánatos e uma
gigantesca esfera de energia vindo em sua direção.

150
***

Já era noite na Grécia, e tanto os Virtus quanto os Cavaleiros de Câncer,


Gêmeos, Áries e Altar estavam olhando para o ponto onde o Grande Mestre
acabara de aparecer. Todos se assustaram ao ver a mancha de sangue em
sua túnica, mas ficaram felizes ao ver que ele conseguira voltar em segurança.

- Então o senhor conseguiu, Mestre? – perguntou Janus com uma expressão


que misturava alegria, admiração e preocupação. – O senhor conseguiu
derrotar e aprisionar Thánatos.

Sem falar nada, e com visível cansaço e dor, Girtab caminhou até o seu
trono, sentou-se, apanhou um cálice de cedro na mesa ao lado, e bebeu um
longo gole de água. Em seguida, pediu que Sacros fosse chamar o Cavaleiro
de Libra, para que ele tratasse do seu ferimento. Por fim, ele explicou
calmamente tudo o que acontecera.

- Então não é Thánatos que Baal está procurando – falou o Papa em um tom
pensativo. – Quem será então?

- Não sei – respondeu Girtab com seriedade. – Isso é uma coisa que muito me
intriga, e espero que você possa me ajudar a descobrir de quem se trata e
tentar impedir que Baal consiga mais esse aliado.

- Sim, e ainda há mais dois possíveis aliados desconhecidos – falou o Papa.

- Não, apenas mais um – informou-lhe Girtab. – Neste exato momento, Serket


de Escorpião e Quiron de Sagitário devem estar na cidade de Mênfis, no Egito,
indo até o Templo de Sekhmet. Ela já tentou exterminar a humanidade uma vez
por meio de doenças, e acho que ela não hesitaria em se juntar a Lúcifer para
poder terminar o serviço. Tenho plena certeza de que ela é a escolhida para
ser o Cavaleiro da Peste.

151
De fato, o Grande Mestre estava certo, e os Cavaleiros de Escorpião e
Sagitário estavam prestes a enfrentar uma batalha mortal no Templo de
Sekhmet.

152
[b]CAPÍTULO XIV: [i]A Flecha e o Ferrão[/i][/b]

- Quarenta e sete! – gritou o Cavaleiro de Escorpião – É melhor você ser mais


rápido se quiser me alcançar, Quiron, pois já passei você em quase uma dúzia.

A uma distância de aproximadamente dez metros, o Cavaleiro de


Sagitário lutava contra uma dezena de grandes estátuas de pedra, que
tentavam a todo custo arrancar sua cabeça com grandes machados. No chão
que se estendia entre os dois cavaleiros havia inúmeros pedaços de rocha,
resíduos das demais estátuas que tentaram, infrutiferamente, detê-los.

Quiron de Sagitário e Serket de Escorpião eram amigos desde crianças,


e se conheceram no Santuário de Atena quando iniciaram seu treinamento
para tornarem-se Cavaleiros. Ambos eram bem diferentes: Quiron era alto e
esbelto, tinha uma pele branca que contrastava com seus longos cabelos
negros e encaracolados. Seu olhar era sóbrio, de modo que seus olhos
escuros raramente transpareciam algum sentimento de felicidade ou
descontentamento

Serket era o oposto perfeito: baixo e robusto, com uma agilidade e força
realmente inesperadas para alguém com essa compleição física. Sua pele era
de um tom moreno que lembrava o bronze, e seus olhos – negros como o do
amigo sagitariano – eram extremamente passionais, apresentando sempre um
brilho de alegria, ou mesmo uma faísca de raiva. A característica mais
marcante em Serket estava em sua cabeça: ele era careca, mas conservava
em sua nuca uma longa trança, assemelhando-se ao ferrão do animal que
nomeava sua constelação protetora.

- É fácil resolver isso – disse Quiron enquanto retirava o arco da parte de trás
de sua armadura.

Então, com movimentos ágeis, o sagitariano começou a disparar flechas


certeiras contra os seus adversários, fazendo com que os guardiões de pedra
desmoronassem como castelos de areia.

153
- Quarenta e sete – disse o sagitariano sério – Parece que eu tive a honra de
empatar com o discípulo do Grande Mestre! Sinceramente, eu esperava que
você pudesse ser mais habilidoso, Serket – e agora havia um inegável tom de
divertimento e sarcasmo em sua voz.

Como todo o bom e verdadeiro amigo, Serket adorava provocar Quiron,


pois achava extremamente divertido vê-lo ficar irritado por bobagens. Porém,
Quiron se vingava dele de vez em quando, e sabia exatamente o que fazer
para isso: compará-lo ao Grande Mestre, ou relacionar o seu poder com o dele.
Na realidade, para o sagitariano não havia diferença alguma no fato de Serket
ter sido treinado pelo Grande Mestre, pois ele admirava as habilidades e, acima
de tudo, a personalidade do amigo, e não o mito por de traz de quem o
treinara.

- Em primeiro lugar – disse o escorpiano com uma sombra de fúria em seu


rosto -, o fato de eu ter sido treinado pelo Grande Mestre não me obriga ou
desobriga a ser mais forte, mais rápido, ou qualquer outra coisa. Em segundo
lugar, você não deveria ter usado o arco. Lembre-se que Atena abomina o uso
de armas, e é por isso que nós devemos usar nossas técnicas e os nossos
corpos como únicas armas.

- Se Atena realmente abominasse as armas – falou Quiron enquanto tentava,


sem sucesso, conter um sorriso de satisfação por ter conseguido tirar a
paciência do amigo -, ela não teria permitido um arco com flechas na Armadura
de Sagitário, doze armas na Armadura de Libra, correntes na Armadura de
Andrômeda, e etc.

- Mas o Cavaleiro de Libra só pode distribuir suas armas em uma situação de


extrema necessidade, o que geralmente significa que essa é a única alternativa
possível – replicou Serket, agora disposto a retribuir a provocação.

- Sim, mas não há nenhuma restrição às flechas da Armadura de Sagitário.


Logo, eu tenho a permissão de Atena para usar meu arco quando eu quiser –

154
respondeu Quiron recobrando um ar sério, como era de seu feitio. – Fico
admirado que o pupilo do Grande Mestre não saiba disso.

Serket preparou-se para responder, mas, na mesma hora em que abria


a boca para falar, ele sentiu um cosmo hostil e poderoso se aproximando do
local onde ele e Quiron estavam, fazendo com que ele se esquecesse
imediatamente da pequena discussão da qual participava.

- Acho que agora teremos um adversário de verdade – comentou o sagitariano,


que também havia sentido a presença de um inimigo.

Segundos depois, uma figura enorme, com quase três metros de altura,
surgira pelo corredor para o qual eles se dirigiam, e agora os encarava
fixamente. Embora usasse um manto negro com capuz, podiam-se ver olhos
flamejantes sob a sombra, e era explícito que havia grandes músculos por
debaixo do tecido que cobria seu corpanzil.

- Vocês são guerreiros de Atena? – perguntou ele com uma voz grave e
retumbante, prosseguindo após eles assentirem – Então irão se arrepender de
terem vindo até aqui.

E, sem dizer mais nada, ele correu na direção de Serket e Quiron, e


desferiu um único e potente soco. Os Cavaleiros de Ouro esquivaram-se com
facilidade, e perceberam que, embora o adversário tivesse parado no meio do
largo salão onde se encontravam, o deslocamento de ar e de energia causado
pelo seu golpe foi poderoso o suficiente para atingir e destroçar um pedaço da
parede que estava ao fundo.

- Você é forte grandalhão, mas é muito lento – zombou Serket. – Você


realmente acha que poderá derrotar dois Cavaleiros de Ouro sendo tão lento?

- Não – respondeu o adversário ao mesmo tempo em que sua energia


começava a se intensificar. – Eu precisarei usar minha verdadeira velocidade.

155
E então ele preparou um novo golpe. Dessa vez, entretanto, Quiron
estava preparado, e rapidamente colocou uma flecha em seu arco, mirou-a no
adversário e disparou. Uma rajada de luz cortou o salão quando a seta dourada
voou de encontro ao inimigo, rápida como um raio. Porém, para o assombro do
sagitariano, o inimigo deteve a sua flecha em pleno percurso, agarrando-a pela
haste centímetros antes dela atingi-lo. Aparentemente, o único efeito produzido
pelo golpe do Cavaleiro de Sagitário foi, por meio do deslocamento de ar, jogar
para trás o capuz que ocultava o rosto do inimigo, e agora era possível ver que
o seu rosto parecia revestido por uma pele de aparência viscosa, o tipo de pele
a qual rapidamente associam-se figuras marinhas e diversos tipos répteis.

Quiron preparou outra flecha, mas, milésimos antes de dispará-la, ele foi
empurrado para o lado por Serket, que se arremessara velozmente sobre ele.
Quando o sagitariano recuperou-se da surpresa causada pela ação do amigo,
ele percebeu que, no local onde ele estivera antes, havia agora inúmeras
marcas de cortes no piso e nas paredes.

- Você realmente acha que poderá derrotar alguém do nível de Leviatã com
essas flechas? – disse uma voz agressiva vinda do mesmo local por onde
Leviatã havia aparecido.

Ao olharem para trás, os Cavaleiros de Ouro viram que havia duas


figuras ali paradas. Uma delas era um homem e, embora fosse alto, parecia
uma criança quando comparado ao gigantesco Leviatã. Ele tinha traços
nórdicos, usava um corselete de placas com ombreiras, e carregava uma larga
espada de cabo longo. Seus olhos eram azuis e carregados de ódio, e sua
longa barba quase tocava o seu peito.

A outra figura era uma mulher. Ela era esbelta e de estatura mediana.
Sua pele era bronzeada, e ele possuía longos cabelos negros, com algumas
mechas decoradas com miçangas, sobre os quais havia um fino véu azulado.
Seu rosto estava oculto por uma espécie de máscara, aparentemente de ouro,
que possuía a efígie de um leão.

156
- Eu não queria ter de interferir na sua batalha, Leviatã – disse Azazel com uma
voz moderada – Sei do seu poder, e sei que minha interferência pode ser
considerada uma ofensa.

- Não seja tolo, Azazel – retorquiu Leviatã com aspereza, ainda segurando a
flecha disparada por Quiron. – Pelo que eu entendi do que Astarte e Mammon
me contaram, todas as vezes em que os guerreiros de Atena foram
subestimados o resultado não foi bom para vocês. Eu poderia destruí-los
sozinho se estivesse com a minha [i]Chet[/i], e acredito que teria alguma
chance de destruí-los sem ela agora mesmo, embora com dificuldade.
Portanto, acho que seria melhor se você lutasse também.

Quiron e Serket trocaram um olhar preocupado. Aparentemente, o


inimigo não era apenas um brutamonte, pois avaliara a situação com cuidado,
preferindo não arriscar uma luta sozinho.

- Leviatã e Azazel...esses nomes me são familiares – falou Serket em tom


pensativo.

- Claro que tem de ser familiares – falou Quiron em um tom severo. – O


Cavaleiro de Altar nos disse esses nomes hoje mesmo, antes de virmos para
cá. Leviatã e Azazel são os nomes de dois dos Marechais do Inferno que lutam
junto com Baal. O primeiro simboliza a Inveja, e o outro a Ira. A mulher com
máscara de leão, logicamente, deve ser Sekhmet, que ocupará o posto de
Cavaleiro de Peste.

- Eu me pergunto como o Santuário pode descobrir tão rápido os passos de


Baal – disse Azazel com violência. – Pelo que Astarte me disse, nem mesmo
Mammon sabia o que estava para acontecer.

- Mas não há um velho inimigo de Baal no comando dos guerreiros de Atena? –


indagou-lhe Leviatã, e sua voz ecoou como um trovão pelo local – Ao que
parece, ele conhece Baal muito bem.

157
- O Grande Mestre enfrentou Baal há centenas de anos e...

*[i]Kolera Mejer[/i]! (Cólera Ceifadora)

Serket não pode terminar o que dizia, pois Azazel intensificou sua cosmo
energia e, com sua espada, desferiu um poderoso corte diagonal. O escorpiano
rapidamente inclinou o corpo para desviar-se, mas o corte não veio pela frente,
como ele esperava: ele veio do alto, de forma que, mesmo inclinando-se, o
golpe o atingiu na perna esquerda, atravessando o coxote da armadura de ouro
e abrindo-lhe um profundo corte na coxa.

- Não se intrometa na conversa de seres superiores a você! – gritou Azazel,


com a espada em riste na direção do Cavaleiro de Escorpião – A mim não
interessa quem é ou o que fez o Mestre do Santuário de Atena, e a vocês
também não deveria importar, pois vão morrer aqui.

- Não lutarão no meu templo – disse Sekhmet, com sua voz aguda e arrastada.
– Meus guardiões de pedra foram todos destruídos, e não permitirei que mais
nada seja destroçado aqui.

- Sinto muito – disse Quiron erguendo o arco e apontando-o para o alto -, mas
a única deusa a quem obedeço é Atena.

*[i]Thýella ton Asterión[/i]! (Tempestade de Estrelas)

E então o sagitariano disparou uma flecha contra o teto do templo,


atravessando-o com facilidade. Milésimos após isso, a flecha que ele havia
lançado parecia ter dado origem a milhares de flechas de luz, que agora caiam
sobre o teto e sobre os inimigos como uma verdadeira tempestade de estrelas
cadentes, destruindo tudo o que atingiam.

O poder de destruição do golpe do Cavaleiro de Sagitário foi imenso, e a


nuvem de poeira que se ergueu era impenetrável para quaisquer olhos que
tentassem enxergar o que se passava em seu interior. A única coisa discernível

158
em meio a toda destruição era o estrondo ocasionado pelo choque entre as
pedras que compunham o teto, o solo e as paredes do templo.

Por fim, quando tudo cessou, constatou-se que o local estava arrasado:
o teto inteiro havia desabado, e apenas algumas colunas ainda mantinham-se
em pé, embora não completamente inteiras. Não era mais possível dizer onde
havia entradas e corredores, nem mesmo se havia pinturas e gravuras nas
paredes. Porém, não havia corpos por ali, apenas destroços e escombros.

Quiron havia agarrado Serket por debaixo dos braços, e levara-o


consigo em seu vôo de fuga através do teto e das colunas que ruíram. Leviatã
e os outros haviam escapado também, mas ele não sabia como. Agora todos
estavam do lado de fora do templo, sob o luminoso luar de uma noite de verão.

- Como você se atreveu! – explodiu Sekhmet, e agora ela fazia jus a sua
máscara de leão, pois parecia uma fera enfurecida – Jamais será perdoado por
isso, nem nessa vida nem nas próximas. Você, os Cavaleiros de Atenas, todos
os humanos vão pagar por esse seu ato de insolência.

E Sekhmet começou a elevar a sua energia, e um vento quente


começou a soprar do sul. Seu cheiro era desagradável e pestilento, causando
cansaço e enjôo em todos os que o aspiravam. Era evidente que, literalmente,
a morte e o perigo estavam no ar.

[i]Ölüm Nefes[/i]! (Sopro da Morte)

De imediato, o vento começou a soprar mais forte, e o calor se


intensificou. Quiron sentiu-se tonto, e sua visão começou a ficar turva. Ele
estava quase desmaiando, quando sentiu a cosmo energia de Serket se elevar.

*[i]Metánoia tou Érimos[/i]! (Penitência do Deserto)

Tão súbito quanto o vento criado por Sekhmet, uma outra corrente de ar
começou a soprar no sentido contrário. O ar era denso e tão quente quanto o

159
primeiro, mas ele vinha carregado de areia, e varria com violência o que estava
em seu caminho, e barrou completamente o vento pestilento que Sekhmet
lançava sobre ele e Quiron.

- Uma simples tempestade de areia jamais poderá se opor aos meus


poderosos ventos venenosos – disse Sekhmet com aspereza. – Eu permitirei
que vocês se protejam, mas peço que observem com atenção o que está
acontecendo.

E foi então que Quiron e Serket perceberam que os ventos tóxicos


criados pela deusa egípcia estavam mudando de rumo por causa da
tempestade de areia criada pelo escorpiano, e agora se dirigiam para um o
centro de Mênfis.

- Logo todos os moradores da cidade irão morrer como punição – disse


Sekhmet.

- Punição? – espantou-se Quiron – Punição pelo que? Eles não lhe fizeram
nada.

- Vocês fizeram algo contra mim e, como vocês são humanos, os demais
humanos também deverão pagar – respondeu ela inflexível. – Ao longo dos
tempos, os humanos tem se mostrado muito rebeldes, e devem receber uma
punição. No passado, Posseidom e eu castigamos a humanidade, ele por meio
de uma grande inundação, e eu por meio de doenças. Porém, os deuses
acabaram apiedando-se de vocês, e deram-lhe novas chances, chances essas
que vocês desperdiçaram.

“Lúcifer tentou fazer os demais deuses caírem em si, mas nem todos
perceberam o erro que era manter os humanos ocupando a Terra. Eu me
lembro perfeitamente quando a Grande Revolução iniciou.”

- Revolução? – disse Serket – Eu acho que você quis dizer rebelião. De todo
modo, eu nasci no Egito, e conheço o mito de quando você tentou destruir a

160
humanidade a pedido de Rá. Porém, o próprio Rá percebeu que essa não seria
a melhor medida, e teve de deter você.

- Rá? É verdade, esse era o nome que ele usava para o povo do Faraó – disse
Serket pensativa. – Para os gregos, porém, ele manteve o nome Apolo.

- Que seja – continuou Serket. – O que importa é que Apolo percebeu que seria
errado punir toda a humanidade, e reconsiderou.

Uma risada poderosa pareceu misturar-se aos ventos que uivavam no


local, e todos se viraram para Leviatã, pois era ele quem ria.

- Apolo reconsiderou? Que grande besteira! – falou o gigantesco demônio – Foi


Zeus quem ordenou que Apolo cessasse os castigos, mas foi difícil remediar
tudo que já havia sido feito. Apolo lutou ao lado de Lúcifer na Revolução
Celeste, e só mudou de lado quando a própria Atena veio em auxílio do filho de
YHWH. Mas... o que você está fazendo?

E foi então que os demais perceberam o que acontecia. Serket havia


modelado a corrente de ar que criara com a tempestade de areia, fazendo com
que ela formasse um tornado. Com a força centrípeta sugando o ar que estava
em volta e lançando-o para cima, não demorou muito para que o ar venenoso
criado por Sekhmet fosse absorvido e lançado para longe deles.

- Incrível! – bradou Quiron – Você conseguiu manipular a direção e a


velocidade da sua técnica. Foi o Grande Mestre que te ensinou isso?

- Sim – respondeu o escorpiano com o braço direito movendo-se em sentido


circular, exatamente com o tornado que criara.

Porém, a situação inverteu-se rapidamente. Leviatã aproveitou-se da


distração de Quiron e da guarda baixa de Serket para atacar. Com rapidez, ele
cruzou a distância que os separava, e atingiu Serket com uma violenta
sequência de socos, que produziram um horrível som de metal sendo

161
martelado. Quiron vou em socorro do amigo, mas Leviatã lançou contra ele a
flecha que o próprio sagitariano havia disparado contra ele anteriormente. O
Cavaleiro de Sagitário desviou-se em pleno vôo, mas não se deu conta de que
não era apenas Leviatã quem tinha retornado ao combate.

[i]Kolera Mejer[/i]! (Cólera Ceifadora)

O grito de Azazel cortou a noite da mesma forma que a sua técnica


cortou as asas da Armadura de Ouro de Sagitário. Quiron havia percebido o
golpe no último milésimo, mas não conseguiu desviar-se por completo e teve
suas asas amputadas. Quando ele estava para cair no chão, o punho de
Leviatã chocou-se violentamente contra o seu abdômen, e ele sentiu o ar
abandonando os seus pulmões, e seus órgãos comprimindo-se contra suas
costelas. Azazel agora levantava a sua espada para desferir o golpe final
contra o sagitariano que havia sido golpeado por Leviatã, mas foi justamente
desse instante que Serket se valeu para atacar.

*[i]Ostrakiá Belóna![/i] (Agulha Escarlate)

Nove finos e rubros raios de energia foram disparados pelo indicador


esquerdo de Serket, agudos e precisos como o ferrão de um escorpião, e
atingiram o corpo de Azazel no exato momento em que ele se preparava para
atacar o sagitariano. O efeito das agulhas foi imediato: o inimigo foi acometido
por uma dor intensa e paralisante, e acabou deixando sua espada cair no
mesmo instante em que seu corpo começou a contorcer-se de agonia. Mas
apenas um inimigo havia sido atingido, e provavelmente era o menos perigoso.

Leviatã ainda mantinha-se incólume, e foi com uma fúria animalesca que
ele se lançou contra o escorpiano, que tentou esquivar-se da enorme criatura
que vinha ao seu encontro. Com um salto ágil e doloroso, devido ao corte em
sua perna, Serket lançou-se para o alto, e Leviatã passou irrefreavelmente por
baixo dele. Ao aterrissar, agora atrás do inimigo, ele viu que Quiron havia se
levantado, e os fortes ventos do tornado criado por Serket faziam os longos
cabelos do sagitariano tremularem. Com uma posição imponente, ele preparou

162
uma flecha em seu arco, e mirou-a em Leviatã. Era a oportunidade perfeita
para atingirem o inimigo, pois ele não poderia esquivar-se.

- O poder máximo do Cavaleiro de Sagitário: [i]Vrontí Atomikós[/i]! (Trovão


Atômico)

- Sinta a ferroada letal do escorpião celeste: [i]Antares[/i]!

Luminosos e contrastantes com a noite, dois raios de energia, um


vermelho e um dourado, dispararam contra Leviatã, que rapidamente virara o
corpo em meio a desaceleração de sua corrida. Não havia possibilidade de
esquiva, e os Cavaleiros de Ouro davam como certeiros os seus ataques
quando, erguendo os braços e descendo-os sincronizados em um movimento
brusco, Leviatã bradou:

[i]Rodibéron bel Bahar[/i]! (Ira do Senhor do Mar)

Uma onda gigantesca formou-se na frente de Leviatã e, assim que os


seus braços desceram, ela desabou violentamente contra os Cavaleiros de
Ouro, atacando-os ao mesmo tempo em que oferecia resistência às suas
técnicas especiais, que tentavam sobrepujar a potência e a resistência do
violento vagalhão que o inimigo lançara contra eles. O impacto foi terrível, não
só por causa da imensa massa de água, mas sim por causa do cosmo que a
envolvia, tornando-a dura como o aço e tão devastadora quanto um maremoto
que se abate sobre a costa. Mas não era só isso: parecia que havia lâminas no
interior da onda, ou animais vorazes e com presas afiadas, que se lançavam
contra os inimigos e tentavam dilacerar-lhes. Independente do que fosse, o
impacto e os cortes provocados pelo golpe de Leviatã foram incrivelmente
destrutivos.

Quiron e Serket foram jogados para longe, e agora estavam estatelados


no chão, ainda conscientes, mas sem forças suficientes para se porem de pé.
Azazel estava parado em frente a Serket, apontando-lhe a espada diretamente
para o rosto.

163
- Você jamais deveria ter vindo até aqui, Cavaleiro de Atena – falou Azazel com
uma voz carregada de ódio. – Você se atreveu a atacar um deus, e esse tipo
de atrevimento eu não irei permitir.

Serket começou a rir e, ignorando a espada que lhe era apontada,


tentou pôr-se de pé enquanto.

- Esse é o discurso padrão de vocês? – falou ele com dificuldade, e tossiu um


pouco de sangue – Pelo que os outros me falaram, todos os demônios que
enfrentamos disseram a mesma coisa, mas todos nós estamos vivos ainda, ao
passo que vocês...

E Azazel, furioso, desferiu um corte na perna direita de Serket,


exatamente ponto entre o coxote e a greva da Armadura de Ouro, onde não
havia nenhuma proteção. O escorpiano, embora tivesse sentido uma dor
lancinante, não emitiu nenhum som que expressasse sua dor, apenas cerrou
as mandíbulas, como se tentasse manter preso o grito que lhe subira pela
garganta.

- Insolente! – gritou Azazel, e agora seus olhos estavam em chamas – Mesmo


nessa situação deplorável ainda se atreve a me tratar dessa forma! Mas darei a
você uma última honra: você será o primeiro Cavaleiro de Ouro a morrer,
Serket de Escorpião.

Mas Serket não demonstrou medo ou apreensão. Seu rosto estava com
um semblante calmo quando, com dificuldade, ele ergueu sua mão direita e
esticou o seu indicador.

- Você não usará o seu ferrão novamente, Cavaleiro de Atena – disse Azazel
que, com um movimento rápido, amputou o dedo de Quiron.

Mas ele havia se enganado. Serket não havia erguido a mão para usar
suas agulhas escarlate, mas sim para apontar o tornado que começava a
mudar de forma. O grito que escapou de seus lábios quando seu dedo foi

164
amputado não foi um grito de dor, mas sim o grito de sua última esperança de
mudar os rumos da batalha.

[i]Ostrakiá Thýella[/i]! (Tempestade Escarlate)

E o tornado cessou seu giro e transformou-se em intensas correntes de


ar, que sopravam em direções diferentes. Nuvens escuras e carregadas de
energia se amontoaram sobre eles, e uma violenta tempestade tomou forma. O
seu poder era imenso, e era evidente que Serket havia gasto suas últimas
energias para criá-la: trovões ensurdecedores estouravam sobre eles com
violência, clarões ofuscantes iluminavam o céu brevemente, e poderosos raios,
vermelhos como sangue, castigavam impiedosamente o solo, causando
destruição onde caiam.

Azazel agora era fustigado pelos ventos uivantes que arremetiam contra
ele, e eles estavam carregados com o cosmo do escorpiano, de modo que
rasgavam sua pele como navalhas. Não obstante isso, a areia do deserto
impregnava o ar, tornando-o denso e dificultando a visibilidade. O demônio
ergueu sua espada e preparou-se para descê-la como uma guilhotina sobre o
pescoço de Serket e, nesse instante, um número indefinido de raios o atingiu,
ferindo-lhe dolorosamente e obrigando-o a gritar.

Mas, ainda assim, Azazel teve energias suficientes para desferir seu
golpe fatal e, com um grito furioso, ele brandiu sua arma uma última vez antes
de perder a consciência. A tempestade cessou exatamente no instante em que,
após atravessar o pescoço de Serket, a lâmina demoníaca tocou o solo,
separando cabeça e tronco com um único golpe. O escorpião dourado havia
sido abatido, mas seu ferrão conseguira ferir o inimigo uma última vez.

- SERKET! – gritou Quiron desesperado.

Mas seu grito foi em vão, pois não havia mais que ele pudesse fazer
pelo amigo. Como isso podia ter acontecido? Seu melhor amigo, morto diante
de seus olhos, e ele nada pudera fazer para ajudá-lo.

165
Quiron se recusava a acreditar na morte de Serket, e um turbilhão de
sentimentos atacava-lhe a mente e o coração: tristeza, raiva, surpresa,
impotência e, sobretudo, solidão: uma solidão amarga e escura, do tipo que
parece eliminar qualquer possibilidade de felicidade, e que causa medo quando
se pensa no que vai acontecer depois.

Mas o pior ainda estava por vir. Azazel estava se levantando, embora
fossem visíveis os muitos e graves ferimentos que Serket havia lhe causado.
Um sentimento animalesco brotou em seu interior, um misto de ira e de
violência selvagem, um sentimento que só poderia se traduzir em um desejo:
vingança.

Ignorando os ferimentos causados pelo ataque de Leviatã, o sagitariano


se lançou sobre Azazel e começou a golpeá-lo ferozmente com os punhos. Ele
gritava agressiva e desesperadamente a cada soco, externando, por meio da
voz, a fúria que havia consumido seu corpo e sua mente. E agora ele não se
limitava aos socos, e também aplicava poderosos chutes no adversário, que se
encontrava sem reação possível frente ao poder que o ódio despertara no
Cavaleiro de Sagitário.

- Chega! – gritou Leviatã, e seu punho atingiu com força o rosto de Quiron, que
foi arremessado para longe.

Quiron caiu de pé na ponta oposta de uma pequena ponte pedra que


cruzava por sobre um riacho, provavelmente um pequeno veio d’água que
desembocaria no Nilo. Então, ele virou-se para encarar os inimigos, e foi então
que ele percebeu duas coisas que abrandaram sua ira. A primeira coisa era
que Leviatã havia sido atingido pelos golpes que ele e Serket lançaram antes,
embora os ferimentos não fossem muito graves.

A segunda foi a mais importante: o rosto de Serket tinha uma expressão


feliz. Mesmo estando grave e dolorosamente ferido, e sabendo que iria morrer,
Serket ainda conseguiu esboçar um último sorriso antes de partir para o mundo

166
dos mortos, não dando ao inimigo o prazer de ver sofrimento em seu rosto.
Serket morrera da mesma forma que vivera: tendo o prazer de provocar os
outros.

- Você não será páreo para nós três, Cavaleiro de Sagitário – disse Azazel, que
agora se recuperara um pouco da surra que levara de Quiron. – A sua derrota
é iminente, e somente um milagre poderia salvá-lo agora.

E Azazel juntou sua espada do chão e caminhou na direção da ponte


onde estava o sagitariano, que erguera o arco e preparava-se para mirar uma
flecha contra o inimigo. Porém, quando Azazel pôs o pé na ponte, ele sentiu
uma energia repelindo-o, impedindo o seu avanço. Ele tentou se mover para
frente, mas não conseguia.

- Que energia é essa que me impede de avançar? – questionou Azazel furioso


– Como você ainda pode ter poder para fazer isso?

- Não fui eu quem fez isso – respondeu Quiron, aparentemente tão surpreso
quanto Azazel.

- E quem foi que fez isso? – perguntou o demônio olhando para Leviatã e
Sekhmet, esperando uma resposta deles.

- Fui eu – respondeu uma voz vinda de trás de Quiron, e todos olharam para
ver quem era.

Ali havia duas pessoas. Uma delas trajava uma reluzente armadura
prateada, era jovem e bonito, tinha uma pele morena, cabelos semi-longos e
negros, era esbelto e alto, e possuía olhos castanho claros. A outra pessoa era
a que respondera a Azazel, e era bem diferente da primeira: ele não usava
armadura, apenas um manto branco com bordados vermelhos, e era muito
velho. Sua pele era branca e enrugada, tinha cabelos curtos e grisalhos, altura
mediana, era obeso, tinha um rosto redondo com bochechas coradas e

167
pequenos olhos claros. Embora sua aparência fosse quase cômica, sua
expressão era firme e séria.

- Mais Cavaleiros de Atena? – indagou Azazel – Mas você já está velho demais
para ser um Cavaleiro.

- Eu não sou um Cavaleiro – disse o homem – Eu sou Inocêncio VIII, Papa da


Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana. Este jovem ao meu lado é
Sacros, Cavaleiro de Prata de Altar.

- Sua Santidade não deveria ter vindo para cá – disse Quiron preocupado. – A
situação é extremamente perigosa, eu não sei como o Grande Mestre permitiu
sua vinda. Eu não imaginei que o sinal que você me pediu para dar caso
Sekhmet estivesse desperta significava que o Santuário mandaria reforços,
Sacros.

Azazel começou a rir, um riso de escárnio e depreciação, e ele parecia


realmente ter se divertido com o que ouvira.

- Reforços? Chama um velho sacerdote e um reles Cavaleiro de Prata de


reforços? – e ele riu novamente – Se isso é o melhor que o Santuário de Atena
tem a oferecer, então acho que não devemos nos preocupar, não é mesmo
Leviatã?

Mas Leviatã não estava rindo. Sua expressão era dura e pensativa,
como se ele tentasse assimilar as informações e os fatos.

- O que foi, Leviatã? Vai me dizer que está preocupado?

- Você é realmente muito estúpido, Azazel – disse Leviatã severamente. – Esse


velho, pelo que entendi, é o Grande Mestre do Santuário de Yeshua. Não
subestime-o por usa aparência, pois ele pode ser perigoso.

168
- Perigoso? – questionou Azazel, visivelmente surpreso – Esse velho não tem
energia nem para tomar banho sozinho. Vou transpassá-lo com minha espada
como se ele fosse manteiga.

- Não enquanto eu estiver aqui – disse Quiron apontando sua flecha para o
inimigo.

- Agradeço a proteção, Quiron – disse o Papa com amabilidade -, mas você


tem ordens expressas de voltar para o Santuário.

- O que?! – perguntou Quiron estupefato – O Grande Mestre terá de entender


que eu não posso voltar ao Sant...

