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A psicanálise Kleiniana

A psicanálise Kleiniana1
Flávio José de Lima Neves

Resumo
O autor apresenta as principais contribuições de Melanie Klein à psicanálise. Partindo da psica-
nálise clássica, Klein desenvolveu alguns conceitos de Freud (fantasia, mundo interno, comple-
xo de Édipo, entre outros) e elaborou outros conceitos originais (o conceito de posição, as idéias
sobre as etapas mais primitivas do desenvolvimento, os mecanismos e as defesas utilizadas nas
fases iniciais do desenvolvimento). A partir da apresentação das contribuições teóricas, são
mencionadas também algumas importantes implicações das idéias kleinianas na técnica e na
prática clínica da psicanálise, tal como concebida e preconizada por Melanie Klein e seus segui-
dores.

Palavras-Chave
Fantasia inconsciente – Posição – Mecanismos primitivos – Mundo interno – Setting – Interpre-
tação

I – Considerações iniciais Hoje, vou apresentar os componen-


tes do sistema kleiniano que são essenci-
Desde os anos 40 do século passado, ais, específicos e definidores de uma esco-
quando as famosas discussões controver- la de psicanálise. Por sistema, deve ficar
sas envolveram apaixonadamente os entendido que eu me refiro aqui a uma
membros da Sociedade Britânica de Psi- resultante da integração entre a teoria e a
canálise entre 1942 e 1944, o sistema klei- prática clínica, tal como Melanie Klein e
niano de psicanálise se consolidou de for- seus seguidores concebem e exercem a
ma progressiva e definitiva dentro da pró- psicanálise.
pria Sociedade Britânica e, a seguir, se Em primeiro lugar, gostaria de lembrar
expandiu para outros países: inicialmen- que Melanie Klein sempre se considerou
te, países latino-americanos e, posterior- e fez questão de ser vista como uma segui-
mente, para outros países da Europa, onde dora de Freud. Um de seus maiores desa-
as idéias de Klein começaram a ser reco- pontamentos deveu-se à indiferença que
nhecidas e onde passaram a ter importân- Freud demonstrava em relação a seus tra-
cia cada vez maior. Por último, formaram- balhos em psicanálise de crianças, que di-
se alguns grupos de orientação kleiniana vergiam radicalmente da orientação do
nos Estados Unidos, o perene e absoluto mesmo trabalho desenvolvido por Anna
baluarte da psicologia do ego, inspirada no Freud. É famosa uma passagem sua, quan-
trabalho de Heinz Hartmann e respalda- do em conversa com Betty Joseph, uma
da por Anna Freud. das mais importantes analistas inglesas
contemporâneas, Klein protestou ao ser
chamada de “kleiniana”, visto que se con-
1. Trabalho apresentado em painel na aula inaugural
siderava “freudiana”. Ao que Joseph res-
do CPMG em 05/03/2007. pondeu: “Tarde demais, você é uma klei-
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niana, queira ou não queira”2 . Na opinião te nos estudos que culminaram na con-
de Elias Mallet da R. Barros, esta passa- ceituação da identificação projetiva.
gem nos coloca diante de um problema
epistemológico: o de quando um autor 2. Características importantes e espe-
com um pensamento psicanalítico próprio cíficas da psicanálise kleiniana
e original, pode ou não ser considerado a) O setting psicanalítico
como tendo se desviado, ou simplesmen- Este é um conceito técnico muito caro
te ter desenvolvido o pensamento psica- aos analistas da escola inglesa em geral e
nalítico criado por Freud3 . se refere ao cenário onde a análise acon-
Também é importante recordar aqui tece. É o conjunto de recursos e procedi-
que as contribuições de Melanie Klein à mentos colocados no atendimento e ofe-
psicanálise se desenvolveram a partir de recidos ao paciente, desde o início o espa-
alguns dos textos mais tardios de Freud, ço físico do consultório com seus móveis
como “Além do Princípio do Prazer” e objetos, o número de sessões semanais
(1920), “O Ego e o Id” (1923) e “Inibi- com seu ritmo próprio, até a pessoa do
ção, Sintoma e Angústia” (1926). analista com sua atitude adequada e as
interpretações que ele dá ao analisando.
II – Alguns componentes específicos Segall (1982), ao escrever sobre a técnica
da psicanálise kleiniana de Melanie Klein, diz que “a técnica kleini-
ana é psicanalítica e se fundamenta rigorosa-
1. Principais desenvolvimentos teóri- mente em conceitos psicanalíticos freudianos,
cos em Klein sendo seu contexto formal o mesmo da análi-
se freudiana... Não é só o cenário formal que
Classicamente, são consideradas é o mesmo da análise clássica: respeita-se tam-
como as principais contribuições de Klein bém, em todos os aspectos essenciais, os prin-
à psicanálise as seguintes formulações: cípios psicanalíticos tal como foram apresen-
1. Conceitos sobre as etapas mais pri- tados por Freud”. Segall cita como fatores
mitivas do desenvolvimento psicossexu- constituintes da psicanálise kleiniana o
al, à luz da segunda teoria dos instintos de setting psicanalítico, a freqüência de ses-
Freud, sobre as fantasias inconscientes e sões semanais (ideal o número de cinco
as primeiras defesas contra a angústia. sessões), o uso do divã, e ressalta a inter-
2. O conceito de posição. pretação como o instrumento essencial de
3. Os conceitos sobre a formação do trabalho do analista, que deve evitar ri-
ego, do superego e sobre a situação edipi- gorosamente todas as formas de crítica,
ana. apoio, conselho, julgamento, encoraja-
4. O conceito de mundo interno. mento e reasseguramento4 .
5. O novo status dado ao objeto e, so-
bretudo, às relações internas de objeto. b) A interpretação
6. O conceito dos mecanismos de in- Na psicanálise kleiniana a interpreta-
trojeção e projeção como atuantes desde ção visa buscar e possibilitar contato que
o início da vida psíquica em bebês. A in- seja emocionalmente vivo com relação a
teração entre introjeção e projeção foi pos- experiências vivenciadas pelo analisando.
teriormente desenvolvida intensivamen- Melanie Klein considera a experiência

