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Negrão, E. V., & Viotti, E. (2011).

A ergativização do português brasileiro: Uma conversa continuada


com Carlos Franchi. In D. da Hora & E. V. Negrão (Eds.), Estudos da linguagem. Casamento entre
temas e perspectivas (pp. 37–61). João Pessoa, PA: Ideia Editora Universitária.


A ergativização do português brasileiro: uma
conversa continuada com Carlos Franchi
Esmeralda Vailati Negrão (USP-CNPq)
Evani Viotti (USP)

Prólogo

No início dos anos 1990, quando Carlos Franchi atuava como professor-
colaborador do Programa de Pós-Graduação em Semiótica e Linguística Geral da USP,
demos início a uma discussão sobre alguns fatos do português brasileiro, que nos
pareciam cada vez mais recorrentes, e que, a nosso ver, não estavam recebendo a análise
adequada. Tratava-se de construções como as seguintes, entre outras:

1. Dá umas nanicas enormes na minha chácara.


2. Tá gravando direito nesse gravador?
3. Tá fazendo aquele barulhinho esquisito no motor.

No artigo em que publicamos nossas reflexões sobre esses dados (Franchi,


Negrão & Viotti 1998), sugerimos que essas construções deveriam ser equiparadas às
construções existenciais, como a em 4:

4. Tem problemas sérios de trânsito em São Paulo.

Naquela época, começava a chamar nossa atenção o que nos parecia ser um
crescimento no uso de construções impessoais, que não se limitavam mais a aceitar
verbos que, em seu percurso histórico, haviam tido suas propriedades temáticas
atenuadas, como haver e ter; a impessoalização parecia estar se tornando um processo
produtivo no português brasileiro, de modo a atingir verbos transitivos de grande
agentividade, como dar, gravar, fazer, entre outros.
Essas conversas com Franchi alimentaram uma discussão sobre a estrutura da
sentença do português brasileiro, considerada língua voltada para o discurso, na tese de
livre-docência de Negrão (1999), e fundamentaram uma tese de doutoramento sobre as

1
sentenças existenciais do português brasileiro (Viotti 1999). Infelizmente, em 2001,
essa conversa tão frutífera foi interrompida pelo falecimento prematuro de Franchi.
Entretanto, mesmo sem a presença física de nosso querido amigo e professor, nós vimos
dando continuidade à nossa conversa com ele. Seus ensinamentos, seu profundo
conhecimento de teoria linguística e sua grande sensibilidade para os fatos da língua
continuam a nos orientar no avanço de nossa pesquisa individual e conjunta. Em alguns
trabalhos (Negrão e Viotti 2006, 2008, 2010, a sair), continuamos a perseguir as
construções impessoais do português brasileiro. Este artigo é mais um passo em nossa
busca pelo entendimento desse fenômeno, que nos parece ser tão distintivo de nossa
língua. E, no décimo aniversário da morte de Franchi, é uma singela homenagem a
quem tanto fez pela linguística no Brasil.

Introdução

Prototipicamente, consideram-se construções impessoais aquelas que não têm


sujeito com conteúdo semântico1. Destacam-se, em uma língua como o português,
aquelas que expressam condições metereológicas, como as entre 5 e 7, e as sentenças
existenciais, de vários tipos, como as entre 8 e 10:

5. Choveu demais em Minas Gerais no começo deste ano.


6. Tem ventado forte em São Paulo.
7. Faz um calor de matar em João Pessoa.
8. Vai ter um congresso importante sobre esse assunto no ano que vem.
9. Havia problemas nos semáfaros daquele cruzamento.
10. Faz/tem muitos anos que a gente estuda as sentenças impessoais.

Como observamos em Franchi, Negrão e Viotti (1998), algumas dessas


construções—as sentenças existenciais, mais especificamente—têm sido analisadas em
conjunto com construções feitas a partir de verbos monoargumentais do tipo ergativo2,

1
Várias línguas, como o inglês, o alemão, o francês, entre outras, exigem a presença de um sujeito
foneticamente realizado em suas sentenças, inclusive em suas construções impessoais. Assume-se, de
maneira geral, que esses sujeitos não têm conteúdo semântico. Eles são chamados expletivos. Assim, em
inglês, por exemplo, tem-se It rains para Chove, e There is a book on the table, para Tem um livro sobre
a mesa.
2
A teoria sintática tem distinguido dois tipos de verbos monoargumentais: os ergativos e os inergativos
(ou intransitivos). Verbos ergativos se distinguem dos inergativos porque seu único argumento se
2
em que o único argumento do verbo aparece posposto a ele, como nas sentenças
abaixo3:

11. Aconteceu um acidente horrível na Marginal Pinheiros hoje cedo.


12. Apareceu uma pinta nas minhas costas que tá me preocupando.
13. Eu nem bem acordo e já vem um montão de coisa diante de mim pra eu
resolver.
14. Chega um ponto na carreira, em que o acúmulo de serviço é tal que a
gente não aguenta.
15. Nesse caso em discussão, vai só uma questão de opinião.

Com efeito, a equiparação das sentenças entre 8 e10, de um lado, àquelas entre
11 e 15, de outro, tem alguma razão de ser. De um ponto de vista sintático, ambos os
grupos de sentença são construídos com verbos monoargumentais, cujo único
argumento aparece em posição pós-verbal. De um ponto de vista discursivo, os dois
tipos de construção exercem uma função que tem sido chamada apresentacional, ou
seja, trata-se de construções que introduzem novos referentes no discurso, ou destacam
um referente já mencionado no discurso precedente para imprimir-lhe relevância no
discurso subsequente.
Entretanto, como argumentado em Franchi, Negrão e Viotti, e mais
detalhadamente em Viotti (1999), apesar dessas semelhanças aparentes, existe uma
diferença substancial entre os dois tipos de construção, e essa diferença está associada
às características predicativas do verbo. De um lado, os verbos ergativos são verbos
semanticamente plenos, que têm um único argumento interno ao qual atribuem o papel
semântico tema. Pela própria semântica dos verbos4 é comum eles virem
acompanhados de uma expressão designativa de lugar ou tempo.
De outro, os verbos que constroem sentenças existenciais são verbos que
historicamente selecionavam dois argumentos. Com o tempo, eles foram perdendo

aproxima, por suas características sintático-semânticas, dos objetos diretos dos verbos transitivos,
enquanto que o único argumento dos inergativos exibe características sintático-semânticas próprias dos
sujeitos dos verbos transitivos. Para evidências dessa distinção, ver, especialmente, os trabalhos de
Perlmutter (1978) e Burzio (1981).
3
Alguns destes exemplos são baseados em dados reais colhidos do corpus do Projeto NURC, que podem
ser encontrados em Franchi, Negrão e Viotti (1998).
4
Esses verbos ergativos são conhecidos informalmente como verbos de ‘entrada em cena’, justamente
porque designam o aparecimento, chegada, vinda, saída de algum referente na cena do discurso.
3
transitividade (no sentido de Hopper & Thompson 1980), à medida que passaram a
admitir, como argumento externo, referentes de natureza semântica variada, inclusive
aqueles designativos de lugar e tempo. Observem-se os exemplos com o verbo havere,
no latim5:

16. Quot caelum stellas, tot habet tua Roma puellas.


quantas céu (N) estrelas(Ac) tantas tem tua Roma (N) meninas (Ac)
Tua Roma tem tantas meninas quantas estrelas [tem] o céu.

17. Terra mater... omnia bona in se habet tanquam favus.


a terra-mãe (N) todas as coisas boas (Ac) em si tem tal qual favo (N)
A terra-mãe tem em si todas as coisas boas, tal qual um favo.

18. Postquam coepi plus habere quam tota patria mea habet...
depois comecei mais ter que toda pátria minha (N) tem.
Passei depois a ter mais do que tem o meu país.

19. ...nunc templum est. Habet quattuor cenationes, cubicula viginti...


..agora templo (N) é tem 4 salas de jantar (Ac) 20 quartos (Ac)
...agora é um templo. Tem quatro salas de jantar, vinte quartos...

Assim é com o verbo ter até hoje6:

20. Europa tem surto de sarampo.


21. O Japão tem nove ecorregiões florestais que refletem o clima e a
geografia das ilhas.
22. São Paulo tem 410 hotéis e 42 mil apartamentos disponíveis.
23. São Paulo tem lentidão acima da média na volta do feriado da Páscoa.
24. Brasil tem uma das maiores reservas de terras raras do planeta.
25. Ano de 2010 teve recorde de derretimento na Groenlândia.
26. Mês de março teve pouca chuva em São Miguel do Tapuio.
27. Maio teve o maior índice de contas atrasadas no comércio.
28. Temporada de verão teve mais de 2,5 milhões de turistas no litoral do
PR.

5
Agradecemos os exemplos do latim a Ivan Pasta Zanni. A sentença 16 foi tirada de Ovidius, Ars
Amatoria. Livro I, verso 59; as sentenças 17, 18 e 19 foram respectivamente tiradas de Petronius,
Satyricon § 39, 76 e 77.
6
Os exemplos a seguir foram retirados de diversos sítios da web.
4
Essas sentenças evidenciam uma estrutura argumental para o verbo ter em que o
argumento externo é um locativo e o argumento interno é um tema. A sugestão feita
por Franchi, Negrão e Viotti (1998) e explorada em Viotti (1999) foi a de que a rede
temática dos verbos presentes nas sentenças entre 20 e 28, em que o papel de locativo é
hierarquicamente mais baixo que o de tema, possibilitou o surgimento de uma
construção em que o argumento locativo se realiza em uma posição periférica
codificado por um sintagma preposicionado, deixando a posição de sujeito vazia7:

29. Teve jantar de adesões de simpatizantes do PDT no Rio.


30. Teve 55 indiciados no inquérito administrativo da CVM.
31. Teve aqueles incêndios em 69 em São Paulo.
32. Tinha pedra portuguesa em todo lugar, mais do que em Lisboa.
33. Tinha que ter alguém do PMDB aí.

Dados históricos dão suporte a essa hipótese. Depois de ter sido usado para a
expressão de posse durante muitos séculos, o verbo haver, no século XIV, aparecia em
construções existenciais sem sujeito. Crucialmente, muitas das sentenças impessoais
em que o verbo haver aparecia apresentavam o clítico locativo hy/hi (exemplos 34 a
36), dando pistas de que esse tipo de construção tenha seguido o percurso diacrônico
que sugerimos acima. No século XVI, começam a aparecer as primeiras sentenças
existenciais sem sujeito construídas com o verbo ter, também sempre acompanhadas de
um sintagma locativo (exemplos 37 a 40). A nosso ver, o fato de esses terem sido os
primeiros contextos em que se atesta a presença do verbo ter existencial corrobora nossa
hipótese sobre a origem das construções impessoais.8

34. Hum dos nobres que hy ha ca este aiuda os dous...AX 120.5

7
Os exemplos foram retirados do corpus NILC-São Carlos <
http://www.linguateca.pt/acesso/corpus.php?corpus=SAOCARLOS>. Acesso em 23/06/2011.
88
Kato e Duarte (2008) têm sugerido que sentenças com o verbo ter que exibem um sintagma de
semântica locativa/temporal na posição de sujeito, como nos nossos exemplos 20 a 28, se originam de
sentenças existenciais sem sujeito, num percurso inverso ao que vimos assumindo desde 1998. Para as
autoras, sentenças como as entre 20 e 28 são consideradas evidência de que o português brasileiro tem
preferido preencher sua posição de sujeito. Segundo essa hipótese, sentenças existenciais com ter, que,
canonicamente, se caracterizam por uma posição de sujeito vazia, estão apresentando uma tendência ao
preenchimento dessa posição. O sintagma locativo/temporal seria o candidato natural a esse
preenchimento. A nosso ver, as evidências do percurso diacrônico dos verbos haver e ter não corroboram
essa hipótese.
5
35. Avya hi hua donzella muy fremosa. CGE 93.12/13
36. Ouve hy muitos mortos e feridos. CGE 94.17
37. Antre esta coroa darea e esta ilha tem canal pera poder sahir. MNS
314.2
38. Dentro tem um ylheo emcostado ao lado de leste. MNS 324.6
39. Para cima tendo dous bons canais hum aloeste e outro ao leste. MNS
324.9
40. Na sua ponta da banda do sua tem hua terra alta. MNS 326.19

O mesmo tipo de mudança de estrutura parece estar ocorrendo modernamente no


português brasileiro, com construções como as listadas entre 1 e 3, acima. Trata-se de
sentenças construídas com verbos prototipicamente transitivos (dar, gravar, fazer), que
têm seu argumento externo realizado perifericamente como um sintagma
preposicionado, deixando a posição de sujeito vazia, e dando à construção uma
semântica de impessoalidade. Ou seja, a partir de sentenças como 41 a 43, chegamos
construções impessoais como as entre 1 e 3, em um percurso semelhante ao atestado na
história das construções existenciais.