- Não são ordens do Mestre, Quiron de Sagitário – disse Sacros com firmeza,
interrompendo-o. – Eu estou transmitindo as ordens diretas de Atena, e eu não
pretendo repeti-las. No seu estado, a única coisa que você faria aqui seria nos
atrapalhar. Vá agora, ou você quer que o sacrifício de Serket tenha sido em
vão?

- Não se preocupe, Quiron – falou o Papa. – Eles não sairão daqui enquanto
estivermos vivos.

E então, após hesitar por alguns instantes, Quiron virou as costas para
deixar o local. Ele já tinha dado alguns passos quando Azazel gritou.

- Não pense que deixarei você fugir assim. Eu vou mat...maldição!

E, mais uma vez, Azazel tentou cruzar a ponte, mas seu corpo foi
repelido.

- Seu velho maldito, por que fez isso? – perguntou o demônio grosseiramente.

169
- Eu acho que você não entendeu um detalhe importante – disse o Papa com
calma, mas depois sua voz assumiu um tom impositivo e firme. – Você não vai
passar.
Azazel fitou-o com ódio, mas ele sustentou seu olhar com firmeza e
determinação. Quais serão os planos do velho Papa?

170
[b]CAPÍTULO XV: [i]Fogo e Fé[/i][/b]

Os olhos azuis e carregados de ódio de Azazel fitavam o velho Papa


com evidente desprezo. Era impensável que um velho gordo e baixinho se
atrevesse a desafiar um inimigo mais alto, mais forte e provavelmente muito
mais poderoso do que ele.

- Você está falando sério? – disse Azazel em um tom depreciativo. – Você


realmente acha que vai conseguir me impedir de passar?

- Até agora você não foi capaz disso – respondeu Sacros de Altar pelo Papa.

- Cale-se, Cavaleiro de Atena! – gritou o demônio – Se dois Cavaleiros de Ouro


não foram páreo para mim, o que você acha que um velho e um reles Cavaleiro
de patente inferior vão poder fazer?

- Não foram páreo para você? – indagou-o Sacros, enfatizando a última


palavra. – Até onde eu pude ver, foram três de vocês contra dois Cavaleiros de
Ouro, e você estava caído até pouco tempo. O crédito da vitória não pertence a
você, mas sim a um dos outros dois, provavelmente a mulher que, acredito,
seja Sekhmet, pois ela não está ferida.

Atrás de Azazel, a uma pequena distância, Leviatã e Sekhmet estavam


parados em silêncio, apenas acompanhando o desenrolar da conversa. O
demônio, então, ergueu a sua espada, mas Sacros estava atento a qualquer
movimento de Azazel e, no mesmo instante em que o inimigo iniciou seu
movimento de ataque, o Cavaleiro de Altar usou sua telecinese para desarmá-
lo, arremessando a espada para longe.

- Maldito! – gritou Azazel furioso enquanto sua espada girava no ar e ia parar a


alguns metros do local onde ele estava - Como se atreve a fazer isso? Você
conseguiu despertar a fúria do grande Azazel, e lhe garanto que você irá pagar
muito caro por essa ousadia. Eu irei matá-lo... não, eu irei rasgar a sua pele

171
com minhas unhas e meus dentes enquanto você ainda estiver consciente,
para que você sofra uma morte lenta e dolorosa.

- Você sozinho não tem poder para isso, criatura demoníaca – disse o Papa
com uma voz levemente embargada por algum sentimento, talvez medo ou
apreensão.

- Cuidado, Azazel, isso é uma isca – disse Leviatã de braços cruzados. –


Aparentemente eles intencionam que você lute sozinho, e isso pode ser
perigoso.

- Perigoso? Veja bem o que nós temos aqui: um velho à beira da morte e um
Cavaleiro de Prata ou de Bronze, pois eu sei que Cavaleiro de Ouro ele não é.
Que tipo de perigo você acha que pode haver em uma luta contra essas duas
criaturas pateticamente atrevidas? – perguntou-lhe Azazel retoricamente.

- Esse tipo de imprudência é demasiado até mesmo para você, Azazel – disse
o gigantesco demônio com uma voz severa. – Eu já lhe disse uma vez e vou
repetir pela última: não julgue este velho apenas por sua aparência, pois ele
não é um velho comum. Ele é o líder do Santuário de Yeshua, e jamais se
arriscaria a vir para cá sem esperanças de, no mínimo, derrotar um de nós.

“Quanto ao Cavaleiro – disse Leviatã olhando para Sacros e analisando-o por


alguns segundos -, independentemente de qual seja a patente dele, ele
continua sendo um Cavaleiro a serviço de Atena e, se o Grande Mestre do
Santuário grego é um homem tão astuto como me disseram, ele deve ter algum
motivo especial para ter enviado ele ao invés de outro Cavaleiro de Ouro
porque, do contrário, isso seria enviar um dos seus guerreiros para a morte
certa.

Azazel analisou os inimigos dos pés a cabeça, detendo-se por alguns


instantes enquanto examinava o velho Papa. Ao fim, seus olhos brilharam
maliciosamente, e sua expressão de desprezo culminou em um esgar

172
enviesado que, muito provavelmente, deveria ser um sorriso, e ele estava
carregado de autoconfiança e prepotência.

- Você se preocupa demais com as coisas, Leviatã – disse ele por fim. –
Independente do título que eles tenham, ainda assim continuam sendo um
velho e um Cavaleiro com poder inferior aos outros dois que estavam aqui. Irei
destruí-los com a mesma facilidade com que o fogo consome a palha em um
dia seco de verão.

- Antes de você prosseguir com os seus julgamentos precipitados, vou


esclarecer um detalhe que, aparentemente, você não sabe – disse Sacros. –
Eu posso não ser um Cavaleiro de Ouro, mas não estou muito longe disso, pois
sou o Cavaleiro de Prata da Constelação de Altar. Eu sou o braço direito do
Grande Mestre do Santuário de Atena, e vim até aqui com o único intuito de
destruí-los, independentemente de eu continuar vivo ou não após isso.

- Hahaha. Então você se julga grande coisa por ser o braço direito do Grande
Mestre? – perguntou Azazel desdenhosamente – Então eu acho bom que ele
seja ambidestro, pois o braço direito dele será inutilizado hoje. Eu irei destruir
você e esse velho sozinho.

- Não seja estúpido, Azazel – disse Leviatã, agora evidentemente furioso. – Já


lhe disse que isso provavelmente é uma armadilha criada especificamente para
um de nós. Não vou permitir que você faça uma besteira como essa.

- É melhor você escutar as ordens do seu comandante – disse Sacros em um


tom irônico. – Você sozinho não poderá fazer nada, principalmente se você for
o nosso alvo.

- Meu comandante?! ORDENS?! – explodiu o demônio, e agora sua fúria era


realmente assustadora – Eu não recebo ordens de ninguém que não seja
Lúcifer ou Baal, que foi escolhido pelo próprio Lúcifer como líder em sua
ausência. Se vocês são incapazes de me respeitar em minha condição divina,

173
pelo menos me assegurarei que nos seus últimos instantes de vida vocês me
temerão, e se arrependerão amargamente de terem ousado me desafiar.

- Você não vai lutar, Azaz... – começou Leviatã, mas ele foi interrompido.

Em uma súbita explosão, um cosmo assustador pareceu incendiar o


corpo de Azazel, e o que causava medo não era apenas o seu poder, mas sim
o ódio e a fúria que ele desprendia. Uma rajada incandescente projetou-se na
direção de Leviatã, que interrompeu o que falava para, com um movimento
rápido de sua mão esquerda, bloquear o golpe lançado por Azazel.

- Eu não recebo ordens suas, Leviatã – falou o demônio quase em frenesi. – Eu


decidi lutar e, a menos que o próprio Lúcifer me ordene, eu não mudarei de
idéia.

- Você sabe muito bem o risco que está correndo por ter me atacado, pois sabe
que eu posso demovê-lo a força dessa sua idéia estúpida – disse Leviatã em
um tom de ameaça.

- Sim, mas não sem luta, e você sabe muito bem que os inimigos se
aproveitariam disso para tentar nos destruir enquanto estivéssemos distraídos.
Por que você não luta ao meu lado, Leviatã? Poderíamos destruí-los muito
mais rapidamente se lutássemos juntos.

- Você sabe muito bem que não temos tempo para isso. Já perdemos muito
tempo na luta anterior, e estamos perdendo mais tempo nessa discussão inútil.
Agora pare com essa besteira sem sentido e venha logo, pois o nosso tempo
está acabando

- NÃO! Eu ficarei e lutarei.

Leviatã fitou fixamente os olhos incandescentes de Azazel. Eles ficaram


parados encarando-se por um tempo não muito longo, mas a tensão no
ambiente cresceu quase infinitamente. Sacros e Inocêncio trocaram um olhar

174
rápido e cheio de significados, mas isso passou despercebido para os inimigos
que continuavam se encarando. Por fim, foi Leviatã quem quebrou a postura e,
com uma voz trovejante, disse suas últimas palavras antes de ir.

- Você está certo, Azazel. Talvez seja melhor deixar você eliminar esses
mortais para que eles aprendam a nos respeitar – e agora ele tinha uma
estranha expressão em seu rosto reptiliano, algo quase indistinguível, mas que
beirava à satisfação. – Infelizmente, Azazel, não poderemos ficar para ajudá-lo,
pois nós temos coisas urgentes para fazer, como é de seu conhecimento. Você
se importa de lutar sozinho?

- É o que eu mais quero – respondeu o demônio com uma alegria sádica


externada em um sorriso medonho.

- Pois que seja assim – finalizou Leviatã, e agora ele se virou para a mulher ao
seu lado, que permanecera em silêncio desde a chegada do Papa. - Sekhmet,
agora você deve me acompanhar para se juntar aos outros, pois temos de
trazer as [i]Chet

[/i] de volta, e isso é de vital importância.

Sekhmet assentiu com a cabeça, e então ela e Leviatã elevaram sua


cosmo energia. Seus corpos começaram a se tornar cada vez mais
translúcidos até que, finalmente, desapareceram por completo. Nesse exato
momento, aproveitando a distração dos inimigos, Azazel lançou seu ataque, e
seu grito pareceu rasgar os ouvidos do velho Papa.

[i]Flammer of Bodsøvelse[/i] (Chamas da Penitência)

Das mãos de Azazel irromperam grandes chamas negras e rubras, que


cortaram a distância com grande velocidade. O calor era intenso, e o fogo
demoníaco destruía e derretia o que estivesse em seu caminho, de modo que a
ponte que se interpunha entre ele e os inimigos foi desintegrada.

175
Uma nuvem de fumaça negra se ergueu no local, e o calor havia se
tornado intenso. Quando uma leve brisa noturna soprou e varreu para longe a
fumaça, Azazel pode ver que Sacros estava parado com os braços abertos na
frente do Papa, virado de costas para ele em uma evidente ação de proteção.
O demônio olhou esperançoso para o inimigo, esperando ver uma grave
queimadura ou algum membro carbonizado, mas suas expectativas não foram
atendidas. A não ser por um breve chamuscar no chão enfrente ao Cavaleiro
de Altar, nada acontecera do outro lado.

- Eu não acredito – disse Azazel ainda mais furioso. – Você não tem poder
suficiente para deter um ataque dessa magnitude, Cavaleiro de Atena.

- É, de fato eu não tenho – concordou Sacros. – Mas o que faz você pensar
que fui eu quem deteve o seu golpe?

E então o demônio olhou para o velho Papa, e viu que ele parecia estar
em transe. Com a mão direita ele segurava uma cruz prateada, que ele
mantinha virada na direção de Azazel, e com a outra mão ele segurava um
livreto preto. Seus olhos estavam fechados, seu corpo parecia oscilar para
todos os lados, e seus lábios se moviam rapidamente, pois ele murmurava
algo.

- Então esse velho é um feiticeiro! – espantou-se Azazel – Jamais pensei que


Yeshua aceitaria um feiticeiro como seu representante.

- Isso não é um feitiço – interrompeu-o o Papa com uma voz cansada. – Isso é
uma prece, e foi o próprio Deus quem a ensinou para os seus servos da Igreja,
para que nós pudéssemos combater o mal por meio do poder Dele.

- Hahaha, não me faça rir! – escarneceu o inimigo – YHVH abandonou a


humanidade há milhares de anos, e ele jamais iria se prontificar a ensinar algo
a um de vocês.

176
- Tu estás certo, mas não completamente – disse uma voz retumbante e
harmoniosa vinda de trás do Papa.

- NÃO! – gritou Azazel enquanto caía de joelhos, com as mãos protegendo os


ouvidos - Essa voz... eu me lembro dela...

- Claro que tu te lembras da minha voz. Foi o meu brado de guerra que tu
ouviste no campo de batalha quando tu tentaste invadir a Cidade de Prata com
as hostes de Lúcifer. Foi a minha voz que tu ouviste te chamando para uma
luta entre comandantes quando tu estavas quase triunfando em tua invasão.
Foi por meio da minha voz que tu ouviste o julgamento de Yeshua para os
rebeldes, e foi a minha espada flamejante que ceifou tuas asas.

Sacros estava visivelmente surpreso, pois não fazia idéia de que havia
mais alguém ali, principalmente em se tratando de um aliado. Entretanto, ele
achou mais prudente permanecer em silêncio e fazer qualquer tipo de pergunta
depois.

- Israfil! – gritou Azazel – Você não poderia estar aqui, pois Yeshua os proibiu
de descer.

- Eu não preciso de tua ajuda para relembrar-me das ordens de meu Senhor –
disse a voz trovejante. – E, embora não seja da tua alçada saber, eu não desci
à Terra: eu apenas estou usando minha energia para proteger o Santo Padre.

- Mas tu não podes...

Azazel tentou falar, mas um raio riscou o céu no exato momento em que
ele abrira a boca, e um trovão explodiu com uma violência tão grande que
Azazel ficou em silêncio.

- Não cabe a ti dizer o que eu posso ou não posso fazer, rebelde caído, pois
somente o Ungido e YHWH me ordenam – disse a voz potentemente,

177
sobrepondo-se ao som do trovão. – As leis de YHWH são absolutas, e nem
mesmo Yeshua pode sobrepor-se a elas, quem dirá eu.

- Humpf, isso não interessa – disse Azazel, agora colocando-se de pé e


elevando seu cosmo novamente. – Se você não está realmente aqui, não terá
energia suficiente para me deter, pois mesmo a nossa batalha no Plano
Celeste foi difícil para você.

- [i]In nomen Dei, clausa, infernalis creatura[/i]! (Em nome de Deus, cala-te,
criatura infernal!) – gritou o Papa, e sua voz soava imponente e cheia de
autoridade.

Foi como se as palavras do Papa fossem armas, pois Azazel teve sua
face cortada exatamente na altura da boca, de modo que ele foi obrigado a
ficar em silêncio. Sacros olhou com espanto para o Papa, e percebeu que
Leviatã estava certo: por mais frágil e débil que o Papa aparentasse ser, ele
estava muito longe de ser um homem comum. Quando Girtab lhe enviara para
acompanhar o Papa, ele havia dito que Azazel deveria estar sozinho, pois o
Papa não teria tempo suficiente de lidar com todos, e ele, Sacros, só poderia
auxiliá-lo com um deles, e este deveria ser Azazel.

O motivo disso ele não sabia, mas ele sabia de uma coisa: o Grande
Mestre sempre tinha um plano, e ele e o Papa pareciam já haver discutido esse
plano antes, pois eles apenas trocaram rápidas palavras quando Girtab voltara
de seu confronto contra Thánatos. Eram instruções simples que ele tinha de
seguir: fazer com que Azazel decidisse lutar sozinho e...

- Velhote gordo desgraçado! – gritou Azazel desvairadamente – Você vai sofrer


as conseqüências disso.

E Azazel correu em direção ao Papa, com o punho flamejante em riste.


Ele conseguiu, finalmente, ultrapassar a barreira invisível que havia na ponte
com um salto, e agora ele esboçava um sorriso confiante: apenas um golpe
seria suficiente para aquele velho.

178
[i]Flammer of Bods...[/i]

- [i]In nomine Patris, foliis solvo hoc corpus[/i]! (Em nome de Deus, deixa este
corpo livre!) – bradou o Papa energicamente enquanto Azazel voava em sua
direção.

E o corpo de Azazel foi arremessado para baixo com violência, e caiu de


costas sobre o pequeno curso d’água que ficava sob a agora inexistente ponte
de pedra. Sacros abriu um largo sorriso quando viu Azazel sendo subjugado
pelo poder do Papa, mas logo a preocupação o atingiu: Inocêncio estava caído
de joelhos e ofegando pesadamente. Embora suas mãos estivessem apoiadas
no chão, ele ainda segurava firmemente o livreto e a cruz de prata.

- Sua Santidade, o senhor está bem? – perguntou Sacros preocupado.

- Eu...eu estou bem Sacros, não se preocupe comigo. Eu só fiquei...fiquei um


pouco cansado...

E um clarão rubro atingiu Sacros nas costas, na altura dos ombros.


Azazel havia aproveitado a distração dos adversários e atacara o Cavaleiro de
Altar de surpresa. Sacros sentia como se um pedaço de ferro em brasa
houvesse tocado sua pele, e o cheiro de carne queimada empesteou o ar.
Ainda assim, com o corpo ferido e sangrando, Sacros continuava de pé, pois
sua armadura havia absorvido o impacto, mas não a dor e o calor infernal do
golpe de Azazel.

- É assim que vocês acham que vão me derrotar? – zombou o demônio – Com
um velho recitando feitiços e sendo auxiliado por um Arcanjo?

- Então é isso que estava nos ajudando: um Arcanjo? – indagou Sacros com a
mão coberta de sangue, pois ele havia tocado seu ferimento por debaixo da
armadura..

179
- Você não sabia disso? – perguntou Azazel com desdém – Parece que,
mesmo sendo o braço direito do Grande Mestre, há certos segredos que não
estão ao seu alcance, não é mesmo? Mas isso não importa agora, pois vocês
vão morrer.

[i]Flammer of Bodsøvelse[/i] (Chamas da Penitência)

[i]Libatio Sanguinem[/i]! (Oferta de Sangue)

E, mais uma vez naquela noite sangrenta, Azazel projetou suas chamas,
com a esperança de que o adversário a sua frente fosse subjugado, mas seu
intento não foi alcançado. Sacros estava de joelhos, e seu rosto visivelmente
apresentava traços de dor, mas as chamas não haviam lhe atingido. O
demônio não esmoreceu e, com um grito, intensificou o volume e o calor da
chamas.

Azazel agora lutava com tudo o que tinha, e ele estava irado e
assombrado com o que ele estava vendo, pois suas chamas estavam
derretendo a areia, fazendo com que ela começasse a adquirir um aspecto
vítreo, mas Sacros continuava intocado pelas chamas. Olhando para o solo,
Azazel percebeu que não havia apenas vidro liquefeito se espalhando: havia
algo denso e vermelho escorrendo em profusão, e o cheiro desse líquido, ao
ser queimado, não deixava mais dúvidas sobre o que poderia ser. Era sangue.

- Então você está sacrificando o seu sangue para se proteger? É uma atitude
inesperada para mim, ver alguém tentando deter fogo com sangue. Admito que
eu não estou conseguindo superar a sua defesa agora, mas você tem um sério
problema a considerar, pois eu posso ficar indefinidamente lançando o meu
fogo infernal sobre você, mas o seu sangue irá se esgotar em algum momento,
e acho que não falta muito para isso acontecer.

- Eu sei disso – disse Sacros com uma voz entrecortada pela dor e pelo esforço
de manter sua barreira.

180
- Sabe? – admirou-se Azazel – Então por que insiste em uma defesa sem
perspectiva de êxito ao final? Não percebeu ainda que você irá morrer.

- Eu não pretendo morrer me defendendo de você, Azazel – disse Sacros


enfraquecido.

- Então você pretende me atacar? Você acha que ainda tem chances? –
perguntou o demônio, que continuava a lançar suas chamas impiedosamente
sobre Sacros, não dando a mínima atenção a algo brilhante que acabara de
cair do interior do peitoral da Armadura de Prata.

- Eu não tenho condições de fazer isso – falou o Cavaleiro de Altar com


dificuldade, e agora ele se apoiava no chão com as duas mãos. – Mas há
alguém que tem.

O aviso foi dado, mas era tarde demais para Azazel fazer algo: o Papa
estava de pé novamente, e agora havia uma indubitável aura de energia
envolta de seu corpo. Uma luz dourada iluminava a escuridão da noite egípcia,
e seu brilho áureo sobrepunha-se ao tom rubro das labaredas que o demônio
lançava sobre Sacros.

- [i]Regna Terrae, cantate Deo, psallite Dominio. Tribuite virtutem Deo.


Exorcizamus te, omnis immundus spiritus, omnis satanica potestas, omnis
incuriso infernalis adversarii, omnis legio, omnis congredatio et secta diabólica.
Ergo…[/i] (Reinos da Terra, cantai a Deus, entoai salmos ao Senhor.
Reconhecei o poder de Deus. Te exorcizamos, todo espírito imundo, todo
poder satânico, toda investida do adversário infernal, toda legião, toda
congregação e seita diabólica. Desse modo...)

A voz do velho Papa era autoritária e digna de obediência, e assim que


ele ergueu sua cruz e começou a falar, Azazel foi forçado a cessar suas
chamas, pois algo parecia estar ferindo-lhe mortalmente, tanto que agora era
ele quem estava caído de joelhos.

181
- Maldito, pare com isso. AHHHHH – e o seu grito de agonia, que pareceu
rasgar-lhe a garganta, fez o chão tremer.

- Você devia ter dado ouvidos a Leviatã – disse Sacros ainda no chão, com o
rosto extremamente pálido devido à falta de sangue.

- NÃO! Eu não serei derrot...

- [i]Perditionis venenum propinare. Vade, Daemon, inventor et magister omnis


fallaciae, hostis humanae salutis. Humiliare sub potenti manu Dei. Contremisce
et effuge. Invocato a nobis sancto et terribile Nomine. Quem inferi tremunt. Ab
insidis Daemon, libera nos, Domine. Ut ecclesiam tuam secura tibi facias,
libertate servire, te rogamus, audi nos. Ut inimicos sanctae ecclesiae humiliare
digneris, to rogamus audi...[/i] (Brindai o veneno da perdição. Afasta-te
Demônio, inventor e mestre de toda mentira, inimigo da sanidade humana.
Humilhai-vos sob a poderosa mão de Deus. Estremecei e fugi quando invocado
por nós o santo e terrível Nome, diante de quem os infernos tremem. Livra-nos,
Senhor, das armadilhas do Demônio, para que faças segura para ti a tua Igreja,
para que te sirvamos em liberdade, te pedimos, ouve-nos)

E a cada vez que o Papa falava em Deus ele fazia o sinal da cruz com a
sua cruz prateada, e desta brotava uma luz argêntea e intensa, que queimava
a pele de Azazel como se fosse ácido.

- NÃO! Eu não vou abandonar esse corpo – gritava o demônio com uma voz
desesperada, e agora não era apenas o solo que tremia violentamente: havia
chamas brotando por todo o lado, como se o Inferno tentasse se manifestar
para protegê-lo.

A aura ao redor de Inocêncio brilhava intensamente, como se o Sol


houvesse decidido assumir o controle da noite também, com o objetivo de
expulsar todo o mal que pudesse se ocultar sob as sombras. O corpo do Papa
tremia dos pés a cabeça devido ao esforço físico e mental que ele fazia, mas
ele continuava firme em sua vontade.

182
- [i]Dominicos sanctae ecclesiae, terogamus audi nos, terribilis Deo sanctuario
suo Deo Israhel. Lpse tribuite virtutem et fortitudinem plebi suae, benedictus
Deo, gloria Patri...[/i] (Para que te dignifique humilhar os inimigos da Santa
Igreja, te pedimos, ouve-nos. Os servos da Santa Igreja, te pedimos, ouve-nos,
Deus terrível, do teu santuário, Deus de Israel. Ele atribuirá força e poder ao
seu povo, Deus bendito, glória ao Pai...)

- Não permitirei isso... – disse Azazel tentando ficar de pé.

- [i]Gloria Filis...[/i] (Glória ao Filho) – prosseguiu o Papa aumentando a voz.

- Não...

- [i]Gloria Spiritu Sancti! Vade, Daemon, inventor et magister omnis fallaciae,


hostis humanae salutis. Da locum Christo, in quo nihil invenisti de operibus tuis;
da locum Ecclesiae Uni, Sanctae, Catholicae, et Apostolicae, quam Christus
ipse acquisivit sanguine suo.[/i] (Glória ao Espírito Santo! Afasta-te, Demônio,
inventor e mestre de toda mentira, inimigo da sanidade humana. Dá lugar a
Cristo, em quem você não encontrou nenhuma das suas obras; dá lugar a Una,
Santa, Católica e Apostólica Igreja, que o próprio Cristo congregou com seu
próprio sangue.)

- NÂO! – gritou Azazel, mas pela última vez.

- [i]In nomine Patris, Filis et Spiritu Sancti. EXORCIZAMUS TE[/i]! (Em nome do
Pai, do Filho e do Espírito Santo. NÓS TE EXORCISAMOS!)

E, após essas palavras, um flash ofuscante de luz dourada iluminou o


local completamente por alguns segundos. Nada podia ser visto, mas o
ambiente era denso, e o ar era quase palpável. Por fim, quando o clarão
cessou e era possível enxergar novamente, Sacros virou seu rosto para o local
onde Azazel estava, e ele viu que o corpo dele estava estendido sobre o solo,
mas havia uma espécie de fumaça negra a sobrevoar o seu corpo.

183
Isso era exatamente o que ele esperava ver, e esse era o último ponto
do plano traçado pelo Papa e pelo Grande Mestre. Era de fundamental
importância que ele fosse bem sucedido na execução dessa última etapa do
plano, caso contrário os sacrifícios daquela noite teriam sido todos em vão.

- Azazel... Então você não foi completamente destruído? – falou Sacros


tentando aparentar surpresa.

- Acharam que poderiam me deter apenas me expulsando de meu


receptáculo? – falou Azazel com uma voz grave e etérea – Vocês nunca
tiveram a mínima chance contra mim, e seus esforços custaram muito caro:
você já está quase morto pela perda de sangue, e o velho não resistiu ao
esforço de me expulsar do antigo corpo que eu habitava.

- Mas agora já não há nada que você possa fazer – falou o Cavaleiro de Altar
em tom de desafio.

- Não? – indagou o demônio – Você me disse que eu deveria ter dado ouvidos
a Leviatã, e agora eu acho que você está certo: eu não deveria ter
menosprezado vocês dois, principalmente agora que eu irei usar o seu corpo
como meu novo corpo.

- Você vai querer assumir um corpo ferido?

- Hahaha, eu sou um espírito do fogo, Cavaleiro de Atena. Ferimentos


causados pelo fogo não serão empecilhos para mim.

- Mas você não pode assumir o controle de um corpo ainda vivo – e essa foi a
última cartada de Sacros, e ela foi certeira.

- Eu sei. E é exatamente por isso que eu irei matá-lo agora – e então o espírito
de Azazel avançou sobre Sacros.

184
Quando ele se aproximou do Cavaleiro de Altar, uma estranha e intensa
luz dourada brilhou embaixo dele, e chamou a sua atenção. Ao olhar para ver
do que se tratava, Azazel viu que era uma pequena caixa dourada com muitos
símbolos, dentre os quais havia um selo com o nome de Atena.
Repentinamente, a caixa se abriu com a aproximação dele, e Azazel sentiu-se
sendo sugado para o seu interior.

- O que é isso?! – perguntou Azazel com nítido pavor em sua voz.

Mas ele não chegou a ouvir a resposta de Sacros, pois seu espírito foi
tragado para o interior daquele objeto dourado, que se fechou com um leve
baque no mesmo instante em que a luz cessou. Finalmente Azazel fora
derrotado, e agora seu espírito estava selado, pondo fim a mais sangrenta das
batalhas que até então haviam sido travadas desde que a guerra contra as
hostes de Lúcifer começara.

- Isso – falou Sacros em voz alta enquanto pegava a caixa que estava no chão,
como se esperasse que Azazel pudesse ouvi-lo do interior dela - é o motivo do
sacrifício do Papa, bem como da vinda de Serket e Quiron até aqui. Essa é a
Caixa de Pandora, que me foi entregue pelo Grande Mestre para te aprisionar.

“Originalmente, eu iria aprisioná-lo em minha Armadura de Altar, pois o próprio


Grande Mestre iria usar a Caixa. Porém, os planos mudaram em algumas
horas, e eu acabei trazendo ela especificamente para você. Felizmente, você
não deu ouvidos a Leviatã, pois ele estava certo: era uma armadilha para você,
desde o princípio.”

Sacros, então, guardou a Caixa de Pandora no interior de sua armadura,


pulou a pequena distância onde antes houvera uma ponte, e juntou o corpo e a
cabeça de Serket. Após isso, voltou para onde estava o corpo do Papa e,
segurando-o pelo braço, concentrou o que lhe restava de energia para se
teletransportar para a entrada do Santuário.

185
Porém, mal Sacros sabia que aqueles dois sacrifícios – Serket e o Papa
– haviam sido em vão.

186
[b]CAPÍTULO XVI: [i]A Queda das Virtudes[/i][/b]

A noite já ia alta quando eles chegaram a Constantinopla. O céu sobre


eles estendia-se como um véu de um azul escuro, denso como veludo, e era
pontilhado por estrelas brilhantes, que compartilhavam com a lua o papel de
iluminar tudo o que se estendia sob o céu noturno. Visível ao longe devido à luz
que jorrava de seu interior, as quatro torres da Hagia Sophia ofereciam uma
idéia da imponência daquela cidade, e parecia ser inconcebível que aquele
local, outrora consagrado na religião cristã, pudesse estar sendo usado como
quartel general dos antigos inimigos do deus que eles veneravam há não muito
tempo.

Leviatã e Sekhmet caminhavam apressados, pois Baal havia criado uma


redoma de energia para proteger o local, e isso impedira que eles se
teletransportassem imediatamente para dentro da Hagia Sophia.
Repentinamente, Leviatã parou e, dando-se conta disso apenas quando já
estava quase na entrada da catedral, Sekhmet distanciou-se dele alguns
metros.

- Por que você parou? – indagou a deusa.

- Olhe ao redor – respondeu Leviatã calmamente. – Não vê nada de anormal?

- Não, está tudo calmo.

- Exato. Não há ninguém por aqui, nem mesmo os guardas que estão sob o
comando de Astarte. Não temos tempo a perder, Sekhmet. Entre e deixe isso
comigo.

- Mas...

- Não fui claro o suficiente? – perguntou retoricamente o gigantesco demônio, e


havia urgência em sua voz – Entre logo, pois não devemos perder tempo.

187
Em silêncio, Sekhmet preparou-se para entrar, até que raios de energia
quase a atingiram, obrigando-a a recuar.

- Aqui é o limite para vocês – e uma voz jovial soou do alto.

- Não permitiremos que entrem, nem que isso custe a nossa vida – e agora
ouvia-se uma segunda voz, muito mais grave e furiosa.

- Exato. Viemos purificar esse lugar, em nome de Deus – e uma terceira voz
fez-se ouvir, e ela era clara e determinada.

- Então quer dizer que o Santuário de Atena descobriu onde estamos e


resolveu nos atacar enviando alguns Cavaleiros? – falou Leviatã.

- Errado – disse a terceira voz. – Não somos Cavaleiros de Atena: somos Virtus
a serviço da Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana. Eu sou Óliver, e
represento a Virtude da Caridade.

E um homem branco, de olhos amendoados e longos cabelos


castanhos, saltou do alto de uma das casas e se colocou na frente de
Sekhmet. Ele trajava uma túnica branca com uma cruz de malta no centro, e
sua feição era impassível.

- Eu sou Galen, e represento a Virtude da Paciência – e um rapaz de cabelos


curtos e loiros, com olhos castanhos oblíquos, vestindo o mesmo tipo de túnica,
colocou-se ao lado de Óliver.

- E eu sou Benício, representante da Virtude da Generosidade.

E o último dos três guerreiros apareceu, e ele era o mais jovem deles,
com algumas sardas em seu rosto alvo. Os seus revoltos e curtos cabelos
castanhos encimavam olhos verdes e joviais.

188
- Que piada é essa? – falou Sekhmet em tom de desdém – Por que Atena
mandou três guerreiros diretamente para o local onde estão reunidos os seus
inimigos, que somam um número maior do que três e que, obviamente, são
mais poderosos?

- Não somos Cavaleiros de Atena – repetiu Óliver – Nós servimos à Santa


Mad...

- Eu entendi da primeira vez, não se dê ao trabalho de ficar repetindo isso –


falou Leviatã sério. – O que me pergunto é: por que estão aqui ao invés de
estarem protegendo o seu líder?