2. GROSSKURTH, P. O mundo e a obra de Melanie Klein. 4. SEGALL, H. A obra de Hanna Segall. Rio de Janeiro:
Rio de Janeiro: Imago, 1992. Imago, 1982.
3. BARROS, Elias M. R. Melanie Klein: evoluções. São
Paulo: Escuta, 1989.

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emocional como a base da vida psíquica, ciente em contato direto com uma fanta-
como o que lhe dá significado e que existe sia que está em ação naquele instante,
e acontece tanto no consciente como no possibilitando assim conexões e insights
inconsciente. Para Freud, a emoção é um que propiciam autêntica mudança psíqui-
subproduto da vida pulsional, constituin- ca. Mudanças nas fantasias inconscientes
do-se como uma vivência consciente, isto se relacionam com mudanças psíquicas e
é, um elemento que indica a presença de com o funcionamento global do pacien-
um conflito pulsional inconsciente. A im- te. A interpretação deve ser descritiva dos
portância conferida às emoções inconsci- movimentos e da dinâmica interna do
entes como fator central da vida psíquica paciente. Então, sabemos que em seu
dos indivíduos, que a organiza e lhe dá sig- mundo interno, a pessoa tem tudo: repre-
nificado, é uma característica básica do sentação de si mesma, objetos, relações e
sistema kleiniano que o diferencia de ou- conflitos causados pelos mais diversos es-
tras linhas de psicanálise. Depois de Klein, tados e experiências emocionais.
Bion enfatizou o fato de que, para que a
mente possa desenvolver-se, é necessário c) O mundo interno
que a experiência emocional das relações Mundo interno é uma descoberta es-
seja pensada. sencial da psicanálise de Freud: a dimen-
O objeto da interpretação é a fanta- são da realidade psíquica correlativa à exis-
sia inconsciente, que pode ser apreendida tência consciente e consensual da reali-
basicamente pelo que o paciente diz na dade externa e, ao mesmo tempo, seu ne-
associação livre (incluindo-se aqui o rela- gativo e sua origem. Este é um conceito
to dos sonhos), através da transferência e que Melanie Klein toma diretamente de
através da contratransferência. Em sínte- Freud e amplia de modo genial. Caper
se, a interpretação deve abranger tudo (1988)6 faz um estudo muito interessante
que, de alguma maneira, o paciente mos- sobre a constituição e a evolução do con-
tra ao analista, tudo que faz parte de um ceito de mundo interno, inicialmente em
convite que o paciente faz ao analista para Freud e, depois, em Klein. Este autor usa
que este conheça e participe do seu mun- como elemento condutor de investigação
do interno, tal como o paciente o conhe- desta evolução conceitual a teoria da an-
ce e experimenta. As fantasias inconsci- siedade em Freud (ansiedade como efeito
entes devem ser interpretadas e trabalha- e conseqüência da repressão da libido e
das no aqui e agora dentro da sessão e, posteriormente da ansiedade como sinal)
sempre, as interpretações devem abran- e em Klein (ansiedade como efeito da pul-
ger a situação transferencial global: fan- são de morte no ego), articulando a ansi-
tasias relacionadas ao analista, à análise, edade com a formação das fantasias e com
e ao setting. Ao interpretar, o analista deve a identificação, e usa o caso do pequeno
procurar no material inconsciente as re- Hans como material ilustrativo.
lações entre a experiência emocional do Segundo Klein, o mundo interno é um
paciente e o movimento da sessão. Esta é espaço povoado por objetos e carregado
a forma de interpretação considerada de pulsões, instintos, funções e relações.
como a mais terapêutica. É a que Stra- Com os objetos internos, totais ou parci-
chey5 denominou “interpretação mutati- ais, o sujeito vive relações pessoais mar-
va”, a que tem condições de colocar o pa- cadas pelas identificações. É um lugar

5. STRACHEY J. The nature of the Therapeutic Action of 6. CAPER, R. Fatos imateriais. Rio de Janeiro: Imago,
Psychoanalysis (1934), In: Int. J. Psycho-Anal., 15:127- 1990.
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onde predomina a onipotência do pensa- Melanie Klein não admitia a possibi-


