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P U B L I C A Ç Ã O DE DIVULGAÇ ÃO CIENTÍFICA DO C E N T R O B R A S I L E I R O D E P E S Q U I S A S F Í S I C A S

Na vanguarda
da pesquisa
[ E X P E D I E N T E ]

PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Fernando Henrique Cardoso
O Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) foi, juntamente com o
Instituto de Física da Universidade de São Paulo, uma das alavancas para o
MINISTRO DE ESTADO desenvolvimento da física no Brasil. Sua fundação, em 1949, teve como pano
DA CIÊNCIA E TECNOLOGIA de fundo a corrida nuclear pós-guerra, tendo sido motivada pela importância
Ronaldo Mota Sardenberg
política que a pesquisa científica adquiriu naquele período e pelo entusiasmo
SECRETÁRIO DE COORDENAÇÃO com a descoberta do méson pi por Cesar Lattes.
DAS UNIDADES DE PESQUISA
Mas daí já se passaram 50 anos. O que é o CBPF hoje, entrando em um
João Evangelista Steiner
novo milênio? Esta publicação tem o objetivo de mostrar o que se faz hoje no
DIRETOR DO CBPF CBPF, uma das fábricas de fazer ciência de nosso país. Nela, você vai descobrir
João dos Anjos (interino)
uma instituição multifacetada e dinâmica com linhas de pesquisa ricas e inter-
ligadas. Não faltarão indicadores da produção científica, além de dados sobre
COMISSÃO EDITORIAL
(em ordem alfabética) o programa de pós-graduação, pioneiro na área de física e entre os melhores
Alexandre Malta Rossi
do Brasil. Recordamos também a criação do CBPF, através de emocionantes
Alberto Passos Guimarães
Alfredo Ozorio de Almeida depoimentos de seus fundadores, Cesar Lattes, José Leite Lopes e Jayme Tiomno.
João dos Anjos Como parte do recente processo de incorporação ao Ministério da Ciência
Ronald Cintra Shellard e Tecnologia, o CBPF preparou detalhado relatório técnico. Tomando este por
Rosa Scorzelli
base, partimos agora para a divulgação de nosso trabalho para um público
amplo, prestando, assim, contas à sociedade, que financia através dos impos-
tos nossa instituição.
Integrando uma tradição científica ímpar ao dinamismo
das novas gerações de pesquisadores, o Centro Brasileiro
EDITOR de Pesquisas Físicas enfrenta os grandes desafios da atua-
Cássio Leite Vieira lidade, contribuindo para o desenvolvimento cientifico e

REPORTAGEM
tecnológico de nosso país.
Renata Ramalho

PROJETO GRÁFICO, João dos Anjos


DIAGRAMAÇÃO, INFOGRÁFICOS
E TRATAMENTO DE IMAGEM DIRETOR
Ampersand Comunicação Gráfica
(ampersan@uol.com.br)

FOTOS DOS GRUPOS


Flavio Cavalcante [ Í N D I C E ]

AGRADECIMENTOS
Ana Maria Ribeiro de Andrade (MAST) Energias extremas do universo 6 Íons pesados relativísticos 48
Antonio Augusto Passos Videira (UERJ) Moléculas e superfícies 10 Os bárions charmosos 51
Alicia Ivanissevich
(revista Ciência Hoje/SBPC) Brilho intenso no céu 13 A ciência e tecnologia das biocerâmicas 54
Ivanilda Gomes Ferreira
Departamento de Informação
Precisão e sensibilidade 15 Uma nova entropia 57
e Documentação (MAST) Modelagem de Sistemas Naturais 18 Quatro andares de ciência e tecnologia 60
CENTRO BRASILEIRO DE PESQUISAS FÍSICAS
Fenômenos e materiais magnéticos 21 Uma nova cosmovisão 62
Rua Dr. Xavier Sigaud, 150 Mensageiros do espaço 24 A supercondutividade 66
22290-180 – Rio de Janeiro – RJ, Brasil
Tel.: (0xx21) 2586-7249
A estrutura eletrônica da matéria 29 Física do charm 70
Fax: (0xx21) 2586-7400 Efeito túnel e estabilidade nuclear 32 O impacto dos materiais avançados 73
Homepage: http//www.cbpf.br Computação aliada à ciência 36 O vocabulário das partículas elementares 79
A microscopia do novo milênio 39 Laboratório de raios cósmicos 82
Caos e mecânica quântica 42 Técnicas para ‘espionar’ a matéria 85
Biominerais magnéticos 45 Um pouco de história 88

REVISTA
REVISTA
DO CBPF
DO1 CBPF 1
O CBPF foi fundado em 1949 por um
[ t o m e n o t a ] grupo de eminentes físicos brasilei- CBPF, A MISSÃO.
A missão institucional do CBPF é realizar
pesquisas científicas em física
ros. Teve, juntamente com o Instituto e sua aplicações, bem como atuar
como centro nacional de formação,
treinamento e aperfeiçoamento
de Física da Universidade de São Pau- de recursos humanos em ciência
e tecnologia.

lo, um papel decisivo na formação das

primeiras gerações de físicos brasilei- COLABORAÇÕES INTERNACIONAIS. O CBPF


mantém intensa colaboração internacional com
outros laboratórios e centros de pesquisa, em par-
ros e latino-americanos e, nestas úl- ticular com o Laboratório do Acelerador Fermi
(Fermilab), nos Estados Unidos, e a Centro Euro-
peu de Pesquisas Nucleares (Cern), na Suíça, que
timas cinco décadas, tem contribuído abrigam os maiores aceleradores de partículas do
mundo.

de maneira ímpar para o desenvolvi-

mento da física no país. Nestas duas PIONEIRISMO NA


PÓS-GRADUAÇÃO.
Já na década de 1950, o CBPF pro-
páginas, o leitor vai entender por que movia cursos avançados em física e
matemática que, em 1963, se tornariam
a primeira pós-graduação em física do
o CBPF é um dos mais importantes cen- país. Em 1972, depois de autoriza-
ção governamental, passou a con-
ceder diplomas de mestre e
tros de pesquisa do Brasil e da Améri- doutor em física.

ca Latina – confira ainda nesta edição

a história do CBPF, enriquecida com de- UMA BIBLIOTECA DE US$ 10 MILHÕES.


A Biblioteca do CBPF, uma das mais importantes
da área de física da América Latina, é referência
poimentos exclusivos de quatro de para as congêneres no Brasil e no exterior. Seu
acervo detém 21 mil livros, a assinatura de 249
periódicos e mais 600 títulos de revistas
seus fundadores, os físicos Cesar especializadas em suas estantes. Seu patrimônio
é estimado em mais de US$ 10 milhões, e seu
acervo está disponível on-line – inclusive para a
Lattes, José Leite Lopes, Jayme consulta de 168 periódicos, bem como de resu-
mos de artigos. Através do Comut (serviço de Co-
mutação Bibliográfica), é possível atender a solici-
Tiomno e Elisa Frota-Pessôa. tações externas de cópias de artigos.

2 REVISTA DO CBPF
[ T O M E N O TA ]

OS QUADROS. O CBPF tem atualmente 171 servidores, sendo


66 pesquisadores, 40 engenheiros e técnicos, bem como 65
gestores. Outras cerca de 240 pessoas integram seu quadro flutu-
A PRODUÇÃO CIENTÍFICA.
A produção científica do CBPF vem
ante, formado por alunos de pós-graduação, de iniciação científica
aumentando nos últimos anos, si-
e tecnológica, bem como estudantes de 2o grau, além de profes-
tuando-se atualmente em níveis
sores visitantes e tecnologistas.
equivalentes àqueles de importan-
tes centros internacionais de pesqui-

DESPERTANDO VOCAÇÕES. O CBPF tem em seu programa de sa em física. Nos gráficos abaixo,
podem ser visto o número de arti-
Iniciação Científica 65 alunos. Outros 16 freqüentam o programa
gos publicados por pesquisadores
de Vocação Científica, voltado para estudantes de 2o grau, que são
e alunos do CBPF em revistas inter-
selecionados entre os melhores alunos das escolas públicas e pri-
nacionais arbitradas, bem como a
vadas do Rio de Janeiro.
média anual de artigos publicados
por pesquisador.

EXCELÊNCIA É... Em 2000, avaliação internacional, promovida NÚMERO DE ARTIGOS PUBLICADOS


pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Supe- 250
rior (Capes), atribuiu aos programas de mestrado e doutorado 207 210
do CBPF ‘nível de excelência internacional’. No ano anterior, esses 200 185 184
164
programas obtiveram também da Capes conceito 6, sendo 7 o 153
150
mais alto dado nesse tipo de avaliação. Twas... Já em 1994, o 124 117
115
103112
CBPF foi escolhido pela Academia de Ciências do Terceiro Mundo 100
(Twas) como um dos ‘Centros de Excelência do Hemisfério Sul’ e,
por conta desse título, recebeu nos últimos três anos pesquisado- 50

res visitantes de países como China, Índia, Cuba e Zâmbia. Fapesp...


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Recentemente, a área de Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos
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do CBPF foi reconhecida pela Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo (Fapesp) como integrante de seu Centro MÉDIA ANUAL DE ARTIGOS PUBLICADOS
Multidisciplinar de Excelência. Pronex... Seis grupos de pesquisa 3,5
do CBPF participam do Programa de Núcleos de Excelência, do
3,0
Ministério da Ciência e Tecnologia. CTPetro... Projeto do CBPF, na
área de catalisadores, sistemas orgânicos e polímeros, acaba de 2,5
ser aprovado pelos disputados Fundos Setoriais do Petróleo
(CTPetro), sob coordenação do Conselho Nacional de Desenvol- 2,0

vimento Científico e Tecnológico (CNPq)


1,5

CIENTISTAS DO NOSSO ESTADO. Nos últimos dois anos,


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oito pesquisadores do CBPF receberam bolsas dos programas


‘Cientistas do Nosso Estado’ e ‘Jovens Cientistas do Nosso Estado’,
ambos iniciativas da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à
Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).

PRIMEIRO LABORATÓRIO. Graças aos pioneirismo do químico brasileiro Jacques Danon


(1924-1989), foi criado no CBPF o primeiro laboratório da América Latina para trabalhar com
efeito Mössbauer, que envolve a emissão e a absorção de radiação (do tipo gama) pelo núcleo
dos átomo. Foi líder nas aplicações desse efeito a várias áreas da física e química.
>>>

REVISTA DO CBPF 3
[ T O M E N O TA ]

OS MAIS CITADOS. ORIGEM DOS PÓS-GRADUANDOS. Um quarto dos alu-


Dos pesquisadores do CBPF, 40%
nos de mestrado e doutorado do CBPF vem de outros es-
estão entre os 200 mais citados do Brasil
tados brasileiros, e outros 27% de outros países, especial-
na área da física, segundo pesquisa feita pelo
mente da América do Sul. Com relação aos pós-doutoran-
jornal Folha de S. Paulo junto ao prestigioso
dos, a atuação internacional do CBPF fica ainda mais acen-
Citation Index, publicado pelo Instituto de Infor-
tuada: cerca de 80% de outros países, com destaque mais
mação Científica (ISI). Ano passado, três pesqui-
uma vez para pesquisadores da América Latina.
sadores do CBPF receberam o prêmio Citation
Classics-ISI pela publicação de dois artigos
que ficaram entre os três produzidos no
Brasil mais citados na área da física LABORATÓRIOS E SERVIÇOS. A excelente infra-es-
na década de 1990. trutura laboratorial do CBPF permite a prestação de ser-
viços a grupos de pesquisa do Rio de Janeiro e de ou-
tros estados. Um bom exemplo dessa atividade de apoio
à comunidade científica é dado pelo Laboratório de Rai-
os X, no qual 30% dos serviços de caracterização de ma-
O CENTRO INTERNACIONAL DA ASTROFÍSICA. teriais são feitos para grupos externos. Laboratórios da
Por sua forte atuação na pesquisa em cosmologia e gravitação, área da física da matéria condensada também recebem
o CBPF foi escolhido para ser a sede brasileira da prestigiosa cerca de 15 solicitações anuais.
rede internacional de Institutos de Astrofísica Relativística (ICRA),
órgão com sede em Roma e filiado à Unesco.

OS CONSULTORES. Pesquisadores do CBPF são con-


sultores de 26 periódicos indexados, inclusive com par-
OS ASSESSORES. Cerca de 70% dos pesquisadores do ticipação no conselho editorial de periódicos de pres-
CBPF são assessores de órgãos de financiamento à ciên- tígio, como Physical Review Letters, Chaos, Solitons
cia e tecnologia, como Conselho Nacional de Desenvolvi- and Fractals, Brazilian Journal of Physics, Hyperfine
mento Científico e Tecnológico (CNPq), Fundação Carlos Interactions, Uroboros/International Journal of
Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Philosophy of Biology, Journal of Non-Equilibrium
Janeiro (Faperj) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Es- Thermodynamics, Nuovo Cimento D, Physica A – esta
tado de São Paulo (Fapesp). última tem como editor um pesquisador do CBPF –,
Journal of Statistical Physics, entre outras publicações.

ALÉM DAS FRONTEIRAS DA FÍSICA. Atualmente, 45%


dos grupos do CBPF desenvolvem trabalhos que ultrapassam MESTRADO EM INSTRUMENTAÇÃO. O CBPF implantou
as fronteiras tradicionais da física, seja como pesquisa princi- em 2000, com apoio da Coordenação de Aperfeiçoa-
pal, seja como atividade paralela. Essa inter e multidiscipli- mento de Pessoal de Nível Superior (Capes),
naridade abrange, por exemplo, áreas como engenharia, ciên- o primeiro mestrado profissionalizante do Brasil em
cias dos materiais, biologia, medicina, odontologia, farmácia, eco- instrumentação científica. Os temas de teses estão
nomia, geologia, arqueologia, catálise, meio ambiente, lingüísti- ligados a projetos de pesquisa dos laboratórios.
ca, filosofia da ciência e teoria da comunicação.

VERÃO, COSMOLOGIA E ALTAS ENERGIAS. O CBPF organiza as Escolas de Cosmologia e


Gravitação, que já estão em sua 10a edição, bem como a Escola Internacional de Física de Altas
Energias (Lishep), cuja 4a escola foi realizada em 2001. Recentemente, criou sua Escola de Verão,
voltada para alunos de pós-graduação e graduação, e com sessões destinadas à reciclagem de
professores do nível médio, em uma iniciativa conjunta com a Secretaria de Educação do Estado
do Rio de Janeiro. As duas primeiras versões da Escola de Verão atraíram cerca de 200 participan-
tes de todo o Brasil e vários países latino-americanos. Nos últimos cinco anos, o CBPF foi a sede de
cinco escolas nacionais, quatro escolas internacionais e quatro congressos internacionais.

4 REVISTA DO CBPF
[ T O M E N O TA ]

MESTRES E DOUTORES. O programa de pós-graduação EVOLUÇÃO DO NÚMERO DE TESES


do CBPF conta hoje com 88 estudantes, sendo 14 de 600
mestrado e 74 de doutorado. Desde sua criação, foram mais
500
de 500 teses defendidas (ver gráfico ao lado).
400 279
mestres
300

200 226

A REDE RIO E A INTERNET II. O CBPF participou da im- 100


doutores

plantação da rede de alta velocidade Internet II no estado do 0

19 5
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74

77

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Rio de Janeiro. Abriga também a Coordenação de Engenha-

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19
ria Operacional (CEO) da Rede Rio de Computadores, sendo
essa rede financiada pela Fundação Carlos Chagas Filho de
Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). O
PUBLICAÇÕES. O CBPF divulga suas atividades de pesqui-
sa através de três publicações: Notas de Física, Notas Técnicas e
CBPF é um dos cincos pontos de presença do atual backbone
Ciência e Sociedade – esta última voltada para a história e filoso-
da rede.
fia da ciência, bem como a política científica. Além disso, a sé-
rie Monografias de Física é destinada à publicação de notas de
PRÊMIOS E BOLSAS DE PRODUTIVIDADE. cursos. Promove também a divulgação científica através da pro-
Vários pesquisadores do CBPF foram agraciados com prêmios dução de vídeos, bem como a organização de cursos, en-
nacionais e internacionais. Atualmente, a maioria de seus pes- contros, seminários e exposições.
quisadores tem Bolsas de Produtividade em Pesquisa con-
cedidas pelo CNPq.
O APOIO. Para garantir
A TESE DO ANO. O prêmio da Sociedade Brasileira de Físi- a qualidade da produção científi-
ca para a melhor tese de doutorado em física foi concedido ca, há no CBPF, além de um departamen-
em 1999 a um estudante do CBPF, por seu trabalho na área to de administração, três coordenações de
de física estatística. apoio à pesquisa: de atividades técnicas, que
faz o apoio à infra-estrutura experimental e
informática; de formação científica, que coorde-
FORMAÇÃO DE GRUPOS DE PESQUISA. Nos últimos na os cursos de mestrado e doutorado; e a
dez anos, o CBPF contribuiu para formar 23 grupos de pesquisa, no de documentação e informação científica, res-
Brasil e no exterior. Foram sete grupos em universidade federais ponsável pela Biblioteca e pela divulga-
e estaduais do estado do Rio de Janeiro, além de 14 grupos ção da produção científica e edito-
em outros estados (Rio Grande do Norte, Pernambuco, Minas rial da instituição.
Gerais, Alagoas, Paraná, Paraíba, Rio Grande do Sul, Ceará e Es-
pírito Santo) e mais dois na América Latina (Peru e Argentina).

CARÁTER REGIONAL... O CBPF já formou mestres e doutores de todas as universidades fluminenses, com ênfase naqueles
originários da Universidade Federal do Rio de Janeiro (55% deles). Nacional... Nos últimos 15 anos, um terço dos alunos
formados pelo CBPF era de 16 estados brasileiros. Latino-americano... Nesse mesmo período, formou alunos de 14 países,
com ênfase nos da América Latina – vale ressaltar que o CBPF é a sede do Centro Latino-americano de Física (CLAF), sendo que
estes dois centros mantêm com o CNPq convênio para a concessão de bolsas de doutorado e pós-doutorado a estudantes
latino-americanos. Internacional... Por ano, o CBPF recebe, em média, 15 pós-doutorandos e outros 35 pesquisadores visi-
tantes, em sua grande maioria provenientes de países estrangeiros.

DETECTORES. Detectores de raios X, bem como a eletrônica e o software associado a eles, foram desenvolvidos e construídos
no CBPF e vendidos a universidades brasileiras e estrangeiras de prestígio, como Weizman Institute (Israel) e Queens University
(Canadá). Detectores de partículas foram também desenvolvidos para grandes colaborações internacionais na área de física
de altas energias, como o experimento Dzero, voltado para analisar o choque de prótons com sua antipartículas, e o Obser-
vatório Pierre Auger, que investiga os chamados zévatrons (raios cósmicos ultra-energéticos).

REVISTA DO CBPF 5
[FÍSICADE ALTAS ENERGIAS] GRUPO DE RAIOS CÓSMICOS
DE ALTAS ENERGIAS
Ronald Cintra Shellard
COLABORADORES

Energias extremas
João Carlos dos Anjos (doutor)
Ademarlaudo França Barbosa (doutor)
Geraldo Cernicchiaro (doutor)
Johana Chirino Diaz (doutoranda)
Fernando Vizcarra Siguas (doutorando)

no universo
A existência de raios cósmicos de altas energias é um dos problemas mais
intrigantes na astrofísica e na física das partículas atuais. Há décadas

que a solução dos paradoxos apresentados por essas partículas com ener-
gias macroscópicas desafia a criatividade e engenhosidade dos físicos.

CEDIDO PELO AUTOR

Um dos primeiros tanques instalados pelo Observatório Auger para a realização de testes. Ao fundo, vêem-se
as cordilheiras dos Andes. A cor dos tanques foi escolhida para não agredir o ecossistema local.

6 REVISTA DO CBPF
CBPF
[FÍSICADE ALTAS ENERGIAS]

Raios cósmicos altamente ´ng


ulo PANQUECA DE PARTÍCULAS. O
energéticos não deveriam existir. Pla
no
recorde de energia de um raio
do
chu
Mas o fato é que existem. Além dis- vei
ro
cósmico medido na Terra é de 320
so, suas fontes deveriam ser facil- bilhões de bilhões de elétrons-volt,
mente identificáveis, pois, com ta- isto é, o número 320 seguido de
manha energia que carregam, es- 18 zeros. Para representar essa
sas partículas praticamente viajam quantidade de energia, usa-se o
em linha reta de sua origem até nós, tão incomum prefixo zeta (Z), que
insensíveis à ação de qualquer cam- significa o número 1 seguido de
po magnético ao longo do percur- 21 zeros. O recorde fica, então,
so, mesmo que essas distâncias te- em 0,32 ZeV, ou 50 joules, a
nham sido cosmológicas. energia de uma bola no saque de
Porém, nunca se determinou Guga, concentrada numa partícula
Olhos de mosca com
nenhuma relação entre galáxias cØlulas fotomultiplicadoras microscópica.
próximas e raios cósmicos com Ao entrar na atmosfera terres-
energias acima de 1020 elétrons-volt tre, o raio cósmico colide com o
(unidade de energia usada em físi- Ponto de impacto núcleo de uma das moléculas do
ca de partículas). Para se ter uma ar a dezenas de quilômetros de
idéia, essa quantidade de energia é Tanques Cerenkov altura acima do solo, quebran-
a mesma carregada por uma bola do-o em inúmeros fragmentos (fi-
de tênis sacada pelo nosso cam- Figura 1. Chuveiro de partículas gerado pelo
gura 1). Esses estilhaços, por sua
peão Guga. Vale lembrar, porém, choque de um raio cósmico contra um núcleo vez, carregam também muita ener-
que os raios cósmicos – nome que de átomo da atmosfera. O choque estilhaça o gia e colidem com outros átomos,
permaneceu por razões históricas – raio em vários fragmentos que, por sua vez, em um processo no qual o núme-
irão colidir com outros átomos. Esse processo ro de partículas cresce rapida-
são partículas subatômicas, cujas di-
gera um chuveiro de partículas que se inicia a
mensões são desprezíveis em com- mente, abrindo-se em uma ‘pan-
quilômetros do chão, e, à medida que se apro-
paração com qualquer objeto ma- xima do solo, o diâmetro e a intensidade do queca’ de partículas que viajam
croscópico (ver também nesta edi- chuveiro aumentam. praticamente à velocidade da luz.
ção ‘Laboratório de raios cósmicos’). Na verdade, a panqueca pare-
Também não se conhece ne- ce mais com a capa de um guar-
nhum mecanismo físico que possa explicar como acelerar partí- da-chuva invertido, figura denominada, no jargão dos especia-
culas a essas energias. Os mais potentes aceleradores construídos listas, ‘chuveiro aéreo extenso’. No ponto onde o número de
até hoje geram partículas cem milhões de vezes menos energéticas. partículas atinge um máximo – a densidade de partículas está
concentrada no centro do chuveiro e cai de forma gradativa
UM A CADA SÉCULO. A energia dos raios cósmicos pode variar em direção à periferia –, a quantidade delas pode chegar a
muito. Quanto maior a energia, mais raros são. Seu fluxo, isto é, centenas de bilhões. Depois desse máximo, que é muito carac-
a quantidade deles que cai em uma área decresce por um terístico e está associado à energia e à natureza original do raio
fator mil para cada aumento de dez no fator energia. Por cósmico, o chuveiro começa a se dissipar, mas continua expan-
exemplo, um sensor de 1m ao nível do mar mede, a ca-
2
dindo suas dimensões..
da segundo, mais de 100 raios cósmicos – grande parte dos
raios cósmicos que atingem a Terra tem sua origem na galáxia LÂMPADA NA ATMOSFERA. Em sua cascata aérea, os chuveiros
em que vivemos, fruto de eventos cataclísmicos como a explosão extensos arrancam elétrons dos átomos da atmosfera – no
de supernovas (ver nesta edição ‘Brilho intenso no céu’). jargão técnico, diz-se que esse átomos são ionizados –,
Já o fluxo dos raios cósmicos com a energia mais alta já fenômeno que ocorre principalmente com os átomos de
observada é de um deles por quilômetro quadrado a cada nitrogênio. O resultado dessa ionização é a emissão de luz
século! Logicamente, os cientistas têm pressa em encontrar ultravioleta, que, na área central do chuveiro, é suficientemente
respostas para suas indagações e, claro, não se conforma- intensa para ser observada a grandes distâncias.
riam em esperar séculos para colher alguns poucos raios de A intensidade dessa luz, porém, é equivalente à de uma
extrema energia. Uma solução para o problema está em montar lâmpada com poucos watts de potência atravessando a at-
uma grande área de sensores para capturá-los – tema que mosfera à velocidade da luz, aumentando e depois diminuin-
iremos tratar mais adiante neste artigo. do seu brilho. Esse efeito da fluorescência dos átomos de >>>

REVISTA DO CBPF 7
[FÍSICA DE ALTAS ENERGIAS]

CEDIDO PELO AUTOR


220 40

El Sosneado

Plan cie dos


Pampas Amarelos
el
Atu
Rio

Malarg e

Figura 2. Pesquisadores trabalhando na montagem de um dos tanques Cerenkov feitos


no Brasil. No detalhe, o hexágono mostra a área ocupada pelo Observatório Auger, na
província de Mendonza (Argentina)

nitrogênio não pode ser visto a olho nu, mas apenas por CONSÓRCIO INTERNACIONAL. O desafio oferecido para a
telescópios especiais. compreensão da origem e a natureza de raios cósmicos
Ao chegar à Terra, o chuveiro pode cobrir uma área com com energias extremas motivou um grupo de cientistas a
diâmetro de alguns quilômetros, sendo que, nessa fase, é formar um consórcio internacional e a construir um
formado por elétrons e sua antipartícula (pósitrons), raios laboratório para observá-los. Em outubro deste ano,
gama (ondas eletromagnéticas muito energéticas), múons completa-se a primeira etapa da construção do Observatório
(‘parentes’ do elétron),, além de poucos prótons e nêutrons. Pierre Auger, na província de Mendoza (Argentina). Dentro

TANQUES OPERAM COM TELEFONIA CELULAR


Visto de cima, o conjunto de tanques em questão. A intensidade luminosa, re- dos bilionésimos de segundo, escala
do Observatório Auger formará uma gistrada pelas células fotomultiplicadoras de tempo necessária para a execu-
gigantesca grade triangular, com sepa- no interior dos tanques, é proporcional ção de uma instrução em um micro-
ração de 1,5 km entre os tanques (fi- à energia das partículas que a geraram. computador de última geração.
gura 2). Cada tanque é um cilindro Quando chega ao chão, um chu- Os tanques têm um sistema de
com área de 10 m2 e uma parede la- veiro cósmico ativa vários tanques. A in- comunicações semelhante ao dos te-
teral da altura de 1,5 m. São hermeti- tensidade de energia do chuveiro e a lefones celulares, operando na fre-
camente fechados e cheios de água fil- medida precisa do instante de chegada qüência de 915 MHz, que funciona
trada por um processo sofisticado para das partículas que atingem cada tanque como gatilho para o registro da che-
evitar o crescimento de microrganismos. permitem determinar a posição do nú- gada de um chuveiro grande.
Suas paredes interiores serão re- cleo, bem como definir a direção de O sistema eletrônico de um tan-
vestidas por plástico branco que aju- onde veio o chuveiro. que é alimentado por um conjunto
da a difundir a luz, gerada pela pas- Cada tanque tem um receptor GPS de baterias e painéis solares. Como
sagem de partículas carregadas, o cha- (Global Positioning System), sistema de os tanques estarão espalhados numa
mado ‘efeito Cerenkov’ – o efeito ocor- posicionamento baseado em satélites, região semidesértica, a alimentação por
re quando uma partícula viaja com que faz a vez de um relógio muito pre- energia elétrica convencional torna-se
velocidade superior à da luz no meio ciso. O sistema GPS tem precisão na casa praticamente inviável.

8 REVISTA DO CBPF
[FÍSICA DE ALTAS ENERGIAS]

de dois anos, começará a construção de outro complexo de


PROJETO REÚNE CERCA DE 20 PAÍSES
O CBPF colabora com a Universidade Estadual de Campi-
detectores no estado de Utah (Estados Unidos) para cobrir nas no projeto do Observatório Auger. Dele participam
o céu do hemisfério Norte. também instituições de mais 18 países. Nossa equipe é
O Observatório Auger – o nome é uma homenagem ao responsável pela supervisão e instalação dos tanques na
físico francês Pierre Victor Auger, um dos pioneiros no estudo fase inicial do observatório, bem como pela supervisão
de raios cósmicos – utilizará duas técnicas complementares da organização do software para o processamento e aná-
para apurar tanto a energia quanto a origem e a composição lise dos dados do experimento, além de ter contribuído
dos raios cósmicos. A primeira delas está baseada na cons- com a preparação do software de aquisição e análise
trução de tanques de água (figura 2) espalhados por uma dos dados.
área equivalente a quase três vezes à do município do Rio de O CBPF tem servido de apoio aos cientistas de outras
Janeiro (ver ‘Tanques operam com telefonia celular’). instituições, como Universidade Federal Fluminense, Uni-
A segunda são telescópios especiais, cuja função é captar versidade Federal da Bahia, PUC do Rio de Janeiro, Uni-
a fluorescência causada pela passagem dos raios cósmicos versidade Federal do Espírito Santo e Universidade Fede-
pela atmosfera (figura 3). A área coberta pelos tanques terá três ral de Juiz de Fora, que também participam do projeto.
deles, e um quarto telescópio ocupa o centro da rede de
tanques.
Cada telescópio funciona como um olho de mosca, for-
mando um conjunto de milhares de pequenos olhos que fo-
calizam, cada um, um pequeno cone no céu. Esses diminutos coletam dados 24 horas por dia, o detector de fluorescência
olhos são fotomultiplicadoras, sensores de luz extremamente atua em apenas 10% do tempo.
precisos, rápidos e capazes de acompanhar, por exemplo, Porém, a informação coletada por esses telescópios acom-
o movimento do núcleo de um chuveiro cósmico através da panha todo o desenvolvimento do chuveiro ao longo de sua
atmosfera. trajetória descendente, em contraste com os tanques que ti-
ram um tipo de ‘fotografia instantânea’ do chuveiro no mo-
OLHOS EM NOITES LÍMPIDAS. Ao todo, haverá 13,2 mil olhos mento que atinge o chão.
supervisionando os 3 mil km2 do Observatório Auger. Devido Assim que entrar em operação, o Observatório Auger se
a essa sensibilidade, os telescópios só poderão ser usados transformará na mais poderosa janela de observação de
em noites límpidas, sem a luz da Lua. Enquanto os tanques raios cósmicos (ver ‘Projeto reúne cerca de 20 países’). Será
um passo importante para desvendar um dos mais instigantes
mistérios da física moderna: os mecanismos capazes de im-
primir tamanha energia a partículas e como elas se propa-
gam no espaço. n

Figura 3. Instalações do telescópio ‘olho de mosca’, que vai


captar a fluorescência causada pela passagem dos raios cósmi-
cos pela atmosfera. Três deles ficam em volta da área coberta
pelos tanques, e um quarto telescópio ocupa o centro da rede
de tanques. Ronald Cintra Shellard

REVISTA DO CBPF 9
[FÍSICA DA MATÉRIA CONDENSADA] GRUPO MOLÉCULAS
E SUPERFÍCIES

Moléculas
Carlton A Taft
Colaboradores
Paulo Mello (doutor)
Shi Kwat Lie (doutor)
Carlos Henrique da Silva (doutor)

e superfícies
Do meio ambiente à neurobiologia, passando pela cor-

rosão de metais, a física de moléculas e superfícies vai


cada vez mais fundo para revelar numerosos fenômenos
de natureza básica e de aplicação tecnológica.

Água, gases e outros complexos podem produzir im- sas em níveis internacionais, o Grupo de Moléculas e Superfí-
portantes reações químicas nas superfícies, por exemplo, de cies do CBPF utiliza computadores potentes e velozes – as
óxidos, metais e ligas. O modo como essas substâncias chamadas estações de trabalho – e programas de ponta.
interagem, bem como as conseqüentes alterações superfi- Neste artigo, o leitor vai conhecer algumas das áreas em
ciais, têm interesse para diversas áreas interdisciplinares. que o nosso grupo tem desenvolvido suas pesquisas e dado
Assim, a meta do cientista que se dedica ao estudo contribuições (ver ‘Grupo faz parte de programa de excelên-
interdisciplinar da física, química, biologia e engenharia de cia’). Começaremos pelos inumeráveis compostos formados
moléculas e superfícies é desenvolver uma compreensão ca- pelo elemento químico carbono, passando por plásticos que
paz de prever e entender várias propriedades dessa interação, conduzem eletricidade e moléculas que carregam informação
para obter controle sobre numerosos fenômenos de impor- no cérebro, para chegar a um dos produtos mais importan-
tância tecnológica, como monitoramento e controle de polui- tes para a indústria química de hoje, os catalisadores.
ção ambiental; corrosão de superfícies metálicas; estabilidade
das interfaces em materiais usados para armazenar combus- ÁLCOOL E BOLAS DE CARBONO. A química orgânica destaca-se
tíveis; destruição pela ação da luz de materiais que causam pelo número e pela complexidade das substâncias que o
poluição de águas; eliminação de perigosos po- elemento carbono pode formar. Conhecem-se hoje
luentes atmosféricos, industriais e orgânicos. cerca de 7 milhões desse compostos, contra
A partir da década de 1990, com o avan- aproximadamente 100 mil de todos os ou-
ço das técnicas computacionais, os mo- tros elementos. Assim, esse ramo da quími-
delos teóricos começaram a ser usados
para melhorar nossa compreensão das
FIGURAS CEDIDAS PELO AUTOR

superfícies e de fenômenos que envol- Figura 1. Esquema da buckybola mais


vem seu estudo. A comunicação de comum, com 60 átomos de carbono,
descoberta em 1985. Desde então, outras
dados através de redes de computado-
formas foram descobertas, e várias
res também permitiu a modernização do aplicações têm surgido para essa terceira
funcionamento de vários grupos de pes- forma do carbono na natureza – as outras
quisa no mundo. Para desenvolver pesqui- duas formas são o grafite e o diamante.

10 REVISTA DO CBPF
[FÍSICA DA MATÉRIA CONDENSADA]

Figura 2. Representação da molécula de etanol, com um grupo hidroxila (um átomo


de hidrogênio e um oxigênio) ligados a uma curta cadeia de dois átomos de carbono e cinco
de hidrogênio. O etanol é o álcool presente em bebidas como vinho, cerveja e aguardentes.
Carbono
HidrogŒnio OxigŒnio

Usualmente, pensamos no álcool apenas como um ingre-


diente do vinho, da cerveja e das aguardentes. No entanto, o
chamado etanol é apenas um dos tipos de alcoóis. Nele, o
grupo hidroxila é unido a uma curta cadeia de dois átomos
de carbono e cinco de hidrogênio (figura 2). Outros tipos de
alcoóis são usados para produzir solventes, detergentes, per-
ca é visto hoje mais como a química dos compostos de car- fumes, vernizes e anticongelantes.
bono, excluindo-se só compostos mais simples, como o gás
dióxido de carbono e os carbonatos (mármore, calcário etc.). PLÁSTICOS E NEURÔNIOS. Na química, usa-se a denomina-
Na natureza, o elemento carbono existe como grafite e ção polímero para indicar uma molécula orgânica gigante,
diamante. Mas em 1985 cientistas descobriram uma terceira formada pela união de várias moléculas menores e idênticas
forma de carbono. Nela, os átomos se ligam em anéis, que chamadas monômeros. A seda, a lã de carneiro e nossos
formam várias moléculas curvas. O tipo mais comum dessas cabelos são exemplos de polímeros.
moléculas, com 60 átomos de carbono, foi apelidada Sempre aprendemos que os plásticos, o tipo de polímero
buckybola, para a qual estão sendo descobertas várias apli- artificial mais importante, não conduzem eletricidade (figura 3).
cações (figura 1). Mas, sob certas circunstâncias – quando dopados com outras
Entre os compostos orgânicos, talvez o álcool seja um dos substâncias –, esses materiais podem se comportar como um
mais populares e também um daqueles com maior número metal. Essa descoberta foi tão importante que deu a três cien-
de aplicações industriais. Suas moléculas se caracterizam por tistas o prêmio Nobel de química em 2000.
ter pelo menos um grupo de hidroxila (um átomo de oxigênio Costumamos falar sobre a ‘revolução’ da Internet devido
ligado a outro de hidrogênio) diretamente unido a uma ca- a centenas de milhões de usuários que se comunicam entre
deia ou a um anel de átomos de carbono. si ocasionalmente. Porém, isso não é nada comparado aos

GRUPO FAZ PARTE DE PROGRAMA DE EXCELÊNCIA


Nesta últimas duas décadas, o Gru- um livro sobre a interação de moléculas lho de Amparo à Pesquisa do Estado
po Moléculas e Superfícies vem tra- com superfícies. do Rio de Janeiro (Faperj) que parti-
balhando intensamente para man- Fazemos parte do grupo de exce- cipam na elaboração de livros e tra-
ter sua alta produtividade científica, lência Pronex 97 (núcleos de materiais balhos de revisão internacional.
considerada de nível internacional. cerâmicos para aplicações em eletrô- Temos publicações recentes com
Além de numerosos artigos publi- nica) e somos colaboradores externos pesquisadores da área de física, quími-
cados em revistas internacionais de do grupo de excelência Pronex 96 (mo- ca, biologia e engenharia de vários ins-
prestígio, o grupo tem recebido delagem e simulação molecular de pro- titutos e estados brasileiros, incluindo
com freqüência convites para tra- priedades físico-químicas). Além disso, centros de excelência e centros emer-
balhos de revisão, comunicações, somos membros colaboradores do gentes (UFSC, UFRJ, IME, UFMG, UFPE,
palestras e participações em impor- Centro Multidisciplinar para o Desen- UFF, UNB, UFBA, UFRGS, UEPG, Unicamp,
tantes congressos multidisciplinares volvimento de Materiais Cerâmicos, um UEG, UENF, USP, UFES, UEP, Tecnor te),
nacionais e internacionais. dos dez centros de excelência da Fun- além de publicações com pesquisado-
Na década de 1990, coordenamos o dação de Amparo à Pesquisa do Esta- res de instituições internacionais.
convênio de cooperação internacional do de São Paulo. Nossa captação de recursos vem
Conselho Nacional de Desenvol- Temos orientado e co-orientado tra- da Faperj, do CNPq e do Pronex, bem
vimento Científico e Tecnológico balhos de iniciação científica, mestrado, como da Coordenação de Apoio a
(CNPq)/CBPF – National Science doutorado, assim como trabalhos de Pessoal de Ensino Superior (Capes)
Foundation (Estados Unidos) e aca- pesquisa de recém-doutores bolsistas do e da Financiadora de Estudos e Pro-
bamos de publicar um capítulo em CNPq e da Fundação Carlos Chagas Fi- jetos (Finep).

REVISTA DO CBPF 11
[FÍSICA DA MATÉRIA CONDENSADA]

H H H H H H

C C C C C C da, a peça é colocada num for-


no para cozinhar, o que solidifi-
C C C C C
ca o material e fixa sua forma.
H H H H H O primeiro cozimento produz
uma cerâmica ainda porosa. Para
Figura 3. O plástico é o polímero artificial de maior aplicação.
torná-la impermeável, é neces-
Sua molécula gigante é formada pela repetição de unidades menores, os monômeros.
Em geral, plásticos são maus condutores de eletricidade, mas, quando dopados sário vitrificar ou esmaltar sua su-
com outras substâncias, podem se assemelhar a metais na condução. perfície, mergulhando a peça em
uma solução de certos óxidos
100 bilhões de neurônios (células nervosas) que carrega- metálicos em água – e é para a pesquisa destas últimas subs-
mos e que se comunicam entre si continuamente na estrutu- tâncias que o estudo multidiscIplinar de moléculas e superfí-
ra mais complexa que conhecemos: o cérebro cies dá sua contribuição. Depois de secar, ela é submetida a
Mais especificamente, essa comunicação, cuja natureza é um segundo cozimento, que derrete o revestimento e o faz
química, ocorre através de moléculas complexas chamadas aderir à cerâmica (ver também nesta edição ‘A ciência e
neurotransmissores, que também são alvo de estudo tecnologia das biocerâmicas’).
multidisciplinar da área de moléculas e superfícies. Mais uma Porém, entre os fenômenos a que se dedica o estudo de
vez, a descoberta de mecanismos que envolvem a comunicação sistemas que envolvem moléculas e superfícies, a catálise tal-
nervosa rendeu o Nobel de fisiologia e medicina. vez seja o de maior importância para a indústria, principalmen-
te para a produção de compostos químicos e de petróleo.
CERÂMICAS E ÁGUA NO ESPAÇO. Resistente e impermeável, a Os catalisadores são substâncias que podem alterar a ve-
cerâmica tem vasta utilização, tanto doméstica quanto indus- locidade de uma reação química e continuar imutáveis. Até
trial. Para obtê-la, é necessário cozinhar a argila (um tipo de astronautas dependem de catalisadores, como a platina, para
barro retirado de depósitos no solo), cuja consistência pasto- produzir água no espaço. A maioria dos carros modernos
sa permite que seja manipulada à vontade. Depois de molda- utiliza um conversor catalítico, que transforma gases tóxicos
naqueles menos prejudiciais ao meio ambiente e à saúde
(figura 4).
Os benefícios das reações catalíticas são bem representa-
dos pelos dados de que aproximadamente 90% de todos os
produtos químicos sintéticos dependem de catalisadores, que
possibilitam a produção em grande escala de produtos para
uso diário, como gasolina e outras fontes de energia, fertili-
zantes, plásticos, detergentes, remédios e alguns alimentos.
De bolas de carbono a moléculas cerebrais, o estudo
multidisciplinar de sistemas envolvendo moléculas e super-
fícies se destaca pela vasta amplitude de campos em que
vem atuando. Por sua ampla aplicação industrial, bem
como por sua capacidade de desvendar fenômenos de na-
Figura 4. Disposição dos átomos de Mg (magnésio)
tureza básica, ela já nasceu com a principal característica
e O (oxigênio) na superfície de um catalisador
de óxido de magnésio (MgO). As esferas amarelas que deve marcar a física, química e biologia deste novo
representam o Mg, e as vermelhas representam oxigênio. século: a multidisciplinaridade. n

COORDENADOR É ÚNICO COMPONENTE FIXO


O Grupo de Moléculas e Superfícies é o único componente fixo e membro tos diários, no entanto, são mantidos
utiliza o modelo de funcionamento de do CBPF. através da Internet, e o acesso à pes-
universidades e centros de excelência Colaboradores, pós-doutorandos e quisa se dá através de poderosas esta-
internacionais. Em nosso caso, o coor- alunos de pós-graduação têm uma pre- ções de trabalho. Essa rotina é comple-
denador do grupo (Carlton A. Taft) sença física variável na instituição. Conta- mentada por visitas periódicas ao CBPF.

12 REVISTA DO CBPF
GRUPO DE FÍSICA NUCLEAR E ASTROFÍSICA [ A S T R O F Í S I C A ]
Sergio B. Duarte
Edgar de Oliveira

COLABORADORES
Emil de Lima Medeiros
Alejandro Dimarco (pós-doutorando)

Brilho intenso no céu


A aproximadamente cada meio século, um dos fenômenos astrofísicos mais
espetaculares ocorre em alguma galáxia do universo. Denominado supernova, essa
megaexplosão de uma estrela massiva gera luminosidade por vezes superior à
da galáxia que abriga evento.

