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COMUNICAÇÕES

A IMAGEM DA DAMA: O ELOGIO À SENHOR NAS CANTIGAS


DE AMOR DE DOM DINIS

Ana Luiza Mendes


UFPR/NEMED
Doutoranda

RESUMO: Dom Dinis, além de rei também foi o trovador português do qual
preservaram-se o maior número de composições que se dividem entre as denominadas
cantigas de amor, amigo e escárnio e maldizer. No que diz respeito ao primeiro gênero
podemos destacar algumas temáticas abordadas pelo rei-trovador, dentre as quais
encontra-se o elogio à senhor, a qual pode ser relacionada com o enaltecer da dama
presente na literatura medieval através do ideal do amor cortês, por meio do qual o
homem se transforma no vassalo amoroso da dama. Tal concepção amorosa foi
transmitida pelos trovadores provençais considerados mestres na arte de trovar que
contribuíram para a disseminação de um ideal amoroso do qual utiliza-se Dom Dinis
que mostra, assim, ter conhecimento de uma tradição poética além da ibérica. Nesse
sentido, para a compreensão da imagem da dama nas cantigas de amor de Dom Dinis se
faz necessária a análise do próprio contexto peninsular que permitiu a existência de
trocas culturais que influenciaram a própria formação do rei, a sua obra e a sua
personificação como trovador e vassalo amoroso das damas portuguesas.

Palavras-chaves: Amor cortês, elogio à senhor, Dom Dinis

ABSTRACT: Dom Dinis, beyond king was also the Portuguese troubadour which were
preserved the largest number of compositions which are divided between the so-called
songs of love, friend and scorn and cursing. With regard to the first kind we highlight
some themes addressed by the king-troubadour, among which is the praise to the Lord,

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which can be related to the uplift of this lady in medieval literature through the ideal of
courtly love, for through which man becomes the loving lady's vassal. This loving
design was transmitted by Provencal troubadours considered masters in the art of trovar
that contributed to the spread of a romantic ideal which is used by Dinis showing thus
that he had knowledge of a poetic tradition beyond the Iberian region. In this sense, for
understanding the lady's image in the songs of love by Dom Dinis it is necessary to
analyze the peninsular context itself that allowed the existence of cultural exchanges
that have influenced the formation of the king, his work and his personification as
troubadour and loving vassal of the Portuguese ladies.

Keywords: Courtly love, praise to the senhor, Dom Dinis

Para nada serve cantar


se o canto não parte do fundo do coração
e, para que o canto venha do fundo do coração,
é necessário que aí dentro exista um verdadeiro amor.
E é por isso que minha poesia é perfeita,
pois para o gozo pleno do amor emprego
a boca, os olhos, o coração e a inteligência.
(SPINA, 1991: 133)

Este é um trecho de uma composição do trovador provençal Bernard de


Ventadour (c.1150-c.1200) que revela a relação existente entre o cantar e o amar. Para o
poeta, por excelência, do amor cortês (SPINA, 1991: 56), a prática trovadoresca é
legítima enquanto deixa transparecer a real situação do trovador que também é amante.
E é justamente por realmente amar que Ventadour diz que sua poesia é perfeita, pois ela
reflete o estado de sua alma.
De fato, é sabido que Ventadour amou. Uma dileta de seu coração foi Aliénor
d’Aquitaine (1124-1204), neta do primeiro trovador conhecido, Guilherme IX (1071-
1126), esposa de Luís VII de França (1120-1180) e, posteriormente, de Henrique II da
Inglaterra (1133-1189). Figura controversa. Do tipo de pessoa que se ama ou se odeia.
“Ela é a mais conhecida, a mais amada ou a mais detestada das rainhas medievais” (LE
GOFF, 2013: 179). Ventadour a amava. E, por isso, a cantava em suas composições.
Interessante analisar a relação existente entre o amor e os versos. Estes
conjugam-se dentro de uma norma estilística que surge no sul da França, na língua d’oc,
que codifica o que chamamos de amor cortês. É um gênero literário que se fundamenta
na retórica do amor-paixão, no sofrer por amor, isto porque a dama a qual se destina a
cantiga é inacessível. Inacessível porque é casada. E, geralmente, com o senhor. O