mento mágico infantil primitivo, o que lhe lidade de serem consideradas as pulsões
confere ora os mais deslumbrantes aspec- dissociadas de um objeto. Ao longo de
tos de magia, ora o mais intenso colorido toda a sua obra, ela nunca se refere às
de terror. É um lugar onde nada é carac- pulsões como tendo vida e atividade iso-
terizado com nitidez e estabilidade, poden- ladas de um objeto ao qual se dirigem.
do objetos, impulsos e funções passar de Segundo Klein, a pulsão atua sobre o ob-
um extremo a outro, do prazer mais in- jeto, criando, assim, tanto uma relação
tenso ao horror mais insuportável. O mun- com este objeto como uma experiência
do interno da psicanálise kleiniana é um emocional inconsciente. Isto tem uma
espaço, uma dimensão que, embora rela- conseqüência importante, tanto teórica
cionada com as funções do id, do ego e do como clínica: ao não colocar a pulsão
superego, não coincide com estas instân- como foco primordial de seu interesse, ela
cias psíquicas, mas como que as supera e toma a experiência emocional como ele-
as contém. Nas etapas mais primitivas do mento privilegiado do trabalho psicanalí-
desenvolvimento, o mundo interno é es- tico, atribuindo à ansiedade um papel pre-
sencialmente corporal, com movimentos ponderante na estruturação da vida psí-
de fusão e de sincretismo com os objetos e quica do indivíduo. Daí, surgem algumas
até mesmo com partes do mundo exter- diferenças fundamentais entre os dois sis-
no. Com o desenvolvimento, vai se fa- temas, o freudiano e o kleiniano: para
zendo alguma diferenciação entre corpo Freud, a emoção é uma derivação da ati-
próprio, objetos internos ou externos, vidade pulsional, constituindo-se como
mundo externo, eu e não eu, diferencia- uma vivência consciente, isto é, um ele-
ção esta que progressivamente se torna mento indicador da presença de um con-
mais nítida. flito pulsional inconsciente. Para Klein a
Aqui, cabe lembrar a diferença exis- emoção é a base da vida mental, aquilo
tente entre Freud e Klein em relação às que lhe dá significado e que existe tanto
pulsões e como estas são consideradas no no consciente como no inconsciente.
processo psicanalítico. Para Freud, as pul-
sões são sempre inconscientes, podendo d) Transferência e contratransferên-
ser representadas por idéias inconscientes cia
ou serem manifestadas através de um es- Freud conceitua a transferência como
tado afetivo. Em relação a este estado, o processo por meio do qual certas rela-
quando se fala de “emoções inconscien- ções e acontecimentos do passado, junto
tes”, fala-se das vicissitudes do fator quan- com seus componentes afetivos, são repe-
titativo associado ao impulso, como resul- tidos (ou reeditados) na relação com o
tado da repressão. Em seu texto sobre o analista, sob a influência do princípio da
inconsciente, Freud diz que “idéias incons- compulsão à repetição. No caso Dora
cientes continuam a existir depois da repres- (1905) Freud já define e caracteriza o fe-
são como estruturas vigentes no sistema Ics, nômeno transferencial em seus compo-
enquanto tudo que corresponde neste siste- nentes essenciais8 .
ma aos afetos inconscientes é um começo Melanie Kelin considera a transferên-
potencial que fica impedido de desenvolver- cia como o resultado da externalização de
se”7 . relações internas de objeto sob a pressão

7. FREUD, S. The Unconscious (1915) SE v. XIV. The 8. FREUD, S. Fragments of an Analysis of a case of Hys-
Hogarth Press, London, 1974. teria (1905[1901]), SE v. VII, The Hogarth Press,
London, 1974.

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exercida pela ansiedade e cujas origens relação ao analista para outras pessoas em sua