Recentemente, fomos contemplados com a ocorrên-

HUBBLE SPACE TELESCOPE


cia de uma supernova em uma galáxia próxima à nossa, a
Supernova 1987. Afortunadamente, a estrela que originou o
evento estava sendo monitorada por telescópios e por nos-
sos observatórios mais bem aparelhados. A explosão, que
apresentou uma curva de luminosidade que decaiu em apro-
ximadamente dois meses, aconteceu na Nuvem de Ma-
galhães, a cerca de 170 mil anos-luz da Terra – um ano-luz
equivale a cerca de 9,5 trilhões de quilômetros, ou seja, é a
distância percorrida em um ano pela luz, cuja velocidade no
vácuo é de aproximadamente 300 mil km por segundo. Ain-
Figura 1. Anel remanescente da Supenova 1987 A, formado
da hoje observamos um anel de massa gasosa de dez anos- por uma imensa massa gasosa que se expande a partir do
luz de diâmetro, em expansão, com centro localizado no local local de ocorrência da explosão.
da explosão – a figura 1 mostra a atual configuração da
Supernova 1987A.
A primeira supernova a ter sua explosão registrada ocor- mente três meses, mostram a evolução no tempo de seu
reu ainda em 1054. A nebulosa de Caranguejo, na conste- brilho e a variação da cor da luz que ela emite durante a
lação de Touro, é o que sobrou dessa explosão, que foi explosão, seu espectro.
registrada na época por astrônomos chineses.
UNIVERSO ACELERADO. A partir da observação de superno-
BRILHO DE UMA GALÁXIA. Uma explosão de supernova é um vas e dos objetos remanescentes dessa explosões, físicos
evento astrofísico dos mais espetaculares quando se trata da e astrônomos procuram extrair informações sobre os cons-
emissão de luz e energia. Para se ter uma idéia, no momento tituintes mais fundamentais da matéria e a evolução da pró-
da explosão o brilho de uma supernova é comparável àquele pria matéria em escala astrofísica e cosmológica, ou seja,
que tinha antes toda a galáxia onde ocorreu o evento. como nosso universo evoluiu (ver ‘Trabalho envolve fron-
A imagem da figura 2 mostra o resultado de uma si- teira de quatro áreas’).
mulação da supernova da galáxia Centaurus A, a 13 mi- Foi, por exemplo, das observações de supernovas em
lhões de anos-luz, detectada em maio de 1986. Os gráfi- galáxias distantes que se chegou, há cerca de dois anos, à
cos dentro da figura, com uma largura de aproximada- inesperada conclusão de que hoje nosso universo expan- >>>

REVISTA DO CBPF 13
[ A S T R O F Í S I C A ]

N. JOHNSTON – LAWRENCE BERKELEY NATIONAL LABORATORY


de-se de modo acelerado. O método empre-
gado pelos pesquisadores foi o de comparar
as distâncias entre as explosões com o deslo-
camento das galáxias em que ocorreram.
Desde a década de 1920, através dos tra-
balhos do astrônomo americano Edwin Hubble
(1889-1953), sabe-se que as galáxias se afas-
tam uma das outras. Porém, o fato de elas se
afastarem aceleradamente foi considerado um
dos avanços mais importantes da ciência do Figura 2. Simulação da explosão da supernova da galáxia Centaurus A. As
século 20, além de ser uma questão cosmológica curvas indicam a variação no tempo do brilho e da cor da luz emitida.
das mais relevantes, pois está relacionada com
a própria formulação dos princípios da teoria
da relatividade geral, publicada pelo físico alemão Albert Einstein sobre o plasma de quarks, um tipo de estado hiperquente da
(1879-1955), em 1916. matéria formado por essas partículas fundamentais.
O plasma de quarks seria a tão esperada consolidação da
ESTADO HIPERQUENTE. Da estrutura dos objetos extremamen- cromodinâmica quântica, teoria que lida com as chamadas for-
te densos e compactos remanescentes da explosão de su- ças (ou interações) fortes entre partículas e que vem se con-
pernovas tipo II (as que deixam uma estrela de nêutron re- sagrando apenas por evidências indiretas ou pela sua própria
manescente), podem-se extrair conclusões sobre a teoria pa- consistência matemática interna.
ra os fenômenos no universo liliputiano das partículas Talvez, seja através do estudo de supernovas e de seus
subatômicas. Por exemplo, é possivel que através da observa- objetos remanescentes que essa teoria obtenha finalmente
ção das estrelas de nêutrons sejam encontradas evidências seu ‘certificado final de validade’. n

TRABALHO ENVOLVE FRONTEIRA DE QUATRO ÁREAS


No CBPF, alguns pesquisadores de- quisa internacional da física de su- em estrelas de nêutrons em forma-
dicam-se à explicação das explosões pernovas e da formulação da estrutu- ção e na estrutura final desses obje-
de supernovas e à analise dos dife- ra de estrelas de nêutrons remanes- tos compactos.
rentes aspectos físicos que se en- centes da explosão. Além de estudantes de mestrado,
trelaçam no esclarecimento desse Alguns temas de pesquisas são a doutorado e pós-doutorado, jovens
fenômeno. Nos últimos dez anos, o descrição da hidrodinâmica explosiva; a em programas de iniciação científica
Grupo de Física Nuclear e Astrofísica mudança das características da matéria são envolvidos em nossas pesquisas.
tem se inserido no cenário da pes- estelar submetida a pressões altíssimas Também colaboram com nosso gru-
e a conseqüente formação po pesquisadores da Universidade
de elementos pesados; a Federal do Rio de Janeiro, Universi-
nucleossíntese explosiva. dade Federal de Minas Gerais, Uni-
Trabalhando na fron- versidade do Estado do Rio de Ja-
teira da física de partículas neiro, do Centro Federal de Ensino
elementares, da física nu- Técnico (RJ), da Universidade Fede-
clear de altas energias, da ral de Roraima e Universidade Fede-
astrofísica e da cosmologia, ral da Paraíba. Pelo menos seis teses
desenvolvemos propostas – duas de mestrados e quatro de
para diferentes transições doutorado – foram defendidas nes-
de fase da matéria estelar sa área sob a orientação de pesqui-
ocorridas em supernovas, sadores do grupo.

Sentados (esq. para dir.): Emil de Lima Medeiros e Sergio B. Duarte;


em pé (esq. para dir.): Alejandro Dimarco e Edgar de Oliveira.

14 REVISTA DO CBPF
[ F Í S I C A D E A LT A S E N E R G I A S ] GRUPO DO EXPERIMENTO DELPHI
Ronald Cintra Shellard

Precisão e
Maria Elena Pol

sensibilidade
Depois de 11,5 anos, o detector Delphi encerrou sua carreira com uma ficha de bons
serviços prestados à física: fotografou dezenas de milhões de colisões da matéria
contra a antimatéria, dados que levaram à descoberta de novas partículas e à confir-
mação de importantes previsões teóricas.

Em dezembro de 2000, os choques entre elétrons e

CERN
sua antipartícula iluminaram pela última vez o detector Delphi,
localizado no acelerador LEP (sigla, em inglês, Grande Colisor
de Elétrons e Pósitrons), um túnel de 27 km de com-
primento, escavado a 100 metros de profundidade,
abaixo de uma planície próxima ao lago Léman, na
fronteira da Suíça e França, onde funciona o Centro
Europeu de Pesquisas Nucleares (Cern).
Encerravam-se 11,5 anos de uma extensa coleção
de dados sobre as partículas criadas nesses choques de
matéria contra antimatéria. Em cada um dos quatro
pontos onde foram coletados os dados, há um com-
plexo conjunto de sensores que fotografam os resul-
tados da colisão. São os detectores Aleph, Delphi, L3
e Opal, operados, cada um, por cerca de 400 físicos (ver tam- A Z0, juntamente com mais duas partículas (W+ e W-), são res-
bém nesta edição ‘Quatro andares de ciência e tecnologia’). ponsáveis pela transmissão da chamada força fraca, que está relacio-
Pesquisadores do CBPF e de outras instituições brasileiras par- nada com o chamado decaimento radioativo beta (emissão de
ticiparam do experimento (ver ‘Brasil participou da construção, elétrons pelo núcleo atômico) – sem entrar em detalhes, vale ressal-
coleta e pesquisa’). tar que as outras três forças conhecidas são a gravitacional, a eletro-
Nos primeiros anos dos experimentos, a energia do LEP foi magnética e a força forte.
suficiente para produzir o parente pesado do fóton, a partícula
Z zero, indicada comumente pela sigla Z0. Essa partícula foi in- FATORES EXÓTICOS. Por sete anos, o Delphi fotografou deze-
ventada ainda em 1957 pelo físico brasileiro José Leite Lopes, nas de milhões de Z0s, permitindo um estudo estatístico de to-
que foi movido essencialmente por considerações estéticas das as facetas dessa partícula, bem como um teste das previ-
sobre a simetria da natureza. sões feitas com base no chamado Modelo Padrão, um pode- >>>

REVISTA DO CBPF 15
[ F Í S I C A D E A LT A S E N E R G I A S ]

CERN
Figura 1. Delphi, um dos quatro rem os físicos) confirmaram, com
detectores que funcionaram no grande precisão, que devem ser
acelerador LEP, do Centro Europeu
três os tipos de neutrinos existentes
de Pesquisas Nucleares (Cern).
na natureza, conforme indicava a
previsão do Modelo Padrão – os
três tipos de neutrinos (partículas
roso ferramental teórico usado hoje sem carga) são o neutrino do elé-
pela física para estudar as partículas tron, o neutrino do múon e o neu-
subatômicas. trino do tau (figura 2).
O grau de sensibilidade atingido Outro resultado espetacular des-
pela combinação dos quatro detec- sa fase inicial do experimento foi a
tores do LEP foi tão grande que, na medida da massa do Z0, foi medida da transformação (ou decaimento) do Z0 em quarks
necessário levar em conta fatores exóticos do ponto de vista da pesados do tipo bottom (‘parentes’ mais pesados dos quarks
física das partículas. As marés da Terra (e não do mar!) influen- up e down, sendo que estes dois últimos formam os prótons e
ciam o comprimento do anel de colisão, que, por sua vez, deve nêutrons)
ser levado em consideração na estimativa dessa massa. Essas A precisão dessas medidas permitiu ainda extrair uma pre-
marés são deformações na crosta terrestre causadas pela atra- visão para a massa de um presumido quark, o top. Esses cál-
ção gravitacional da Lua. culos foram confirmados pelos experimentos que levaram à
Outros fatores, como a passagem de trens em uma linha descoberta dessa partícula superpesada realizados no acele-
férrea a um quilômetro do anel, provocam pequenas pertur- rador Tevatron, do Fermilab, próximo a Chicago (Estados Uni-
bações no campo dos ímãs do anel e também que ser leva- dos). O refinamento das medidas feitas a partir dos dados
dos em conta. E até mesmo o regime de chuvas em Gene- coletados pelo Delphi mostraram que a massa do top calculada
bra, onde está localizado o LEP, afeta essas medidas. teoricamente era praticamente a mesma da partícula real.
Na verdade, esse resultados refletem o poder de previsão dos
QUARK SUPERPESADO. Logo no início da operação do LEP, o cálculos teóricos feitos hoje na física, bem como o nível de con-
Delphi e os outros detectores (ou experimentos, como prefe- sistência do próprio Modelo Padrão.

CAMADAS SE SOBREPÕEM COMO EM UMA BONECA RUSSA


O Delphi, na verdade, é formado por regadas produzidas na colisão. dade de chumbo, material que essas
vários detectores com funções distin- A próxima casca é um detector de partículas não conseguem atravessar
tas, que se sobrepõem como as diver- radiação Cerenkov, emitida quando uma (diz-se que é um material opaco). O
sas cascas de uma boneca russa (fi- partícula viaja com velocidade superior detector é envolto então por um cilindro
gura 1). Na camada mais interior, há à da luz naquele meio. Esse equipamen- que é um imã supercondutor (um so-
um detector baseado na tecnologia de to é útil na identificação da natureza das lenóide) que gera um campo magnéti-
microfitas embebidas em um substrato partículas, separando prótons de méson co muito homogêneo em seu interior.
de silício que são capazes de medir a k (káons) e mésons pi (píons) – as duas Dois componentes completam a
posição de passagem de partículas últimas partículas com massa interme- estrutura de cascas. O primeiro, deno-
carregadas com a precisão de alguns diária entre os elétrons e os prótons. minado calorímetro hadrônico, são na
milésimos de milímetros (mícrons). Todos esses subdetetores internos verdade placas de aço instrumentadas,
A função desse detector é identi- procuram minimizar, em seu desenho e mas com função primordial de criar
ficar a existência de vértices secundá- sua confecção, a quantidade de matéria, um caminho de retorno para o cam-
rios, fruto do decaimento de partícu- permitindo que a maioria das partículas po magnético no interior do detector.
las de vida breve que percorrem al- os atravessem sem muitas perdas. O outro são os detectores de mé-
guns milímetros a partir do ponto de O próximo detector é desenhado para sons mi (ou múons), partículas capa-
colisão, até se desfazerem em outras. identificar e medir a presença de fótons zes de sobreviver a todos esses per-
Seguem-se duas camadas de detec- (partículas de luz) e elétrons, destruindo- calços, sendo esta a razão pela qual
tores com a função de identificar e os nesse processo. Esse calorímetro eletro- esse conjunto de detectores compõe
medir as trajetórias das partículas car- magnético é fabricado com grande quanti- as camadas mais externas do Delphi.

16 REVISTA DO CBPF
[ F Í S I C A D E A LT A S E N E R G I A S ]

BRASIL PARTICIPOU DA CONSTRUÇÃO, COLETA E PESQUISA


Desde 1988, o CBPF vem liderando co do construção do detector, reali- experimento Delphi envolve cerca de
um grupo formado por físicos tam- zando tarefas como desenvolvimento 50 instituições espalhadas pelo mun-
bém da PUC Rio de Janeiro e da e manutenção de programas de com- do inteiro, sendo resultado do traba-
Universidade Estadual do Rio de Ja- putadores para a análise de dados, lho de centenas de físicos, engenhei-
neiro na construção e operação do bem como para a simulação e recons- ros e técnicos.
experimento Delphi. trução das colisões. Mesmo com o encerramento das
Esse grupo participou tanto da Os integrantes do Grupo Delphi cons- colisões do Delphi, os trabalhos de
busca por novas partículas (bósons tam como co-autores de todos os cerca análise de dados coletados continuam
de Higgs, por exemplo) quanto da de 200 artigos publicados a partir dos e são uma excelente oportunidade
investigação sobre as propriedades dados coletados pelo Delphi. Essas publi- para que estudantes façam suas te-
das já detectadas. Também participou cações tiveram um alto índice de citações ses, dada a profusão de dados para
extensivamente do programa técni- por trabalho. A colaboração em torno do serem analisados.

220 PRÓTONS DE ENERGIA. O de-


CERN

Figura 2. Com os dados coletados


tector Delphi é um cilindro de 3,5 mil N=2 pelo Delphi foi possível confirmar,
N=3
com grande precisão, que são três
toneladas, com dez metros de diâ- N = 4
os tipos de neutrinos existentes
metro e com dimensão semelhante na natureza, conforme previsão
em sua extensão. Tem em seu cen- teórica do Modelo Padrão.
tro o lócus, onde ocorrem as coli- Os dados experimentais (pontos pretos)
sões de matéria e antimatéria, no in- coincidem com a reta relativa a N=3,
terior do tubo que isola os feixes de onde N representa a quantidade
de tipos de neutrinos. A unidade
partículas (ver ‘Camadas se sobre-
do eixo horizontal corresponde
põem como em uma boneca russa’). a bilhões de elétrons-volt (GeV).
A partir de 1996, o LEP passou
por uma reforma – foram instala- 88 89 90 91 92 93 94 95
ENERGIA, GEV
dos equipamentos denominados
cavidades de radiofreqüência su-
percondutoras –, o que permitiu que sua energia fosse gra- pretados como evidência para o bóson de Higgs, esta uma par-
dualmente aumentada, até atingir, três anos depois, a casa de tícula que seria responsável por dar origem à massa de todas as
209 bilhões de elétrons-volt (ou 209 GeV), energia que outras partículas. No entanto, só dois eventos não são suficientes
corresponde à massa de cerca de 220 prótons! para estabelecer uma descoberta. Outros detectores encontra-
Quando a energia das colisões é semelhante à energia re- ram também evidências de mesma natureza.
presentada pela massa do Z0, ocorre uma produção copiosa O encerramento das operações do LEP é motivado pela
dessas partículas, devido a um fenômeno da física denominado construção, dentro do mesmo túnel, de um novo acelerador de
ressonância. Fora da faixa de energia que leva à ressonância, prótons, o LHC (sigla, em inglês, para Grande Colisor de
o número de colisões por unidade de tempo cai substancial- Hádrons), que será capaz de atingir energias muito maiores. O
mente. No entanto, nesses patamares de energia é possível criar LHC deverá entrar em operação ao final de 2005.
pares das outros bósons vetoriais, os W+ e W-, e também pa- A possibilidade da descoberta do Higgs ao final do funcio-
res de Z0, permitindo testes mais precisos das previsões do namento do LEP deixou na comunidade de físicos ligados aos
Modelo Padrão. quatro detectores um certo senso de frustração. Só o tempo e
as medidas que serão feitas no LHC permitirão verificar se os tê-
SENSO DE FRUSTRAÇÃO. Ao longo de sua história, um dos nues sinais que surgiram nos últimos dias do LEP eram real-
principais objetivos do experimento Delphi foi testar a existên- mente registros dos bósons de Higgs ou eram apenas flutua-
cia de partículas como o bóson de Higgs e as partículas su- ções nos dados, como já ocorreu outras vezes.
persimétricas, mas, até o final da coleta de dados, não foram O LEP e o Delphi deixam um belo legado de medidas que,
encontradas evidências da presença dessas partículas. com muita precisão, serviram testar a validade do Modelo Pa-
No último período de tomada de dados no Delphi, foram drão. Os dados produziram ainda cerca de mais de duas centenas
coletados dois exemplares de eventos que poderiam ser inter- de trabalhos publicados em revistas especializadas. n

REVISTA DO CBPF 17
[MODELAGEM DE SISTEMAS NATURAIS] GRUPO DE MODELAGEM
DE SISTEMAS NATURAIS
Affonso Augusto Guidão Gomes

Modelagem de
sistemas naturais
Tradicionalmente voltada para a meteorologia, a área de

modelagem de sistemas naturais, hoje sob forte influên-


cia das abordagens interdisciplinares e com o auxílio de
poderosas ferramentas matemáticas e computacionais, já

engloba temas vitais para a ecologia do planeta, como


massas de água e manejo de florestas.

18 REVISTA DO CBPF
[MODELAGEM DE SISTEMAS NATURAIS]

A construção de modelos teóricos tem sido há muito e zooplâncton requer o uso de modelos mais específicos.
usada em vários campos do conhecimento, da sociologia, A descrição dessa comunidade, respectivamente, de peque-
biologia e medicina à física, química e mesmo matemática. No nos animais e vegetais aquáticos exige, por exemplo, o estudo
passado, porém, essa abordagem costumava ser praticamen- dos efeitos da absorção de luz na descrição das atividades
te ‘estanque’, isto é, mantinha-se dentro dos limites de cada fotossintéticas do fitoplâncton.
uma dessas áreas.
Hoje, no entanto, a modelagem de sistemas, sejam eles PRESAS E PREDADORES. O modelo mais adequado para siste-
naturais ou artificiais, é marcada por um alto grau de interdisci- mas de interesse limnológico que tenham diversos subsistemas
plinaridade, o que confere aos modelos maior poder de previ- em interação é o chamado modelo do reservatório generali-
são teórica e proximidade com os dados experimentais. E isso zado, que pode ser definido como uma coleção de comparti-
ocorre, em parte, graças ao fato de a modelagem de sistemas mentos entre os quais há troca de substâncias (produtos dis-
reunir profissionais que, até pouco tempo atrás, trabalhavam solvidos na água etc.) e/ou produtos (plantas, animais etc.).
praticamente isolados. Em sua versão original, esse modelo continha apenas o
numero de ocupação dos compartimentos (animais e plan-
LAGOS, RIOS E BACIAS. Vejamos, por exemplo, o caso da tas), considerando assim a total uniformidade espacial entre
limnologia, um tema extremamente ativo tanto em sua abor- cada um dos compartimentos. Porém, sabemos que essa
dagem experimental quanto teórica. Trata-se da descrição do uniformidade é uma hipótese que deve ser testada para cada
comportamento de lagos, rios e bacias hidrográficas, o que, sistema natural que se quer modelar.
sem dúvida, faz desse tema um assunto de amplo interesse Em certos casos, efeitos de trans-
para o Brasil, dada a diversidade de climas e regiões geo- porte entre os compartimentos de-
gráficas no país, bem como para a área de modelagem de vem ser levados em conta, porém
sistemas naturais. isso obviamente aumenta a comple-
Na abordagem física mais clássica, pode- xidade do modelo do ponto de vis-
Para ba do Sul
se obter uma boa descrição da di- ta matemático. Um exemplo no qual
nâmica do comportamento da esses efeitos devem ser incluídos é
massa de água de um lago caso Rio de Janeiro o caso da modelagem de animais
sejam conhecidos seu contor- migrando ao longo de uma costa,
no geométrico, bem como a como no caso de crustáceos, pois
direção e a velocidade do vento V o número de ocupação de cada
em cada ponto de sua borda. compartimento varia com o passar
Se também for conhecido o do tempo.
perfil de seu fundo, podemos ir IV 21”45·
Uma aplicação possível do mo-
além: obter a dispersão de produ- delo do reservatório generalizado é
tos dissolvidos em determinada dado pela descrição de redes tróficas
região do lago – para isso, os pes- (ou redes de alimentação) constituí-
quisadores usam um ferramental das por diversos peixes, entre presas
matemático de amplo alcance, as e predadores, que vivem em gran-
equações de Navier-Stokes. Os des massas de água nas quais há
produtos dissolvidos na água não III nutrientes suficientes para os peixes
precisam ser necessariamente po- não predadores.
MARINA SUZUKI, TESE DE DOUTORADO, UENF (1997).

luentes. Podem ser também com- Alguns peixes usam como defe-
postos nitrogenados produzidos sa regiões protegidas dessa massa
pela ação biológica de microrga-
nismos existentes nesses ambien-
tes aquáticos. Figura 1. Localização
0 1Km
Esses temas envolvem apenas das cinco estações de coleta
da lagoa Iquipari, no norte
o estudo do movimento dos flui-
fluminense, em mapa baseado
dos em escala mesoscópica (es- I II em foto de satélite fornecida
cala de 10 quilômetros). Por outro pelo Instituto Nacional
lado, a presença de fitoplâncton 41”2· de Pesquisas Espaciais. >>>

REVISTA DO CBPF 19
[MODELAGEM DE SISTEMAS NATURAIS]

de água – um lago ou represa –, QUATRO INSTITUIÇÕES PARTICIPAM DE COLABORAÇÃO


onde podem ficar e se alimentar ao
abrigo de predadores. Nesse caso, O Grupo de Modelagem de Siste-
portanto, a ocupação dos comparti- mas Naturais do CBPF mantém am-
mentos passa a ter uma dependên- pla e profícua colaboração com o
cia espacial explícita, porque os com- Instituto de Física da Universidade
partimentos não são ocupados de Federal do Rio Grande do Sul, a Uni-
forma uniforme. versidade Federal de Santa Maria
(RS) e a Universidade Estadual do
BARREIRA DE AREIA. Exemplos de Norte Fluminense.
ecossistemas de grande interesse tan-
to para a pesquisa quanto a mode-
lagem são as lagoas de Iquipari e Affonso Augusto Guidão Gomes
Grussaí, localizadas na região do nor-
te fluminense (figura 1). Elas têm uma
conexão com o mar que, na maior parte do ano, permanece fe- Navier-Stokes para o lago, e o uso do modelo do reservatório
chada por uma barreira de areia. para descrever a dinâmica do fitoplâncton, zooplâncton e
A comunidade de pescadores locais, no entanto, abre a macrófitas (plantas aquáticas), juntamente com a dinâmica
barreira em certos meses, para evitar os inconvenientes resul- da rede trófica dos peixes.
tantes das inundações das casas próximas às lagoas. Outra Esses modelos devem ser estudados em função do tempo
razão para a abertura é permitir a renovação do pescado, entre aberturas consecutivas da barreira de areia. Note-se que,
consumido pela população local. apesar das escalas do lago serem mesoscópicas, os processos
Após a abertura da barra, a dinâmica do ecossistema se fotossintéticos que ocorrem com o fitoplâncton exigem uma
altera muito até a próxima abertura, havendo, portanto, ne- descrição envolvendo as escalas microscópicas das reações fo-
cessidade de se efetuarem medidas e modelagens sistemá- tossintéticas.
ticas em função do tempo. O exemplo de Iquipari ou Grussaí ilustra bem a idéia central
A descrição desses ecossistemas exige pelo menos uma do processo de modelagem de sistemas naturais: dado um
modelagem com duas escalas: a solução das equações de ecossistema, estão sempre presentes parâmetros que variam
em função do espaço e do tempo. A modelagem das duas
lagoas teve que ser adaptada ao modelo geral do reservatório
devido a essa série de peculiaridades.

ÁGUAS E FLORESTAS. Vale ressaltar que, por muito tempo, os


problemas envolvendo a modelagem de sistemas naturais
foram abordados apenas através de métodos puramente des-
critivos. Só mais recentemente foram introduzidas as chama-
das abordagens explicativas, incluindo o método do reserva-
tório generalizado. Assim, sistemas naturais descritos pelos mé-
todos explicativos deixaram de ser modelados como simples
‘caixas-pretas’, passando a incluir descrições dos processos
envolvidos em sua dinâmica. E mais importante: essa aborda-
gem passou a determinar as escalas relativas ao espaço e ao
tempo dos ecossistemas nas quais esses processos ocorrem.
Hoje, o impacto das abordagens interdisciplinares na descri-
ção de sistemas naturais é internacionalmente reconhecido.
Com as novas perspectivas sobre a modelagem de sistemas,
bem como o aprimoramento do ferramental matemático e
computacional, os temas de interesse da área deixaram de ser
apenas a meteorologia, para encampar questões vitais para a
Atualmente, a área de modelagem de sistemas passou a
encampar questões vitais para a ecologia do planeta, como o ecologia do planeta, como massas de água, manejo de florestas,
manejo de florestas. dinâmica da água em solos e precipitação atmosférica. n

20 REVISTA DO CBPF
[ M A G N E T I S M O ] GRUPO DE MAGNETISMO
Alberto P. Guimarães
Ivan S. Oliveira
Armando Y. Takeuchi

Fenômenos e
Luiz C. Sampaio
Geraldo C. Cernichiaro
COLABORADORES
Ana P. Alvarenga (pós-doutoranda)
Elis H. C. P. Sinnecker (pós-doutoranda)
Roberto S. Sarthour (pós-doutorando)
Ângelo M. S. Gomes (pós-doutorando)
Vitor L. B. de Jesus (pós-doutorando)

materiais magnéticos
Os fenômenos magnéticos fascinam tanto por seus aspectos científicos básicos
quanto por inúmeras possibilidades que apresentam para aplicações práticas,

como na fabricação de motores, alto-falantes, microfones, memórias, discos


rígidos, fitas magnéticas, CDs regraváveis, entre outros equipamentos presen-
tes em nosso cotidiano.

O leitor saberia identificar em sua casa peças e


partes de utensílios domésticos que utilizam algum material
magnético para seu funcionamento? Com certeza, bastará dar
uma olhada em volta para encontrar etiquetas de calendários
‘colados’ à geladeira, alto-falantes da televisão e dos apare-
lhos de som, interfone, portão automático, disquetes de com-
putador, fitas de gravadores, motores de eletrodomésticos,
brinquedos, fechaduras, alarmes etc. E poderíamos estender
esta lista sem muito esforço. Só para citar mais um exemplo,
um automóvel moderno emprega cerca de 200 peças con-
tendo materiais magnéticos.
Com essa gama de utilidades, os materiais magnéticos ge-
raram um mercado que movimenta altas somas de dinheiro.
Em uma das mais importantes aplicações do magnetismo, a
gravação magnética, essas cifras chegam a US$ 100 bilhões
ao ano – a figura 1 mostra esquema de gravação. A produ- Figura 1. Esquema mostra como ocorre a gravação em meio
ção de materiais magnéticos utiliza mais recursos em todo o magnético. O sinal elétrico que chega à bobina induz no
mundo do que a fabricação de semicondutores, materiais eletroímã um campo magnético que, por sua vez, é respon-
básicos usados na construção de circuitos integrados e chips sável por armazenar (gravar) no meio magnético a infor-
mação transportada pelo sinal.
de computadores. >>>

REVISTA
REVISTA DO CBPF 21
[ M A G N E T I S M O ]

FASCINANTE DIVERSIDADE.O magne- Essa fascinante diversidade de ma-


tismo está presente também em nossas nifestações tem levado cientistas, enge-
vidas de forma mais sutil. A Terra em si nheiros e técnicos ao estudo do mag-
é um gigantesco ímã, cujo campo mag- netismo e de suas aplicações.
nético se faz sentir, por exemplo, na
agulha de uma bússola. Campos mag- DOCE E DURO. Para cada aplicação es-
néticos estão também presentes em pecífica, é necessário um material mag-
vários objetos celestes, como planetas, nético com as características físicas ade-
estrelas, quasares, pulsares, bem como quadas. Uma maneira de classificar es-
em estruturas muito maiores, como ga- sas características consiste em submeter
láxias (figura 2). a amostra estudada à ação de um cam-
Alguns insetos e bactérias, bem po magnético e observar sua resposta
como algumas aves, orientam-se espa- magnética – isso é feito através de quan-
cialmente segundo as direções desse tificação de duas grandezas físicas, cha-
Figura 2. Direção das linhas de cam-
campo utilizando-se de materiais mag- po magnético em uma galáxia. madas permeabilidade e suscetibilidade
néticos que sintetizam em seus orga- magnética.
nismos (ver também nesta edição Por exemplo, o material usado em
‘Biominerais magnéticos’). um núcleo de transformador deve ser capaz de apresentar
O campo da Terra serve também de blindagem magné- uma resposta intensa à ação do campo magnético gerado
tica contra o constante bombardeio de partículas carrega- pelos enrolamentos do transformador, retornando ao estado
das eletricamente que chegam do Sol, o chamado ‘vento inicial de magnetização nula quando esse campo é retirado.
solar’. Nos períodos de maior atividade solar, essas partículas Dizemos que um material com essas características é magneti-

CEDIDOS PELOS AUTORES


produzem as auroras boreais, fenômeno que pode afetar camente ‘macio’ (ou ‘doce’).
seriamente as telecomunicações (figura 3). Ao contrário, o material magnético de um imã permanen-
Como vemos, o magnetismo influi em nossas vidas sob te, como o que deve operar em um motor elétrico ou em um
diferentes aspectos: é parte fundamental da tecnologia mo- alto-falante, deve sustentar sua magnetização mesmo na ausên-
derna; afeta organismos vivos e, conseqüentemente, o meio cia de um campo externo. Nesse caso, são denominados
ambiente; é produzido pelo próprio planeta. magneticamente ‘duros’.
‘MAGNETISMO NA TERRA BRASILIS’, S. M. REZENDE, REV. BRAS. DE ENSINO DE FÍSICA, VOL. 22, N. 3 (2000), 293-298, P.298

PARTE EXPERIMENTAL E TEÓRICA SE UNEM NO LABMAG


O Laboratório de Magnetismo (LabMag) deles enfileirados – e de películas metá- equipamentos – ou partes deles – para
do CBPF estuda uma vasta gama de licas com espessura na mesma ordem de medidas físicas e também programas de
materiais. Normalmente, essas amos- grandeza. computador para o controle de experi-
tras são materiais metálicos como Várias técnicas experimentais nos mentos e análise de dados experimen-
metais simples, ligas metálicas e com- permitem medir nesse materiais gran- tais. Por exemplo, o sistema de medida
postos intermetálicos formados a par- dezas físicas como resistividade elétrica, de ressonância magnética nuclear de
tir dos chamados metais de transi- magnetização e suscetibilidade magné- nosso laboratório foi construído no CBPF.
ção e terras raras. Em geral, são dota- tica, calor específico, campos magnéti- O LabMag engloba um grupo de
dos de estrutura cristalina, mas tam- cos que atuam sobre os núcleos atômi- ressonância magnética nuclear, um labo-
bém são estudados materiais amor- cos, momentos magnéticos atômicos, ratório de magnetometria e um labora-
fos (sem estrutura cristalina), obtidos entre outras. Além da parte experimen- tório de magnetoóptica. Além das técni-
pelo resfriamento rápido do material tal, nosso grupo também desenvolve cas experimentais disponíveis no CBPF,
fundido. pesquisa teórica, com a finalidade de utilizamos, em regime de colaboração,
Outros materiais se apresentam aplicar modelos matemáticos à descri- equipamentos no Laboratório Nacional
sob a forma de grãos magnéticos mi- ção de resultados experimentais. de Luz Síncrotron, em Campinas (SP),
croscópicos – para se ter uma idéia, em Temos também atuado na área de e no Grupo de Aceleradores da PUC
um milímetro caberiam cerca de 100 mil instrumentação científica, construindo Rio de Janeiro.

22 REVISTA DO CBPF
[ M A G N E T I S M O ]

GIGANTE E COLOSSAL. Há uma impor- começa a ser explorada para finalida-


tante correspondência entre as proprie- des práticas. Essencialmente, quando um
dades magnéticas de um material e suas material é magnetizado pela ação de um
propriedades de transporte. Por exem- campo magnético, ele libera calor e, por-
plo, se passarmos uma corrente elé- tanto, se resfria! Ao contrário, se um
trica por um fio de cobre na ausência material magnético que se encontra ini-
de um campo magnético, verificaremos cialmente magnetizado por um campo
uma resistência elétrica menor que a for desmagnetizado, ele absorve calor e
observada se um campo magnético se aquece.
estiver presente.
Esse fenômeno é chamado efeito GELADEIRAS E TRENS. Analogamente ao
magnetorresistivo, e verifica-se que a que ocorreu na pesquisa da magnetor-
magnetorresistência – ou seja, a resis- resistência, uma nova classe de materiais
tência elétrica ocasionada pelo campo foi descoberta recentemente, a qual apre-
magnético – será máxima se o campo senta o efeito magnetocalórico gigante.
Figura 3. Em períodos de maior ativida-
estiver orientado perpendicularmente à Com esses materiais, é possível, através
de solar, as partículas carregadas ele-
direção do fluxo de corrente. tricamente que atingem o campo mag- da realização de ciclos magnetização-
Recentemente, descobriu-se uma nético terrestre produzem a chamada desmagnetização, extrair calor de um ob-
classe de materiais magnéticos em que aurora boreal, fenômeno que pode in- jeto que esteja em contato físico com ele.
esse efeito é tremendamente amplifi- terferir com as telecomunicações. O efeito magnetocalórico está come-
cado. O efeito passou a ser conhecido çando a ser usado em protótipos de
como magnetorresistência gigante e, em geladeiras magnéticas, que são mais efi-
alguns casos, magnetorresistência colossal. Ambos têm vas- cientes e econômicas que as convencionais. Além disso, não
tas possibilidades de aplicações em dispositivos e sensores são prejudiciais ao meio ambiente, pois não utilizaram gases
magnéticos, como, por exemplo, em cabeças de leitura de que destroem a camada de ozônio terrestre.
gravadores. Um interessante fenômeno magnético é a levitação magné-
Existe também uma interessante relação entre magnetis- tica, ou seja, a possibilidade de se sustentar um objeto através
mo e calor. Ela é conhecida há muito tempo, mas só agora da repulsão magnética. A aplicação mais espetacular desse efeito >>>

Colaboram ainda com o LabMag pes-


quisadores da Universidade do Estado do UFAM (1) UFC (5)

Rio de Janeiro e da Universidade de Nova UFRN (7)


Iguaçu, bem como da Universidade de Es-
trasburgo (França) e da Universidade de
UFPE (17)
Aveiro (Portugal).
UFAL (1)
Além de pesquisadores visitantes, nosso
UFS (3)
grupo mantém alunos de mestrado e dou- UFBA (1)

torado, bem como outros projetos – teóri-


UNB (5)
cos, experimentais e de instrumentação –
UFMG (14)
em nível de iniciação científica. Hoje, no Bra- CDTN (5)
sil, há cerca de 30 instituições que se dedi-
UFSCar (12) UFES (6)
cam à pesquisa em magnetismo (figura 5). IFQSC (7)
CBPF (18)
Unesp (4)
UFF (8)
Unicamp (10)
UFRJ (24)
Figura 5. A pesquisa de magnetismo no Brasil. LNLS (1)
PUC (3)
Ao lado das siglas das instituições, aparece entre USP (23)
UFPR (2) IME (1)
parênteses o número de pesquisadores. IPT (2)
UERJ (1)

UFSM (4)
UFRS (10)

UFPelotas (1) REVISTA DO CBPF 23


[ M A G N E T I S M O ] GRUPO DE METEORITOS,
MINERAIS E LIGAS METÁLICAS
Rosa Bernstein Scorzelli
Izabel de Souza Azevedo

EXTRAÍDO DE HARRY Y. MCSWEEN, JR. ‘METEORITES AND THEIR PARENT PLANET’, CAMBRIDGE UNIVERSITY PRESS, 1999.
Figura 4. Trem que emprega o princípio da levitação magnética.

reside na construção de trens ultra-rápidos que se deslocam


sem contato com os trilhos.
A realização prática da levitação magnética pode ser feita
empregando supercondutores (materiais que resfriados apre-
sentam resistência elétrica nula) ou ímãs permanentes. Exis-
tem atualmente no mundo diversos projetos de trens empre-
gando levitação magnética, com potencial de viajar a uma
velocidade de 500 km/h (figura 4).
É provável que o interesse da humanidade pelo magne-
tismo tenha começado há milhares de anos, quando o ho-
mem conheceu o poder dos ímãs sobre certos materiais. De
lá para cá, vários novos fenômenos foram descobertos, ex-
plicados e muitos se transformaram em utensílios sem os
quais nosso dia-a-dia seria muito mais difícil. Outros fenôme-
nos, recém-descobertos, estão aos poucos revelando aplica-
ções intrigantes e promissoras. Figura 1. Representação artística
E tudo isso é apenas parte do fascinante mundo do da entrada de um meteoróide
magnetismo. n na atmosfera terrestre.

Alberto P. Guimarães (sentado, centro) e colaboradores.

24 REVISTA DO CBPF
[ M E T E O R Í T I C A ]

Mensageiros
do espaço
Os meteoritos representam material extraterrestre que percorreu o

espaço cósmico em torno do Sol por 4,5 bilhões de anos antes de colidir
com a Terra. O estudo desses viajantes espaciais tem contribuído
enormemente na elucidação da origem e da evolução do Sistema Solar.

A Terra é constantemente atingida por ob- de matéria planetária aos quais temos acesso atualmente – um
jetos sólidos que circulam pelo espaço. São os chamados bilhão de anos mais antigos que a mais antiga rocha terrestre
meteoróides. Quando esses corpos entram na atmosfera conhecida. Há evidências de que alguns meteoritos sobrevi-
terrestre, passando agora a ser denominados meteoros, veram praticamente inalterados desde a origem dos planetas.
todos eles – inclusive os menores, com massas abaixo de Meteoritos têm sua origem em asteróides, bem como em
uma fração de grama – são aquecidos por fricção até chega- cometas que liberam fragmentos no espaço atraídos pela gra-
rem à fusão e à incandescência, o que produz traços lumino- vidade terrestre. Há ainda meteoritos cuja origem está em
sos. Já os fragmentos desses corpos que não se vaporizam outros corpos celestes, na Lua ou em Marte, por exemplo.
completamente, chegando à superfície da Terra, recebem a Esses corpos Iniciam, então, uma vida de peregrinação, peram-
nome de meteoritos (figura 1). bulando pelo espaço por milhões de anos, à mercê da ação de
Embora hoje se compreenda que a queda de meteoritos seja forças gravitacionais, magnéticas ou elétricas, antes de serem atraí-
conseqüência natural de processos do Sistema Solar, no passa- dos pela gravidade de um planeta, satélite ou mesmo pelo Sol.
do ela foi atribuída à intervenção divina ou mesmo negadas
(ver ‘Físico alemão provou origem cósmica’). Atualmente, es- FOGO NO CÉU. Os meteoritos são violentamente freados pela
tudos científicos e análises sofisticadas de meteoritos revelam atmosfera terrestre, na qual entram com velocidades que va-
importantes informações sobre o Sistema Solar e seu entorno. riam de 15 km/s a 30km/s. Os atritos a que são submetidos
provocam um aquecimento de sua superfície, fazendo com
PEREGRINAÇÃO NO ESPAÇO. As teorias modernas baseiam-se que a temperatura nela chegue a milhares de graus. Um fe-
em informações científicas fornecidas principalmente pela as- nômeno luminoso é então visível da Terra: a chamada estrela
tronomia, astrofísica e meteorítica. Esses objetos extraterrestres cadente, no caso de uma poeira; e uma bola de fogo muito
são reconhecidamente os mais antigos e mais primitivos pedaços brilhante, quando se trata de um meteorito. >>>

REVISTA DO CBPF 25
[ M E T E O R Í T I C A ]

DUROS NA QUEDA. Os meteoritos gigantescos, com mais

CORBIS
de 10 mil toneladas, são muito pouco desacelerados quan-
do atravessam a atmosfera terrestre. E assim chocam na
Terra com extrema violência, formando as crateras de im-
pacto (figura 2).
Índices geológicos e mineralógicos permitem identificar
esse impactos, que, ao produzirem temperaturas e pressões
muito elevadas, modificam as rochas. Esses choques, que
cavam crateras de diâmetro superior a dez quilômetros, pro-
duzem níveis brutais de energia. Assim, ocorre uma violenta
elevação de temperatura no material terrestre da zona de
impacto, que se funde, vaporiza e projeta estilhaços de ta-
manhos variados a centenas e até milhares de quilômetros
da cratera. Essas rochas fundidas e vitrificadas são chama-
Figura 2. Cratera causada pelo impacto de um meteorito no das tectitos.
estado do Arizona (Estados Unidos). O local é conhecido por Diversos indícios levam à hipótese segundo a qual, 65
cratera de Barringer, que tem 1.300 metros de diâmetro e
milhões de anos atrás (ou 65 Ma, na linguagem da área), um
175 metros de profundidade.
desastre ecológico tenha sido provocado pela queda de um
corpo celeste de muitos quilômetros de diâmetro. É atribuído
A travessia pela atmosfera modifica a superfície do meteorito, a esse evento o desaparecimento de numerosas espécies
que, submetido a enorme ‘estresse’ mecânico e térmico pro- vivas, em particular o dos dinossauros.
duzido pela frenagem, perde matéria na forma de vapor e Graças a perfurações petrolíferas realizadas na península do
poeira. Freqüentemente, fragmenta-se em milhares de peda- Yucatan (México), bem como à observação de anomalias no
ços, cuja superfície se cobre de uma crosta (crosta de fusão) campo gravitacional terrestre naquela região, a cratera foi lo-
e, às vezes, com buracos característicos (regmaglitos), perma- calizada, no vilarejo de Chicxulub. A datação das rochas encon-
necendo intacto seu interior. tradas durante a perfuração permitiu datar o impacto em 65 Ma.