41. A minha chácara dá umas nanicas enormes.


42. Esse gravador tá gravando direito?
43. O motor tá fazendo aquele barulhinho esquisito.

Tendo essa orientação como pano-de-fundo, demos início à descrição de um


outro tipo de construção do português brasileiro que tem chamado nossa atenção, e que
nos parece estar associada ao fenômeno da impessoalização que discutimos em Franchi,
Negrão e Viotti (1998). Trata-se de sentenças como as abaixo, que não só não são
possíveis em português europeu, mas que chegam a ser de difícil compreensão para
falantes daquela língua9:

44. Eu só vou trocar o carpete depois que a casa acabar de pintar.


45. Não adianta correr, que esse trem já perdeu.
46. O programa que eu queria não instalou.
47. O xerox fica fazendo enquanto a gente vai almoçar.
48. Se eu tivesse mandado este trabalho pro congresso, eles tinham me
posto na mesa em que esse assunto tava tratando.
49. O Luiz Omar nunca rezou tanto pra um saque errar como nesse ponto.

9
Para análises que já vêm chamando a atenção para fatos como estes, ver Galves (2001).
6
50. Meu jardim destruiu todo com a reforma.
51. Este prédio tá construindo desde que a casa do vovô vendeu.
52. Esse livro tem na biblioteca da USP.
53. Não tem nenhum caso de concurso que anulou por causa do mérito.
54. Ela ficou com tanto medo, que o sanduíche nem engoliu.

Nós temos chamado sentenças como essas construções absolutas, seguindo


Langacker (1991). Elas nos parecem constituir um passo que vai além daquele que
propusemos para a impessoalização. Ou seja, depois que passou a ser possível o
esvaziamento da posição de sujeito com a detematização dos argumentos externos de
verbos transitivos, uma nova re-estruturação da sentença foi liberada: aquela em que o
argumento tema, prototipicamente realizado na posição de complemento do verbo,
passou a ser realizado na posição de sujeito. É desse processo que tratamos neste artigo.
Curiosamente, esse processo parece estar aproximando o português brasileiro de línguas
do sistema ergativo-absolutivo, como deve ficar claro nas seções seguintes. Por esse
motivo, vamos considerá-lo um processo de ergativização do português brasileiro.

As funções de sujeito e objeto

Os processos de impessoalização e ergativização que começamos a discutir na


seção anterior envolvem, de um lado, o sujeito das sentenças, e, de outro, seu objeto.
Para entender esses processos, então, parece-nos necessário buscar uma caracterização
para essas funções gramaticais e ver o que possibilita que os sintagmas nominais que
denotam os participantes de um evento exerçam uma ou outra dessas funções.
Apesar de as noções de sujeito e objeto virem sendo discutidas por todas as
teorias da gramática desde tempos imemoriais, sua definição, como bem aponta
Langacker (2008: 363), está longe de ser consensual, tanto quanto seu estatuto de
universalidade.
De maneira geral, a definição de sujeitos e objetos está atrelada a critérios de
natureza semântica, de natureza informacional, de natureza gramatical, ou a uma
combinação de todos esses critérios. Entretanto, quando, independentemente de quais
sejam os critérios escolhidos, se assume uma posição categórica, como ocorre no
âmbito das teorias da gramática mais conhecidas, a questão se complica, na medida em
que é muito difícil fazer-se uma caracterização que se mostre empiricamente adequada
aos fatos das variadas línguas do mundo.
7
Assim, por exemplo, a definição categórica de sujeito ou objeto por sua
associação a determinados papéis semânticos torna-se vácua pelo fato de que
praticamente todos os papéis semânticos podem estar associados a uma ou outra função.
Exemplificando com a função de sujeito, em 55 e 56, o sintagma nominal o menino tem
papel de agente; em 57, o menino tem papel de experienciador; em 58, o sintagma
nominal a bola tem papel semântico de paciente; em 59, seu papel é o de movente; e,
em 60 e 61, seu papel semântico é zero.10

55. O menino quebrou a vidraça.


56. O menino chutou a bola pra fora do campo.
57. O menino ama sua vizinha.
58. A vidraça foi quebrada pelo menino.
59. A bola foi pra fora do campo.
60. A bola está fora do campo.
61. A bola tem um furo.

Da mesma forma que o sujeito, o objeto pode ser um paciente, como em 55;
pode ser um movente, como em 56; pode ser um experienciador, como em 57; e pode
ser um zero, como em 61.
Como se vê, não existe um único papel semântico que consistentemente possa
caracterizar o sujeito ou o objeto de uma sentença em português. O que se pode dizer é
que existe uma tendência para que sujeitos correspondam a participantes agentivos, e
uma tendência para que objetos correspondam a participantes de natureza temática, mas
essas correspondências não podem ser tomadas como categóricas e definidoras.
O mesmo pode-se dizer da caracterização de sujeitos em termos das relações
informacionais estabelecidas em uma dada sentença. Nesse sentido, é comum afirmar-
se que o sujeito é o tópico de uma sentença, o participante de que se fala, a informação
velha. Sem querer entrar na complexa discussão sobre o que é efetivamente a estrutura

10
Estamos assumindo, seguindo Langacker (1991: 288), que os papeis semânticos que caracterizam o
pólo oposto ao da agentividade são: zero (conceitualmente mínimo e não-distintivo); movente (do inglês
mover; aquele participante que muda de posição em relação); paciente (papel característico do
participante que sofre uma mudança interna de estado); e experienciador (o participante que passa por um
processo mental—ideias, percepções, emoções, etc.). Tema é o termo esquemático que subsume todos
esses papéis, quando associado a um constituinte autônomo em uma conceitualização de evento feita a
partir do eixo de autonomia-dependência. Voltaremos a falar dessa questão mais adiante.
8
informacional de uma sentença, e como caracterizar cada um de seus elementos
(tópico/foco; tema/rema; etc.), vemos que, embora possa existir uma tendência para que
sujeitos sejam tópicos, nem sempre esse é o caso. Considere-se o seguinte par de
sentenças:

62. Cerca de 10 mil pessoas andam no parque todos os dias.


63. No parque, andam cerca de 10 mil pessoas todos os dias.

Em 62, pode-se dizer que o sujeito cerca de 10 mil pessoas é o tópico da


sentença: é desse assunto que se fala. Mas, em 63, o constituinte que tem características
gramaticais de sujeito (concorda com o verbo), não parece ser tópico: não se está
falando propriamente de cerca de 10 mil pessoas, mas, sim, de um evento de andar no
parque.
A fragilidade da caracterização gramatical da noção de sujeito em termos
categóricos também não é difícil de ser demonstrada. Fundamentalmente, em uma
língua como o português brasileiro, o sujeito é gramaticalmente definido como o
constituinte que aparece em posição pré-verbal com o qual o verbo concorda. Em 63
acima, o verbo concorda com o constituinte cerca de 10 mil pessoas, que, no entanto,
está em posição pós-verbal. E o que dizer dos verbos monoargumentais do tipo
ergativo, cujo único argumento parece ter características tanto de objeto quanto de
sujeito? No que diz respeito à posição desse único argumento, ele pode tanto aparecer
em posição pré quanto pós-verbal, e, quando em posição pós-verbal, pode não disparar a
concordância com o verbo:

64. Todos os convidados já chegaram.


65. Já chegaram todos os convidados.
66. Já chegou todos os convidados.

Langacker (1987; 1991; 2008) propõe encarar a caracterização de sujeito e


objeto por uma perspectiva diferente. Para o autor, papéis semânticos arquetípicos,
como agente e paciente, funcionam bem como protótipos, mas são muito específicos
para caracterizar todas as instâncias de sujeito e objeto. Sua sugestão é a de que, para
capturar o nível de abstração de relações como as de sujeito e objeto, devemos nos valer
de uma habilidade cognitiva básica, que é o foco de atenção. Ou seja, a caracterização
das funções de sujeito e objeto deve ser feita a partir de nossa habilidade cognitiva de
focalizar mais nossa atenção em um aspecto de um evento, em detrimento de outro.

9
Enquanto os papéis semânticos são inerentes à estrutura do evento que está sendo
codificado linguisticamente, a proeminência focal é extrínseca: o conceitualizador
direciona sua atenção (e a de seu interlocutor) a um dos participantes do evento.
Cognitivamente, é muito difícil visualizar e conceber um evento complexo de maneira
global e totalmente equilibrada. A atenção tem que se concentrar em algumas partes
mais do que em outras. Sendo assim, para um mesmo evento complexo, são possíveis
diferentes combinações de direcionamento de atenção.
Partindo da ideia de que o verbo denota um evento, ou seja, uma relação entre
participantes, para Langacker o sujeito é o sintagma nominal que codifica o participante
para o qual nós, enquanto conceitualizadores, prioritariamente escolhemos voltar nossa
atenção. Ou seja, o sujeito é o constituinte ao qual atribuímos uma proeminência focal
primária; o objeto, por outro lado, é o sintagma nominal que codifica o participante que
constitui o segundo foco de nossa atenção, tendo, assim, a proeminência focal
secundária.11 O comportamento gramatical de sujeitos e objetos (ordem na sentença;
concordância; tipo de marcação de caso morfológico) são, para Langacker, sintomas do
fato de que seus referentes receberem maior ou menor proeminência focal. Embora
translinguisticamente exista uma grande variabilidade das marcas gramaticais de sujeito
e objeto, a caracterização dessas funções em termos de proeminência focal parece se
aplicar universalmente.
As construções do português brasileiro apresentadas na seção anterior envolvem
diferentes possibilidades de codificação de participantes de um evento. Como
observamos acima, construções como as sentenças entre 44 e 54, apresentam o
participante do evento que tem um papel semântico tema na posição de sujeito. Isso

11
Langacker (1987, 1991, 2008) chama essa relação entre focos de atenção de alinhamento trajetor-
marco. Para o autor, esse alinhamento é estabelecido independentemente das noções de sujeito e objeto,
sendo um aspecto geral da construção do significado linguístico. Algumas expressões denotam a mesma
relação, mas podem ter significados diferentes dependendo das escolhas de seus trajetores ou marcos.
Comparem-se, por exemplo, sentenças como A Ana é irmã da Bia e A Bia é irmã da Ana. As duas
sentenças denotam a mesma relação, mas, na primeira, Ana é o participante sobre o qual recai nossa
atenção primária, enquanto Bia é o participante ao qual prestamos atenção secundariamente; na segunda
sentença, a focalização da atenção se inverte: prioritariamente focalizamos Bia, para deixar Ana como um
foco secundário. O mesmo ocorre com pares de preposição ou locuções preposicionais, como, por
exemplo, sobre/sob ou em cima de/embaixo de: o dicionário em cima do livro versus o livro embaixo do
dicionário.
10
indica que é esse participante que está recebendo o foco de atenção.
Em princípio, não há nada surpreendente no fato de o argumento tema ser o
participante com proeminência primária. Afinal, como bem ressalta Langacker, a
proeminência não é inerente ao papel que um determinado participante desempenha
num evento; ela é atribuída pelo conceitualizador, e pode recair, teoricamente, sobre
qualquer um dos participantes. Mas as línguas têm certas formas canônicas para
expressar a proeminência de um tipo ou outro de participante. No caso do português, a
sentença na forma ativa é a forma canônica para expressar a proeminência do agente; e
a construção passiva é a forma canônica para codificação da proeminência do tema. O
que surpreende nos fatos do português brasileiro sob análise é que, para expressar a
proeminência do tema, a passiva foi preterida em favor de (coexiste com) uma
construção com o verbo na forma ativa. Para entender os motivos pelos quais essas
construções chamam nossa atenção, é preciso entender os modelos conceituais que estão
por trás da conceitualização de eventos e suas formas de codificação em termos de
estruturação da sentença. Vamos a isso.