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senhor para o qual o trovador deve fidelidade, que nas canções se dirige à dama. O
trovador coloca-se como seu vassalo amoroso.
Percebe-se aqui uma confluência entre a realidade social vivenciada no período
em que as criações do amor cortês surgem. Há que se considerar que as criações
literárias usufruem de elementos do contexto social, cultural e político do qual
emergem, ainda que contenham certo grau de idealização. No caso do amor cortês a
idealização relaciona-se à imagem da mulher que é colocada num patamar superior no
discurso literário que se desenvolve num período que ocorre uma transformação na
concepção da figura feminina. É no século XII que se tem a propulsão do culto a Maria,
símbolo de mulher a ser seguido. Ela também simboliza a esperança na remissão dos
pecados femininos.
Como se vê, a concepção sobre a figura feminina é controversa, mesmo no
período em que alguns estudiosos visualizam uma transformação de comportamentos e
percepções sobre eles. A mulher ainda é considerada estéril se não gera filhos varões.
Foi o caso de Aliénor. Ela gerou duas filhas para Luís VII. Estéril. Rechaçada.
Renegada. Sim, pois, ainda que a mulher tenha ganhado mais espaço na sociedade
medieval a manutenção da hereditariedade ainda era mais importante. Além disso, “a
santidade da união conjugal se mede, com efeito, pela glória dos homens que são fruto
dela” (DUBY, 1989: 45). Com Henrique II, Aliénor teve três filhas e seis filhos. Filhos
que foram reis, como Ricardo Coração de Leão (1157-1199).
O casamento era um negócio. Social, político, econômico. Aliénor
provavelmente, assim como tantas outras mulheres, não se casou por amor. O amor era
o oposto do casamento. O amor estava na literatura que cria “elementos de um ritual que
codifica uma maneira nova de imaginar, fora do quadro conjugal, as relações afetivas
entre os dois sexos, e talvez as de viver” (DUBY, 2001: 115).
Talvez Ventadour realmente tenha amado como sugere sua cantiga. Talvez essa
mesma cantiga tenha sido dirigida a Aliénor. Não sabemos. O nome da amada não é
revelado. Regra do amor cortês que exige mesura e discrição. O amor cortês não ensina
apenas a amar, também ensina regras de cortesia, regras de comportamento, de
civilidade que distinguia o homem cortês do vulgar. Ou melhor, a forma como amar
está inserida nas regras de civilidade que distinguirão os nobres dos demais seres,

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através de um ideal estético e ético expresso num estilo de vida, num código de conduta
que expressa um modo de amar especificamente cortês.
Sobre a sinceridade do amor que afirma sentir também não podemos ter absoluta
certeza. Por conta da incerteza, a sinceridade do sentimento dos provençais já foi
questionada:

Proençaes soen mui bem trobar


e dizem eles que é com amor;
mais os que trobam no tempo da frol
e non em outro, sei eu bem que nom
am tam gram coita no seu coraçom
qual m’eu por mha senhor vejo levar.

Pero que trobam e saem loar


sas senhores o mais e o melhor
que eles podem, sõo sabedor
que os que trobamquand’ a frol sazom
a e, nom ante, se Deus mi perdom,
nom am tal coita qual eu ei sem parar.

Ca os que trobam e que s’alegrar


vame-no tempo que tem a color
afrolcomsigu’e tanto que se for
aquel tempo, logu’ em trobarrazom
nomam, nem vivem em qual perdiçom
oj’ eu vivo, que pois m’ a de matar.
(LANG, 2010: 228)

Nesta cantiga, Dom Dinis (1261-1325), reconhece a qualidade do trovar dos


provençais, porém, questiona se esse trovar provém de um sentimento sincero. Diante
disso podemos deduzir que o rei-trovador considera que o trovar se relaciona
intimamente com a sinceridade amorosa que intenta transmitir. Segundo o rei português,
os provençais amam somente no tempo da frol, ou seja, na primavera, o que significa
dizer que não amam verdadeiramente, pois o amor não tem estação, não é determinado
por ela.
Ora, Ventadour também é da mesma opinião. Na cantiga com que iniciamos
identificamos inclusive o reconhecimento da perfeição da sua composição pelo fato de
que ela foi inspirada por um sentimento verdadeiro. Como, então, podemos entender
esse questionamento de Dom Dinis? Primeiramente, devemos reconhecer o fato de que
Ventadour e Dinis são de séculos diferentes. Portanto, Dinis generaliza. Posiciona-se na
frente de todos os provençais. Questiona a arte trovadoresca provençal. Arte que lhe era
conhecida. Dinis foi educado para ser rei e para ser trovador, por isso conhecia as