- Mas o Papa está aqui – disse Benício com firmeza.

Leviatã ficou surpreso com o que ouvira, e ficou alguns segundos em


silêncio, remoendo e processando as informações que possuía. Por fim, ele
saiu de seu transe momentâneo, já com um plano de ação traçado em sua
mente.

- Agora eu entendi tudo – falou o demônio esboçando um leve sorriso, fazendo


com que sua pele escamosa se contraísse no rosto, tornando sua feição mais
medonha do que já era.

- Entendeu o que? – perguntou Galen.

- Que a morte de vocês é certa – disse ele com simplicidade. – Sekhmet,


apresse-se em entrar. Eu resolvo isso aqui.

- Mas Leviatã... – começou a deusa com cabeça de leoa, mas foi interrompida.

- Em circunstâncias normais, eu não seria tão autoconfiante. Porém, tempo é


algo do qual não dispomos em quantidade, Sekhmet, e você é essencial nesse
momento. Vá lá para dentro e deixe que eu me encarregue desses três
guerreiros.

189
- Esses garotos não serão páreo para você, Leviatã.

- Guerreiros – disse o gigante com calma.

- O que disse? – perguntou Sekhmet.

- Não se refira a eles como garotos, mas sim como guerreiros. Eles lutam pelo
que acreditam, e estão dispostos a morrer por isso. Logo, trate-os com um
pouco de respeito, pois são poucos dentre os nossos que teriam a mesma
coragem imprudente deles, de se entregar nos braços da morte quando não há
expectativa de vitória.

Sekhmet apenas assentiu com a cabeça, e virou o corpo para entrar na


Hagia Sophia. Nesse instante, os três Virtus colocaram-se em posição de luta e
começaram a elevar suas energias.

- Vocês não vão passar – disse Galen categoricamente.

- Eu já ouvi isso essa noite – falou Sekhmet -, mas eu não estava com a
intenção de passar por onde pretendiam me impedir de ir. Vocês, por outro
lado, estão realmente no meu caminho.

[i]Ölüm Nefes[/i]! (Sopro da Morte)

Repetindo o que já havia feito naquela noite, Sekhmet começou a elevar


a sua energia, fazendo com que um vento quente começasse a soprar do sul.
Ele tinha um cheiro desagradável e pestilento, e causava cansaço e enjôo em
todos os que o aspiravam.

Os Virtus sentiram-se sufocados, e sua visão ficou turva por alguns


instantes. Foi então que Óliver resolveu agir: ele abriu os braços em um
movimento largo e linear, e sua cosmo energia começou a circundar seus
braços com uma aura dourada. Por trás do corpo do Virtus começava a tomar

190
forma uma bela figura alada: um anjo azul, com suas enormes asas estendidas
no mesmo ângulo que os braços do guerreiro cristão. O anjo fechou suas asas
no mesmo instante em que Óliver fechava os braços com um bater de palmas
e usava o pouco de fôlego que ainda lhe restava para gritar:

[i]Hüter des Nordens[/i]! (Guardião do Norte)

Um vento frio começou a jorrar das mãos de Óliver, e ele entrou em


conflito com o ar quente e mortal da deusa egípcia. No momento em que as
duas correntes de ar se chocaram, a cidade estremeceu sob um estrondo
ensurdecedor, como se duas gigantescas criaturas tivessem disparado em uma
corrida alucinada e tivessem se trombado violentamente no meio do caminho.
A aragem tóxica de Sekhmet não chagava mais até Galen e Benício, e um
pouco do ar gélido de Óliver tocara-lhes o rosto, reanimando-os como o frescor
de um mergulho no rio durante um dia quente de verão. O efeito do golpe do
inimigo já se dissipara quase completamente.

- Não vai nos derrotar com isso – bradou Óliver.

Porém, ele não ouviu resposta alguma, pois Sekhmet já havia adentrado
a catedral nos ínfimos segundos em que eles estiveram desorientados pela
intoxicação causada pelo golpe dela. Agora, uma chuva tépida começava a cair
sobre Constantinopla, resultado do choque entre as duas correntes de ar.

- Vamos atrás dela – disse Benício energicamente.

Todavia, no momento em que eles se viravam para ir atrás de Sekhmet,


um estrondoso cosmo explodiu atrás deles, e os três rapidamente ficaram em
prontidão para enfrentar o adversário que havia ficado para trás.

- É minha vez de dizer que vocês não irão passar – falou Leviatã calmamente,
mas o perigo estava implícito em sua moderação.

- É muita presunção sua achar que pode deter a nós três – falou Galen.

191
- Não. É muita presunção de vocês três acharem que poderiam vir até aqui e
sair com vida – retrucou o gigante. – Não calcularam que, mesmo que
passassem por mim um dos outros deuses, ainda teriam um número superior
de inimigos para enfrentar?

- Não ligamos para quantos tenhamos que enfrentar – respondeu-lhe Galen


com convicção. – O que importa é que não iremos esmorecer frente ao perigo.

- Que imprudência – disse Leviatã.

- Você chama coragem de imprudência? – perguntou-lhe Benício.

- Não. Chamo sua coragem de suicídio, e a sua determinação precipitada de


imprudência.

- Então você acha que teríamos sido mais prudentes evitando o perigo e
deixando Vossa Santidade sob risco de morte? – disse Galen.

- Vossa Santidade? – indagou Leviatã intrigado.

- Sim, Sua Santidade o Papa Inocêncio VIII – respondeu Galen.

- Ah, sim – falou Leviatã em tom de compreensão -, é assim que vocês o


tratam hierarquicamente. Em todo o caso, respondendo a sua pergunta,
coragem não significa apenas enfrentar o perigo, mas também saber lidar com
ele, sabendo escolher o momento certo de agir, mesmo que o momento seja
ainda mais perigoso. Ser corajoso não envolve apenas coragem, guerreiro de
Yeshua, ao contrário do que você pode pensar. É por isso que considero
imprudente e suicida a sua vinda até aqui.

- Você fala demais para alguém que está em uma situação complicada – falou
Galen com ferocidade.

192
- E você me parece agressivo demais para alguém que representa a paciência
– respondeu-lhe Leviatã com ironia. – É melhor que você esfrie os ânimos se
quiser fazer jus a virtude que você representa.

- Você não vai zombar de mim, criatura demoníaca – falou Galen com raiva. –
Eu vou lhe mostrar o que é esfriar de verdade.

E o cosmo de Galen começou a se intensificar, criando uma aura branca


ao redor de seu corpo. A energia que emanava dele começava a congelar as
pequenas poças de água que haviam se formado com a chuva que caía e, em
poucos segundos, até mesmo os pingos de chuva transformaram-se em flocos
de neve.

[i]Skóni Diamantioú[/i]! (Pó de Diamante)

E toda a massa de ar frio que havia se formado convergiu na direção de


Leviatã, e os flocos de neve dançavam e giravam graciosamente em meio ao
turbilhão de ar frio que Galen desprendia. O gigantesco demônio foi atingido
em cheio, e sua pele começou a congelar junto com a água que escorria por
seu corpo. Em poucos segundos, ele estava envolvido por um casulo de gelo.

- Você conseguiu! – exclamou Benício.

- Não acredito que foi tão fácil – falou Galen.

- Não seja precipitado – falou Óliver com prudência. – Ele nem sequer se deu
ao trabalho de tentar evitar o seu golpe, Galen. Acho que ele não seria
estúpido o suficiente ao ponto de subestimar o seu golpe logo na primeira vez
que você o usa contra ele.

- Você está certo, guerreiro de Yeshua – ouviu-se a voz grave de Leviatã


reverberando de dentro da camada de gelo que o aprisionava. – Se fosse a
primeira vez que eu visse você utilizando esse golpe, eu jamais teria me
deixado atingir.

193
E então, com uma série de estalos, o gelo que envolvia o inimigo
começou a se fragmentar, e os Virtus constataram que Leviatã não havia
sofrido nenhum tipo de dano visível.

- E quando foi que você me viu usando essa técnica antes? – perguntou Galen
surpreso.

- Quando você foi tentar impedir Ares de ser liberto – respondeu o demônio
sem rodeios. – Eu estava junto com Azazel quando você apareceu, embora,
assim como o próprio Azazel, você não tenha me visto e nem se dado conta da
minha presença.

- Então você já viu as técnicas de Óliver e Galen – disse Benício entusiasmado


-, mas você está em desvantagem por não saber que tipo de técnica eu utilizo.

Leviatã fiou-o com atenção, olhando em seus alegres olhos verdes como
se tentasse descobrir uma resposta, ou qualquer outra informação que
pudesse lhe ser útil.

- Sim, eu sei – disse o gigante reptiliano por fim.

- Como? – perguntaram os três em uníssono.

- Você é óbvio demais – prosseguiu Leviatã. – Não há como esconder essa


chama que existe em seu interior, meu jovem guerreiro. Ela é visível através de
seus olhos, e as janelas da sua alma são flamejantes.

- Você está certo – disse Benício surpreso. – Mas será que isso poderá ser útil
para você?

E então o mais jovem do Virtus elevou sua cosmo energia, e uma aura
rubra e dourada começou a circundar seu corpo, emanando um calor

194
poderoso, que começava a derreter as mesmas poças que Galen havia
congelado instantes antes.

- Que o fogo sagrado possa purificar sua alma pecaminosa – disse o Virtus.

[i]Flammis Redemptionis[/i]! (Chamas da Redenção)

E uma violenta chuva de fogo desceu sobre Leviatã, mas estava


preparado: uma esfera vítrea o envolvia e protegia contra o golpe de Benício,
refulgindo com um brilho prateado cada vez que uma chama a tocava.

- Se o fogo não é suficiente contra você, talvez o gelo possa ajudar – disse
Galen elevando sua energia e disparando seu golpe novamente.

[i]Skóni Diamantioú[/i]! (Pó de Diamante)

- Você viu a minha técnica de defesa, Leviatã, mas não viu minha técnica de
ataque – falou Óliver elevando sua cosmo energia junto com Galen.

E Óliver ergueu seu braço esquerdo, concentrando sua energia no


cutelo da mão. Atrás dele, a figura do anjo azul se manifestava novamente,
mas agora, além das asas estendidas, ele carregava algo semelhante a uma
foice. Descendo celeremente sua mão em repetidos cortes diagonais, Óliver
gritou:

[i]Reaper himmlische[/i]! (Ceifador Celeste)

E os três golpes chocaram-se contra a barreira de Leviatã. No princípio


não parecia que ela estava sendo afetada, mas, após alguns instantes, a
proteção começou a se trincar, como vidro se partindo, e Leviatã começava a
sentir o frio intenso e o calor inclemente das técnicas de Galen e Benício, e os
golpes cortantes de Óliver começavam a se tornar uma ameaça cada vez
maior.

195
Leviatã intensificou sua cosmo energia, tentando manter sua barreira de
proteção, mas a força externa era muito grande. Se antes, sozinhos, cada um
dos Virtus não conseguiu fazer nada com seus ataques contra o inimigo, a
situação mudara drasticamente agora que haviam se unido em um único
ataque. Era claro que, a qualquer momento, a barreira iria ceder, e Leviatã
seria atingido pelos três golpes. Mas o próprio Leviatã também estava ciente
desse perigo, de modo que ele se viu obrigado a abandonar a atitude defensiva
e partir para o ataque.

- Vocês vieram muito bem até aqui, guerreiros de Yeshua, mas vocês não são
poderosos o suficiente para me deter. Se estivessem enfrentando um dos
outros, com a exceção de Baal, vocês os teriam derrotado com isso.
Infelizmente para vocês, eu sou tão forte quanto ele, e estou em posse de meu
corpo original. Se não fosse o meu desgaste anterior com a luta contra os
Cavaleiros de Atena, eu agüentaria seus ataques por tempo quase indefinido.
É a minha vez de atacar agora.

[i]Rodibéron bel Bahar[/i]! (Ira do Senhor do Mar)

Leviatã utilizou sua técnica no exato momento em que sua barreira


protetora se desfez em uma explosão, afastando os ataques inimigos por
breves segundos. No momento em que os golpes dos adversários estavam a
ponto de finalmente atingi-lo, uma onda gigantesca formou-se na frente de
Leviatã e, assim que os seus braços desceram, ela desabou violentamente
contra Óliver, Galen e Benício, atacando-os ao mesmo tempo em que oferecia
resistência às suas técnicas especiais, que tentavam sobrepujar a potência e a
resistência do violento vagalhão que o inimigo lançara contra eles.

O impacto foi terrível, não só por causa da imensa massa de água, mas
sim por causa do cosmo que a envolvia, tornando-a dura como o aço e tão
devastadora quanto um maremoto que se abate sobre a costa. Mas não era só
isso: parecia que havia lâminas no interior da onda, ou animais vorazes e com
presas afiadas, que se lançavam contra os inimigos e tentavam dilacerar-lhes a
carne.

196
Os golpes dos Virtus foram rechaçados, e seus corpos foram apanhados
em cheio pela técnica de Leviatã. Galen e Benício tombaram perante o
descomunal poder do inimigo, mas Óliver ainda se mantinha em pé com
dificuldades, e era visível a aura em forma de um anjo azul em sua frente, com
as asas estendidas em uma posição defensiva.

- Parece que sua técnica foi forte o suficiente para te proteger do meu golpe –
comentou Leviatã com um rápido olhar perscrutante nos corpos dos Virtus
caídos.

- Maldito – disse Óliver com fúria e dor em sua voz.

- Não maldiga-me por causa de um erro de vocês e de um sacrifício que não foi
escolhido por mim – falou Leviatã em tom severo.

Óliver ficou olhando aparentemente petrificado, incapaz de fazer


qualquer coisa.

- Acha que eu não fui capaz de ver o que aconteceu? – perguntou o demônio –
Acha que eu não vi seus dois companheiros tentando protegê-lo, ainda que ao
custo de suas vidas, do poder do meu ataque?

- Maldito – disse Óliver correndo cambaleante em direção a Leviatã e


aplicando-lhe um soco na fronte.

- Já lhe disse para não maldizer-me por um erro de vocês – falou o gigantesco
demônio, indiferente ao soco que havia recebido. – Você deveria se sentir
honrado pelo sacrifício que seus amigos fizeram, pois eles consideraram que
valia a pena salvá-lo. Um deles estava recém recuperado do confronto com
Ares, e o outro era muito inexperiente, embora mais forte que o outro.
Infelizmente, o sacrifício deles não ajudará você em nada, pois ele apenas
adiou sua morte em alguns instantes.

- Não me faça sentir pior do que já estou! – gritou Óliver.

197
- Mas você ainda vai se sentir pior do que isso quando souber do seu erro –
falou Leviatã arremessando o Virtus para longe com um soco em seu peito.

- Do que... do que você está falando? – perguntou Óliver com dificuldades para
respirar e se manter de pé.

- Do erro de vocês em tudo o que fizeram – falou Leviatã com calma. – O Papa
nunca esteve aqui nessa cidade. Ele está no Egito junto um Cavaleiro de Prata,
e estão se defrontando com Azazel.

- COMO?! – gritou Óliver aturdido – Mas eu ouvi perfeitamente...

- Você ouviu o Grande Mestre do Santuário de Atena e o Grande Mestre do


Santuário de Yeshua conversando sobre a localização da base de Baal, e
depois deve ter ouvido sobre os planos deles para destruir os planos do inimigo
em um momento crucial, correto?

- Como você sabe?

- Não acreditei que o Mestre do Santuário de Atena pudesse enviá-los para cá,
principalmente levando em conta que ele já deve saber da localização dessa
base há algum tempo. Se ele não enviou nenhum grupo de Cavaleiros de
Ouro, por que motivo ele arriscaria enviando vocês três? Da mesma forma, é
impensável que o seu líder, a quem vocês chamam de Papa, fosse enviá-los
para a morte aqui em Constantinopla, pois ele próprio foi em uma missão de
sacrifício contra Azazel, justamente para poupá-los. Então, quando vocês
disseram que não eram Cavaleiros de Atena e que haviam vindo para resgatar
o Papa, logo deduzi que vocês cometeram um equívoco ao interpretar as
informações que tinham ouvido às escondidas, e que vieram para cá sem
informar ninguém.

- Então...então eu...então eles... – começou Óliver a balbuciar.

198
- Morreram por um erro de vocês, possivelmente por causa de meias verdades
que você lhes passou? Receio que sim.

- Eu ainda tenho tempo – ponderou Óliver virando-se de costas para o inimigo.


– Eu ainda posso ir ao encontro do Papa para ajudá-lo.

- Claro que você irá ao encontro dele, guerreiro de Yeshua, mas será no
mundo dos mortos. Adeus – disse Leviatã.

E então ele elevou seu cosmo e correu na direção de Óliver. A alguns


poucos centímetros dele, Leviatã chamou-o, fazendo com que ele se virasse
em sua direção. Foi nesse momento, em um ataque frontal, que o punho do
gigantesco demônio acertou-lhe o crânio em uma pancada extremamente
violenta. O impacto foi tão forte que fez o maxilar do Virtus se deslocar de
forma medonha, quase descolando o maxilar inferior do resto do rosto. Óliver
caiu ali mesmo, inerte e agonizante. Leviatã, então, caminhou até cada um dos
corpos dos outros dois inimigos e, com um movimento rápido, quebrou-lhes o
pescoço, para garantir que não haveria surpresas. Ele caminhou rapidamente
até a entrada da catedral e, quando estava quase dentro, olhou para trás uma
última vez e pensou.

“- [i]Quantos outros bons jovens eu terei de matar para que Lúcifer finalmente
possa purificar essa terra? Que suas almas cheguem em paz ao outro mundo,
pois vocês morreram cumprindo seu dever e defendendo o que
acreditavam[/i].”

E ele entrou na Catedral.

***

- Leviatã? – indagou o Grande Mestre com certa apreensão na voz.

199
- Sim, mestre – assentiu Quiron de Sagitário -, era esse o nome dele, tenho
certeza.

Girtab agora andava de um lado para o outro da Casa de Áries. Ele


havia descido para falar com Quiron assim que ele chegasse, pois era
impossível ir direto para a Casa de Sagitário sem passar pelas demais
primeiro. Estavam ali eles dois e Frixo de Áries, que estava parado na entrada
da Casa de Áries, em vigilância.

- Assim que eu percebi que ela estava livre e estava em companhia de Azazel,
eu fiz o que o senhor ordenou Mestre – falou Quiron -, e disparei uma flecha de
aviso em direção ao Santuário.

- Sim, e foi graças a esse alerta que Inocêncio e Sacros puderam deslocar-se
tão rápido para o Egito, para aprisionar Azazel. Porém, agora que você me
disse que Leviatã estava com eles, eu realmente estou preocupado.

- Esse demônio é muito forte, e o seu poder faz dele um inimigo extremamente
perigoso – comentou o sagitariano.

- Não é apenas o poder dele que o torna perigoso – disse o Grande Mestre -, o
que realmente me aflige é a inteligência dele. De todos os servidores de
Lúcifer, ele é o mais astuto e prudente, e perde em poder apenas para Baal.

- E por que ele tem aquela aparência bestial, diferente dos outros? – perguntou
Quiron.

- Por que, diferente dos outros, ele possui o seu corpo original, o mesmo que
ele usou durante a batalha de Lúcifer contra Yeshua e Atena.

- E como ele fez para reaver o seu corpo original?

- Ele nunca abandonou esse corpo. Pelo que Yeshua me contou, durante a
batalha na Cidade de Prata apenas Leviatã conseguia fazer frente aos demais

200
deuses que vieram em socorro das Hostes Angelicais. Leviatã enfrentou e
derrotou inimigos poderosos como Thor, Osíris, Dagda e Indra, até que se viu
obrigado a confrontar o próprio Yeshua. Leviatã não fugiu da batalha, mas era
algo sem esperanças de vitória, até que Lúcifer chegou com mais exércitos.

“Por ordens do próprio Lúcifer, Leviatã foi instruído a sair do combate, e só vir
em seu auxílio se fosse necessário. Leviatã ficou a margem da batalha
principal, impedindo que qualquer outro deus interferisse. Yeshua não tinha
poder suficiente contra Lúcifer, e sua derrota era quase próxima quando Atena
chegou para auxiliá-lo. Baal chegou depois, e ele e Leviatã se prepararam para
se juntar ao mestre deles em batalha, mas o poder de Atena e Yeshua juntos
superava o de Lúcifer.

Usando de sua sabedoria e visão a longo prazo, Lúcifer ordenou que os seus
Marechais se retirassem e se escondessem, aguardando o momento propício
de retornar. Leviatã fez isso imediatamente, pois era astuto como seu mestre e,
embora não temesse a batalha, achou que seria de maior utilidade quando
Lúcifer estivesse mais forte. Assim, ele se retirou para o Mar Negro, e lá ele
permaneceu por milênios, repousando até que o momento oportuno
aparecesse. Baal foi derrotado por Metraton, o mais poderoso de todos os
Anjos, e seu corpo original foi destruído. Porém, sua alma deixou seu corpo
antes que este fosse destruído, e ele aguardou por algum tempo.”

- E os outros Marechais? – perguntou Quiron.

- Azazel, Mammon, Asmodeus e Belphegor fizeram o mesmo que Baal, e


conseguiram fazer sua alma fugir, embora seus corpos originais tenham sido
destruídos

- Mestre, o senhor poderia me dizer por que motivo Sacros e o Papa foram
confrontar Azazel? – pediu o sagitariano.

- Claro que sim, Quiron. Antes de Lúcifer declarar guerra a Yeshua, ele reuniu
deuses e Anjos aos seus serviços, e escolheu alguns como seus Marechais:

201
Baal, Leviatã, Belphegor, Azazel, Mammon e Asmodeus. Para ele e esses seis,
Lúcifer solicitou que fossem criadas vestimentas de guerra poderosas, que o
auxiliassem a trazer as quatro coisas com as quais ele purificaria a Terra: fome,
peste, guerra e morte. Azazel era um deus ligado ao fogo, às forjas e à guerra,
e foi ele o incumbido da missão de criar essas vestes, que eram denominadas
“[i]Chet[/i]”, que significa “[i]Pecado[/i]”. Para aprimorar sua obra, Azazel contou
com a ajuda de quatro deuses que representam essas quatro coisas, e eles
juraram ajudar a cuidar e manter essas armaduras. Esses quatro meios de
purificar a Terra são retratados no Apocalipse de São João, e os Cavaleiros do
Apocalipse são justamente uma alegoria aos quatro deuses que auxiliaram
Azazel no passado e que estão sendo despertos agora.

“Quando os exércitos de Lúcifer foram derrotados, as [i]Chet[/i], foram


destruídas também. Porém, Azazel foi o construtor delas, e poderia construí-las
novamente quando fosse necessário se fosse ordenado por Lúcifer ou Baal.
Inocêncio e eu acreditamos que Azazel está recrutando novamente esses
mesmos deuses para que eles auxiliem na construção de novas armaduras e,
por esse motivo, é de vital importância que Azazel seja detido antes que ele
possa construí-las, pois se nossos inimigos já são perigosos naturalmente, a
situação ficará muito pior se eles estiverem em posse de suas vestes de
guerra.”

- Mas o Papa e Sacros não terão chance contra Leviatã, Azazel e Sekhmet –
ponderou o Cavaleiro de Sagitário. – Serket e eu não fomos páreo para eles.

- É por esse motivo que Inocêncio e Sacros precisam convencer Azazel a lutar
sozinho – disse Girtab. – Inocêncio e eu criamos um plano há algum tempo, e
agora fomos obrigados a pô-lo em prática. Felizmente, Inocêncio conta com
uma ajuda para forçar Azazel a lutar sozinho.

- Sacros?

- Não. Rafael.

202
- Quem é Rafael?

- Rafael foi o Arcanjo que derrotou Azazel.

- Então os anjos realmente existem? – questionou Quiron, ao que Girtab


assentiu. – Então por que eles não lutam ao nosso lado contra o inimigo? Eles
não são guerreiros a serviço de Jesus Cristo?

- Sim, eles são guerreiros a serviço de Yeshua, mas eles não podem intervir
por ordens do próprio Yeshua. Os guerreiros dele são divididos em Celestes e
Terrestres. Os Virtus são os terrestres, e os Anjos são os Celestes. Dentre a
hierarquia angelical, alguns dos mais prestigiados e líderes militares são
classificados como Arcanjos, embora essa não seja a hierarquia máxima, que é
a dos Serafins. O próprio Lúcifer era um Arcanjo, e era mais poderoso que
Yeshua, que é filho de YHVH.

“Depois que Yeshua veio a Terra em uma forma humana, ele criou a ordem
dos Virtus, e estabeleceu uma distinção entre os seus guerreiros. Em casos de
batalhas travadas no plano terrestre, a luta cabe aos Virtus, e caso a luta se dê
no plano celeste, caberá aos Anjos o papel de guerreiros.“

- Entendo – disse Quiron. – Mas, Mestre, o senhor sempre fala sobre Yeshua,
e todos sabemos que o senhor lutou ao lado dele quando ele esteve na Terra.
Será que o senhor poderia me explicar com...

- Quem se aproxima da Casa de Áries? – ouviu-se a voz de Frixo questionando


alguém que chegara ao Santuário. Girtab e Quiron correram até a entrada para
ver quem era, e chegaram no exato momento em que o invasor tombava no
chão.

- Mestre, aqueles são.... – começou Frixo.

- Aquele é Sacros, e ele carrega dois corpos com ele – falou Girtab -, mas ele
não está sozinho. Frixo, proteja a Casa de Áries, pois o inimigo veio até nós.

203
[b]CAPÍTULO XVII: [i]A Invasão do Santuário[/i][/b]

- É a última vez que pergunto: quem se aproxima da Casa de Áries? – indagou


Frixo com austeridade.

- Eu sou Verne de Narval, Primeiro Comandante dos Marinas do Imperador


Posseidom - disse um homem corpulento, caminhando decidido até onde
estavam os corpos de Sacros, Serket e do Papa. Ele trajava uma armadura
robusta e de ombros largos, com uma cor avermelhada que remetia ao tom do
cobre, e seu elmo possuía um longo e pontiagudo chifre no centro.

- E o que você faz aqui no Santuário de Atena? – questionou o ariano –


Estamos em guerra com outras forças, e o Santuário está sob vigilância. Se
avançar mais um passo, será considerado um invasor.

- Eu sei que estão em guerra – disse o Marina parando defronte aos corpos no
chão -, mas não tenho intenção de avançar mais nenhum passo, pois o que
quero fazer pode ser feito daqui.

Ele ergueu as duas mãos na altura do chifre do seu elmo, e uma energia
azulada formou-se ao seu redor. Com um urro, ele bradou:

[i]Empalement d'Ivoire[/i]! (Empalamento de Marfim)

Hastes brancas brotaram do chão, com o intento evidente de atravessar


os corpos que estavam inertes no chão. Eles foram elevados nas pontas das
estacas de marfim até uma altura de quase dois metros e, com um sorriso
triunfante, o Marina deu seu trabalho como completo, e olhou para suas
estacas brancas esperando ver o sangue escorrendo e tingindo-as de rubro.
Mas não foi isso que ele viu.

Embora estivessem claramente na ponta das estacas de marfim, os


corpos de Sacros, de Serket e do Papa estavam ilesos, como se algo as
sustentasse seguramente sobre a ameaça pontiaguda que as esperava. Com

204
um esgar de insatisfação, Verne virou-se para encarar o Cavaleiro de Áries,
evidentemente o responsável por aquilo, mas ele não estava mais parado a
entrada da primeira Casa Zodiacal.

- Fugiu de mim, carneiro dourado? – escarneceu o Marina.

- Eu jamais fugiria de uma batalha, ainda mais contra um oponente desprezível


como você.

E a voz vinha de trás do guerreiro de Posseidom, que rapidamente se


virou e viu-se fitado severamente pelos oblíquos olhos castanhos do Cavaleiro
de Áries. Verne aprumou-se rapidamente, e disparou uma série rápida de
socos contra o adversário, que nem ao menos se moveu.

- Então esse é o poder da famosa Muralha de Cristal? – perguntou o Marina ao


ver que Frixo não sofrera o mínimo arranhão com os seus golpes.

- Eu não preciso me dar ao trabalho de usar qualquer técnica especial para


enfrentar um oponente como você – falou o ariano com indiferença.

- Se acha tão mais poderoso que eu, Cavaleiro?

- Não é questão de opinião. O que temos aqui é algo evidente – respondeu


Frixo com simplicidade, virando-se de costas para o oponente e, com um
aceno leve, fazendo os corpos dos seus aliados flutuarem até a Casa de Áries,
mas eles não chegaram a passar da escadaria.

Aproveitando-se da baixa guarda do adversário, Verne lançou sua


técnica mais uma vez.

[i]Empalement d'Ivoire[/i]! (Empalamento de Marfim)

Dessa vez, um número maior de estacas surgiu do solo, e elas


perfuraram rapidamente o corpo de Frixo. O sorriso que se abriu no rosto do

205
Comandante Marina esmoreceu rapidamente ao constatar que aquilo que
acertara era apenas um borrão, e que o Cavaleiro de Áries já não estava mais
lá.

- Atacando pelas costas? – falou Frixo, e mais uma vez ele estava às costas do
oponente, que se assustou e se afastou de um salto – Isso não é lá uma coisa
muito honrada de se fazer. Eu tive essa oportunidade duas vezes, e não o
ataquei porque sou um guerreiro honrado, não um capanga covarde.

- Não se preocupe, eu lhe atacarei frontalmente então.

[i]Empalement d'Ivoire[/i]! (Empalamento de Marfim)

Mas nada aconteceu. Frixo permanecia no mesmo local, parado e com


os olhos fechados.

- Desgraçado – bradou Verne. – Se você se acha tão mais forte, porque não
me ataca e me mata?

- Eu não preciso disso para derrotá-lo. Você vai morrer em segundos, sem que
eu nem ao menos o ataque.

- Você vai engolir suas palavras junto com os seus dentes.

E Verne arremessou-se contra o Cavaleiro de Áries, preparando-se para


desferir um soco em seu rosto. No exato momento em que ele estava sobre
Frixo, este desapareceu e, em um milésimo de segundo, ele finalmente deu-se
conta do que iria acontecer, mas não havia tempo para mais nada.

As estacas que ele havia conjurado estavam apenas aguardando para


romperem o solo, pois Frixo, de alguma forma, as detivera e, assim que ele
chegou no local, elas subiram violentamente e perfuraram o seu corpo de
forma letal. Frixo havia cumprido sua promessa: o derrotara sem atacá-lo.

206
Agora ele estava agonizante, mas havia um sorriso de triunfo em seu
rosto redondo. Frixo foi até onde ele estava, e viu o quão medonhamente ele
havia sido transpassado pelas suas próprias hastes alvas: duas haviam
perfurado-lhe na altura do tórax, uma passara rasgando o lado interno de sua
perna esquerda, outra quase lhe perfurara o pescoço, e a última estava alojada
no centro-esquerdo do seu peito, mas não havia atravessado a armadura por
completo, de forma que apenas uma pequena e aguda ponta projetava-se para
fora, e era dali que vertia a maior quantidade de sangue..

- Parece que está feliz em ter sido derrotado – comentou o ariano.

- Eu cum.. hugh.. cumpri o meu papel... hugh – e uma tosse gorgolejante de


sangue embargou sua voz, e ele se calou definitivamente.

Frixo ficou intrigado, e correu para a escadaria da Casa de Áries e, com


um olhar fixo, fez os corpos do Papa e dos outros flutuarem centímetros a sua
frente, e então ele percorreu o resto do trajeto para o interior da primeira Casa
Zodiacal. Entretanto, no momento em que ele chegava à soleira do pórtico, um
lampejo dourado passou rente ao seu rosto, abrindo-lhe um pequeno corte na
altura dos malares. Ele ignorou o ferimento e olhou para o alto, de onde o golpe
havia sido lançado.

Parado com uma postura imponente, um homem de pele alva, trajando


uma reluzente armadura dourada, fitava Frixo do alto, segurando uma grande
espada dourada em sua destra.

- Quem é você que se atreve a impedir o Cavaleiro de Áries de entrar em sua


morada?

- Eu sou Amadis de Crisaor, General Marina guardião do Pilar do Oceano


Índico.

207
- Me pergunto o que fazem os guerreiros de Posseidom tão longe dos seus
domínios, pois já é o segundo que invade este Santuário – disse Frixo em um
tom impaciente.

- Ele veio para distraí-lo – e ele apontou para o empalado Verne -, e eu vim
para matá-lo.

- Distrair-me para que você me atacasse de forma covarde, como ele fez?

- Não – disse o General Marina displicentemente. – Distraí-lo para que os


outros entrassem. E eu o matarei para que você não vá atrás deles.