FÍSICO ALEMÃO PROVOU ORIGEM CÓSMICA


Da mais remota história à Renascen- uma recusa unânime em O físico alemão Ernst
ça, os meteoritos foram interpretados aceitar uma origem celeste Chladni (1756-1827),
como fenômenos místicos. Filósofos da ou mesmo atmosférica considerado
pai da meteorítica.
Grécia Antiga buscaram explicações para os meteoritos, pon-
científicas, embora não acreditassem do-se em dúvida a vera-
na origem cósmica desses fenômenos. cidade das quedas já ob- Chladni, considerado pai
Em 1492, a queda testemunhada servadas. da meteorítica, analisou, sem
de um meteorito na Alsácia obteve Em 1777, a análise da idéias preconcebidas, o ‘ferro
grande repercussão e motivou, pela pedra de Lucé pelo químico de Pallas’ (massa de 700 Kg
primeira vez, a elaboração de um do- francês Antoine Lavoisier (1743- encontrada na Sibéria), bem
cumento relatando um impacto. Mes- 1794) não modificou as teorias vigen- como os relatos de sua queda. Seus re-
mo três séculos depois, numerosas tes. Ao final daquele século, uma série sultados demonstram que as massas de
publicações ainda faziam referência ao de fatos vão contribuir para o reco- pedra ou de ferro não só podem cair
meteorito d´Ensisheim, trazendo ilus- nhecimento do fenômeno, como o tes- do céu, com também provêm do espa-
trações de sua queda. temunho de numerosas quedas, aná- ço. Suas idéias, revolucionárias para a épo-
No século 18, embora o conheci- lises químicas e mineralógicas de me- ca, continuam muito próximas das teori-
mento do fenômeno não tenha pro- teoritos, bem como os trabalhos do as atuais.
gredido, já se dispunha de elementos físico alemão Ernst Chladni (1756- Várias quedas espetaculares ocor-
de estudo. A época foi marcada por 1827). reram em diversos países na passagem

26 REVISTA DO CBPF
[ M E T E O R Í T I C A ]

ACHADOS E CAÍDOS. Os me- a b c


‘CATALOGE OF YAMATO METEORITES’, COMPILED BY KEIZO YANAI, NATIONAL INSTITUTE OF POLAR RESEARCH, TOKIO, 1979.

teoritos são as mais antigas


rochas conhecidas do Siste-
ma Solar. A maior parte de-
les apresenta estruturas físi-
cas muito diferentes das ro-
chas terrestres. A análise de
suas características químicas,
mineralógicas e de sua tex-
Figura 3. Em a, lâmina fina polida de um meteorito do tipo condrito (LL3) observada ao
tura permite classificá-los em microscópio óptico. As partes em coloração diferenciada são diferentes minerais presentes
diferentes tipos. no meteorito, sendo que as formas arredondadas correspondem aos côndrulos. Em b, dois
Apenas uma pequena fragmentos de um meteorito do tipo condrito H3. Em c, condrito L6 parcialmente coberto pela
proporção de meteoritos são crosta de fusão
coletados imediatamente
após a queda – durante o
século 20, foram seis meteoritos por ano. Estes são chama- mica, eliminando os elementos voláteis, é semelhante à do
dos ‘caídos’. Já os meteoritos recuperados muito tempo de- Sol. Testemunhas dos primeiros instantes da formação do
pois da queda ganham o nome de ‘achados’. No total, são Sistema Solar, representam uma fonte de informações única
conhecidos até o presente 3.620 meteoritos: 980 são que- para a meteorítica (figura 3).
das observadas (‘caídos’) e 2.640 são ‘achados’ – excluindo O restante dos meteoritos são denominados diferenciados
os encontrados na Antártica, cerca de 5 mil. e englobam tanto os chamados acondritos quantos os
Os meteoritos mais primitivos, os condritos (87% das meteoritos de ferro. Ambos originam-se em asteróides ou pla-
quedas), são contemporâneos da formação do Sistema Solar netas diferenciados quimicamente do Sol. Nos acondritos, o
(4,56 Ma). Originaram-se de corpos celestes (asteróides ou material primitivo, homogêneo, fundiu-se a temperaturas eleva-
planetas) não modificados. São agregados contendo peque- das durante o processo térmico, fazendo com que os elemen-
nas esferas denominadas côndrulos, e sua composição quí- tos químicos se separassem, formando camadas distintas, de-

APRENDA A RECONHECER UM METEORITO


do século 18 para o 19, quando foram Numerosos objetos podem ser confundidos com
estabelecidos e reconhecidos os funda- meteoritos. Portanto, é importante observar certas
mentos do conhecimento sobre os particularidades, tais como:
meteoritos e sua origem extraterrestre. >>>O objeto está recoberto por uma superfície
Abriu-se, então, uma nova era para a negra ou marrom (crosta de fusão)?
pesquisa científica desses objetos. >>> É sólido, sem poros ou vesículas ocas?
>>> Pesa muito proporcionalmente ao tamanho?
Entalhe feito em madeira representando
(os meteoritos metálicos são mais densos se
REPRODUÇÃO

a queda do meteorito d´Ensisheim, que


comparados com a maioria das rochas terrestres)
ocorreu em 1492 na Alsácia.
>>> Se houver uma rachadura, observe o interior.
Ele é metálico, prateado?
>>> É diferente das demais rochas da região?
>>>É magnética, isto é, atrai um ímã ou desvia uma
agulha de bússola?
Se você respondeu ‘sim’ à maioria destas perguntas, pode
ser que tenha achado um meteorito e então valeria a
pena analisá-lo. Nesse caso, sugerimos que a amostra seja
levada a uma universidade, instituto de pesquisa ou mu-
seu mais próximo.
>>>

REVISTA DO CBPF 27
[ M E T E O R Í T I C A ]

nominadas núcleo, manto e crosta (esta a a b


mais superficial delas)
Os meteoritos de ferro (5,2% das que-
das) consistem quase essencialmente de li-
gas metálicas de ferro-níquel, e a maioria
provêm do núcleo dos corpos que deram
origem a eles (figura 4).

VIDA EM MARTE. Recentemente, um me-


Figura 4. Em a, meteorito de ferro (ALH-762) com uma parte erodida por
teorito foi responsável por uma das notí-
fricção e outra parcialmente coberta pela crosta de fusão. Em b, o mesmo
cias de maior impacto público das últimas meteorito com a superfície cortada e polida, revelando o aspecto metálico
décadas. Achado na Antártica e tendo sua devido à presença das ligas ferro-níquel.
origem atribuída a Marte, a diminuta rocha
foi a base para que cientistas americanos
anunciassem fortes evidências de que tenha existido vida tos, a ciência tem respostas não só para a origem e a evolução
primitiva naquele planeta 3,6 bilhões de anos atrás. Além do Sistema Solar, mas também para questões como as extin-
de moléculas orgânicas, foram encontrados nele vestígios ções em massa das espécies e a composição e natureza dos
minerais típicos de atividade biológica e, possivelmente, fós- asteróides. E quem sabe não será um desses mensageiros do
seis microscópicos de organismos semelhantes a bactérias. espaço que nos trará a resposta para uma de nossas dúvi-
Ao estudar as informações transportadas pelos meteori- das mais inquietantes: estamos sozinhos no universo? n

PESQUISAS COMEÇARAM AINDA NA DÉCADA DE 70


O estudo de meteoritos no CBPF foi 5 bilhões de anos, o que permite explo- raios x, magnetização, entre outras.
introduzido pelo químico brasileiro rar as fases metaestáveis e de equilíbrio A solução de alguns dos proble-
Jacques Danon (1924-1989) ainda a baixas temperaturas. mas abordados só foi possível graças
na década de 1970, dando inicio a Investigamos suas propriedades físi- à utilização da infra-estrutura e das
um trabalho eminentemente inter- cas, químicas e mineralógicas, visando técnicas existentes no CBPF.
disciplinar, envolvendo intensa cola- conhecer efeitos térmicos e de choque, O Grupo de Meteoritos, Minerais
boração entre físicos, químicos, geó- processos ordem-desordem, taxas de e Ligas Metálicas mantém colabora-
logos e astrônomos nacionais e es- resfriamento, comportamento invar do ção com a PUC do Rio de Janeiro, o
trangeiros. sistema ferro-níquel, propriedades mag- Museu Nacional (Universidade Fede-
Desde então, nosso grupo tem néticas etc., através de várias técnicas ral do Rio de Janeiro), o Instituto Mi-
contribuído na elucidação de ques- como espectroscopia Mössbauer, mi- litar de Engenharia e com várias insti-
tões importantes relacionadas a es- croscopia óptica e eletrônica, difração de tuições internacionais.
ses objetos, que representam as ro-
chas conhecidas mais antigas do sis-
tema solar. Estes corpos extra-terres-
tres constituem um laboratório único
para o estudo de minerais e ligas fer-
ro-níquel, dando acesso a taxas de
resfriamento da ordem de 1 grau por

Izabel de Souza Azevedo (esq.) e Rosa Bernstein Scorzelli

28 REVISTA DO CBPF
[ESTRUTURA ELETRÔNICA] GRUPO DE ESTRUTURA ELETRÔNICA
Diana Guenzburger
Joice Terra
COLABORADORES
Donald Ellis (doutor)
Zeng Zhi (doutor)
Javier Gomez Romero (doutorando)
Patrícia Antunes Granzotto (mestrando)
Etienne Silva Ramos (graduando)

A estrutura eletrônica
da matéria
Os elétrons e os núcleos se acoplam para formar átomos, moléculas e

sólidos que constituem a matéria no mundo que conhecemos. Descobrir


como a estrutura microscópica da matéria se relaciona às suas pro-
priedades é um desafio que exige o emprego de métodos teóricos
complexos e sofisticados computadores.

Entre 1923 e 1932, ocorreu uma revolução na física. Foi principalmente


nesse período que se desenvolveu a chamada teoria quântica, que lida com os
fenômenos nas dimensões do diminuto universo das moléculas, dos átomos e
suas subpartículas.
A teoria quântica se iniciou em 1900, quando o físico alemão Max Planck
(1858-1947) propôs que, na natureza, a energia só pode ser gerada ou absorvida
em pequenos pacotes, os quanta (plural de quantum), rompendo com uma tradi-
ção de séculos na qual a energia era tida como um fluxo contínuo.
A partir daí, a teoria quântica se desenvolveu de forma surpreendente, expli-
cando fenômenos para os quais a então teoria existente, a mecânica clássica –
excelente para descrever fenômenos do mundo macroscópico e astronômico –,
mostrava-se inadequada ou insuficiente. Entre os problemas enfrentados sem
sucesso pela mecânica newtoniana estavam a estabilidade do núcleo dos átomos, >>>

REVISTA DO CBPF 29
[ESTRUTURA ELETRÔNICA]

COMPONENTE DE OSSOS E DENTES É UM DOS ALVOS DA PESQUISA


O Grupo de Estrutura Eletrônica do CBPF disso, por suas dimensões, podem apre-
tem trabalhado na aplicação de cálcu- sentar efeitos magnéticos estranhos –
los de estrutura eletrônica para sistemas duas dessas moléculas estão represen-
complexos. Apresentamos aqui, de for- tadas nas figura 1.
ma resumida, quatro exemplos de nos- Alguns materiais se estruturam pela
sas linhas de pesquisa. superposição de camadas de átomos do
Moléculas de grandes dimensões mesmo tipo. Nosso grupo estudou o
que contêm vários átomos de elemen- composto EuCo2P2, sólido formado por
tos de transição podem se comportar átomos dos elementos químicos európio
como magnetos (ímãs) microscópicos. (Eu), cobalto (Co) e fósforo (P), como
Esses sistemas apresentam interesse mostra a figura 2. Como os átomos de
Figura 2. Aglomerado representando a
tecnológico pela possibilidade de funci- Eu são muito pesados, foi necessário usar
molécula EuCo2P2, evidenciando a estru-
onarem como dispositivos de armaze- a extensão relativística da teoria de tura em camadas. As esferas maiores
namento de dados microscópicos. Além Schrödinger (teoria de Dirac). (rosa) representam os átomos de európio.
Os átomos de cobalto e fósforo estão re-
a b presentados respectivamente pelas esfe-
ras azuis e amarelas.

Annite é um silicato do grupo da


mica, conhecida por ser usada, por
exemplo, no interior de ferros de pas-
sar roupa, como isolantes elétricos. De-
vido ao tipo peculiar da estrutura crista-
lina da mica, materiais pertencentes a
Figura 1. Em a, representação de uma molécula de grandes dimensões (nanoscópica) este grupo têm sido usados na descon-
contendo 12 átomos de manganês (esferas vermelhas). As esferas menores são átomos taminação do meio ambiente do lixo nu-
de carbono (azuis) e oxigênio (verdes) – os átomos de hidrogênio não estão representa- clear – principalmente do elemento ra-
dos. Em b, molécula nanoscópica contendo 11 átomos de ferro (esferas azuis). As esfe-
dioativo césio. A figura 3 mostra a mica
ras menores são átomos de oxigênio – os átomos de hidrogênio não estão representa-
dos. Vislumbra-se que moléculas nanoscópicas possam funcionar como dispositivos de annite estudada por nosso grupo.
armazenamento de dados microscópicos, daí seu grande interesse tecnológico.

R=K, Cs K Si Al O

Figura 3. Aglomerado representando a estrutura da annite. São vis-


tos os átomos de potássio (esferas azuis), silício (pretas), alumínio
(cinzas) e oxigênio (vermelhas). A esfera central (amarela), geral-
mente ocupada por um átomo de potássio, pode dar lugar a um do
elemento radioativo césio, o que faz a annite ter aplicações na descon-
Diana Guenzburger (esq.) e Joice Terra taminação de lixo nuclear do meio ambiente.

30 REVISTA DO CBPF
[ESTRUTURA ELETRÔNICA]

EQUAÇÃO É FUNDAMENTAL NO UNIVERSO QUÂNTICO


A hidroxiapatita, mais conhecida pela A equação de Schrödinger é uma equação fundamental da teoria
sigla HAP, é o principal componente mi- quântica, mais especificamente da chamada mecânica quântica, um
neral dos ossos e esmalte dentário (fi- desdobramento que nasceu na década de 1920.
gura 4). Essa substância, formada por Para o universo de dimensões atômicas e moleculares, a equa-
átomos de cálcio, fósforo, oxigênio e hi- ção de Schrödinger é um equivalente das leis de movimento da
drogênio, como mostra a fórmula Ca10 mecânica clássica, introduzidas pelo físico inglês Isaac Newton (1642-
(PO4)6 (OH)2, tem sido intensivamente 1727), e das equações do eletromagnetismo (equações de
estudada e usada no reparo, na cons- Maxwell), propostas pelo físico escocês James Maxwell (1831-1879).
trução e na troca de partes doentes ou De modo simplificado, pode-se dizer que a equação de
danificadas do corpo humano. Schrödinger fornece a energia de um sistema, este podendo
As propriedades físicas da HAP são ser um átomo ou uma molécula. Resolvida essa equação, todas
fortemente influenciadas pela presença as propriedades do sistema estudado podem ser obtidas. Quan-
de impurezas, como átomos de flúor, clo- do esse sistema é muito complexo – por exemplo, formado
ro, ferro, cobalto, cobre, zinco, chumbo, por vários núcleos e elétrons –, os físicos têm que utilizar ou-
bem como íons carbonatados. Há uma tras ferramentas matemáticas para aproximar ou simplificar o
enormidade de estudos, usando várias problema.
técnicas, para entender o papel dessas
impurezas na solubilidade e no proces-
so de desmineralização da hidroxiapatita.
A investigação da estrutura eletrônica é as propriedades corpusculares e ondulatórias da matéria e o
fundamental para entender a relação espectro de luz emitido pelos átomos quando excitados por
entre os aspectos estruturais e as propri- radiação.
edades da HAP contaminada.
TRATANDO O PROBLEMA. Principalmente na década de 1920,
a teoria quântica obteve enorme sucesso teórico e experimental.
Sendo assim, logo nos primeiros anos da década seguinte,
alguns cientistas mais apressados acreditavam que todos os
problemas da química, da metalurgia, da cristalografia, bem
como os relacionados à biofísica, à bioquímica e ao estudo
da vida, estavam essencialmente resolvidos.
Visto de hoje, esse otimismo é compreensível, pois o
instrumental matemático e conceitual da teoria quântica se
mostrava poderoso. Particularmente, havia a chamada equa-
ção de Schrödinger, publicada em 1926 pelo físico austríaco
Erwin Schrödinger (1887-1961), prêmio Nobel de física de
1933. Sua equação possibilita calcular várias propriedades
dos átomos (ver ‘Equação é fundamental no universo
quântico’).
No entanto, na prática, a solução da equação de
Schrödinger para um sistema de vários núcleos e elétrons –
como é o caso de átomos, moléculas e materiais – é extre-
mamente complicada. Isso só foi possível para sistemas mais
Figura 4. Visão superior de um conjunto complexos com o desenvolvimento de métodos que envol-
de 1.800 átomos da hidroxiapatita, princi- viam aproximações, as quais tornavam o problema tratável.
pal componente mineral dos osso e es-
malte dentário. As esferas verdes e cinzas
são átomos de cálcio. As esferas laranjas
MOLÉCULAS E SÓLIDOS. Esses métodos de aproximação en-
são os átomos de fósforo. Todas as outras volvem cálculos numéricos também extremamente complexos
esferas representam os átomos de oxigê- e só puderam ser formulados e aplicados com o uso de máqui-
nio e hidrogênio. nas de calcular a partir da década de 1930 e com o apareci-
mento dos primeiros computadores na década de 1950. >>>

REVISTA DO CBPF 31
[ESTRUTURA ELETRÔNICA] [FÍSICA NUCLEAR]

MARCUS ALMEIDA/ÍCONE
Antes do advento dos computadores, só sistemas muito
simples, como pequenas moléculas – por exemplo, hidro-
gênio (H2), gás carbônico (CO), óxido de nitrogênio (NO) –,
podiam ser estudados pela teoria quântica. E mesmo estes
precisavam de uma simplificação.
Depois da década de 1950, graças ao aparecimento de
uma nova teoria – conhecida por funcional da densidade
(ou densidade local) – conferiu-se maior rapidez aos cálcu-
los, permitindo assim a investigação de moléculas grandes e
sólidos mais complexos.

SINERGISMO TOTAL. Em um sólido, as distâncias típicas entre


os átomos são de cerca 2 x 10-8 cm. Some-se a isso o fato de
alguns gramas de qualquer sólido conterem cerca de 1023
átomos, ou seja, o número 1 seguido de 23 zeros! Sendo Tanto o entendimento da radioativi-
assim, seria impossível resolver a equação de Schrödinger para
um sistema tão grande, caso não tivéssemos a ajuda do
teorema de Bloch. Este teorema demonstrou que a simetria dade quanto o sucesso na síntese de
de translação do sólido se reflete na função de onda y do
cristal. Os métodos baseados neste teorema são conhecidos
como ‘cálculos de bandas’. novos elementos químicos contaram
O campo de pesquisa científica que envolve a aplicação
de todos os métodos de resolução aproximada da equação
de Schrödinger para átomos, moléculas e sólidos é conheci-
do como estrutura eletrônica. Há um sinergismo total entre
com a ajuda de poderosa ferramenta
a evolução dessa área da ciência e o desenvolvimento dos
computadores, já que estes são a ferramenta fundamental
para os cálculos.
teórica de um dos mecanismos mais
IMPUREZAS E AGLOMERADOS. Nos sólidos cristalinos, os áto-
mos estão arranjados de forma periódica, de tal modo que
intrigantes da mecânica quântica:
há uma simetria de translação. Em outras palavras, podemos
determinar a posição de cada átomo nesse tipo de sólido
simplesmente deslocando, em todas as direções, um peque-
o efeito túnel.
no número deles – a chamada célula unitária.
Em muitos casos, a simetria translacional do cristal é que-
brada localmente devido à existência de impurezas, vacâncias
(‘vazios’) ou distorções na posição dos átomos. Outros sóli-
dos não têm essa periodicidade e são chamados ‘amorfos’ –
um exemplo de sólido amorfo é o vidro.
Pode-se estudar também apenas as propriedades locali-
zadas em um determinado átomo. Nesses casos, resolve-se a A geração de energia elétrica em usinas nucleares,
como as de Angra I e Angra II (acima), no sul do estado
equação de Schrödinger para um conjunto de átomos, cha-
do Rio de Janeiro, é uma das alternativas vantajosas
mado ‘aglomerado’ (cluster, em inglês), escolhidos para re- de suprimento de energia para um país como o Brasil,
presentar o sistema, sendo que a simulação da parte externa que detém reservas de urânio (o combustível dessas
ao aglomerado no sólido é feita de forma aproximada. usinas) superiores a 300 mil toneladas. A radioatividade
Ao longo de seu desenvolvimento, a área de estrutura do urânio e dos radioelementos que o sucedem
em uma espécie de cadeia radioativa natural é,
eletrônica, através do uso de técnicas experimentais e ferra-
por excelência, a propriedade nuclear de que se utiliza
mentas teóricas, vem contribuindo para o descobrimento de
o técnico de campo na identificação e caracterização
novos materiais cujas aplicações vão da medicina e eletrônica de ocorrências de urânio que possam se mostrar
à industria aeroespacial e informática. n técnica e economicamente viáveis.

32 REVISTA DO CBPF
GRUPO DE FÍSICA NUCLEAR
Odilon A. P. Tavares

Efeito túnel e
Sérgio J. B. Duarte

COLABORADORES
Alejandro Dimarco (pós-doutorando)
Marcello Gonçalves (pesquisador visitante)

estabilidade nuclear
Desde o início do século 20, as transformações de à desintegração alfa – as variedades nucleares do chumbo,
um núcleo atômico em outro, fenômeno conhecido por radi- mercúrio, tungstênio e o ouro presentes na natureza são
oatividade, têm sido objeto de importantes investigações teó- alguns poucos exemplos.
ricas e experimentais, bem como das mais diversas aplicações Foi somente na década de 1920, com o advento da
por físicos e químicos em todo o mundo. Por outro lado, a mecânica quântica, que a radioatividade alfa pôde ser com-
produção de novos elementos químicos além dos que ocor- preendida, a partir dos trabalhos pioneiros – e independen-
rem na natureza vem sendo também perseguida desde a tes – publicados em 1928 pelo físico russo George Gamow
década de 1940 e, mais recentemente, intensificaram-se os (1904-1968), bem como pelo físico norte-americano Edward
trabalhos em direção à produção de elementos superpesados. Condon (1902-1974), juntamente com o físico inglês Ronald
Certas variedades de núcleos atômicos presentes na nature- Gurney (1898-1953). Mais especificamente, foi através de
za – por exemplo, de urânio, tório, rádio e samário – são conhe- um mecanismo quântico conhecido por efeito túnel que se
cidas por se desintegrarem espontaneamente, emitindo pe- ampliou a compreensão sobre esse fenômeno (ver ‘Barrei-
quenas partículas nucleares que, em 1909, foram identificadas ra é transposta mesmo sem energia suficiente’).
como sendo núcleos de átomos do gás hélio pelos físicos e
químicos ingleses sir Ernest Rutherford (1871-1937) e Thomas FISSÃO ESPONTÂNEA. Duas décadas mais tarde, físicos nucle-
Royds (1884-1955). ares experimentais em diferentes laboratórios no mundo pas-
Essas partículas são conhecidas desde 1898 como ´partí- saram a observar o fenômeno conhecido por fissão espontâ-
culas alfa’. Vale acrescentar que, naquele mesmo ano, a nea, no qual o núcleo se divide em dois fragmentos de mas-
transmutação nuclear (transformação de um núcleo em ou- sas comparáveis. O urânio 238, bem como elementos mais
tro) recebeu o nome de ‘radioatividade’, dado pela física e pesados (transurânicos), são os melhores exemplos de nú-
química polonesa Marie Curie (1867-1934). cleos que exibem esse fenômeno.

DESINTEGRAÇÃO ALFA. Urânio,


BALANÇO DE MASSA-ENERGIA FAVORECE EMISSÃO
tório,
alguns de seus descendentes nas cha-
madas cadeias radioativas naturais (rá- O urânio 238 é um exemplo típico cula alfa – ou núcleo de hélio (42He) –,
dio, radônio e polônio, por exemplo) de elemento que se desintegra por dando como produto o núcleo do
e alguns elementos das terras raras emissão de partícula alfa. Seu nú- elemento químico tório (234 Th). Diz-
90
(neodímio, samário e gadolínio) pos- cleo é composto de 92 prótons se, então, que o núcleo 238U é ra-
suem a propriedade de emitirem par- (Z=92) e 146 nêutrons (N=146), dioativo (ou instável) com respeito
tículas alfa. sendo que a soma dessas partícu- à emissão alfa.
A grande maioria das espécies nu- las leva ao seu número de massa A radioatividade do 238U é em
cleares, no entanto, não exibe o fenô- (A=Z+N=238) – na notação cientí- parte possível porque a massa do
meno da radioatividade alfa, ainda que fica, simplificamos essas informa- 238
U é maior do que a soma das mas-
o balanço de massa-energia favoreça ções através do símbolo 238 U . sas do 234Th e da partícula alfa, ou ain-
92 146
sua ocorrência (ver ‘Balanço de mas- O núcleo de urânio 238 desin- da, o balanço de massa-energia é fa-
sa-energia favorece emissão’). Esses nú- tegra-se por emissão de uma partí- vorável a que ocorra a desintegração.
cleos são ditos estáveis com relação >>>

REVISTA DO CBPF 33
[FÍSICA NUCLEAR]

BARREIRA É TRANSPOSTA MESMO SEM ENERGIA SUFICIENTE


Para entender o efeito túnel, fare- obedece a certa equação de onda – a uma partícula transpor uma ‘barreira de
mos aqui uma analogia. Suponha- chamada equação de Schrödinger, pro- potencial’ sem para isso ter energia ciné-
mos, como na figura 1a, que uma posta em 1926 pelo físico austríaco tica suficiente (figura 1b). Diz-se, nesse
pequena esfera rola (sem deslizar) Erwin Schrödinger (1887-1961). caso, que a partícula transpôs a barreira
com velocidade uniforme sobre Com essa nova descrição, mostrou- por efeito túnel (ou por tunelamento).
uma superfície horizontal na qual se que há uma probabilidade p (pe- Ainda com base na figura 1b, o lei-
se encontra uma barreira a ser quena, é verdade, mas não nula) de tor com algum interesse em física e
transposta pela esfera.
P=mgh
Sendo T a energia cinética na su- REGIˆO I REGIˆO I I REGIˆO I REGIˆO I I
perfície (devida ao movimento) e P
a energia potencial no topo da bar- a b
reira (devida, no caso, à posição), o h
nosso entendimento ‘clássico’ do fe- m

nômeno nos diz que a transposição


T=mv 2/2
T P
da esfera da região I para a região II m v
b
só será possível quando T > P. Caso
contrário, o movimento da esfera
ficará restrito à região I. Figura 1. Em a, para vencer uma ‘barreira de potencial’ de altura h e chegar à região II, a
Entretanto, esse não é o caso energia cinética da esfera (T=mv2/2) deverá ser maior do que a energia potencial (P=mgh)
FIGURAS CEDIDAS PELO AUTOR

quando usamos as idéias da mecâ- imposta pela barreira – m é a massa da esfera, v a velocidade e g a aceleração da
gravidade. Em b, esquema mostra uma partícula subatômica de massa » 10-27 kg e energia
nica quântica para descrever o mo-
cinética T » 10-12 joule atravessando uma ‘barreira de potencial’ de energia P>T e largura
vimento das partículas subatômicas. b » 10-14 m. Esse fenômeno, denominado efeito túnel (ou tunelamento) ocorre porque no
Aqui, esse movimento é descrito por mundo subatômico sempre há uma probabilidade (pequena, porém não nula) de que a
uma onda associada à partícula, que partícula vença a barreira.

Normalmente, parte da energia total disponível para a No entanto, há casos – e modos – de fissão nuclear em
fissão é gasta como energia de excitação dos próprios frag- que os fragmentos são produzidos praticamente sem ener-
mentos. A fissão espontânea tem sido também descrita me- gia de excitação. Trata-se aqui da assim chamada ‘fissão fria’
diante o efeito túnel, em que a barreira de potencial a ser (figura 3a),, que vem sendo investigada durante os últimos dez
transposta tem, agora, uma forte componente nuclear atra- anos, tanto do ponto de vista experimental quanto teórico.
tiva, devido à força forte que age no núcleo para mantê-lo
coeso, competindo com a componente repulsiva, relativa às RADIOATIVIDADE EXÓTICA. Em 1975, um grupo de físicos nu-
cargas elétricas positivas dos fragmentos. cleares brasileiros, trabalhando no CBPF, anunciou a possibi-
lidade de que núcleos atômicos pesa-
dos viessem a se desintegrar esponta-

MODELO COMPARA NÚCLEO A GOTA LÍQUIDA neamente, emitindo fragmentos nuclea-


res maiores do que a partícula alfa, po-
Por mais de 35 anos, Grupos de Físi- neste artigo, inclusive fornecendo pre- rém bem menores do que os fragmen-
ca Nuclear que se sucederam no CBPF visões sobre a instabilidade nuclear e, tos da fissão ordinária – os trabalhos foram
têm se ocupado de temas relaciona- portanto, sobre a existência – ainda publicados nos Anais da Academia Bra-
dos à estabilidade nuclear, os quais que efêmera – de núcleos superpe- sileira de Ciências (vol. 47 n.3/4, p.567,
podem ser estudados pelo mecanismo sados de Z >112. 1975 e vol. 48, n.2, p. 205, 1976).
quântico conhecido por efeito túnel. Finalmente, o efeito túnel tem sido A verificação experimental dessa
O atual Grupo de Física Nuclear de- também aplicado na identificação dos possível nova forma de radioatividade
senvolveu o modelo ELDM (sigla, em pares de fragmentos mais favoráveis natural foi apresentada nove anos mais
inglês, para Modelo Efetivo de Gota para produção de elementos tarde por dois físicos ingleses da Uni-
Líquida), que é capaz de descrever de superpesados em reações nucleares versidade de Oxford, quando identifica-
uma maneira unificada as diferentes de fusão fria, o processo inverso das ram a emissão de carbono 14 pelo rá-
formas de radioatividade mencionadas desintegrações radioativas exóticas. dio 223 – o leitor interessado poderá
obter mais informações sobre a com-

34 REVISTA DO CBPF
[FÍSICA NUCLEAR]
30
a
ANTES
24 238
U

18 DEPOIS
P
a
α
234
Th
P um conhecimento básico de mate- T~197 MeV
S 200
12
mática poderá se aventurar ao cál-
culo da probabilidade (p) de uma
ENERGIA T ou P (MeV)

6 T~4,7 MeV
partícula vencer a barreira de po-
100

0 30 60 90 120 150
tencial. Isso é feito pela fórmula ANTES DEPOIS
p » 10-G, onde G=7,7bÖm(P-T)/h,
234 100 134
U Zr Te

ENERGIA T ou P (MeV)
12 ANTES
b S
157
Ta
sendo h=6,6x10-34 joule.s, também
P chamada constante de Planck, em 0 6 12 18 24 30

6
156
Hf
DEPOIS
p homenagem ao físico alemão Max
b
S Planck (1858-1947). P
100
T~1 MeV Na radioatividade alfa e na
T~74 MeV
0 30 60 90 120 150 desintegração por emissão de
SEPARA˙ ˆ O, S (fm) 50 ANTES DEPOIS
próton – esta última observada 234
U 206
Hg 28
Mg
Figura 2. Em a, barreira de potencial para em um pequeno número de nú- S
a desintegração do urânio 238 em tório
cleos ricos em prótons –, a barrei- 0 6 12 18 24 30
234 mais uma partícula alfa. A probabili- SEPARA˙ ˆ O, S (fm)
dade de tunelamento é muito pequena
ra de potencial a ser transposta
(p » 10-39). Em b, a probabilidade de tune- é essencialmente criada pela re- Figura 3. Em a, processo semelhante ao
lamento para o tântalo157 decair em pulsão eletrostática entre a car- descrito na figura 2, porém agora para a
háfnio 156 emitindo um próton é bem ga positiva da partícula alfa (+2), fissão fria do urânio 234 produzindo
maior que no caso anterior (p » 10-21). As zircônio 100 e telúrio134. Em b, a desinte-
ou a do próton (+1), e a carga
unidades para as grandezas dos eixos ver- gração exótica do urânio 234 em mercú-
positiva do núcleo residual, res- rio 206 e magnésio 28. Em ambos os
tical e horizontal são, respectivamente,
milhões de elétron-volt (1MeV=1,6x10-13 pectivamente, Z-2 (figura 2a) ou exemplos, a probabilidade de tunelamento
joule) e milionésimos de bilionésimo de Z-1 (figura 2b). é mínima, porém não nula (p » 10-47). As
metro (ou 1 fm = 10-15 m). unidades para as grandezas dos eixos ver-
tical e horizontal são como na figura 2.

provação do fenômeno na revista cientifica inglesa Nature Recentemente, físicos e químicos nucleares tanto norte-
(vol. 307, n.19, p.207 e 245, 1984), bem como na revista de americanos quanto russos relataram evidências experimen-
divulgação científica Ciência Hoje (vol. 3, n. 14, p. 18, 1984)). tais da produção de elementos superpesados com número
Hoje, são conhecidos 18 casos da chamada ‘radioativi- atômico acima de 112 (Z >112) (figura 4). Esse resultado
dade exótica’, em que fragmentos de carbono 14, oxigênio foi possível graças, em parte, a previsões teóricas feitas com
20, neônio 24, magnésio 28 e silício 34 podem ser emitidos base no efeito túnel, as quais indicaram não só a via de pro-
de núcleos mais pesados que o chumbo (Z=82). O efeito dução, isto é, os pares de fragmentos mais favoráveis para
túnel novamente aqui se aplica (figura 3b) para avaliar obtenção de elementos superpesados em reações nucleares
quantitativamente as taxas de desintegração e, conseqüen- de fusão fria, como também o período de sobrevivência des-
temente, prever possíveis novos casos de radioatividade (ver ses novos elementos. n
‘Modelo compara núcleo a gota liquida’).

Da esq. para dir.: Alejandro Dimarco, Odilon A.


Figura 4. Mapa de núcleos atômicos. Um par de números – no
P. Tavares e Sérgio J. B. Duarte.
caso, Z e N – define a localização de um núcleo no mapa.

REVISTA DO CBPF 35
GRUPO DE COMPUTAÇÃO E REDES
Márcio Portes de Albuquerque (doutor)

Computação
Nilton Alves Jr. (mestre)
Ismar Thomaz Jabur (engenheiro)
Ricardo Baia Leite (mestre)
Marita Maestrelli Leobons (analista de sistemas)
Marcelo Portes de Albuquerque (doutor)
Bruno Richard Schulze (doutor)
COLABORADORES
Aline da Rocha Gesualdi (mestre)
Jaime Paixão Fernandes Jr.

aliada à ciência
Sandro Luiz Pereira Silva
Denise Coutinho Alcântara Costa
Fernanda Santoro Jannuzzi
BELL LABS

A cooperação entre física e computação tem seu marco


no final da década de 40, quando, nos laboratórios da
empresa americana Bell Labs, foi inventado o transistor,

dando início à era da microeletrônica. Nestas últimas


cinco décadas, essa estreita colaboração tem gerado
O primeiro transistor, feito à base
do elemento químico germânio,
foi inventado em dezembro de
1947 nos laboratórios da compa-
avanços significativos para ambas.
nhia americana Bell Labs.

A física utiliza a computação para a realização de simula- quisadores, estejam na fronteira do conhecimento atual, co-
ções numéricas complexas, e a computação usa as descober- mo projetos na área de redes de computadores e pro-
tas científicas para construir dispositivos e computadores cada cessamento de imagens, que visam aliar a computação às
vez mais elaborados e eficientes. novas descobertas científicas, bem como aqueles que utili-
Inúmeros projetos com aplicações tecnológicas nasceram zam tecnologias avançadas voltadas ao ensino e à divul-
ou tiveram importantes aplicações em laboratórios de física em gação da física moderna.
todo o mundo. A popular World Wide Web, por exemplo, nas-
ceu da necessidade de manipular e divulgar grandes volumes ALTA VELOCIDADE. Na área de redes de computadores, o
de dados no Cern, o laboratório de física europeu para pes- CBPF participa do ambicioso projeto Rede Metropolitana de
quisas nucleares, com sede em Genebra (Suíça). Alta Velocidade (Remav), juntamente com a Universidade Fe-
Aplicações em ambientes de computação paralela, na qual deral do Rio de Janeiro, o Instituto de Matemática Pura e
várias tarefas são realizadas simultaneamente pelo computa- Aplicada, a PUC Rio de Janeiro, a Fundação Oswaldo Cruz e a
dor, tiveram grande avanço devido às simulações numéricas de empresa de telecomunicações Telemar.
colisões de partículas realizadas em laboratórios de pesquisa O Remav permite o desenvolvimento de técnicas nos mol-
em física de altas energias, como o Fermilab (Estados Unidos). des da Internet 2, a nova estrutura de comunicação em
No CBPF, o Grupo de Computação e Redes tem a preo- altíssimas velocidades que possibilita o desenvolvimento de
cupação constante em pôr em prática projetos tecnológi- projetos que integrem em alta qualidade vídeo, voz e dados.
cos que, além de corresponderem aos anseios dos pes- O Rio de Janeiro foi o primeiro estado brasileiro a disponibilizar

36 REVISTA DO CBPF
[ I N F O R M Á T I C A ]

essa tecnologia aos grupos de pesquisas e à comunidade


COORDENAÇÃO DE ATIVIDADES TÉCNICA (CBPF)

acadêmica em abril de 1999.


Mais precisamente, estamos preocupados em desenvolver
protocolos (mecanismos para troca de mensagens entre dois
sistemas de comunicação) que permitam utilizar e gerenciar efi-
cientemente uma rede de alta velocidade, integrando serviços
de necessidades específicas, como videoconferência aliada à co-
laboração e ao controle remoto de instrumentos de medidas.
Assim, mantemos colaboração constante, por meio de téc-
nicas de videoconferência, com o laboratório Ravel (Redes de Alta
Velocidade) da Coordenação dos Programas de Pós-graduação
em Engenharia (Coppe), da Universidade Federal do Rio de Ja-
neiro, para estudar técnicas de transferência de vídeo e áudio em
redes ATM (Asynchronous Transfer Mode), técnica de comuni-
cação que suporta elevadas taxas de transferência de dados Figura 1. A figura mostra um laboratório virtual onde se pode
com diferentes qualidade de serviço. realizar a experiência sobre o efeito Compton. Tecnologias
É também finalidade do projeto Remav integrar serviços de multimídia permitem posicionar o detector (caixinha pre-
ta à direita) em quatro posições distintas e observar a varia-
de laboratórios de física na cidade do Rio de Janeiro. Um
ção do chamado deslocamento Compton através de gráficos.
exemplo disso ocorre entre o laboratório de nanoscopia da

ENGENHARIA OPERACIONAL DA REDE FICA POR CONTA DO CBPF


REDE RIO DE COMPUTADORES (FAPERJ)

O CBPF é também um importante pon- O esquema da Rede Rio 2 pode A Rede Rio oferece conexão à
to de presença da Rede Rio 2, da Fun- ser visto na figura 2. O principal objeti- Internet a 70 instituições diretamente e
dação Carlos Chagas Filho de Amparo vo dessa rede é oferecer à comunidade mais de 50 indiretamente, estando liga-
à Ciência do Estado do Rio de Janeiro. acadêmica do Rio de Janeiro o acesso da à Rede Nacional de Pesquisas a
Abriga em suas instalações a Coordena- à Internet. Para isso, dispõe de um anel 100Mbps. Conta ainda com um enlace
ção de Engenharia Operacional (CEO) em fibra óptica interligando instituições direto aos Estados Unidos de 26Mbps.
dessa rede metropolitana. em alta velocidade (155Mbps). Ela foi pioneira na criação de um
Lab. Ravel/COOPE backbone de alta velocidade no Brasil.
CIET/SENAI
LLS Os engenheiros da CEO gerenciam
IRD
CENPES
ANP ETFQ os diversos equipamentos dessa re-
SUAM
REDETEC de, implementando novas tecnologias
PRODERJ CMRJ
CARIOCA
IPLAN/RJ de comunicação e garantindo a se-
CEPEL SEFCON
gurança da rede entre outras atividades.
HEMORIO UNIGRANRIO

INMETRO
UFRJ UENF

CETEP/Quintino G.L.CASTRO
TELEPORTO
IEN CEFET/Campos
Figura 2. O CBPF é um importante
ponto de presença da Rede Rio 2
FIOCRUZ TELEMAR
rede rio
de computadores LNCC
UCP
64K
e participa do projeto Rede
Metropolitana de Alta Velocidade.
CNEN 128K
J.BOT´ NICO IBC 256K Em função dessa estrutura
UNIRIO 384K
CETEM
ON
M. ˝NDIO
512K moderna, grupos de pesquisas
UFF CEN 1M
C. TERESIANO
2M
têm maior agilidade na troca de
PINEL CPRM 10M informação e estão interligando
26M
FURNAS
PUC-Rio CBPF UNIVERCIDADE 100M seus laboratórios. O CBPF
IMPA INT
IMPSAT
155M
mantém também a Coordenação
FESP UFRRJ
FAPERJ
USU de Engenharia Operacional,
Enlace Internacional
E. AMERICANA
IUPERJ
UERJ/Resende
que é responsável pelo
UERJ UFRJ/P. Vermelha funcionamento da Rede Rio.
IPEA
ABC BN RNP >>>
CEP FGV
FAA TCE PRT Enlace Internacional
IBPI Enlace Internacional
MAST DATASUS BNDES UVA
EMBRAPA CEFETE/RJ
FINEP FUNARTE

IME ECEME
REVISTA DO CBPF 37
[ I N F O R M Á T I C A ]

tos. Outro aspecto importante é que alunos de graduação


praticamente elaboraram todo o conteúdo, que foi posterior-
mente analisado por professores de ensino médio durante
a Escola de Verão do CBPF. Várias mudanças foram sugeridas,
bem como incrementos que ainda estão em fase de conso-
lidação.
A figura 1 mostra, por exemplo, um laboratório virtual
construído com base nas tecnologias avançadas de multimídia.
Com essa aparelhagem virtual, pode-se realizar o experimen-
to do efeito Compton, que foi crucial no início da década de
1920 para demonstrar que, na dimensão atômica, os objetos
se comportam tanto como ondas quanto como partículas –
o nome do efeito é uma homenagem ao físico americano
Sentados (esq. para dir.): Nilton Alves Jr. e Aline da Rocha Arthur Compton (1892-1962), que, por essa descoberta, ga-
Gesualdi; em pé (esq. para dir.): Marcelo Portes de nhou o prêmio Nobel de física de 1927.
Albuquerque, Ismar Thomaz Jabur e Márcio Portes de
Albuquerque. ÁREA EM EXPANSÃO. O Grupo de Computação e Redes está en-
volvido também na extração de resultados de medidas de
experiências físicas através do processamento digital de ima-
PUC Rio de Janeiro e o do Grupo de Nanoscopia do CBPF gens.Hoje, é muito comum comportamentos físicos descri-
(ver nesta edição ‘A microscopia do novo milênio’). tos sob a forma de imagens. Alguns laboratórios de física ex-
Esses laboratórios permitirão uma maior agilidade na co- perimental usam técnicas de análise de imagens para restau-
laboração entre grupos de pesquisas, através de ferramen- rar, segmentar, reconhecer ou interpretar resultados físicos.
tas computacionais como a videoconferência de alta quali- A disciplina de processamento de imagens auxilia pesqui-
dade e o compartilhamento remoto de dados. Esperamos sadores na análise de suas medidas, como, por exemplo, na
que no próximo ano pesquisadores e alunos das duas ins- contagem de grãos que formam a trajetória de partículas em
tituições possam interagir e acompanhar experimentos rea- chapas fotografias especiais (emulsões nucleares); na evolu-
lizados a distância. ção das diminutas regiões (domínios) que formam um mate-
rial magnético; no cálculo da distribuição do magnetismo dentro
EXPERIMENTOS VIRTUAIS. O projeto Física Moderna na Web, da estrutura atômica; na separação de isótopos; na forma
em colaboração com o Grupo de Pesquisa em Ensino de Física como computadores, através das chamadas redes neuronais,
da PUC São Paulo, tem por objetivo desenvolver um portal reconhecem imagens e padrões, entre outras aplicações.
web dedicado à chamada física moderna, que lida com fenô- O processamento de imagens é, certamente, uma área
menos na dimensão dos átomos e suas subpartículas. O por- em expansão nos laboratórios de física experimental. Sua
tal estará voltado a estudantes e professores de ensino médio, interdisciplinaridade faz com que o Grupo de Computação
bem como acessível a qualquer pessoa interessada no assunto. e Redes participe ativamente do mestrado de instrumentação
A idéia básica é usar tecnologias atuais de multimídia – do CBPF, que tem como objetivo formar físicos e engenhei-
como DHTML, Flash, imagens 3D, áudio, vídeo, streamer, Java, ros especializados.
entre outras – para que o visitante veja algo mais do que O grupo mantém também colaboração com univer-
uma simples reprodução digital de um sidades e iniciativa privada, desenvol-
livro. O portal deverá ter navegabilidade MAIS INFORMAÇÕES: vendo projetos e proporcionando a
sutil, isto é, apresentará situações que COORDENAÇÃO DE ATIVIDADES TÉCNICAS pequenas e microempresas suporte
não sejam óbvias – semelhantes, por http://www.cbpf.br/cat qualificado para a transferência de
exemplo, a um quebra-cabeça – como REDE METROPOLITANA DE ALTA VELOCIDADE tecnologias de competência do CBPF.
uma forma de estímulo que transcende http://mesonpi.cat.cbpf.br/remav Assim, o Grupo de Computação e Re-
os objetos relativos ao tema. REDE RIO des vem favorecendo o desenvolvi-
Além disso, a Física Moderna na Web http://www.rederio.br/ mento tecnológico de empresas en-
FÍSICA MODERNA NA WEB
abordará os principais conceitos e ex- gajadas em pesquisa, bem como da-
http://mesonpi.cat.cbpf.br/fismod
perimentos que caracterizaram a físi- quelas que desejam interagir com a
FAPERJ
ca no início do século 20, através de comunidade científica e acadêmica do
http://www.faperj.br
simulações, filmes, figuras, gráficos e tex- Rio de Janeiro. n

38 REVISTA DO CBPF
[ N A N O S C O P I A ] GRUPO DE NANOSCOPIA
Aníbal Omar Caride
Susana I. Zanette

A microscopia
COLABORADORES
Valéria B. Nunes (mestre)
José Gomes Filho (mestre, engenheiro)

do novo milênio
Desde o século 17, quando o microscópio óptico foi inventado, até
meados do século 20, quando surgiram novos tipos desses equipa-
mentos, era impossível a visualização de objetos de dimensões

menores que alguns milésimos de milímetros. Porém, a invenção


dos microscópios de varredura por sonda abriu o caminho para a
realização, em escala nanoscópica e tridimensional, de um velho

sonho do cientista: a visualização de átomos e moléculas.