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técnicas do trovadorismo provençal. Um dos elementos que identificava os trovadores
era justamente a educação artística. Esta educação lhes conferia o nome trovadores, daí
se explica o orgulho dessa denominação (SPINA, 1991: 75) e a afirmação perante aos
jograis e segréis1, seres diferentes do ponto de vista social e artístico.
Dinis, desse modo, construía sua retórica poética a partir do conhecimento do
“concorrente”. Estava familiarizado com as temáticas provençais em que a primavera e
a natureza florescente testemunhavam o amor cantado pelos trovadores do sul da
França.

O mais fecundo dos trovadores galego-portugueses procura pôr em evidência


a versatilidade dos poetas da França meridional, estabelecendo um paralelo
entre a arte de ocasião desses poetas e a poesia que parte realmente do
sofrimento amoroso que o poeta afirma possuir. Sofrimento que não depende
da vontade, mas que permanece em todo o tempo. (SPINA, 1991: 310).

Para Dinis, a testemunha do sentimento amoroso é a sinceridade. Sinceridade


que também é apregoada por Ventadour. Retóricas. O trovadorismo, além de revelar um
jogo de amor também transborda de uma oratória específica, pois é preciso convencer o
público que aquele amor é verdadeiro.
Dinis, portanto, está inserido nesse meio trovadoresco. Tem a educação, a
técnica, a retórica e a consciência de pertencimento a esse movimento. Também tem
consciência de que esse movimento é distinto. Tem consciência que há o trovadorismo
provençal e que há o trovadorismo ibérico. Sua retórica investe no trovadorismo que,
em certos aspectos, se distancia daquele de Ventadour. A começar pela língua utilizada.
Diferente da Provença e das cortes italianas, que continuaram utilizando a língua d’oc, a
língua poética de Portugal e Castela, é o galego-português.
O uso do galego-português pode ser compreendido também pelo viés político. O
trovadorismo galego-português encontra seu auge em Portugal no reinado de Dom Dinis
que, dando continuidade à prática de seu pai, Afonso III (1210-1279), promove ações
que visam a centralização política e a autonomia do reino português. Dinis obtém
sucesso no seu empreendimento, ainda que tenha que enfrentar alguns

1 Esse termo foi utilizado para designar, no século XIII, o jogral que além de executar também compunha
as cantigas, porém, não foi nesta acepção que o termo foi empregado pelos investigadores do assunto.
Além desses personagens do movimento trovadoresco também existiam as soldadeiras, dançarinas ou
cantoras que acompanhavam os jograis. Sobre esse assunto vide: LANCIANI, Giulia; TAVANI,
Giuseppe. Dicionário da literatura medieval galega e portuguesa. Lisboa: Caminho, 1993.

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descontentamentos internos por parte da nobreza, personificada na figura de seu irmão e
de seu filho. No campo externo é reconhecida sua autoridade política, uma vez que é
convocado a mediar conflitos entre Castela e Aragão. Também pode ser considerado um
eminente político quando, nos primórdios do seu reinado, mesmo sem muita
maleabilidade, resolve o conflito com a Igreja, herança do reinado de seu pai. Os
conflitos entre a coroa e a Igreja continuaram durante o seu reinado, mas não havia a
necessidade de recorrer a uma instituição externa para resolvê-los. Com Dinis, portanto,
o reino português faz as pazes com Roma, sai do interdito e adentra à comunidade cristã
novamente. Porém, ainda que fazendo parte da comunidade cristã era preciso se
diferenciar e a utilização da língua galego-portuguesa e do próprio português na
chancelaria mostravam que o reino português não era só mais um reino cristão. Era um
reino cristão, mas com uma identidade própria. Daí pode-se compreender o uso do
português em documentos oficiais, assim como a criação da universidade,

num período crucial da política régia de centralização do poder e do controle


do poder senhorial, laico como eclesiástico. É por isso natural que D. Dinis
promovesse uma instituição que lhe poderia fornecer indivíduos com
formação jurídica, mas fora dos círculos formativos habitualmente
controlados pelas instituições eclesiásticas. (PIZARRO, 2008: 179).