remontam aos mesmos processos que, no vida cotidiana, e isto é parte da situação”9 .
passado, promoveram as primeiras rela- A partir da conceituação inicial de
ções objetais, ou seja, introjeção e proje- Melanie Klein, a psicanálise kleiniana vê
ção, cisão, identificação projetiva, ideali- a transferência como uma situação total e
zação, etc. Para os analistas kleinianos o não só o que aparece no material verbali-
essencial na transferência não reside na zado na sessão, relacionando-se a confli-
relação entre passado e presente, mas sim tos, sentimentos relativos a situações re-
na relação existente entre mundo interno petidas, etc. A partir de Klein, a transfe-
e mundo externo. Daí, pode ser inferido rência é sempre vista como dirigida ao
que as relações com as figuras parentais analista, que deve então interpretar a e
reais já contêm elementos de uma trans- na transferência, mostrando que o que
ferência porque a criança não se relacio- aparece na análise é a realidade do mun-
na nem reage aos pais reais tal qual eles do interno emergindo, se expressando e
são e como existem, mas sua percepção sendo experimentada naquele momento.
deles já está colorida e marcada por suas Esta é a questão mais básica e essen-
introjeções e projeções. Assim, o que está cial da análise kleiniana: a perenidade e a
em jogo na transferência não são as ima- dimensão ampla da experiência emocio-
gos dos pais (ou de quaisquer objetos) nal como material primordial e contínuo
como representações de lembranças e de do trabalho da análise. Assim, além do
vivências reais acontecidas no passado. material falado, há o material não verbal
Melanie Klein (1952) afirma que “minha (gestos, mímica facial, movimentos). En-
concepção de transferência como algo enrai- fim, tudo que, de alguma maneira, o paci-
zado nos estágios iniciais do desenvolvimento ente mostra ao analista. Somente assim o
e nas camadas mais profundas do inconsci- analista poderá perceber e sentir o mun-
ente é muito mais ampla, envolvendo uma do interno do paciente, como ele funcio-
técnica através da qual, a partir da totalida- na, e como se dão as relações entre o pa-
de do material apresentado, são deduzidos os ciente (seu ego), seus objetos e também
elementos inconscientes da transferência. Por as relações dos objetos entre si. É esta vi-
exemplo, relatos de pacientes sobre suas vi- são de conjunto que dá à transferência uma
das, relações e atividades cotidianas não só concepção dinâmica de movimento ininter-
nos oferecem uma compreensão do funciona- rupto, do mesmo modo como se dá a emer-
mento do ego, mas revelam igualmente as gência e o funcionamento das fantasias.
defesas contra a ansiedade suscitadas na si- Freud descreve a contratransferência
tuação de transferência, caso exploremos seu como o resultado de aspectos do analista
conteúdo inconsciente. O paciente está fada- que interferem na análise. Esta concep-
do a lidar com conflitos e ansiedades, revivi- ção tem uma conotação negativa, de en-
dos na relação com o analista, empregando trave ou de impedimento para o andamen-
os mesmos métodos a que recorreu no passa- to da análise. O exemplo clássico desta
do. Isto quer dizer que ele se afasta do analis- visão é o caso da reação de Breuer a Anna
ta como tentou se afastar de seus objetos pri- O., analisada posteriormente por Freud
mários; tenta cindir a relação com eles, man- que identificou a transferência amorosa da
tendo-os como figuras boas ou más; deflete paciente e a reação não elaborada e atua-
alguns dos sentimentos e atitudes vividos em da do analista a ela10 .