No início da década de 1980, o físico alemão Gerd


Binning e o físico suíço Heinrich Rohrer estudavam as forças
que agiam entre elétrons da superfície de um metal e uma
ponta metálica nos laboratórios da empresa IBM, em Zurique
(Suíça). A pesquisa, inicialmente voltada ao estudo das
interações da matéria, iria se transformar em um dos apare-
lhos mais fantásticos que existem atualmente: o microscópio
de varredura, que, pouco depois, daria origem a uma grande
família de equipamento semelhantes, todos usados para ob-
servar objetos em escala atômica.
Neste artigo, iremos nos deter a um dos mais versáteis
integrantes dessa família: o microscópio de força atômica –
mais conhecido pela sigla, em inglês, AFM. Seu princípio de
funcionamento é muito simples, e sua melhor propriedade – >>>

REVISTA DO CBPF 39
[ N A N O S C O P I A ]

Laser

Espelho Figura 1. Esquema de um microscópio de força


atômica. Enquanto o cantilever varre a amostra,
A B
apoiada sobre uma cerâmica, a luz do laser,
que incide sobre ele, é refletida para
C D um espelho que a leva até um detector,
que mede as deflexões do braço e envia
as informações para um computador,
Detector que as transforma em imagem.
Cantilever

Amostra
REVESTIMENTOS E PELÍCULAS. O fotodetector
Varredu mede as deflexões do braço causadas pelas
r a
rugosidades da amostra quando ela é varrida
Cer mica
piezoelØtrica pela ponteira. Os resultados dessas medidas são
transferidos para um computador que, utilizan-
do um software especificamente feito para isso,
não compartilhada com nenhum outro aparelho de observa- transforma a informação em uma imagem da superfície. Um
ção nessa escala – é a visão dos objetos em três dimensões. exemplo é mostrado na figura 2, onde temos a imagem de
O AFM é composto basicamente por uma ponta (ou son- um filme de grafite obtida em nosso laboratório.
da) que varre a superfície da amostra em estudo. Assim, me-
São inúmeras as aplicações que decorrem desse tipo de
de-se a força de interação entre os átomos da ponta e os da
pesquisa. Investigar a superfície de uma amostra resulta no
superfície, e os resultados são transformados em imagens da
conhecimento de propriedades chamadas tribológicas, como
amostra, com a ajuda de recursos computacionais.
rugosidade, dureza, rigidez, elasticidade, atrito, entre outras,
que serão usadas na indústria, por exemplo, para obter re-
ATRAÇÃO E REPULSÃO. São várias as forças envolvidas nessa var- vestimentos de alto impacto, películas protetoras, etc.
redura, mas fundamentalmente resumem-se a dois tipos: as de
atração e as de repulsão. As primeiras, chamadas forças de van BACTÉRIAS MAGNÉTICAS. Mas a utilidade de um AFM não pára
der Waals, cuja origem é química, atuam a distâncias que variam por ai. Com pequenas modificações introduzidas no microscó-
de 100 nanômetros a algumas unidades dessa escala – um pio de força atômica, é possível estudar cargas superficiais, do-
nanômetro equivale a um bilionésimo de metro, ou seja, 10-9 mínios elétricos e magnéticos e muitas outras propriedades.
metro. Já as forças repulsivas agem quando a ponta entra em Ou seja: é possível fazer pesquisa básica em materiais (ver
contato com a superfície e têm sua origem no princípio de exclu- também nesta edição ‘O impacto dos materiais avança-
são de Pauli, nome dado em homenagem ao físico austría- dos’). Na figura 3, vemos uma imagem de uma
co Wolfgang Pauli (1900-1958), Nobel de física de bactéria magnética que tem cristais de
1945 – em termos práticos, esse princípio impe-
de que dois corpos ocupem o mesmo
lugar no espaço.
Um esquema simplificado
LABORATÓRIO DE NANOSCOPIA JORGE S. HELMAN (CBPF)

do microscópio AFM é
mostrado na figura 1,
onde vemos uma amostra –
apoiada sobre uma cerâmica espe- Figura 2. Imagem
cial (piezoelétrica) que serve para po- tridimensional de um filme
sicioná-la -, cuja superfície é percorrida por uma de grafite obtida com microscópio
ponteira suportada por um braço de apoio, chama- de força atômica. Na figura, as medidas
de comprimento e extensão estão em
do cantilever. Nesse braço, incide a luz de um laser, que se
nanômetros (bilionésima parte do metro)
reflete na superfície do cantilever, vai para um espelho e final- e as de altura, em angström (1Å equivale a um
mente alcança um fotodetector de quatro seções. décimo de bilionésimo de metro).

40 REVISTA DO CBPF
[ N A N O S C O P I A ]

LABORATÓRIO DE NANOSCOPIA JORGE S. HELMAN (CBPF) – BACTÉRIA CEDIDA PELO LABORATÓRIO DE BIOFÍSICA (CBPF)

Figura 3. Imagem de bactéria magnética feita com


microscopia de varredura. O microrganismo – no caso,
multicelular – usa os ímãs (cristais de magnetita)
em seu interior para orientar seu movimento segundo
o campo magnético da Terra. As medidas estão
em micrômetros (µm, milionésimo de metro)
e em nanômetros (nm, bilionésimo de metro).

nésimo de metro (ou 1 Å) e a 10 Å, na direção perpendi-


cular ao plano da amostra.
Com certeza, naquele início da década de 1980, Rohrer e
Binnig não imaginavam que, ao investigar as forças entre su-
perfícies e pontas afiadíssimas, estariam criando a microscopia
magnetita em seu interior, o que lhe permite se orientar e se do novo milênio, ao chegarem aos princípios básicos do STM,
movimentar segundo o campo magnético terrestre. que se consagrou como o pai de toda uma família de novos
A grande família de microscópios de varredura, conheci- microscópios. Em 1986, receberam o Nobel de física por sua
da como SPM (sigla, em inglês, para microscópio de ponta invenção. n
de prova), é conhecida também como família de sonda de
campo próximo, pois, em todas as suas variações, utiliza
uma ponteira – para varrer a superfície a ser pesquisada –
que permanece muito próxima ou em contato com a super-
fície. Isto permite a obtenção de imagens com resoluções
que chegam, no plano da superfície, a um décimo de bilio-

EQUIPE CENTRA FORÇAS EM NOVO MICROSCÓPIO


O Laboratório de Nanoscopia Jorge mite que elas sejam usa-
S. Helman, do CBPF, possui um mi- das simultaneamente
croscópio de força atômica, que, como sondas para var-
como já dissemos, permite a rer a superfície e como
visualização dos objetos em três di- coletoras da luz para o Sentado: José Gomes Filho; em pé (esq. para dir.): Aníbal
Omar Caride, Valéria B. Nunes e Susana I. Zanette
mensões. estudo de centros de
Com pequenas modificações in- cor de uma amostra.
troduzidas no AFM, é possível estu- As vantagens desse tipo de equipa- Inagurado em 14 de abril de 1998,
dar, por exemplo, cargas superficiais, mento são muitas. Pela forma com que nosso laboratório ao longo destes
domínios elétricos e magnéticos, bem opera, não produz danos na superfície, anos tem se dedicado a várias linhas
como fazer pesquisa básica em ma- o que possibilita a repetição da experi- de pesquisa envolvendo microscopia
teriais. Outro tipo de modificação – a ência tantas vezes quantas forem neces- de varredura. Atualmente, estamos de-
substituição da ponteira normalmen- sárias. A preparação das amostras a se- senvolvendo a construção de um ou-
te usada, de nitreto de silício (Si3N4), rem estudadas é simples, bastando uma tro integrante da família SPM: o mi-
por uma de fibra óptica, construída boa limpeza para que não haja proble- croscópio óptico de varredura de cam-
em nosso laboratório – permite que mas com a varredura. po próximo (SNOM), que é uma com-
esse equipamento seja também usa- Nos estudos feitos em nosso labora- binação de um SPM com um micros-
do para estudar propriedades ópticas tório, não é necessário o uso de vácuo. cópio óptico convencional.
da amostra. É preciso apenas ar puro ou atmosfera Mais informações sobre o Labo-
Através da fibra, passa-se um feixe de gás argônio, bem como pouca umi- ratório de Nanoscopia Jorge S. Hel-
de luz que incide sobre a superfície es- dade e um local silencioso, para que man no endereço www.nanos.cbpf.br,
tudada. As ponteiras de fibra óptica são vibrações espúrias não interfiram nas onde há apostilha atualizada e rela-
afuniladas na extremidade, o que per- medidas realizadas. ção de trabalhos feitos.

REVISTA DO CBPF 41
[CAOS QUÂNTICO] GRUPO DE CAOS QUÂNTICO
Alfredo Miguel Ozorio de Almeida

Caos e
Raúl Oscar Vallejos

mecânica quântica
As áreas de caos e mecânica quântica nasceram há cerca de cem anos, mas permaneceram
praticamente isoladas até a década de 1970. Hoje, o estudo quântico de sistemas não lineares,
às vezes chamado caos quântico, já avança em direção às aplicações tecnológicas: é bem

provável que dependam dessa teoria as propriedades dos futuros dispositivos eletrônicos.

A descoberta de que a maioria


dos movimentos na mecânica clássica
é extraordinariamente sensível ao es-
tado inicial do sistema teve origem, há
mais de um século, nos trabalhos so-
bre mecânica celeste do matemático
francês Henri Poincaré (1854-1912).
Com o uso do computador, foi pos-
Figura 1. Um bilhar formado por uma Figura 2. Fixando uma segunda bola à
sível verificar a generalidade desse ‘mo- só bola e mesa retangular sem mesa, obtemos o chamado bilhar de
vimento caótico’ para os mais variados caçapas não é caótico. Depois de qua- Sinai. A segunda bola desfocaliza as
sistemas. O exemplo citado com mais tro colisões com a borda, a trajetória trajetórias da primeira, gerando um
freqüência é o do clima da Terra. Pe- da bola volta a ter a mesma direção. movimento irregular ou caótico.
quenas alterações na temperatura e
pressão em uma certa região do plane-
ta podem causar, por exemplo, nevascas, tormentas, furacões Surge assim uma pergunta intrigante: qual é o compor-
ou inundações em outras parte da Terra. tamento quântico de um sistema que seria caótico se trata-
Esse foi um exemplo de comportamento caótico em um do classicamente?
sistema físico de grandes dimensões. Entretanto, o caos tam-
bém está presente em sistemas microscópicos, como grandes BILHAR CAÓTICO. Para se entender alguns dos problemas
moléculas. A dinâmica, isto é, o modo como esses sistemas mais profundos da física, às vezes o melhor caminho passa
evoluem com o tempo, só pode ser descrita de modo aproxi- por analogias divertidas. Um dos sistemas mecânicos mais
mado pela mecânica clássica. Sua descrição correta exige a simples a apresentar caos é o do jogo de bilhar.
mecânica quântica, teoria que rege os fenômenos naturais O movimento de só uma bola em uma mesa retangular
nas dimensões moleculares, atômicas e subatômicas. (sem caçapas) não é caótico. Como mostra a figura 1, o

42 REVISTA DO CBPF
[CAOS QUÂNTICO]

COMO UMA ONDA. Quando falamos em focalizar, pensamos


normalmente em raios de luz, antes de imaginar trajetórias. Em
geral, na prática, estamos interessados na trajetória única de uma
dada partícula, enquanto a luz que vemos é descrita como o
efeito coletivo de muitos raios. A razão é que lidamos, de fato,
com uma onda, da qual a óptica geométrica é apenas uma
descrição aproximada.
Figura 3. Se adicionarmos duas partes semicirculares ao bilhar
retangular, obtemos o chamado bilhar de Bunimovich, um bilhar O matemático irlandês William Hamilton (1805-1865)
caótico muito popular na comunidade do caos quântico. Aqui, o mostrou que podemos usar a mesma estrutura matemática
caos é devido ao efeito desfocalizador dos arcos circulares. para descrever tanto os raios da óptica geométrica quanto as
trajetórias da mecânica clássica – por exemplo, os esguichos
de uma fonte desenham as trajetórias parabólicas das ‘partí-
movimento geral da bola neste caso terá sempre a mesma culas’ de água sujeitas à força da gravidade. A analogia entre
direção depois de quatro colisões com a borda da mesa. óptica e mecânica permitiu que o físico francês Louis de Broglie
Uma pequena alteração na posição inicial da bola levará a (1892-1987) e o austríaco Erwin Schrödinger (1887-1961)
um desvio de sua trajetória que cresce lentamente, enquanto criassem a chamada mecânica quântica ondulatória, que trata
duas trajetórias inicialmente paralelas permanecerão sempre o átomo e suas subpartículas como fenômenos ondulatórios
paralelas. em vez de encará-los como corpúsculos.
Porém, a presença de uma segunda bola alterará fun-
damentalmente o movimento da primeira. Mesmo que sim-
plifiquemos o jogo, prendendo uma bola no meio da mesa,
como sugeriu o matemático russo Yacob Sinai, seu efeito se-
rá o de desfocalizar as trajetórias da outra bola, como mos-
tra a figura 2.. Podemos considerar que o papel da segunda
bola é meramente o de alterar a forma do bilhar – que pas-
sou a ter uma borda interior, representada pelo contorno da
bola extra.
Este é um exemplo particular de bilhar caótico. Em geral,
um bilhar qualquer, mesmo com uma forma pouco irregular,
será caótico. A figura 3 mostra o caso do chamado bilhar de Figura 4. Um dos modos de vibração de um tambor retangu-
lar. A figura representa o relevo da membrana do tambor
Bunimovich, assim batizado em homenagem ao matemático
fotografado em um dado instante. Observe que o padrão é
russo Leonid Bunimovich. A desfocalização das trajetórias é a completamente regular.
principal característica do caos na mecânica clássica.

TRABALHO CONJUNTO SOLUCIONOU PROBLEMA


Será que é possível determinar a for- Hoje, sabemos que a resposta à Oriol Bohigas. Ela mostra que no caso
ma de um tambor unicamente atra- pergunta é negativa: existem bilhares de dos bilhares (ou tambores) caóticos
vés do espectro de freqüência emi- forma diferente com o mesmo espec- é muito menos provável haver duas
tido por ele? tro. Entretanto, aprendemos muito so- freqüências de vibração quase iguais
Um dos resultados mais impor- bre as propriedades do espectro de bi- do que no caso de um sistema regu-
tantes da teoria do caos quântico se lhares caóticos. lar, como na figura 1.
refere às propriedades do espectro Essas propriedades estão descritas A explicação desse resultado em
de freqüência de um sistema classi- pela conjectura de Bohigas, ou seja, uma termos das trajetórias clássicas foi fru-
camente caótico, como os bilhares hipótese considerada provavelmente ver- to de trabalho, na década de 1980,
das figuras 2 e 3 ou também os tam- dadeira, mas ainda não demonstrada de Michael Berry e John Hannay, na
bores com o mesmo formato das – o nome da conjectura é homena- Inglaterra, e Alfredo Ozorio de Almeida,
mesas.. gem ao seu idealizador, o físico catalão atualmente no CBPF.
>>>

REVISTA DO CBPF 43
[CAOS QUÂNTICO]

CEDIDO POR D. WISNIACKI, CNEA, BUENOS AIRES


A FORMA DE UM TAMBOR. O problema quântico correspon-
dente ao jogo do bilhar clássico é o de saber quais ondas
cabem nas formas das figuras 1, 2 ou 3. O melhor, então, é
pensar nas vibrações de um tambor, cujo contorno tenha a
mesma forma da mesa de bilhar. O som que ouviremos em
cada caso poderá ser decomposto em movimentos ondula-
tórios da membrana do tambor, de freqüências diferentes.
Será que podemos ‘ouvir a forma de um tambor’?
Figura 5. Um modo de vibração de um tambor com a forma
Esta é uma das questões iniciais no estudo do caos quântico,
do bilhar de Bunimovich. O relevo da membrana não apre-
formulada pelo matemático norte-americano Marc Kac. Em senta regularidade alguma, exceto as simetrias
outras palavras, sabemos que, para cada forma de nosso tam-
bor, corresponde uma única seqüência (ou espectro) de fre-
qüências de vibração, uma vez dada a tensão da membrana. Entre muitas aplicações da teoria, destaca-se a tecnologia de
Será que o conhecimento desse espectro de freqüências nanoestruturas em semicondutores. Os ‘pontos quânticos’
determina univocamente a forma do tambor? De fato, não é minúsculos que a nanoengenharia produz para aprisionar
necessariamente único o tambor com um dado espectro, mas um pequeno número de elétrons são o ponto de partida
esta é uma das propriedades fundamentais de um sistema para futuras gerações de dispositivos eletrônicos. Suas formas
quântico (ver ‘Trabalho conjunto solucionou problema’). podem ser alteradas exatamente como as dos tambores e
dos bilhares que usamos como exemplo.
BILHARISTAS E BATERISTAS. Além de explicar propriedades Os transistores atuais – de dimensões enormes se com-
mais definidas do espectro de freqüência dos sistemas parados com os pontos quânticos – podem ser considera-
quânticos, os trabalhos em caos quântico procuram enten- dos como sistemas clássicos. Em contraposição, as proprieda-
der a estrutura de cada estado, ou seja, em nossa analogia des dos futuros dispositivos terão de ser entendidas dentro
isso corresponderia à estrutura do relevo da membrana do da teoria do caos quântico. n
tambor fotografado em um dado instante, quando este vibra
com uma única freqüência.
Aqui, de novo, a forma da borda determina esse relevo, e a
distinção principal está em o movimento do bilhar correspon-
dente ser ou não caótico. Nas figuras 4 e 5, vemos exemplos
de vibrações, respectivamente, regular e caótica.
Fora os jogadores de bilhar e os bateristas de escola de
samba, quem mais poderia ter interesse no caos quântico?
LABORATÓRIO ‘MARCUS’ DE FÍSICA MESOSCÓPICA – UNIVERSIDADE HARVARD

Raúl Oscar Vallejos (esq.) e


Alfredo Miguel Ozorio de Almeida.

CAOS QUÂNTICO.
O Grupo de Caos Quântico do CBPF mantém e sedia o projeto ‘Sistemas Hamil-
tonianos: Caos e Quantização’, que é um dos projetos do Programa de Núcleos
de Excelência (Pronex) e envolve pesquisadores da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro, PUC Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Figura 6. Microfotografia de um pon-
Universidade Estadual de Campinas e Universidade Federal de Minas Gerais.
to quântico, isto é, um transistor de
dimensões menores que um mícron O objetivo do projeto, em linguagem mais técnica, é estudar o limite
(milionésimo de metro). As partes semiclássico de sistemas quânticos cujo limite clássico seja caótico. Os conheci-
claras são os eletrodos, que definem mentos já estabelecidos sobre esses sistemas formam um instrumento podero-
as bordas deste ‘bilhar’ diminuto. A so para a compreensão de fenômenos em física atômica e nuclear e, mais
curva indica a trajetória hipotética de
recentemente, em física da matéria condensada.
um elétron atravessando o transistor.

44 REVISTA DO CBPF
GRUPO DE BIOFÍSICA
Darci M. de Souza Esquivel
Eliane Wajnberg
Lea Jaccoud El-Jaick

Biominerais
Geraldo Cernicchiaro
COLABORADORES
Leida Abraçado (mestranda)
Marcos André P. O. Guedes (iniciação cientifica)

magnéticos
Você já observou as trilhas de formigas trazendo comida para o
formigueiro? Já pensou como é que o pombo-correio se orienta para
voltar ao lar quando está distante dezenas de quilômetros? Essas são

apenas duas das várias questões


MOEBIUS BAND II, M. C. ESCHER (1963)

intrigantes sobre o mecanismo de


orientação magnética de seres vivos.

Todo ser vivo de nosso planeta interage com


seu meio ambiente. Essa interação é um processo dinâmico
que vai produzindo alterações mútuas e adaptando as espé-
cies a seu meio, garantindo assim a sobrevivência delas.
O campo geomagnético faz parte do meio ambiente e está
presente, de forma ininterrupta, na Terra desde antes do
surgimento da vida, embora sua existência só tenha sido co-
nhecida há quatro séculos. Variando no tempo e no espaço,
sua intensidade é da ordem de 0,5 oersted (0,5 Oe), cerca de
20 vezes menos intenso que o campo magnético gerado por
um ímã de geladeira – a unidade oersted é uma homenagem
ao físico dinamarquês Hans Christian Oersted (1777-1851),
descobridor da ação magnética de uma corrente elétrica.
Na região abrangendo Rio de Janeiro, São Paulo, Minas
Gerais e parte do oceano Atlântico, há uma grande anomalia >>>

REVISTA DO CBPF 45
[ B I O F Í S I C A ]

-75” -55” -35”


magnética, com campo da ordem de 0,2 oersted, a chamada
10”
Anomalia Magnética do Atlântico Sul (figura 1).
0.33
Estudos do efeito do campo geomagnético no com-
0.32

0.31 portamento dos seres vivos buscam compreender os me-


0.30 canismos de percepção envolvidos, por exemplo, nos fe-
0.29
nômenos de migração dos animais, de orientação no pro-
0.28
cesso de busca de alimentos e na volta ao lar feita pelos
0.27
pombos-correio. Embora esse efeito no comportamento se-
0.26
ja hoje reconhecido, os diferentes mecanismos que cada
espécie utiliza para perceber esse campo são ainda pouco
0.25
compreendidos.
20”

Anomalia 0.24
BÚSSOLA VIVA. Somente no caso de microrganismos mag-
MagnØtica do néticos, a magnetotaxia, um mecanismo de resposta passiva,
Atl ntico Sul é bem compreendida do ponto de vista da física.
Em 1975, pela primeira vez , foram observadas peque-
nas partículas de um material magnético formando uma ca-
deia linear dentro do citoplasma de uma bactéria. A magnetita,
40” um óxido de ferro biomineralizado e fortemente magnético,
Figura 1. Gráfico mostra a variação da intensidade do campo foi encontrado como constituinte dessas partículas.
magnético terrestre sobre o Brasil. A chamada Anomalia Mag- A resposta passiva nesses microrganismos leva-os a se
nética do Atlântico Sul, onde a intensidade do campo é mais comportarem como uma ‘bússola viva’. Desde então, vários
fraca, abrange Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e parte
estudos têm mostrado a presença de material magnético
do oceano Atlântico.
biomineralizado em outras espécies.

PESQUISAS ABRANGEM DE BACTÉRIAS A INSETOS SOCIAIS


Há mais de 20 anos, o Grupo de com o objetivo de detectar e identificar assunto tratado neste artigo, sugeri-
Biofísica do CBPF estuda a diversida- esses materiais e estudar suas pro- mos a leitura de ‘Insetos Sociais: um
de de microrganismos magnéticos nas priedades magnéticas, lembrando que exemplo de magnetismo animal’, pu-
áreas tropicais da costa brasileira e a abelha Apis mellifera é o inseto mais blicado na Revista Brasileira de Ensi-
seus cristais magnéticos, que são es- estudado com relação à orientação no de Física de setembro de 2000
pecíficos para cada espécie (figura 2). magnética. (vol. 22 (3), 317-322), bem como
Nos últimos sete anos, estamos Aos leitores interessados que quei- ‘Orientação magnética’ (Ciência Hoje
estudando também insetos sociais, ram obter mais informações sobre o vol. 1, nº. 1, 1982, p.25).

a b
FARINA, M. ET AL. NATURE (1990) 343, 256-258

(I) (II) (III)

Figura 2. Em a, microscopia eletrônica de transmissão de diferentes bactérias magnéticas, mostrando cadeias de partículas de
magnetita biomineralizadas em várias formas. Em b, microscopia eletrônica de varredura de um agregado multicelular (I) e
microscopia de transmissão de um corte ultrafino desse agregado (II), mostrando partículas magnéticas nas células e uma
ampliação dessas partículas magnéticas (III), que são de sulfeto férrico e não magnetita.

46 REVISTA DO CBPF
[ B I O F Í S I C A ]

OLIVEIRA., P. S. DEPTO. DE ZOOLOGIA (UNICAMP)

ga de fogo’. Isso se deu com base nos seguintes


argumentos: a) resultados que demonstravam o
efeito do campo magnético sobre o compor-
tamento da formiga Solenopsis invicta na busca
de alimentos; b) a ampla distribuição dessa es-
pécie; e c) a diversidade de formigas existentes
no Brasil.
Obtivemos resultados indicando a presença
de material magnético em várias de suas
subespécies, coletadas de Fernando de Noronha
ao Rio de Janeiro, incluindo Natal, Salvador e Ven-
da Nova (Espírito Santo).
Figura 3. Formiga migratória Pachycondyla marginata carregando
o único alimento vivo que ela caça, o cupim Neocapritermes opacus. ESPÉCIES MIGRATÓRIAS. Se encontramos material
magnético nas Solenopsis, por que não procu-
rá-lo em formigas migratórias? E assim foi feito.
ANIMAIS SUPERIORES. Em animais superiores, a magnetor- Coletamos Pachycondyla marginata uma formiga que, além
recepção não é um processo passivo de alinhamento das de migratória, vive na região da anomalia magnética – mais
partículas ao campo magnético. Trata-se de um processo especificamente, em Campinas (SP) – e só se alimenta de
ativo, incluindo a detecção deste campo pelas partículas, ori- cupins vivos de uma única espécie, Neocapritermes opacus
ginando um sinal, a transdução (transformação do sinal mag- (figura 3).
nético em biológico) e sua amplificação pelo sistema nervo- Usando basicamente as técnicas avançadas (microscopia
so, gerando uma resposta no comportamento. eletrônica, ressonância ferromagnética e magnetometria de
Qualquer comportamento de um ser vivo é sempre al- alta sensibilidade), pudemos detectar, identificar e estudar as
tamente complexo e dependente do estímulo, sendo a ori- propriedades magnéticas do material magnético dessas for-
entação apenas um de seus componentes. Assim, a dificul- migas migratórias.
dade de se compreender os mecanismos de orientação Estamos obtendo resultados com essas mesmas técni-
magnética analisando respostas de comportamento tem a cas em abelhas Apis e cupins Neocapritermes e buscando
ver com a limitada compreensão de outros mecanismos relacionar as propriedades do material magnético biomi-
presentes, como o solar, o de polarização da luz, o quimio- neralizado com suas respectivas organização, estrutura e
táctico (sensibilidade de quimiorreceptores a substâncias função em cada inseto de nosso estudo. n
do meio), entre outros.
No entanto, uma hipótese que vem se forta-
lecendo com os resultados da presença de mate-
rial magnético biomineralizado em animais supe-
riores é a de que esse material ferromagnético
estaria organizado para detectar o campo geo-
magnético, apresentando propriedades magnéti-
cas capazes de detectar variações da ordem de
0,0001 Oe, ou seja, campos cem mil vezes me-
nores que o de um imã de geladeira.

FORMIGA DE FOGO. Originalmente trabalhando com


microrganismos magnéticos, passamos a estudar
também insetos sociais, ou seja, aqueles que vi-
vem em colônias, organizados em castas, exercen-
do funções diferentes. São exemplos as formigas,
as abelhas, os cupins e as vespas. (ver ‘Pesquisas
abrangem de bactérias a insetos sociais’).
Da esq. para dir.: Darci M. de Souza Esquivel, Eliane Wajnberg,
Iniciamos, então, o estudo nas Solenopsis, po-
Marcos André P. O. Guedes, Geraldo Cernicchiaro e Daniel A. Avalos.
pularmente conhecidas como ‘lava-pés’ ou ‘formi-

REVISTA DO CBPF 47
[FÍSICA NUCLEAR] GRUPO DE FÍSICA NUCLEAR
Edgar Corrêa de Oliveira
Emil de Lima Medeiros

Íons pesados
Odilon de Paula Tavares
Sérgio Barbosa Duarte

COLABORADORES
Airton Deppman (pesquisador visitante)
Eduardo de Paiva (pesquisador visitante)
João D. T. Arruda-Neto (pesquisador visitante)
Marcello Gonçalves (pesquisador visitante)
Alejandro Di Marco (pós-doutorando)

relativísticos
Suzana de Pina (pós-doutoranda)

Com o auxílio de uma poderosa ferramenta matemática e dos

gigantescos aceleradores de partículas, os físicos estão desbra-


vando o universo do núcleo atômico, revelando seu comportamen-
to em condições extremas de temperatura e pressão, para enten-

der mais sobre a matéria que forma das galáxias aos seres vivos.
48 REVISTA DO CBPF
[FÍSICA NUCLEAR]

CEDIDO PELOS AUTORES


O processo básico para se entender o comportamen-
to e as propriedades da matéria nuclear é fazer com que
pequenas porções desta matéria, os íons pesados, entrem
em processo de colisão. Esses experimentos são feitos em
aceleradores de partículas – na atualidade, um dos principais
para o caso de íons pesados é o Brookhaven National
Laboratory (Estados Unidos).
Essas máquinas gigantescas funcionam como ‘pistas de
corrida’ para partículas e núcleos, que, antes de se choca-
rem, são acelerados a velocidades próximas à da luz (300 mil
km/s). Sendo assim, o tratamento teórico dessas colisões não
REPRESENTAÇÃO ARTÍSTICA – BROOKHAVEN NATIONAL LABORATORY – STAR COLLABORATION

pode prescindir do conhecimento da relatividade restrita (ou


especial), publicada em 1905 pelo físico de origem alemã
Albert Einstein (1879-1955). Essa teoria possibilita calcular as
variações (por exemplo, aumento de massa e dilatação do
tempo) por que passa qualquer corpo maciço quando sua
velocidade se aproxima dos 300 mil km/s. E isso vale também
Pr ton NŒutron Outros hÆdrons
para corpúsculos como átomos, núcleos e partículas subatô-
micas. Daí, portanto, darmos a denominação ‘relativísticos’ a
esses fenômenos. Figura 1. Instantes distintos do processo de colisão entre dois
A figura 1 resume algumas etapas da colisão entre dois núcleos atômicos. Na fase inicial, os núcleos se aproximam
núcleos atômicos, processo que pode exigir uma descrição para colidirem. Na fase intermediária, os constituintes dos
dois núcleos interagem fortemente em um processo que en-
muito complexa para o seu entendimento. Nesse ponto, cha-
volve múltiplas colisões. Ao final, são originados novos nú-
mamos a atenção para o fato de os constituintes do núcleo cleos e produzidos novos hádrons.
atômico, os próton e os nêutrons, serem compostos por
partículas menores: os quarks e os glúons.

DESCRIÇÃO LABORIOSA. É a natureza da interação entre os interagem entre si através da chamada força forte, responsá-
glúons que possibilita, após a colisão, um novo rearranjo de vel pela coesão do núcleo atômico.
quarks, bem como dos próprios glúons, para formar novas Enfatizando: tudo isso pode nos levar a uma descri-
partículas, que aqui denominaremos hádrons – em uma de- ção laboriosa para a compreensão detalhada do fenôme-
finição mais técnica, hádrons são um grupo de partículas que no das colisões nucleares relativísticas. Assim, simular teori-
camente esses choques é tam-
bém tarefa complexa, pois ne-

TÉCNICA USA SORTEIO PARA SIMULAR COLISÕES NUCLEARES les são por vezes criadas milha-
res de partículas, o que exige
No CBPF, o Grupo de Física Nuclear do núcleo atômico), possamos descre- ferramentas matemáticas pode-
e Astrofísica tem desenvolvido a si- ver a colisão de hádrons com núcleos rosas e um longo tempo de
mulação dos processos de colisão atômicos, bem como as colisões entre computação.
usando a técnica de cálculo conhe- núcleos.
cida como método de Monte Carlo, Atualmente, colaboram com o Gru- CASCATA DE MINIRREAÇÕES. En-
que se baseia no sorteio de eventos. po de Física Nuclear e Astrofísica pes- tretanto, para simplificar os cál-
O método de Monte Carlo permite quisadores do Instituto de Radiopro- culos, podemos ignorar os de-
que, a partir do conhecimento dos teção e Dosimetria, do Conselho Nacio- talhes do processo de produ-
mecanismos básicos de interação en- nal de Energia Nuclear, e do Instituto ção de partículas nas colisões
tre prótons e nêutrons (constituintes de Física da universidade de São Paulo. entre hádrons – ou interações
hádron-hádron, no jargão da >>>

REVISTA DO CBPF 49
[FÍSICA NUCLEAR]

CEDIDO PELOS AUTORES


área – sem prejudicar a com-
preensão do fenômeno.
Consideramos esses efei-
tos através da inclusão dos va-
lores experimentais – e, na
γ
falta destes, dos valores teóri- fóton
cos – das chamadas seções
de choque de produção de
hádrons – a seção de cho-
que exprime a probabilidade
de um grupo de partículas Pr ton NŒutron Outros hÆdrons
(no caso, hádrons) ser pro-
duzido durante uma colisão Figura 2. Imagem simplificada mostrando o processo de fotoprodução de hádrons. Nas
e seus valores dependem da colisões de núcleos, existe a possibilidade de um dos núcleons (constituintes do núcleo
energia envolvida na colisão. atômico) absorver uma partícula de luz (fóton) e assim produzir um hádron.

Daí para frente, parece sim-


ples, mas não é. Na verdade,
dezenas de processos diferentes estão envolvidos, com a pos- cula do núcleo atômico absorver um fóton e gerar um hádron
sibilidade de múltiplas colisões: uma verdadeira cascata de durante uma colisão.
minirreações que vão compor o quadro final. (ver ‘Código foi O restante da evolução do processo de colisão é, então,
desenvolvido pelo grupo’). desenvolvido da mesma forma que a considerada para a
colisão núcleo-núcleo, e as quantidades físicas analisadas são
ABSORVENDO FÓTONS. No meio nuclear, existe a possibili- semelhantes. A figura 2 apresenta uma imagem simplificada
dade de um dos núcleons (constituintes nucleares) absorver de como esse processo é considerado em nossos cálculos.
uma radiação eletromagnética e com isso produzir um hádron, As simulações têm sido uma ferramenta hábil de cálculo
em um processo denominado fotoprodução de hádrons. para o estudo de fenômenos complexos que ocorrem em
Para simular esse processo, o ponto de partida é o conhe- colisões nucleares relativísticas. Essas simulações têm também
cimento de uma outra seção de choque (experimental ou ajudado os físicos experimentais a entender e analisar os da-
teórica), isto é, daquela que dá a probabilidade de um partí- dos obtidos nos aceleradores de partículas. n

CÓDIGO FOI DESENVOLVIDO PELO GRUPO


O programa usado atualmente pelo CBPF foi desenvolvido pelo
Grupo de Física Nuclear e Astrofísica. Ele contém cerca de 10 mil
linhas de código Fortran (linguagem de programação usada em
cálculos científicos).
Esse código realiza um cálculo (cascata intranuclear) adequado ao
estudo das colisões relativísticas entre núcleos atômicos. Oferece tam-
bém a possibilidade de explorar diferentes hipóteses na descrição do
processo de interação hádron-hádron através das seções de choque,
bem como na definição das forças que garantem a aglutinação dos
hádrons em um núcleo.
Resultam desses cálculos a análise da multiplicidade e do es-
pectro de energia das partículas produzidas, dos efeitos do meio
nuclear no espalhamento das partículas, e da distribuição dos
núcleos residuais.
Seguindo as mesmas idéias contidas no programa desenvolvi-
Sentados (esq. para dir.): Emil de Lima Medeiros e
do por nosso grupo para tratar das colisões núcleo-núcleo, che- Sérgio Barbosa Duarte; em pé (esq. para dir.): Alejandro
gamos a um outro código para tratar da fotoprodução de hádrons. Di Marco e Edgar Corrêa de Oliveira.

50 REVISTA DO CBPF
GRUPO DE BÁRIONS CHARMOSOS [FÍSICA DE ALTAS ENERGIAS]
Anna Maria Freire Endler e
Edgar Corrêa de Oliveira

Os bárions charmosos
Apesar de difíceis de produzir e complexos do ponto de vista teórico, os bárions

charmosos são um excelente teste para os modelos atuais de partículas. Da aná-

lise de bilhões de colisões nos aceleradores de partículas, os físicos esperam em

breve desvendar novas propriedades desses constituintes da matéria.

A física nos surpreende pela riqueza de detalhes


com que pode descrever a matéria. Esse conhecimento, acu-
mulado principalmente no último século, é ainda mais admi-
rável se usarmos como ponto de partida a observação direta
dos objetos do nosso dia-a-dia para chegar ao nível profun-
do de compreensão que se tem hoje sobre o átomo e suas
partículas elementares.
Em sua viagem ao interior da matéria – praticamente inici-
ada no final do século 19, quando o físico inglês Joseph John
Thomson (1856-1940) descobriu o elétron –, a física nos
levou à compreensão do núcleo atômico, com seus prótons
e nêutrons, e, de forma ainda mais surpreendente, à desco-
berta que estes últimos são formados por constituintes ainda
menores, os quarks.
Compreender os detalhes ínfimos da matéria não é só
fundamental para entender o mundo diminuto da matéria,
mas também para compreender o universo como um todo,
desde sua origem até que destino terá, incluindo até mesmo
o surgimento de vida nele. >>>

REVISTA DO CBPF 51
[FÍSICA DE ALTAS ENERGIAS]

Para buscar entender a matéria, temos hoje laboratórios Um fato experimental importante é que quarks e glúons não
gigantes, como o Fermilab (Estados Unidos) e o Cern (Suíça), são observados livremente na natureza, como, por exemplo, ob-
dedicados inteiramente à compreensão dos processos de in- servamos os elétrons. Isso torna muito mais difícil, mesmo que
teração entre partículas elementares. Nessas máquinas, de indiretamente, a confirmação da existência dessas partículas.
proporções gigantescas, partículas carregadas são aceleradas Outro fato importante tem a ver com a colisão dos cha-
até que atinjam velocidades próximas à da velocidade da luz, mados hádrons, partículas caracterizadas por um par quark
ou seja, 300 mil km/s. A colisão entre elas resulta na produção antiquark (os chamados mésons) ou trios de quarks (os
de um número formidável de novas partículas. Esse número bárions), como mostra a figura 1. Quando levados a colidir
depende da energia liberada na interação e nas energias atin- entre si, os hádrons fazem surgir novos quarks e antiquarks
gidas pelos aceleradores ele pode chegar a algumas centenas dessa família. Daí, a multiplicidade de novas partículas pro-
de partículas. venientes de novos arranjos de quarks e glúons após as co-
lisões em aceleradores.
DESCRIÇÃO BONITA E FUNCIONAL. Uma das mais importantes Falamos, então, de quarks up (u) e down (d) primaria-
confirmações feitas em experimentos nos aceleradores de mente para descrever prótons e nêutrons e, para completar a
partículas foi a de que prótons e nêutrons são formados por descrição das partículas, temos ainda os quarks charm (c),
constituintes ainda menores da matéria, os chamados quarks strange (s), bottom (b) e top (t), cada qual com massa e
– o nome foi dado pelo físico americano Murray Gell-Mann, características próprias.
que se inspirou em uma passagem (“Three quarks for Muster É uma descrição bonita e funcional, pois reduz a compreen-
Mark!”) do romance Finnegan’s Wake, do escritor irlandês são de centenas de partículas ao relacionamento intrincado
James Joyce (1882-1941). de seis quarks e respectivos antiquarks, mais oito glúons.
Para formar prótons e nêutrons, os quarks estão grudados
uns aos outros por forças fortíssimas mediadas pelos glúons – DOTADOS DE CHARM. Ao longo de décadas, esses laboratórios
a palavra tem origem em glue, que, em inglês, significa cola. Pre- têm desenvolvido centenas de experimentos para investigar o
vistos há décadas pelos físicos teóricos, os quarks eram conside- papel dos quarks. Esses trabalhos envolvem a cooperação de
rados, na década de 1960, como meras conveniências mate- pesquisadores de todo o mundo. Entre esses experimentos,
máticas para se estudar sistematicamente as propriedades das está o de sigla E781 (Selex), com o qual o Grupo de Bárions
partículas. Entretanto, para a surpresa de muitos, as experiências Charmosos do CBPF colaborou (ver ‘Experimento criou 15
para se verificar a estrutura do próton – através do es- bilhões de colisões’).
palhamento de elétrons em prótons – revelaram que estes últi- Bárions charmosos são hádrons com três quarks e que
mos realmente possuem constituintes puntiformes. contêm ao menos um quark charm. São muito menos co-

a b c

down down down

up down charm

up up up

Figura 1. Exemplos de bárions, partículas formadas por três quarks. Em a, representação de um próton (componente do núcleo
atômico), que tem carga elétrica +1 e é formado por dois quarks up (carga elétrica +2/3) e um quark down (-1/3). Em b, um
nêutron, outro componente nuclear, que tem carga elétrica nula, sendo formado por dois quarks down (-1\3) e um up (+2/3).
A combinação dos seis quarks existentes pode formar várias outras partículas, como o lambda (item c), constituído por um up,
um down e um quark charm, este com carga elétrica +2/3. Partículas formadas por um dupla de quarks são denominadas
mésons. Um exemplo são os glúons (aqui representados pelas linhas que unem os quarks), que podem momentaneamente
formar um par quark e antiquark.