Dois modelos-padrão para a conceitualização de eventos

Estamos assumindo, com base em Langacker (1987, 1991, 2008), que tanto
quanto a caracterização das relações de sujeito e objeto, a própria conceitualização dos
eventos tem por base modelos cognitivos. Para Langacker, dois são os modelos
cognitivos prioritariamente envolvidos na conceitualização dos eventos. O primeiro,
chamado modelo da bola de bilhar (ou modelo da cadeia de ação), nos conduz a
conceitualizar eventos a partir da fonte de energia que deu início ao evento. Essa
energia é transmitida a outros participantes do evento até afetar um deles, formando,
assim, uma cadeia de ação que pode ser diagramaticamente representada da seguinte
maneira:

a
A
A
Nesse diagrama, cada círculo representa uma entidade participante de um evento
energético. O primeiro desses participantes (o círculo da extrema esquerda, chamado

11
núcleo) entra em contato com o segundo participante, causando uma transferência de
energia. A transferência de energia é representada pela seta dupla. Esse segundo
participante entre em contato com o terceiro, e assim sucessivamente, até a energia se
esgotar, afetando o último participante (chamado cauda). Como observa Langacker
(1991: 285), a cadeia de ação mais simples é aquela em que um núcleo de energia
interage com a cauda, sem que, necessariamente, haja participantes intermediários entre
os dois, como em 67:

67. O menino quebrou a janela.

Nessa sentença, o constituinte o menino codifica o participante núcleo da cadeia


de ação: a fonte de energia; e o constituinte a janela codifica o último participante
afetado pela ação, a cauda. Em 68, temos a expressão de uma cadeia de ação mais
elaborada, em que aparecem codificados três participantes da cadeia de ação: o núcleo,
a cauda, e um participante intermediário que ajuda na transmissão de energia do núcleo
para a cauda. Trata-se do instrumento (com uma pedra), que é, em geral, um objeto
físico manipulado pelo agente para afetar o paciente:

68. O menino quebrou a janela com uma pedra.

Uma sentença como 67 codifica parte do que Langacker chama modelo de


evento canônico, que corresponde a uma ação prototípica. Nesse protótipo, o núcleo da
cadeia de ação é caracterizado por um agente, e sua cauda é um paciente que sofre uma
mudança de estado. O modelo de evento canônico pode ser parcialmente diagramado
da seguinte maneira:

AG PAC

O segundo modelo cognitivo com base no qual conceitualizamos eventos


chama-se alinhamento de autonomia e dependência. Langacker observa que esse
alinhamento de autonomia e dependência é uma característica central da linguagem
humana. Ele se revela na fonologia, na morfossintaxe e na semântica. Na fonologia,
por exemplo, vogais são autônomas em relação às consoantes que com ela formam uma

12
sílaba; por isso, são consideradas o núcleo das sílabas. Na morfologia, o mesmo se
verifica: raízes são consideradas autônomas em relação aos afixos que se prendem a
elas. No que diz respeito à semântica e à sintaxe, o alinhamento de autonomia e
dependência que subjaz à conceitualização de eventos é crucial para a estruturação
sintática das sentenças.
Já de início, Langacker aponta que eventos são dependentes de seus
participantes. Não há como conceitualizar um evento de quebrar, por exemplo, sem
que façamos algum tipo de referência mental, ainda que altamente abstrata, a uma
entidade causadora da quebra e uma entidade quebrada. Participantes de eventos, por
outro lado, são autônomos, na medida em que podem ser conceitualizados
independentemente dos eventos dos quais eles possam vir a participar.
Mas há ainda um segundo tipo de alinhamento de autonomia e dependência, que
diz respeito à estrutura interna dos eventos. Da década de 1990 para cá, vários autores
têm apontado a necessidade de se estabelecer uma distinção mais refinada da estrutura
interna dos eventos para que se possa dar conta de vários fenômenos linguísticos,
especialmente aqueles relativos à estruturação temática e aspectual das sentenças.12 Essa
estruturação interna dos eventos corresponde à possibilidade de conceitualizarmos
separadamente os subeventos que constituem um evento complexo. Langacker (1991)
exemplifica essa possibilidade dizendo que a explosão de um balão pode ser analisada
como envolvendo os seguintes subeventos: a liberação do ar sob pressão; a emissão de
um som de explosão; e uma mudança drástica e repentina na membrana de borracha do
balão. Crucialmente, em alguns casos, é possível conceitualizar um subevento
independentemente dos demais. No caso da explosão do balão, por exemplo, é possível
pensarmos na mudança na forma da membrana do balão, sem necessariamente termos
que conceitualizar o barulho de explosão que antecedeu essa mudança de forma. Nesse
caso, estamos, então, diante de um subcomponente do evento que é conceitualmente
autônomo em relação aos demais.
Mas Langacker observa que nem todos os subeventos são autônomos. O
controle, por exemplo, é dependente, na medida em que implica a necessidade de uma
ação sob seu exercício. Isso se reflete na estrutura linguística. Consideremos o evento
complexo, expresso pela sentença 69:

69. A ventania fez as folhas caírem.

12
Ver, entre outros, Parsons (1994) e Pustejovsky (1995).
13
O constituinte a ventania está associado ao subevento relativo à força energética
causadora da queda das folhas. Trata-se de um subevento de controle. Ora, se é assim,
algo tem que necessariamente estar sob esse controle. O subevento de controle é, então,
inerentemente dependente de um outro subevento que, no caso da sentença 69, está
associado ao constituinte as folhas caírem. Sendo dependente, o subevento de controle
não pode ser expresso sozinho, como mostra o exemplo 70.

70. *A ventania fez.

Por outro lado, o subevento relacionado à mudança de estado, ou seja, o


subevento correspondente ao resultado do exercício de uma força energética, esse sim
pode ser conceitualizado autonomamente. Por isso, ele pode ser codificado sozinho, em
uma sentença como a seguinte:

71. As folhas caíram.

De maneira análoga à estruturação silábica, em que, a um núcleo autônomo (a


vogal), podem se agregar participantes dependentes (as consoantes), a conceitualização
de eventos feita com base no alinhamento de autonomia e dependência se organiza em
torno de um subevento nuclear autônomo, ao qual podem se agregar outros subeventos
dependentes. Langacker chama esse subevento-núcleo relação temática, porque ele se
associa a participantes com papel semântico tema. Como visto anteriormente13, a noção
de tema engloba esquematicamente qualquer um dos papéis semânticos não-energéticos
que podem estar associados a um subevento autônomo.
O tipo mais básico de relação temática é aquele em que um participante
simplesmente exibe uma propriedade ou ocupa um determinado lugar. Nesse caso, seu
papel semântico é zero, como nas sentenças abaixo:

72. A parede é verde.


73. O cachorro tá no quintal.

Mas existem relações temáticas que envolvem um movente, como em 74; um


experienciador, como em 75; e um paciente, como em 76. Em todos esses casos, a
moção, a experiência mental ou sentiente, e a mudança de estado são conceitualizadas
como autônomos em relação à força energética que lhes deu origem.

