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UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO – UPE

KAROLINE BARBOSA DE AZEVEDO

A REPRESENTAÇÃO DO CORPO FEMININO EM BOCAGE E A APROXIMAÇÃO


À LÍRICA CAMONIANA
O turbulento século XVIII foi transverso por forças contrastantes, em que os
regimes absolutistas desmoronavam a olho nu, ao mesmo tempo em que a filosofia
iluminista se expandia a passos vertiginosos, dilatando aqueles ideais que
culminariam na revolução Francesa, episódio que modificou definitivamente os
rumos do mundo e a mentalidade dos homens. Tal movimento cultural permitiu que
Portugal tivesse um maior conhecimento das ciências, abrindo espaço para o
racionalismo e libertando-o do poder religioso dominante imposto.

Ademais, o século XVIII espelha as suas contradições e debates, chegando a ser


considerado também, o século da mulher, isto pelo fato das personagens femininas
dominarem o cenário poético da cultura das luzes, sendo as figuras centrais de textos
onde os homens interrogavam-se sobre a sua mente e sua fisiologia. Se é verdade
que aqui começa a preparar-se uma nova imagem da mulher que surge como sujeito
da sua própria história, consciente do seu papel no mundo, é também inegável que a
maioria das representações artísticas sobre a vivência feminina continuaram a ser
realizadas por homens e em prol de uma maior liberdade destes, antes reprimidos
pelo ideal do amor cortês.

O reconhecimento desse contexto histórico é importante para legitimar a obra


Bocagiana como um curso multifacetado que desenvolve uma profunda reflexão
acerca da mulher nas suas várias facetas. Tendo vivido de 1765 a 1805, Bocage foi
um ser de transição, que escreve já nos anos finais de setecentos, assistindo à queda
dos antigos valores e à ascensão dos novos, vivenciando a transição do mundo
aristocrático para o burguês, e traduzindo majestosamente, em versos de intensa
pulsação pessoal, social e erótica, a crise do seu tempo histórico.

É tomando como ponto de partida a escrita de um poeta de transição, que os


discursos de Bocage são costurados aos de Camões, considerado o primeiro grande
poeta da literatura portuguesa, também poeta de um mundo em transição e em crise
dualística, trazendo em sua obra o desconcerto de um século XVI, onde ainda
encontravam-se resquícios de uma tradição poética peninsular dos trovadores e o
surgimento de influências renascentistas trazidas da Itália para Portugal por Sá de
Miranda em 1527.
No que diz respeito à representação da mulher, é possível observar que muito se
assemelham a literatura de Bocage e Camões, pois ambas trazem uma existência
significativa de um leque de imagens arquetípicas do feminino, sobretudo aquelas que
procuravam, numa visão dualista, por um lado, enaltecer a Mulher e, por outro, torná-
la fonte da perdição, numa retórica de fascínio e temor já bastante trabalhada ao longo
dos séculos. Assim como posto por Luis Maffei (2011, p. 80) “Bocage, [...] radicaliza,
pela palavra obscena, o que, séculos antes, Camões já havia praticado.” Em outras
palavras, Bocage traz com muito mais liberdade e visceralidade uma imagem feminina
que já havia sido explanada em camões de maneira velada.

Não aleatoriamente, alguns críticos frisaram perspectivas que visam desvalorizar


a produção erótica e satírica de Bocage no panorama da literatura portuguesa, isso
em razão do alto teor erótico desta, associada muitas vezes a um discurso
pornográfico que, segundo eles, não compensaria aprofundar-se. Considero, em
oposição a estas leituras preconceituosas e minimizadoras, que essa faceta libertina
é apenas mais uma das muitas vias pela qual ele se destacou. Além disso, o discurso
erótico bocagiano é também proveniente de um Camões que subverteu o
petrarquismo e o neoplatonismo vigentes, louvando, justo em seu poema épico, no
canto IX de Os lusíadas, nada menos que a orgia do amor na ilha de vênus, lugar
paradisíaco criado por vênus conjuntamente com seu filho Cupido e habitado por
ninfas que surgem como meio de recompensar os navegantes portugueses pelas
dificuldades experimentadas na viagem.

De u’a os cabelos de ouro o vento leva,


Correndo, e da outra as fraldas delicadas;
Acende-se o desejo, que se ceva
Nas alves carnes, súbito mostradas.
Ua de indústria cai, e já releva,
Com mostras mais macias que indinadas,
Que sobre ela, empecendo, também caia
Quem a seguiu pela arenosa praia.
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Outros, por outra parte, vão topar
Com as Deusas despidas, que se lavam;
Elas começam súbito a gritar,
Como que assalto tal não esperavam;
Uas, fingindo menos estimar
A vergonha que a força, se lançavam
Nuas por entre o mato, aos olhos dando
O que às mãos cobiçosas vão negando;
[...]
83 Oh, que famintos beijos na floresta,
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves! Que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na manhã e na sesta,
Que Vénus com prazeres inflamava,
Milhor é exprimentá-lo que julgá-lo;
Mas julgue-o quem não pode exprimentá-lo.

