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UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO – UPE

Disciplina: Literatura portuguesa I


4º Período de Letras - Português e espanhol
Professora: Rafaella Teotônio
Aluna: Karoline Barbosa de Azevedo

A idade média foi um período da história europeia situado entre os séculos X e XV,
por muito tempo estereotipado como um período de escuridão (conhecido também
como “idade das trevas”) e pouco avanço no que se diz respeito às relações sociais.
A literatura, nesse enorme período da história, fundamentava-se na influência
religiosa. Com o início do trovadorismo – período sócio-histórico – em Portugal a partir
do século XII, as relações interpessoais da época são modificadas, emergindo assim
a necessidade de uma maior expressão literária.

O Amor Cortês (amour courtois) e as cantigas dos trovadores medievais acham-se


intimamente ligados através do trovadorismo, e ambos são efeitos e consequências
para uma nova forma de sensibilidade e para uma nova aptidão estética que
despontam com bastante intensidade entre esses séculos. Envolvidos neste amor
cortês, os nobres trovadores eram levados a demonstrar um enorme respeito e
docilidade perante a mulher.

Porém como questionado na obra “O amor e o ocidente” de Denis Rougemont,


como seria possível explicar essa mudança de visão tão repentina e completamente
contrária aos costumes tradicionais que eleva a mulher acima do homem e torna-a um
símbolo inalcançável? E ainda, como explicar a misteriosa coincidência espacial e
temporal dos primeiros focos do amor cortês com o desenvolvimento do Catarismo –
movimento herético que possuía uma visão de mundo fortemente dualista e
condenada pela Igreja Católica – Na obra, Denis traz-nos que é impossível acreditar
que estes dois movimentos, trovadorismo e catarismo, estejam isentos de ligação.

A cantiga abaixo, de Nuno Fernandes Torneol ilustra bem alguns elementos


importantes dessa visão.

Quer'eu a Deus rogar de coraçom,


com'home que é coitado d'amor,
que El me leixe veer mia senhor
mui ced'; e se m'El nom quiser oir,
logo lh'eu querrei outra rem pedir:
que me nom leixe no mundo viver!
E se m'El há de fazer algum bem,
oir-mi-á 'questo que Lh'eu rogarei
e mostrar-mi-á quanto bem no mund'hei.
E se mi o El nom quiser amostrar,
logo Lh'eu outra rem querrei rogar:
que me nom leixe no mundo viver!

E se m'El amostrar a mia senhor,


que am'eu mais ca o meu coraçom,
vedes o que Lhe rogarei entom:
que me dê seu bem, que m'é mui mester;
e rogá'-Lh'-ei que, se o nom fezer,
que me nom leixe no mundo viver!

E rogá'-Lh'-ei, se me bem há fazer,


que El me leixe viver em logar
u a veja e lhe possa falar,
por quanta coita me por ela deu;
senom, vedes que Lhe rogarei eu:
que me nom leixe no mundo viver!

Os versos de maestria cantados por Torneol trazem o eu-lírico pedindo a Deus para
ver a sua “senhor” em breve. E, se ele não o atender prefere a morte. Caso Deus
queira ser misericordioso e lhe ouvir, ele ainda pedirá que lhe seja favorável e deixe-
o viver próximo à ela, do contrário ele prefere morrer.

A priori se considerarmos a ideia difundida do “amor cortês” podemos ver no poema


traços característicos da vassalagem amorosa. Em decorrência do amor, é
despertado no eu-lírico um sentimento tão profundo e dilacerante que é preferível a
morte à este tormento de viver sem a sua amada, fonte e razão da sua lástima.
Entretanto, levando em conta o contexto histórico vivido pelo trovador, e considerando
toda a efervescência social e religiosa em torno da heresia, torna-se muito difícil ver
no poema apenas os traços do “amor cortês”, como categoria teórico-literária. Os
versos de Torneol, (provável cidadão do século XIII) ganham outras interpretações.
Portanto, se o Amor não for considerado apenas como um sentimento vago, doloroso
e incompreensível, é possível ver-lhe como uma entidade maior e mais poderosa: a
Dama dos Cátaros, a Igreja do Amor. Assim sendo, o tema da cantiga não trataria
apenas de mais um caso de vassalagem amorosa, mas de uma discreta homenagem
à Igreja dos cátaros, talvez em seus versos Torneol manifestasse a sua adesão ao
catarismo.

Neste sentido os versos se redimensionam e revelam traços de heresia. Dentro dos


parâmetros de ligação, o refrão “que me nom leixe no mundo viver!” pode expressar
que o amor idealizado e sublime dos cátaros só pode ser atingido com a morte, vista
como mais importante que a vida material manifestando assim a transcendência
espiritual do mundo de sofrimento. A oposição vida/morte e as relações entre ambas
no amor místico transparecem neste poema.

O alto teor simbolista, concentrado em significados mais atinados que estão


discretamente entalhados nas cantigas, demonstram uma medida de preservação à
um temor generalizado de ser acusado de heresia e sofrer os inquéritos da igreja
católica, isso produzia uma atmosfera de medo entre os poetas-cantores que de fato
estariam desafiando as ameaças reais do tempo. Talvez, por isso Torneol
manifestasse em seus versos – como exemplificado na cantiga aqui apresentada -
simpatia pela Igreja do Amor.

É inegável que o lirismo cortês tenha sido ao menos inspirado pelo aspecto da
heresia cátara. Pois, ao atentar-se para as produções trovadorescas com um olhar
mais analítico e minucioso é possível ver que elas aludem à sinais de respeito e de
adesão ao catarismo, indícios de culto à crença cátara. Os versos da cantiga “Quer'eu
a Deus rogar de coraçom” de Nuno Fernandes Torneol exemplifica uma pequena
reverberação dessas manifestações religiosas reprimidas. É impossível esquecer que
neste período da idade média sucedeu talvez algumas das mais importantes
transformações a caminho da modernidade.

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