13
Ver nota de rodapé 10.
14
74. O João escorregou.
75. A Ana tá sofrendo.
76. O vidro quebrou.

Para Langacker, relações temáticas que ocorrem independentemente como um


todo conceitual em que não se distinguem subpartes (como nos exemplos entre 72 e 76)
são consideradas instâncias de uma conceitualização que ele chama de absoluta. Por
isso, nós estamos chamando as construções que codificam esse construal de construções
absolutas.

A conceitualização de eventos e a caracterização das línguas naturais

Todas as línguas naturais se valem dos dois modelos de conceitualização de


eventos apresentados acima. Os exemplos do português fornecidos para ilustrar a
caracterização dos dois modelos conceituais revelam isso. Algumas de suas estruturas
sintáticas codificam uma conceitualização de eventos fundamentada no modelo de
cadeia de ação, e outras codificam uma conceitualização absoluta, baseada no
alinhamento de autonomia e dependência. Entretanto, algumas línguas parecem preferir
conceitualizações baseadas no modelo da cadeia de ação, enquanto outras parecem
preferir se organizar em torno do alinhamento de autonomia e dependência. E, segundo
Langacker, o sistema de marcação de caso morfológico nos dá pistas dessas
preferências: as línguas do sistema nominativo-acusativo preferem a conceitualização
de eventos com base no modelo de cadeia de ação, e as do sistema ergativo-absolutivo
preferem a conceitualização pelo alinhamento de autonomia e dependência.
Esses dois grandes sistemas de marcação casual se distinguem
fundamentalmente pelas maneiras como são marcados os sintagmas nominais de
sentenças transitivas e intransitivas. No sistema nominativo-acusativo, os sujeitos de
sentenças transitivas e intransitivas são marcados com o mesmo caso—nominativo—
por oposição ao objeto das sentenças transitivas, marcado com o caso acusativo, como
mostram as seguintes sentenças do japonês (exemplos extraídos de Givón 2001: 203)14:

77. Sensa -ga tooku -e itta.

14
Preferimos deixar as glosas e a tradução em inglês, como proposto por Givón, para estes exemplos, e
por Langacker, para os exemplos seguintes. Acrescentamos, na última linha, uma tradução para o
português.
15
teacher NOM away LOC went
The teacher went away
O professor foi embora

78. Otoko -ga onna -ni tegami -o kaita.


man NOM woman DAT letter ACC sent
The man sent a letter to the woman
O homem enviou uma carta para a mulher

Diferentemente, nas línguas do sistema ergativo-absolutivo, o sujeito de uma


sentença intransitiva e o objeto direto de uma sentença transitiva recebem a mesma
marca—a de caso absolutivo, por oposição ao sujeito de sentenças transitivas, marcado
com o caso ergativo. Os dados do samoano, a seguir, mostram esse padrão (exemplos
de Langacker 2008: 376):

79. ‘ua tipi e le teine le ufi


PERF cut ERG the girl the yam (ABS)
The girl cut the yam
A menina cortou o inhame

80. ‘ua oti le teine


PERF die the girl (ABS)
The girl died
A menina morreu

Esses exemplos evidenciam que, prototipicamente, nas línguas do sistema


nominativo-acusativo, o participante que é marcado diferencialmente é aquele que
corresponde à cauda de uma cadeia de ação: o constituinte que tem um papel semântico
tema é que recebe a marca de caso acusativo. Nos termos do modelo de alinhamento de
autonomia e dependência, trata-se do participante autônomo. Nas línguas do sistema
ergativo-absolutivo, o participante diferencialmente marcado é aquele que tem o papel
semântico energético, causador, o núcleo de uma cadeia de ação. Pelo modelo de
alinhamento de autonomia e dependência, trata-se do participante mais dependente.
Essa assimetria relacionada ao elemento que recebe a marcação diferencial de caso

16
revela que, subjacentes a essa característica morfológica, estão dois modelos de
conceitualização diferentes: o modelo da bola de bilhar (ou cadeia de ação) para o
sistema nominativo-acusativo, e o modelo de autonomia e dependência para o sistema
ergativo-absolutivo.
Por serem frutos de padrões recorrentes de nossa experiência, esses modelos
conceituais acima descritos tornam-se arquétipos conceituais, no sentido de que são
prototipicamente usados para a estruturação de nossas conceitualizações sempre que
possível. Em outras palavras, eles se tornam os valores prototípicos que constituem a
base semântica da codificação linguística. Uma estruturação linguística não-marcada é
aquela que toma um desses arquétipos como seu valor prototípico. Nesse sentido, numa
língua do sistema nominativo-acusativo, uma sentença transitiva finita (ativa) pode ser
considerada uma codificação linguística não-marcada, primeiro, porque expressa um
modelo de evento canônico: a interação energética entre um agente e um paciente.
Segundo, em uma sentença transitiva finita (ativa), os participantes que têm o papel
semântico de agente e o paciente correspondem aos focos de proeminência primária e
secundária, respectivamente, como prototipicamente esperado. Diferentemente, nas
línguas do sistema ergativo-absolutivo, como o segundo modelo de conceitualização é o
que é tipicamente preferido, a construção canônica é a intransitiva. É ela que codifica a
conceitualização do evento a partir do participante afetado.
Entretanto, as línguas têm mecanismos para escapar desses modelos canônicos,
podendo escolher uma organização conceitual de evento não-padrão, e podendo atribuir
proeminência a participantes de eventos que não os prototípicos. Assim, nas línguas do
sistema nominativo-acusativo, a construção passiva é uma codificação marcada, na
medida em que, embora seja a expressão de um modelo de evento canônico, o
participante mais energético, que deveria receber a proeminência focal, é preterido em
favor do participante temático. Assim, sentenças como 81 e 82 seguem, ambas, o
modelo canônico de conceitualização de eventos das línguas nominativo-acusativas (o
da bola de bilhar ou cadeia de ação). Entretanto, na sentença 82, a atribuição de
proeminência focal aos participantes do evento é não-canônica, na medida em que o
participante primário não é a fonte de energia, mas aquele que é afetado por ela.