9. KLEIN, M. As origens da transferência (1952). Inve- 10. FREUD, S. Studies on Hysteria, Fräulein Anna O.
ja e gratidão e outros trabalhos. 1946-1963. Rio de Ja- (Breuer) (1893-1895), SE v. II, The Hogarth Press,
neiro: Imago, 1991. London, 1974.

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Aos poucos, vários autores ampliaram sobre estes dois tópicos, importantíssimos
o conceito de contratransferência, que na dinâmica da psicanálise kleiniana de
cresceu, se expandiu e passou a abarcar nossos dias. Os principais desenvolvimen-
outras coisas. Paula Heimann (1950) foi tos sobre a identificação projetiva, a fun-
a primeira psicanalista a apresentar esta ção do pensamento e a função continen-
nova visão em um congresso internacio- te do analista devem-se a Wilfred Bion,
nal da IPA, causando surpresa e até mes- que foi discípulo de Melanie Klein. Gra-
mo reações violentas de analistas conser- ças a suas idéias e formulações originais,
vadores. Heimann abriu um caminho de Bion tornou-se a maior referência para
investigação que foi percorrido por vários grande número de analistas kleinianos
analistas que trouxeram contribuições contemporâneos. Pode-se dizer que os
importantíssimas para este conceito. Con- chamados “bionianos” formam um grupo
tratransferência passou a ser considerado bem definido e caracterizado dentro da
como tudo o que o analista vive e experi- psicanálise kleiniana hoje. De novo, re-
menta em sua relação com o paciente. Em pete-se a coisa dos nomes: se antes havia
determinado ponto de seu artigo, Hei- a questão sobre ser “freudiano” ou “klei-
mann diz: “Do ponto de vista que estou res- niano”, hoje agrega-se a questão de ser
saltando, a contratransferência do analista “bioniano” como um “kleiniano” que tec-
não é somente parte integrante da relação nicamente trabalha primordialmente uti-
analítica, mas é criada pelo paciente, é parte lizando as idéias de Bion.
da personalidade do paciente”11 . A pergun- Em seu artigo “Attacks on linking”
ta fundamental é: como usar isto? Se o (1959)12 , Bion introduz e começa a de-
analista experimenta algo, é porque algo senvolver seu modelo de identificação pro-
do paciente o atingiu. Se o analista é ca- jetiva como meio de comunicação na rela-
paz de perceber o que ele experimenta e ção de alguém (bebê ou paciente) com um
se é capaz de compreender o que viveu, objeto do tipo recipiente, que ele deno-
separar o que é dele do que é do paciente mina continente. A situação é descrita em
ou até mesmo do que não é dele, ele passa termos de uma relação entre conteúdo e
a ter uma visão de alguma coisa do paci- continente, ou em uma terminologia mais
ente espelhada por sua própria introspec- atual, entre continente e contido. Enquan-
ção. Algo como se acontecesse uma visão to continente, o analista deve exercer ati-
em duas direções, servindo para detectar vamente uma função de receber, proces-
aspectos internos que se passam na rela- sar, elaborar e devolver aquilo que o paci-
ção e que causam impacto no analista. O ente projeta para dentro de sua mente. O
uso da contratransferência é muito impor- mecanismo psicodinâmico deste modelo
tante, devendo o analista ser capaz de uti- de relação é a identificação projetiva e,
lizar o que ele experimenta e não apenas historicamente, ele se baseia na relação
dizer ao paciente o que ele percebeu e mãe-bebê. Dizendo em outras palavras, a
identificou. relação da dupla analítica repete a rela-
ção primitiva do bebê com sua mãe, na
e) Identificação projetiva e a função qual a forma de comunicação era essenci-
de continência do analista almente pré-verbal.
Devido às limitações do tempo e para Bion criou uma expressão para desig-
encerrar, penso ser importante dizer algo nar a função materna que atua dentro