- Então há mais de vocês por aqui – ponderou Frixo em voz alta, enquanto
enviava os corpos dos amigos para o interior da Casa de Áries em uma planar
suave e veloz. – Gostaria de saber quantos mais Marinas eu terei de enfrentar
hoje, bem como o motivo de Posseidom ter resolvido nos atacar.

- Respondendo a sua primeira pergunta, no máximo mais dois Marinas poderão


ser vistos no Santuário de Atena, pois somente Verne de Narval, Ligeia de
Sirene, Glauco de Cila e eu estamos aqui.

- Os outros não quiseram se juntar aos festejos? – indagou o ariano


sarcasticamente.

- Não, eles simplesmente foram burros demais para se juntarem a Lúcifer e


seus exércitos, e isso responde a sua segunda pergunta: não foi Posseidom
quem nos enviou.

- Entendo – disse Frixo absorvendo as informações que obtivera – E os outros


Marinas não quiseram impedi-los de desertar?

- Tentaram, mas Leviatã destruiu os únicos dois que se atreveram a nos deter
– disse Amadis com um tom de sádica satisfação. - Os outros não quiseram vir
junto, mas também não apresentaram objeção a nossa saída, e Leviatã os

208
poupou. Talvez tivessem tido uma chance contra ele se todos tivessem lutado
juntos.

- Então vocês renegaram o seu deus para seguir outro? Vocês são
desprezíveis! – bradou Frixo irado. – Como podem ter feito um juramento para
servirem a um deus e depois o troc...

- Não se pode discutir essas questões com os Cavaleiros de Atena – falou o


Marina interrompendo o iminente discurso de Frixo.

Ele saltou agilmente do alto da meia-água onde estava, e agora ele


estava literalmente cara a cara com Frixo, pois havia menos de trinta
centímetros entre os dois. Havia pouca diferença de altura entre eles, de modo
que os olhos azuis e castanhos encaravam-se quase de forma linear, ambos
cintilando sob o opaco luar que pairava acima deles, proveniente de uma lua
que parecia uma metade de uma grande moeda de prata.

- Vocês são muito cegos para isso – disse Amadis. – Lutam cegamente por
Atena, pela Terra e pela justiça, mas o que Atena tem feito pela Terra? Que
justiça ela tem trazido? Cada vez há mais sujeira, mais maldade, mais guerras,
mais injustiça, e Atena não faz nada.

- E o que Lúcifer vai fazer?

- Ele vai limpar a Terra de toda essa humanidade suja, maldosa e injusta.

- Mas esses não são os mesmos preceitos de Posseidom em suas guerras


contra Atena? – perguntou Frixo – Se é assim, por que passar para o lado de
Lúcifer?

- Porque Posseidom não demonstrou poder suficiente até agora – respondeu o


General Marina quase automaticamente, como se já houvesse refletido
longamente sobre isso. – Lúcifer foi um adversário que só conseguiu ser detido

209
quando Atena e Jesus Cristo de uniram, e como este último já abandonou a
humanidade, Atena não terá chances se lutar sozinha contra ele.

- É vergonhoso ter ouvir isso. Irei derrotá-lo não apenas por ser um invasor e
um inimigo, mas também por sua desonra para com o seu juramento. Você
envergonha todos aqueles que se comprometeram a lutar por um deus.

- Você tem uma língua afiada, Cavaleiro, mas será que ela é mais afiada que a
minha espada?

E ele começou a desferir rápidos golpes com sua espada, tentando


atingir diretamente o pescoço de Frixo, que se esquivava com pouca
dificuldade das investidas inimigas. Golpes transversais, verticais e horizontais
se alternavam rapidamente, e o ariano não reconhecia nesses golpes nenhum
tipo de manobra conhecida em retalhamento ou esgrima, o que o fez concluir
que o adversário desenvolvera seu próprio estilo de ataque...ou que
desconhecia todos os outros.

- Você só sabe fugir – escarneceu o inimigo. – Não tem poder para atacar,
ovelha dourada.

- Quando você começar a atacar de verdade, aí eu começarei também –


respondeu-lhe Frixo em tom de desafio

Isso pareceu acender a raiva de Amadis, que ergueu sua espada


resplandecente ao luar e desceu-a com toda a força que pode reunir.

[i]Centelha do Príncipe Dourado[/i]!

E foi como uma centelha dourada que a lâmina do General Marina


desceu sobre o ariano. Ela vinha carregada de determinação, cosmo,
eletricidade e um calor quase infernal, capaz de fazer a água ferver ao mero
toque. Mas Amadis não enfrentava um inimigo qualquer.

210
Frixo de Áries era um homem excepcional pelo simples fato de ser um
Cavaleiro de Ouro, um soldado de elite das tropas do Santuário de Atena, e por
vezes esse fato lhe subia à cabeça, conferindo-lhe certa arrogância na hora de
lidar com aliados ou adversários. Entretanto, tal postura era fundamentada,
pois mesmo entre os doze guerreiros dourados ele possuía o seu destaque.

Sua rapidez de raciocínio e suas apuradas técnicas de defesa, aliadas


aos seus dons mentais, faziam dele o defensor perfeito do Santuário, e não era
a toa que ele era o guardião da primeira Casa Zodiacal. Sua Muralha de Cristal
tinha a fama de ser intransponível, e foi a ela que ele recorreu para se proteger
do golpe do feroz oponente que se lançara contra ele.

[i]Teíchos tou Krystállou[/i]! (Muralha de Cristal)

Com o cosmo elevado e de braços estendidos, Frixo parecia ter aberto a


guarda em um gesto de sacrifício, como se visasse se tornar um alvo mais
fácil, mas a proteção que ele obtinha com esse gesto não seria igualada por
nenhuma outra técnica no Santuário, e talvez só mesmo o escudo da Armadura
de Ouro de Libra pudesse ter uma capacidade defensiva similar.

A lâmina áurea de Amadis chocou-se mudamente contra a translúcida e


quase invisível barreira tecida pelo ariano, e foi apenas quando a espada tocou
a muralha que foi possível visualizar que, de fato, havia algo sólido a proteger o
corpo de Frixo. O oponente foi rechaçado para longe com o impacto do próprio
golpe, e o Cavaleiro de Áries permaneceu ali, imóvel e impassível, com os
braços estendidos.

- Realmente sua Muralha de Cristal faz jus a fama que possui – falou Amadis
enquanto se levantava. – Você rechaçou meu golpe completamente.

- Não é tão simples assim – disse Frixo. – Você não atacou com tudo o que
tinha. Por que se conteve?

211
- Haha, parece que pouca coisa escapa aos seus olhos, Cavaleiro de Áries. Fiz
isso apenas para testar a potência de sua defesa, e acho que ela é mais
poderosa do que eu esperava.

- Não se pode dizer o mesmo da sua espada, entretanto.

E foi só então que Amadis se deu conta de que sua espada havia sido
quase que completamente destruída: ela estava trincada em diversas partes, e
sua lâmina antes aguda e linear estava cheia de dentes e amassados.

- Sua lâmina não foi páreo para o meu escudo – falou Frixo -, e a não ser que
você possua outra técnica ou outra arma mais forte, o seu fim já é certo.

- Sua arrogância me impressiona, Cavaleiro de Áries – zombou o Marina. -


Você inutilizou minha arma, é verdade, mas você está confiando demais na sua
técnica de defesa. Embora ela o tenha salvo de um raio, será que ela te
salvaria de uma tempestade?

- Por que você não experimenta?

E foi o que ele fez. O cosmo do General Marina se elevou bruscamente,


e uma corrente elétrica parecia emanar de seu corpo, fazendo sua armadura
reluzir ainda mais, iluminando a noite grega com um resplandecer rubro
incandescente. Erguendo os braços, Amadis pareceu lançar para o alto toda a
carga elétrica que havia sido reunida em seu corpo, e ela despencou rápida e
violenta sobre o Cavaleiro de Áries.

- A menos que sua muralha tenha um teto, você não escapará disso:

[i]Tormenta dos Fios de Ouro[/i]

Mas, assim como da outra vez, o Cavaleiro de Áries estava pronto. Os


braços, antes estendidos, cruzaram-se acima de sua cabeça, e a muralha
transformou-se em um globo.

212
[i]Krystállou Thólo[/i]! (Redoma de Cristal)

O corpo de Amadis agora parecia em brasas, como o metal ao sair de


uma forja. Raios avermelhados eram projetados de suas mãos a uma grande
altura, tingindo a cúpula celeste com um tom avermelhado, mas que depois
assumia um tom da cor do sol quando os raios dourados despencavam
agressivamente sobre Frixo, parecendo gotas de ouro caindo ruidosamente
sobre uma abóboda de vidro.

A violência dos raios de Amadis era tamanha que começava a rachar o


piso de pedra ao redor da esfera de proteção invocada pelo ariano. Frixo,
porém, mantinha-se firme, confiante no seu poder defensivo, mas a mesma
confiança e determinação chamejava nos olhos do General Marina, que
depositava suas esperanças sobre o golpe que lançava.

- Por quanto tempo seu telhado de vidro vai aguentar a fúria dos meus raios,
Cavaleiro de Áries? – gritou Amadis em tom de desafio.

- Ahh, então você já começou a atacar com tudo? – zombou o ariano – Achei
que isso eram apenas as primeiras gotas de uma violenta tempestade, mas
parece que você superestimou o seu potencial.

- Você se atreve a zombar da minha [i]Tormenta dos Fios de Ouro[/i]?- indagou


Amadis furiosamente.

- Tormenta? – escarneceu Frixo – Isso não passa de uma garoa de verão. Vou
lhe mostrar o que é uma chuva de verdade.

Com um gesto brusco, Frixo desmanchou sua redoma de proteção com


uma explosão violenta e ofuscante, obrigando Amadis a se proteger com uma
das mãos, pois sua guarda estava completamente aberta. Com isso, sua
tempestade de raios diminuiu um pouco de intensidade por um breve segundo,
mas esse foi todo o tempo de que o Cavaleiro de Áries precisou.

213
Quando o Marina olhou novamente para o local onde o ariano estivera,
deu-se conta de ele já não estava mais lá. Ele baixou os braços, suspendendo
o ataque, e procurou a sua volta, mas, a princípio, não o encontrou. Foi
somente quando o cosmo de Frixo se elevou incrivelmente que ele pode
localizá-lo, no alto da Casa de Áries.

Ele estava parado com o braço direito esticado para o alto, com a palma
aberta e virada para cima. Uma cosmo energia intensa rodeava seu corpo em
uma espiral ascendente, e as pontas de seus dedos começavam a emitir um
brilho intenso e pulsante.

- Resolveu se refugiar no alto de sua Casa Zodiacal? – perguntou Amadis em


um tom sarcástico – Acho que ir para o alto não é uma escolha muito
inteligente quando o ataque vem de cima.

- Cansei de ficar apenas me defendendo e perdendo tempo – falou Frixo. – é


hora de você sentir o verdadeiro poder de Frixo de Áries.

[i]Myriádes Astéria[/i]! (Miriade de Estrelas)

Flashes de luz começaram a disparar das pontas dos dedos da mão do


ariano, e era como se milhares de estrelas começassem a pulsar em um brilho
crescente e cadenciado. Mas a beleza daquelas luzes era apenas a abertura
de um eminente espetáculo de destruição. Em meio à emissão de luz, alguns
flashes disparavam na direção do inimigo com grande força e velocidade,
produzindo um brilho cada vez mais intenso, que acabava por ofuscar a visão
de todos. Um, dois, quinze, vinte, cem, mil... agora já era impossível contar.

As estrelas jorravam em profusão das mãos de Frixo, e elas desabavam


diretamente sobre Amadis, que era alvejado por elas sem nenhum tipo de
piedade. Aos poucos, a Escama do General Marina começava a se
desintegrar, e a primeira parte a ficar completamente destruída foram os

214
braços, colocados acima da cabeça em uma tentativa desesperada de
infrutífera de se defender.

Em pouco tempo, não era apenas a armadura que estava destruída: o


corpo de Amadis estava retalhado, com cortes superficiais ou de grande
profundidade espalhados pelos membros, tronco e face. Já sem energias, ele
se deixou cair, mas a chuva de estrelas cadentes não parava. O chão já estava
completamente fragmentado, e uma poça de sangue tingia de vermelho o
mármore branco do piso da entrada da Casa de Áries. A segunda batalha havia
terminado.

Cessando o seu golpe, Frixo agora observava o cenário do alto de sua


Casa Zodiacal: próximo às escadarias, jazia um inimigo com o corpo todo
perfurado por estacas que ele mesmo havia usado para tentar derrotá-lo.
Subindo os degraus, quase na entrada, jazia uma massa disforme, algo que
lembrava remotamente um corpo humano, misturado com sangue, pedras,
pedaços de metal e muito sangue.

Frixo descera, e agora corria para dentro da Casa de Áries. Ele


precisava chegar até a Casa de Touro, pois Gerion não estava lá para protegê-
la. Quando ele estava prestes a chegar até a saída, ele ouviu uma voz firme e
grave.

- Fique onde está, Frixo de Áries.

Aquela voz era inconfundível.

- Grande Mestre, a Casa de Touro está vazia, e alguém...

- A Casa de Touro está vazia, mas as demais Casas Zodiacais estão


guarnecidas por seus respectivos guardiões.

- Mas Mestre – insistiu Frixo -, não são apenas demônios que estão invadindo.
Há Generais Marinas entre eles.

215
- Sei disso, mas minhas ordens continuam as mesmas: fique onde está, Frixo
de Áries.

- Sim, senhor.

As ordens do Grande Mestre eram inquestionáveis, mas havia uma


segurança na voz do líder do Santuário que fazia Frixo se sentir menos
apreensivo com a invasão repentina, de modo que ele se limitou a fazer o que
lhe fora ordenado e aguardar que Janus de Gêmeos desse conta dos
adversários que se dirigiam até sua Casa.

Naquele momento, Sacros de Altar começava a acordar, ainda zonzo


devido ao esforço. Frixo correu ao seu encontro, ajudando-o a sentar-se.

- Sacros, meu amigo – disse o ariano gentilmente – não se esforce muito. Logo
Salomão virá ajudá-lo, por isso seria melhor que você permanecesse deitado.

E então Frixo tirou sua capa e estendeu-a no chão, para que o Cavaleiro
de Altar pudesse repousar com algum tipo de conforto.

- O Papa... ele não...ele não resistiu... – e ele mostrou uma caixa dourada para
o Cavaleiro de Áries. – Entregue... entregue isso ao Grande Mestre.

- O que aconteceu com você e o Papa, Sacros? – indagou o ariano, curioso.

- Azazel...ele foi derrotado – disse o Cavaleiro de Prata com uma voz fraca.

E ele desmaiou. Os ferimentos eram graves, e ele estava cansado


demais para continuar acordado. Frixo apenas teve tempo de tomar a pequena
caixa dourada das mãos dele antes que ele caísse desacordado.

“ [i]Mas essa é a Caixa de Pandora[i]” – pensou Frixo, analisando o objeto que


tinha em mãos. Que história será que Sacros tinha para contar?

216
De todo modo, essa era apenas uma das preocupações dele, pois uma
nova preocupação brotou em sua mente quando ele sentiu o cosmo de Janus
de Gêmeos se elevando incrivelmente e, após isso, um violento tremor por todo
o Santuário. A batalha na Casa de Gêmeos havia começado.

217
[b]CAPÍTULO XVIII: [i]Doce Melodia, Amarga Vingança[/i][/b]

- Sinto muito, mas o fluxo de passagem pela Casa de Gêmeos foi anormal
nessa noite, e não pretendo deixar mais ninguém passar por aqui. Obviamente,
vocês podem tentar forçar a passagem, mas essa não seria uma decisão,
como posso dizer... sensata. Sugiro que retornem, seja lá de onde for que
tenham vindo.

Janus tinha um sorriso triste em seu belo rosto alvo, encimado por
lampejantes olhos cor de safira. Ele estava parado com os braços cruzados por
trás do corpo, com a mão esquerda segurando o punho direito. Os inimigos o
encaravam dos últimos degraus da subida da escadaria entre as Casas de
Touro e Gêmeos. Ele havia contado duas dúzias deles, todos trajando uma
armadura semelhante, feita de couro cru e anéis de cobre. Era óbvio que eles
eram apenas soldados, guiados por um líder ainda incógnito, que
provavelmente só espreitava à espera de alguma oportunidade para atacá-lo.

“[i]- E eu que pensei que teríamos um dia calmo no Santuário.[/i] –, pensou o


geminiano quase com amargura, recordando com uma espécie de saudosismo
as horas que antecederam aquele momento

Janus encontrava-se descontraidamente escorado em uma das colunas


do interior da Casa de Gêmeos quando sentiu, repentinamente, o cosmo de
Quiron de Sagitário chegar aos limites do Santuário. Porém, diferentemente do
normal, a energia do sagitariano parecia estar em seu limite, tamanha a
fraqueza do cosmo que ele parcamente emanava.

Isso lhe preocupou, e o geminiano ficou ansioso para que o amigo


começasse a subida de volta à Casa de Sagitário ou, talvez, até a Sala do
Grande Mestre, pois, quando Quiron chegasse à Casa de Gêmeos, ele poderia
descobrir o que havia lhe acontecido, bem como o porquê de Serket de
Escorpião não ter retornado também, pois eles haviam partido juntos.

218
Janus ficou parado na soleira de entrada de sua morada, contemplando
a noite de um céu pálido e quase sem estrelas que se estendia sobre o
Santuário quando, para sua surpresa, alguém adentrou a Casa de Gêmeos
pela passagem que levava à Casa de Câncer, e qual não foi sua surpresa
quando ele viu o Grande Mestre passando por ele às pressas. Ele ajoelhou-se
e ensaiou um murmúrio de palavras corteses, mas não ouve tempo para isso,
tamanha a pressa e a velocidade com a qual o Grande Mestre passou por ele,
como uma lufada. Isso já fazia mais de uma hora, mas parecia que ocorrera há
dias, dada a tensão do momento.

O que teria levado o líder do Santuário a se deslocar até as primeiras


Casas Zodiacais continuava sendo um mistério para ele, pois o velho e
venerável guerreiro não chegara sequer a dar-lhe “boa noite”. Isso havia
deixado o geminiano pensativo, até que ele sentiu o cosmo de Gerion, o
Cavaleiro de Touro, se retirar da sua respectiva Casa Zodiacal e,
posteriormente, do próprio Santuário.

Isso teria sido o ápice de sua curiosidade, não fossem os


acontecimentos que se seguiram: primeiro, o cosmo de Sacros de Altar
surgindo repentinamente, com um desgaste maior que o de Quiron, sendo
acompanhado, segundos após, por um cosmo agressivo e desconhecido.
Depois, ficou evidente que uma batalha havia começado, pois agora era o
cosmo de Frixo de Áries que se elevara. Ele ficou preocupado com o que
estava acontecendo, pois, se houvesse uma invasão, o Santuário estava
defasado de alguns dos seus principais defensores.

Assim, o geminiano tomou a iniciativa de descer até a Casa de Touro,


para protegê-la, e ele já estava quase dentro dela quando o Grande Mestre
passou por ele tão rápido quanto passara antes, mas dessa vez ele estava
acompanhado por Quiron visivelmente ferido e cansado. Janus ajoelhara-se
assim que vira o líder do Santuário de Atena, e já preparava uma justificativa
por estar fora da sua morada zodiacal, mas o Grande Mestre foi mais rápido.

219
- Como Cavaleiro de Gêmeos, acredito que você seja mais útil de pé
protegendo-a dos invasores ao invés de estar ajoelhado na saída da Casa de
Touro. Apresse-se, e não subestime os inimigos que lhe surgirem à soleira,
sejam eles quem forem.

Aquele recado foi o suficiente, e ele seguiu logo atrás de Girtab e


Quiron, mas deixou a companhia deles assim que regressou à Casa de
Gêmeos. Pouco tempo após isso, outro cosmo hostil manifestou-se na entrada
do Santuário, mas ele era mais poderoso que o anterior, e Frixo foi obrigado a
usar mais poder nesse combate. Isso fazia menos de um quarto de hora, mas
também parecia ter ocorrido há muito tempo. Subitamente, Janus foi
transportado de suas memórias de volta para o presente, e ali estava ele, face
a face com um grupo de soldados inimigos.

- Você não pode sozinho contra nós – disse um dos soldados com uma voz
arrastada e grosseira, com um fortíssimo sotaque. – Irá ter um incômodo bem
grande se tentar deter a todos.

- Claro que posso contra vocês – disse Janus em um tom que mesclava
serenidade e melancolia. – Quanto a um possível incômodo, a única coisa que
me incomoda desde já é o fato de vocês desconhecerem que não possuem
nenhuma chance de vitória contra qualquer um dos Cavaleiros de Ouro, e
estarem sendo usados como infantaria por algum guerreiro covarde que só
quer analisar previamente as minhas habilidades de luta.

Os guerreiros trocaram olhares de incredulidade, mas desataram a rir


alguns instantes depois. Era uma risada grave e repugnante, de modo que
Janus limitou-se a ficar em silêncio e esperar até que aquela cacofonia
terminasse.

- Mesmo sendo um Cavaleiro de Ouro, você não tem chance contra os


Anunnaki – disse um deles.dando um passo a frente, chegando ao patamar
mais elevado da escadaria, onde começava o pátio da Casa de Gêmeos.

220
- Eu vou dar mais uma chance para que vocês se retirem – disse Janus em tom
ameno. – Mesmo sendo inimigos, é evidente que vocês estão sendo apenas
usados, e eu não tenho intenção de tirar vidas de guerreiros que não tem ideia
do que estão fazendo. Voltem agora para o local de onde vieram, não me
obriguem a lutar.

Mais uma súbita onda de risos e gargalhadas medonhas irrompeu, e


agora os inimigos apontavam desdenhosamente para o geminiano,
escarnecendo de suas palavras.

- Quer dizer que o franguinho está com medo de lutar e machucar o seu belo
corpinho? – indagou o soldado que havia subido até o pátio, e a zomba era
marcante em suas palavras. – Não se preocupe conosco, preocupe-se com
você e seus últimos minutos de vida.

E, ignorando o aviso dado por Janus, ele avançou com o punho em riste
e, com um som seco de impacto, sua mão esquerda atingiu em cheio o queixo
do Cavaleiro de Gêmeos, que pareceu não sentir nada com o golpe. Vendo
isso, uma sombra de ira surgiu sob os olhos do atacante, que iniciou uma série
de golpes, alternando entre socos e chutes, contra todas as partes visivelmente
desprotegidas pela armadura dourada.

Ainda assim, o geminiano permaneceu imóvel. O adversário, vendo que


seus golpes não surtiam efeito, chamou os seus companheiros para auxiliá-lo,
e foi então que Janus se viu sendo atacado por dezenas de punhos e pés, que
atingiam todo o seu corpo com uma alternância ritmada, mas que ainda eram
inúteis contra ele. Foi então que aconteceu.

Uma melodia doce e suave começou a ser ouvida, e Janus prestou


atenção a ela. Deuses, como aquela música era linda! Ela possuía algo de
melancólico, mas mesmo por traz disso era possível identificar vívidas e
suaves notas de alegria, que coincidentemente pareciam casar com as batidas
do seu coração. Aquele som trazia tristeza e alívio, mas, acima de tudo, trazia

221
à tona memórias antigas, de um tempo que parecia pertencer a outra vida, uma
vida mais simples e mais feliz.

E, enquanto sua audição concentrava-se completamente nas notas que


enchiam o ar, seus outros sentidos pareciam inexistentes, pois sua visão
tornava-se cada vez mais fosca e fora de foco, seu corpo parecia estar
dormente, e nenhum odor parecia ser capaz de fazer com que ele se desce
conta de que havia outra coisa no mundo senão aquela música.

Mas, repentinamente, um de seus sentidos adormecidos despertou com


fúria: o tato. A dor que sentira despertara-o de seu estado hipnótico, e agora
ele sentia sangue escorrendo do seu lábio inferior, no local onde alguém lhe
acertará um golpe, um dentre os muitos que, agora, faziam-se sentir com
intensidade. Seu despertar para a realidade foi assustado, tal qual o acordar
daquele conhecido sonho de estar caindo infinitamente, que se dá no exato
momento em que se atinge o solo. Com uma brusca elevação de cosmo, ele
arremessou os adversários para longe, e projetou uma rajada de energia na
direção de onde havia vindo a música que lhe mantivera em transe.

Fosse quem fosse o inimigo que estivera ali, ele havia sido rápido como
um relâmpago, e se desviou rapidamente do local onde Janus atacara, e que
agora era apenas um amontoado de rochas e mármore fragmentado. Janus
olhou a sua volta, procurando o local onde o adversário havia se escondido
agora, e rapidamente ele encontrou algo que lhe chamou a atenção de
imediato.

Há poucos metros da entrada da Casa de Gêmeos, onde se erguia uma


coluna marmórea destruída pela metade, havia alguém sentado delicadamente,
trajando uma armadura dourada e refulgente. Seus longos cabelos loiros
pendiam em cascata até seu colo, e sua pele era tão branca que atingia tons
rosados no rosto. E que rosto lindo: malares róseos e arredondados, uma boca
carnuda no tom de maçã, olhos verdes da cor dos bosques... um rosto
tristemente familiar.

222
- O...Orestes? – gaguejou Janus, com apreensão e esperança em sua voz. – É
você?

Uma risada afinada e cristalina, doce como o mel, escapou dos lábios
daquela pessoa, e o Cavaleiro de Gêmeos sentiu um arrepio. Seria possível?

- Depois de tanto tempo você ainda nos confunde, Janus – respondeu.

- Ligeia! – deu-se conta o geminiano. – O que está fazendo aqui no Santuário?


Você desapareceu depois da... depois da...

Mas ele não conseguiu concluir a frase. Mesmo depois de tantos anos, a
lembrança da morte de Orestes era algo extremamente triste. Céus, como eles
eram parecidos: Orestes e Ligeia. Os mesmos cabelos dourados, a mesma
pele rosada, os mesmos olhos de um verde profundo. A única diferença era o
fato de um ser homem a e outra mulher. Até mesmo as vozes de ambos tinham
um timbre semelhante, uma musicalidade aveludada e triste.

- Depois da morte do meu irmão? – indagou ela com uma frieza agressiva. –
Depois de ele ter morrido por sua causa?

- Não foi culpa minha! – gritou Janus.

- Foi sim, e você sabe – disse ela em tom alterado. – Você sabe muito bem que
ele já estava doente antes de você se tornar Cavaleiro de Ouro, e que a
doença só se agravou depois que você partiu e nunca mais voltou para vê-lo.
Você destruiu o coração dele.

- Eu amava o seu irmão mais do que tudo no mundo – disse o geminiano, com
uma lágrima morna e salgada escorrendo-lhe pela face.

- Mas isso não o impediu de abandoná-lo... de abandonar a nós dois. Seu


egoísta.

223
- Egoísta? – e agora ele estava bravo. – Você sempre foi a egoísta, você
sempre quis que eu amasse você ao invés dele, e fez de tudo para que isso
acontecesse, embora nunca tenha tido êxito.

- Sim – admitiu ela -, mas, no fim das contas eu nem precisava ter feito nada.
Na hora de escolher entre ele e sua ambição você não pensou duas vezes, e o
abandonou. Ele morreu por sua causa.

- Eu não vou revirar lembranças amargas só para participar desse seu joguinho
maldoso, Ligeia. Agora, responda-me: o que está fazendo aqui?

- Eu vim para destruí-lo, e vingar a morte do meu irmão.

- Você se aliou aos inimigos do Santuário somente para isso? Esperou até que
algum inimigo se levantasse contra Atena só para vir até aqui descontar suas
frustrações em mim?

- Eu me juntei a Posseidom primeiro, me tornando a General Marina de Sirene,


guardiã do Pilar do Oceano Atlântico Sul. Porém, houve um problema nos
meus planos, pois Posseidom ainda não havia desperto para a batalha. Foi
então que um tal de Leviatã surgiu no Templo Submarino, e nos convidou a
ingressar nas hostes de Lúcifer em uma batalha contra Atena, e eu aceitei o
convite.

- Você se vendeu ao demônio só para saciar uma sede egoísta de vingança?


Você é desprezível, Ligeia! – disse Janus com raiva. – Você juraria fidelidade a
qualquer um que se dispusesse a atacar o Santuário, somente para me
enfrentar?

- Sim – respondeu ela sem hesitar.

- Como é possível que você seja fisicamente tão parecida com o seu irmão,
mas tenha um caráter tão diferente do dele? – questionou o Cavaleiro de
Gêmeos retoricamente. - Se Orestes soubesse que você ignorou tudo o que

224
ele sempre te ensinou para se transformar nesse tipo de pessoa que você é
agora, que se preocupa muito mais em realizar desejos mesquinhos do que em
ter qualquer tipo de honra, ele com certeza ficaria extremamente
decepcionado.

- Quer dizer que agora o nobre Janus se preocupa em decepcioná-lo? –


perguntou ela com uma ironia rancorosa. – Estranho ouvir isso justamente de
você, que causou decepção o suficiente para matá-lo.

- CHEGA! – bradou ele em tom de quem encerra o assunto. – Mesmo sendo


uma invasora, uma pessoa sem caráter, e uma manipuladora, eu não quero
derramar o seu sangue, muito menos o desses pobres coitados que estão
sendo usados por você. Vá embora agora

- Por que, você tem medo de me enfrentar?

- Não. Eu simplesmente não gosto de lutar.

- Então porque você se tornou um Cavaleiro de Atena se você não gosta de


lutar e manchar suas preciosas mãos com sangue?

- Por que... – e ele hesitou por alguns instantes, engolindo em seco a dor que
aquelas palavras poderiam trazer -, por que este foi o último desejo do seu
irmão... suas últimas palavras para mim, e eu jurei que iria atender a esse
pedido, custasse o que custasse.

O silêncio imperou por um longo tempo, e Janus e Ligeia sustentaram o


olhar um do outro por um longo período. O geminiano estava visivelmente
triste, e o lampejo de fúria que havia se apossado dele alguns instantes antes
havia desaparecido por completo. A General Marina, por outro lado, tinha um
olhar colérico, aquele tipo de olhar que somente uma mulher ferida em seu
âmago poderia ter. Foi ela quem quebrou o silêncio.

225
- Então você torna o serviço mais prático para mim, pois você não apresentará
resistência. Morra agora e pague pelo que fez ao meu irmão, Janus de
Gêmeos.
Então, Ligeia levantou algo de seu colo: um longo e fino tubo dourado,
que ela colocou próxima a seus lábios de forma transversal. E as notas
musicais começaram a soar, e Janus sentiu, mais uma vez, as batidas do seu
coração entrarem em compasso com as notas mais vívidas. Como ocorrera
antes, os sentidos de Frixo começaram a adormecer, e somente a audição se
mostrava presente, e era somente dela que ele precisava, pois que outra coisa
ele poderia querer no mundo senão ouvir aquele doce som para sempre?

Aquelas notas faziam-no lembrar de quando era mais jovem e vivera


como membro de uma caravana circense, após vagar perdido por Corinto
quando seu pai morreu. Fora lá que ele conhecera Ligeia e Orestes Aqueloo,
filhos do dono do circo. Janus tinha uma habilidade quase mágica de reproduzir
sons e gestos com perfeição, e acabou ganhando o papel de arlequim,
imitando e troçando a todos os presentes.

Os irmãos Aqueloo faziam apresentações musicais, e não havia coração


pétreo o suficiente para não se comover com a beleza das músicas que eles
tocavam, uma beleza que se equiparava a beleza física dos dois. Janus ficara
impressionado assim que os vira, mas ele era tímido de mais para se
aproximar deles. Mas parece que ele havia exercido sob Ligeia o mesmo
fascínio que eles haviam exercido sobre ele, e foi ela quem se aproximou dele.

Em pouco tempo os se tornaram grandes amigos, mas era evidente que


Janus tinha quase uma adoração por Orestes, que sempre se mostrava amável
e gentil, embora fosse enfermiço e de compleição delicada. Quando estavam
descansando das apresentações, Orestes geralmente entoava notas aleatórias
em sua harpa, ensaiando uma nova composição, que só começou a tomar
corpo realmente depois da maior convivência com o novo amigo... a mesma
música que ele ouvia agora e lhe hipnotizava.

226
Mas a música de Orestes não tinha agressividade como aquele, não
tinha um tom amargo no fundo, e foi isso que o fez despertar, no exato instante
em que os soldados inimigos haviam se recuperado e estavam o atacando.
Janus deu-se conta de que estava caído no chão, com pés e punhos violentos
chovendo sem piedade sobre ele, e foi com uma agilidade felina que o
geminiano se pôs de pé e elevou sua cosmo energia ao máximo.