81. O Pedro quebrou o vaso.


82. O vaso foi quebrado (pelo Pedro).

Aqui chegamos ao ponto central deste artigo. Nossa questão é: se o português

17
brasileiro tem a passiva como estratégia para inverter a proeminência focal dada aos
participantes do evento15, dando maior saliência ao tema e não ao agente, por que é que
ele tem construções como aquelas que vêm chamando nossa atenção e que se encontram
entre os exemplos 44 e 54?
Parece que o que está em jogo não é propriamente um recurso para alterar o
padrão canônico de proeminência focal aos participantes do evento, mas, sim, uma
alteração do próprio modelo de conceitualização. Nas sentenças 81 e 82, as mudanças
morfossintáticas – alteração na ordem dos constituintes e na forma gramatical do verbo
– características da alternância ativa/passiva – tornam visível a inversão da
proeminência focal dada aos participantes do evento denotado pela sentença, que, por
sua vez, reflete um modelo de conceitualização em que uma fonte de energia inicial é
transmitida aos outros participantes do evento até afetar um deles.
Diferentemente, nas sentenças absolutas do português brasileiro, exemplificadas
entre 44 e 54, estamos diante de sentenças intransitivas em que o verbo se mantém na
forma ativa, e que codificam um único participante do evento, crucialmente aquele
afetado por uma energia física ou mental. Trata-se do participante autônomo em um
modelo conceitual de alinhamento de autonomia e dependência, justamente o modelo
conceitual canônico das línguas do sistema ergativo-absolutivo.
Como dissemos acima, todas as línguas têm a possibilidade de seguir os dois
modelos de conceitualização, e, de fato, fazem isso. Línguas do sistema nominativo-
acusativo, como o inglês e o alemão, por exemplo, apresentam construções que refletem
o modelo de autonomia e dependência, típico das línguas do sistema ergativo-
absolutivo:

83. The ice melted.


84. Das Eis schmoltz.

O que chama a atenção no português brasileiro não é o fato de a língua


apresentar construções desse tipo; é precisamente o fato de essas construções estarem
sendo construídas com verbos que não admitem esse tipo de construção, nem nas
línguas românicas, nem em outras línguas do sistema nominativo-acusativo. Quando
falamos, então, da ergativização do português brasileiro, estamos sugerindo que talvez

15
Não há nenhuma evidência de que o português brasileiro esteja diminuindo seu uso de construções
passivas. Ao contrário, Mendes (2007) fez um levantamento dessas construções em um corpus de
gravações feitas na cidade de São Paulo e obteve um alto número de instâncias de passivas.
18
estejamos diante de um processo de mudança da língua que está associado a uma
mudança na preferência por um determinado modelo de conceitualização de eventos.
Mais que isso: como esse modelo de conceitualização de eventos é o modelo canônico
de uma família de línguas que não aquela a que o português brasileiro está vinculado
por sua própria origem, estamos sugerindo que esta mudança pela qual o português
brasileiro está passando tem consequências tipológicas. Nossa língua está assumindo
características de um sistema híbrido, não mais alinhado inteiramente com a família
nominativo-acusativa, mas tendendo a uma maior adesão à família ergativo-absolutiva.

A importância da conceitualização de eventos para a tipologia linguística

De maneira geral, as teorias gramaticais concordam que a morfologia e as


diversas construções que envolvem processos de alteração morfossintática tornam
visíveis as características de ordem semântica e informacional associadas ao evento
descrito pelas sentenças e aos seus participantes desse evento. Nesse sentido, a
morfossintaxe reflete as diferenças observáveis entre as línguas humanas. Marcas
morfológicas de caso nos sintagmas nominais, marcas de flexão ou elementos
pronominais cliticizados aos verbos, ordenação de constituintes são alguns desses
mecanismos utilizados pelas gramáticas para codificar papéis semânticos, aumento ou
diminuição de transitividade, e distribuição do foco de atenção.
A exposição feita ao longo deste artigo deixa claro nosso entendimento de que a
morfologia e a sintaxe das línguas naturais vão além, sendo também responsáveis por
marcar os diferentes padrões arquetípicos de conceitualização de eventos preferidos
pelas diversas línguas naturais. Realçar as diferenças morfossintáticas entre as línguas
é, assim, um meio de buscar os modelos prototipicamente escolhidos por seus falantes
para conceitualizar os eventos e seus participantes; neutralizar essas diferenças é ignorar
essas diferenças de conceitualização que, em última instância, refletem, e, ao mesmo
tempo, impõem diferentes maneiras de ver o mundo.
Uma busca pela neutralização de diferenças morfossintáticas que refletem
diferenças de escolhas quanto a modelos de conceitualização de eventos é o que faz
Pylkkänen (2008). A autora propõe que a derivação de sentenças de línguas tão
díspares como o inglês e o venda16 parte sempre de uma estrutura argumental canônica,

16
Venda é uma língua banta falada na África do Sul.
19
constituída do verbo e seu argumento interno (se houver). A introdução de novos
constituintes na sentença é mediada pela seleção e projeção sintática de certos núcleos
funcionais responsáveis por abrir posições na estrutura sentencial para a realização
desses constituintes. Esses núcleos funcionais integram um conjunto universal válido
para todas as línguas.
Para ilustrar a proposta de Pylkännen, tomemos alguns dos dados que ela
explora17:
Inglês:

85. The ice melted


86. John melted the ice.
87. John melted me some ice.

Venda:

88. Mahada o -nok -a.


snow 3sg.Past melt FV18
The snow melted
A neve derreteu

89. Mukasa o -nok- -is -a mahada


Mukasa 3sg.Past melt Cause FV snow
Mukasa melted the snow
Musaka derreteou a neve

90. Mukasa o- -nok- -is- -el- -a Katonga mahada


Mukasa 3sg.Past melt Cause APPL FV Katonga mahada
Mukasa melted Katonga the snow.
Mukasa derreteu a neve para Katonga.