Nestes excertos do canto IX, Camões recorre ao erotismo ao descrever a cena,


utilizando-se de uma hipersensualização do corpo feminino, apelando também à
sinestesia para intensificar a sensação, quando os ventos vão descobrindo suas alvas
carnes e levando seus cabelos de ouro. A mulher aqui é representada por uma
entidade, que aparece como objeto de satisfação do desejo dos navegantes. A
perseguição que se dá, também traz traços obscenos, quando os portugueses
encontram as ninfas nuas em um ambiente paradisíaco, e passam, então, a caçá-las,
inicia-se um jogo erótico de sedução, até que por fim, as deusas aquáticas deixam-se
alcançar culminando na estrofe 83, que mostra a consumação entre beijos famintos e
gemidos. Nesta estrofe, revisitando o caráter épico do poema, Camões busca a
concretização do amor espiritual, embora aqui, ele subverta a leitura neoplatônica da
sublimação do desejo. Nesse caso o amor só pode ser alcançado por meio da figura
feminina e da realização do amor carnal, assim o Amor divino é o ponto de chegada
para o amor do corpo.

Bocage, leitor atento de Camões em seu soneto da amada gabada revisita o que
antes foi trazido por camões no seu épico:

Soneto da Amada Gabada

Se tu visses, Josino, a minha amada,


Havias de louvar o meu bom gosto;
Pois seu nevado, rubicundo rosto,
Às mais formosas não inveja nada:
Na sua boca Vénus faz morada:
Nos olhos Cupido as setas posto;
Nas mamas faz Lascívia o seu encosto,
Nela enfim tudo encanta, tudo agrada:
Se a Ásia visse coisa tão bonita
Talvez lhe levantasse algum pagode
A gente, que na foda se exercita!
Beleza mais completa haver não pode:
Pois mesmo o cono seu, quando palpita,
Parece estar dizendo: "Fode, fode!
É possível destacar em primeiro plano alguns elementos utilizados por Bocage
neste soneto que aproxima-o dos excertos do canto IX, aqui o sujeito poético expõe
numa referência ao poema de camões a figura da deusa Vênus, que na mitologia
romana é dada como exemplo impecável da aparência feminina, sugerindo assim a
perfeição da mulher amada. Entretanto essa perfeição ao que parece, atém-se apenas
ao físico denotando um caráter superficial à comparação. O discurso descritivo
completa-se com uma reprodução retratando uma visão objetificada do feminino, a
mulher aqui é descrita por detalhes do rosto, seios e vagina em tom de ostentação e
sob apetite sexual. É interessante notar a direção tomada pelo olhar do eu poético ao
descrever a mulher, a observação segue do alto para baixo começando com o rosto,
em seguida os seios e, conforme o olhar vai descendo, a linguagem erótica torna-se
mais explícita, ele neste soneto conhece livremente o corpo de sua amante e o
descreve diretamente para o amigo gabando-se de tal forma que coloca-a como o
objeto a ser invejado.
Simultaneamente, há muitas outras presenças femininas identificadas no contexto
da vasta obra Bocagiana, inclusive aquelas mais ligadas a um cânone clássico
assemelhando-se ainda a um Camões lírico amoroso, assim como postulado por
Rafael Santana:

“A poesia bocagiana certamente não está de todo alheia ao cânone do


neoclassicismo. A par de todo um conflito que estabelece com o culto à Razão
em prol da livre expressão dos sentimentos [...] Repito, a poesia de Bocage
não deixa de trazer, para junto desta reflexão intimista, o diálogo – quase
sempre presente – com a mitologia e a utilização de formas clássicas fixas e
padronizadas, tais como as Odes Pindáricas e as Odes Anacreônticas.”
(SANTANA; Rafael, 2013, p. 35).

Contudo, até nos poemas de hiperbólica exaltação de uma mulher idealizada, Bocage
não deixa de fazer referência a aspectos concretos do corpo feminino, por vezes com
alguma ousadia.
É inegável a magnificência dos versos muito bem escritos por Bocage e camões,
todavia no que diz respeito à figura feminina, fica claro que tentam, delinear uma
imagem de grandiosidade e de exótica beleza das suas amadas, num processo de
falso engrandecimento singularizado em suas literaturas por conceder uma dimensão
carnal às mulheres a quem o sujeito poético se dirige, tentando atribuir a elas
presenças acentuadas ao invés de meros adereços estáticos e sem pulsão individual.
No entanto essa visão levanta uma falsa bandeira libertária, pois o corpo, trazido na
lírica camoniana de forma velada, e na poesia erótica de Bocage escancaradamente
não significou maior liberdade da mulher para falar de si, mas o desejo dos homens
de representá-las de maneira polarizada, ou como simples objetos dos seus desejos
ou como uma entidade perfeita e sem defeitos. É irrefutável que nos dias atuais a voz
das mulheres pode estar sendo mais ouvida, contudo a figura feminina continua sendo
objetificada nas diversas mídias, o que mostra a realidade de uma sociedade moderna
que continua sendo feita de homens para homens. Tendo em vista toda essa
concepção, é impossível afirmar que esta poesia representou uma maior autonomia
feminina.

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