11. HEIMANN, P. On Countertransference, In: Int. J. 12. BION, W. Attacks on linking (1959), In: Int. J. Psycho-
Psycho-Anal. 1950, n. 35, 81-84. Anal., n.40.

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desta relação: a “capacidade de revêrie”. lista torna-se então desejável para o paci-
Esta função pode ser compreendida como ente. Sua presença é sentida como impor-
a capacidade da mãe de, recebendo os tante e necessária, como facilitadora dos
conteúdos emocionais do bebê com toda processos de mudança psíquica autêntica.
sua carga de ansiedade associada, relacio- Se não existe uma constância e um ritmo
ná-los à sua própria capacidade de pro- intensivo no trabalho analítico, o analista
cessar este conteúdo, inicialmente into- é vivido como objeto ausente, experimen-
lerável (por isto mesmo excindido e pro- tado como atacado, danificado, morto e
jetado pelo bebê), por meio da função do perdido. Dizendo de outra forma, pela
pensamento. Depois disto, a mãe deve dar identificação projetiva, o objeto ausente
uma devolução adequada e aceitável que é transformado num objeto mau, repre-
possa ser reintrojetada pelo bebê sem cau- sentado internamente como abandonan-
sar ansiedade insuportável, vivência ca- do a criança (ou o paciente). Como se tra-
tastrófica de horror ou de aniquilamento ta de um processo dinâmico, uma infini-
dentro dele. dade de combinações é possível nestas
Ao introduzir este modelo, Bion nos experiências emocionais.
mostra a enorme importância do ambien- Em um de seus últimos trabalhos, que
te representado pela mãe para a sobrevi- foi publicado depois de sua morte em 22
vência psíquica e para o posterior desen- de setembro de 1960, “Sobre a saúde men-
volvimento da criança. É através da ex- tal” (1960)13 , Melanie Klein faz uma re-
periência repetida das constantes proje- visão de suas idéias sobre o desenvolvi-
ções de seus conteúdos para dentro da mento da personalidade e suas vicissitu-
mãe, seguida pela elaboração e transfor- des. Revê os mecanismos mais básicos do
mação da experiência emocional inicial- desenvolvimento da criança, fala da im-
mente insuportável em outra experiência portância inicial da mãe e dos objetos e,
mais assimilável, que o bebê vai constitu- no último parágrafo do texto, ela trata do
indo um núcleo do objeto bom que, por que chama de impulso à integração. Klein
seu turno, vai constituir o núcleo de base diz que este impulso se origina de um sen-
de um ego integrado. Fica claro, a partir timento de que as diferentes partes do self
destas idéias, que a função analítica se tor- são distantes e estranhas umas às outras.
na essencialmente algo da ordem da fun- Também faz parte dele “o conhecimento in-
ção de conter. Para Bion, a função de con- consciente de que o ódio só pode ser mitigado
ter é algo ativo, uma capacidade de trans- pelo amor e se os dois sentimentos forem man-
formar, por meio da função do pensamen- tidos separados, esta mitigação não pode se
to, experiências emocionais inicialmente dar”. Klein diz que todo processo de mu-
insuportáveis em experiências assimilá- dança e de integração implica numa ex-
veis, pois a transformação lhes confere periência de dor, pois a excisão do ódio,
uma sinificação mutativa. da destrutividade e suas conseqüências
O instrumento que permite ao ana- acarreta sentimentos de angústia e sofri-
lista o exercício da continência é a inter- mento. Ela diz ainda que, numa pessoa
pretação. Transformando-se num objeto normal, mesmo quando há alguma osci-
continente por meio de sua capacidade de lação entre os efeitos causados por expe-
interpretar, que dá um significado às ex- riências perturbadoras, internas ou exter-
periências emocionais do paciente, o ana- nas, o impulso à integração entra em ação,
lista, na análise, se torna o núcleo do ob-
jeto bom introjetado. Na condição de ob-
13. KLEIN, M. Sobre a saúde mental (1960). Inveja e
jeto pensante e capaz de transformar a gratidão e outros trabalhos (1946-1963).Rio de Ja-
experiência emocional do paciente, o ana- neiro: Imago, 1973.