52 REVISTA DO CBPF
[FÍSICA DE ALTAS ENERGIAS]

EXPERIMENTO CRIOU 15 BILHÕES DE COLISÕES


O experimento E781 foi realizado no mento dos LC, como o decaimento em As informações registradas nos
Fermilab há quatro anos. Seu objeti- próton, méson k e méson pi – no jargão detectores, que constituem um banco
vo foi estudar, de modo sistemático, da física, denomina-se decaimento o de dados com milhares de fitas grava-
os bárions charmosos. Basicamente, processo pelo qual uma partícula instável das, é o alvo das análises. Programas
o experimento consistiu em efetuar a dá origem a outras. Para isso, levamos especialmente desenvolvidos para esse
colisão de prótons contra placas do em conta o estado de ‘rotação’ (ou, mais experimento procuram identificar as di-
metal tungstênio. O resultado dos tecnicamente, o spin) das partículas en- ferentes partículas através das intensi-
choques é a produção de um feixe volvidas no decaimento. Essa análise vai dades e características dos sinais dei-
de partículas com prótons, méson pi permitir obter informação não somente xados nos detectores.
(ou píons), bem como partículas de- sobre os diferentes modos de decai- Foram produzidas 15,2 bilhões de
nominadas sigmas. mento, mas também sobre a orientação interações no E781, sendo 1 bilhão
Os sigmas, por sua vez, colidiram do spin (ou polarização) dos lambdas selecionados para armazenamento
contra placas de cobre e carbono, pro- charmosas produzidos. em fita. Na primeira fase da análise dos
duzindo, entre outras partícu- dados, cerca de 1.400 LC fo-
las, um número intenso daque- ram identificados, esperando-se
las contendo o quark charm – Placa de cobre que na segunda se tenha uma
em particular, as denominadas estatística significativa para se
Ρ
lambdas charmosos (LC), que obter bons resultados.
são nosso objeto de estudo. Σ , π−, p
+
Λ+C Assim, é possível reconstruir
Na direção em que são pro- Κ as trajetórias das partículas, os
duzidas as partículas charmosas, pontos em que decaíram, sua
encontra-se um espectrômetro π energia e sua velocidade (ou
(conjunto de detectores) capaz momento), entre outra propri-
de identificar as partículas carre- edades. A figura 2 ilustra um
gadas eletricamente e outras que, Figura 2. Representação de um possível registro por possível registro pelos detectores
detectores de um lambda charmoso (LC) decaindo em
mesmo sem carga, podem pro- do decaimento de uma LC .
próton (p), méson k (k) e méson pi (p). Para chegar a
vocar reação no meio e serem essa detecção, o experimento E781 colidiu primeira-
Nosso grupo participa da
detectadas indiretamente. mente prótons contra placas de tungstênio, produzindo colaboração internacional Selex,
O Grupo de Bárions Char- novos prótons (p), mésons pi negativos (p-) e sigmas do Fermilab (Estados Unidos),
mosos do CBPF está analisando positivos (S+). Estas, por sua vez, colidiram contra pla- que envolve dezenas de insti-
cas de cobre, produzindo os lambdas charmosos.
os diferentes modos do decai- tuições em vários países.

nhecidos que os mésons charmosos, por exemplo, compos- delos de partículas com os quais a física trabalha hoje. Assim,
tos por um par quark e antiquark, com pelo menos um deles em breve, os físicos esperam ampliar seu conhecimento sobre
sendo um charm. a natureza e as propriedades dos constituintes da matéria que
Desde 1975 que experiências procuraram investigar os são dotados de charm. n
bárions charmosos. Somente quatro anos depois, obteve-se
um prova direta de que essas partículas existem – em particular,
a partícula lambda charmoso (LC) foi detectada em vários
experimentos, sendo que sua massa concorda com o que pre-
diz a teoria (ver também nesta edição ‘A física do charm’).
Do ponto de vista experimental, os bárions charmosos são
mais difíceis de serem produzidos que os mésons, devido ao
fato de serem mais pesados e possuírem estados de rota-
ção (spins) diferentes de zero. Isso, por sua vez, torna o estudo
teórico dessas partículas bem mais complexo.
No entanto, estudar os bárions charmosos tem suas re-
Edgar Corrêa de Oliveira e Anna Maria Freire Endler
compensas: eles representam um excelente teste para os mo-

REVISTA DO CBPF 53
[ B I O M AT E R I A I S ]
GRUPO DE BIOMATERIAIS
Alexandre M. Rossi
Joice Terra
Elena Mavropoulos (tecnologista)
Elizabeth L. Moreira (tecnologista)

A ciência e tecnologia
das biocerâmicas

Biocerâmicas são usadas para reparar,


reconstruir e substituir partes do corpo
humano, pois se integram bem com o tecido

ósseo vivo, estimulando seu crescimento.


Estas, entre outras propriedades, fazem
Figura 1. Cristais
de hidroxiapatita vistos através
de imagem feita por microscopia
desses novos materiais produtos estraté-
eletrônica; no detalhe, implantes

gicos no mercado atual.


de alumina (Al2O3).

54 REVISTA DO CBPF
[ B I O M AT E R I A I S ]

Entre as biocerâmicas, a hidroxia-


patita, mais conhecida pela sigla HAP, ocupa
posição de destaque por sua larga aplica-
ção no campo da medicina e da odontolo-
gia, como um substituto ósseo e dentário
em implantes.
A HAP é um fosfato cerâmico – ou
biocerâmica – que tem composição e estru-
tura similares à fase mineral de ossos e den-
tes (figura 1). Dependendo de sua pureza,
FOTO: GRUPO DE BIOCERÂMICAS – CBPF, NO DETALHE: EXTRAÍDO DE JOURNAL OF AMERICAN CERAMIC SOCIETY

ela pode suportar aquecimentos superiores


a 1.200 graus celsius, sem se decompor.
Figura 2.
Além disso, pode ser modelada como a
Rede cristalina
maioria dos materiais cerâmicos. da hidroxiapatita.
Nas aplicações tecnológicas, a HAP é
usada no preenchimento de cavidades, na
forma de grãos densos ou porosos, bem como no revesti- conduzidos, para dentro da estrutura do material cerâmico,
mento de implantes metálicos, estes geralmente feitos com o outros íons e moléculas.
metal titânio. Neste último caso, procura-se melhorar as carac- A estrutura dos fosfatos cerâmicos permite que seus cons-
terísticas dos implantes, combinando-se a resistência mecâ- tituintes sejam substituídos facilmente por uma grande varie-
nica do metal à biocompatibilidade e à atividade biológica do dade de complexos e metais, como chumbo (Pb+2), cádmio
material cerâmico (Cd+2), cobre (Cu+2), zinco (Zn+2), estrôncio (Sr+2), cobalto
As propriedades químicas da HAP podem ser modifica- (Co+2), ferro (Fe+2), flúor (F-), cloro (Cl-), bem como grupos
das através do método de sua preparação. Para implantes carbonatos (CO3) e vanadatos (VO4).
ósseos ou dentários, duráveis por muitos anos, utiliza-se um Essa propriedade de substituição, somada ao pequeno ta-
material pouco solúvel, constituído por hidroxiapatita pura. manho dos cristais – que podem chegar a dimensões na-
Quando se deseja que o implante seja reabsorvido pelo cor- nométricas (bilionésimos de metro) –, fazem com que esses
po, cedendo lugar ao tecido ósseo novo, usa-se uma cerâmi- materiais possam ser usados como absorvedores ambientais
ca mais solúvel, geralmente constituída por uma mistura de de metais pesados e tóxicos, capazes de descontaminar águas
hidroxiapatita com outros fosfatos. poluídas, rejeitos industriais ou solos poluídos.
Outra característica da HAP é sua capacidade de adsorção, Ao mesmo tempo, têm sido proposta aplicações dos
isto é, de fixar em sua superfície moléculas de outra substân- fosfatos cerâmicos como catalisadores (substância emprega-
cia. Essa propriedade faz com que ela possa ser usada em da para acelerar a velocidade de reações químicas) para a
implantes, como suporte para antibióticos e drogas antican- decomposição de alcoóis.
cerígenas, além de poder ser empregada também em trata-
mentos prolongados de infecções e doenças ósseas – neste OUTRAS BIOCERÂMICAS. Além da hidroxiapatita, outros fosfatos
último caso, liberando aos poucos, na região afetada, as me- de cálcio são usados em aplicações médicas, como é o caso
dicação necessária. das cerâmicas alumina e zircônia. Estes últimos materiais são
estáveis a altas temperaturas, tendo propriedades mecânicas
DA QUÍMICA AO MEIO AMBIENTE. A hidroxiapatita é formada superiores aos dos fosfatos de cálcio, tais como resistência à
por átomos dos elementos químicos cálcio, fósforo, oxigênio corrosão, baixo coeficiente de fricção, grande resistência ao
e hidrogênio, arranjados conforme mostra sua fórmula: desgaste, dureza e resistência ao crescimento de fraturas. En-
Ca10(PO4)6(OH)2. O fósforo forma com o oxigênio o grupo tretanto, não possuem a mesma eficiência na integração com
fosfato, sendo chamado de grupo hidroxila a ligação entre o o tecido ósseo que os fosfatos cerâmicos.
oxigênio e o hidrogênio. Esses grupos, juntamente com o Vidros bioativos, que possuem em sua composição fosfato
cálcio, distribuem-se espacialmente segundo um arranjo em e óxidos de silício, cálcio, sódio, entre outros elementos, cons-
forma hexagonal (figura 2). tituem também biomateriais com grande atividade biológica e
Uma das características interessantes dessa estrutura é que compatibilidade com o tecido ósseo. Mais recentemente, tem-
ela permite que os grupos hidroxila (OH) sejam retirados se procurado estimular a bioatividade e a biocompatibilidade
com relativa facilidade, gerando canais vazios entre os hexá- dos fosfatos de cálcio, combinando-os com vidros bioativos e
gonos, formados pelos íons de cálcio, por onde podem ser com substâncias orgânicas como o colágeno e as proteínas. >>>

REVISTA DO CBPF 55
[ B I O M AT E R I A I S ]

Esses procedimentos de bioengenharia


visam utilizar esses sistema combinados
ESTUDO MULTIDISCIPLINAR ENVOLVE AMPLA COLABORAÇÃO
para acelerar a regeneração dos tecido Hoje, o Grupo de Biomateriais conta ção Oswaldo Cruz, da Embrapa So-
duros. com a participação de pesquisado- los (RJ) e do Departamento de Geo-
A pesquisa na área de biomateriais res de várias instituições científicas do grafia da Universidade do Estado do
tem sido cada vez mais multidisciplinar, estado do Rio de Janeiro. Essas par- Rio de Janeiro.
envolvendo pesquisadores tanto teóri- cerias envolvem o uso comum de la- O projeto conta com a colabora-
cos quanto experimentais de várias áre- boratórios e de infra-estrutura de ção internacional do Institute for
as do conhecimento, como física, enge- apoio à pesquisa, bem como orien- Bioengineering and Nanoscience in
nharia, biologia, medicina e odontolo- tações conjuntas de teses, além de Advance in Medicine (Northwestern
gia. (ver ‘Estudo multidisciplinar envolve organização de seminários e cursos University) e do Centro de Biomateriais
ampla colaboração’) de pós-graduação. da Universidade de Havana (Cuba).
Nosso grupo reúne pes-
TECNOLOGIA PRÓPRIA. No Brasil, ape- quisadores da Engenharia
sar dos importantes avanços recentes, Metalúrgica e Nuclear da Co-
podemos considerar a produção tec- ordenação dos Programas de
nológica e científica, bem como a for- Pós-graduação em Engenha-
mação de pessoal qualificado, ainda in- ria da Universidade Federal do
suficientes em relação às necessidades Rio de Janeiro (UFRJ), do De-
atuais do país para a área de biomate- partamento de Química Inor-
riais e do potencial do mercado em re- gânica do Instituto de Quími-
lação a esse setor. Sendo assim, a de- ca da UFRJ, do Departamen-
manda por biomateriais é grande e tem to de Química Analítica da PUC
sido atendida, quase em sua totalidade, do Rio de Janeiro, da Escola
por produtos e tecnologias desenvolvi- de Saúde Pública da Funda-
das no exterior.
Porém, esse cenário vem se alteran-
do nas últimas décadas (ver ‘Síntese se une a estudos teóricos Em pé: Elena Mavropoulos e Alexandre M.
e experimentais’). Hoje, o país já conta com vários grupos de Rossi; sentadas: Andréa Machado Costa e
pesquisa nessa área em universidades e institutos. E, com isso, Elizabeth L. Moreira.
vem se dotando de tecnologia própria, bem como de pessoal
capacitado para a produção e pesquisa de biocerâmicas. n

SÍNTESE SE UNE A ESTUDOS TEÓRICOS E EXPERIMENTAIS


No CBPF, as pesquisas em materiais jeto, mas também está disponível para biológica dos fosfatos cerâmicos. Pro-
biocerâmicos iniciaram-se em 1995, a outros grupos no país. cura-se, com isso, entender o papel e
partir da formação de um núcleo ca- Em 1999, pesquisadores do CBPF a influência de complexos molecula-
paz de sintetizar fosfatos cerâmicos por especialistas em cálculos de estrutura res e de metais nas propriedades quí-
diferentes métodos de preparação. Dois eletrônica de materiais cerâmicos junta- micas e biológicas das biocerâmicas.
anos depois, foi construído e equipa- ram-se ao projeto, iniciando estudos Essas atividades visam à produção
do um laboratório específico para pro- teóricos sobre a influência de metais e de tecnologia nacional na área de pre-
duzir biocerâmicas com alto grau de moléculas na estrutura desses fosfatos paração e processamento de bioce-
pureza e composição controlada. (ver também nesta edição ‘Estrutura ele- râmicas para uso médico e odontoló-
Nosso grupo sintetiza fosfatos trônica da matéria’). Em suas diferentes gico, bem como às aplicações desses
cerâmicos com diferentes composi- linhas de trabalho, o Grupo de Bioma- novos materiais como absorventes
ções químicas, textura superficial, com- teriais tem procurado combinar a pes- ambientais e catalisadores. Devido ao
posição de impurezas e solubilidade. quisa teórica com a experimental, em te- caráter multidisciplinar do projeto, nos-
O material é usado para estudos nas mas como estrutura superficial, reações so grupo procura atuar em forma de
diferentes linhas de pesquisa do pro- de superfície e reatividade química e rede de pesquisa.

56 REVISTA DO CBPF
[FÍSICA ESTATÍSTICA] GRUPO DE MECÂNICA ESTATÍSTICA
Constantino Tsallis
Aglaé Cristina Navarro de Magalhães
Evaldo Mendonça Fleury Curado

Uma nova entropia


A entropia, um conceito tão rico quanto misterioso, explica, por exemplo, como a ener-
gia contida em um pedaço de carvão pode mover uma locomotiva, ou por que, para

resfriar a água, a geladeira esquenta por fora. Proposta em meados da década de


1980 como caminho para generalizar a mecânica estatística usual, uma nova fórmula
generaliza com sucesso a aplicação da entropia a fenômenos tão díspares quanto

ciclones e moléculas gigantes.

A energia é um dos conceitos da física com aplicação bém baixo. E para se manter assim será necessário que o
mais visível no dia-a-dia. Para mover um carro, por exemplo, é nosso sistema imaginário (caixa mais bolas) permaneça isola-
necessário obter energia através da queima do combustível. do do meio externo. Mas é muito difícil evitar que algum tipo
Para os eletrodomésticos funcionarem, depende-se da ener- de interação com o ambiente ocorra.
gia elétrica. Mas nem toda a energia gerada está disponível Assim, depois de uma interação qualquer com o exterior
para ser transformada em trabalho útil. Para saber o quanto – por exemplo, uma trepidação ao ser mudada de lugar –, é
dessa energia pode ser considerada ‘livre’ – disponível para bem provável que as bolas se desorganizem, pois há muito
consumo –, é necessário conhecer um outro conceito: o de mais formas de deixar as bolas espalhadas do que de colocá-
entropia. las arrumadas em um canto. Em outras palavras: o grau de
A entropia está relacionada à ordem e desordem em um desorganização (ou entropia) de um sistema físico que interage
sistema. É ela que caracteriza o grau de organização (ou de- com o exterior tende a aumentar com o passar do tempo.
sorganização) de um sistema físico qualquer. Quanto mais
desordenado o sistema, maior será sua entropia. UNIVERSO DESORDENADO. Algo semelhante se passa entre as
A imagem de uma caixa que contenha bolas nos fornece bolas de nossa caixa e os sistemas físicos do universo: am-
uma boa analogia para entender o conceito de entropia. Se bos, com o passar do tempo, tendem a se tornar cada vez
as bolas estiverem ordenadas em um canto, a entropia será mais desorganizados – e isso, conseqüentemente, representa
baixa, pois o grau de desorganização desse sistema é tam- aumento da entropia. >>>

REVISTA DO CBPF 57
[FÍSICA ESTATÍSTICA]

NOAA

Figura 1. O ciclone, com a turbulência que lhe é associada,


é um dos fenômenos naturais ao qual não se pode aplicar
com sucesso a fórmula clássica da entropia,
que vem sendo utilizada pelos físicos desde o século 19.

VISÃO HUMANA E CICLONE. Com freqüência, o cálculo da


entropia total de um sistema é aproximadamente a soma dos
diversos subsistemas contidos nele. Um exemplo simples: a
entropia total de duas bolas de sorvete é a soma daquela
contida em cada uma delas. Os físicos denominam esse tipo
de sistema aditivos (ou extensivos).
No entanto, há fenômenos nos quais a entropia de um
subsistema interfere substancialmente na de outro, e nesse
caso o total não se resume a uma simples soma das partes –
os sistemas agora ganham o nome de não aditivos (ou não
extensivos). A visão humana é um caso interessante: em uma
parede branca com um ponto vermelho, a percepção fará
com que notemos essa marca de imediato. Isso ocorre por-
que somos descendentes de indivíduos que tinham a capaci-
Há situações específicas em que a entropia pode dimi- dade de ver rapidamente um predador (um tigre, por exem-
nuir em um sistema físico. No entanto, qualquer redução é plo) e sair correndo com grande rapidez. É muito provável
imediatamente compensada por seu aumento proporcional que a linhagem protobiológica dotada de visão ‘aditiva’ – isto
– ou até maior – em outra parte do sistema. Em uma geladeira, é, sem a capacidade de perceber preferencialmente o tigre,
por exemplo, o resfriamento no interior faz com que entropia bem como o ponto vermelho sobre a parede branca – tenha
desse sistema diminua, pois o calor faz com que os átomos e sido extinta por não ter conseguido se livrar dos predadores
moléculas fiquem mais agitados, em maior desordem. Porém, ou de outras situações perigosas.
esse fato é amplamente compensado pelo aquecimento do Outro exemplo de sistema não aditivo é a formação de
eletrodoméstico por fora, o que representa um aumento de um ciclone (figura 1). Normalmente, as moléculas de ar aci-
entropia em outra região do mesmo sistema. ma de uma fazenda ou de uma cidade movimentam-se ao

FÓRMULA CLÁSSICA SURGIU NO SÉCULO 19


O conceito de entropia surgiu na épo- balhos do físico francês Jean Perrin A chamada fórmula de Boltzmann-
ca da máquina a vapor, proposto pelo (1870-1942) –, Boltzmann propôs a Gibbs tem sido usada pelos físicos por
prussiano Rudolf Emmanuel Clausius fórmula baseando-se nas evidências da cerca de 120 anos. Desde 1988, no
(1822-1888) para explicar o máxi- existência desses elementos. No entan- entanto, uma nova equação, desen-
mo de energia que poderia ser trans- to, sua equação não encontrou apoio volvida no CBPF, tem se mostrado ex-
formada em trabalho útil. Mais tarde, imediato. Transtornado pela resistência tremamente eficiente como uma ge-
a entropia foi relacionada à ordem e de alguns colegas em aceitá-la ou mes- neralização das idéias dos cientistas
desordem de um sistema, idéia apro- mo em reconhecer a teoria atômica, pioneiros nessa área.
veitada pelo físico austríaco Ludwig Boltzmann suicidou-se em 1906 – a fór- Em função da repercussão que a
Boltzmann (1844-1906) na elabora- mula foi gravada no seu túmulo. nova fórmula obteve e por sua abran-
ção da primeira expressão a descre- A equação de Boltzmann havia sido gência fenomenológica, o pesquisador
ver microscopicamente o conceito. retomada pelo professor de física mate- do CBPF Constantino Tsallis teve seu
Mesmo sem ter certeza da exis- mática americano Josiah Gibbs (1839- nome lançado recentemente ao prêmio
tência de átomos e moléculas – cuja 1903), da Universidade de Yale (Esta- Nobel de física.
existência só viria a ser confirmada ex- dos Unidos). Ele propôs uma nova fór- A candidatura já conta com o apoio
perimentalmente na primeira década mula, mais abrangente, que inclui certos de pesquisadores no Brasil e no
do século 20, principalmente pelos tra- tipos de interações entre as moléculas. exterior.

58 REVISTA DO CBPF
[FÍSICA ESTATÍSTICA]

PROJETO FORMA REDE NACIONAL E INTERNACIONAL DE PESQUISA


O projeto ‘Mecânica Estatística de Sis- de várias instituições, sendo 27 de-
temas Complexos’, cuja coordenação las no exterior.
está a cargo do CBPF, é um dos pro- Essa vasta rede mantém diversas li-
jetos do Programa de Núcleos de nhas de pesquisa em áreas como autô-
Excelência (Pronex). matos celulares, caos, fractais, genética
Além da equipe de pesquisa- populacional, magnetismo, redes neu-
dores do CBPF, os trabalhos de ronais e mecânica estatística – nesta úl-
pesquisa contam com a colabora- tima, pesquisa-se a abrangência da nova
ção de outros 50 pesquisadores fórmula.

Sentados: Constantino Tsallis e Aglaé Cristina Navarro de Magalhães; em pé: Evaldo Mendonça Fleury Curado.

acaso e de modo independente – nesse caso, a entropia de tos. Mais tarde, o conceito passou a ser aplicado sempre que
dois diminutos volumes de ar pode ser simplesmente adicio- era necessário basear-se em componentes microscópicos para
nada para se chegar à entropia total do sistema. Porém, fazer uma descrição macroscópica de um sistema.
quando ocorre um rodamoinho, a simples adição dos volu- Para calcular a entropia, foi proposta uma equação co-
mes de ar já não é mais capaz de descrever a entropia nhecida como fórmula de Boltzmann-Gibbs (ver ‘Fórmula clás-
desse evento – em termos mais técnicos, diz-se que os mo- sica surgiu no século 19’). Porém, a fórmula mostrou ter li-
vimentos das moléculas de ar durante esse fenômeno atmos- mitações. Ela falha, por exemplo, ao tentar explicar a comple-
férico tornam-se altamente correlacionadas, e a entropia de xidade de fenômenos como um ciclone, como já vimos, ou a
um volume de ar passa a interferir na entropia de outros geometria fractal das moléculas de DNA e de outras ma-
volumes em sua vizinhança. cromoléculas (figura 2). Em resumo: a fórmula clássica
mostrou-se inadequada quando a quantidade de entro-
FRACTAIS E DNA. Assim que foi inicial- pia de um sistema é basicamente não aditiva.
mente proposto, em 1865, o conceito Para determinar a entropia em sistemas não aditivos, foi
de entropia foi utilizado para melho- necessário buscar uma nova fórmula. Várias expressões
rar o desempenho das máquinas ne- foram propostas, mas nenhuma se mostrava eficien-
cessárias à Revolução Industrial. Ele te do ponto de vista térmico. Porém, a partir de
ajudava a descrever as trocas de calor analogias matemáticas, Constantino Tsallis, pesqui-
e o trabalho realizado pelos equipamen- sador do Grupo de Mecânica Estatística do CBPF,
desenvolveu, a partir de meados da década de
1980, uma equação que é uma generalização da
fórmula clássica.
Com ela, é possível calcular tanto a
entropia de sistemas aditivos quanto de
Figura 2. não aditivos. Por algum tempo, a
Alguns aspectos nova fórmula permaneceu sem
fractais das que fosse comprovada pratica-
moléculas de DNA
mente. Porém, trabalhos recentes
e de outras
macromoléculas têm demonstrado sua eficiência.
têm sido Desde então, a nova fórmula tem
explicada com sido utilizada para calcular a entropia em
sucesso usando diversos sistemas, em áreas como turbulên-
a nova fórmula
cia, física de altas energias, estudo dos organis-
para o cálculo da
entropia proposta
mos vivos, física do estado sólido, teoria da in-
em meados da formação e até mesmo campos das ciên-
década de 1980. cias humanas como a lingüística. n

REVISTA DO CBPF 59
[ F Í S I A D E A LTA S E N E R G I A S ] LAFEX – GRUPO DO DZERO
Alberto Santoro
Hélio da Motta
Moacyr Souza
Gilvan Alves
Mário Vaz
Maria Elena Pol
Francisco Caruso

COLABORADORES

Quatro andares de
Jorge Molina (doutorando)

ciência e tecnologia
A busca de novas partículas e a verificação experimental de teorias comple-
xas da física, embora por si só tarefas de grande importância científica, são
apenas parte do que se passa em um experimento de física de partículas.

Os aceleradores de partículas estão entre as


máquinas mais sofisticadas construídas até hoje pelo ho-
mem, competindo em sua complexidade com ônibus espa-
ciais e até mesmo com as estações orbitais. São laboratórios
gigantes, com milhares de cientistas e técnicos, para desven-
dar os segredos dos menores pedaços de matéria que a
ciência conhece.
A realização de experimentos nos grandes aceleradores
de partículas requer uso de técnicas apuradas em áreas como
engenharia civil, mecânica, eletrônica, criogenia, computação,
software, entre outras. E, por vezes, é preciso extrapolar os
limites de cada um desses campos para desenvolver novos
sistemas e equipamentos que devem atender às exigências
dos experimentos.
Tudo isso para compreender as forças fundamentais da na-
tureza que agem sobre esses diminutos blocos de matéria –
tarefa que, além da grande importância cientifica, têm des-
dobramentos essenciais para o conhecimento do universo
como um todo.

60 REVISTA DO
60 REVISTA
CBPF DO CBPF
[ F Í S I A D E A LTA S E N E R G I A S ]

em várias etapas diferentes desse experimento – inclusive da


descoberta do quark top – e sido responsável por diversos
subsistemas que compõem o detector. Além disso, tem partici-
pado da análise de todos os dados colhidos no experimento.
Além da colaboração com o Fermilab, o Lafex participa de
outros experimentos de física de partículas, destacando-se a
colaboração internacional com o Centro Europeu de Pesqui-
sas Nucleares (Cern), em Genebra (Suíça), no experimento
com o detector Delphi.
A atividade em física experimental de altas energias vem
permitindo ao Lafex intensa e profícua atuação na formação
Figura 1. Visão artística de centenas de partículas que re-
de profissionais em diversas áreas. O Lafex tem trabalhado
sultam da colisão de um próton com sua antipartículas
(antipróton). com vários detectores, com sistemas de seleção de eventos,
de aquisição de dados, de reconstrução e análise dos dados
coletados. Graças às suas necessidades cientificas, foi pioneiro
QUATRO ANDARES. O Tevatron, que pertence ao Fermilab, si- grupo de pesquisa no Brasil a usar computação paralela e
tuado próximo a Chicago (Estados Unidos), é hoje o maior e redes heterogêneas (redes com computadores de diversos
mais potente acelerador de partículas do mundo. Acoplada a tipos e rodando diferentes sistemas operacionais).
essa máquina, está outro sistema altamente complexo: o
detector Dzero, no qual centenas de físicos e engenheiros POTES ROMANOS. Em 1997, o Lafex assumiu a responsabilida-
buscam desvendar os segredos das partículas através da de por outro projeto desafiador: o desenvolvimento, bem co-
observação do resultado de colisões entre um próton e sua mo a construção, a instalação e a operação, de um novo
antipartícula, o antipróton. subsistema de detectores que possibilitam ampliar a capacida-
O Dzero é um dos detectores construídos ao redor de de de o Dzero estudar eventos até então de difícil observação.
um dos pontos onde ocorrem as colisões no Tevatron. Nesse Esse projeto, conhecido pela sigla FPD (sigla, em inglês,
ponto, um próton e um antipróton, ambos viajando em sen- para Detector de Prótons Espalhados a Pequenos Ângulos),
tidos opostos e acelerados a velocidade próximas à da luz abrange a construção de detectores chamados ‘potes roma-
(cerca de 300 mil km por segundo), colidem de frente, dan- nos’, que, através de um mecanismo de precisão, podem ser
do origem a centenas de partículas, que deixam rastros nos aproximados da linha do feixe de partículas, uma região de
equipamentos que constituem o detector Dzero (figura 1). ultravácuo, sem afetar o desempenho do acelerador (figura
A partir desses rastros, busca-se reconstruir, com o em- 2). Esse conjunto de detectores vai permitir que partículas
prego de programas de computador, todo o evento resultan- que viajem muito próximas ao feixe sejam registradas e te-
te da colisão, incluindo aí partículas cujo tempo médio de vida nham suas propriedades medidas.
é de frações infinitesimais de segundo.
O maior feito do Dzero foi a descoberta, em 1995, entre
essa multitude de partículas, do chamado quark top, partícula
teoricamente prevista mas cuja existência não havia ainda sido
constatada devido à sua elevada massa – que era desconhe-
cida – e à raridade com que o quark top é produzido, fazen-
do com que sua busca se assemelhasse ao trabalho de se
encontrar uma agulha em um palheiro quando não se co-
nhece a aparência da agulha.
Ocupando um grande espaço – a altura do detector Dzero
corresponde a de um prédio de quatro andares –, detectores
devem ser capazes de registrar eventos que ocorrem a taxas
GRUPO DO DZERO – LAFEX (2000)

de milhões de vezes por segundo, nos quais centenas e cen-


tenas de partículas resultam em milhares de registros.

PIONEIRISMO NO BRASIL. O Laboratório de Cosmologia e Figura 2. Um dos detectores do FPD já instalados no acele-
rador Tevatron, do Fermilab. Todos os detectores – em um
Física Experimental de Altas Energias (Lafex) tem participado
total de seis – já se encontram em operação.
ativamente do experimento Dzero desde 1991, tendo atuado >>>

REVISTA DO CBPF 61
[ F Í S I A D E A LTA S E N E R G I A S ] GRUPO DE COSMOLOGIA E GRAVITAÇÃO:
Mário Novello
Ívano Damião Soares
José Martins Salim
Luiz Alberto Oliveira
Nelson Pinto Neto
Bartolomeu Figueiredo

COLABORAÇÃO ENVOLVE SETE INSTITUIÇÕES COLABORADORES:


Herman Julio Mosquera Cuesta (pesquisador visitante)
O projeto do Detector de Prótons Espalhados a Peque- Sandra Liliana Sautu (pesquisadora visitante)
nos Ângulos (FPD) conta com a colaboração do Labora- Santiago Esteban Perez Bergliaffa (pesquisador visitante)
Eduardo Sergio Santini (pós-doutorando)
tório Nacional de Luz Síncrotron, sediado em Campinas Alexandre da Fonseca Velasco (pós-doutorando)
(SP), onde os sistemas mecânicos e de vácuo foram Martin Makler (doutorando)
Paulo Israel Trajtenberg (doutorando)
construídos.

NASA EDUCATION SERVICE


Ronaldo Penna Neves (doutorando)
Além de físicos e engenheiros do CBPF, esse projeto
envolve a participação de pesquisadores da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, Universidade Federal da Bahia, Universidade
Estadual de Campinas e do Instituto de Física Teórica (Uni-
versidade Estadual Paulista).

Os detectores são construídos de fibras ópticas e reque-


Estaríamos prestes a presen-
reram a construção de estruturas de plástico que atendes-
sem às exigências de precisão do projeto. O projeto do FPD
utiliza mecânica de precisão, técnicas de ultravácuo, eletrônica
ciar uma autêntica revolução
de controle, software de simulação e controle, bem como a
capacidade de gerenciamento de um projeto cientifico de gran-
de porte.
paradigmática na cosmologia,
A descoberta de novas partículas e o detalhamento das
propriedades das já conhecidas são a etapa final dos experi-
mentos em física de partículas. Porém, antes de se chegar a
com a substituição da atual
esses resultados, é preciso juntar ciência e tecnologia de fron-
teira para construir os próprios aceleradores, bem como de-
tectores que devem captar mais e mais detalhes das colisões.
cosmovisão por uma mais am-
O objetivo final é buscar nos menores constituintes da
matéria o caminho para revelar os segredos da maior estru-
tura conhecida: o universo. n pla e aperfeiçoada? A resposta

a esta pergunta pode vir já na


próxima década, com inau-
guração de novos detectores

e telescópios.

Sentados (esq. para dir.): Hélio da Motta e Alberto Santoro;


em pé (esq. para dir.): Gilvan Alves e Francisco Caruso.

62 REVISTA DO CBPF
[ C O S M O L O G I A E G R AV I TA Ç Ã O ]

Uma nova
cosmovisão
O objetivo maior da ciência é o de gerar uma Figura 1. Ainda na década de 1920, a descoberta extraordinária
representação racional do mundo. Essa atividade ganha di- do astrônomo Edwin Hubble mostrou que as galáxias
mensão máxima quando essa representação se propõe a encontram-se em um estado dinâmico de afastamento mútuo
ou expansão. Com isso, abriu-se caminho para a popularização
englobar a totalidade do que existe, isto é, o universo consi-
da imagem da ‘Grande Explosão Primordial’
derado como uma estrutura única e solidária. (em inglês Big Bang) como origem do cosmos atual.
O ramo da ciência que se propõe a analisar essa estrutu-
ra única é a cosmologia, que se desenvolve através da aplica-
ção do conhecimento global das leis físicas ao universo como
um todo. Portanto, essa área do conhecimento é, na prática, sico e matemático inglês Isaac Newton (1642-1727) – e a
o maior teste de coerência dessas leis. estrutura geométrica do contínuo espaço-tempo, que permi-
Em particular, a cosmologia assume o caráter de um gran- te aos observadores estabelecer o conceito fundamental de
de e único laboratório capaz de testar efetivamente fenôme- intervalo (ou separação) entre eventos.
nos do microcosmos na área de altas energias que estão Deformações ou tensões na tessitura do espaço-tempo
longe de poderem ser testados em laboratórios terrestres, passam a ser equivalentes à atuação de forças gravitacionais:
pois temperaturas extremamente elevadas, inatingíveis no atual geometria torna-se força ou, em outras palavras, a massa de
estado de desenvolvimento científico e tecnológico, poderiam um corpo deforma o espaço e essa deformação determina
ser alcançadas nos primeiros instantes do universo. Desse como as outras massas devem se movimentar.
modo, o microcosmo, representado pela teoria das partículas Os notáveis sucessos da teoria no que toca a fenômenos
elementares, e o macrocosmo – a estrutura global do uni- gravitacionais e eletromagnéticos na escala de nosso Sistema
verso – estão se fundindo em um único e ambicioso projeto Solar a estabeleceram como o quadro conceitual de fundo
de pesquisa. no qual se pôde assimilar a extraordinária observação do
astrônomo norte-americano Edwin Hubble (1889-1953), na
EXPLOSÃO QUENTE. A moderna cosmologia relativística tem década de 1920, de que o universo astronômico se encon-
como suporte observacional as evidências produzidas pela traria, como um todo, em um estado dinâmico de expansão
chamada astronomia profunda e, como quadro conceitual (o chamado ‘afastamento uniforme das galáxias’).
de fundo, a teoria da relatividade geral, que permite caracteri- Mais tarde, os estudos do físico russo George Gamow (1904-
zar o cenário global em que ocorrem os acontecimentos físi- 1968) sobre o comportamento da matéria em um estádio
cos. Na linguagem técnica da cosmologia, dá-se a esse cená- primordial muito denso e quente iriam servir para consolidar, já
rio o nome contínuo espaço-tempo, que é formado pela ‘uni- na década de 1970, o chamado modelo padrão da ‘Grande
ficação’ das três dimensões espaciais (x, y e z) e da dimensão Explosão Quente’ (ou, em inglês, Hot Big Bang).
temporal (t). É nele que acontecem os processos físicos rele-
vantes em escala cósmica. UMA DISCIPLINA DA FÍSICA. Hoje, as observações de que dis-
Em 1917, o físico alemão Albert Einstein (1879-1955) pomos nos delineiam o panorama de um universo muitís-
promoveu, em sua teoria da relatividade geral, uma fecunda e simo vasto, bem como expansivo – ou seja, transiente, dinâ-
imprevista combinação entre a interação gravitacional – a for- mico, evolutivo – e notavelmente homogêneo – mais ‘liso’, ou
ça universal de atração entre as massas, descoberta pelo fí- uniforme, que a superfície de uma bola de bilhar. >>>

REVISTA DO REVISTA
CBPF 63 DO CBPF 63
[ C O S M O L O G I A E G R AV I TA Ç Ã O ]
SPACE TELESCOPE SCIENCE INSTITUTE

Figura 2. A imagem mais penetrante que jamais se obteve


do cosmos, feita pela câmara de campo profundo (Deep Field
Camera) do telescópio espacial norte-americano Hubble,
entre 18 e 30 de dezembro de 1995, mostrando milhares
e milhares de galáxias que jamais haviam sido vistas,
cada uma composta por bilhões de estrelas, estendendo-se
ao longo da inimaginável distância de dez bilhões de anos-luz.

Esses elementos fundamentaram a instalação, na década


passada, do modelo da ‘Grande Explosão Quente’ como o
paradigma do conhecimento cosmológico contemporâneo. O
Modelo Padrão, de fato, foi bem-sucedido em incorporar as
evidências da expansão cosmológica e da presença de uma
radiação térmica ‘fóssil’ – a chamada radiação cósmica de fun-
do de 2,7 kelvin, temperatura equivalente a cerca de 270 graus
celsius negativos –, bem como em reproduzir adequadamente
as abundâncias globais observadas dos elementos químicos.
Assim, pela primeira vez, foi produzida uma cosmogonia
Em conjugação com as teorias de unificação da física de legitimamente científica, por ser verificável pela observação. A
partículas elementares, os modelos cosmológicos que tratam cosmologia tornou-se assim uma disciplina própria da física.
o universo como homogêneo permitiram a elaboração de
uma ‘história térmica’ da matéria presente no cosmos, consti- MODELO EM DIFICULDADES. Apesar desses sucessos, o Mo-
tuindo um quadro descritivo bem aproximado que abrange delo Padrão apresenta uma série de graves dificuldades téc-
desde um prodigioso ‘disparo’ inicial (Big Bang), que assina- nicas e filosóficas que podemos agrupar genericamente sob
laria a entrada em existência do próprio universo, até a fase dois títulos:
homogênea, pouco densa e moderadamente expansiva que 1. problemas das condições iniciais: origem da homogenei-
testemunhamos hoje. dade hoje verificada; natureza da ‘matéria escura’ que comporia

PROGRAMA DE PESQUISA TEM VASTO NÚMERO DE TEMAS


Desde sua criação, na primeira meta- Escolas de Cosmologia e Gravitação, en- Exame de uma alternativa competiti-
de da década de 1970, o Grupo de contro organizado e sediado no CBPF va à teoria da relatividade geral; estudo
Cosmologia e Gravitação, ligado ao La- que vem se realizando, sem interrupção, da interação gravitacional em curto alcan-
boratório de Cosmologia e Física Ex- nos últimos 20 anos. ce; investigação das propriedades do
perimental de Altas Energias (Lafex), do Além disso, nosso grupo tem man- universo em sua fase extremamente
CBPF, tem participado ativamente da tido um intenso intercâmbio com insti- densa, mas não singular (nesse tema,
produção científica do país. Alguns tutos e universidades brasileiras e es- nosso grupo desenvolveu um trabalho
dados atestam de forma inequívoca trangeiras, recebendo recentemente con- de análise de questões cosmológicas de-
essa contribuição: realização de 32 te- vite para ingressar na prestigiosa rede nominado ‘Programa do Universo Eter-
ses de mestrado e 18 de doutorado; ICRA (International Center for Relativistic no’); estudo sobre a formação de galá-
publicação de mais de 200 artigos ci- Astrophysics) – ver nesta edição a se- xias e aglomerados de galáxias; exame
entíficos em revistas científicas brasilei- ção ‘Tome Nota’. da estabilidade dos modelos cosmoló-
ras e internacionais de prestígio; a apre- A seguir, apresentamos um breve gicos (do tipo homogêneos e isotrópi-
sentação de aproximadamente uma resumo das principais linhas de pesqui- cos); estudo das definições, ainda in-
centena de trabalhos em vários even- sa seguidas pelo Grupo de Cosmologia completas, do conceito de energia gra-
tos científicos no Brasil e no exterior; e Gravitação do CBPF, ressaltando que vitacional; construção teórica de uma
produção de uma dezena de livros e os temas mencionados são interligados ‘cápsula causal’, onde seriam possíveis
mais 40 capítulos em outras obras – e formam um único e abrangente pro- curvas temporais fechadas (ou ‘viagens
entre esses livros estão os Anais das grama de pesquisas: no tempo’); formulação de um modelo

64 REVISTA DO CBPF
[ C O S M O L O G I A E G R AV I TA Ç Ã O ]
BOOMERANG COLLABORATION

Figura 3. Ao final de 2000, um balão flutuando sobre a gélida


superfície da Antárdida proporcionou a melhor visão já obtida
sobre o universo primordial. Medindo as irregularidades
da radiação cósmica de fundo de 2,7 kelvin, o experimento
Boomerang mostrou que, em seus primórdios, o cosmos
era extremamente homogêneo e regular – na verdade,
cem vezes mais ‘liso’ que uma bola de bilhar.

PERSPECTIVA EXCITANTE. Assim, parece crescer entre os


cosmólogos o entendimento de que a cosmogonia associa-
da ao Modelo Padrão singular, que prevê toda a massa do
a maior parte do conteúdo material do cosmos; problema da universo ‘compactada’ em um ponto adimensional antes da
formação de estruturas como aglomerados e galáxias; ‘detonação’ inicial, representaria um estágio preliminar de uma
2. problemas da singularidade: valores infinitos que as teoria cosmológica mais completa, ainda por ser estabelecida.
grandezas físicas adquirem na origem explosiva do universo; Por exemplo, diferentes abordagens, clássicas e quânticas, têm
proveniência inescrutável das leis físicas, dado que a singula- coincidido na obtenção de cenários homogêneos, porém não
ridade inicial é uma fronteira absoluta para todo o conheci- singulares, compatíveis com modelos de universos eternos,
mento. sem ‘princípio’ nem ‘fim’. Caberia, então, indagar: estaríamos a
Esses aspectos incômodos, bem como a escassez de ob- ponto de presenciar uma autêntica transição ou revolução
servações definitivas sobre o comportamento dos campos paradigmática na cosmologia?
físicos sob condições extremas (ou seja, não-solares) condu- A resposta a essa pergunta só virá com a obtenção de
ziram ao surgimento, nos últimos anos, de uma série de pro- novas evidências cósmicas que poderão regular a seleção
postas alternativas visando eliminar – ou ao menos atenuar – entre as variadas abordagens em curso hoje em dia e definir
as características problemáticas exibidas pelo Modelo Padrão, as linhas gerais de uma cosmovisão reconhecidamente mais
através da alteração ou substituição de alguns dos ingredien- aperfeiçoada. A inauguração, na presente década, de apara-
tes básicos em jogo (ver ‘Programa de pesquisa tem vasto tos de medida inovadores – detectores de ondas gravitacionais
número de temas’). e de neutrinos cósmicos, bem como de novos telescópios
terrestres e espaciais – permitirá pôr em teste muitas de nos-
sas atuais concepções fundamentais sobre o universo em
larga escala – inclusive sobre a própria teoria da relatividade
geral –, permitindo antecipar a excitante perspectiva de im-
aplicável ao universo em seus primeiros portantes inovações em curto e médio prazos. n
instantes, com base na unificação da
teoria da relatividade geral e da mecânica
quântica; aplicação da teoria quântica a
espaços curvos; verificação teórica da
existência de sistemas puramente ele-
tromagnéticos semelhantes a sistemas
gravitacionais (por exemplo, a possibi-
lidade de haver buracos negros eletro-
magnéticos); investigação de sistemas
macroscópicos em interação com o cam-
po gravitacional; busca de evidências so-
bre a mudança da estrutura (topologia)
do espaço nos primórdios da evolução
do universo; e aplicação do conceito de
caos ao problema de formação de es-
truturas como galáxias e aglomerados Sentados (esq. para dir.): José Martins Salim, Mário Novello
de galáxias. e Ívano Damião Soares; em pé (esq. para dir.): Nelson Pinto
Neto, Santiago Esteban Perez Bergliaffa, Herman Julio
Mosquera Cuesta e Eduardo V. Tonini.

REVISTA DO CBPF 65
[FÍSICA DA MATÉRIA CONDENSADA] GRUPO DE ESTRUTURA ELETRÔNICA E FENÔMENOS
COLETIVOS DA MATÉRIA CONDENSADA
Amós Troper

COLABORADORES
Alexandre Lopes de Oliveira (doutorando)
e Viviana P. Rammuni (doutoranda)

A supercondutividade
Descoberta há exatos 90 anos, a supercondutividade é hoje um dos campos mais

intensos de pesquisa em física. O entendimento mais recente do fenômeno já


levou a desdobramentos práticos, como ímãs especiais, fios supercondutores e
protótipos de trens que flutuam sem atrito sobre trilhos magnéticos. Porém,

muitas questões permanecem sem reposta.