Percebe-se, portanto, que as ações de Dom Dinis, tanto no campo político quanto
no cultural unem-se em torno de um mesmo objetivo: a afirmação de uma identidade de
um reino que se percebe integrante de uma “comunidade”, seja ela cristã ou
trovadoresca, mas também se reconhece como distinto buscando, inclusive, se afirmar a
partir da diferença, como podemos observar na retórica poética de Dom Dinis. Na
cantiga anteriormente mencionada podemos identificar, como afirma Graça Videira
Lopes,

a defesa de uma diferença entre esses proençaes que soem mui bem trobar e o
eu que aqui canta – diferença cujo enunciado a adversativa “mas”, no
princípio do terceiro verso, introduz – o que, como também tem sido desde
sempre notado, não deixa de constituir uma interessante declaração de
autonomia da arte galego-portuguesa face aos modelos provençais admirados
(mesmo no que toca à cantiga de amor, como é o caso). Distinguindo entre
um eles e um nós, de que o trovador, mesmo se a título pessoal, se faz porta-
voz, D. Dinis parece postular claramente essa diferença. (LOPES, 2009: 3).

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Isto posto, podemos afirmar que Dom Dinis se reconhecia como integrante do
movimento trovadoresco de origem provençal, mas também se posicionava como capaz
de não se restringir a ele. Dessa forma, ele concebia as diferenças entre uma forma
poética e outra. E considerava a sua como melhor. Uma retórica poética que também se
faz política no contexto de sua ação centralizadora e de autonomia perante aos demais
reinos.
De fato, podemos identificar os elementos que aproximam a lírica galego-
portuguesa da provençal, assim como os que as separam. Neste último aspecto podemos
apontar uma transformação de gênero ocorrida na Península Ibérica. Essa transformação
diz respeito às cantigas de amigo que nos revelam uma voz feminina cantando o amor, a
alegria, a saudade ou a coita causados pela presença ou ausência do seu amigo. É neste
gênero, segundo Serrão, que Dinis se impôs como um dos maiores líricos da Idade
Média portuguesa. (SERRÃO, 1978: 239). A origem deste gênero ainda causa
questionamentos. É possível que sua gênese esteja relacionada com a presença árabe na
Península Ibérica que não foi exclusivamente motivo de luta. Interessante pensar que o
árabe já foi a “língua erudita e literária do Sul da Península, enquanto o Norte e os
cristãos conservaram o latim como língua escrita; porém a língua falada, ou romance,
devia facilitar as relações quotidianas e o comércio entre uns e outros”. (RUCQUOI,
1995:68).
Diante disso podemos reconhecer a intensa interrelação entre cristãos e
muçulmanos que possibilitou um rico trânsito cultural. Em termos poéticos, a cultura
andaluza foi responsável pela criação das jarchas, produzidas entre os séculos XI e XIII
em romance que se finalizam em breves estrofes, denominadas muwassaha. Tais
composições nos remetem ao universo feminino, sobretudo através da figura da mãe, o
que nos permite relacioná-las com as cantigas de amigo galego-portuguesas. Entretanto,
também é possível supor que a cultura árabe tenha tido contato com a cultura provençal.
Diante disso, torna-se difícil determinar com segurança a origem da influência dessas
variadas culturas. Perante a extrema mobilidade existente no período medieval é
possível afirmar que as variadas culturas e suas expressões entraram em contato com
outras. Assim, pode-se falar em uma contínua interação entre elas que culminou em
variadas formas de expressão dos sentimentos que também seria influenciada pelo
contexto social específico. “As origens do movimento lírico, que se define na Galiza e