Ele cruzou os braços por cima do tórax, reunindo uma assombrosa


quantidade de energia entre eles. O solo começava a fender, tamanha a
energia que se concentrava ali, e até mesmo os inimigos recuaram,
apreensivos. Ligeia levantou-se de onde estava e se aproximou dele,
começando a tocar a mesma música, mas um tom acima do normal.

- Espera que eu seja atingido pelo seu truque uma terceira vez? – perguntou o
geminiano, ainda concentrando energia. – Vocês irão experimentar o mais
novo golpe do Cavaleiro de Ouro de Gêmeos. Sintam o poder do universo:

[i]Galaxiakí Ékrixi[/i]! (Explosão Galáctica)

O Santuário reverberou violentamente quando o cosmo de Janus de


Gêmeos explodiu, gerando uma onda de impacto que destruía tudo o que
encontrava. De fato, parecia realmente que a galáxia estava explodindo, e cada
planeta e estrela estava chegando ao seu fim por meio de um poder capaz de
pulverizar o menor dos átomos, não deixando que o menor grão de poeira
saísse ileso. Para os adversários que eram atingidos por aquele assombroso
poder, somente um pensamento perpassava suas mentes: se os deuses
haviam criado o universo, tornara-se inconteste que havia ali, naquele jovem
Cavaleiro, um poder capaz de destruí-lo de uma única vez.

Nada foi poupado do estrondoso poder daquele ataque: inimigos,


colunas, degraus, esculturas, plantas, nada. Tudo foi atingido e consumido por
uma explosão sedenta de destruição, fazendo com que uma cratera gigantesca
surgisse no local onde antes houvera uma escadaria, de modo que até mesmo
a ribanceira ao lado da Casa de Gêmeos havia sido comprometida, fazendo

227
com que rochas e pequenas árvores cedessem à erosão involuntária que fora
desencadeada pelo poder do geminiano.

Agora, depois que os últimos torvelinhos de poeira haviam baixado,


Janus olhou a sua volta e contemplou, com pesar, a destruição que causara, e
foi com repugnância e tristeza que ele viu, nos lances mais baixos da escadaria
que conduzia à Casa de Touro, que Ligeia estava caída, com a sua Escama
destroçada, a perna esquerda completamente consumida pela violência da
explosão, o abdômen aberto com alguns órgãos vitais pendentes e os braços
grotescamente inutilizados devido às fraturas expostas que sofrera.

Até mesmo o belo rosto da General Marina havia sido castigado: o lado
esquerdo do rosto havia sido mutilado impiedosamente, e agora só havia um
buraco escuro no local onde antes existira uma orelha. O nariz, belo e afilado,
parecia ter sido triturado, e o sangue escorria em profusão. O olho esquerdo
era algo inidentificável entre a massa de carne viva e borbulhante que se
estendia entre o maxilar superior até o meio do couro cabeludo.

A única coisa que parecia não ter sido destruída pelo ataque de Janus
era o seu olho direito, uma oscilante esfera branca com o centro verde
turquesa brilhante, que estava aberto com um esforço tremendo, algo evidente
pelo trabalho que Ligeia aparentava ter para manter sua pálpebra erguida.

Mesmo sabendo que ela era sua inimiga, que ela havia vindo até ali com
o intuito de matá-lo para saciar um desejo egoísta de vingança, que ela havia
aberto mão da honra ou de qualquer outro valor que outrora ela tivera, aquela
mulher continuava sendo uma pessoa importante do seu passado, o último elo
entre ele e uma vida que ele deixara para trás para se tornar Cavaleiro de
Ouro.

Movido por isso, ele foi até ela, mas guardando todo o cuidado possível, pois
ela ainda era uma inimiga, e o conselho do Grande Mestre havia sido enfático:
[i]”- Apresse-se, e não subestime os inimigos que lhe surgirem à soleira, sejam

228
eles quem forem.”[/i] Assim que ela o viu, esboçou um sorriso doloroso, e só
havia um brilho pálido em seu olhar, sem nenhum sinal de raiva ou medo.

- É... é impossível que você – e sua voz gorgolejante foi interrompida pela
mescla de sangue e saliva que lhe escorria dos lábios - ... que você esteja
consciente depois... depois de ter ouvido... essa música... essa... música...

- Essa música – disse Janus com lágrimas escorrendo dos olhos até um sorriso
triste e nostálgico que escapava de seus lábios -, foi uma composição do seu
irmão para mim, durante nossa estada em Tebas, antes daquele dia.

Aquele dia. Ele tinha apenas nove anos, e toda a trupe circense foi
atacada por ladrões na estrada, que mataram alguns dos homens que tentaram
impedi-los. Orestes viu seu pai ser morto por dois homens que lhe atacaram de
forma covarde, e correu, num ato de fúria, para tentar enfrentá-los. Mas ele
sempre havia sido frágil, e foi afastado com uma bofetada em seu rosto, que o
fez perder o equilíbrio e cair em uma ribanceira.

Janus ficou furioso, e uma energia desproporcional acordou em seu


corpo, gerando uma luminosidade dourada que clareou a noite a chamou a
atenção dos bandidos. Eles se lançaram sobre o jovem, mas ele em um frenesi
doentio, e matou todos os que se aproximaram dele... inclusive aqueles que
tentaram ajudá-lo depois, seus amigos do circo. Ele só voltou a si quando viu
um par de olhos verdes e assustados, que ele julgou serem os de Orestes, mas
eram os de Ligeia.

Depois de voltar a si, ele e Ligeia se depararam com um homem de


olhos azuis e curtos cabelos grisalhos, que eles, em princípio, acharam que era
mais um dos bandidos, mas que se mostrou sendo um amigo. Ele apresentou-
se como Áquilo, e disse que fora guiado até ali pelo cosmo de Janus, mas
Janus não se interessou em ouvir ou perguntar por alguma explicação sobre o
que era o cosmo, pois pediu para que o homem ajudasse o amigo que havia
caído

229
Depois daquele dia, o braço direito de Orestes nunca mais voltou ao
normal, pois sua estrutura óssea era muito fraca, e a fratura havia causado
uma lesão permanente. Ligeia e Janus trabalhavam nas praças dos pequenos
vilarejos, tocando música e fazendo imitações, mas a proposta de Áquilo
sempre pairava em sua memória:

“[i]- Você tem um poder imenso guardado em você – dissera o veterano


Cavaleiro -, um poder muito maior que o meu, e que só é dado a um seleto
grupo de pessoas, que são escolhidas para proteger Atena. Quando você
quiser aprender a usar esse poder e suas habilidades dormentes para proteger
as pessoas da violência, como a que você e seus amigos sofreram, é só ir até
o vilarejo de Rodório e pedir informações sobre o Santuário. Você pode se
tronar um membro da elite dos guerreiros de Atena: um Cavaleiro de Ouro.[/i]”

Janus amava Orestes, mas Ligeia era apaixonada por ele, e mais de
uma vez ela se declarara, mas ele não lhe dera atenção. Toda sua atenção era
dividida entre cuidar de Orestes e a possibilidade de se tornar um defensor dos
mais fracos. Aconteceu que, em um inverno rigoroso, o frágil rapaz adoeceu
gravemente, e não havia possibilidade de melhora. Ligeia proporá deixá-lo aos
cuidados do capelão local, para que ela e Janus seguissem com sua vida de
viagens, mas ele não aceitou, e ficou ao lado de Orestes o tempo todo, até que
este lhe fez prometer que ele iria seguir o seu destino e tornar-se um Cavaleiro,
pois havia muito mais pessoas precisando da ajuda dele, e que somente assim
ele iria se sentir melhor, sabendo que não o tornara refém de sua
convalescença, e do dever de cuidar de Ligeia.

“[i]- Prometa-me, Janus – disse Orestes com um sorriso doloroso e um brilho


pálido nos olhos -, prometa-me que vai fazer o que eu te pedi, custe o que
custar.[/i]”

E, assim que ele assentiu em cumprir a promessa, Orestes caiu em um


sono relaxado, com um sorriso de contentamento no rosto. Janus foi embora
no mesmo dia, decidido a não ver a pessoa que ele mais amou no mundo

230
morrer, mas pagou um preço alto por isso, pois ele jamais pode declarar todo
esse sentimento ao amigo.

E, agora, depois de tantos anos e de cumprida a promessa, os mesmos


olhos verdes e pálidos o contemplavam. Janus ajoelhara-se ao lado da velha
amiga, e viu quando uma lágrima escorreu do olho dela, deixando, por onde
escorreu, um rastro limpo em seu rosto sujo de poeira.

- Eu ...queria que sua morte tivesse sido indolor – confessou ela.

- Tudo isso que você fez, todo esse ódio, somente porque você acha que eu
abandonei Orestes à morte?

- Não – falou ela em um tom de confissão, com mais lágrimas rolando em


profusão pelo seu rosto. – Não se trata dele, mas sim... de mim. Você me
abandonou no momento... no momento em que eu mais precisei de você.

- E você acha que eu não sofri com isso? – perguntou ele, e agora não havia
lágrimas ou tristeza em seus olhos, apenas um súbito lampejo de fúria, mas
que se desfez tão rápido quanto surgira – Mas não é o momento de acordar
tormentos antigos.

- Não – concordou ela. – Agora é... é o momento de partir. Eu queria... queria


te dar uma... uma morte indolor. Você poderia...fazer o mesmo... por mim? É o
meu último pedido... e você é bom em... em atender pedidos de um moribundo.

Agora ela tinha um sorriso no rosto, e este sorriso fez Janus se lembrar
da bela jovem que ele conhecera, que não tinha ódio ou amargura em seu
coração, e que encantava tantas pessoas com sua música.

- Sim – ele limitou-se a dizer.

Então, ele se pôs de pé, esticou o dedo indicador em direção ao seu


rosto, e contemplou-a uma última vez, vendo nela agora apenas uma amiga

231
prestes a partir, e não mais uma inimiga. Ele observou-a mexer os lábios para
murmurar suas últimas palavras:

- Eu te amo. Obrigada.

Com uma rajada de energia dourada, Janus pôs fim ao agonizar de


Ligeia, transpassando sua cabeça com um fino raio de ouro, acabando com
toda a sua atividade cerebral. Ele havia matado sua última ligação com o
passado, e não havia possibilidade de ter acontecido de uma forma mais
dolorosa do que aquela.

Ele já havia subido o caminho para o interior da Casa de Gêmeos


quando viu algo como uma estrela cadente, dourada e célere, descendo até as
escadarias onde ele estivera segundos antes. Foi com um baque surdo que
aquilo caiu na cratera já existente, levantando uma nova nuvem de poeira.

O Cavaleiro de Gêmeos foi checar o que era, e se surpreendeu quando


identificou um homem trajando uma armadura dourada, cujo material era
exatamente igual ao da armadura de Ligeia. Se aquilo era uma Escama, aquele
homem era, sem sombra de dúvidas, um General Marina.

- Agora eu acho que acabou, não há mais invasores.

A voz de Kabouri era facilmente identificável, mas Janus não deixou de


se surpreender quando viu o amigo parado na entrada da Casa de Gêmeos.

- Eu não vi ele passar – disse o geminiano.

- Foi o que eu imaginei – respondeu o canceriano com um leve sorriso,


apontando para a destruição na escadaria. – Eu só quero ver a cara do Grande
Mestre quando ele ver o que você fez aí embaixo.

Mas eles não sabiam o que estava acontecendo, naquele instante, na


Sala do Grande Mestre.

232
[b]CAPÍTULO XIX: [i]O Passado do Antigo Guerreiro[/i][/b]

Kabouri de Câncer estava esperando na entrada de sua Casa Zodiacal,


parado de forma imponente no topo da escadaria. Sua capa branca tremeluzia
com o suave vento noturno, e seus curtos cabelos loiros eram jogados
gentilmente para trás, deixando sua testa livre da franja que costumava chegar
quase à altura de seus olhos negros.

Ele sentira toda a movimentação no Santuário, e ficara em alerta desde


que o cosmo de Frixo de Áries se elevara em uma batalha. Nas duas vezes em
que o Grande Mestre passara por ele, ele havia se limitado a fazer uma breve e
respeitosa reverência, mas nenhuma palavra foi trocada entre eles, pois o
canceriano possuía uma inteligência aguçada o suficiente para descobrir por si
só o que estava acontecendo, e o Grande Mestre reconhecia essa inteligência,
de modo que ele a respeitou ao não lhe dar nenhuma instrução.

A energia que ele sentiu da Casa de Áries não lhe preocupou, pois era
evidente que Frixo tinha o controle da situação, e como ele não iria ter? Frixo
era, na opinião de Kabouri, extremamente arrogante, mas era inegável que ele
tinha poder suficiente para ter uma autoestima tão elevada. Porém, não foi
tranquilidade que ele sentiu quando, por duas vezes, o cosmo de Janus se
reduziu quase completamente.

Que inimigo poderia ter um poder grande o suficiente para fazer isso
com o geminiano? Isso seguia sendo uma incógnita para ele, mas esse
questionamento foi deixado de lado quando Kabouri sentiu uma aproximação
sorrateira.

- Não adianta esconder sua energia – disse o canceriano. – Ninguém entra ou


sai da Casa de Câncer sem que eu saiba. Identifique-se agora, ou morra
anonimamente, se essa for sua preferência.

Então a energia do inimigo se manifestou, e um cosmo com uma carga


negativa começou a se elevar. Um vento forte começou a soprar, e a poeira

233
aera varrida violentamente dos degraus que ligavam as Casas de Gêmeos e
Câncer. Kabouri manteve-se na mesma posição em que estava, com os braços
cruzados na altura do peito, apenas analisando o grande cone que descia, de
forma circundante, sobre o seu corpo.

[i]Anemostróvilos Víaios[/i]! (Tornado Violento)

Gritou uma voz afetada, seguida de uma risada esganiçada e quase


histérica. Por entre as linhas formadas pelo cone de ventos rodopiantes,
Kabouri pode ver um rosto magro e macilento, encimado por cabelos oleosos e
negros que chegavam à altura dos ombros. Um sorriso largo, de lábios finos,
formava-se em seu rosto, mas esse sorriso começou a se desfazer conforme
os segundos foram se passando, pois os ventos que ele invocara não fizeram
nada do canceriano.

- Eu não acredito que... – começou ele, mas foi interrompido por Kabouri.

- Além de me atacar sem se apresentar, você tem a pretensão de tentar me


machucar com uma técnica falha como essa? – disse o canceriano – Um
tornado sempre é cego em seu centro, e, a menos que eu me mova do local
onde estou, você não poderá fazer nada contra mim.

- Impossível! Eu sou Glauco de...

- Já não me interessa saber quem é você, General Marina, pois você não teve
a mínima honra, esgueirando-se até aqui em silêncio, como um ladrão no meio
da noite, e me atacando sem ao menos dar as caras. Não tenho muita
paciência com pessoas como você.

Kabouri, então, abriu os braços em um gesto largo, como se abraçasse


os ventos uivantes que tentavam lhe açoitar a pele. Reunindo um pouco de seu
cosmo, ele começou a juntar os braços em sentido central. Pouco a pouco, os
ventos começaram a diminuir, como se o Cavaleiro de Câncer estivesse os
prendendo com as mãos, e reduzindo-os conforme sua vontade.

234
O General Marina observava atônito, sem acreditar que aquilo estava
acontecendo, e ele não havia se dado conta, ainda, da intenção real de
Kabouri. Assim que o tornado havia sido quase completamente compactado, o
canceriano fitou-o com um olhar lampejante, e um sorriso formou-se em seus
lábios.

- Você é o último, não é mesmo?

- O último o que? – perguntou de volta o inimigo.

- O último invasor.

- Sou o único que chegou até aqui nesse momento, mas há outros na Casa de
Gêm...

Mas foi impossível terminar de falar o que pretendia, pois um terremoto,


ou algo semelhante, acabara de atingir o Santuário. O tremor foi violento, e as
colunas da Casa de Câncer balançaram ameaçadoramente, como se fossem
ceder a qualquer instante. O General Marina olhava de um lado para o outro,
com evidente espanto em seus olhos, e mesmo Kabouri não conseguiu evitar
um olhar de relance para os lados. Aquilo não era um terremoto normal: era o
efeito colateral de uma explosão gigantesca.

Foi com alegria que o canceriano se deu conta, então, de que aquele
golpe havia sido lançado por Janus, e que devia se tratar da técnica da qual o
Grande Mestre falara quando eles foram até o Yomotsu. De fato, era uma
técnica com um poder assombroso, e ele duvidava que algum inimigo tivesse
sobrevivido a isso, independente de quantos fossem. Kabouri concentrou-se
novamente na batalha que começara a se desenrolar entre ele e o invasor, e
ainda mantinha os ventos do inimigo firmemente presos em suas mãos.

- Agora você é o último – disse o Cavaleiro de Câncer.

- Não sou um adversário assim tão fácil de se deter, Cavaleiro de Atena.

235
- Ah não? – indagou o canceriano – Nesse caso, não irei subestimá-lo ou testar
seu poder em uma luta mais longa do que o necessário. Olhe nos meus olhos!

E Glauco olhou-o nos olhos, e viu que eles começaram a mudar de cor,
passando do negro para o verde. Uma brisa fraca começou a soprar, e eram os
ventos do General Marina que recomeçavam sua atividade, mas agora
coordenados pela vontade de Kabouri. O canceriano liberou os ventos em um
gesto inverso ao que havia feito para aprisioná-los, abrindo os braços em um
gesto amplo. Quando suas mãos estavam completamente afastadas, ele
fechou a destra em forma de garra, e uma luminosidade vermelha pareceu
emanar dela.

[i]Timoría tis Hera[/i]! (Castigo de Hera)

E o golpe do canceriano veio de encontro ao seu queixo, em um gancho


de direita que lhe fraturou maxilar e dentes assim que punho e face se tocaram.
Havia algo de demoníaco ou divino na força daquele golpe, e não parecia ser
um punho que vinha contra ele, mas sim uma gigantesca marreta brandida pelo
maior dos gigantes.

O impacto arremessou-o para o alto em uma ascendência diagonal, mas


não havia apenas isso contra ele. Os ventos do tornado que ele mesmo havia
conjurado estavam lhe fustigando a pele, e enquanto ele voava para o alto, era
como se lâminas tentassem lhe rasgar a pele, e já havia feios cortes nos locais
onde sua Escama não o protegia. Mas essa dor ele já não sentia, pois a
intensidade do golpe de Kabouri lhe tirara a consciência quase que
imediatamente, e agora era só uma questão de tempo até que a gravidade
cumprisse o seu papel e lhe trouxesse para baixo.

E quão baixo ele desceu! Certamente, se o golpe de Kabouri não o


tivesse inutilizado de primeira, o impacto da queda teria dado conta do resto do
serviço, pois ele caiu de uma altura duas vezes superior à Casa de Câncer até
quase o final da escadaria que ligava as Casas de Gêmeos e Touro. Ele caiu
em uma cratera já existente, mas seu corpo expandiu-a um pouco em sua

236
profundidade, e, quando seu crânio bateu-se contra o solo duro e rochoso, ele
se rachou em um [i]crac[/i] feio e viscoso, como o de uma fruta cascuda e
pesada que quebra ao cair, espalhando sua polpa mole pelo chão. Glauco de
Cila estava morto.

Kabouri havia descido rapidamente as escadarias que ligavam sua Casa


á Casa de Gêmeos, a fim de ver o que se passara com Janus e,
principalmente, certificar-se de que o inimigo morrera. Quando ele passou por
dentro da morada geminiana e chegou à entrada, ele ficou estarrecido com a
destruição que havia por lá, e o que mais lhe chocou foi ver uma grande cratera
onde antes houvera uma escadaria de mármore.

Na borda do gigantesco buraco, o canceriano identificou Janus de


Gêmeos, analisando algo que havia lá dentro, e foi só aí que ele se deu conta
de que havia sido lá que o corpo do General Marina tinha caído.

- Agora eu acho que acabou, não há mais invasores.

Janus se surpreendeu quando viu o amigo parado na entrada da Casa


de Gêmeos, e havia uma expressão dolorosa e aturdida em seu rosto,
decorrente da batalha que acabara de travar com dois inimigos: os invasores e
o passado.

- Eu não vi ele passar – disse o geminiano.

- Foi o que eu imaginei – respondeu o canceriano com um leve sorriso,


apontando para a destruição na escadaria. – Eu só quero ver a cara do Grande
Mestre quando ele ver o que você fez aí embaixo.

Mas, enquanto eles se detinham analisando a destruição ali embaixo,


eles não sabiam que a principal preocupação que deveriam ter estava
localizada bem mais acima, na Sala do Grande Mestre.

***

237
- Fique onde está, Frixo de Áries.

O Grande Mestre havia sentido a movimentação do Cavaleiro de Áries, e


telepaticamente estava lhe dando novas ordens.

- Grande Mestre, a Casa de Touro está vazia, e alguém... – tentou responder-


lhe Frixo.

- A Casa de Touro está vazia, mas as demais Casas Zodiacais estão


guarnecidas por seus respectivos guardiões.

Aquilo era uma mentira, mas ele não podia falar a verdade naquele
momento, não quando tudo estava tão próximo de acontecer. Tinha que ser do
jeito que ele havia planejado, e era essencial que Frixo permanecesse onde
estava.

- Mas Mestre – insistiu Frixo -, não são apenas demônios que estão invadindo.
Há Generais Marinas entre eles.

- Sei disso, mas minhas ordens continuam as mesmas: fique onde está, Frixo
de Áries.

- Sim, senhor.

Ele e Quiron continuavam subindo as Casas Zodiacais, e os


pensamentos voavam céleres pela mente do velho Grande Mestre. Será que
teria valido a pena? Tudo isso, tudo isso que acontecera até agora, será que
teria sido a melhor maneira de lidar com o problema?

Mesmo tendo tido o melhor resultado possível na execução de todos os


seus planos, Girtab sempre fazia a si mesmo essas perguntas, ponderando
pesadamente sobre os rumos que a situação podia ter tomado, e o quão
catastróficos teriam sido os resultados se ele tivesse falhado. Mas ele não

238
havia falhado, e era justamente isso o que lhe fustigava ainda mais os
pensamentos;

- “[i]Ninguém pode acertar em tudo indefinidamente. Quanto mais e maiores os


acertos, mais próxima e perigosa se torna a sombra de um possível erro.[/i]” –
pensou ele consigo. – “[i]Você já teceu planos demais durante esse longo
tempo em que viveu, Girtab. Talvez seja a hora de passar as responsabilidades
adiante. Talvez a sua hora esteja chagando, ainda mais agora...[/i]

- O senhor está bem, Mestre? – perguntou-lhe Quiron de Sagitário quando eles


chegaram até a soleira da Casa de Libra, embora o velho mestre não tivesse
se dado conta do quanto eles haviam avançado, pois estava imerso em seus
pensamentos.

- Sim, Quiron, eu estou bem. O mesmo não se pode dizer de você – falou o
líder do Santuário enquanto o mirava de cima a baixo, situando-se novamente.
– Salomão irá cuidar de suas feridas assim que retornar.

- Retornar?

- Sim. Como eu me afastei para vir ao seu encontro, deixei a cúpula do


Santuário sob vigilância especial. Lá estão Salomão de Libra, Lupercus de
Capricórnio, Ganimedes de Aquário, Cristos de Peixes, e os Virtus Francesco,
Odisseu e Isar. Os outros três, Galen, Óliver e Benício, deixaram o Santuário
há algum tempo, pois senti seus cosmos se distanciarem.

- Mas por que tantos guerreiros na sua sala, Mestre?

- Para proteger Atena.

- Mas há defensores em quase todas as Casas Zodiacais, e parece que as


coisas estão se resolvendo em Áries, embora eu sinta algo prestes a acontecer
em Gêmeos.

239
- E é por isso que eu mandarei Salomão de volta para cá depois.

- Depois? – perguntou o sagitariano.

- Sim, depois – respondeu-lhe o Grande Mestre em tom de quem encerra o


assunto.

E ele seguiu o resto do percurso sozinho. Conforme passava pelas


Casas Zodiacais, ele as observava com um olhar melancólico e, pela primeira
vez em centenas de anos, ele sentiu-se cansado. Um cansaço mortal, como se
o peso das responsabilidades de tantos anos como Grande Mestre finalmente
houvesse sido grande demais para o seus ombros.

Ele sentia pequenas pontadas em seu peito, e as costas lhe doíam tanto
que ele tinha vontade de se deitar no piso de mármore e, quem sabe, com
alguma sorte, morrer tranquilo? A hora para isso parecia estar chegando, mas
ele ainda tinha uma última etapa de seu plano para desempenhar, uma das
partes mais importantes.

Quantas vezes ele havia percorrido todo aquele caminho? Quantas


vezes ele havia transitado entre as Doze Casas Zodiacais do Santuário de
Atena? Milhares, dezenas de milhares de vezes. Incontáveis vezes mais como
Grande Mestre do que como Cavaleiro de Ouro, é verdade, mas ele não se
esquecia da primeira vez em subira todo o percurso, sem armadura alguma,
para falar com Aslam de Leão, o Grande Mestre de sua época, há mais de
1500 anos.

Ele tinha 13 anos, e todos os guerreiros do Santuário diziam que ele


tinha um grande poder, e que se tornaria um dos maiores Cavaleiros de todos
os tempos. E como ele adorava ouvir aquilo. Seu ego se inflava ao ver
soldados fazendo gestos de respeito quando ele passava, mesmo ainda não
sendo um Cavaleiro ordenado. De Áries a Peixes, todos os Cavaleiros de Ouro
o tinham em alta conta, fazendo eco as previsões de um brilhante futuro a se

240
descortinar para o jovem Girtab. Até mesmo Set, o seu falecido mestre e
Cavaleiro de Escorpião, dizia que ele seria imbatível no futuro.

Porém, o velho Aslam de Leão, o Grande Mestre, parecia não ter o


mesmo pensamento que os demais. Pelo menos ele jamais esboçara isso. Foi
com grande alegria que ele recebeu o já aguardado chamado para ir se
apresentar na Sala do Grande Mestre. Ele tinha certeza de que ele iria ser
ordenado como o novo Cavaleiro de Escorpião.

A exceção de Escorpião, todas as demais Casas Zodiacais estavam


ocupadas por seus respectivos Cavaleiros de Ouro, e uma corrente elétrica
parecia percorrer o seu corpo quando ele passou de uma a outra, com a
adrenalina fazendo seu peito pulsar forte, embora ele tentasse não demonstrar
sua euforia aos futuros irmãos dourados.

Ele passou pelo belo Eetes de Áries, sentiu-se esquadrinhado perante o


olhar severo de Minos de Touro, e cumprimentou alegremente o seu amigo de
algum tempo, Pólux de Gêmeos. Em Câncer, ele não viu a esguia Juno, mas
sabia que a Amazona de Ouro estava por lá. Cumprimentou com cortesia o
sucessor do Grande Mestre, Judá de Leão, e sentiu-se leve e tranquilo ao
passar por Sidharta em Virgem.

Na Casa de Libra, o sisudo Temístocles apenas o observou com seus


olhos azuis, mas um leve sorriso de aprovação surgiu em seus lábios. A Casa
de Escorpião estava vazia, e Girtab nem pensou na memória de seu falecido
mestre, pois tudo o que ele via em seu futuro era ele mesmo paramentado com
a Armadura de Ouro de Escorpião e, em um futuro não muito distante, como
Grande Mestre do Santuário de Atena.

Orion de Sagitário lhe cumprimentou cortesmente, como era esperado


de alguém tão bondoso e educado, mas a mesma educação não veio do bruto
Cernunos de Capricórnio, que parecia ser uma fera domada a muito custo.
Crios de Aquário e Icteo de Peixes lhe deram boas vindas, já antevendo ao que
iria se suceder no encontro entre ele e o Grande Mestre.

241
Por fim, ele chegou à Sala do Grande Mestre. Desde aquela época as
cortinas já eram de um grosso veludo vermelho, combinando, de forma um
tanto agressiva – embora suntuosa – com o tom branco que predominava. O
líder dos Cavaleiros de Atena estava sentado no seu alvo e imponente trono,
completamente paramentado: túnica, manto, elmo e colares de contas.

Muitos no Santuário diziam que ele preferia usar a Máscara Sacerdotal


para esconder uma horrenda cicatriz que lhe deformara quase que
completamente o rosto. Outros diziam que ele fazia isso para que ninguém
olhasse diretamente nos seus olhos, pois eles eram capazes de paralisar um
oponente, ou de dissecar a alma do observado, segundo outros. Fosse qual
fosse o motivo da vestimenta formal, era assim que ele estava, e sua
imponência sentado naquele trono só conseguiu despertar um pensamento no
então jovem Girtab: um dia aquele lugar seria seu.

- Aproxime-se, Girtab – falou o Grande Mestre, e seu tom grave e rouco


parecia mais um rugido do que uma voz humana.

- Aqui estou, Mestre, conforme suas ordens – disse ele, ainda em pé.

- Todos os Cavaleiros devem se curvar respeitosamente na presença do


Grande Mestre e de Atena – disse alguém que Girtab não havia notado.

Mas ele estava lá: robusto, com muitos pelos escuros em seus fortes
braços bronzeados. Seus olhos eram atentos e brilhantes, de um negro que
parecia carvão. Sua armadura era prateada, e seus longos cabelos pretos e
encaracolados lhe chegavam até o peito.

- E quem é você para me dar instruções? – quis saber Girtab.

- Eu sou Davi, Cavaleiro de Prata de Triângulo, e braço direito do Grande


Mestre – respondeu ele com altivez. – Mas, independente de quem eu seja, ele

242
é o líder do Santuário, e você lhe deve respeito e obediência, a não ser que
você não deseje se tornar um Cavaleiro, garoto.

Garoto. Como ele odiava ser chamado assim, e que falta ele sentia disso
agora. Quanta falta Davi lhe fazia, agora que tinham se passado tantos
séculos. O Cavaleiro de Triângulo teria sido uma ajuda abençoada naquele
momento em que Girtab, o Grande Mestre, se encontrava. Quanto tempo ele
perdera sendo hostil e arrogante, tratando os outros com desprezo por se
considerar mais forte? A pergunta não tinha resposta, mas ele se felicitara em
constatar uma coisa: ele havia mudado. Davi fora um bom amigo.

Mas, naquela época – e Girtab recordava-se com saudosismo -, ele e


Davi nunca se acertaram. Foi a contragosto que ele se ajoelhou perante o
Grande Mestre, pensando muito mais na possibilidade de acabar logo com
aquilo do que em, de fato, respeitar o homem sentado a sua frente.

- Os onze Cavaleiros de Ouro são unânimes na opinião de que você deve ser
escolhido como o novo Cavaleiro de Escorpião – disse Aslam com sua voz
rouca.

- Fico feliz com isso, Mestre, e agradeço a honra de me tornar o Caval... –


começou ele, ao que foi interrompido pelo Grande Mestre.

- Entretanto, eu acho que você ainda não está pronto.

- O QUE! – bradou Girtab, pondo-se de pé.

- E esse seu comportamento é a confirmação do que eu penso.

- Então por que eu fui chamado até aqui?

- Para aprender uma lição importante – respondeu Davi pelo líder do Santuário.

- E que lição vem a ser essa?

243
- Humildade – respondeu-lhe o Grande Mestre.

- Vim aqui para ser achincalhado e receber um conselho para ser humilde? –
perguntou ele com raiva em sua voz.

- Se você aprender a lição da humildade, vai se dar conta de que não houve
achincalhe algum. Apenas o seu ego, por ser grande demais, acabou sendo
ferido – replicou Aslam de forma seca e direta. – Voltaremos a nos falar daqui
há um ano ou dois, e então veremos se você se porta melhor.

- Mas eu...

- Você já foi dispensado, Girtab – falou-lhe Davi de Triângulo.

Humildade foi a primeira lição que lhe foi passada, mas foi a última que
ele aprendeu. No lugar de humildade, ele aprendeu a ser dissimulado, e era
com a máscara do respeito, da humildade e da cortesia que ele passou a se
apresentar, embora, em seu interior, apenas o orgulho fosse ferido, gerando
um ressentimento que traria duras consequências.

Agora ele já estava na Casa de Aquário, e lembrava-se do que Crios de


Aquário tinha lhe falado sobre Davi, há muito tempo.

- Mesmo sendo um Cavaleiro de Prata, ele está em alta posição no Santuário,


e eu acho que ele será escolhido como novo Grande Mestre quando chegar a
hora da sucessão.

- Mas há tantos mais poderosos do que ele – replicou Girtab, inconformado, e


agora ele já havia sido nomeado Cavaleiro de Escorpião. – Por que não você,
ou Minos ou eu?