No início do século 20, nomes como Hendrik Lorentz


(1853-1928) e Paul Ehrenfest (1880-1933) – para citar ape-
nas dois deles – ajudaram a transformar a Holanda em um dos
principais centros de pesquisa em física do mundo. Foi também
nesse país que, há exatos 90 anos, foi descoberto um dos fe-
nômenos mais notáveis da natureza, a supercondutividade, que
hoje é um dos campos mais ativos e profícuos da física teórica e
experimental, principalmente pela vasta gama de aplicações que
se vislumbra para os chamados materiais supercondutores.
A supercondutividade foi observada pela primeira vez em
1911 na Holanda pelo físico Heike Kamerlingh-Onnes (1853-
EXTRAÍDO DE HTTP://WWW.AMSUPER.COM/

1926). Ao resfriar mercúrio, estanho e chumbo a baixíssimas


temperaturas, próximas ao zero absoluto (ou 273 graus celsius
negativos), esse professor da Universidade de Leiden, impor-
tante centro de pesquisa daquele país, descobriu que esses
Mesmo com espessura final cerca de 100 vezes
elementos passavam a conduzir corrente elétricas sem dissipar
inferior, três fitas supercondutoras como a
mostrada acima (prateada) têm praticamente a
calor, ou seja, a resistência elétrica torna-se praticamente nula, o
mesma capacidade de condução que o cabo que permite aos elétrons se movimentarem livremente através
formado por dezenas de fios de cobre. da estrutura cristalina desses materiais.

66 REVISTA DO CBPF
[FÍSICA DA MATÉRIA CONDENSADA]

CERN
Além da descoberta do fenômeno da super-
condutividade, Kamerlingh-Onnes foi o primeiro
a obter hélio na forma líquida. Por essas e outras
contribuições à física de baixas temperaturas,
denominada criogenia, ele ganhou o Nobel de fí-
sica de 1913.

O ZERO INATINGÍVEL. Em um condutor conven-


cional – um fio de cobre, por exemplo –, o percurso
dos elétrons é dificultado pelos choques contra a es-
trutura cristalina do material e as impurezas presen-
tes nela. Essa estrutura sofre vibrações principalmen-
te devido ao calor a que o material está submetido.
Essas vibrações elásticas devidas ao calor são de-
nominadas fônons.
Os fônons impedem então que os elétrons,
que são os portadores convencionais de carga
em uma corrente elétrica, percorram essa grade
cristalina sem choques. Dessas colisões é que sur-
ge a dissipação de calor que se observa em qual-
quer material que conduz eletricidade – essa per-
da de calor é denominada efeito Joule, em home-
nagem ao físico inglês James Joule (1818-1889), Ímã supercondutor empregado no LHC (sigla, em inglês, para Grande
que deduziu a lei que rege esse fenômeno. Colisor de Hádrons), acelerador que está sendo construído pelo Centro
Europeu de Pesquisas Nucleares (Cern), em Genebra (Suíça).
Diminuir a temperatura de um condutor elétri-
co faz com que essas vibrações diminuam e, teori-
camente, quando o condutor atinge a temperatura
de zero absoluto (ou zero kelvin), os fónons desaparecem por Com as chamadas equações de London, foi possível enten-
completo. Nesse cenário de extrema refrigeração, cessariam os der um efeito tão surpreendente quanto a própria supercon-
choques dos elétrons contra a estrutura cristalina, e a dissipação dutividade: o efeito Meissner, assim batizado em homenagem
de calor também acabaria. Dependendo da pureza do condu- ao físico Walther Meissner em 1933. Nesse fenômeno, observa-
tor, permanecem só as colisões contra possíveis impurezas, se que materiais, ao atingirem a fase de supercondução, têm a
como átomos ou moléculas de outro material que estariam capacidade de expulsar campos magnéticos. Foi com esse
contaminando o condutor, bem como contra as chamadas va- ferramental teórico, publicado em 1935 com a ajuda do irmão,
câncias (‘vazios’ da estrutura cristalina). Heinz London, que se explicou por que um campo magnético
No entanto, é preciso ressaltar que o zero absoluto (ou zero intenso, a partir de um certo valor, tem a capacidade de destruir
kelvin) é inatingível para qualquer material da natureza. Sem en- a supercondutividade.
trar em detalhes, apenas adiantamos ao leitor que essa
inviabilidade é explicada pelo princípio de incerteza, proposto TEORIA BCS. Porém, à medida que novos fenômenos surgiam,
em 1927 pelo físico alemão Werner Heisenberg (1901-1976). os pesquisadores percebiam que o modelo fenomenológico
Porém, hoje, os experimentos já chegam a temperaturas muito não era satisfatório para responder a várias questões sobre a
próximas ao zero absoluto, da ordem de centésimos de kelvin. supercondutividade. Ainda em 1906, o físico alemão Albert
Einstein (1879-1955) já havia inaugurado a aplicação de uma
EXPULSÃO DO CAMPO. Cerca de duas décadas depois de desco- então recente teoria, a teoria quântica, para entender fenômenos
berta a supercondutividade, já havia uma teoria para explicar de- relacionados ao calor nos sólidos – mais especificamente, Einstein
talhes do fenômeno, desenvolvida pelo físico teuto-americano aplicou o conceito de quantum (pacote de energia) para explicar
Fritz London (1900-1954), que se baseou na teoria do certas propriedades térmicas dos sólidos (o chamado calor es-
eletromagnetismo, criada pelo físico escocês James Clerk Maxwell pecífico). Com esse trabalho, inaugurou a área hoje denominada
(1831-1879) ainda no século 19. teoria quântica da matéria condensada. >>>

REVISTA DO CBPF 67
[FÍSICA DA MATÉRIA CONDENSADA]

Foi, no entanto, na década de 1920 que surgiu um desdo- POR QUE NEM TODOS SÃO? Apesar da abrangência teórica, a teo-
bramento mais consistente dessa teoria: a mecânica quântica, ria BCS se deparou com dificuldades frente a alguns fatos teóri-
com a qual os físicos hoje tratam os fenômenos na escala dos cos e fenômenos experimentais. A primeira limitação da teoria é
átomos e das moléculas. Porém, só em 1957 surgiria uma teo- que ela não pode apontar de antemão que material será um
ria microscópica (ou quântica) para a supercondutividade, atra- supercondutor. Ela também não responde, por exemplo, a uma
vés dos trabalhos dos físicos norte-americanos John Bardeen pergunta simples: por que todos os sólidos não são super-
(1908-1991), Leon Cooper e John Schrieffer. E ainda hoje a condutores? E a resposta para esta última questão ainda perma-
teoria BCS, batizada com as iniciais dos autores, é a referência nece um mistério – sabe-se, no entanto, que bons condutores
para os estudos da área. O trabalho rendeu aos três o Nobel de eletricidade (cobre, alumínio entre outros metais) não são
de física de 1972. bons supercondutores (ver ‘O que é um bom supercondutor?’).
Ainda em 1956, Cooper publicou um artigo no qual fazia A teoria BCS também sugere que não poderia haver
uma previsão teórica importante: os elétrons durante a fase supercondutividade a temperaturas acima de 25 kelvins apro-
supercondutora, isto é, quando as vibrações da rede cristalina ximadamente (ou 248 graus celsius negativos), pois o aco-
não interferem nas trajetórias dessas partículas, formam pares e plamento que mantém os elétrons formando pares de Cooper
passam a se comportar como se fossem uma entidade única. seria desfeito por vibrações da rede, por exemplo.
Esse acoplamento ganhou o nome de pares de Cooper, e sabe-
se, com base em experimentos, que, quanto menor a temperatu- ARRANHÃO NO STATUS. Porém, no início de 1980, verificou-se
ra do material, mais pares desse tipo são formados. que tipos especiais de cerâmicas eram supercondutoras a tem-

O QUE É UM BOM SUPERCONDUTOR?


A classe dos materiais ter a capacidade de expulsar

CERN
supercondutores não é um campo magnético que
homogênea. Há aqueles age sobre ele, para que a
que se mostram mais efi- supercondutividade não
cientes na condução de seja destruída, por exemplo,
eletricidade, porém neles pela ação de um relâmpa-
o fenômeno só surge a go ou de outra fonte mag-
temperaturas muito bai- nética exterior, o que seria
xas, o que inviabiliza cer- outro fato a inviabilizar sua
tas aplicações do mate- aplicação.
rial. Outros se tornam Por fim, é preciso que
supercondutores a altas ele conduza uma alta den-
temperaturas (cerca de sidade de corrente elétri-
200 graus celsius negati- ca, sendo esta talvez sua
vos), mas nem sempre característica mais impor-
conduzem uma quantida- tante do ponto de vista
Seção de um cabo supercondutor empregado em ímã tam-
de de corrente elétrica bém supercondutor usado do acelerador LHC.
prático. Hoje, em situações
(ou densidade de cor- especiais, cabos supercon-
rente) suficiente. dutores já substituem os
Um bom supercondutor deve ter relativamente barato – para temperatu- centenários fios de cobre (ver figura).
três características básicas. Sua tempe- ras mais baixas, é preciso usar hélio líqui- Nosso trabalho de pesquisa en-
ratura crítica, a partir da qual surge a do, matéria-prima cara e escassa. Essa volve colaborações com doutorandos
supercondutividade, deve ser alta. O passagem da condutividade para a su- do próprio CBPF, bem como com pes-
ideal é que seja acima de 80 kelvins percondutividade deve acontecer de ma- quisadores da Universidade Federal
(193 graus celsius negativos), pois, neira ‘brusca’ – os físicos preferem o ter- do Rio de Janeiro, da Universidade
nesse faixa, é possível refrigerá-lo com mo ‘sharp’ (em inglês, pontiagudo). Federal Fluminense e da Universida-
nitrogênio líquido, que é abundante e Um bom supercondutor deve ainda de do Estado do Rio de Janeiro.

68 REVISTA DO CBPF
[FÍSICA DA MATÉRIA CONDENSADA]

TEORIA APRIMORADA AINDA É CONSISTENTE


Uma das principais linhas de pesqui- – aquela a partir da qual a supercon- e trabalhado em duas frentes extras:
sa do Grupo de Estrutura Eletrônica dutividade se manifesta – é fortemente na intrigante relação entre ferro-
e Fenômenos Coletivos da Matéria dependente da massa dos átomos que magnetismo e supercondutividade –
Condensada do CBPF tem sido mos- formam o supercondutor. Porém, ex- há indícios experimentais de que es-
trar que a teoria BCS, em sua forma perimentalmente, verifica-se que essa ses dois fenômenos podem coexistir
aprimorada, é ainda compatível com relação temperatura crítica-massa não é em certos materiais sem que os pa-
os dados experimentais. tão intensa assim. res de Cooper sejam ‘destruídos’.
A partir de 1992, o grupo pas- Os trabalhos de nosso grupo têm Outro tema são os chamados ‘stri-
sou a publicar em revistas internacio- mostrado que o aprimoramento da teo- pes’. Experimentos muito recentes
nais de prestígio uma série de traba- ria leva a desvios significativos em relação mostraram que nos supercondutores
lhos que mostram que, submetida a à teoria BCS convencional, porém não a a altas temperaturas há uma tempe-
um refinamento teórico, a teoria BCS descarta como referência para explicar a ratura, designada por T*, que serve
não precisa ser a priori descartada supercondutividade em materiais como como um ‘prenúncio’ de que o ma-
quando se trata de explicar e enten- o nióbio – do qual o Brasil tem grandes terial, em breve, irá apresentar a
der discrepâncias experimentais rela- reservas – e as cerâmicas supercondu- supercondutividade. Acredita-se que
cionadas ao chamado efeito isotópico. toras, cujos dados experimentais fogem através do entendimento da T* será
Grosso modo, esse efeito pode ser às previsões da teoria convencional. possível responder a uma série de
descrito da seguinte forma: a teoria Mais recentemente, nosso grupo questões que ainda permanecem em
BCS prevê que a temperatura crítica tem ampliado suas linhas de pesquisa aberto nessa área.

peraturas por volta de 70 kelvins (ou cerca de 200 graus celsius magnéticos –, há ainda uma extensa gama de pergun-
negativos). Desde então, vários outros materiais têm demons- tas a serem respondidas. Talvez, a principal delas seja quais me-
trado o fenômeno da supercondutividade a altas temperatu- canismos microscópicos possibilitariam a supercondutividade
ras, acima de 100 kelvins – vale ressaltar a descoberta recente a altas temperaturas?
de um composto promissor, à base de boro e magnésio Esta e outras questões permanecem em aberto. No en-
(MgB2), que vem sendo objeto de intensos estudos teóricos e tanto, elas conferem um fascínio extra ao fenômeno da
experimentais. supercondutividade e, com certeza, servem como uma moti-
Mesmo antes de enfrentar as dificuldades com a su- vação a mais para os cientistas dessa área. n
percondutividade a altas temperaturas, a teoria BCS já ha-
via sofrido outros arranhões em seu status de teoria de
referência: discrepâncias experimentais em relação ao cha-
mado efeito isotópico, que está relacionado com a massa
do átomos que formam um supercondutor – contrarian-
do a teoria BCS, experimentos mostram que a variação no
fenômeno da supercondutividade não é tão intenso. No
entanto, pesquisadores brasileiros vêm mostrando, desde
o início da década de 1990, que é possível explicar esses
desvios experimentais dentro do âmbito da teoria BCS.
(ver ‘Teoria aprimorada ainda é consistente’).

PROBLEMAS EM ABERTO. Passado quase um século do desco-


brimento da supercondutividade, o fenômeno continua sendo
um intenso campo de pesquisa. Apesar dos tremendos avan-
ços do conhecimento e das aplicações que empregam su-
percondutores – por exemplo, os ímãs e fios supercondutores Sentados (esq. para dir.): Viviana P. Rammuni e Amós Troper;
em pé (esq. para dir.): Alexandre Lopes de Oliveira, Marcus
já são usados em aceleradores de partículas, bem como protóti-
V. Tovar Costa e Nilson Antunes de Oliveira.
pos de trens, ainda em fase experimental, flutuam sobre trilhos

REVISTA DO CBPF 69
GRUPO DE FÍSICA DE PARTÍCULAS CHARME
João dos Anjos

A física
Javier Magnin
Ignácio Bediaga & Hickman
Jussara M de Miranda
Alberto Correa dos Reis

COLABORADORES
Cecília Uribe (doutoranda)
André Massafferri (doutorando)

do charm
Espectômetro
da experiência E-791
Dotado de fenomenologia particularmente rica, o estudo
detector de posição
trilhas de silício

identificação de partículas
das chamadas partículas charmosas tem sido, além de um
Cerenkov

detector de posição
câmaras multifilares laboratório para testar e refinar teorias sobre a interação
imãs defletores
de partículas carregadas

detector de energia
calorímetro eletromagnético
entre a matéria, um instrumento poderoso para a obser-
detector de energia
calorímetro hadrônico

absorvedor de partículas
vação de partículas que, até recentemente, driblavam os
parede de aço

detector de múons
cintiladores plásticos mais rigorosos experimentos.

A natureza apresenta uma grande variedade de


partículas que formam o mundo à nossa volta. Provavelmente,
as mais conhecidas são o elétron (a partícula básica envolvida
na eletricidade), o próton e o nêutron (constituintes do núcleo
atômico), bem como o méson pi, cuja descoberta desempe-
bóson carga massa nhou um papel importante para a fundação do CBPF .
De maneira esquemática, as partículas elementares (ou
g 0 0
‘indivisíveis’) podem ser classificadas em dois grupos:
W+ +1 80,42 1) Bósons de calibre: são partículas envolvidas na transmis-
são das quatro forças (ou interações, como preferem os físicos)
W- -1 80,42 da natureza. São eles, o fóton (responsável pela força eletro-
magnética), os bósons vetoriais W +, W- e Z0 (força fraca), os
Z 0 91,19 glúons (força forte) e os grávitons (partícula prevista teorica-
mente, porém ainda não detectada, responsável pela força
g 0 0
CEDIDO PELOS AUTORES

gravitacional).
Figura 1. Tabela com os tipos, as car- Antes de mencionarmos o segundo grupo de partículas
gas elétricas e as massas dos bósons elementares, vale aqui uma breve descrição das quatro forças
de calibre – as massas estão em GeV
da natureza. São elas: a força gravitacional, que mantém a Ter-
(bilhões de elétrons-volt).
ra girando em torno do Sol ou que traz de volta à superfície

70 REVISTA DO CBPF
[FÍSICA DE ALTAS ENERGIAS]
FERMILAB

um objeto atirado para cima; a força forte, que


quarks 1a família 2a família 3a família carga
mantém os núcleos atômicos coesos; a força fraca,
envolvida em certos tipos de radiação nuclear; e, u c t +2/3
finalmente, a força eletromagnética, responsável, up charm top

por exemplo, pelo atrito entre os corpos.


2) Férmions: são as partículas que formam a d s b -1/3
down strange bottom
matéria ordinária do nosso dia-a-dia. Dividem-se
em léptons e quarks, sendo que cada um desses Figura 3. Assim como os léptons, os quarks apresentam-se em três famí-
subgrupos apresenta três famílias. Os léptons po- lias. As massas dos quarks variam de 2 keV (mil elétrons-volt) até 170 GeV
(bilhões de elétrons-volt), esta última referente ao quark top. Na região
dem ou não ter carga elétrica (figura 2). Quanto
azul, estão os quarks classificados como pesados.
aos quarks, são as fontes da força forte e todos têm
carga elétrica fracionária (figura 3). As forças eletro-
magnética e fraca atuam tanto sobre os léptons quanto os quarks. e E831, foram feitas colaborações entre cerca de 20 institui-
Quanto à força forte, ela age somente sobre os quarks, que con- ções de pesquisa de vários países do mundo, incluindo o
têm uma propriedade adicional, denominada carga de cor. CBPF. Como resultado desse esforço, foram publicados deze-
nas de artigos em revistas de prestigio internacional, com re-
SEMPRE CONFINADOS. Os quarks não podem ser observa- sultados importantes na área de física de partículas.
dos livres, mas apenas formando partículas com estrutura, O experimento E791, por exemplo, consistiu na colisão de
como prótons, nêutrons e mésons pi (hoje denominados um feixe de píons contra um material sólido (alvo) situado no
píons). A propriedade que impede que os quarks sejam ob- início de um detector com cerca de 20 metros de comprimento
servados isoladamente é denominada confinamento das cuja forma lembra um cone gigantesco (figura da abertura). Es-
interações fortes. ses choques, altamente energéticos, produzem dezenas de par-
Partículas compostas por quarks são denominadas generi- tículas, entre elas os chamados hádrons charmosos, que con-
camente hádrons. Podem ainda ser classificadas em dois gran- têm em sua estrutura pelo menos um quark charm.
des grupos: mésons (formados por um quark e um antiquark) Detectores usados nessas experiências são equipamentos
e bárions (formados por três quarks) – exemplos destes últi- altamente sofisticados (ver também nesta edição ‘Quatro anda-
mos são os prótons e os nêutrons. res de ciência e tecnologia’ e ‘Precisão e sensibilidade’). Essa
Uma descrição mais detalhada das propriedades das partí- aparelhagem tem a capacidade de detectar, com extrema preci-
culas elementares e dos hádrons pode ser encontrada em são, várias propriedades físicas (por exemplo, energia, carga elé-
http://pdg.ift.unesp.br/2000/contents_tables.html trica e quantidade de movimento) de cada uma das partículas
que o atravessam.
CONE GIGANTESCO. Os experimentos de que o Grupo de O grande número de colisões,cerca de 20 bilhões, regis-
Charm do CBPF tem participado foram realizados no acelera- tradas e gravadas em fita magnética, bem como a boa resolu-
dor de partículas Tevatron, do Fermilab, centro de pesquisas ção obtida nesse experimento, estão permitindo que se che-
que fica próximo a Chicago (Estados Unidos). Para a reali- gue a medidas refinadas tanto sobre a produção quanto a
zação desses experimentos, denominados E691, E769, E791 desintegração das partículas charmosas (ver ‘História se com-
pleta cinco décadas depois’).

léptons 1a família 2a família 3a família carga


TRÊS ETAPAS. O estudo da produção de hádrons
neutrinos ne nm nt 0 pesados é importante por ser um laboratório
neutrino do elétron neutrino do múon neutrino do tau para testar a teoria que explica como a matéria
interage através da força forte – essa teoria leva
léptons com e m t -1
o nome cromodinâmica quântica.
carga elétrica elétron múon tau
De um modo geral, espera-se que hádrons
Figura 2. As três famílias de léptons, partículas que se apresentam com contendo quarks pesados – como é o caso dos
carga elétrica zero e -1 (em comparação com a carga do elétron). As mas- hádrons charmosos – sejam produzidos em três
CEDIDOS PELOS AUTORES

sas variam de 0,51 MeV (massa do elétron) até 1,7 GeV (massa do tau). Os etapas. Primeiramente, deve ocorrer a destruição
neutrinos foram inicialmente tidos como partículas sem massa, porém sabe- das partículas que estão colidindo e a liberação de
se hoje que eles devem ter uma massa pequena segundo, os últimos resul-
seus quarks constituintes. Depois, esses quarks de-
tados de dois importantes experimentos nessa área, SuperKamiokande
(Japão) e Sudbury Neutrino Observatory (Canadá).
vem interagir com um glúon e produzir um par de
quarks charm. A última etapa tem a ver com o cha-

REVISTA DO CBPF 71
[FÍSICA DE ALTAS ENERGIAS]

HISTÓRIA SE COMPLETA CINCO DÉCADAS DEPOIS


As atividades teóricas e experimentais drons charmosos.
do Grupo de Charm do CBPF têm se Em relação à desin-
concentrado tanto na produção tegração do charme,
quanto na desintegração de há- nosso grupo tem atua-
drons charmosos. No entanto, nos- do em pelo menos cin-
so grupo dedica-se a outras duas li- co linhas diferentes. São
nhas de pesquisa: elas: mistura entre famíli-
a) aspectos teóricos ainda mal com- as de quarks nas intera-
preendidos da teoria das forças fortes ções fracas; comprova-
(área tecnicamente denominada es- ção de propriedades da Sentados (esq. para dir.): João dos Anjos, Jussara M. de
trutura não perturbativa do mar de teoria das forças fracas Miranda e Alberto Correa dos Reis; em pé (esq. para dir.):
hádrons); através de interações Javier Magnin, André Massafferri, Ignácio Bediaga &
Hickman e Cecília Uribe.
b) produção de hádrons a partir da mediadas pela partícula
energia resultante do processo de ani- Z0; discussão teórica e
quilação elétron-pósitron;. experimental da desintegração do char- o número indica sua massa em MeV
c) aspectos teóricos da teoria das me em três partículas; assimetria entre a –, foi possível ainda observar outra
interações eletrofracas, em particular formação de matéria e antimatéria (ou vi- partícula procurada há anos, o méson
aqueles relativos à violação da simetria olação CP). k (kappa), bem como aprimorar a
de Carga-Paridade (CP). Porém, um resultado obtido tam- compreensão sobre o méson f 0
Na parte experimental, nosso gru- bém na linha de desintegração do (980).
po tem estudado as assimetrias na charme é de particular importância para Vale ressaltar que as propriedades
produção de bárions charmosos do a física de partículas. Publicado recente- do méson sigma fazem dele uma par-
tipo lambda (L+C) e (L-C) no experi- mente na prestigiosa Physical Review tícula complementar ao méson p (pi),
mento E791 (ver também nesta edi- Letters (vol. 86, p. 770, 2001), o artigo que foi descoberto em 1947 com a
ção ‘Os bárions charmosos’). Na linha relata a comprovação da existência do participação do físico brasileiro Cesar
teórica, propusemos recentemente méson s (sigma), partícula prevista teori- Lattes, fundador e primeiro diretor ci-
um modelo no qual os quarks que camente no início da década de 1960, entífico do CBPF. Assim, cinco décadas
compõem a estrutura das partículas mas que, até agora, havia se mostrado mais tarde, a história retorna à mesma
que colidem desempenham um papel fugidia. Com a mesma técnica que levou instituição para, de certo modo, com-
fundamental na formação dos há- à observação do méson sigma (500) – pletar um ciclo de descobertas.

mado processo de hadronização, que é o modo como os


H1 Hc quarks charm se recombinam com os quarks leves liberados na
colisão formando os hádrons charmosos (figura 4).
q g c

q c
FENOMENOLOGIA RICA. Enquanto o estudo da produção dos
hádrons charmosos tem ajudado a aprofundar o conheci-
H2 mento sobre como a matéria interage através da força forte, a
Hc
desintegração dessas partículas tem permitido testar de modo
rigoroso um dos maiores desenvolvimentos teóricos do sécu-
Figura 4. Processo típico de produção de hádrons pesados. No dia-
lo 20: teoria eletrofraca, na qual estão unificadas duas forças
grama, os hádrons iniciais (H1 e H2) destroem-se na colisão e
produzem um par charm-anticharm (c e c), que posteriormen- fundamentais da natureza, a eletromagnética e a fraca.
te forma dois hádrons pesados charmosos, um dotado de um Além de ser capaz de realizar testes refinados para os mo-
quark charm (HC) e outro de um anticharm (Hc ). A letra g repre- delos atuais de partículas, a física dos hádrons charmosos tem
senta um glúon (partícula mediadora da chamada força forte). se mostrado frutífera também na observação experimental de
partículas. É essa fenomenologia particularmente rica que faz
dessa área uma das mais ativas e promissora dentro do campo
da física de partículas. n

72 REVISTA DO CBPF
GRUPO DE MATERIAIS AVANÇADOS [ F Í S I C A D A M AT É R I A C O N D E N S A D A ]
Elisa Baggio Saitovitch
Izabel de Souza Azevedo

O impacto
Magda Bittencourt Fontes

COLABORADORES
Dalber Ruben Sanchez Candela (doutor)
Jorge Elias Musa Carballo (doutor)
Jorge Luiz Gonzalez (doutor)
Ana D. Alvarenga (doutora)

dos
Maria da Penha Cindra Fonseca (doutora)

materiais
Edson Passamani (pesquisador visitante)
Li-Yang (pesquisador visitante)
Sergio García García (pesquisador visitante)
Julio Antonio Larrea Jiménez (doutorando)
Ada Petronila López (doutoranda)
Marcos Morales (doutorando)
Armando Biondo (doutorando)
Pablo E. Munayco Solorzano (mestrando)

avançados
Mariella Camarena (mestranda)
Alexandre Mello (engenheiro
Eduardo S. Yugue (engenheiro)
Wilson Vanoni (físico)
Henrique Duarte (técnico)
Ivanildo de Oliveira (técnico)
Walmir F.de Mendonça (técnico)
Vicente Cunha (vidreiro)
Fernando L. Stavale Jr. (iniciação científica)
André França de Souza (iniciação científica)
Jean-Philippe Dockier (iniciação científica)
Henrique Duarte da Fonseca (iniciação científica)
Júlio Alberto Guanabara Baliociam (iniciação científica)

A pesquisa na área de materiais tem sido importante elemento no desenvolvimen-


to das sociedades modernas, fundadas na alta tecnologia. O impacto de materiais
avançados, como ligas metálicas, semicondutores, filmes finos, cerâmicas,
cristais líquidos e supercondutores, atinge todos os aspectos do mundo moderno,
do nosso dia-a-dia à grande escala da economia mundial.

Saltos para novas tecnologias envolvendo materiais sem-


pre tiveram uma ligação estreita tanto com a pesquisa fundamental
sobre as propriedades básicas da matéria em estado sólido – ou
matéria condensada, como preferem os físicos – quanto com a
pesquisa aplicada, que visa manipular as propriedades estruturais,
físicas, químicas, elétricas, magnéticas, entre outras, da matéria.
Um dos objetivos da pesquisa na área da física da matéria
condensada é desenvolver materiais cuja estrutura deve ser defini-
da com precisão, em nível atômico, para dotá-los de propriedade e
comportamento específicos para determinadas aplicações. Essa ta-
refa depende mais e mais da atuação conjunta de técnicas sofistica-
das que vão da preparação e da caracterização ao entendimento
teórico desses novos materiais. >>>

REVISTA DO CBPF 73
[ F Í S I C A D A M AT É R I A C O N D E N S A D A ]

Metal não-supercondutor

Ímã feito à base de


RESISTÊNCIA

Supercondutor elementos terras raras

S N

Nitrogênio líquido
Disco supercondutor
O TC TEMPERATURA (em kelvins) Supercondutor

Figura 1. Comparação da variação da resistência elétri- Figura 2. O ímã induz no material supercondutor correntes elétricas
ca segundo a variação de temperatura para um su- que, por sua vez, geram um campo magnético em seu interior. O cam-
percondutor e um metal normal. Tc é a chamada tem- po magnético criado no ímã faz com que os dois materiais se repilam,
peratura crítica, abaixo da qual a resistência elétrica fenômeno conhecido pelo nome de efeito Meissner. Para levitar, a força
em um supercondutor é nula. de repulsão deve ser igual ao peso do ímã.

Importantes linhas de pesquisa de ponta em materiais avan- absoluto (273 graus celsius negativos), esse físico holandês
çados estão presentes no CBPF, com um interesse voltado para descobriu que a resistência elétrica se tornava nula no mercúrio
as propriedades físicas e potencialidades tecnológicas desses ma- (Hg) resfriado a 269,2 graus celsius negativos. Ele entendeu
teriais. Nossa capacidade instalada na área de física da matéria que o metal passava, abaixo de uma certa temperatura (tempe-
condensada, iniciada na década de 1970 pelo físico e químico ratura crítica ou simplesmente Tc), para um novo estado, que
brasileiro Jacques Danon (1924-1989), tem uma posição de chamou estado supercondutor, com base no surgimento de
destaque tanto no cenário brasileiro quanto internacional. propriedades elétricas extraordinárias (figura 1).
Passaremos agora a detalhar um pouco mais as áreas a Onnes, que recebeu o prêmio Nobel em 1913, tinha cons-
que se dedica o Grupo de Materiais Avançados do CBPF. ciência da importância de sua descoberta para a ciência, bem
como de seu potencial comercial. Um condutor elétrico sem re-
I. SUPERCONDUTORES. O fenômeno da supercondutividade foi sistência pode conduzir sem perdas corrente elétrica a grandes
descoberto por Heike Kamerlingh-Onnes (1853-1926), em distâncias. Onnes, por exemplo, manteve uma corrente circulan-
1911, em Leiden (Holanda). Estudando as propriedades elétri- do em um fio de chumbo (Pb), resfriado a 4 kelvin (269 graus
cas dos metais a temperaturas muito baixas, próximas do zero celsius negativos) durante um ano! Batizou essa corrente ‘per-

GRUPO ORGANIZARÁ ENCONTRO MAIS IMPORTANTE DA ÁREA


No CBPF, o estudo da superconduti- riais; b) os efeitos de pressão hidrostática tos químicos cério (Ce), ródio (Rh) e
vidade não é novidade. Há mais de sobre a temperatura crítica (Tc), bem índio (In). Nessa área, realizamos es-
uma década, seus pesquisadores têm como sobre as propriedades de transpor- tudos no sentido de acompanhar as
contribuído para entender as proprie- te, os efeitos de dissipação e as correntes modificações do estado fundamental
dades desses materiais. críticas; c) efeito das substituições atômi- desses materiais, induzidas por pertur-
Os trabalhos realizados no Labo- cas nas diversas propriedades; d) relação bações físicas e químicas controladas e
ratório de Supercondutividade do das propriedades com a microestrutura direcionadas.
CBPF têm uma abordagem bem desses materiais; e) coexistência de mag- A comunidade internacional atri-
abrangente, cobrindo desde a prepa- netismo e supercondutividade. buiu ao nosso grupo a responsabili-
ração dos materiais (caracterização es- Trabalhamos com várias cerâmicas dade de organizar no Brasil, em 2003,
trutural, magnética e supercondutora) supercondutoras e também com os com- a próxima M2S-HTS (International
até a busca do entendimento dos me- postos da família dos boros-carbetos de Conference on Materials and Me-
canismos envolvidos, variando alguns terras raras – um exemplo desses com- chanisms of Superconductivity and
parâmetros (composição, temperatura posto é o RNi2B2C, que contém nióbio High Temperature Superconductors),
e pressão) de forma controlada. (Ni), boro (B) e carbono (C), sendo que que é a conferência trianual mais im-
Nosso programa de trabalho obje- R representa um elemento terra rara). portante na área de superconduti-
tiva estudar: a) a relação do estado Estamos também iniciando estudos vidade e faz parte de uma série de
supercondutor com as propriedades dos férmions pesados supercondutores eventos iniciados em 1988 em
magnéticas e estruturais desses mate- do tipo CeRhIn5, formado pelos elemen- Interlaken (Suíça).

74 REVISTA DO CBPF
[ F Í S I C A D A M AT É R I A C O N D E N S A D A ]

EXTRAÍDO DE HTTP://SUPERCONDUCTORS.ORG/LINKS.HTM
sistente’, pois ela circulava sem a aplicação de uma voltagem (ou,
tecnicamente, diferença de potencial).

ENVIADA AO ESPAÇO. Desde então, esse fenômeno tem fascinado


os cientistas, que conseguiram enormes progressos ao descobrir
novos materiais supercondutores, aprofundando a compreensão
dos mecanismos físicos responsáveis por esse novo estado, bem
como concebendo aplicações tecnológicas dessa extraordinária
propriedade (ver também nesta edição ‘A supercondutividade’).
Figura 3. O gráfico mostra a progressão nas temperaturas críti-
Em janeiro de 1987, a área da supercondutividade passou cas dos supercondutores.
por uma verdadeira revolução: a descoberta da superconduti-
vidade acima da temperatura de liquefação do nitrogênio (77
kelvin, ou 196 graus celsius negativos), por Paul Chu e colabo- trogênio líquido (77 kelvin), abrindo perspectivas enormes para
radores, o que abriu enormes perspectivas para a aplicação a aplicação desses materiais, pois a refrigeração por nitrogênio lí-
prática desse fenômeno. quido é relativamente barata em comparação com o hélio líqui-
O impacto dessa descoberta pode ser estimado pelo fato do, elemento caro e pouco abundante.
de uma pastilha de YBa2Cu3O7 ter sido enviada ao espaço em Mais tarde, foram descobertos outros materiais cerâmicos
uma cápsula como uma das 100 maiores descobertas do últi- cuja temperatura era superior aos 92 kelvin. Hoje, o recorde, a
mo milênio. Formado pelos elementos químicos ítrio (Y), bário pressão ambiente, é de 135 kelvin (138 graus celsius negativos)
(Ba), cobre (Cu) e oxigênio (O), esse material é hoje o mais es- para um composto formado por mercúrio, tálio, bário, cálcio, co-
tudado entre os novos supercondutores a alta temperatura. bre e oxigênio (figura 3).

LEVITAÇÃO MAGNÉTICA. A propriedade que distingue um su- FORMANDO PARES. Um SC tem a capacidade de conduzir cor-
percondutor (SC) de um condutor perfeito é o diamagnetismo, rente elétrica sem dissipação de energia, o que não acontece
que impede que as linhas de força de um campo magnético com um condutor comum. Em metais como cobre e alumínio, a
penetrem no material. Essa propriedade, conhecida como efei- corrente flui quando elétrons migram de um íon para outro, co-
to Meissner – em homenagem ao físico alemão Walther lidindo com impurezas ou imperfeições na estrutura (ou rede
Meissner (1882-1974) –, dá origem a um dos fenômenos cristalina) desses materiais. Nesse caso, os choques fazem com
mais intrigantes relacionados à supercondutividade: a levitação que os elétrons sejam espalhados em todas as direções, per-
magnética (figura 2). dendo com isso energia na forma de calor (figura 4a).
O estado supercondutor pode ser destruído de três modos: Em comparação com um condutor convencional, o mo-
a) elevando a temperatura do material acima da temperatura vimentos dos elétrons em um SC é muito diferente. Vibrações
crítica (Tc); b) aplicando uma corrente elétrica maior que a cor- atômicas são responsáveis por unificar a corrente total, for-
rente crítica (Ic); c) sujeitando o material a um campo magnético çando os elétrons a se agruparem em pares (os chamados
acima do valor crítico (Bc). Esses fatores têm um papel importan- pares de Cooper). Assim, elétrons, que normalmente se re-
te quando se trata de construir dispositivos para aplicações. pelem, passam a ‘sentir’ uma atração profunda em um SC
(figura 4b). Em pares, eles passam então a se comportar
ALTAS TEMPERATURAS. Em 1986, no Laboratório de Pesquisa como se fossem uma partícula única. Nesse estado, ao per-
da IBM, em Rüschlikon (Suíça), os pesquisadores Alex Müller e correr a rede cristalina do condutor, eles são capazes de supe-
Georg Bednorz descobriram um composto cerâmico cuja tem- rar todos os obstáculos que causam a resistência.
peratura de transição supercondutora jamais havia sido obser-
vada: 30 kelvin (243 graus celsius negativos). Assim, eles inau- a b
guravam a era dos supercondutores HTc (sigla, em inglês, para
supercondutividade a altas temperaturas).
O composto, tipo perovskita, formado pelos elementos quí-
micos lantânio, bário, cobre e oxigênio – (La2-xBax)CuO4 –, serviu
para que ambos ganhassem o prêmio Nobel de 1987. Os as-
pectos importantes são o aumento da Tc, bem como o fato de
se tratar de um óxido. Ainda em 1987, com a substituição do
lantânio pelo ítrio (Y), o valor de Tc foi para 92 kelvin (181 graus
Figura 4. Em a, representação artística do movimento dos elé-
celsius abaixo de zero).
trons em um condutor convencional. Em b, movimento do par
Pela primeira vez na história da supercondutividade, um de elétrons (par de Cooper) em um supercondutor.
grupo de pesquisas conseguia um material com Tc acima do ni- >>>

REVISTA DO CBPF 75
[ F Í S I C A D A M AT É R I A C O N D E N S A D A ]

EXTRAÍDO DE HTTP://WWW.AMSUPER.COM/
MECANISMO CONTROVERSO. A busca sua transmissão através de longas
de mecanismos responsáveis pela distâncias, o estudo da superconduti-
supercondutividade a altas temperatu- vidade adquire cada vez mais rele-
ras ainda permanece um dos proble- vância. Por outro lado, a descoberta
mas mais relevantes na física da maté- de novos materiais, a caracterização e
ria condensada. o aperfeiçoamento daqueles já co-
Estudos do efeito de altas pressões nhecidos, juntamente com as formas
sobre a temperatura crítica de cerâmicas de utilização e questões teóricas, são
Figura 5. Fio supercondutor
supercondutoras permitem definir as um desafio e estímulo para o estabe-
substituições de um elemento químico lecimento de novas parcerias entre ci-
por outro que possam aumentar ainda mais os valores dessa ência básica, desenvolvimento e indústria.
temperatura e proporcionar um melhor entendimento dos as- Temperaturas críticas supercondutoras próximas àquela do
pectos básicos dos materiais de HTc. nitrogênio líquido também criaram uma nova perspectiva para
O mecanismo por trás da formação dos pares de Cooper é aplicações tecnológicas que podem ocorrer nas áreas de ener-
ainda controverso para explicar a supercondutividade nos gia elétrica e da construção de ímãs para campos magnéticos
cupratos (compostos de óxido de cobre). intensos, bem como de eletromotores e sensores.
Fitas e fios supercondutores feitos de supercondutores HTc
NOVAS IDÉIAS. Os novos supercondutores a alta temperatura, tornaram-se tema de grande interesse em todo o mundo devi-
como o La1.85Ba0.15CuO4, violam os limites previstos pela teoria do às suas altas correntes críticas, pois essa característica permite
BCS, batizada assim em homenagem aos seus idealizadores, os visualizar importantes aplicações tecnológicas que talvez tragam
físicos norte-americanos John Bardeen (1908-1991), Leon ao nosso dia-a-dia progressos tão importantes quanto os cau-
Cooper e John Schrieffer, que ganharam o Nobel de 1972 por sados pela tecnologia baseada nos semicondutores.
esse trabalho.
Teóricos, como o físico norte-americano Philip Anderson, da O FUTURO ESTÁ CHEGANDO. Já existem aplicações importantes
Universidade de Princeton, em Nova Jersei (Estados Unidos) e de cerâmicas supercondutoras na geração, no armazenamento
premio Nobel de 1977, estão buscando teorias que incluam e na transmissão eficiente de energia. Elas também têm sido
novas interpretações. Entre elas, está, por exemplo, a possibilida- usadas na detecção de pequenos sinais eletromagnéticos e no
de de formação de pares de Cooper também por interação desenvolvimento de tecnologia mais rápida e compacta para a
magnética – na teoria convencional, essa interação é elétrica. telefonia celular.
Uma parte da informação para entender a superconduti- Já sendo comercializados, os chamados SQUID (Supercon-
vidade a altas temperaturas está no comportamento de um SC ducting Quantum Interference Device), sensores de campo mag-
durante seu estado não supercondutor: o material mostra pro- nético com muito baixa intensidade que podem funcionar tanto
priedades elétricas e magnéticas diferentes daquelas encontra- refrigerados por nitrogênio líquido quanto hélio líquido (4,2 kel-
das nos condutores convencionais. vin), empregam cerâmicas supercondutoras. Cabos flexíveis su-
Uma vez entendida a base do mecanismo nesses materiais, percondutores também já são realidade. Por exemplo, a empresa
valores mais altos da temperatura crítica podem ser atingidos. American Superconductor está usando supercondutores para fa-
zer cabos multifilamentares de vários quilômetros de extensão.
FITAS E FIOS. Em um mundo preocupado com formas limpas e Para breve, espera-se a aplicação de supercondutores na
econômicas de energia, bem como com seu armazenamento e construção de trens velozes que usariam o princípio da levita-
ção magnética, bem como de computadores

COLABORAÇÕES NACIONAIS E INTERNACIONAIS super-rápidos. Vislumbra-se também o uso


desses materiais nas áreas de comunicação
O Grupo de Materiais Avançados do CBPF mantém colaboração na área expe- por microondas (filtros e antenas); telecomu-
rimental com a Universidade Técnica de Braunschweig e a Universidade Técni- nicações (estações de telefonia celular);
ca de Colônia, ambas na Alemanha, e com a Universidade de Havana (Cuba). tecnologia militar (filtro para sinais de rada-
Além disso, mantemos colaborações com diversos grupos em paí-ses res); energia (emprego de cabos super-
como Estados Unidos, China, França, Polônia, Espanha, Peru, Índia, Mar- condutores que diminuiriam as perdas em
rocos e Coréia do Sul torno de 15%); pesquisa espacial (dispositi-
Também importante para o sucesso dos nossos trabalhos são as cola- vos à base de materiais HTc); computação
borações com pesquisadores teóricos da Universidade Federal Fluminense (máquinas com interface para semicon-
e com experimentais da Universidade Federal do Espírito Santo e da Univer- dutores e supercondutores); medicina
sidade Federal do Rio Grande do Sul. (SQUIDs milimétricos para a detecção de si-
nais magnéticos do coração e do cérebro).