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conduzindo-a de volta ao equilíbrio. É THE KLEINIAN


tudo muito dinâmico e não existe a inte- PSYCHOANALYSIS
gração completa, mas quanto mais o indi-
víduo se esforça nesta direção, mais insi- Abstract
ght ele terá sobre seus impulsos e sobre suas In this paper the author presents the main
ansiedades, mais forte será o seu caráter e contributions made by Melanie Klein to
maior seu equilíbrio mental. Freud’s psychoanalysis. Some concepts stem
A psicanálise kleiniana tem como from Freudian classical theory, like the Oedi-
objetivo proporcionar aos analisandos um pus complex, sexual development, object re-
meio de obtenção de mudança psíquica. lationship, however others have been amplifi-
Somente através do trabalho reiterado das ed by Klein. On the other hand, some origi-
fantasias inconscientes, do vivido trans- nal contributions are mentioned, such as the
ferencial e da redução das dissociações concept of position – both schizoparanoid and
internas com a conseqüente integração do depressive, the description of the early stages
ego e melhor capacidade para lidar com a in child’s development with its most impor-
realidade, torna-se possível um ganho de tant mechanisms. The importance of Klein’s
qualidade no viver, nas relações com as views on transference, the inner world and
pessoas, no trabalho e na criatividade. Em inner object relations are emphasized. A view
outras palavras, a análise visa proporcio- on technical and clinical aspects of Kleinian
nar o predomínio de Eros sobre Tânatos. psychoanalysis is also presented as a natural
Isto é crescimento pessoal e só pode ser consequence of Klein’s theoretical develop-
conseguido com muito trabalho e não sem ments.
sofrimento. Porque na vida nada é de gra-
ça. ϕ Keywords
Phantasy – Position – Early mechanisms –
Inner world – Setting – Interpretation

RECEBIDO EM 15/06/2007
APROVADO EM 27/06/2007

SOBRE O AUTOR
Flávio José de Lima Neves
Psicólogo. Psiquiatra e psicanalista. Membro do
Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG.

Endereço para correspondência:


Rua São João Evangelista, 451/102 - São Pedro
30330-140 - BELO HORIZONTE - MG
Tel. (31) 3293 - 6520.
E-mail: fjlneves@uol.com.br

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