244
- Hahaha – riu o aquariano com leveza, mas Girtab não gostou disso, pois
pareceu-lhe que sua opinião fora tomada por uma piada. – Você é bem direto
em suas pretensões, não é mesmo? Mas, não se trata de poder, Girtab.

- Como não? Cabe ao mais poderoso governar, pois somente a força pode
trazer ordem. Como você se sentiria tendo de seguir as ordens de alguém mais
fraco do que você?

- Você acha que Atena é mais forte que Hades e Posseidom? – perguntou-lhe
Crios, com uma ruga de preocupação tomando o lugar do sorriso que estava
em seu rosto.

- Por que você me pergunta isso?

- Para ter certeza de que você não vai abandonar o Santuário caso uma Guerra
Santa comece e você ache que os inimigos são mais fortes.

E parece que Crios de Aquário previu o que se sucedeu. Quem poderia


imaginar que, quando Yeshua e Baal iniciaram o seu confronto, Girtab estava
do lado do demônio? Esse pensamento, que deveria ser torturante, era apenas
mais uma das lembranças de Girtab, algo do qual ele se arrependia
profundamente, mas que não lhe tirava o sono, pois havia lhe ensinado uma
lição valiosa.

E ele chegou, finalmente, à entrada de sua sala. Lá dentro, ele se


deparou com todos os Cavaleiros e Virtus em profundo silêncio, embora
olhares irrequietos fossem trocados pela maioria. O Grande Mestre caminhou
calmamente até o seu trono, sentou-se sem dirigir uma única palavra aos
presentes, que estavam ajoelhados em respeito a ele quando ele passou.

Girtab apanhou uma fruta qualquer do cesto de vime que estava ao seu
lado em uma mesinha, deu-lhe uma mordida, e exibiu uma expressão de
contentamento em seu rosto. Depois de terminar a fruta, ele bebericou um gole

245
de água em uma taça de madeira, e engoliu-o com lentidão, como que para
lubrificar as cordas vocais antes de falar aos demais.

- O Santuário está sob invasão – disse ele de forma direta, pois não havia
motivos para negar ou adiar a informação, pois todos pareciam ter ciência
disso. – Generais Marina e demônios menores a serviço do inimigo estão em
solo sagrado, e tentam passar por nossas defesas.

Um forte tremor, vindo da base das Doze Casas Zodiacais, fez todos
olharem pera os lados, mas Girtab permanecia olhando para eles, analisando
cada face, esperando para que eles voltassem suas atenções para ele
novamente. Depois de algum tempo, eles voltaram a olhar apenas para o
Grande Mestre.

- Isso veio da Casa de Gêmeos – disse ele -, e logo a batalha chegará a


Câncer. Para melhor proteger o Santuário e, principalmente, proteger Atena, eu
tracei um novo plano de ação, e irei dispô-los em uma nova organização.

- Mas, por que isso, Grande Mestre – perguntou-lhe o Virtus Francesco, sem
entender o que se passava.

- Por que Baal já está dentro do Santuário.

Aquela informação pegou todos de surpresa, e um pequeno burburinho


se formou. Apenas Salomão estava em silêncio dentre eles, e foi ele quem
pediu o silêncio dos demais.

- Acalmem os ânimos, meus irmãos – pediu ele com sua voz aveludada. – O
Mestre nos guiou com admirável sabedoria até aqui, em meio as mais difíceis
situações. Se ele tem um plano novo, quem somos nós para duvidar dele?

- Agradeço a confiança, Salomão – falou Girtab. – Agora ouçam-me e


obedeçam-me: todos os Cavaleiros de Ouro, a exceção de Salomão de Libra,

246
retornem imediatamente às suas respectivas moradas, e fiquem lá, aconteça o
que acontecer.

E, um a um, eles fizeram uma reverência de despedida ao Grande


Mestre e saíram pelas grandes portas de madeira do salão. Depois que todos
haviam saído, Girtab continuou.

- A vocês, bravos Virtus, não me cabe a autoridade de lhes dar ordens, pois
não sou seu líder, e percebo que três de vocês estão ausentes, talvez seguindo
outras ordens. Mas, na ausência de Inocêncio, você é o líder deles, Francesco.
Portanto, é a você que peço que faça uma escolha.

- E qual seria ela, Mestre? – perguntou-lhe Francesco, com a cabeça


respeitosamente baixa.

- Devido ao fato de Salomão ter sido designado para ficar por aqui, o Santuário
está defasado de Cavaleiros de Ouro nas Casas de Touro, Libra e Escorpião.
Entretanto, os inimigos já passaram por Touro, e não há necessidade de
protegê-la agora Peço, então, que você supra as defesas de Libra e Escorpião
da melhor forma que lhe convir. Preciso que um de vocês fique comigo, assim
como um dos meus guerreiros também ficou.

- Embora eu seja o líder, não cabe a mim tomar essa decisão sem consultar os
meus irmãos – disse Francesco de forma solene. – Digam-me, Odisseu e Isar,
o que acham que deve ser feito?

- Para mim – começou Odisseu -, a resposta é simples. Você deve ficar aqui
com o Grande Mestre, já que é o mais poderoso de nós, além de ser o nosso
líder. É melhor para nós que Atena esteja bem protegida, e sei que Salomão de
Libra é poderoso, e não há necessidade de tecer comentários a respeito do
Grande Mestre. Assim, creio que a melhor decisão é que você fique e que nós
dois desçamos. O que me diz, Isar?

- Faço minhas as suas palavras, Odisseu.

247
- Pois que seja assim, então – decidiu-se Francesco – Eu ficarei, Odisseu,
assuma a defesa da Casa de Libra, e você fique com a Casa de Escorpião,
Isar.

- Sim – disseram os dois em uníssono, e saíram da Sala do Grande Mestre


após lhe fazerem um breve reverência.

Assim que todos saíram, Girtab permaneceu sentado, mas Salomão


seguiu caminho até a câmara que ficava alguns lances de degrau mais para
cima, passando a Sala do Grande Mestre. O libriano saiu em silêncio, e isso
deixou Francesco intrigado.

- Grande Mestre, se o senhor me permite a pergunta, para onde o Cavaleiro de


Libra se dirige?

- Para a Câmara de Atena – disse Girtab em tom plácido.

- Entendo. E eu, senhor, para onde devo me dirigir? – perguntou o Virtus.

- No que depender de mim, para o seu túmulo, e agora de uma forma definitiva
– falou o Grande Mestre em um tom resoluto.

Aquilo pegou Francesco completamente de surpresa. O que estaria se


passando na cabeça do líder do Santuário?

- Perdão, Mestre, mas acho que não compreendi.

- Por favor, não me faça perder tempo. Você realmente achou que tinha me
enganado esse tempo todo, Baal?

E a feição espantada cedeu lugar a uma expressão fria, e os olhos


castanhos tornaram-se vermelhos como brasas.

248
- Há quanto tempo, Girtab de Escorpião? – disse ele, e agora a voz também
era diferente.

O tom firme e plácido do Virtus havia se transformado em uma voz grave


e rouca, com um acentuado tom agressivo. A fisionomia bela agora possuía
algo de animalesco ou demoníaco, embora não tenha perdido de todo a
beleza.

- Faz muito, muito tempo – respondeu o Grande Mestre, ainda sentado em seu
trono, e seu tom era duro. – Mas não estou disposto a gastar meu tempo
conversando com você, Baal.

- E então, qual é a sua pretensão, Girtab?

- A minha pretensão? – perguntou-lhe o Grande Mestre de forma retórica,


pondo-se de pé num instante, e já começando a elevar o seu cosmo. –
Simples: eu vou derrotá-lo uma vez mais, e, dessa vez, me assegurarei de que
você não retornará.

249
[b]CAPÍTULO XX: [i]A Confissão do Grande Mestre[/i][/b]

Baal havia sido pego de surpresa, mas ele tentava não demonstrar isso.
Ele sabia que, mais cedo ou mais tarde, o Grande Mestre iria descobrir que ele
estava infiltrado no Santuário, e não lhe surpreendia que ele se mostrasse
ciente disso a qualquer momento. Entretanto, não lhe era possível imaginar
que seria dessa forma que Girtab iria revelar o conhecimento acerca deste fato
e, analisando com frieza a situação em que se encontrava, a atitude do líder do
Santuário parecia uma loucura.

Quem mais, em sã consciência, permitiria que o seu principal inimigo


ficasse tão próximo de Atena, cuja morte significaria uma vitória iminente às
hostes de Lúcifer? Além do mais, ele estava no ceio do Santuário de Atena e,
assim que se livrasse do Grande Mestre, poderia facilmente destruir a base
inimiga de dentro para fora.

“- [i]Não – [/i]disse Baal a si mesmo, pensando com uma frieza analítica[i] -,,é
justamente isso o que ele intenta: que eu o tome por um velho tolo e cansado.
Este tempo em que convivi tão próximo a ele me fez perceber o quão astuto e
prudente ele se tornou, e tenho certeza de que até mesmo por trás dessas
atitudes insanas deve haver um estratagema tecido com cautela. Mas qual será
o objetivo de tudo isso?[/i]

- E então, qual é a sua pretensão, Girtab? – perguntou Baal em voz alta, com
sua voz rouca e grave tentando aparentar indiferença à forma como Girtab
havia conduzido as coisas..

- A minha pretensão? – perguntou-lhe o Grande Mestre de forma retórica,


pondo-se de pé num instante, e já começando a elevar o seu cosmo. –
Simples: eu vou derrotá-lo uma vez mais, e, dessa vez, me assegurarei de que
você não retornará.

“[i]Derrotar-me uma vez mais[/i]”, ecoou Baal em pensamento. Claro que


Girtab não perderia a chance de atirar isso na cara dele, tentando provocar-lhe

250
fúria e descontrole mediante a lembrança desse acontecimento humilhante. Um
deus derrotado por um mortal! Mas, será que Girtab era realmente mortal? De
toda forma, essa pergunta estava prestes a ser respondida de um jeito ou de
outro, pois aquele tempo passado na cúpula do Santuário não fora em vão.

“[i]Finalmente[/i]”, pensou Baal, e uma onda mista de entusiasmo e ódio


percorreu seu corpo como uma corrente elétrica. Chegara o momento pelo qual
ele tanto ansiara: a batalha contra Girtab de Escorpião, ou o Escorpião Imortal,
como ele fora aclamado daquela vez há tanto tempo. Havia centenas de anos
desde que eles tinham se confrontado pela última vez, mas Baal jamais havia
esquecido daquilo, de como aquele homem, na época muito mais jovem e
inexperiente, conseguiu lhe dar combate e... e derrotá-lo, mesmo que
provisoriamente.

Quando ele soubera que Girtab ainda estava vivo – informação que
obtivera por meio do Cavaleiro de Áries no dia em que fora libertado de seu
aprisionamento -, foi somente a possibilidade de um futuro embate que o
motivou a tecer os seus planos daquela forma, ao invés de fazer um ataque
aberto e direto. E, agora, o momento havia chegado.

- Mesmo após todos estes anos tu continuas a ser insolente com aqueles que
te são superiores.

- A única pessoa superior a mim está à salvo em sua câmara, e ela não é você,
Baal.

- Perguntei-me com frequência, quando nos conhecemos, o que era mais


venenoso em ti, Cavaleiro de Escorpião: o teu ferrão ou a tua língua. Mesmo
após tanto tempo, julgo-me incapaz de avaliar com precisão qual é a resposta
correta.

- Quando nos conhecemos você foi mais cortês comigo – disse o Grande
Mestre em tom de provocação. – Acho que o seu medo de me ter como
inimigo, agora, impede que as palavras fluam com a mesma doçura.

251
- Hahahaha – riu Baal com desgosto. – Medo? De ti, Girtab? Não simules
tolice, pois tolo tu não és. Sabes muito bem o motivo de eu não ter sido hostil
contigo daquela vez. Porém, se queres mais amabilidade da minha parte,
podes conseguir isso agindo da mesma forma como tu agiste há tanto tempo.

- Esse tempo já passou – disse Girtab de forma enfática, querendo por fim ao
assunto.

- Mas a minha proposta se repete. Será que vais vir para o meu lado
novamente, e matar aqueles que outrora tu chamaste de irmãos? – indagou o
demônio com nítido prazer ao usar essas palavras. – Rogo apenas para que tu
também não me traias no momento final, como tu fizeste daquela vez.

Agora era a vez dele de usar acontecimentos do passado para tentar


desestabilizar o adversário. Ele sabia que Girtab não demonstraria facilmente
como estas palavras o atingiam com profundidade, mas ele sabia, com toda a
certeza, que aquele assunto era torturante para ele, de modo que seria
divertido ferir a mente e os sentimentos do velho cavaleiro antes de ferir-lhe o
corpo.

- Aquilo foi um erro - disse Girtab sem abrandar o cosmo -, um erro do qual eu
me arrependo amargamente, mas que me ensinou muito. A situação, agora, é
completamente diferente, pois eu sou muito diferente do que eu era naquela
época.

- Isso é inegável, e mesmo que tu quisesses negar, esse teu corpo coberto de
rugas denunciaria tua mentira. Além disso, a situação realmente não poderia se
repetir tal qual se deu daquela vez, não é mesmo?

- Que bom que você é capaz de perceber pelo menos isso.

- Ahh, não. Tu interpretaste-me mal – disse ele com um prazer nocivo – quando
digo que a situação não irá se repetir, falo isso não por considerar que tu

252
tenhas te tornado uma pessoa melhor. Não. Falo isso porque, dessa vez, será
impossível para ti assassinar o Grande Mestre do Santuário de Atena, uma vez
que esse posto agora pertence a ti. Como era mesmo o nome do homem a
quem tu mataste depois de ter jurado lealdade?

A fúria de Girtab foi incontrolável por um instante, e uma poderosa


rajada de energia foi lançada sobre o inimigo. Baal, entretanto, não era um
inimigo comum, e limitou-se a deter o súbito ataque de Girtab com um simples
espalmar de mão.

- Hahaha, parece que este assunto te perturba, Cavaleiro de Escorpião – e


havia divertimento no tom que ele usou. – A verdade é algo que tu não estás
acostumado a enfrentar, não é mesmo?

- O que quer dizer com isso, serpente de Lúcifer? – inquiriu Girtab.

- Já te disse antes para não te fazeres de estúpido. Tu sabes perfeitamente do


que falo.

- E do que você fala?

- Da tua imagem de bondade e sabedoria, da figura de honra inabalável e


conduta irretorquível que vem guiando os guerreiros de Atena ao longo de
tanto tempo. Será que aqueles que te seguem tão cegamente sabem o que tu
fizeste no passado? Alguma vez tu falaste a eles sobre o lado em que tu
estavas quando a batalha entre Atena e eu se iniciou? Tu falaste a eles, por um
acaso, sobre como tu conspirou para ajudar a matar o filho de YHVH?

- Nunca houve necessidade de falar sobre isso – respondeu Girtab com


amargura, baixando a cabeça como se estivesse envergonhado -, mas eu
jamais teria negado a verdade a quem me perguntasse.

- Mas tu jamais permitiste que alguém tivesse a oportunidade de te fazer


qualquer pergunta referente a isso, não é mesmo, Girtab?

253
E agora Baal estava mais satisfeito do que poderia ter esperado, pois o
silêncio do Grande Mestre foi muito melhor do que qualquer explosão de fúria
que pudesse tê-lo acometido. Não havia forma de negar: ele estava abalado
com aquelas lembranças, e era disso que Baal se aproveitaria.

- O que foi, Girtab? A vergonha de teus atos te incomoda? Ergas essa cabeça
e venha para a luta, pois mostrarei minha piedade e darei o descanso merecido
a esse teu corpo velho. Assim, tu não precisarás mais lamentar os teus erros.

- Você vai se surpreender com o que esse corpo velho ainda é capaz de fazer.

[i]Ostrakiá Belóna![/i] (Agulha Escarlate)

Baal estava preparado. Ele conhecia aquele golpe, e se lembrava do


efeito aterrador que ele poderia ter contra um oponente que é pego sem
sobreaviso. Assim sendo, ele não tentou esquivá-lo, pois sabia que seria
impossível, já que se tratava de um golpe múltiplo lançado acima da velocidade
da luz.

[i]Der'a'a Mëná Morrarib Sãmaúi[/i]! (Escudo do Guerreiro Celestial)

O demônio havia estendido sua mão direita no último instante, elevando


sua energia em uma explosão violenta. Uma parede de energia azul-celeste
havia se formado na frente de Baal, e mesmo as poderosas agulhas lançadas
pelo Grande Mestre não foram capazes de superar a proteção que fora
invocada.

O piso de mármore apresentava uma leve fenda, uma fina linha que se
localizava exatamente abaixo do escudo de Baal, mostrando que houvera
algum impacto quando ataque e defesa se opuseram, mas que ele havia sido
absorvido praticamente por completo pelo escudo energético criado pelo
inimigo.

254
- Finalmente o escorpião mostra o seu ferrão – disse Baal. – Eu devo admitir
que esperava mais de ti, Girtab.

- O que?

- Tentar atacar-me com uma técnica que eu já havia visto tantas vezes. Não
são vós, os guerreiros da elite do Santuário de Atena, que se orgulham em
dizer que um golpe não funciona duas vezes contra um Cavaleiro de Ouro?
Pois bem, o mesmo ocorre comigo, e devo acrescentar que eu me recordava
deste golpe ser mais poderoso. Talvez a idade tenha finalmente te prejudicado,
Girtab.

- Ou, talvez, você tenha aprendido a ter mais precaução, já que foi ferido
brutalmente por esse golpe quando eu te derrotei. Eu ainda me lembro da sua
expressão de dor – provocou Girtab com um sorriso no rosto.

- E da expressão de dor dos Cavaleiros de Atena que tu mataste daquela vez,


tu ainda lembras? – rebateu Baal com crueldade, e o sorriso do rosto do
Grande Mestre esmoreceu.

- Sim, eu me lembro, mas isso não me fere mais – disse ele com um tom calmo
e melancólico -. Aprendi a conviver com os meus pecados sem fazer deles um
peso desnecessário. Eu não posso reverter o que fiz se eu ficar sofrendo
eternamente, da mesma forma que esse sofrimento também é incapaz de me
trazer o perdão. Assim sendo, prefiro evitar lamentações desnecessárias e
gozar de uma boa noite de sono sempre que me deito.

- Então tu te orgulhas do que fez?

- Não, nunca. Na realidade, eu não me orgulho de mais nada que eu seja ou


tenha sido. Eu amadureci com o passar dos anos, e me tornei uma pessoa
melhor. Talvez a mais valiosa das lições tenha sido justamente a que eu mais
demorei para aprender.

255
- E que lição seria esta?

- A humildade. Eu aprendi que o orgulho é o último vício do qual um bom


homem consegue e deve se livrar. A lição foi dura para mim, mas eu aprendi
bem com os meus erros.

- Tu tocas meu coração com essas palavras.

- Você não tem coração, Baal.

- Mas tu tens, e eu irei destruí-lo agora mesmo.

- Não será tão fácil, pois eu também conheço todas as tuas técnicas.

- Mas esta não é minha.

[i]Gladius Dei[/i]! (Espada de Deus)

Erguendo o braço esquerdo, Baal concentrou uma quantidade absurda


de energia, e depois desceu o braço com grande velocidade, fazendo o cutelo
da sua mão cortar o ar com uma potência assombrosa. O alvo era Girtab, e era
de se esperar que ele fosse tentar uma esquiva, mas não foi isso o que ele fez.

[i]Gladius Dei[/i]! (Espada de Deus)

O Grande Mestre lançou-se contra Baal, chegando exatamente a sua


frente, e fez o mesmo movimento que ele havia feito, com uma rapidez
inesperada. Girtab atacava com o braço direito, de modo que seu braço veio
por cima do braço esquerdo de Baal, inutilizando o golpe ao lançá-lo a força
para baixo, enquanto o seu golpe vinha por cima, atingindo Baal por cima do
ombro e abrindo-lhe um corte profundo.

Em contrapartida, um largo corte linear, de grande profundidade, havia


sido feito exatamente no local para onde o golpe de Baal tinha sido desviado,

256
de modo que agora era possível ver uma parte das entranhas da colina onde o
Santuário se localizava,

- MALDITOOO! – exclamou Baal em um misto de fúria e dor, pulando para trás


e se afastando de Girtab.

Após isso, porém, Baal começou a rir, e era uma gargalhada


assustadora.

- Por que você está rindo? – quis saber o líder do Santuário, com um olhar
intrigado. – Por um acaso a dor te dá algum prazer, ou isso é apenas a loucura
que antecede a morte?

- Rio porque tu estás fraco demais, Girtab.

- O corte no seu ombro mostra o contrário.

- Não. O corte no meu ombro confirma isso. O teu golpe só sobrepujou o meu
devido ao ângulo, não devido ao poder. Eu não estou trajando armadura
alguma, e mesmo assim teu golpe não foi capaz de amputar-me o membro.

Girtab ficou encarando-o em silêncio por algum tempo, como que


medindo as palavras do inimigo e o que havia ocorrido até então. Será que
Baal estava realmente certo, ou aquilo havia sido uma simples casualidade?
Foi Baal quem quebrou o longo silêncio que havia se instaurado.

- Diga-me, como tu aprendeste este golpe? Essa técnica pertence ao Virtus


Francesco, e eu só sei utilizá-la por que tenho acesso a todas as lembranças e
conhecimentos desse corpo.

- Simples, Baal – disse Girtab casualmente, como se estivesse explicando a


um estranho como chegar na loja ao fim da quadra - Essa técnica é
exatamente igual a que foi desenvolvida por um Virtus que eu conheci há muito

257
tempo. Seu nome era Jacques De Molay, e essa técnica ele aprendeu aqui no
Santuário de Atena com Deneb de Capricórnio, há mais de duzentos anos.

- Entendo agora – comentou Baal. - Tu já conhecias esse golpe com tamanha


precisão que foste capaz de reproduzi-lo perfeitamente, correto?

- Exato. Eu já vi dezenas de vezes os Cavaleiros de Ouro de Capricórnio


utilizarem a técnica que deu base a essa técnica que você utilizou, de modo
que não me foi difícil reproduzi-la, muito embora tenha sido a primeira vez que
eu a utilizei. Talvez tenha sido por isso que eu não consegui arrancar o seu
braço, mas podemos tentar novamente se você quiser, o que me diz?

O tom provocativo e jocoso que Girtab usara não surtiu o efeito


necessário. Ele mesmo sentira que seu golpe saíra mais fraco do que o
esperado, mas ele não iria admitir isso na frente de um inimigo, em especial de
um inimigo mortalmente perigoso como Baal.

- Responda-me, Girtab: quando tu descobriste que eu estava no Santuário, de


posse desse corpo?

- Eu tive uma leve suspeita quando Apep foi descoberto. Você não seria capaz
de arriscar seu plano de infiltração enviando alguém tão estúpido quanto Apep.
Então, eu fiquei vigilante, e a certeza veio quando você enfrentou Aloccer.

- Claro, e tu percebeste um enorme poder naquele dia, e associaste isso a mim


– concluiu Baal com um sorriso orgulhoso.

- Não – retorquiu o Grande Mestre com simplicidade. – Você teve um


autocontrole fantástico naquela batalha, e não foi o seu poder que te
denunciou.

- O que foi então?

258
- Foi sua burrice – disse Girtab, e agora ele se jogara novamente sobre o
inimigo, desferindo uma série de socos.

“[i]Você vai se surpreender com o que esse corpo velho ainda é capaz
de fazer.[/i] As palavras do Grande Mestre ecoaram na memória de Baal, e
agora ele percebia que elas não haviam sido ditas em vão, pois aquele corpo
velho estava se mostrando capaz de mais coisas do que o esperado. A
velocidade, a potência e a precisão dos golpes do escorpiano eram
assombrosas, algo inesperado para alguém de idade tão avançada. Ainda
assim, mesmo com o braço profundamente ferido, Baal esquivava-se e contra-
atacava de forma esplêndida. Era um embate fantástico, mas não havia
expectadores.

Ninguém viu quando Girtab, após uma série de socos cruzados, ergueu
sua perna esquerda em um ângulo reto perfeito, não acertando o maxilar
inferior de Baal por menos de um milímetro, pois este jogou o corpo
pesadamente para trás, descrevendo um salto mortal que, além de
proporcionar-lhe uma esquiva no instante derradeiro, proporcionou-lhe a
chance de acertar o peito de Girtab com as pernas no momento em que ele
virava no ar.

Também não havia ninguém para ver como Girtab fora rápido em sua
reação ao ser atingido por Baal, agarrando as duas pernas do adversário no
momento em que elas tocaram o seu peito e jogavam-no para trás. Valendo-se
de sua própria força muscular e da força de propulsão gerada pelo golpe de
Baal, o Grande Mestre arremessou o adversário na mesma direção, em uma
rota ascendente, fazendo com que o corpo do demônio se chocasse contra
uma das colunas de mármore que sustentavam o teto da Sala do Grande
Mestre.

Não houve testemunhas da forma como Baal estatelou-se, com violência


extrema, contra o grande cilindro de mármore próximo à entrada da Sala de
Meditação, não o quebrando completamente por pouco, e nem de quando ele
estava prestes cair esparramado no chão e girou habilmente no ar para cair de

259
pé, juntando suas mãos – palma a palma -, como alguém que se prepara para
rezar.

Girtab já estava a caminho novamente, com o indicador esquerdo em


riste, preparado para desferir sua técnica principal, mas Baal foi mais rápido.

[i]Yariçap Ilah[/i]! (Raio Divino)

Uma tempestade de raios pareceu se formar entre as palmas de Baal


quando ele afastou levemente as mãos. Uma aura negra envolvia seu corpo, e
os lampejos azulados dos raios assumiam um tom sinistro, como uma
tempestade violenta em um céu noturno e sem estrelas. Os raios partiram de
encontro ao corpo de Girtab, e ele estendeu as duas mãos para evitá-los,
concentrando uma grande quantidade de energia a sua frente.

Mas os raios de Baal não se limitaram a atacar o corpo do adversário:


tudo era um alvo. As belas cortinas, de um pesado veludo vermelho, que por
tanto tempo haviam contrastado suntuosamente com o branco marmóreo que
predominava na Sala do Grande Mestre, agora ardiam em chamas. As colunas
em estilo dórico, robustas e imponentes, fendiam uma a uma, produzindo um
estalido seco a cada pedaço que desmoronava.

O próprio trono do Grande Mestre havia caído, desprovido de seu calço


dianteiro direito, que tinha sido atingido por um dos primeiros raios lançados
por Baal. Até mesmo o simples tripé de cedro pintado de branco, que servira de
criado mudo para Girtab por séculos e séculos, havia sido alvejado por um dos
raios, e agora ardia em chamas, queimando junto os seus acompanhantes
usuais: o velho o cálice de cedro e o belo cesto de vime envernizado, sempre
carregado de figos (a fruta favorita do Grande Mestre). O belo salão do líder
dos Cavaleiros de Atena estava se destruindo, pois era o palco de uma batalha
de proporções maiores do que ele poderia abrigar.

- Tu não podes resistir eternamente, Girtab – bradou Baal, intensificando a


potência do seu golpe.

260
- E não pretendo – respondeu-lhe ele, com a voz firme em meio ao esforço
depreendido para conter o poder do inimigo. – Já vivi por muito tempo, e o
simples vislumbre de uma batalha que se estenda por toda a eternidade me
causa cansaço.

- Então tu irás te render à morte?

- Não. Eu irei matar você o mais rápido possível, assim eu não preciso ficar
mais tempo nessa situação lastimável. Entretanto, esse lugar não é o palco
adequado para a nossa batalha, pois você não é digno dele.

- Então tu queres fugir para outro lugar.

- Não é uma fuga, mas sim uma transferência do campo de batalha.

- Acaso tu achas que eu irei concordar em sair daqui, do ceio do Santuário de


Atena.

- Sim, pois é um local do seu interesse.

- E que local seria este que pode me interessar?

- No local onde antes existia o seu principal templo na Babilônia – disse Girtab
de forma direta.

- Mas esse é...

- É o local onde travamos a nossa última batalha há mais de mil anos –


completou o Grande Mestre. – Será lá que eu te derrotarei mais uma vez,
mostrando sua fraqueza onde antes você foi venerado. O que me diz?

Girtab havia lançado a isca, mas já sabia da resposta antes mesmo de


proferi-la. Baal jamais se recusaria a tentar limpar sua honra e o seu orgulho no

261
local onde ele fora mais humilhado em toda sua vida. Além disso, sair do
Santuário, agora que ele vira que Girtab estava em condições de resistir a uma
dura batalha, seria uma atitude sensata, já que ele conhecia o risco de ter de
enfrentar todos os outros Cavaleiros de Ouro se estivesse muito desgastado
pela luta contra o Grande Mestre.

- Eu concordo – disse Baal, e os raios cessaram. – Mas acho que os teus


guerreiros não irão concordar de bom grado que eu saia do Santuário de
Atena, pois eu ouvi dizer que é impossível entrar ou sair daqui sem ser pela
passagem através das Doze Casas Zodiacais.

- Para a maioria sim, mas não para todos. Salomão de Libra irá nos enviar até
lá.

- Agora percebo – disse Baal após alguns segundos -, que tu já havias


planejado tudo isso, pois fizeste questão de deixar o libriano por aqui.

- Sim – afirmou Girtab, sem tentar disfarçar que tudo ocorrera de caso
pensado.

- Mas, por qual motivo tu não me levaste para fora daqui enquanto ainda não
tinhas revelado que conhecia minha identidade verdadeira? Eu teria ido
contigo, e poderíamos ter lutado em outro local qualquer, sem a necessidade
de toda esta pantomima.

- Eu escolhi fazer isso aqui por dois motivos. O primeiro era testar sua força,
pois talvez você não pudesse ter acesso total ao seu poder, o que me permitiria
acabar com você por aqui mesmo, e aprisioná-lo onde nenhum inimigo poderia
libertá-lo, já que sempre haveria um vigia poderoso para garantir que você
permaneceria aprisionado.

“Entretanto, isso já não será possível, pois você escolheu um corpo forte e
poderoso, tornando-se um receptáculo perfeito, e te dando plenas condições

262
para batalha. Assim, o melhor é que lutemos em outro lugar, onde nossa
batalha causará menos destruição.”

- E qual seria o teu segundo motivo?

- Você já vai saber.

E então Girtab elevou sua energia, fazendo com que uma aura dourada
e pulsante envolvesse seu corpo, emitindo uma ressonância leve e constante.
Baal percebeu que, embora sem grande intensidade, o cosmo do Grande
Mestre pareceu derrubar uma espécie de barreira que envolvia o local onde
estavam, e começou a envolver por completo todo o Santuário.

Da Casa de Áries a Casa de Peixes. Do portão de acesso no sopé da


colina até Star Hill. Das arenas inferiores até o grande coliseu. Das guaritas até
as casas de repouso. O Santuário inteiro havia sido envolvido pela energia do
Grande Mestre, e todos os que lá estavam - desde os guardas e soldados
rasos até os poderosos Cavaleiros de Ouro – podiam sentir a presença do seu
líder, e foi então que, com surpresa, todos ouviram a sua voz.

- Meus bravos e valorosos irmãos, que juraram lealdade a Atena e a este


sagrado Santuário. Por muito tempo eu guiei os exércitos de Atena à vitória, e
não foram poucas as vezes em que eu vi, com imenso pesar e tristeza,
guerreiros bravos e valorosos perecerem em meio às tantas Guerras Santas
pelas quais passamos.

“Em meio a todo este tempo que se passou, enquanto muitos iam para o
descanso eterno eu continuei a frente de tudo o que se passou no Santuário, e
isso acabou despertando a admiração e a curiosidade de muitos, que
passaram a me considerar como invencível e até mesmo imortal. Quero dizer a
vocês, minhas valorosas crianças, e peço que permitam a esse velho o
desfrute de poder chamá-los assim, que chegou o momento de eu deixar o
meu posto, e passá-lo para mãos mais jovens e, talvez, mais hábeis do que as
minhas.

263
Contrariando o que muitos de vocês esperavam, não nomeio nem Cristos de
Peixes e nem Gerion de Touro como meus sucessores. Eu escolho Maria de
Virgem como o novo Grande Mestre do Santuário de Atena, e nomeio em seu
lugar, como o novo Cavaleiro de Ouro de Virgem e guardião da sexta Casa
Zodiacal o até então Cavaleiro de Prata de Triângulo, Izzak, que é aprendiz da
própria Maria.”

O Grande Mestre suspirou profundamente, como que tomando fôlego


para o que estava por vir. A parte mais fácil já havia sido feita, e a próxima
parte de sua fala aos membros do Santuário era, talvez, a tarefa mais difícil de
todas as que ele desempenhara até então.