76 REVISTA DO CBPF
[ F Í S I C A D A M AT É R I A C O N D E N S A D A ]

EXTRAÍDO DE HTTP://WWW.NSF.GOV/NANO/
II. FÉRMIONS PESADOS. Férmions PROBLEMA INTRIGANTE. A questão
pesados são compostos metálicos de como o estado férmion pesado
que, abaixo da temperatura do aparece a partir dos elétrons na ca-
hélio líquido (4,2 kelvin ou 269 mada incompleta continua sendo
graus celsius negativos), apresen- um dos problemas mais atuais e in-
tam propriedades físicas que re- trigantes da física da matéria con-
velam um aumento excessivo da Figura 6. Pirâmide feita de átomos de germânio densada. As teorias existentes tra-
massa efetiva dos elétrons de con- formada espontaneamente sobre uma base de tam, em geral, de problemas de im-
dução. Nos condutores conven- silício. Esse tipo de técnica poderá ajudar no de- pureza única, ou seja, tratam de um
senvolvimento de dispositivos eletrônicos extre-
cionais, como fios de cobre, por composto que possui apenas um
mamente pequenos.
exemplo, os elétrons de condução elemento magnético inserido na
são os responsáveis pela corrente rede cristalina. Já no caso dos fér-
elétrica. mions pesados, o elemento magnético faz parte da rede.
Férmions pesados são formados por um elemento mag- Apesar do grande esforço teórico e experimental que tem
nético com camada eletrônica incompleta – em geral, a cama- sido dedicado por pesquisadores de todo o mundo, ainda falta o
da f – que pode ser uma terra rara (cério ou itérbio) ou um entendimento mais profundo das propriedades desses materiais.
actinídeo (urânio ou tório) e um metal de transição (por Esse tema de estudo de física básica visa ao entendimento de
exemplo, ferro, cobalto, níquel, cobre, entre outros). Algumas fenômenos que são introduzidos com a descoberta de novos
vezes, um férmion pesado pode conter também em sua com- materiais com propriedades físicas incomuns. O acúmulo desses
posição germânio ou silício. conhecimentos pode levar à descoberta de uma aplicação prática
para os férmions pesados ou para os conceitos neles envolvidos.
PROPRIEDADES EXÓTICAS. As propriedades físicas em baixas
temperaturas são governadas pela competição entre duas III. FILMES FINOS. Nanociência e nanotecnologia são áreas
interações principais: a interação magnética entre os elementos emergentes que estão levando a um conhecimento e controle
magnéticos, bem como pela interação elétrica exercida pelos elé- sem precedentes dos blocos constituintes da matéria. É o mun-
trons de condução sobre os elétrons da camada incompleta do funcionando em escalas dos nanômetros (ou bilionésimos
dos elementos magnéticos. A interação magnética atua de for- de metro), tamanhos compatíveis com os de moléculas ou de
ma a tornar o material magnético – em geral, com ordem tipo átomos enfileirados.
antiferromagnética –, enquanto a interação elétrica tende a cance- Duas abordagens têm sido usadas com sucesso na produ-
lar o magnetismo. ção de amostras nanoestruturadas:
EXTRAÍDO DE HTTP://WWW.NSF.GOV/NANO/

Como conseqüência da competição a) técnicas de litografia e máscaras,


entre essas duas interações, os férmions que permitem criar nanoestruturas
pesados podem assumir diferentes estados que se estendem sobre grandes áreas
fundamentais, com propriedades físicas da amostra; b) crescimento de na-
exóticas que diferem muito do comporta- noestruturas através de auto-organiza-
mento normal observado nos metais co- ção de átomos e moléculas deposita-
muns. Alguns férmions pesados apresentam dos sobre uma superfície (substrato).
transição supercondutora, como é o caso
do CeCu2Si2 e UBe13, e, em alguns casos, a ÁTOMOS MANIPULADOS. O modo
supercondutividade pode até mesmo coe- pelo qual átomos e moléculas se orga-
xistir com uma ordem magnética, como nizam, em padrões de várias formas e
ocorre para o URu2Si2. superfícies em escala nanoscópica, de-
Em alguns compostos férmions pesa- termina propriedades importantes dos
dos, ocorre um efeito especial em tempe- materiais, como condutividade elétrica,
raturas abaixo da temperatura de hélio lí- propriedades ópticas e mecânicas. A
quido (4,2 kelvin), que é o comportamen- manipulação controlada de materiais
to linear da resistividade em função da Figura 7. Palavra ‘átomo’, escrita no al- nessa escala resulta em dispositivos
temperatura – a curva resistência versus fabeto japonês de Kanji, feita com o com várias aplicações tecnológicas.
temperatura é um reta. Esse comporta- deslocamento de átomos. Essa técnica Com um computador e um mi-
mento não ocorre nos metais comuns, permitiria escrever as 25 mil páginas croscópio de tunelamento – este últi-
onde a resistividade tem uma dependên- da edição de 1959 da Enciclopédia mo construído em 1981 por Gerd
Britannica em um apenas um ponto
cia quadrática em baixas temperaturas – a Binning e Heinrich Roherer, pesquisa-
(pin head).
curva se assemelha a uma meia parábola. dores da empresa IBM, em Zurique >>>

REVISTA DO CBPF 77
[ F Í S I C A D A M AT É R I A C O N D E N S A D A ]

(Suíça) –, é possível obter imagens extremamente aumentadas


das topologias atômicas (figuras 6 e 7) – ver também nesta edi-
ção ‘Microscopia do novo milênio’.
Dentre os vários dispositivos para aplicação, estão os
direcionados à gravação magnética em computadores. Nesse
tipo de gravação, por exemplo, as informações são ‘escritas’ por Sentados (esq. para dir.): Henrique Duarte da Fonseca, Elisa
uma cabeça de gravação magnética e ‘lidas’ por um dispositivo Saitovitch, Magda Bittencourt Fontes e colaboradores.
de leitura magnético no disco rígido, este também constituído
por materiais magnéticos e para o qual se pesquisa o aumento no spin do elétron, uma propriedade que pode ser, grosso
da capacidade de armazenamento de informação em um es- modo, associada à rotação do elétron em torno de seu eixo.
paço cada vez menor. A capacidade de distinguir entre elétrons com spins opos-
tos (rotação em sentido horário e anti-horário) é a chave para
SPINTRÔNICA. Nessa área de manipulação de materiais metáli- abrir as portas para uma nova geração de dispositivos eletrô-
cos em escala nanoscópica, o futuro aponta na direção do nicos, cuja operação se baseia na manipulação de famílias in-
surgimento de uma nova era: a spintrônica, eletrônica baseada dependentes desses portadores de corrente. n

TÉCNICA AVANÇADA PRODUZ FILMES DE ALTA QUALIDADE


No Laboratório de Filmes Finos do
CBPF, são produzidos diversos tipos de
filmes na forma de ligas (co-deposi-
ção), monocamadas e multicamadas.
O interesse é entender desde o com-
portamento de uma impureza magné-
tica em metais magnéticos e não mag- Figura 8. Representação das mono, bi, tri e multicamadas preparadas por deposição
néticos até os mecanismos que regem de dois metais. Nas duas primeiras, a parte amarela representa o substrato.
as interações entre as multicamadas, de
modo a aplicar esses resultados no pla- possível usar técnicas sofisticadas de carac- da taxas de deposição, a presença dos
nejamento de dispositivos tecnológicos. terização, do tipo LEEDS e Auger, que en- gases de ‘sputtering’ exclui a possibilida-
Esses dispositivos são constituídos volvem a detecção de elétrons. de de se analisarem as estruturas den-
por camadas finas superpostas – com Alguns investimentos ainda são ne- tro da câmara onde acontece o cresci-
espessura da ordem de poucos cessários para poder trabalhar em siste- mento do filme. Em nossos laboratórios,
nanômetros (bilionésimos de metro) – mas ligados à área de spintrônica, bem já foram obtidas multicamadas que
de metais com propriedades magnéti- como estudar a topologia da superfície apresentam magnetorresistência gigan-
cas diferentes, em uma combinação de filmes ou fazer manipulações em ní- te (fenômeno em que a resistência elé-
que resulta nos efeitos desejados. São vel atômico. trica aumenta muito na presença de um
os filmes finos e multicamadas magnéti- O magnetron sputtering é uma técni- campo magnético) – ver nesta edição
cas (figura 8). ca de deposição de materiais com taxas ‘Fenômenos e materiais magnéticos’.
Duas técnicas de fabricação de fil- de deposição da ordem de 0,1 nanôme- Esse sistema de deposição por
mes finos e multicamadas metálicas es- tro por segundo. A técnica arranca áto- magnetron sputtering foi instalado re-
tão em uso no CBPF: a) evaporação mos de um material (alvo) que se quer centemente e, pela alta qualidade dos
em ultra-alto vácuo; b) deposição por depositar sobre um substrato. Isso é feito filmes obtidos, deverá atrair o interesse
magnetron sputtering. através da formação de um de ‘gás’ do da comunidade brasileira de pesquisa-
Na evaporação em ultra-alto vácuo, elemento argônio a altíssimas tempera- dores dessa área.
o material é depositado em uma superfí- turas – na verdade, não se trata de um A composição dos filmes finos –
cie (substrato) a uma baixa taxa de de- gás, mas sim de um estado da matéria, principalmente, na forma de multica-
posição, geralmente menor do que denominado plasma, em que as partícu- madas – é caracterizada através de vá-
uma camada de átomos por segundo. las, devido à elevada temperatura, estão rios métodos de análise, entre elas di-
Isso resulta em um filme controlado ca- dissociadas. Todo esse processo ocorre fração por raios X, magnetorresistência,
mada a camada. Devido ao ultra-alto vá- em uma câmara de ultra-alto vácuo. magnetização, espectroscopia Möss-
cuo dentro da câmara de deposição, é Apesar de permitir um bom controle bauer e ressonância ferromagnética.

78 REVISTA DO CBPF
GRUPO DE TEORIA DE CAMPOS [ T E O R I A D E C A M P O S E PA R T Í C U L A S E L E M E N TA R E S ]
E PARTÍCULAS ELEMENTARES

O vocabulário das
José Abdalla Helayël-Neto
Alexander William Smith
Francesco Toppan
Sebastião Alves Dias

COLABORADORES

partículas
pesquisadores visitantes
e bolsistas de pós-doutorado,
doutorado, mestrado
e iniciação científica

elementares
Para descrever uma partícula elementar,
vários conceitos e métodos teóricos tiveram
que ser desenvolvidos. Com eles, tentamos
entender uma nova e estranha realidade
na qual as partículas se transformam de
matéria em energia e vice-versa.

Uma partícula é uma entidade caracterizada por um conjunto


limitado de propriedades. A escolha dessas propriedades é feita ten-
do como critério as simetrias satisfeitas pelas interações da partícula.
Existem algumas simetrias que podem ser consideradas funda-
mentais, dada a relação íntima que elas guardam com as nossas pró-
prias percepções de espaço e de tempo. Uma delas é a simetria em
relação à escolha de um ponto a partir do qual podemos começar a
medir distâncias no espaço vazio. Podemos também escolher qualquer
instante para começar a contar o tempo – quando não está aconte-
cendo nada –, assim como qualquer direção do espaço (vazio).
Também sabemos que não podemos distinguir entre repouso e
movimento com velocidade constante – lembremo-nos da experiên-
cia de estar em um trem, observando outro trem paralelo ao nosso
em movimento.
Em particular, sabemos que, como conseqüência da existência
das simetrias acima, deve existir uma série de quantidades que man-
tém o seu valor inalterado à medida que o tempo passa. Podemos
citar alguns exemplos: a conservação da energia é conseqüência da si- >>>

REVISTA DO CBPF 79
[ T E O R I A D E C A M P O S E P A R T Í C U L A S E L E M E N TA R E S ]

ILUSTRAÇÕES MIOCO FOSHINA


Figura 1. Uma partícula elementar caracteriza-se pelo conteúdo Percebemos o mundo através da percepção de suas mu-
de cada ‘cesta’ (por exemplo, dentro da cesta ‘energia’, danças, sem o que nenhum tipo de conhecimento seria pos-
a partícula tem um total de duas unidades básicas de energia), sível. A pretensão da física é prever, a partir de uma ‘fotografia’
que reflete os diferentes valores que essas grandezas podem (descrição) do sistema, produzida em um certo tempo, qual a
tomar. Os conteúdos das cestas podem mudar durante interações
seqüência de ‘fotografias’ irá se suceder. Em outras palavras,
entre as partículas, sempre conservando a quantidade
total da grandeza em questão.
prever a mudança.
Na física, vista do ponto de vista microscópico, a informa-
ção máxima contida na ‘fotografia’ é obtida através de uma
metria por escolha da origem do tempo; a conservação do mo- função matemática, denominada função de onda. Essa fun-
mentum linear – também chamado quantidade de movimento, ção, que contém toda a informação possível de ser obtida
numericamente equivalente ao produto da massa pela veloci- sobre o sistema em um dado tempo t, muda continuamente
dade da partícula – é conseqüência da simetria por escolha da à medida que o tempo passa.
origem das coordenadas no espaço. E assim por diante. Teoricamente, é possível prever a mudança da função de
onda através de um conhecimento da energia associada ao siste-
LISTA DE PROPRIEDADES. Essas simetrias mostraram-se tão ma. Nada mais razoável, se nos lembrarmos da conexão, vista aci-
exatas no contexto do mundo macroscópico que tornaram a ma, entre energia e simetria por translações temporais – estas po-
sua extrapolação natural para o contexto microscópico (ou dem ser traduzidas também como mudanças no tempo. Mostra-
subatômico), em que a natureza das observações é certamen- se que o problema de determinar a forma teórica da energia,
te muito mais indireta. como função dos parâmetros que caracterizam as partículas, re-
No nível microscópico, freqüentemente ocorre de a medida duz-se à determinação da energia de interação entre as partícu-
de uma grandeza interferir, de modo incontrolável, na medida las, que chamamos de V. Essa interação V deve respeitar todas as
de outra. Por exemplo, posição e velocidade de uma partícula simetrias que ajudam a caracterizar as partículas (figura 2).
não podem ser conhecidas simultaneamente com precisão ar-
bitrária. Aqui aparece o papel das constantes de movimento: TAREFA DAS MAIS COMPLEXAS. Em muitos aspectos, a descrição
existe um conjunto máximo de informações sobre um sistema atual das partículas elementares ainda é incompleta e insatisfatória
que pode ser conhecido simultaneamente de modo exato. para muitos físicos. Há um número excessivo de parâmetros –
Conhecer os valores tomados pelas constantes de movi- dos quais não se conhece a origem – no modelo teórico corres-
mento compatíveis entre si – ou seja, cujas medidas não se inter- pondente às interações (ou forças) eletromagnética, fraca e forte.
ferem mutuamente – é dizer o máximo possível sobre a partícu- Também temos que apelar para mecanismos teóricos surpre-
la em um dado instante de tempo. Do ponto de vista físico, o endentes. como o mecanismo de geração de massa para as par-
que resta a ser dito é como duas tículas W+, W- e Z0, que intermedeiam
ou mais partículas, descritas por as interações fracas. Ou mesmo me-
essa lista de propriedades, intera- canismos teóricos incompreendidos,
gem entre si (figura 1). como o que mantém os quarks e os
glúons (partículas que interagem
SEQÜÊNCIA DE FOTOGRAFIAS. Os através da força nuclear forte) sem-
tipos de interação existentes entre pre confinados, ou seja, essas partí-
as partículas determinam, de modo culas nunca são observadas livres.
fundamental, a maneira pela qual a
evolução se dá. Afinal, a física é a ci-
Figura 2. Colisões entre partículas
ência da mudança. Se todas as coi-
têm seu resultado determinado
sas permanecessem estáticas e pela forma específica da interação
imutáveis o tempo todo, não have- entre elas. Diferentes interações V
ria necessidade da física – nem da produzem resultados
ciência, de uma forma geral. de colisão diferentes.

80 REVISTA DO CBPF
[ T E O R I A D E C A M P O S E PA R T Í C U L A S E L E M E N TA R E S ]

Reduzir o número desses parâmetros e entender os meca- Figura 3.


nismos teóricos em ação nessas teorias é tarefa das mais com- Modernas teorias
plexas e que ocupa hoje inúmeros físicos em todo o mundo. propõem que,
quando observadas
Com a finalidade de reduzir a complexidade da pesquisa a ní-
suficientemente de
veis mais tratáveis, consideram-se diversos limites das teorias, perto, as partículas
em dimensões menores, por exemplo, ou com um conteúdo elementares
de partículas simplificado, em relação à situação realista. revelam-se com
o sendo cordas ou
SUPERSIMETRIA E UMA NOVA FÍSICA. O número de parâmetros mesmo membranas.
tende também a ser reduzido se consideramos uma nova sime-
tria, chamada supersimetria, que envolve trocas de partículas de de existência, e que hoje possam ser encontradas como relí-
spin inteiro (bósons) por partículas de spin semi-inteiro (fér- quias de um passado de cerca de 15 bilhões de anos em mui-
mions). Para uma melhor visualização, podemos associar a tas das galáxias. Porém, há uma interação a ser entendida, mes-
grandeza spin a um estado de rotação (horário ou anti-horá- mo que de modo parcial, como as outras: a gravitação. Esta,
rio) das partículas. O interessante é que a supersimetria prevê a cuja forma foi a primeira a ser proposta classicamente, ainda no
existência de uma vasta classe de partículas ainda não detecta- século 17, pelo físico e matemático inglês Isaac Newton (1642-
das e ainda não produzidas (excitadas) nos aceleradores de al- 1727), resiste ainda a uma descrição microscópica, que é deno-
tas energias. Esses novos constituintes da natureza podem ser minada gravitação quântica.
uma grande porção daquilo a que, hoje, a física chama ‘matéria Na tentativa de produzir essa descrição, têm sido considera-
escura’ do universo. das teorias que descrevem, de modo unificado, todas as quatro
Sléptons, squarks, charginos, neutralinos e gravitino são as interações conhecidas, ou seja, as forças eletromagnética,
partículas supersimétricas que, esperamos, poderão vir a ser des- gravitacional, nuclear forte e nuclear fraca. As mais promissoras,
cobertas em uma nova geração de aceleradores que está sendo até agora, envolvem uma modificação básica: considerar que as
construída – mais especificamente, esses aceleradores são o diversas partículas elementares, vistas em escalas de distância
Novo Colisor de Léptons e o Grande Colisor de Hádrons. muito menores que as atualmente acessíveis, seriam diferentes
aspectos de uma mesma entidade – no caso, uma corda ou
ALÉM DAS QUATRO DIMENSÕES. A cosmologia do universo pri- uma membrana.
mordial propõe que essas partículas supersimétricas tenham O acréscimo de dimensões a partículas que tinham dimen-
sido produzidas no universo em seus primeiríssimos instantes são zero introduz diversas possibilidades de novas interação en-
tre as partículas, agora vistas como des-
crições efetivas das cordas ou membra-
LINHAS DE PESQUISA INCLUEM SUPERSIMETRIA E TEORIAS M nas, em distâncias maiores. Entre as novas
características que aparecem juntamen-
As linhas de pesquisa desenvolvidas também está em curso atualmente em
atualmente no Grupo de Campos e nosso grupo já dentro do contexto da te com essas teorias, está a possibilidade
Partículas do CBPF dizem respeito à unificação das três interações com a de o espaço-tempo ter dimensão dez
análise das propriedades de teorias re- gravitação. Cabe ressaltar que as (no caso, de cordas) ou mesmo onze
lacionadas às quatro interações (ou interações eletromagnética e nuclear (no caso, de membranas), seis ou sete a
forças) da natureza. fraca já foram enquadradas em um mais que as atuais (e visíveis) quatro di-
Estudamos, particularmente, as di- esquema unificador no final da déca- mensões (figura 3).
versas conseqüências dinâmicas da da de 1960, naquele que hoje se co- Finalizando, poderíamos concluir en-
supersimetria. Dimensões diferentes de nhece como o modelo eletrofraco de fatizando que o grande compromisso –
quatro também são interessantes, por Weinberg-Salam-Glashow. a busca do Graal – da física teórica de al-
possibilitarem soluções exatas em cer- O leitor interessado em mais deta- tas energias contemporânea é a formu-
tos casos (duas dimensões); por exibi- lhes sobre os temas tratados neste ar- lação de modelos consistentes para as
rem fenômenos peculiares que podem tigo poderá encontrá-los em http:// quatro interações fundamentais da na-
ser aplicados em descrições efetivas www.aventuradasparticulas.ift.unesp.br/ tureza; se possível – e este tem sido o es-
(duas e três dimensões); ou por apa- (página sobre a física das partículas forço maior – a elaboração de uma teo-
recerem em propostas de mistura da elementares em termos básicos), bem ria da grande unificação consistente e
gravitação e da supersimetria (dez e 11 como em http://www.cbpf.br, cli- que consiga abranger, em um esquema
dimensões). cando no item ‘Campos e Partículas’ – único, todas as escalas de energia, des-
O estudo das chamadas teorias M, neste último endereço, está o trabalho de a escala atômica (aproximadamente
que incorporam cordas e membranas, do nosso grupo. 10-8cm) à escala planckeana (da ordem
de 10-33cm). n

REVISTA DO CBPF 81
[ F Í S I C A D E A LT A S E N E R G I A S ] LABORATÓRIO DE ESTUDOS
DE RAIOS CÓSMICOS
Luiz Carlos Santos de Oliveira
Cesar M. G. Lattes (pesquisador emérito)
Neusa Amato

Laboratório de
Elly Silva
Carlos E. Lima (doutorando)
Margaret de Queiroz (mestre)
Gabriel Azzi (engenheiro)
Terezinha Villar (microscopista)
Jomar S. B. Rocha (iniciação científica)

raios cósmicos
O estudo das interações produzidas pelos raios cósmicos, particu-
larmente pelos de energia extremamente alta, tem servido como
uma sonda para investigar o comportamento da matéria e de seus

constituintes elementares.

Placa de chumbo

Camada sensível

Descobertos no início do século 20, os raios (placa de emulsão


nuclear e filmes
cósmicos são partículas que têm sua origem no espaço e que, de raios x)
ao penetrar a atmosfera terrestre, chocam-se contra núcleos
atômicos, produzindo uma ‘cascata’ de partículas secundárias.
A energia dessas colisões é, em geral, muitas ordens de gran-
deza superior às atingidas nos aceleradores de partículas hoje
em atividade.
A comprovação experimental de muitas partículas previstas
teoricamente deu-se através do estudo dessas colisões. O
pósitron (antipartícula do elétron) foi descoberto em 1932 pelo Figura 1. Desenvolvimento de uma cascata eletromagnética
na câmara de emulsão.
físico norte-americano Carl Anderson (1905-1991), e, no ano
seguinte, o físico inglês Patrick Blackett (1897-1974) e o italiano
Giuseppe Occhialini (1907-1993) demonstraram experimental- tas teve – e tem ainda – um significado especial para o Brasil: a
mente o processo no qual um fóton (partícula de luz) se trans- do méson pi em 1947, da qual participaram o físico brasileiro
FIGURAS CEDIDAS PELO AUTOR

forma – ou decai, como preferem os físicos – em um pósitron e Cesar Lattes, bem como Occhialini e o inglês Cecil Powell (1903-
um elétron. Quatro anos mais tarde, seria a vez do mésotron 1969), este último líder da equipe do Laboratório W. W. Wills, da
(hoje, denominado múon), partícula com propriedades seme- Universidade de Bristol (Inglaterra). O méson pi (partícula res-
lhantes às do elétron, porém com massa superior. ponsável por manter o núcleo atômico coeso) confirmou as
Em todas essas descobertas, as emulsões nucleares desem- previsões teóricas de dois físicos japoneses, Hideki Yukawa
penharam um papel destacado. Porém, uma dessas descober- (1907-1981), em 1935, e Shoichi Sakata, em 1942.

82 REVISTA DO CBPF
[ F Í S I C A D E A LT A S E N E R G I A S ]

A-jato

MAIS CONTRIBUIÇÕES DO BRASIL. Mesmo antes de Lattes, o


Brasil já tinha tradição de pesquisa nessa área, para a qual
contribuiu significantemente. Isso se deu primeiramente com
os físicos brasileiros Marcello Damy de Souza Santos e Paulus
Aulus Pompéia (1910-1993), liderados pelo ítalo-russo Gleb
Wataghin (1899-1986), cujos experimentos conduziram à im-
portante descoberta dos chamados chuveiros penetrantes em
1940 – essa descoberta está relacionada ao fato de as partí- 44,2 m2
9,1cm cam. superior
culas penetrantes (no caso mesons) não poderem ser pro- chumbo Pb-jato superior
23 cm alvo C-jato
duzidas pela materialização de fótons na matéria – como é o piche
base de madeira
caso de elétrons e pósitrons –, mas sim produzidas pelas 5 cm

interações nucleares de raios cósmicos com a mesma. espaço vazio


Quatro anos depois, Wataghin e outro físico brasileiro, Oscar Sala, (15 cm ar)

mostraram que há produção de partículas em colisões de núcleons 32,4 m2


(prótons e nêutrons) com prótons. O resultado dessa descoberta é 8cm
chumbo cam. inferior Pb-jato inferior

que a produção dos secundários não se dá somente em colisões


sucessivas do raio cósmico (ou primário, na linguagem técnica) den-
Figura 2. Câmara de dois andares com os três tipos de
tro do núcleo (produção plural), como muitos pensavam, mas sim interações.
em colisões individuais (produção múltipla). As partículas produzidas
eram mésons pi (ou píons), porém eles não sabiam, porque essas
partículas só seriam identificadas, como já dissemos, em 1947. 1012eV (ou trilhões de elétrons-volt). Acima desse patamar, os
dados são obtidos através dos chamados EAS (sigla, em inglês,
DISPOSITIVOS NAS MONTANHAS. As informações experimen- para chuveiros atmosféricos extensos). EAS nada mais é do que
tais obtidas com raios cósmicos desenvolvem-se lentamente. E um grupo muito extenso de partículas resultantes de processos
há duas razões básicas para isso: de um lado, o fluxo de raios de cascatas na atmosfera terrestre (ver também nesta edição
cósmicos que chegam à Terra (ou primários) decresce rapida- ‘Energias extremas no universo’).
mente à medida que a energia dessas partículas aumenta, ou Uma análise dos sucessos e das dificuldades anteriores,
seja, quanto mais energético é o raio cósmico mais raro ele é. bem como a comparação com os resultados usando a técnica
Aqueles com energias extremamente altas são eventos raríssimos: do EAS, conduziram à conclusão de que as observações deve-
estima-se que cada quilômetro quadrado da superfície ter- riam envolver detectores com uma área sensível muito maior e
restre receba um deles por século! De outro, há o problema tempos de exposição também maiores, o que levava inevitavel-
instrumental das técnicas de medidas para separar, identificar e mente ao uso de dispositivos instalados em montanhas.
medir a energia dos secundários de energia cada vez mais alta.
Juntamente com o desenvolvimento de métodos teóricos OS CENTAUROS. A comprovação experimental do méson pi
(analíticos e numéricos), vários experimentos realizados por por Lattes a partir das previsões teóricas feitas por Yukawa
grupos experimentais distribuídos por todo o mundo levaram à criou um vínculo de amizade entre a física brasileira e japone-
obtenção de informações confiáveis sobre as interações nuclea- sa, na área de raios cósmicos. No entanto, as limitações em
res produzidas por raios cósmicos com energias até a região do altitudes dos laboratórios nas montanhas disponíveis para os

CÂMARAS DUPLAS USAM PICHE COMO ALVO


Desempenhando o papel de um de- dade das câmaras varia de uma para A-jatos. No entanto, com as posterio-
tector, as câmaras de emulsões são outra. Na figura 1, mostramos o desen- res, partiu-se para a construção das
formadas por vários blocos, cada um volvimento de uma cascata eletromag- chamadas câmaras duplas (câmara
dos quais é constituído de placas de nética na câmara de emulsão. superior, camada de alvo, espaço vazio
chumbo (1 cm de espessura), alterna- Até a câmara de número 14 instala- e câmara inferior). O objetivo destas
das com envelopes contendo material da pela Colaboração Brasil-Japão, de um últimas é o de estudar interações ocor-
fotossensível (filmes de raios X justa- total de 24, a geometria adotada era a de ridas no chumbo e no alvo (piche) –
postos a placas de emulsões nuclea- câmara simples, projetada para se estu- denominadas, respectivamente, Pb-ja-
res). Os blocos têm dimensões de 40 dar interações iniciadas acima das câma- tos e C-jatos. A figura 2 detalha esse
cm por 50 cm, sendo que a profundi- ras – essas interações levam o nome de tipo de câmara.
>>>

REVISTA DO CBPF 83
[ F Í S I C A D E A LT A S E N E R G I A S ]

LABORATÓRIO PREPARA TELESCÓPIO PARA MÚONS CÓSMICOS


Fundado no início da década de 1960,, Na parte experimental, estamos fi-
o Laboratório de Estudos de Raios Cós- nalizando a construção de um telescó-
micos é herdeiro de uma das primeiras pio para o estudo de múons cósmicos
e mais tradicionais linhas de pesquisa de baixa energia – a figura 3 traz deta- Figura 3. Detalhe do aparato
do CBPF. lhes desse equipamento. A inspiração experimental do detetor Micro
para essa linha de pesquisa veio de ex- para a detecção de múons cósmicos
Ao longo destas últimas quatro dé-
de baixa energia, que está em fase
cadas, nosso laboratório tem se dedica- perimento similar realizado em 1987
de finalização pelo Laboratório
do tanto à pesquisa experimental quan- pelo Laboratório Nacional de Frascati
de Estudos de Raios Cósmicos do CBPF.
to ao tratamento teórico dos dados co- (Itália), que ganhou o nome Micro (si- Os múons para serem aceitos pela
letados nos experimentos. Em relação à gla, em inglês, para monitor para jatos eletrônica de aquisição do equipamento
Colaboração Brasil-Japão, estamos de- intensos de raios cósmicos). devem, necessariamente, atravessar
senvolvendo duas linhas de pesquisa. Nossa proposta é fazer experimento os dois setores do detector, que estão
similar no hemisfério Sul – mais especi- separados, o que vai definir um ângulo
Uma delas diz respeito ao estudo de
de observação, constituindo,
centauros, chirons, halos, entre outros ficamente, o Micro-Urca será instalado no
dessa forma, um telescópio.
eventos exóticos envolvendo raios cós- Rio de Janeiro. Em São Paulo, um grupo
y
micos – em uma linguagem mais técnica, do CBPF, juntamente com o Instituto de 42º32´46´´

a principal característica desses eventos Física e o Instituto Astronômico e Geo- N


é a produção múltipla de hádrons (par- físico, ambos da Uni-
tículas que interagem através da força versidade de São Paulo,
forte) sem a emissão concomitante de montaram o Micro-Sul,
mésons pi (ou píons) neutros e, por cujos resultados ainda 1m x
conseguinte, a ausência de fótons. são esperados.
0,95m
Também estamos neste momento O Laboratório de
interessados em certas propriedades Estudos de Raios
(mais especificamente, a chamada dis- Cósmicos do CBPF 1m
Tubos de gás

tribuição angular) do fenômeno que mantém colabora-


envolve a ‘transformação’ (decaimento) ções com a Universidade Estadual de
do píon em outras duas partículas, o Campinas, Universidade Federal Flumi-
múon (ou méson mi) e o elétron. nense e com a Universidade de Tóquio. 1cm

Madeira condensada

cientistas daquele país levaram um grupo de físicos a pedir a em aceleradores. Esses eventos são denominados ‘exóticos’ por
intervenção de Yukawa junto a Lattes. O objetivo era propor alguns pesquisadores, por não se enquadrarem exatamente
uma colaboração envolvendo os estudos de raios cósmicos nos modelos físicos conhecidos, e, se forem confirmados expe-
de altas energias a ser desenvolvido no monte Chacaltaya rimentalmente, poderão ser o indício de um novo tipo de
(5.220 metros de altitude), na Bolívia, local que Lattes já havia interação ainda desconhecida. n
usado, ainda em 1947, para expor emulsões nucleares (tipos
especiais de chapas fotográficas) e detectar mésons pi.
Nascia, assim, em 1962, a Colaboração Brasil-Japão (CBJ),
com o objetivo de estudar as interações de altíssimas energias
produzidas pela radiação cósmica e detectadas a partir de equi-
pamentos mais sofisticados expostos naquele monte: as cha-
madas câmaras de emulsão nuclear (ver ‘Câmaras duplas
usam piche como alvo’).
Até hoje, a CBJ expôs 24 câmaras de emulsão, com as
quais estudou os principais aspectos relativos à produção
múltipla de partículas na região de energia cobrindo o inter-
valo de 1013 a 1017 elétrons-volt (ver ‘Laboratório prepara teles-
cópio para múons cósmicos’)
Da esq. para dir.: Luiz Carlos Santos de Oliveira,
Entre as descobertas mais espetaculares da CBJ, podemos Margareth Q. N. Soares e Gabriel Luís Azzi.
citar os eventos centauro, que até hoje são objeto de pesquisa

84 REVISTA DO CBPF
[ F Í S I C A D A M AT É R I A C O N D E N S A D A ] GRUPO DE CORRELAÇÃO ANGULAR
Henrique Saitovitch
Paulo Roberto de Jesus Silva
José Thadeu P. D. Cavalcante (engenheiro)

Técnicas para
‘espionar’a matéria
A física conta hoje com um amplo arsenal de técnicas capazes
de extrair da matéria informações cada vez mais detalhadas,
em nível atômico. Entre essas técnicas, está a CATD, que se

utiliza de ‘espiões’ radioativos para conhecer a estrutura e as


propriedades dos sólidos.

Atualmente, há uma insistência muito grande na obten-


ção de materiais que sirvam para aplicações tecnológico-in-
dustriais. Nessa lista, continuamente acrescida de novos itens,
incluem-se os chamados ‘novos materiais’: cerâmicas supercon-
dutoras de eletricidade, líquidos que cintilam quando atraves-
sados por partículas, sistemas metálicos de multicamadas, como
os utilizados para a construção de componentes eletrônicos.
Para acompanhar esses desenvolvimentos, a física da
matéria condensada, dedicada ao estudo das propriedades
dos sólidos, conta com técnicas tradicionais de caracterização,
como, por exemplo, a difração de raios X, ao lado de um
significativo arsenal de novas técnicas que vêm surgindo e se
firmando na obtenção de detalhes e propriedades da estru-
tura do material estudado no que se refere aos aspectos de
fenomenologia básica que apresentam, para assim melhor
compreender os seus desempenhos.
Essas técnicas mais recentes e que permitem o registro de
informações em nível da escala atômica vêm tendo crescente
desempenho para as caracterizações estrutural e funcional >>>

REVISTA DO CBPF
REVISTA
85 DO CBPF 85
[FÍSICA DA MATÉRIA CONDENSADA]

T. WICHERT – PROCEEDINGS OF THE XXIII ZAKOPANE SCHOOL ON PHYSICS, ZAKOPANE (POLÔNIA), ABRIL DE 1988, PP. 95-144
em que são imersos, justamente para
não interferir nas propriedades que são
o motivo de interesse.
detector 1
Esses isótopos-sonda irão funcio-
nar como ‘espiões’, enviando para o
exterior ‘informações’ sobre o que esti-
Figura 1. detector 2
ver acontecendo à sua volta, através das
Representação da
atuação de um radiações gama emitidas (figura 1). Es-
isótopo-sonda imerso sas radiações, invisíveis e sem carga elé-
em rede cristalina trica, podem ser detectadas, mas não
com detecção da medidas e/ou registradas diretamente.
radiação gama feita
Assim, depois de detectadas, são ‘trans-
por dois detectores.
figuradas’, por intermédio de equipa-
mento adequado, em pulsos eletrôni-
de vários tipos de materiais. Dentre elas, com potencial parti- cos que podem ser devidamente conformados e registrados.
cularmente poderoso para a investigação dos sólidos, está a
correlação angular tempo-diferencial (CATD), a qual passare- CATD. E aí se faz uso de propriedades relacionadas à emissão
mos a detalhar. de radiação gama nuclear: uma constatação bem inicial é a
de que a detecção dessas radiações em vários pontos
CASCATA NUCLEAR. Como toda a técnica, a CATD tem suas eqüidistantes em torno da amostra indica que a intensidade
peculiaridades e exigências. No caso, é necessário introduzir, medida é praticamente a mesma para todos os pontos. Em
química e/ou metalurgicamente, na rede cristalina da amostra linguagem mais técnica, diz-se que a intensidade de radiação
em estudo os chamados isótopos-sonda emissores de radia- é isotrópica. No entanto, é conhecido que a intensidade da
ção gama – esta uma radiação emitida pelo núcleo atômico, radiação gama nuclear detectada em uma determinada dire-
enquanto os raios X têm origem nas camadas eletrônicas dos ção depende de propriedades de orientação do estado nu-
átomos. clear naquele momento da emissão.
O fato de os isótopos-sonda serem átomos cujos núcleos A aparente isotropia deve-se ao fato de que uma enorme
emitem radiações gama deve-se ao caráter de instabilidade quantidade de isótopos-sonda – lembram dos cem bilhões?–
desses núcleos no que se refere a um excesso de energia foi introduzida na amostra, incorrendo em praticamente to-
acumulada que tende justamente a ser liberada sob a forma das as possibilidades de orientação dos estados nucleares.

T. KLOS ET AL. – PROCEEDINGS OF THE VII INT. CONF. ON HI, BANGALORE (ÍNDIA), SETEMBRO DE 1986, PP. 573/580
desse tipo de radiação. Nesse processo, denominado decai-
mento, o núcleo livra-se do excesso de energia e torna-se
Z
então estável, caráter extensivo ao átomo como um todo.
Átomos cujos núcleos decaem emitindo radiações são co- 15º
nhecidos como radioativos. Essa liberação da energia pode z
se dar em várias etapas, ou seja, o núcleo vai emitindo radia-
ções gama com diferentes valores en- 25º
tre si, até atingir o seu estado-base es-
z x
tável. Diz-se, então, que o núcleo de- x y
caiu através de uma ‘cascata nuclear’, z
que é característica para um determi-
y
nado átomo radiativo.

IMERSOS NA MATÉRIA. Os isótopos-


sonda, todos iguais entre si, são intro-
duzidos em grande número – aproxi-
madamente 1011 (cem bilhões!) – na Figura 2. Isótopos-sonda
podem ser usados para estudar a
amostra em estudo. Apesar de ser um
superfícies de materiais. No caso,
número ‘estonteante’, ainda assim é
vê-se um isótopo-sonda 111In ocupando
várias ordens de grandeza menor do locais (sítios) em camadas
que o número de átomos da amostra na superfície de cobre.

86 REVISTA DO CBPF
>>>
[FÍSICA DA MATÉRIA CONDENSADA]
SAITOVITCH, H. ET AL. ANAIS DO X CONGRESSO BRASILEIRO DE CATÁLISE – PROCEEDINGS OF THE XII INTERNATIONAL CONGRESS OF CATALYSIS.

Em verdade, as direções de emis- Figura 3. Espectros CATD medidos


são dependem dessas orientações, no sistema catalítico Pt-In/Al2O3
em diferentes temperaturas.
que, por sua vez, impõem um ca-
ráter anisotrópico – este sim um
caráter real – às direções de emis-
são, detectável sempre que se
possa detectar as radiações pro-
venientes de uma fração dos nú- PROTEÍNAS E METAIS. A CATD tem sido
cleos, fração esta com uma bem utilizada nas mais diversas áreas para
determinada e idêntica configura- análise e caracterização dos sólidos. Por
ção de seus estados. exemplo, ela vem sendo empregada pa-
O que a CATD permite é justa- ra conhecer como diferem as proprie-
mente explicitar e medir essa ani- dades de metais presentes em macro-
sotropia através do arranjo dos de- moléculas (proteínas, por exemplo) da-
tectores e do processamento ade- quelas em que esses elementos se en-
quado dos registros eletrônicos. contram em complexos moleculares
inorgânicos. É também empregada para
INTERAÇÕES HIPERFINAS. No entanto, essas configurações estudar o comportamento e as propriedades de superfícies
de estado nuclear que determinam a direção da emissão da metálicas (figura 2) ou para conhecer como o movimento
radiação gama podem ser modificadas sempre que os dos átomos se altera no interior de uma rede cristalina de um
isótopos-sonda interagirem com os campos eletromagnéticos sólido de acordo com a temperatura.
em torno deles, originários das cargas elétricas presentes nos Com técnicas como a CATD, aliada a outras, tem sido pos-
núcleos atômicos que formam a amostra. sível extrair da matéria informações em nível atômico cada vez
Essas interações são conhecidas como Interações Hiperfinas mais detalhadas. E graças a essa vasta gama de informações,
(IH). E é justamente a possibilidade de alterar a anisotropia vão se aprofundando e ampliando os conhecimentos sobre
através dessas interações que torna a CATD um instrumento a matéria, permitindo a obtenção de novos e sofisticados pro-
poderoso de pesquisa em física da matéria condensada. dutos que vão se incorporando ao nosso dia-a-dia. n

TRABALHO RENDEU PRÊMIO EM CONGRESSO INTERNACIONAL


Como ilustrações das ordens de gran- do multicomponente para os átomos de
deza em que a CATD pode atuar, In (índio) na superfície dos catalisado-
experimentos de difusão em metais res: enquanto parte dos átomos de In
realizados pelo Grupo de Correlação interage fortemente com a Pt (platina)
Angular (GCA/CBPF), em colabora- formando clusters (aglomerados), outra
ção com colegas do ISKP, em Bonn fração permanece fortemente ligada à
(Alemanha), mostraram que no HfD2, superfície da alumina (Al2O3), enquanto
acima de 790 graus celsius, os áto- uma fração dos átomos de In é móvel
mos de deutério (D) se deslocavam em condições reacionais (figura 3).
a partir de saltos com intervalos en- Esses resultados foram apresentados
tre si da ordem de dois bilionésimos recentemente no X Congresso Brasileiro
de segundo! de Catálise, realizado em Salvador, em
Em colaboração com o Grupo de setembro de 1999, e no XII Internatio- Da esq. para dir.: Paulo Roberto de Jesus
Catálise do Departamento de En- nal Congress of Catalysis, em Granada Silva, José Thadeu P. D. Cavalcante e
Henrique Saitovitch.
genharia Química da Universidade (Espanha), em julho de 2000, contribui-
Federal Fluminense (UFF), o GCA/CBPF ção que laureou nosso colaborador da
realizou uma série de experimentos UFF com o prêmio ‘Jovem Cientista’ ou-
CATD no sistema catalítico Pt-In/Al2O3 torgado pela I.A.C.S. (International
cujos resultados indicaram um esta- Association of Catalysis Societies).

REVISTA DO CBPF 87
Um pouco de história
“Assim [...] seria erigida, no solo do Rio de

Janeiro, a instituição evocadora do atribu-


to de representação do país no mundo da
ciência moderna e de fronteira: o Centro

Brasileiro de Pesquisas Físicas.”


Do livro: Físicos, Mésons e Política – a dinâmica da ciência na sociedade

ACERVO MAST
CASSINOS E CONTADORES. A fundação em 1949 do Centro
Brasileiro de Pesquisas Físicas – mais conhecido pela sigla CBPF
– foi favorecida pelo cenário político do pós-Segunda Guerra.
Porém, sua história começou a germinar ainda no início da dé-
cada de 1940, alimentada por resultados de repercussão inter-
nacional obtidos por físicos brasileiros.
Mario Schenberg (1914-1990), por exemplo, em colabora- Grupo de professores na frente da Faculdade Nacional de
ção com o físico russo George Gamow (1904-1968), descobriu Filosofia, no Largo, no largo do Machado, bairro do Catete
(Rio de Janeiro), na década de 1940. Da esq. para dir.Alcântara
o chamado Processo Urca. O trabalho explica os mecanismos
Gomes, Elisa Frota-Pessoa, Jayme Tiomno, Joaquim Costa
envolvidos na explosão de estrelas gigantes, fenômeno denomi-
Ribeiro, Luigi Sobrero, Leopoldo Nachbin, José Leite Lopes e
nado supernova, destacando o papel desempenhado pelos Maurício Peixoto. Com exceção de Alcântara Gomes e Sobrero
neutrinos. Essas partículas sem carga – e supostamente sem – este um matemático italiano –, os outros foram sócios
massa – não teriam dificuldade em viajar da região central às ca- fundadores do CBPF.
madas mais externas, roubando calor do caroço estelar. Isso
leva à diminuição da pressão no interior da estrela, o que acaba
‘puxando’ as camadas externas para a parte central. Na área experimental, Marcello Damy de Souza Santos, de-
Para compensar essa perda de energia, o caroço estelar pois de passar os anos de 1938 e 1939 na Inglaterra, projetou
deverá esquentar e, como esse calor não tem como escapar, no Brasil contadores de partículas cerca de dez vezes mais velozes
as camadas externas expandem-se, produzindo uma explosão que os então disponíveis para os grupos que pesquisavam raios
luminosa, a supernova. O nome peculiar foi proposto por cósmicos, partículas energéticas que vêm do espaço e, ao se cho-
Gamow, que viu no fenômeno uma analogia com a velocida- carem com átomos da atmosfera terrestre, formam um tipo de
de com que o dinheiro ‘sumia’ das mãos dos apostadores no chuva de partículas.
Cassino da Urca – mais tarde, sede da hoje extinta TV Tupi. Os contadores de Damy foram fundamentais para a obten-
O trabalho de Gamow e Schenberg, com o título ‘Neutrino ção, a partir de1939, dos primeiros resultados originais nas pes-
Theory of Stellar Collapse’, foi publicado na revista Physical quisas com raios cósmicos feitas por uma equipe em São Paulo
Review (59, 539-547, 1941). liderada pelo físico ítalo-russo Gleb Wataghin (1899-1986).