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no norte de Portugal e tem Santiago de Compostela como seu centro produtor e de
irradiação, explicam-se pela influência simultânea destes jardins poéticos espalhados
pela Europa” (SPINA, 2006: 13), que proporcionou na Península Ibérica, segundo José
D’Assunção Barros, a formação de um tipo específico de rei, que sabe lidar com a
alteridade e com a diversidade. (BARROS, 2014: 38).
E, podemos dizer, que sabe se utilizar dessa diversidade como constituinte de
sua própria inspiração poética, como podemos observar nas cantigas de amor. Como já
mencionado, estas composições transmitem as regras do amor cortês: a submissão à
amada através da vassalagem amorosa; a promessa de honrar e servir a amada; desprezo
pelos intrigantes; o elogio à dama; a prática da mesura e a utilização do senhal, um
pseudônimo para não divulgar o nome da dama, isto porque, como vimos, era casada.
Estes preceitos também podem ser identificados nas cantigas de amor de Dom
Dinis, afinal ele é um conhecedor das normas do amor cortês. A cantiga em que ironiza
a poesia provençal também serve para indicar que ele tem consciência deste modo de
fazer poético. Assim, podemos identificar 12 cantigas de amor em que ele faz referência
à vassalagem amorosa e 25 em que faz elogio à dama. O elogio à dama é o segundo
tema profano mais recorrente nas suas cantigas de amor, perdendo apenas para o tema
da coita2 que aparece 38 vezes.
No tocante ao elogio à dama, que no contexto ibérico será a senhor, uma vez que
não havia o signo feminino desta palavra, ela será, assim como as diretrizes do amor
cortês, a mais fremosa de todas as mulheres. E é justamente por esse motivo que o
trovador lhe rende o seu amor e declara a sua coita por não ter esse amor correspondido.
A senhor também será amada por ter mesura, ou seja, delicadeza, cortesia. Tal
característica é cobrada, no amor cortês, ao amante. Ele deve tratar a dama com mesura.
Instigante pensar que em uma de suas cantigas, Dom Dinis reconhece o mesmo em sua
senhor:

Pois mha ventura tal é ja


que sodes tam poderosa
de mim, mha senhor fremosa,
por mesura que em vós a,
e por bem que vos estará,
pois de vós nom ei nenhum bem,
de vós amar nom vos pes em,
senhor. (LANG, 2010:235)

2 Dor, sofrimento.

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A mesura é, pois, um tema extremamente importante na construção da poética
cortês. Em outra cantiga, Dom Dinis brinca com este elemento, como se estivesse
atormentado por ter que cumprir a mesura e querer quebrá-la:

Vós mi defendestes, senhor,


que nunca vos dissesse rem
de quanto mal mi por vós vem;
mais fazede-me sabedor,
por Deus, senhor, a quem direi
quam muito mal eu ja levei
por vós, se nom a vós, senhor.
(LANG, 2011: 130)

Nesta cantiga, Dom Dinis confessa sofrer pela sua senhor e pergunta a quem
poderá contar sofre esse sofrimento. Segundo as regras da mesura ele não deve contar a
ninguém, pois ninguém deve saber a quem devota o seu amor. Assim, ele canta o seu
pesar na cantiga, para a sua amada. Dinis joga com os lugares-comuns do amor cortês,
afirmando que não há como se ter mesura sem um indício de desmesura (NOBRE,
2001: 56). É nessa perspectiva que também podemos analisar outra cantiga:

Preguntar-vos quero por Deus,


Senhor fremosa, que vos fez
mesurada e de bom prez,
que pecados foram os meus
que nunca tevestes por bem
de nunca mi fazerdes bem.

Pero sempre vos soub’ amar


dês aquel dia que vos vi,
e assi o quis Deus guisar
que nunca tevestes por bem
de nunca mi fazerdes bem.

Des que vos vi, sempr’o maior


bem que vos podia querer,
vos quiji a todo meu poder;
e pero quis nostro senhor
que nunca tevestes por bem
de nunca mi fazerdes bem.

Mais, senhor, a vida com bem


se cobraria bem por bem.
(LANG, 2011: 229)

À senhor, mesurada e de bom prez, ou seja, de boas qualidades e, portanto,


digna de ser amada, Dinis pede por um bem. Ele reclama que nunca, desde o momento

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em que viu sua senhor, momento a partir do qual passa a amá-la, ela quis lhe fazer o
bem. Este bem é uma recompensa pelo seu amor. A recompensa poderia ser um
presente, poderia ser um olhar, uma correspondência ao amor do trovador. Ou algo
mais. Sim, pois o amor cortês pregava certa continência, não a castidade. O amor cortês,
com todos os seus artifícios, dialoga com um sensualismo que pulsa sob a cobertura do
amor idealizado. (BARROS, 2007: 89)
A senhor de Dom Dinis é, assim como a dama dos provençais, idealizada, sem
correspondência na realidade. Talvez uma cantiga possa dizer o contrário:

Pois que vos Deus fez, mha senhor,


fazer do bem sempr’ o melhor,
e vós em fez tam sabedor,
unha verdade vos direi,
se mi valha nostro senhor:
erades bõa pera rei.

E pois sabedes entender


sempr’ o melhor e escolher,
verdade vos quero dizer,
senhor, que servh’ e servirei:
pois vos Deus atal foi fazer,
erades bõa pera rei.