- Estas são minhas últimas ordens e decisões como Grande Mestre deste
Santuário, e abdico de minhas funções com a crença de que desempenhei um
bom papel até aqui. Mas não é por isso que resolvi comunicar-me com todos
vocês ao mesmo tempo. Meu objetivo é redimir-me de todos os erros que
cometi há centenas de anos, quando ainda era o Cavaleiro de Ouro de
Escorpião e lutei na Guerra Santa que explodiu após a morte de Yeshua, filho
de YHVH, que vocês conhecem pelo nome de Jesus Cristo.

“Ouçam o que eu tenho a dizer, pesem minhas ações e decidam, em seus


corações, se eu mereço o perdão de vocês e se ainda sou digno do respeito
que vocês me dedicam, pois eu sei que a confiança de vocês em mim já estará
abalada após o término do meu relato. Esse é, também, um dos motivos de eu
abrir mão das minhas funções e passar meu cargo a outro, pois é impossível
liderar sem ser merecedor do respeito dos que são liderados. Agora, escutem-
me com atenção.”

- Tu realmente vais fazer isso? – indagou Baal com visível surpresa.

- Há mais de mil anos, quando eu era o Cavaleiro de Escorpião – começou


Girtab sem dar atenção ao questionamento feito pelo oponente -, um homem
chamado Sidharta, o Cavaleiro de Virgem da minha geração, viu uma estrela

264
brilhando fortemente próximo à constelação de Peixes, e ele havia dito que
assim que duas estações se passassem, aquela estrela se tornaria uma estrela
cadente, e que seu trajeto no céu indicaria o local onde nasceria, pela primeira
vez desde tempos imemoriais, a reencarnação do filho daquele que dividia o
poder supremo com Zeus.

“Eu não entendi do que ele falava, mas, assim que se passou o resto do verão
e todo o outono, e o inverno já estava nas suas últimas semanas, uma estrela
cadente apareceu no céu, iniciando seu trajeto próximo à constelação de
Peixes, exatamente onde houvera uma estrela quase seis meses antes.

Eu corri até Sidharta, e pedi que ele me explicasse melhor o que ele tinha dito
daquela vez há seis meses, e ele me falou sobre YHVH e Zeus, de como eles
se retiraram do comando do mundo devido à tristeza e decepção que tiveram
com a humanidade. Falou-me sobre a batalha que se seguiu no plano celeste,
onde Yeshua e Atena tiveram de unir forças para enfrentar um único inimigo, e
de como ele fora aprisionado por ambos, já que nem juntos eles tinham poder
de destruir uma criatura como Lúcifer.

Confesso que, naquele dia, eu fiquei seduzido com a história que me fora
contada, pois eu não conseguia imaginar um inimigo poderoso o suficiente para
obrigar Atena a unir forças com outra divindade. Os anos foram passando, e
notícias desse filho de YHVH começaram a chegar até o Santuário, de modo
que o Grande Mestre Aslam resolveu enviar uma comitiva de Cavaleiros para
conhecê-lo, e ver se, de fato, se tratava de quem diziam que era.

Eu fui um desses enviados, junto com o próprio Sidharta de Virgem e Davi de


Triângulo. Eu esperava encontrar um homem bravo e valoroso, com um poder
fantástico e um cosmo aterrador, preparado para qualquer tipo de guerra que
se seguisse, tal qual Atena sempre estava. Minha decepção não poderia ter
sido maior ao me deparar com um jovem de aparência comum: altura mediana,
magro para sua idade, pele acobreada devido ao sol da Judéia, cabelos
encarapinhados e negros. Mas devo admitir que havia algo que mexia comigo:
os olhos dele. Não falo da cor, pois eram olhos amendoados comuns a quase

265
todos os judeus, mas sim da calma e da amabilidade que aqueles olhos
ostentavam.

Ele nos recebeu com alegria e simplicidade, sem nenhum exagero de palavras
corteses para inflar o nosso ego, e nem mesmo nenhum tipo de opulência
naquilo que nos foi oferecido para comer após a viagem que fizemos. Embora
sua família tivesse posses, pois seu pai humano fora um dos Juízes da Tribo
dos judeus e um habilidoso carpinteiro, uma profissão de prestígio naquela
época, ele nos ofereceu frutas, pão, vinho doce e água, e fez um dos gestos
mais inesperados de alguém de tão alto poder: enquanto comíamos e
bebíamos a sua mesa, ele lavava os nossos pés com água morna e óleos
aromáticos.

Em minha extrema arrogância, jamais poderia imaginar que o filho do deus que
rivalizava em poder com o próprio Zeus pudesse agir daquela forma. Falamos,
naquele dia, sobre as Guerras Santas pelas quais Atena passou nos milhares
de anos em que protegeu a humanidade sozinha, e falamos sobre a ameaça
de uma nova batalha, que o Grande Mestre havia vislumbrado em Star Hill.
Para nossa surpresa, ele admitiu saber que uma batalha de grandes
proporções estava para explodir, uma de proporções não vistas desde muito
tempo, quando Lúcifer ergueu seu exército em revolta, pois o próprio Lúcifer
poderia retornar se os inimigos triunfassem.”

- Então ele sabia! – falou Baal com visível espanto, pois até mesmo ele estava
ouvindo com atenção o relato de Girtab. – Ele sabia mesmo antes de eu iniciar
os ataques.

- Perguntamos a Yeshua se ele já estava preparado para a batalha –


prosseguiu o Grande Mestre absorto em seu relato, como se não tivesse
escutado o comentário de Baal -, mas ele nos disse que ele não lutaria, pois
ele não veio como um guerreiro, mas sim como um pacificador. Ele nos disse
que seu objetivo era espalhar uma mensagem de amor, para que a
humanidade se tornasse melhor e atraísse, novamente, as preocupações e o
afeto de seu pai e de Zeus.

266
“Eu argumentei com ele, dizendo que o que precisávamos era de guerreiros
para combater essa ameaça, dizendo que a ajuda dele era essencial, pois
somente a união do poder dele com Atena possibilitou que Lúcifer fosse banido
e que, se havia a possibilidade dele retornar, era essencial que ele estivesse
pronto para a batalha. Yeshua respondeu-me, com extrema calma e gentileza,
que nem todas as batalhas se ganham por meio da luta, e que o alvo de sua
vinda à Terra não era o exército de demônios que se reunia, mas sim o
coração dos homens, em especial o coração de homens como eu, que eram
cheios de fúria e orgulho.

Eu me levantei encolerizado no momento em que ele me disse isso,


chamando-o de fraco e covarde, e só não o ataquei fisicamente porque,
mesmo em meio a minha fúria, ele não demonstrou medo, raiva e nem mesmo
desprezo. Ele continuou me fitando com os mesmos olhos calmos e amáveis.
Davi e Sidharta pediram perdão pelo meu comportamento, e tentaram me
acalmar, embora sem sucesso. Ao regressarmos ao Santuário, o Grande
Mestre mostrou-se inflexível comigo, e suas palavras feriram profundamente o
meu orgulho como guerreiro. Além do discurso, ele me aprisionou no Cabo
Súnion por seis meses, para que eu refletisse sobre os meus erros. Foi a
primeira vez que fui para lá.

Que terrível lugar é aquele. Os dias são muito quentes, e a umidade torna
aquela prisão um inferno lamacento e fétido. Durante a noite, quando a maré
sobe e a temperatura cai, não é possível dormir, pois há o risco de se afogar
por algum descuido, ou mesmo morrer devido ao frio excessivo. Naquele
tempo em que fiquei aprisionado, eu jurei que me vingaria daquela humilhação.

Quando fui liberto, não fingi nenhum arrependimento ou respeito pela


decisão do Grande Mestre, pois o meu olhar carregado de ódio não permitiria
tal dissimulação, de modo que eu apenas me apresentei a ele e permaneci em
silêncio enquanto ele discursava sobre as virtudes de um verdadeiro guerreiro
de Atena. Mesmo em meu silêncio insolente, Mestre Aslam mostrou-se um

267
homem justo, e disse que eu já havia cumprido o meu castigo, embora sem
atingir o efeito esperado.

Alguns anos se passaram, e o Cabo Súnion logo me hospedaria


novamente. Notícias chegaram ao Santuário, falando sobre um inimigo
poderoso que reunia um exército de demônios no oriente árabe. Mestre Aslam
rapidamente destacou um pequeno grupo de guerreiros para irem averiguar
exatamente do que se tratava, mas ele mesmo não tinha grandes dúvidas
quanto ao propósito dos inimigos, que era libertar Lúcifer, o Portador da Luz.
Fui designado para ir junto com Sidharta, que agora assumira o posto de
principal auxiliar do Grande Mestre, pois Davi havia abdicado de seu posto
para seguir os ensinamentos de paz que Yeshua pregava.

Chegamos ao local onde deveria haver alguns inimigos, e foi quando


encontrei um demônio chamado Aloccer, o mesmo que tentou invadir o
Santuário recentemente e enfrentou Frixo de Áries. Sua técnica principal era
formidável, mas ele não tinha poder suficiente para fazer dela uma grande
ameaça a Sidharta ou a mim, e foi derrotado com facilidade. Eu estava prestes
a arrancar-lhe a cabeça quando apareceu um adversário de verdade.”

- Eu me recordo deste dia – falou Baal, que parecia tão imerso nas lembranças
quanto Girtab – Foi a primeira vez que te vi lutando.

- Azazel apareceu brandindo uma espada em chamas – continuou Girtab,


como se não tivesse sido interrompido -, e naquela época ele tinha possuído o
corpo de um oficial romano. Ele era poderoso, e Sidharta deu combate a ele,
fazendo com que eu percebesse a razão de o Grande Mestre sempre enviar-
me em missões com o Cavaleiro de Virgem. Era um guerreiro fantástico, com
uma variação de golpes assombrosa, causando extrema dificuldade a Azazel,
que tinha certa dificuldade contra os seus golpes psíquicos e espirituais.

“Infelizmente, uma das técnicas principais de Sidharta era baseada na


paralisação do adversário, mas Azazel era irrefreável, tal qual o fogo, que não
pode ser detido, apenas eliminado. Azazel lançou-se em um frenesi alucinado,

268
e mutilou Sidharta com sua espada, enquanto eu permaneci parado,
maravilhado com o poder dos dois. Sidharta ainda estava vivo, agonizando, já
sem um braço e o pé esquerdo, que haviam sido amputados por Azazel.

Foi então que eu me interpus aos dois, e comecei a lutar contra Azazel. Ele era
poderoso, mas eu estava no auge do meu poder e da minha sede por batalhas,
de modo que eu estava carregado do mesmo espírito assassino que ele, e não
arrefeci em momento algum. Muito pelo contrário: a cada golpe desferido,
minha energia parecia aumentar, e Azazel se viu em uma situação difícil contra
mim. Nesse momento eu percebi que não estávamos sozinhos, pois havia duas
pessoas acompanhando nossa batalha: um deles era Crios de Aquário, e o
outro eu desconhecia, mas podia sentir uma imensa energia emanando dele.

Azazel estava preparado para se lançar sobre mim novamente, mas aquele
estranho que nos observava deu-lhe uma única ordem, e ele abandonou o
campo de batalha. Assim que ele fugiu, eu fui até Sidharta que, embora ainda
vivo, estava ferido com gravidade. Eu analisei a situação e considerei, em um
julgamento estúpido e arrogante, que aquele homem mutilado não seria mais
de nenhuma utilidade ao Santuário de Atena, e me preparei para lançar minhas
Agulhas Escarlate contra ele, para por fim a sua vida e ao seu sofrimento, o
que eu considerei uma atitude sensata, embora eu soubesse que, no fundo do
meu coração, meu real desejo era vingança pelo que eu passei por seis meses.

Vendo isso, e pressentindo minha intenção, Crios desceu sobre mim como uma
feroz e rigorosa tempestade de inverno, e parecia impossível que alguém tão
calmo e centrado como ele pudesse se tornar tão explosivo em sua fúria,
embora eu já soubesse de sua reputação como um guerreiro poderoso. Eu não
quis entender a razão daquilo, e preferi ignorar a razão dos meus atos ao invés
de considerar que minha atitude havia sido um erro, preferindo acreditar que o
Cavaleiro de Aquário havia se voltado contra mim, por uma razão que eu não
estava disposto a saber, pois só o que eu queria era lutar contra ele e, de
alguma forma, descontar minha raiva por ele não ter tentado me livrar do meu
confinamento no Cabo Súnion, já que ele sempre havia sido o meu melhor
amigo.

269
Ele tentou conversar comigo antes de começarmos a lutar, mas eu não estava
disposto a ouvir nada, nenhum discurso sobre lealdade, fraternidade ou honra:
eu só queria...”

E então Girtab fez uma longa pausa, e ninguém, a não ser Baal, viu as
lágrimas que correram copiosamente dos seus olhos. Uma tristeza, reprimida
há centenas de anos, aflorou no Grande Mestre, e suas palavras seguiram
embargadas pela emoção.

- Eu só queria destruí-lo, acabar com ele com minhas mãos, e descontar um


pouco do ressentimento que eu guardava. Crios era um oponente poderoso, e
conhecia quase todas as minhas técnicas, assim como eu conhecia as dele.
Mesmo consumido pela raiva e pelo desejo de machucá-lo, eu não vi ódio no
Cavaleiro de Aquário da minha geração, apenas decepção, e isso me deixava
ainda mais furioso.

“Quem ele pensava que era para me julgar, para sentir-se decepcionado pelos
meus atos? Eu estava decidido a combatê-lo até o fim, mas eu havia me
esquecido que não éramos apenas nós que estávamos ali. O cosmo de
Sidharta cresceu rapidamente, e eu fui envolvido por ele. Logo ele começou a
entoar o seu mantra, e eu percebi que ele estava prestes a lançar sua técnica
de paralisação contra mim. Concentrei toda minha energia para resistir a ele, e
estava me saindo bem, até que Crios também resolveu tentar me paralisar.

Deuses, como eu era poderoso! Mesmo com aqueles dois valorosos Cavaleiros
de Ouro juntando suas energias para me deterem, eles não conseguiram. Eu já
preparava meu contra-ataque, e foi então que mais um cosmo se juntou ao
deles, e isso foi decisivo para que eu finalmente fosse detido.

Davi, o ex-Cavaleiro de Prata de Triângulo, havia aparecido do nada, e havia


somado sua técnica de paralisação às técnicas de Crios e Sidharta. Sem ter
como me mover, fui levado até o Grande Mestre Aslam, e eu vi a fúria do Leão
Dourado pela primeira vez. Ele não me agrediu fisicamente, mas acho que foi

270
apenas por Atena estar presente. Meu castigo foi o aprisionamento perpétuo no
Cabo Súnion!

E ele fez uma nova pausa. Girtab conseguia imaginar as expressões de


desprezo e surpresa nos rostos dos Cavaleiros de Ouro. Ele nunca falara sobre
isso com ninguém, e não sobrara ninguém naquela Guerra Santa para poder
contar como tudo acontecera.

- Foi no Cabo Súnion que eu conheci Baal, que se apresentou de uma forma
cortês e amigável. Ele elogiou o meu poder, e se mostrou inconformado com o
que acontecera comigo. Como podia alguém, em sã consciência, privar seus
exércitos de alguém como eu? Então ele me convidou para ingressar no seu
exército.

“Eu neguei imediatamente, dizendo-lhe que eu era um Cavaleiro de Atena, e


que jamais me uniria ao inimigo. Baal limitou-se a esboçar um leve e educado
sorriso, e antes de se retirar ele me disse: ‘Tua lealdade é notável, pena que
Atena não tenha dado nenhum valor a isso...’”

- “E tenha permitido que tu viesses para cá” – concluiu Baal ao mesmo tempo
em que Girtab falava isso a todos do Santuário. – Tu não te esqueceste de
nada disso, mesmo depois de tanto tempo?

- Baal voltou outras vezes, e acabou se tornando a única companhia que eu


tinha. Ele me falou sobre o imenso poder de Lúcifer, sobre como ele havia feito
tudo o que fez apenas para purificar a Terra e a humanidade, e de como
Yeshua e Atena mostraram não se importar com os rumos que a humanidade
havia tomado.

“Aquilo começou a permear a minha mente, e meu fascínio e ambição pelo


poder começaram a me fazer considerar seriamente aquilo. A decisão
derradeira, porém, veio quando o Grande Mestre veio me visitar, e se deparou
com Baal. Os dois iniciaram uma breve luta, mas Baal preparou-se para se
retirar, dizendo que o objetivo dele não era matar os guerreiros de Atena, pois

271
eles poderiam se juntar ao seu exército. Mestre Aslam, porém, não era o tipo
de homem que permitiria que o inimigo se retirasse do campo de batalha, e ele
seguiu atacando Baal, que se limitou a se defender, falando-me o tempo todo
que aquilo era uma prova de como os guerreiros de Atena não se importavam
com a paz, pois, caso se importassem, estariam interessados unir forças pelo
bem da Terra e da humanidade ao invés de partirem para a batalha.

Em meio à batalha, Baal desapareceu, e disse para que eu pensasse no que


havíamos conversado, e que, se eu aceitasse a proposta, deveria procurá-lo no
Egito. Aslam ficou em silêncio por algum tempo, e preparava-se para ir embora
quando eu me decidi: era hora de entrar naquela Guerra Santa, e se apenas
um lado queria a minha força, esse lado iria tê-la. Eu elevei o meu cosmo ao
máximo, como eu nunca antes havia elevado, e consegui sobrepujar a barreira
cósmica que me mantinha aprisionado. Eu fui, e continuo sendo, a única
pessoa que escapou do Cabo Súnion.

Mas eu não iria fugir com facilidade, e o adversário que se apresentou para
impedir a minha fuga foi o mais difícil que poderia ter aparecido: o próprio
Grande Mestre. Foi a batalha mais dura que eu já enfrentei, pois o velho Leão
Dourado era um combatente experiente e poderoso, que lutou ao lado do meu
mestre e conhecia todas as técnicas que ele havia me ensinado, enquanto eu
jamais havia visto nenhum Cavaleiro de Leão em combate. Mas, no fim, nem
mesmo a experiência e a habilidade dele foram suficientes, e eu o matei lá
mesmo, embora tenha saído com graves ferimentos.

Fui até o Egito, e entrei para o exército de Baal, que me colocou como seu
principal tenente, em posição inferior apenas a de Azazel, Asmodeus e
Mammon, que jamais aceitariam um humano em posição hierárquica
equivalente a deles, algo que o próprio Baal, também, jamais permitiria. Com a
morte do Mestre Aslam, foi Davi de Triângulo quem assumiu como Grande
Mestre, renovando os seus votos de lealdade a Atena.

Ao lado do exército de Baal, eu combati e matei muitos daqueles eu havia


jurado ter como irmãos, guerreiros formidáveis como Cernunos de Capricórnio

272
e Pólux de Gêmeos, mas nada foi mais difícil do que ter de confrontar o meu
melhor amigo, Crios de Aquário. Eu havia me tornado mais experiente, mais
consciente e prudente quanto ao uso do meu poder, e meu cosmo ardia muito
mais forte do que o dele, de modo que eu poderia tê-la resolvido assim que
começamos.

O ódio em meu coração, a raiva pelo que eu havia passado, o desejo de poder,
tudo isso havia diminuído a cada um dos irmãos que eu matei, pois todos eles
estampavam em seu rosto uma profunda decepção. Baal sempre era educado
e gentil comigo, mas começava a se mostrar cada vez mais cruel, e um
assassino disposto a matar quem quer que se pusesse em seu caminho.

Recordo-me que, na batalha contra Crios, ele chorou enquanto lutávamos, um


choro silencioso, com lágrimas pesadas e carregadas de tristeza. Ele não tinha
como me vencer, e ele bem sabia disso, mas não deixou de se esforçar em
nenhum momento. Baal chegou naquele momento, e disse-me para acabar
com Crios de uma vê, pois um novo inimigo se aproximava, um
verdadeiramente digno de combate: o Grande Mestre.

Eu apliquei um golpe que deixou Crios desacordado, e me concentrei no meu


novo oponente. Davi era um Cavaleiro de Prata, mas possuía técnicas
esplêndidas, que poderiam ter liquidado qualquer Cavaleiro de Ouro. O único
problema é que eu nunca fui como qualquer outro Cavaleiro de Ouro, e mesmo
ele não teve como se opor a mim. Quando eu me preparava para dar o golpe
final, Crios se interpôs, e disso que estava profundamente decepcionado
comigo, com o que eu havia me tornado. Eu lhe disse que eu havia me tornado
poderoso, e ele me respondeu que eu havia me tornado um demônio, o tipo de
criatura assassina que eu tinha jurado combater.

Aquilo mexeu comigo, e Baal percebeu que Crios poderia abalar minha
confiança e minha motivação em seguir nas hostes de Lúcifer, e foi então que
ele cometeu o maior erro da vida dele: tentar matar Crios de Aquário. Aquilo fez
com que minha venda caísse dos olhos, e só então eu percebi o que eu estava

273
fazendo. Melhor dizendo, foi só então que eu aceitei os meus erros e percebi,
na totalidade, o que eu estava fazendo, no que eu havia me transformado.

Crios não morreu, pois Davi fora rápido o suficiente para, junto comigo, criar
uma defesa efetiva ao golpe de Baal. Ele percebeu que eu havia mudado de
lado, e viu em mim uma ameaça, pois eu sabia de todos os seus planos, bem
como de todo o tipo de informação que o Santuário poderia precisar para
acabar com ele e seus exércitos. Mas Baal sempre foi prudente, e nem mesmo
ele iria tentar lutar contra Davi, Crios e eu, pois ele já havia me visto lutar
muitas vezes, e também percebera que Davi não era um simples guerreiro.

Ele fugiu e, quando apenas nós três ficamos ali, eu chorei como uma criança, e
finalmente eu me arrependi dos meus atos, assumi meus erros, e me
prontifiquei a ir para o Cabo Súnion por toda a minha vida, para pagar pelos
meus pecados. Davi, como Grande Mestre do Santuário, disse-me eu não era
digno de escolher o meu próprio castigo, e que eu devia desculpas a Atena
pelos meus atos. Entretanto, ele me disse, eu não era o tipo de guerreiro que
deveria ser posto de lado tão facilmente em uma situação como aquela, pois
meu poder e meu conhecimento sobre o inimigo poderiam ser vitais. De toda
forma, eu precisava ser punido.

Chegando ao Santuário, fui recebido com hostilidade por todos os que antes
me admiravam, e não resisti ou retribui a nenhum tipo de agressão verbal ou
física que tenha sofrido, pois Davi disse que minha penitência seria o
julgamento dos demais Cavaleiros de Ouro e que, se eu chegasse com vida
até a sala dele, aí eu dependeria do perdão de Atena para poder seguir adiante
como Cavaleiro de Ouro de Escorpião. Por sorte, o cosmo de Atena me
protegeu algumas vezes, e eu acabei sobrevivendo aos castigos que me forma
impostos. Mesmo com graves ferimentos, consegui chegar até Atena e pedir o
seu perdão, que me foi concedido com um sorriso. Mas Atena não estava
sozinha: Yeshua estava por lá, e ele me olhava com o mesmo olhar pacífico
daquela vez, mas eu podia perceber algo diferente nele.”

274
- Então tu teves de te humilhar para voltar a este Santuário? – indagou Baal
com desdém – Que coisa vergonhosa, um guerreiro poderoso implorar para
lutar ao lado dos mais fracos.

“Descobri que Atena e Yeshua haviam conversado muitas vezes, e que ela
havia o convencido a lutar, a criar um exército, pois somente assim eles
poderiam ter alguma chance contra Baal. Sete bravos e poderosos homens,
alguns dentre os seus doze apóstolos, foram escolhidos por Yeshua como os
seus primeiros Virtus, o seu exército terrestre. O líder deles era Pedro, e muitas
foram as vezes em que ele e Davi se encontraram para trocar informações e
planos, tal qual Inocêncio e eu fizemos.

O resto da história vocês conhecem: Yeshua se entregou em sacrifício pela


humanidade, para tentar passar sua mensagem de amor. Baal considerou
aquilo como a vitória garantida, e investiu contra nós com todas as forças que
tinha. Quase todos foram dizimados nas batalhas que se seguiram, e em dois
dias nós vivemos a verdadeira Guerra Santa daquela época, pois tudo o que
ocorrera antes não era nem mesmo uma prévia do que estava por vir.

Felizmente, eu conhecia os planos de Baal, e nós sempre estávamos um passo


a frente dele, o que nos possibilitou algumas vitórias importantes no ponto de
vista estratégico, mas com baixas cada vez maiores nas tropas do Santuário.
Em outras palavras, nossas vitórias eram “Vitórias de Pirro”. Chegou um
momento, no dia do Shabat, em que haviam restado apenas dois guerreiros do
lado do Santuário e um do lado de Yeshua: Davi, eu e Pedro. Os demônios que
restaram para nos opor resistência eram Baal e Asmodeus, de modo que o
combate que estava por vir era equilibradíssimo.

Asmodeus enfrentou o Pedro, que havia sido escolhido com o primeiro Grande
Mestre do Santuário de Yeshua, mesmo ainda não havendo nenhum Santuário
em Roma. Pedro seguiu Asmodeus até a ilha de Citera, e lá eles travaram um
combate equilibrado, mas Pedro acabou vencendo e tentou aprisioná-lo
utilizando o [i]Davi Sigillum[/i], uma técnica que o próprio Davi havia lhe
ensinado. Porém, Pedro não tinha poder suficiente para usar essa técnica de

275
forma completa, e Davi teve de deixar Atena sozinha para ir auxiliá-lo, pois o
Grande Mestre era o último guardião no Santuário, e somente ele possuía o
poder e o conhecimento total usar o selamento que seria decisivo naquela
batalha.

O combinado seria que ele viesse para selar Baal quando eu estivesse para
derrota-lo, pois eu sabia que tinha poder para isso. Nós dois achávamos que
Pedro teria poder para aprisionar Asmodeus, mas quando ele não conseguiu
isso, Davi mudou os seus planos na última hora, e resolveu se arriscar e ir em
socorro de Pedro. Baal e eu travávamos a nossa batalha, algo sem
precedentes até então, superior a qualquer Guerra Santa que tenha sido
travada posteriormente. Com imensa dificuldade eu consegui derrotar Baal, e
chamei Davi para aprisioná-lo, sem saber que ele já havia utilizado a mesma
técnica apenas poucos segundos antes.

Mas isso não tirou-lhe a coragem, e Davi fez o que tinha de ser feito, mesmo
sabendo dos riscos. Foi assim que, extremamente cansado depois de realizar
um esforço tão grande, Davi morreu, alertando-me de que chegaria o momento
em que o selo perderia poder, já que não fora utilizado com força total, e que
Asmodeus se libertaria no mesmo momento, pois a diferença de tempo entre
os dois aprisionamentos era tão pequena que eles agiriam em unidade. Davi
morreu nos meus braços e, mesmo ele tendo sido um Cavaleiro de Prata e
tendo sido menos poderoso do que eu, ele foi um Cavaleiro de Atena como eu
jamais fui ou serei, mesmo tendo vivido todos esses anos.

Por eu ser o único remanescente dos Cavaleiros do Santuário, Atena nomeou-


me como novo Grande Mestre, e me perdoou completamente por todos os
meus erros, dizendo que eu havia renascido, com um coração novo e cheio de
amor, pois a mensagem de Yeshua, aquela que eu tão rapidamente havia
posto de lado, havia se arraigado fundo em meu coração, e era isso que faria
de mim um homem melhor.

Depois, eu fui um dos poucos para os quais Yeshua apareceu quando seu
corpo ressuscitou, e ele me delegou uma missão importante, a mesma que

276
Atena havia me delegado: ficar vigilante, pois Baal retonaria um dia, e somente
eu poderia ter uma chance contra ele. Eu argumentei dizendo que muito tempo
poderia se passar até que Baal voltasse, e eu já não estaria mais vivo. Yeshua
decidiu, então, que eu deveria viver até que esse dia chegasse, mas previu que
minha extensão de vida terminaria no mesmo dia em que eu derrotasse Baal
novamente. Foi somente hoje que eu percebi que ele estava certo, e suas
palavras se confirmaram de uma forma simples, pois nessa batalha, aqui na
minha sala, Baal destruiu, sem querer, o que me mantinha vivo por todos esses
anos.”

- Finalmente tu vais revelar como pudeste viver por todos estes anos? – e
havia uma curiosidade indisfarçável na voz de Baal.

- Muitas vezes vocês entraram em minha sala – continuou Girtab -, e me viram


sentado em meu trono, com o mesmo velho cálice de cedro nas mãos. Pois
este cálice, meus irmãos, foi um dos motivos de peregrinação e ambição de
muitos homens ao longo de centenas de anos: o Santo Graal esteve comigo
este tempo todo.

“Todos os dias em bebia água nele, e essa água renovava minhas energias,
deixando meu corpo quase imune ao efeito do passar dos anos. Eu envelheci
normalmente até os quarenta ou cinquenta anos, quando meu corpo ainda
gozava de seu vigor quase completo. Depois disso, meu corpo passou a
envelhecer muito lentamente, e julgo que ele não mudaria muito se mais cem
anos se passassem. Hoje, porém, Baal destruiu esse cálice, e minha hora de
morrer não demora a chegar. Por esse motivo, minhas últimas energias serão
usadas para derrotá-lo, e é por isso que já designei o meu sucessor, que deve
se encaminhar o quanto antes para esta sala, afim de assumir seu novo cargo
imediatamente, deixando sua antiga armadura para o seu sucessor.

Essa era a história que eu tinha que contar a vocês, uma confissão de todos os
meus erros, mas a mais pura verdade, uma verdade que eu evitei contar a
qualquer um durante longos e amargos anos. Julguem-me como quiserem, e
estão livres para amaldiçoarem o meu nome e a minha memória se quiserem.

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Não há nenhuma obrigação em recolher o meu corpo no campo de batalha
quando tudo estiver terminado, mas eu devo confessar que sempre esperei ser
enterrado dentro dos limites do Santuário, mesmo não merecendo um lugar
próximo a homens como Aslam, Crios e Davi. A escolha, agora, é de vocês.
Adeus.”

E então, o ex-Grande Mestre do Santuário de Atena abrandou seu


cosmo, e a ressonância cósmica cessou. Girtab e Baal ficaram em silêncio por
algum tempo, trocando um longo olhar, fomentado pelos anos e anos de
espera por essa batalha que estava por vir. Alguns segundos se passaram, e
Salomão de Libra apareceu, silencioso e austero como sempre. Ele não
pronunciou nenhuma palavra, limitando-se a esticar os dois braços para os
lados em um movimento largo e, elevando o seu cosmo, ele encontrou mão
com mão em uma sonora palma, e Baal e Girtab desapareceram dali naquele
instante.

Os dois velhos inimigos estavam de volta ao mesmo campo de batalha


onde haviam travado sua batalha decisiva há quase um milênio e meio, e uma
nova batalha lendária estava prestes a ter início. O Escorpião Imortal já não era
mais imortal, é verdade, mas ele continuava tão perigoso e poderoso quanto
antes, apenas com uma diferença: ele sabia que iria morrer, e não iria poupar
nenhum tipo de esforço para levar um acompanhante consigo.

- Estás preparado, Girtab? – perguntou Baal, já elevando o seu cosmo.

- Eu venho me preparando para isso há mais de mil anos, Baal – respondeu o


velho guerreiro com um sorriso, elevando seu cosmo tanto quanto o adversário
–, você não faz ideia.

E a batalha começou!

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[b]CAPÍTULO XXI: [i]A Última Esperança[/i][/b]

O deserto estava diferente. Foi a primeira coisa que Girtab pensou


quando contemplou o cenário onde se encontravam. Quando haviam lutado da
última vez, nos primeiros anos da era cristã, o deserto sumeriano era menos
árido e possuía numerosos templos espalhados por sua extensão, além de
pontos de descanso para as caravanas mercantes e alguns poços para que os
viajantes pudessem se refrescar. O clima também mudara, e um calor
escaldante fazia a areia projetar miragens, com poças de água tremeluzentes
estendendo-se de quando em quando na superfície arenosa.

- Estás preparado, Girtab? – perguntou Baal, já elevando o seu cosmo.

- Eu venho me preparando para isso há mais de mil anos, Baal – respondeu o


velho guerreiro com um sorriso, elevando seu cosmo tanto quanto o adversário
–, você não faz ideia.

O céu daquela vez, Girtab ainda lembrava, era azul e límpido, sem uma
única nuvem a maculá-lo, permitindo que o sol brilhasse em todo o seu
esplendor, sendo ele o único espectador daquela batalha que mudara os rumos
de toda uma era. Agora, uma nova batalha estava prestes a ter início, e ela
também implicaria no fim de uma era e no começo de uma nova, marcada
apenas por incertezas. Dessa vez, porém, o sol parecia não querer assistir ao
derramamento de sangue que estava por vir, e decidiu se ocultar atrás de uma
cortina de nuvens multicores: brancas, cinzas e negras.