88 REVISTA DO CBPF
[UM POUCO DE HISTÓRIA]

ESTADO SÓLIDO E SALINHA APERTADA. PARTÍCULAS NO ACELERADOR. A descoberta do


Os resultados em São Paulo motivaram méson pi foi confirmada meses depois a partir
colegas da Faculdade Nacional de Filosofia de chapas expostas por Lattes no Monte
(FNFi), da então Universidade do Brasil Chacaltaya (5.600 metros de altitude), na Bolí-
– hoje, Universidade Federal do Rio de Ja- via. O fato demonstrava a previsão teórica feita
neiro. À época, a pesquisa em física na en- cerca de uma década antes pelo físico japonês
tão capital federal resumia-se a duas frentes. Hideki Yukawa (1907-1981), que por esse tra-
No Instituto Nacional de Tecnologia, o físico balho ganhou o Nobel de física de 1949, o pri-
alemão Bernhard Gross, radicado no Brasil meiro dado a um cientista do Japão.
desde 1933, liderava estudos sobre física No entanto, foi a detecção de mésons pi
do estado sólido (hoje, física da matéria Primeiro relatório do CBPF. produzidos pelo choque de partículas no en-
condensada), depois de ter se dedicado, nos tão mais potente acelerador de partículas, o
primeiros anos depois de sua chegada ao país, ao estudo pio- sincrociclotron da Universidade da Califórnia, em Berkeley (Esta-
neiro de raios cósmicos. dos Unidos), que impulsionaria a criação do CBPF. Nesse traba-
A segunda frente era mais modesta: o físico Joaquim Costa lho, Lattes trabalhou em conjunto com o físico norte-americano
Ribeiro (1906-1960) e assistentes ocupavam uma salinha Eugene Gardner (1913-1950).
apertada, na Universidade do Brasil, cedida por Carlos Chagas Enquanto a descoberta do méson pi em 1947 ficou prati-
Filho (1910-2000). Porém, foi nesse ambiente precário que se camente restrita à comunidade internacional de físicos – no
chegou, em 1944, ao chamado efeito termodielétrico, relaciona- entanto, sabe-se que dois diários, um de Bristol e outro de
do a propriedades condutoras dos sólidos. Primeiramente detec- Manchester, a noticiaram –, a detecção em Berkeley, no ano
tado na cera de carnaúba, o efeito Costa Ribeiro – como ficou co- seguinte, ganhou a atenção de jornais e revistas nos Estados
nhecido – foi posteriormente observado em outros materiais. Unidos (ver ‘A nova descoberta da América’). No Brasil, foram
os professores que usaram a imprensa para divulgar a
CAÇA AOS MÉSONS. No entanto, a descoberta de uma nova detecção, aproveitando o fato para alavancar a criação de um
partícula e sua posterior detecção – e principalmente este último centro de pesquisas em física no país – essa divulgação na im-
fato – seriam fundamentais para acelerar a criação do CBPF. A prensa ocorreu muito por iniciativa dos físicos José Leite Lopes
primeira ocorreu em 1947 no Laboratório H. H. Wills, na Univer- e Guido Beck, este último na época ainda na Argentina.
sidade de Bristol (costa oeste da Inglaterra). Lá, uma equipe li-

A NOVA DESCOBERTA DA AMÉRICA


derada pelo físico inglês Cecil Frank Powell (1903-1969), desco-
briu o méson pi – Powell ganharia o Nobel de 1950 principal-
mente por esse trabalho. O texto abaixo foi extraído da edição comemorativa de 50
O méson pi era visto na época como uma partícula ele- anos da revista LNL News Magazine (vol. 6, n. 3, 1981),
mentar responsável pela força forte, que mantém o núcleo publicada pelo Lawrence Berkeley National Laboratory, onde
dos átomos coeso. Hoje, sabe-se que os mésons são forma- Lattes e Gardner fizeram a detecção dos mésons pi no
dos por um par de partículas menores (quark e antiquark) início de 1948.
que é mantido unido pela ação (ou troca constante) de ou- A Universidade [da Califórnia] e a Comissão de Energia
tras partículas, os glúons – cujo nome tem origem na palavra Atômica [dos Estados Unidos] anunciaram oficialmente a
inglesa glue (cola). produção artificial de mésons em 9 de março de 1948.
Entre os pesquisadores do H. H. Wills, estava o físico brasi- Como de costume, [Ernest] Lawrence [diretor do então
leiro Cesar Lattes, então com 23 anos de idade, que participou Radiation Laboratory of Berkeley] usou a oportunidade para
dos trabalhos que levaram à descoberta dos mésons pi (ou defender a construção de uma nova geração de acelera-
píons). O processo envolveu a exposição de emulsões nuclea- dores. “Para explorar integralmente o conhecimento que o
res (chapas fotográficas especiais) em altitudes elevadas – no méson pode nos fornecer, será necessária a construção
caso, no Pic du Midi (França) – para captar as desintegrações de ciclotrons supergigantes” [A revista] Time noticiou a des-
causadas pelo choque de raios cósmicos contra partículas da coberta e sugeriu que o estudo dos mésons poderia “levar
atmosfera terrestre, tendo os píons como um dos a uma fonte de energia atômica imensamente melhor do
subprodutos dessas colisões. que a fissão do urânio.” A Universidade da Califórnia expli-
Depois de uma série de artigos, finalmente a equipe de Bristol cou que o trabalho de Gardner e Lattes abriu a mais nova
chegou, na edição de 24 de maio da revista científica Nature, ao era desde a descoberta da fissão [do átomo]. “Ela poderia
trabalho que traz a primeira evidência da descoberta (‘Processes ser comparada com a descoberta da América”.
Involving Charged Mesons’, vol. 159, 694, 1947).

REVISTA DO CBPF 89
[UM POUCO DE HISTÓRIA]

SUGESTÕES PARA LEITURA


Ao enfocar a história da física no Brasil ou a profissionalização da ciência no país, os livros e artigos da lista a seguir tratam, direta ou indiretamente,
da história do CBPF – cabe ressaltar que a breve história do CBPF aqui apresentada teve como fonte principal o primeiro item da lista.

LIVROS
Físicos, mésons e política – Topics on cosmic rays – Cientistas do Brasil,
a dinâmica da ciência na sociedade, 60th anniversary of C. M. G. Lattes, Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência,
Ana Maria Ribeiro de Andrade, Hucitec/Mast/ José Bellandi Filho Carola Chinellato São Paulo, 1998.
CNPq, São Paulo-Rio de Janeiro, 1999. e Ammiraju Pemmaraju (orgs.), Unicamp, Depoimentos de importantes pesquisado-
A mais detalhada e bem-documentada histó- Campinas, 1984, 2 volumes. res que trabalharam no Brasil, sendo os tex-
ria da criação e dos primeiros anos (1949- Obra em dois volumes para comemorar tos, em sua grande maioria, reproduções de
1954) do CBPF e de seus protagonistas, atra- os 60 anos de idade de Lattes. Traz relação perfis publicados pela revista de divulgação
vés do enfoque da chamada Nova História de trabalhos do homenageado, bem como científica Ciência Hoje, da SBPC. Inclui depo-
Social e Cultural das Ciências. Útil também artigos primários de colaboradores e depoi- imento de físicos eminentes ligados à histó-
para entender os laços entre políticos, cien- mentos. ria do CBPF. Traz iconografia.
tistas e militares nas décadas de 1940 e 1950
no Brasil, que levaram à criação em 1951 do Perfis, História da ciência no Brasil –
então Conselho Nacional de Pesquisas. Traz de Francisco Caruso e Amós Troper (org.), CBPF, acervo de depoimentos,
iconografia e índice onomástico. Rio de Janeiro, 1997. Centro de Pesquisa e Documentação de História
Coletânea com 35 artigos publicados na sé- Contemporânea do Brasil, da Fundação Getúlio
Cesar Lattes e a descoberta do méson pi, rie Ciência e Sociedade, com destaque para Vargas, FINEP, Rio de Janeiro, 1984
Francisco Caruso, Alfredo Marques e Amós Troper o rico acervo de cartas do físico José Leite Resumo dos depoimentos de 69 cientistas
(eds.), CBPF, Rio de Janeiro, 1999. Lopes, um dos principais físicos brasileiros brasileiros ou que trabalharam no Brasil. O con-
Coletânea de artigos para comemorar os 50 do século 20 e fundador do CBPF. junto dos textos transcritos e revistos, deposi-
anos da descoberta da partícula méson pi, tados no CPDOC, é um material valioso para
reunindo depoimentos de cientistas brasilei- A formação da comunidade científica no Brasil, entender a implantação da ciência no Brasil.
ros e estrangeiros envolvidos na descoberta, Simon Schwartzmann, Finep-Companhia Editora
bem como artigos de pesquisadores e histo- Nacional, Rio de Janeiro-São Paulo, 1979. Ciência na periferia – a luz síncrotron brasileira,
riadores da ciência. Traz iconografia. A pesquisa documental da obra é comple- Marcelo Baumann Burgos, NESCE-Universidade
tada com depoimentos de pesquisadores Federal de Juiz de Fora, 1999.
Cesar Lattes – 70 anos – a nova física brasileira, que ajudaram a construir a ciência no Brasil. Análise da fundação do Laboratório Nacional
Alfredo Marques (ed.), CBPF, Rio de Janeiro, 1994. Vasta bibliografia e cronologia abrangente e de Luz Síncrotron, examinando, entre outras
Obra em comemoração dos 70o aniversário detalhada ao final. tópicos, a origem do projeto e a inserção do
de Cesar Lattes, reunindo desde depoimentos CBPF. Detalha o contexto político em que se
históricos até artigos primários relacionados ao deu a implantação do LNLS, instalado em
tema. Traz iconografia. Campinas (SP). O livro tem origem em tese
de doutorado defendida no Instituto Univer-
sitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj).

ARTIGOS E TESES
‘A Faculdade Nacional de Filosofia Descreve a história de quatro aceleradores Bernhard Gross y la física
e a criação de instituições científicas: construídos nas décadas de 1960 e 1970 de rayos cósmicos en el Brasil’,
o caso do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, no CBPF. Destaca o processo de decisão, artigo de Martha Cecilia Bustamante
Ana Elisa Gerbasi Coelho de Almeida, bem como o uso das máquinas na pesqui- e Antonio Augusto Passos Videira,
dissertação de mestrado apresentada à Faculdade sa científica, sob o viés da chamada nova publicado na revista mexicana Quipu
de Educação, da UFRJ, em abril de 1992. sociologia da ciência. (vol. 8, n. 3, pp. 325-47, set.-dez. ,1991).
Reproduzida em agosto de 1995 na série Ciência Relato detalhado sobre as pesquisas pionei-
e Sociedade, publicada pelo CBPF (CBPF-CS-007/95). A física no Brasil, ras em raios cósmicos no Brasil feitas, ainda
Através da perspectiva da história da educa- artigo de Joaquim Costa Ribeiro, na década de 1930, pelo físico alemão
ção, a tese resgata, por meio de entrevistas, publicado em As Ciências no Brasil, Bernhard Gross, no Instituto Nacional de
o papel do físico José Leite Lopes e de ou- de Fernando de Azevedo (org.), Editora UFRJ, Tecnologia. Gross apoiou a fundação do CBPF.
tros professores da Faculdade Nacional de Rio de Janeiro, 2a edição, vol. I, 1994.
Filosofia na criação do CBPF. Panorama sobre o desenvolvimento da pesquisa A física no Brasil’,
em física no Brasil até meados da década de de Shozo Motoyama, capítulo de A História das
Os aceleradores lineares do general Argus 1950, escrito por um de seus principais e mais ciências no Brasil, de Mario Guimarães e Shozo
e sua rede sociotécnica, importantes protagonistas. Motoyama (org.), Edusp, São Paulo, 1979.
Ana Maria Ribeiro de Andrade e Aldo Carlos O texto relata desde as primeiras aulas prá-
de Moura Gonçalves, publicado em Revista da ticas de física até o estádio dessa disciplina em
Sociedade Brasileira de História da Ciência, meados da década de 1970 no Brasil. Traz ta-
n. 14, julho-dezembro 1995. bela com as principais linhas de pesquisa em
física no país em 1978.

90 REVISTA DO CBPF
[UM POUCO DE HISTÓRIA]

RISCO FORA DA UNIVERSIDADE. Aproveitando a repercussão na O programa de pós-graduação era coordenado por Lattes,
imprensa da época, professores da FNFi mobilizaram-se e fun- Leite Lopes e Tiomno, que também ministravam cursos regula-
daram o CBPF. A iniciativa, porém, trazia consigo um risco: fazer res. Vários físicos estrangeiros de renome internacional também
pesquisa fora da universidade com o apoio da iniciativa privada deram aulas nesses cursos, entre eles, só para citar alguns
– a luta pela pesquisa dentro da Universidade do Brasil era tida exemplos, o austríaco Guido Beck (1903-1988), o norte-ameri-
como causa perdida, devido à resistência das gerações mais an- cano Richard Feynman (1918-1988) – em 1965, Nobel de físi-
tigas e tradicionais que dominavam politicamente a instituição. ca – e o italiano Emilio Segrè (1905-1989), descobridor do
Porém, o apoio político – e principalmente financeiro – do antipróton e Nobel de física de 1959.
então ministro João Alberto Lins de Barros foi fundamental para A iniciativa do CBPF contrastava com o espírito do autodidatis-
que a recém-fundada instituição tivesse garantido seu pronto mo e da retórica bacharelesca, ambos presentes na Universidade
funcionamento. João Alberto entusiasmou-se pela idéia e viu na do Brasil, onde professores obtinham o título de doutor depois
fundação de um centro de física um caminho para as aplica- da defesa pública de trabalhos que, em geral, eram meramente
ções da energia nuclear voltadas para o desenvolvimento in- compilações da literatura, sem contribuições inéditas resultantes
dustrial do Brasil. de pesquisa própria. Inspirados pelo doutorado no CBPF, pes-
Fundou-se, então, o CBPF em 1949, como uma sociedade quisadores de ciências biológicas no Rio de Janeiro criaram pós-
civil, com a participação de cientistas, políticos, militares, empre- graduação para essa área.
sários, amigos e familiares, perfazendo ao todo 116 sócios fun-
dadores, entre eles Cesar Lattes, José Leite Lopes e Jayme DE VOLTA À COMPETIÇÃO. Nas décadas de 1950 e 1960, o CBPF
Tiomno (leia depoimentos exclusivos nesta edição). Em 15 de deu contribuições de alta relevância e impacto internacional tanto
janeiro daquele ano, na primeira reunião, foram aprovados os para a física teórica quanto experimental – nesta última, especial-
estatutos, bem como escolhidos o conselho e a primeira dire- mente, na área de raios cósmicos. No início dos anos 60, proje-
toria – esta última, formada estrategicamente por João Alberto
(presidente), contra-almirante Álvaro Alberto (vice) e Cesar
ATUAL ESTRUTURA ORGANIZACIONAL DO CBPF
Lattes (diretor científico).
CTC Conselho Técnico-Científico

DOIS ANDARES PRÓPRIOS. A primeira sede do CBPF foi na ave- CME


CMF
Coordenação de Matéria Condensada e Espectroscopia
Coordenação de Matemática Condensada e Física
nida Presidente Vargas, 40. E lá ele funcionou até ser transferi- Estatística
CNE Coordenação de Física Nuclear e Altas Energias
do, em junho de 1949 para a rua Álvaro Alvim, 21, na
CCP Coordenação de Teoria de Campos e Partículas
Cinelândia, também no centro do Rio de Janeiro. Motivo: o es- CRP Coordenação de Relatividade e Partículas
paço das quatro salas, alugadas, não era suficiente. CLAFEX Coordenação do Laboratório de Cosmologia e Física
Experimental de Altas Energias
No início de 1951, o CBPF mudou-se mais uma vez. Passou a
CAT Coordenação de Atividades Técnicas
funcionar em um prédio – especialmente construído para ele CDI Coordenação de Documentação e Informação Científica
com dinheiro doado pelo banqueiro Mário de Almeida – localiza- CFC Coordenação de Formação Científica
CAD Departamento de Administração
do no campus da Praia Vermelha da Universidade do Brasil SAA Serviço de Apoio Administrativo
(hoje, Universidade Federal do Rio de Janeiro). SEF Serviço Financeiro
Dessa vez, eram 19 salas, distribuídas por um prédio de dois SMP Serviço de Material e Patrimônio
SRH Serviço de Recursos Humanos
andares que ocupava cerca de 600 m2 de área – mais tarde batiza-
do edifício Mario de Almeida – existe até hoje, abrigando o Centro
Latino-americano de Física e outras sociedades científicas, bem
como parte das instalações das revistas de divulgação científica Ci-
ência Hoje e Ciência Hoje das Crianças, publicadas pela Socieda-
de Brasileira para o Progresso da Ciência.

A PÓS-GRADUAÇÃO PIONEIRA. Já na década de 1950, o CBPF


promovia cursos avançados, através da discussão de artigos e de
seminários semanais – que nasceram principalmente pela iniciati-
va de Leite Lopes. Era um ambiente intelectualmente desafiador e
convidativo, e foi através dele que o CBPF chegou à vanguarda
do ensino universitário, ao criar a primeira pós-graduação em físi-
ca do país. Vale destacar ainda que o Conselho Técnico-Científico
da instituição funciona desde 1954.

REVISTA DO CBPF 91
[UM POUCO DE HISTÓRIA]

tou e construiu aceleradores lineares de elétrons e, na área da internacionais na área de física de partículas. Com isso, sua pro-
matéria condensada, por exemplo, criou o primeiro laboratório dução científica voltou a atingir nível de excelência internacional.
Mössbauer da América Latina, graças ao pioneirismo do químico
brasileiro Jacques Danon (1924-1989), passando a ser líder em ATUAÇÃO NACIONAL. Em três momentos distintos, o CBPF desem-
aplicações desse efeito a diferentes ramos da química e da física – penhou um papel fundamental no cenário científico nacional, ao
o efeito Mössbauer está relacionado com a emissão de radiação contribuir para a criação de outras instituições de renome, como
(do tipo gama) por núcleos atômicos quando submetidos a do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), em 1952,
campos magnéticos. sediado no Rio de Janeiro (RJ); do Laboratório Nacional de Com-
Em 1972, o CBPF recebeu autorização do governo, através putação Científica (LNCC), em 1980, transferido recentemente para
da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Supe- Petrópolis (RJ); e do Laboratório Nacional de Luz Síncroton (LNLS),
rior (Capes), para conceder diplomas de mestre e doutor em fí- em 1985, instalado em Campinas (SP).
sica. Desde então, tem mantido um elevado padrão de excelência Juntamente com o Instituto de Física da Universidade de São
em sua pós-graduação, nível reconhecido não só por avaliações Paulo, o CBPF desempenhou um papel seminal na formação
periódicas da Capes, mas também por instituições brasileiras e in- das primeiras gerações de físicos brasileiros e latino-americanos,
ternacionais (para um perfil atual do CBPF, ver ‘Tome nota’ nas bem como no desenvolvimento da física no Brasil. Ao longo de
primeiras páginas desta edição). sua existência, tem abrigado grupos de excelência em várias
Em 1975, depois de grave crise institucional devido a dificulda- áreas da física e, além de um Conselho Técnico-Científico, conta
des orçamentárias, o CBPF foi incorporado ao CNPq, passando a com uma estrutura moderna de administração para dar su-
ser um dos seus institutos de pesquisa. Nesse novo âmbito, pôde porte aos trabalhos de pesquisa (ver tabela com a ‘Estrutura
voltar a se desenvolver, reconstituindo seu quadro de pesquisa- organizacional do CBPF’).
dores e dando ênfase ao desenvolvimento da pesquisa básica. Incorporado recentemente ao Ministério da Ciência e
Na área experimental, graças ao apoio do CNPq, modernizou seus Tecnlogia (MCT), o CBPF buscará agora ampliar sua atuação
laboratórios, tornando-os novamente competitivos. Foi pioneiro nacional – compatível com a nova situação institucional –, bem
especialmente na participação nacional em grandes colaborações como reforçar seu papel internacional. n

Lembranças de um fundador
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

Os primeiros indícios da física no Brasil remontam à época do descobrimento, quando o padre José Anchieta (1534-1597) relatou a
utilização de princípios da ciência pelos índios. Outros personagens, como Bartolomeu de Gusmão (1685-1724) e José Bonifácio de
Andrada e Silva (1763-1838), também foram marcos dessa história.
No entanto, a consolidação da física no país se deu com a implementação da escola da disciplina na Universidade de São Paulo, em
1934. A partir do contato com físicos como Gleb Wataghin (1899-1986), Marcello Damy e Mário Schenberg (1916-1990), formou-se uma
importante geração de físicos brasileiros. Esse novo grupo, do qual fazia parte Cesar Lattes, foi o responsável pela implementação
de uma das mais importantes instituições de pesquisa da América Latina: o CBPF.

LIGAÇÃO DE MADRUGADA ses jovens pesquisadores resultaria na em 1943, quando Cesar Lattes e José
No final dos anos 1940, a física brasileira fundação de uma das principais institui- Leite Lopes, dois dos mais importantes
viveu um de seus grandes momentos. ções nacionais de pesquisa: o CBPF. físicos brasileiros daquela geração, se
Uma nova geração despontava, toman- A idéia da criação de um grupo para conheceram em São Paulo. A possibili-
do para si a responsabilidade da cons- realizar trabalhos em física nuclear e físi- dade foi discutida novamente quatro
trução da ciência no país. O esforço des- ca de partículas no Rio de Janeiro surgiu anos mais tarde, quando Lattes, que

92 REVISTA DO CBPF
[UM POUCO DE HISTÓRIA]

fora para a Inglaterra realizar as pesqui- Estudos Avançados de Princeton, tam- tarde que o dinheiro vinha de um fundo
sas que o levariam à descoberta do bém nos Estados Unidos, deu um curso de combate ao comunismo”, diverte-se.
méson pi em raios cósmicos, estava de sobre partículas elementares. “O gozado é que o CBPF era considera-
passagem pelo Brasil. No entanto, a Embora ainda não existisse o Conse- do um antro de comunistas.”
perspectiva de fundar um centro amplo lho Nacional de Pesquisa (CNPq; mais tar- Com a fundação do CNPq e a elei-
como o CBPF só surgiu em 1948, em de, Conselho Nacional de Desenvolvimen- ção de Getulio Vargas, em 1951, iniciou-
Berkeley (EUA), onde o físico detectou to Científico e Tecnológico), foi criado um se um período mais tranqüilo. Lattes foi
os mésons pi produzidos artificialmente programa de bolsas de estudo com ver- levado para uma conversa com Getulio
em um acelerador de partículas. bas levantadas por Lattes e pelo ministro. por Lutero Vargas, filho do novo presi-
Nos Estados Unidos, Lattes conhe- dente. “Getúlio me fez algumas pergun-
ceu Nelson Lins de Barros (1920- COMBATE AO COMUNISMO tas sobre bomba atômica, depois disse
1966), funcionário do consulado brasi- O espaço da rua Álvaro Alvim logo se que daria posse ao CNPq e que poderí-
leiro e irmão do ministro João Alberto tornou pequeno para o centro de pes- amos contar com seu apoio.” Segundo
Lins de Barros (1897-1955). Em visita quisas. Um acordo com a Universidade Lattes, a promessa do presidente foi
ao Brasil, o físico reuniu-se com Leite do Brasil (hoje, Universidade Federal cumprida, e até seu suicídio o CBPF não
Lopes e João Alberto para discutir a cria- do Rio de Janeiro) possibilitou a cessão sofreu com a falta de verbas.
ção da nova instituição. O ministro se de uma área de 600 m2 no campus da
entusiasmou e deu total apoio à idéia. Praia Vermelha, e a verba para a cons- FEYNMAN E A MAÇANETA
Lattes deixou uma procuração com seu trução foi doada pelo banqueiro Mário Nesse mesmo ano, Feynman retornou
colega e regressou a Berkeley. “No dia de Almeida. “Pedimos autorização para ao Brasil em licença sabática. Sua presen-
15 de janeiro de 1949, João Alberto me colocar o nome dele no prédio, e ele ça no CBPF foi bastante produtiva, e ren-
ligou de madrugada: estava fundado o perguntou por quê”, diz Lattes. Ele e o deu algumas histórias. Lattes conta que,
CBPF”, conta. engenheiro Paulo Assis Ribeiro, que o certa vez, tinha dado ordem a um rapaz
acompanhava, explicaram que queriam que cuidava da portaria para que não
BOLSAS DE ESTUDO incentivar outras pessoas a realizar do- deixasse que sujassem a porta do ba-
Em seu primeiro ano, o CBPF funcionou ações, e o banqueiro concordou. nheiro, que havia sido pintada. “Eu disse
na rua Álvaro Alvim número 21, e por O prédio ficou pronto em 1950. Na a ele: quando vier alguém, você ensina
três meses contou com uma verba doa- mesma época, Leite Lopes e Jayme como abrir a porta.”
da pelo próprio João Alberto, que assu- Tiomno, que estavam no exterior, volta- A primeira pessoa que apareceu foi
miu a presidência. Lattes foi nomeado di- ram ao Brasil e ao CBPF, onde trabalha- justamente o físico norte-americano. O
retor científico, e voltou ao Brasil um mês ram com física teórica. O grupo respon- rapaz, muito obediente, dirigiu-se a ele
depois da fundação. Ele e o ministro par- sável por essa área seria complementado para ensinar como girar a maçaneta.
tiram então em busca de novas verbas pela chegada do físico austríaco Guido “Feynman ficou indignado. Ele passou
para financiar a instituição, tarefa que foi Beck (1903-1988). duas horas gritando que era um físico al-
facilitada pela notoriedade obtida com a tamente qualificado, e que não precisava
descoberta do méson pi. GETULIO E A BOMBA que ninguém lhe ensinasse a abrir a por-
O trabalho no CBPF não se limitava a Novas dificuldades surgiram quando o ta do banheiro”, conta.
pesquisas em física. “Leopoldo Nachbin ministro João Alberto adoeceu e se afas- Lattes relembra com carinho os
era um dos pesquisadores”, lembra Lattes, tou da instituição. Lattes teve de buscar companheiros dos primeiros anos do
referindo-se ao renomado matemático mais verbas, e foi com o vereador Paes CBPF. Embora a partir de 1955 ele te-
brasileiro (1922-1993). A participação Leme, amigo do ministro, pedir ajuda ao nha se dedicado a construir outros cen-
desses cientistas e o desenvolvimento de presidente da Confederação Nacional tros de excelência, seu afastamento da
seus trabalhos logo fez com que a institui- das Indústrias, Euvaldo Lodi (1896- instituição nunca foi completo. Hoje,
ção se destacasse, e no ano da fundação 1956). – o vereador fazia diariamente passados mais de 50 anos da funda-
o centro recebeu a visita de importantes uma campanha contra Lodi no rádio, ção, ele vai sempre que possível ao
pesquisadores estrangeiros que ministra- acusando-o de desviar verbas do Serviço CBPF, que funciona em um prédio com
ram cursos de especialização. Richard Social das Indústrias (Sesi). seu nome. A explicação para tamanha
Feynman (1918-1988), da Universidade Lodi concordou em contribuir com dedicação vem de sua mulher, a profes-
de Cornell (Estados Unidos) e prêmio 100 contos por mês. Lattes era o encar- sora Martha Lattes, que ajudou na cons-
Nobel de física de 1965, veio pela primeira regado de receber a verba, mas nunca trução do projeto. “O CBPF é fruto de
vez ao CBPF. Cecile Morette, do Instituto de assinou um recibo. “Descobri bem mais uma paixão.” n >>>

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[UM POUCO DE HISTÓRIA]

Sonho com a física no Rio


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Um centro de pesquisa no Rio de Janeiro, dedicado à física teórica e nuclear. Esse era o sonho de José Leite Lopes, um dos
fundadores do CBPF. O centro – fundado em companhia de vários físicos, entre eles Cesar Lattes e Jayme Tiomno – foi em grande
parte idealizado por Leite Lopes, um pernambucano cuja primeira graduação foi em química.
Leite, como é chamado pelos companheiros, além de participar da fundação do CBPF, foi chefe de seu departamento de física
teórica e organizou os primeiros seminários. Ainda hoje, freqüenta o centro pelo menos duas vezes por semana, e orgulha-se do
desenvolvimento da instituição. “Há físicos formados no centro trabalhando em todo o país “, diz ele.

Física no Rio de Lattes,, ao voltar do exterior, ir para o Quando Lattes foi passar uma tem-
As primeiras idéias de fundar um centro Rio de Janeiro e não para São Paulo. Em porada no Rio de Janeiro, ele e Leite se
de pesquisa no Rio de Janeiro ocorre- 1946, Leite voltou ao Brasil e fez o que reuniram com o almirante Álvaro Alberto
ram a Leite Lopes quando ele ainda era aconselhara ao colega: instalou-se no (1889-1976), que era representante do
recém-formado em física. Leite fez a pri- Rio de Janeiro, onde foi contratado pela Brasil na Comissão de Energia Atômica
meira graduação, em química, em sua ci- FNFi para dar aulas de física teórica e física da Organização das Nações Unidas
dade natal, na Escola de Química do Re- superior. (ONU). Na casa do ministro, Leite desco-
cife, e lá se interessou por física nas aulas Em Bristol, Lattes fazia as pesquisas briu que a mulher de João Alberto era fi-
de Luiz Freire (1896-1963). Ele decidiu que o levariam à descoberta do méson pi lha da segunda mulher de seu pai, com
vir para a então capital do país para cur- (ou píon). Quando veio ao Brasil, en- quem havia perdido contato. “Ficou tudo
sar física na Faculdade Nacional de Filo- quanto esperava o resultado de chapas em família”, brinca.
sofia (FNFi), onde estudou com parte do fotográfica que havia exposto na Bolívia, O ministro se propôs a financiar um
grupo que mais tarde fundaria o CBPF: ele e Leite conversaram mais uma vez so- centro de pesquisa em física com o pró-
entre os colegas do físico pernambucano bre a possibilidade de fundarem o centro. prio dinheiro. Decidiu-se, então, pela fun-
estavam Elisa Frota-Pessôa e Jayme A descoberta do méson pi e sua dação de uma organização particular.
Tiomno. detecção no acelerador de Berkeley (Es- Lattes deixou uma procuração com Leite
Uma vez formado em física, Leite tados Unidos) por Lattes ajudaram a Lopes e regressou a Berkeley. Em 15 de
Lopes foi trabalhar com Carlos Chagas Fi- concretizar o ideal de uma instituição vol- janeiro de 1949, o CBPF foi fundado.
lho (1910-2000) em biofísica. Seu inte- tada para a pesquisa física. A detecção “Assinei como procurador do Lattes e es-
resse maior, no entanto, era na área de fí- teve repercussão no exterior, mas foi no queci de assinar por mim”, diverte-se Lei-
sica teórica voltada para física nuclear e de Brasil que o resultado foi amplamente di- te, que nem por isso deixa de ser fun-
partículas. Como não havia grupos que vulgado na imprensa, uma iniciativa que dador. “Minha assinatura está na ata da
desenvolvessem pesquisas nessa área no ficou a cargo de Leite Lopes. Além disso, reunião”, lembra.
Rio de Janeiro, o jovem foi para São Paulo, Leite ainda tratou de propor à congre- Pouco tempo depois, Lattes voltou
onde passou a integrar a equipe de Má- gação da FNFi que se criasse uma cadeira de Berkeley e foi morar no Rio de Janei-
rio Schenberg (1914-1990). Lá, Leite co- de física nuclear para Lattes. ro. Leite, porém, conviveu por pouco
nheceu Cesar Lattes, com quem discutiu a tempo com ele. O físico pernambucano
necessidade de montar um centro de Em família logo voltou para Princeton para mais
pesquisas na capital. Em Berkeley, Lattes conheceu Nelson Lins uma temporada. Lá estava também
de Barros, irmão do então ministro João Jayme Tiomno.
Temporadas no exterior Alberto (1897-1955). “Ele mandou o
Pouco tempo depois, Leite partiu para Nelson conversar comigo no Rio para ver Centro internacional
Princeton (Estados Unidos), e Lattes para como estavam as coisas”, lembra Leite. O Na volta ao Rio de Janeiro, Leite Lopes en-
Bristol (Inglaterra). Os dois se correspon- físico disse que não estavam fáceis. A uni- controu o CBPF em endereço novo. A ins-
diam, e acalentavam o sonho do centro versidade não dava apoio à iniciativa, e tituição, que no início funcionava na rua
de pesquisas carioca. Em suas cartas, o era difícil obter verbas para a construção Álvaro Alvim, no centro da cidade, mu-
pernambucano ressaltava a importância do centro. dou-se para um pavilhão construído no

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terreno da universidade com o dinheiro Tiomno no departamento de física teóri- no entanto, o afastaria por dois períodos
do banqueiro Mário de Almeida. Leite as- ca, mas se encantou e decidiu ficar. da instituição. Assim que começou a dita-
sumiu o departamento de física teórica, e Outra importante participação foi a de dura, Leite pediu demissão do cargo, e
passou a selecionar jovens para se formar Richard Feynman (1918-1988), físico partiu para a França, de onde regressou
e trabalhar na instituição. norte-americano ganhador do prêmio em 1967. Seu regresso foi motivado por
Um acordo firmado com a universi- Nobel de física de 1965. Ele visitara o CBPF uma petição de estudantes que pediam
dade fez com que os cursos dados no no ano da fundação, e voltou no seu ano sua volta. O Congresso estava funcio-
CBPF fossem reconhecidos, e alguns sabático para uma temporada mais longa. nando, e havia uma nova constituição.
professores passaram a dar aulas tam- Ele e Leite passaram trabalhar juntos. Por Leite acreditava que poderia ser o início
bém na Universidade do Brasil (hoje, anos, durante o verão no Brasil, Feynman da abertura política.
Universidade Federal do Rio de Janeiro). freqüentou o CBPF, contribuindo bastante Dois anos mais tarde, porém, o Ato
Com a fundação do Conselho Nacional para os trabalhos desenvolvidos. Institucional número 5 (AI-5) aposentou
de Pesquisa (mais tarde, Conselho Na- Em 1959, Leite foi um fundadores compulsoriamente vários cientistas, entre
cional de Desenvolvimento Científico e da Escola Latino-americana de Física, eles Leite Lopes, que regressou à França
Tecnológico), no mesmo ano, o CBPF juntamente com o mexicano Marcos em 1970,, onde mais tarde se tornaria
passou a contar com uma verba específi- Moshinski e o argentino Juan José professor emérito na Universidade de
ca e bolsas de estudo. Vinham alunos de Giambiagi (1924-1996). Inspirado por Estrasburgo. Havia governos ditatoriais
diversas partes do Brasil, da América Lati- essa idéia, o físico brasileiro propôs a cria- em toda a América Latina, e o trabalho
na e de outros países. ção do Centro Latino-americano de Física científico no continente foi extremamente
(CLAF), com sede no CBPF. Essas inicia- prejudicado.
A vez da América Latina tivas ajudaram a desenvolver e a integrar Assim que possível, no entanto, Leite
O físico austríaco Guido Beck (1903- a física em todo o continente. retornou ao Brasil e ao CBPF, onde se
1988), que na época estava na Argenti- tornou diretor científico novamente. Mes-
na, também mudou-se para o Rio de Ja- Tempos difíceis mo sem fazer concessões quanto a suas
neiro. A princípio, ele veio por um perío- Em 1960, Leite assumiu a direção cientí- idéias, ele foi um dos primeiros cientistas
do curto para trabalhar com Lopes e fica do CBPF. O golpe militar, em 1964, a voltar após o AI-5.

Ensino e pesquisa como meta


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Em 1949, quando o CBPF foi fundado, Jayme Tiomno não estava no Brasil. No entanto, sua participação no processo de
elaboração e formação do CBPF faz com que ele seja conhecido como um dos principais fundadores. Tiomno e sua mulher,
a física Elisa Frota-Pessôa – responsável pelo primeiro trabalho realizado no CBPF e publicado em revista científica – tiveram um
papel importante no estabelecimento do CBPF como um centro de ensino e pesquisa.

Sonho de pesquisa Lopes, jovens estudantes do curso de sidade de São Paulo (USP) formavam
No início dos anos 1940, a quase au- física da faculdade. Essa mobilização de a primeira geração de físicos brasilei-
sência de pesquisas na Faculdade Na- alunos em um grupo contava também ros. Com bolsas oferecidas pelo físico
cional de Filosofia (FNFi), da Universi- com o matemático Leopoldo Nachbin Mário Schenberg (1914-1990), Leite
dade do Brasil (hoje, Universidade Fe- (1922-1993), aluno da Escola Nacio- Lopes, Tiomno e Elisa partiram, suces-
deral do Rio de Janeiro), estimulou a nal de Engenharia. “Leite Lopes costu- sivamente, para a USP.
idéia de fundar um centro de física no mava dizer que éramos os três mos-
Rio de Janeiro. A falta de oportunida- queteiros (ele, Jayme e eu), e d’Artagnan Discussões em Princeton
de para vir a realizar pesquisas teóricas (Nachbin)”, diz Elisa. Alguns deles fo- No final da década de 1940, jovens cien-
e experimentais incomodava Jayme ram depois para São Paulo, onde cien- tistas brasileiros dessa geração foram
Tiomno, Elisa Frota-Pessôa e José Leite tistas estrangeiros trazidos pela Univer- para o exterior, onde tiveram a oportu- >>>

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nidade de trabalhar com grandes no- trabalho no exterior, só voltando ao Brasil fundou o laboratório, a faculdade não
mes da comunidade científica interna- em meados de 1950. tinha condições de desenvolver as aulas
cional. Em 1948, Tiomno, que havia se No Brasil, o CBPF começava a fun- práticas”, conta Elisa. Ela levava então seus
demitido da FNFi para ser contratado cionar. Sua sede era na Rua Álvaro Alvim, alunos para ter essas aulas no CBPF,
pela USP, foi para Princeton (Estados número 21. Lá, foram desenvolvidas as onde tinham contato com pesquisado-
Unidos), para trabalhar com o físico John primeiras pesquisas. Como Lattes assu- res. A instituição logo passou também a
Wheeler. “Me avisaram que ele era duro, miu a direção científica do CBPF, a seção ter bolsistas de iniciação científica, que
exigente, e que o trabalho não seria fá- de emulsões nucleares ficou a cargo de muitas vezes permaneciam no CBPF
cil”, diz ele. “Anos mais tarde, o Wheeler Elisa. Juntamente com Neusa Margem, mesmo após a formatura – eles passa-
comentou que nunca tinha trabalhado ela pesquisou o decaimento do méson vam a estudar nos primeiros cursos de
tanto quanto comigo”, conta. pi (ou píon) em elétron e neutrino (esta pós-graduação em física do país.
Durante essa estada, Tiomno cola- uma partícula sem carga), utilizando para A preocupação do casal com a edu-
borou com os prêmios Nobel Eugene isso microscópios emprestados até pela cação levou-os a participar da implanta-
Wigner (1902-1995), Chen Ning Yang polícia. O mesmo tema de pesquisa es- ção da Universidade de Brasília (UnB)
e, mais tarde em Londres, com Abdus tava sendo desenvolvido sem sucesso em 1965. O agravamento da situação
Salam (1926-1996). nos Estados Unidos e por isso ela che- política, no entanto, afastou-os da nova
Em Princeton, a criação de um cen- gou a ser aconselhada a desistir. No en- universidade, e eles voltaram ao CBPF.
tro de física no Rio de Janeiro voltou a tanto, as duas físicas obtiveram resulta- A seguir, passaram seis meses como
ser discutida. As providências para a fun- dos antes dos americanos. cientistas visitantes em Trieste (Itália), em
dação estavam avançadas no Brasil, e um programa de pesquisas em física de
Cesar Lattes foi para os Estados Unidos Notas de física partículas. Tiomno então venceu con-
fazer uma reunião com os físicos brasi- Embora Tiomno tivesse convites para curso de cátedra na USP, onde organi-
leiros que estavam trabalhando em uni- permanecer no exterior, ele queria tra- zou novo grupo de física teórica, que
versidades americanas. Participaram da balhar no CBPF, que havia ajudado a foi a base do atual Departamento de
reunião Leite Lopes, Tiomno, Walter fundar. Ele começou a desenvolver ati- Física Matemática, de prestígio interna-
Schützer (1922-1963), Hervásio de Car- vidades no Rio de Janeiro assim que cional. Elisa, continuando seus traba-
valho (1916-1999), bem como o físico chegou, mas teve que morar em São lhos experimentais, reorganizou o Labo-
japonês Hideki Yukawa (1907-1981). Paulo por um tempo, para compensar ratório de Emulsões Nucleares da USP,
Yukawa ganharia o Nobel de física no sua licença remunerada na USP. Em realizando pesquisas em física nuclear.
ano seguinte, por sua teoria de 1935 1952, Tiomno mudou-se definitivamen- Com o Ato Institucional número 5
que previu a existência do méson pi. te para a então capital do país, e assu- (AI-5), Tiomno e Elisa foram aposenta-
Pouco depois, o CBPF foi criado no miu a chefia do departamento de pu- dos compulsoriamente – assim como
Rio de Janeiro por um grupo que reu- blicações do CBPF. Ele logo criou Notas Mário Schenberg e José Leite Lopes – e
nia cientistas, professores, políticos, mili- de física, publicação que existe até hoje. impedidos de retornar ao CBPF. Sem
tares, empresários, amigos e familiares, A distribuição, segundo Tiomno, era perspectivas no Brasil, eles partiram para
entre os quais estavam Leite Lopes e melhor que a da publicação da Acade- o exílio, mas retornaram ao país assim
Elisa Frota-Pessôa. mia Brasileira de Ciências (ABC). “Nós que a situação política permitiu. Elisa e
a mandávamos para os departamen- Tiomno passaram então a trabalhar na
Primeiros passos tos de física de muitas universidades Pontifícia Universidade Católica do Rio de
No primeiro ano do CBPF (1949), estrangeiras”, diz ele. Um dia, ele rece- Janeiro, onde foram acolhidos por anti-
Tiomno conseguiu enviar físicos de re- beu uma carta da Sociedade America- gos discípulos e companheiros. Essa si-
nome internacional para trabalhar na na de Física que pedia para optar en- tuação durou até que viesse a abertura
instituição. Em uma conferência, en- tre registrar Notas de Física como uma política. Com ela, o CBPF recebeu de vol-
controu o norte-americano Richard pré-publicação ou uma publicação. ta seus ‘exilados’, entre eles o casal, que
Feynman (1918-1988), que estava es- Optou pela pré-publicação. “Assim os ainda teve importante atuação científica.
tudando espanhol, propondo a ele que trabalhos podiam ser publicados em Hoje, eles vão pouco ao campus da
estudasse português e fosse ao Rio de revistas internacionais de ciência, que Praia Vermelha, onde fica o prédio que
Janeiro passar uma temporada no CBPF. não aceitam republicar artigos”, explica. abriga o CBPF. Mas não deixam de acom-
Feynman aceitou o convite, e voltou panhar o que acontece lá. “O centro cres-
outras vezes ao país. A física francesa Experiências didáticas ceu muito, e vários ex-alunos nossos ain-
Cecile Morette, que estava nos Estados Tiomno assumiu também a chefia do de- da estão lá. Muitos outros estão espa-
Unidos, foi outra das convidadas de partamento de ensino e criou o labora- lhados por universidades e institutos bra-
Tiomno. Ele, no entanto, continuou seu tório didático do CBPF. “Quando Jayme sileiros e estrangeiros”, diz Tiomno. n

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