Para a autora, a derivação sintática de sentenças de ambas as línguas teria como


ponto de partida uma estrutura argumental canônica, como a codificada pelas sentenças
85, do inglês, e 88, do venda. A partir daí, do conjunto universal de nós funcionais,
essas línguas escolheriam o nó voz, que é o núcleo funcional responsável pela
introdução de argumentos externos, para derivar sentenças como 86, do inglês, e 89, do

17
Esses dados correspondem aos seus exemplos (1) e (2) de Pylkkänen (2008), respectivamente.
18
FV na glosa significa vogal final.
20
venda.
No que diz respeito a sentenças como 87 e 90, em que um objeto indireto
adicional é introduzido na estrutura19, Pylkännen considera-as construções aplicativas.
Esse entendimento é válido não só para esse tipo de estrutura do venda, mas também
para essa estrutura no inglês, e de todas as demais línguas do mundo. Argumentos
aplicativos vão ser introduzidos na sentença por meio da seleção e projeção de um de
dois núcleos funcionais: no venda, trata-se de um nó aplicativo alto, marcado por um
morfema aplicativo que é afixado à raiz verbal, ao passo que, no inglês, trata-se de um
nó aplicativo baixo. No inglês, e em muitas outras línguas, esse núcleo funcional não é
fonologicamente realizado.
Apesar de Pylkkänen admitir que existem diferenças entre o inglês e o venda20,
sua proposta de estender, para todas as línguas, o processo de inserção de argumentos
prototípico de línguas bantas acaba por ofuscar a diferença tipológica, a nosso ver
extremamente importante porque resultante de dois modos de conceitualização
diferentes, entre línguas do sistema nominativo-acusativo e línguas do sistema ergativo-
absolutivo.
Ao propor que todas as sentenças de todas as línguas naturais derivam de uma
estrutura argumental canônica à qual são agregados núcleos funcionais de voz e
aplicativos, Pylkkänen toma o sistema ergativo-absolutivo, e o modelo de
conceitualização de eventos a ele correspondente, como o padrão explicativo universal
da estruturação sintática. O que ela chama estrutura argumental canônica—ponto de
partida da derivação de outros tipos de sentenças—são construções absolutas, ou seja,
sentenças que codificam uma conceitualização do evento baseada no modelo de
autonomia e dependência, que tem início a partir do participante afetado. A derivação
de outras sentenças envolve a inserção de consituintes que codificam subeventos que
vão ser agregados a essa estruturação básica. Desse modo, fica completamente
neutralizada a diferença entre os dois modelos de conceitualização de eventos.

19
Notar que para Pylkännen o objeto indireto é um argumento adicional, pois a forma canônica das
sentenças é a sua estrutura temática, ou seja, o verbo com seu argumento interno.
20
Outras línguas analisadas pela autora que se comportam como o inglês são o japonês e o coreano; e
outras línguas investigadas que se comportam como o venda são o luganda e o albanês.
Fundamentalmente, Pylkännen explica as diferenças entre esses grupos de línguas pela escolhe que cada
uma faz de diferentes núcleos aplicativos.

21
É verdade que modelos teóricos que explicam mais com menos são preferíveis
àqueles que precisam recorrer a um conjunto mais complexo de premissas e entidades.
Entretanto, a parsimônia não pode ser obtida a qualquer custo. De um ponto de vista
descritivo e tipológico, é inegável o fato de que as línguas diferem quanto ao tipo de
estruturação sintática que utilizam, e essa diferença tem consequências importantes para
os tipos de propriedades gramaticais exibidas por cada uma dessas línguas21. O tipo de
estruturação sintática não-marcado de uma língua reflete o modelo prototipicamente
escolhido por essa língua para a conceitualização de eventos. Como visto, as línguas do
sistema nominativo-acusativo, de maneira geral, demonstram uma clara preferência por
sentenças transitivas finitas (ativas), e não por sentenças intransitivas. Isso indica que o
modelo de conceitualização de eventos preferencial nessas línguas é o modelo da bola
de bilhar (ou da cadeia de ação). Nessas línguas são consideradas marcadas as
construções que alteram a proeminência atribuída aos participantes do evento, retirando
o foco de proeminência primário da fonte de energia, para atribuí-lo ao participante
afetado (construções passivas); ou construções que indicam uma diminuição da cadeia
de ação, codificando um número menor de participantes do evento, ou um número
menor de subeventos (construções médias e monoargumentais). Certamente, o inglês é
uma língua que se enquadra bem nesse sistema.
Nas línguas do sistema ergativo-absolutivo, a marcação se inverte. São
geralmente não-marcadas as sentenças intransitivas finitas (ativas) que expressam
apenas um participante e um subevento. E são marcadas todas aquelas que incluem
outros participantes e subeventos, como é o caso das construções transitivas e das
construções aplicativas. Nesses casos, de maneira geral, a introdução de novos
constituintes é sinalizada pela presença de morfemas que vão se afixar a nomes ou a
verbos. Pelo que os dados apresentados por Pylkännen mostram, esse parece ser o caso
do venda. Neutralizar essas diferenças entre o inglês e o venda, e entre as demais
línguas que se alinham a um deles, é perder adequação descritiva.

Considerações finais
Muitos são os estudos sobre português brasileiro que tratam de explicar dados
que explicitam o processo de impessoalização e de ergativização por que vem passando

21
Observar, por exemplo, a correlação entre tipo de estruturação sintática e opção por construções
passivas e antipassivas.
22
essa língua, fato que já vinha sendo observado por Carlos Franchi desde meados dos
anos 1980. Neste artigo argumentamos em favor da hipótese de que esses processos são
resultado de uma mudança no padrão de conceitualização de eventos, com
consequências importantes para a morfossintaxe dessa língua.
Uma das tendências das propostas sintáticas desenvolvidas no âmbito da Gramática
Gerativa é a de buscar explicações de natureza estrutural para fenômenos de natureza
semântica e pragmática, na medida em que essa teoria linguística toma, por hipótese, a
centralidade e autonomia da sintaxe. Entretanto, como nos dizia Franchi em muitas de
nossas conversas, deve-se tomar cuidado para que não se tratem fenômenos de ordem
semântica ou pragmática de forma reducionista, e para que, na busca de uma explicação
elegante para fatos morfossintáticos, não se acabe por ignorar características
importantes das línguas sob análise. Neste trabalho, mostramos que um trabalho como
o de Pylkännen corre exatamente esse risco: ao perseguir uma elegância teórica, acaba
por neutralizar importantes diferenças da semântica das línguas naturais,
comprometendo uma adequação descrita. Ao eliminar a distinção entre os dois grandes
sistemas linguísticos—nominativo-acusativo e ergativo-absolutivo—, Pylkännen gera
dois tipos de inadequação descritiva: de um ponto de vista geral, ela ignora o fato de
que as diferentes marcas morfossintáticas características desses sistemas servem para
codificar diferentes maneiras de conceitualizar eventos tanto semântica quanto
pragmáticamente; de um ponto de vista especificamente relacionado ao português
brasilerio, ela impossibilita ressaltar que as mudanças pelas quais passa o português
brasileiro estão afastando nossa língua do conjunto de línguas românicas, para
aproximá-las de outras famílias linguísticas.

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