Uma leve aragem soprava, fazendo o manto e os cabelos brancos do


ex-Grande Mestre tremeluziam com suavidade. O sorriso ainda estava
estampado em seu rosto velho e rugoso, mas os olhos contrastavam tanto com
a pele quanto com o sorriso, pois eles brilhavam com a jovialidade de mil anos
atrás, mas estavam carregados de tristeza e amargura.

279
Baal uniu as mãos, palma a palma, e concentrou sua energia. Mesmo
com o intenso calor daquela imensidão desértica, Girtab podia sentir um calor
maior irradiando do corpo do oponente, e ele já sabia o que estava por vir.

[i]Yariçap Ilah[/i]! (Raio Divino)

Desta vez o espetáculo elétrico foi mais intenso do que havia sido no
Santuário, embora sua potência não parecesse tão grande, uma vez que não
havia, no deserto, tantas coisas a serem destruídas com o impacto dos raios.
Baal estava concentrado em seu ataque, e viu seus raios atingirem Girtab em
cheio. Mas alguma coisa estava errada.

Por mais que ele alvejasse o oponente com incontáveis lampejos


elétricos, Girtab não se movia, e recebia toda a carga desprendida por Baal
sem parecer sofrer o menor dano. Aquilo deixou Baal consternado, e ele
intensificou sua energia, tornando seu ataque mais agressivo e mais
devastador, embora sem surtir nenhum efeito diferente.

- Ei! – ouviu o demônio às suas costas.

Baal virou-se rapidamente para ver quem o chamara, e foi surpreendido


por Girtab com o braço direito estendido para cima, retesado e firme, descendo
sobre ele como a lâmina de um carrasco. Ele tentou se esquivar, mas Girtab
havia previsto isso, de maneira que mesmo a esquiva não foi capaz de livrá-lo
do que estava por vir, pois o ponto mirado não era seu pescoço ou seu peito,
mas sim o seu braço já ferido anteriormente.

[i]Gladius Dei[/i]! (Espada de Deus)

Com um baque surdo e pesado, o braço esquerdo de Baal finalmente


desprendeu-se por completo de seu tronco e caiu no chão, tingindo a areia
dourada de vermelho escuro. O sangue jorrava em profusão do local onde
outrora estava o membro superior esquerdo do demônio, e uma série de
maldições e xingamentos jorravam da boca de Baal com a mesma intensidade.

280
- Maldito sejas! – gritou ele – Onde está a tua honra? Atacando-me pelas
costas?

- Não lhe ataquei sem prévio aviso, Baal, e isso é muito mais do que qualquer
um dos seus guerreiros teria feito em combate semelhante.

A postura do velho cavaleiro era austera. Mesmo com um corpo velho,


ele parecia sólido e resistente como um rochedo, e sua expressão era tão
pétrea quanto.

- Como tu podes... como conseguistes resistir...

[i]Ostrakiá Belóna![/i] (Agulha Escarlate)

O indicador direito de Girtab já estava em riste enquanto Baal balbuciava


uma pergunta. As finíssimas linhas de luz vermelha romperam do seu dedo e
perfuraram nove pontos do corpo de Baal, que conseguiu, milagrosamente,
esquivar-se das outras. Agora não era apenas o seu ombro que sangrava no
local onde antes houve um braço, mas também os milimétricos orifícios onde
ele tinha sido atingido pela sequência letal de golpes do inimigo.

A dor era quase insuportável, e qualquer outro adversário teria caído


frente aquela investida rápida. Mas, como Girtab bem sabia, Baal não era
qualquer adversário, e não demorou muito para ele se refazer do susto e
encará-lo com um sorriso presunçoso.

- Vejo que não estás disposto a perder tempo conversando.

- Isso é um combate, e não um diálogo – rebateu Girtab. – Você deveria saber


a diferença.

- Muito bem, se queres ser objetivo, sejamos. Mas previno-te de que tuas
agulhas não surtirão o efeito desejado em mim.

281
- E por que não?

- Porque a dor é algo processado pela mente, e embora minha mente seja
quem controla este corpo, eu posso direcionar os estímulos de dor para a
mente inconsciente deste corpo.

- Eu sei – disse Girtab com simplicidade.

- Sabes? – indagou o demônio com evidente surpresa.

- Sim.

- Então por que...arghhhh!!!

Baal havia caído de joelhos, e sua única mão restante estava apertando
sua têmpora com força, fazendo pressão contrária a uma pressão interna em
seu crânio.

- Um dos efeitos principais do meu golpe é causar dor, e isso é um estímulo


cerebral poderoso. Eu pressupus que você, por já ter experimentado a dor do
meu golpe no passado, iria querer se ver livre dela, e iria direcionar os
estímulos de dor para a mente inconsciente do seu receptáculo.

Girtab agora olhava-o com uma superioridade inocultável. Tudo correra


perfeitamente dentro dos seus planos, de modo que as suas melhores e
maiores expectativas estavam se concretizando. O corpo que Baal ocupara
estava tentando reaver o controle, de modo que seria impossível para o
demônio utilizá-lo em sua plenitude. Invariavelmente, porém, Baal iria recuperar
o controle total, e Girtab não poderia perder tempo.

Todo o seu último grande plano havia corrido com perfeição, mesmo ao
custo do sacrifício do Papa Inocêncio. Porém, com Azazel aprisionado, seria
impossível que as [i]Chet[/i] fossem recriadas e, com Baal fora do caminho, o

282
exército do portador da luz iria perder, com um único golpe, o seu líder e o seu
mais poderoso guerreiro. Gerion havia recebido instruções claras sobre como
agir, e Salomão e Cristos estavam a par dos demais planos emergenciais que
ele havia criado. Girtab confiava que Maria seria uma líder competente e,
auxiliada por Sacros, Salomão e Cristos, ela conseguiria por fim a essa Guerra
Santa antes que algo muito mais grave pudesse acontecer, e com muito menos
baixas do que normalmente teria acontecido.

- O seu fim começa agora, Baal.

[i]Àmmo tou Chrónou[/i]! (Areias do Tempo)

Por um breve instante, as areais do deserto se revolveram em um


torvelinho em torno de Girtab e Baal, mas nada pareceu acontecer. Então, o
ex-líder do Santuário começou a elevar sua energia e estendeu o braço para
cima, preparando o ataque derradeiro.

[i]Gladius Dei[/i]! (Espada de Deus)

A mão desceu célere como um raio, e o ar chiou quando foi cortado com
violência, e então Girtab sentiu o impacto do cutelo de sua mão contra algo
sólido. Porém, era algo sólido demais, e logo ele sentiu o seu corpo ser
repelido para longe, com grande violência.

Girtab aterrissou de pé, e logo se deu conta do que havia atacado, e o


pavor tomou conta de seu rosto: uma reluzente e imponente armadura havia
surgido a frente de Baal, protegendo-o do ataque do oponente. Sua coloração
esmaltada era de um profundo azul-escuro, como um céu tempestuoso. O peito
era ornamentado por duas colunas de tachões negros que desciam da altura
dos ombros até o se unirem, próximo ao abdômen, em uma única coluna. Além
disso, havia duas grandes granadas amarelas engastadas na placa peitoral, e
que, devido a sua disposição, pareciam dois olhos multifocados.

283
Próximo às ombreiras, o azul escuro que predominava na armadura era
rajado com listras irregulares, de um azul mais vivo e claro, e aí ficava evidente
à alusão ao céu tempestuoso, pois aquelas linhas eram raios. A veste era
encimada por um elmo, sem gorjal ou viseira, que tinha o formato da cabeça de
uma mosca, sendo que em seu topo, em cada lateral, também havia uma
granada amarela no local correspondente aos olhos. Além de uma série de
tachões de cor metálica, não havia nada de mais nas grevas, manoplas ou na
espádua da armadura, a não ser um par de asas trianguladas e de um azul
translúcido, que desciam até a altura das coxas de Baal.

- Não é possível! – deixou escapar um espantado Girtab, que parecia à beira


do pânico. – Eu senti o cosmo dele desaparecer...eu senti a presença dele
deixando esse plano...como isso pode acontecer?

A gargalhada de Baal reverberou no deserto, e a voz que saiu daquela


garganta era a voz grave e gutural do demônio que havia se apossado daquele
corpo, não mais a voz que fora tomada emprestada e que pertencia a
Francesco. Ele havia se colocado de pé novamente, e a armadura prontamente
desmembrou-se para cobrir o seu corpo. A transformação foi quase
instantânea.

A pele branca do hospedeiro começou a assumir um tom mais escuro,


quase da cor do bronze, e a barba curta e negra cresceu e ficou mais espessa
e hirsuta. Os malares pareceram ficar mais duros, e os cabelos cresceram até
atingirem as costas, descendo em uma cascata negra e encaracolada. O
restante do corpo estava sofrendo alterações mais bruscas, assumindo uma
compleição mais vigorosa e se tornando mais alto, beirando os dois metros de
altura.

Olhos de um azul quase cinza, que anteriormente haviam sido


castanhos, miravam Girtab de cima, e eles estavam carregados de ódio,
orgulho e, acima de tudo, de uma potência notória. Para o pavor de Girtab, até
mesmo o braço amputado havia sido substituído por um simulacro denso e
escuro, que parecia ser totalmente feito de sombras.

284
- Eu não... eu não... – balbuciou Girtab, aturdido pelo pavor.

- Não acreditas? – completou Baal por ele. – Neste caso, terei que
mostrar que isso é real.

Antes que o velho cavaleiro pudesse se preparar, Baal já estava atrás


dele e lhe aplicava um soco pelas costas. Girtab tentara se esquivar, mas não
conseguiu por completo, e o golpe acertou-o um pouco acima do abdômen,
quebrando-lhe duas costelas e expulsando, com violência, todo o ar dos
pulmões. Girtab caiu desacordado no mesmo instante, enquanto um filete de
sangue escorria de seus lábios.

- Haha, eis que aí está o todo poderoso Girtab, o Escorpião Imortal – zombou
Baal com desdém. – E, no entanto, ele é frágil e sangra como qualquer outro
homem. Adeus, Girtab de Escorpião.

A mão desceu rápida como uma águia, mas só atingiu a areia. Mesmo
assim, Baal vira o que acontecera, embora tarde o suficiente para poder
impedir.

- Quer dizer que ele tinha um reforço à espreita – disse o demônio, ainda de
costas para os dois salvadores do seu inimigo. – Para alguém que não
enxerga, tu foste muito preciso em teu movimento, Salomão de Libra.

E lá estava ele, trajado em sua armadura áurea e refulgente, com o


corpo inerte do ex-líder do Santuário em seus braços, envolto em sua capa
branca, mas que já começava a se tingir de carmim. Mas ele não estava só.
Um pouco atrás dele, com um expressão mista de medo e raiva, estava um
jovem trajando uma armadura tão prateada como os seus longos cabelos.

- Para alguém tão cheio de si, dois inimigos a mais não deveriam significar
nada – falou o libriano. – Izzak e eu chegamos um pouco depois de eu os ter
enviado para cá, mas não interferimos na batalha em nenhum momento.

285
- Mesmo que tivessem feito algo, isso seria irrelevante. O máximo que teriam
conseguido seria adiar por mais alguns instantes o irremediável fim que está
destinado a este mortal – disse Baal apontando para o corpo de Girtab.

- Jamais teríamos interferido – pronunciou-se Izzak, não conseguindo manter o


silêncio. – Os combates travados pelos Cavaleiros de Atena devem ser
honrados, com o mesmo número de atacantes e defensores. Mas você não
sabe o que é honra, já que atacou o Grande Mestre pelas costas.

- Hahaha – desdenhou Baal com uma risada grave, mas sem nenhum
divertimento real. –Falas de honra para mim? Se não me falha a memória, tu
estavas presente no dia em que eu renasci, e só não morreste por que outro
Cavaleiro de Ouro se interpôs entre nós e te protegeu do meu golpe, e eu
decidi poupá-los porque pretendia guardar forças para confrontar e matar
Girtab. Bem, independente de qual seja o escudo dourado que se interponha
entre nós desta vez, não há mais necessidade de eu te poupar, já que eu já
obtive o que pretendia.

- Não – disse Salomão com firmeza. – O Grande Mestre ainda está vivo.

- Não, Cavaleiro de Libra. Se tivesses entendido o que Girtab disse no


Santuário, terias percebido que ele já estava destinado à morte quando veio
para cá, e ele mesmo sabia disso. Não há nada que tu possas fazer para salvá-
lo.

- Claro que há – disse Izzak. – Só temos e derrotá-lo.

- Temos? – repetiu Baal – Queres dizer que os dois lutarão comigo ao mesmo
tempo? E a honra, onde fica?

- Essa luta não é sua, Izzak – disse Salomão dando um passo à frente.

- Mas eu sou um Cavaleiro de Atena, e...

286
- Você vai se negar a atender ao último pedido que o Grande Mestre lhe fez? –
indagou Salomão, austero como sempre – Não se trata de honra ou poder de
batalha, Izzak, mas sim de planos superiores, e você sabe o que isso significa.

- Girtab disse uma coisa antes de ser derrotado,e foi, talvez, uma das coisas
mais sensatas que eu já ouvi – interrompeu-os Baal.

- E o que foi? – questionaram os dois Cavaleiros em uníssono.

- Ele disse

- Isto é um combate, e não um diálogo – respondeu o demônio, e lançou-se


sobre Salomão como um predador em cima da caça.

Salomão abaixou-se rapidamente e ergueu o braço direito, bloqueando a


investida inimiga com o seu poderoso escudo. Mesmo sem ter sofrido nenhum
dano grave, o impacto do golpe o fez sentir o rádio e o úmero se esmigalhando
por dentro armadura.

- Seu tolo, podias ter largado o corpo dele e ter fugido do meu golpe – disse
Baal, ainda com o punho pressionando o escudo dourado do libriano.

- Eu jamais faria isso. Eu jurei lutar por Atena para salvar esse mundo, e esse
homem que eu protegi é a grande esperança que temos de poder protegê-lo de
você e dos outros demônios.

- Tu deverias te preocupar mais em proteger a ti do que em tentar proteger o


mundo. Morto tu não podes fazer nada.

- Realmente não, mas o que conta mesmo é por que e por quem eu morri.

- Perdoe-me por não chorar de comoção, mas é que pretendo guardar minhas
lágrimas para prantear a morte de vocês.

287
E então ele chutou por debaixo do escudo que bloqueava seu punho,
mas seu pé foi detido pelo escudo do braço esquerdo, e o golpe não foi potente
o suficiente para causar danos tão graves quanto o que seu punho havia
provocado.

- Tu estás começando a me irritar! – bradou Baal, que com as duas mãos


agarrou Salomão pelas costas e o jogou para o alto.

Enquanto o corpo do libriano voava, Baal concentrou sua energia e, com


apenas a mão esquerda, aquela que era feita de sombras e energia, desferiu
sua chuva de raios.

[i]Yariçap Ilah[/i]! (Raio Divino)

Os raios jorraram de encontro ao corpo de Salomão, mas algo parecia


bloquear os primeiros lampejos que saíram, mas a resistência oposta não foi
poderosa o suficiente para resistir por muito tempo, e boa parte do golpe
atingiu o Cavaleiro de Libra, que acabou não morrendo, mas ficou gravemente
ferido e caiu pesadamente no chão.

Olhando para baixo, esperando ver Girtab caído, Baal deu por si, mais
uma vez, privado de sua presa, que agora estava deitada atrás de um cavaleiro
de longos cabelos ruivos, que mantinha os braços abertos em sinal de
proteção, fazendo sua armadura dourada cintilar com a elevação do seu
cosmo.

- Áries! – gritou Baal, e ele estava realmente furioso. – Quantos ainda irão se
intrometer?

- Frixo! – disse falou Izzak com alegria, surpreso por ver o guardião da primeira
Casa Zodiacal fora do Santuário. – O que você faz aqui? Não entenda mal, eu
estou feliz por tê-lo aqui para nos ajudar, mas o Grande Mestre havia dado

288
ordens para que você e os outro ficassem no Santuário, em suas respectivas
Casas.

- Eu sempre obedeci às ordens do Grande Mestre, Izzak – falou Frixo com um


sorriso triste -, e não é agora que eu deixarei de fazer isso. A última ordem do
Grande Mestre Girtab foi para que permanecêssemos no Santuário, e eu
obedeci. Porém, a primeira ordem da Grande Mestre Maria foi para que
viéssemos ajudar se fosse necessário, e aqui estou eu, obedecendo às ordens
que me foram dadas.

A alegria dos dois rapidamente desapareceu quando Baal começou a


intensificar a sua energia.

- Foi a última vez que tu te interpôs entre um deus e o seu alvo, Cavaleiro de
Atena.

Baal esticou a mão mais uma vez, preparando o seu ataque, quando
percebeu que Salomão se levantava com dificuldades.

- Foi isso...isso que te denunciou – disse o libriano com dificuldade.

- Que dizes? Estás ficando louco? – indagou Baal, sem entender.

- Sua postura de batalha – disse Salomão, ofegante com o esforço de falar e se


manter de pé. – Quando você usou o golpe de Francesco contra Aloccer, você
usou o braço esquerdo, pois você é canhoto. Francesco, ao contrário, era
destro, e o Grande Mestre sabia disso. Quando Apep foi derrotado por mim, se
passando por um dos Virtus, o Grande Mestre concluiu que aquilo havia sido
apenas uma distração para o real infiltrado no Santuário, que era você. Você
nunca conseguiu enganá-lo.

Por um momento, Salomão esperou que Baal fosse despejar toda a sua
fúria sobre ele, mas isso não ocorreu. Baal absorveu rapidamente a notícia,
como se isso fosse algo de pouca importância para ele, e então ele rebateu.

289
- Nunca? Tens certeza disso? – e havia uma satisfação oculta em sua voz. –
Durante o tempo em que Girtab permitiu que eu freqüentasse sua sala, eu
gradativamente envenenei a água que ele bebia naquele maldito cálice que ele
usava, e ele jamais desconfiou. O curioso é que ele não morria com o veneno,
e eu realmente cogitei a possibilidade de ele ser realmente imortal.

- Ele sabia que você fazia isso, Baal – devolveu Salomão com um sorriso, e
esse sorriso foi maior ao ver a expressão do inimigo se fechar com o
desapontamento. – Ele permitiu que você continuasse fazendo isso, pois nada
de nocivo permanece nocivo quando depositado no Santo Graal. Era por esse
motivo que o Mestre sempre bebia água, e não vinho, e foi por isso que seu
veneno, a sua artimanha covarde para enfraquecer o Grande Mestre, não
funcionou. A grande verdade que se percebe por trás de tudo isso irrefutável.

- E que verdade é esta? – perguntou Baal com uma irritação crescente


transparecendo em seu tom de voz.

- Você sempre teve medo de enfrentá-lo novamente – cuspiu o libriano em


desafio.

A ira de Baal explodiu como um trovão, e a onda de cosmo energia que


emanou de seu corpo fez Salomão e Izzak serem impelidos para longe de onde
estavam, e só por muito pouco que ela acabou não destruindo a Muralha de
Cristal de Frixo, que ainda estava recuperando a energia gasta nos últimos
confrontos na Casa de Áries. Uma cratera abriu-se ao redor de Baal, fazendo
com que boa parte da areia do deserto voasse com violência para longe dele, e
derretendo a areia sob seus pés até assumirem a consistência vítrea.

- Vais pagar caro por teus ultrajes, Cavaleiro de Libra.

Então ele ergueu as mãos, e o céu pareceu obedecer completamente a


sua vontade. As nuvens adensaram, e o negrume se espalhou no céu sobre
eles, fazendo com que o dia se tornasse noite, uma noite densa e perigosa,

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carregada de ódio e maldade. Os cabelos e os demais pelos do corpo
denunciavam que a estática se tornava mais poderosa a cada instante, e os
coriscos riscavam o céu, seguidos pelos trovões que ribombavam como
trombetas sopradas por gigantes.

- Eu sou um deus, e jamais senti ou sentirei medo de qualquer mortal, seja ele
um guerreiro de Atena ou não. Experimentei a fúria divina!

[i]Göksel Iskence[/i]! (Tormento Celestial)

Uma rajada de ventos uivantes e cortantes como lâminas


incandescentes desceu sobre eles, fazendo as areias do deserto se
revolverem. Em toda parte havia tornados de areia se formando, e cada vez
que um deles vinha de encontro aos Cavaleiros, era como se chicotes ásperos
tentassem rasgar a sua pele, criando crostas de um barro rubro e viscoso
quando o sangue se misturava com a poeira grudada na pele.

O som dos trovões era ensurdecedor, e tirava a concentração de


qualquer um, pois ele ficava ecoando e ribombando nos ouvidos, causando
dores de cabeça e tontura. Mas isso era a parte menos perigosa. Raios caíam
em todos os lugares, criando crateras de areia negra e fumegante quando
atingiam o solo, e fazendo a mais mínima das gramíneas irromper em chamas.
O calor agora tornara-se insuportável, e o suor fluía como um pequeno riacho
pelo corpo deles, tornando a pele cada vez mais enlameada pelo contato com
a areia. A visibilidade era cada vez menor, e tornava-se cada vez mais difícil
respirar ou se mover, e escutar era uma tarefa aparentemente impossível.

Em meio a tudo isso, Baal erguia-se a três metros do solo, com os raios
dançando a sua volta e sendo comandados pelo seu bel prazer. Sua armadura,
embora de um profundo tom escuro, parecia extremamente clara quando
contrastava com o céu acima dele. Seu sorriso presunçoso era indisfarçável, e
por qual motivo ele iria tentar escondê-lo, se a vitória era iminente? Alto e
robusto, incólume á fustigação dos raios e dos ventos, Baal erguia-se poderoso

291
e imponente sobre os adversários abatidos, sendo ele a mais clara
representação de um deus vingativo e cruel.

[i]Myriádes Astéria[/i]! (Miriade de Estrelas)

[i] Xífos tis Diké[/i]! (Espada do Julgamento ou Espada de Diké)

[i]Hastam Argenteam[/i]! (Lança de Prata)

O ataque dos três Cavaleiros de Atena irrompeu do meio da tempestade,


mas eles já estavam muito debilitados pelo golpe de contínuo de Baal, de modo
que ele não teve grandes dificuldades de bloquear a lâmina de Salomão e a
lança de Izzak. As estrelas cadentes de Frixo poderiam ser mais perigosas,
mas havia uma redoma de energia que protegia o demônio de tudo o que
tentasse chegar até ele, de modo que Baal continuava sem um único arranhão.
A constatação do fato atingiu os três guerreiros tão violentamente como os
raios que cortavam o céu: Baal era invencível.

Eles já se davam por vencidos quando, repentinamente, o vento


começou a mudar. Uma massa de ar frio começou a soprar, e ela chocou-se
violentamente com a tempestade criada por Baal. Sua intensidade era menor
que o Tormento Celestial, mas ainda assim ela se mantinha constante,
chispando os seus raios vermelhos contra os raios azuis do demônio. O
embate entre o ar quente e o ar frio resultou em uma mudança nas nuvens que
cobriam o céu, e elas começaram a se desfazer em chuva, assumindo um tom
mais acinzentado, diminuindo a escuridão que se instaurara.

Os raios e trovões pareciam brigar entre si como dois esgrimistas, um


com um florete azul e o outro com um florete vermelho, trocando investidas,
cortes e retalhos entre si, tendo nada, além do céu e do solo, como alvo de
suas estocadas. O som dos fortes ventos era apavorante, dando a impressão
de que uma alcatéia inteira começara a uivar. As areias do deserto começavam
a se assentar, e agora era possível ver uma figura alta e de cabelos longos e
brancos, que se revolviam tão violentamente com a ventania como o seu manto

292
e o seu colar de contas. E lá estava ele, reto em meio a tempestade, tão
imponente quanto Baal, uma clara ameaça ao seu triunfo sobre os inimigos:
Girtab, o Escorpião Imortal, erguera-se uma vez para a batalha.

- Mestre! – bradaram os três guerreiros ao mesmo tempo ao verem o seu


antigo líder lutando para salvá-los, assim como eles haviam lutado para salvá-
lo.

- Essa batalha não é de vocês – censurou-os Girtab, mas era evidente que
estava feliz por tê-los ali. – Agradeço por terem vindo em meu socorro, mas o
poder dele está além do alcance de vocês, até mesmo do meu. Voltem ao
Santuário e peçam desculpas a Grande Mestre por terem saído sem
autorização. Me felicita saber que vocês três me perdoaram pelos meus erros,
mas não quero que sejam punidos por sua lealdade a mim, pois a lealdade de
vocês é para com Atena e o Santuário.

- Mestre – disse Frixo, agora visível em meio às nuvens de areia, com seu
corpo ferido e coberto de sangue e lama, apoiado com o joelho para não cair -,
o senhor se enganou em uma coisa.

- No que, Frixo?

- Nós três não o perdoamos – respondeu Izzak por ele.

- E então, por que estão aqui? – indagou o velho escorpiano, com um quê de
desapontamento na voz.

- Nós nunca o condenamos a nada – ouviu-se a voz de Salomão, que estava


caído aos pés de Izzak, tentando colocar-se de pé com a ajuda dele -, logo não
há motivos para perdão.

- Nós continuamos leias ao Santuário – disse Frixo. -, e o Santuário sempre


será leal ao senhor, seja Grande Mestre ou não.

293
As lágrimas correram involuntárias pelo rosto de Girtab, mas elas
misturaram-se a chuva que escorria sobre seu corpo, e apenas ele soube que
chorara, embora desconfiasse que eles também sabiam.

- Essa luta pertence a todos nós, Mestre – disse Izzak.

- Não, Izzak, você não deve lutar – lembrou-lhe Salomão, agora apoiado em
seu ombro – você tem outro papel a realizar. O Grande Mestre havia me dado
instruções específicas, caso algo desse errado. Essa luta é do Cavaleiros de
Ouro.

- Que comovente – ironizou Baal. – Vocês se apegam tanto a laços de lealdade


e proteção, mas não percebem que não tem chance contra um deus.

- Você não é deus: é um demônio – disse Girtab -, e isso não me impediu de


derrotá-lo séculos atrás. O que me impediria agora?

- O fato de estares velho, sem energia e a beira da morte – respondeu Baal de


imediato, como se esperasse pela pergunta. – Os teus três meninos já estão
derrotados, e tu estás fragilizado neste corpo velho, por mais poderoso que
seja o teu cosmo. Posso destruir-te com um único golpe, agora que trajo minha
Chet e assumi um simulacro do meu corpo original.

- Como é possível que essa armadura exista se Azazel foi destruído? Essa não
é uma Chet de verdade.

- Claro que é – disse Baal, caindo na armadilha de Girtab e explicando como


tudo ocorrera. – Azazel só começou a ir atrás dos deuses que lhe ajudaram a
construir as Chet no passado, aqueles que tu denominas Cavaleiros do
Apocalipse, depois de já tê-las construído. A única coisa que faltava era o
despertar delas para a vida, e para isso era necessário o sangue dos quatro.

- Além de Ares, a Guerra, e Sekhmet, a Peste, quais foram os outros dois?

294
- Kali, a Morte, e Pazuzu, a Fome – respondeu Baal com certo prazer na voz. –
Foi divertido ver a ti a aos teus aliados tentando adivinhar quem eu recrutaria,
mas fico impressionado com a tua ousadia e compartilhar teus planos comigo,
mesmo já sabendo quem eu era enquanto usava o corpo do jovem guerreiro de
Yeshua.

- Seria indiferente para você se eu revelasse ou não os meus conhecimentos


acerca disso.

- Sim, mas agora o teu precioso amigo Inocêncio está morto, e o sacrifício dele
para derrotar Azazel foi em vão. As Chet estão vivas novamente, e tu irás
morrer, como já sabes há tanto tempo.

- Você sempre tira conclusões precipitadas, Baal – falou Girtab – Não percebeu
nada quando Salomão disse que essa batalha era dos Cavaleiros de Ouro?

Baal ficou em silêncio, o que foi repetido pelos três Cavaleiros que lá
estavam. Frixo olhava Izzak e Salomão com uma expressão aturdida no rosto.

- Vais fugir, Girtab, e deixar os seus leais guerreiros à morte?

- Ele não fugirá – defendeu-o Salomão. – O Grande Mestre já lutou demais,


pois centenas de anos, e ele sabe que suas forças estão no fim, e que logo sua
morte tão postergada virá ao seu encontro. Essa batalha contra você é a
herança que os Cavaleiros de Ouro dessa geração recebem do último
Cavaleiro de Ouro de dezenas de gerações atrás.

- E é uma herança que recebemos com orgulho – apoiou Frixo, avançando um


passo e começando e elevar o seu cosmo.

Então, os dois queimaram sua energia ao máximo, e Izzak percebeu que


ele não teria como se equiparar a eles em batalha. Com uma força de vontade
vinda do nada, os dois guerreiros dourados ignoraram todos os seus
ferimentos, e se lançaram sobre Baal. Mas, em meio ao ataque, eles se viram

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paralisados em pleno ar por uma energia imensa, e já se prepararam para a
investida do inimigo quando sentiram seus pés tocando o solo novamente.

- Protejam Izzak – disse o ex-Grande Mestre – abrandando a energia que


usara para interceptá-los durante o ataque.

- Mestre...eu não entendo – admitiu Salomão.

- Vocês não hesitariam em se sacrificar por mim – começou Girtab -, eu


suspeitei disso assim que vi vocês por aqui, mas agora a certeza veio por
completo. Eu agradeço a dedicação e a lealdade de vocês para comigo,
mesmo sabendo que não sou digno delas.

- Mestre... – tentou objetar o Cavaleiro de Áries, mas Girtab continuou como se


não tivesse sido interrompido.

- Eu tenho outros planos para o que vai acontecer aqui. Na realidade, é o meu
último plano, um que eu tracei para a eventualidade de que tudo saísse errado
nos meus planos anteriores. Para isso, é de vital importância que vocês se
assegurem de proteger Izzak, mesmo que isso custe a vida de vocês. Posso
ainda pedir-lhes isso? Posso contar com esse último favor?

- Mas Mestre – começou Frixo – o senhor viu que Baal...

- Pode – interrompeu-o Salomão – Darei minha vida para proteger o menino,


Mestre, conforme eu havia lhe prometido anteriormente.

- Eu também – aceitou o ariano. – Eu darei minha vida se necessário for.

- Obrigado – disse Girtab com um leve sorriso de satisfação no rosto.

Baal descera novamente, e mais uma vez ele olhava Girtab com aqueles
olhos cheios de ira, mas agora um ar de desconfiança e desafio por detrás
deles. Ele ficou quase cara a cara o velho guerreiro, e então ele cerrou o punho

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esquerdo, num evidente preparo para um golpe frontal, esboçando um sorriso
que em nada amenizou a dureza de sua face.

- Vais te arrepender de quereres lutar sozinho, Girtab, Vou arrancar o teu


coração com a minha mão.

- Você nunca entende – ele limitou-se a responder.

E o punho de Baal abriu-se, e a mão sombria atacou-lhe como uma


garra e, então, ele atingiu o peito de Girtab, e ficou atento para ouvir o som do
grito do seu velho inimgo, mas a única coisa que ouviu foi o tilintar de metal
contra metal. Sua manopla havia atingido alguma coisa por debaixo do manto
que Girtab usava, alguma coisa metálica, mas o que poderia ser? E então ele
entendeu, mas a surpresa e a arrogância em se aproximar tanto do oponente
acabaram sendo perigosas demais para ele.

Mesmo esquivando-se com velocidade inimaginável, Baal acabou sendo


atingido em cheio no olho direito por uma das Agulhas Escarlate que tinham
sido disparadas em série e a queima roupa por Girtab.

- Como...quando?

- Eu disse que você nunca entende – falou Girtab enquanto arrancava, com um
puxão, o manto que lhe envolvia o corpo, revelando uma reluzente armadura
dourada a lhe proteger o corpo. – Na mesma batalha em que Inocêncio morreu
para aprisionar Azazel, morreu Serket, o Cavaleiro de Ouro de Escorpião. Com
a morte dele, a Armadura ficou sem dono, e a oitava Casa Zodiacal ficou sem
guardião. Agora que não sou mais o Grande Mestre, sou a única pessoa em
condições e com direito de assumir o posto. Mais uma vez, eu volto a ser
Girtab, o Cavaleiro de Ouro de Escorpião, o mesmo guerreiro que acabou com
você no passado, e que renasce no derradeiro instante, como a última
esperança de acabar com você, e eu juro, Baal: quando eu morrer, você virá
comigo.

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