E pois vos Deus nunca fez par


de bom sem nem de bem falar,
nem fará ja, a meu cuidar,
mha senhor, por quanto bem ei,
se o Deus quizesse guisar,
erades bõa pera rei.
(LANG, 2011: 204-205)

A senhor aqui cantada, assim como a das demais cantigas, não se compara a
nenhuma outra no mundo. Deus a fez sem par, tanto no julgamento quanto no falar.
Porém, nesta cantiga acrescenta-se mais uma característica extremamente interessante.
A senhor é tão perfeita que erades bõa pera rei. Ou seja, ela era perfeita para um rei.
Que senhor seria perfeita para o rei Dom Dinis? Sim, rei. Nesta cantiga não é somente a
voz do trovador que aparece. Dom Dinis não tira a coroa ao trovar. E, se a dama do
amor cortês é superior ao trovador, quem seria a dama superior ao trovador que é
superior a todos?
Para alguns estudiosos esta cantiga foi inspirada em Isabel de Aragão (1270-
1336), esposa de Dom Dinis, rainha culta e santa. Pode-se dizer que Isabel foi escolhida
a dedo. Um enlace com a filha do rei de Aragão traria inúmeras vantagens políticas. Ela,
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de fato, tinha muitos pretendentes, e o escolhido foi Dom Dinis, também um excelente
partido. Dessa forma, o casamento de Dinis e Isabel foi um bom negócio. Como deveria
ser um casamento no período medieval. Isabel era culta e uma rainha extremamente
ativa, auxiliando o reinado de Dom Dinis com suas habilidades diplomáticas com
Aragão e com seu próprio filho que se insurge contra o pai e com suas atividades de
caridade e assistência. É possível afirmar, então, que Isabel foi uma excelente rainha.
Além disso, cumpriu seu papel de mulher: deu um herdeiro a Dom Dinis, o futuro
Afonso IV, além de uma filha, Constança, que seria rainha de Castela.
Então, diante disso, poderíamos afirmar que a cantiga foi destinada a Isabel.
Podemos dizer que é possível. Isabel, de fato, era boa para rei. Era boa para ser rainha,
como o foi. Porém não há como comprovar. Além do mais, devemos lembrar que Dom
Dinis tinha amantes, ou barregãs para nos atermos ao termo da época. Os nomes de
algumas delas eram conhecidos e constam no Livro de Linhagens do conde Pedro de
Barcelos, um dos filhos bastardos do rei. Inclusive, um destes bastardos teria sido o
motivo pelo qual Afonso, o filho legítimo, se insurge contra o pai, por conta do poder
que o irmão, Afonso Sanches, estaria recebendo no comando do reino. Uma luta gerada
por ciúme. Mas um ciúme político. Afonso não fez nada mais que assegurar o seu trono.
Diante disso, fica a questão: quem era boa para rei? As regras do amor cortês
impedem Dinis de dizer. Ele nunca diria, pois ele é um trovador, de fato. E não o é
simplesmente por ter sido o mais profícuo trovador português, com 137 composições,
mas também pela sua qualidade e por promover “uma condensação, recapitulação e
síntese da tradição poética em que se formou e, ao mesmo tempo, uma espécie de
confronto criativo com os textos que ‘cita’ ou aos quais ‘alude’” (PIZARRO, 2008:
321).
Assim, ao fazer o elogio à senhor Dom Dinis faz um elogio ao trovadorismo
galego-português, a si e ao seu reino. Tanto ele quanto os provençais irão afirmar a
perfeição do seu fazer poético e cada qual quer que o seu seja o mais sincero. Através
do elogio à senhor que se mantém nos moldes do amor cortês e da pretensa vontade de
querer trovar como os provençais, como sugere a cantiga Quer’eu em maneyra de
proençal, o rei-trovador, na verdade faz um elogio ao seu reino. Utilizando-se da
emulação, que é um tipo de imitação, mas que se pretende diferente porque sua meta é
superar os provençais. E, para tanto, atualiza a recepção de forma consciente

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(GUIMARÃES, 2014: 58), ou seja, imitando ou se utilizando das técnicas provençais de
trovar ele estabelece o público em uma tradição poética que passa, então, a ser
compartilhada e transformada numa expressão de identidade.

REFERÊNCIAS
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XI ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOSMEDIEVAIS. IMAGENS E NARRATIVAS


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