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A ergativização do português brasileiro: uma
conversa continuada com Carlos Franchi
Esmeralda Vailati Negrão (USP-CNPq)
Evani Viotti (USP)
Prólogo
No início dos anos 1990, quando Carlos Franchi atuava como professor-
colaborador do Programa de Pós-Graduação em Semiótica e Linguística Geral da USP,
demos início a uma discussão sobre alguns fatos do português brasileiro, que nos
pareciam cada vez mais recorrentes, e que, a nosso ver, não estavam recebendo a análise
adequada. Tratava-se de construções como as seguintes, entre outras:
Naquela época, começava a chamar nossa atenção o que nos parecia ser um
crescimento no uso de construções impessoais, que não se limitavam mais a aceitar
verbos que, em seu percurso histórico, haviam tido suas propriedades temáticas
atenuadas, como haver e ter; a impessoalização parecia estar se tornando um processo
produtivo no português brasileiro, de modo a atingir verbos transitivos de grande
agentividade, como dar, gravar, fazer, entre outros.
Essas conversas com Franchi alimentaram uma discussão sobre a estrutura da
sentença do português brasileiro, considerada língua voltada para o discurso, na tese de
livre-docência de Negrão (1999), e fundamentaram uma tese de doutoramento sobre as
1
sentenças existenciais do português brasileiro (Viotti 1999). Infelizmente, em 2001,
essa conversa tão frutífera foi interrompida pelo falecimento prematuro de Franchi.
Entretanto, mesmo sem a presença física de nosso querido amigo e professor, nós vimos
dando continuidade à nossa conversa com ele. Seus ensinamentos, seu profundo
conhecimento de teoria linguística e sua grande sensibilidade para os fatos da língua
continuam a nos orientar no avanço de nossa pesquisa individual e conjunta. Em alguns
trabalhos (Negrão e Viotti 2006, 2008, 2010, a sair), continuamos a perseguir as
construções impessoais do português brasileiro. Este artigo é mais um passo em nossa
busca pelo entendimento desse fenômeno, que nos parece ser tão distintivo de nossa
língua. E, no décimo aniversário da morte de Franchi, é uma singela homenagem a
quem tanto fez pela linguística no Brasil.
Introdução
1
Várias línguas, como o inglês, o alemão, o francês, entre outras, exigem a presença de um sujeito
foneticamente realizado em suas sentenças, inclusive em suas construções impessoais. Assume-se, de
maneira geral, que esses sujeitos não têm conteúdo semântico. Eles são chamados expletivos. Assim, em
inglês, por exemplo, tem-se It rains para Chove, e There is a book on the table, para Tem um livro sobre
a mesa.
2
A teoria sintática tem distinguido dois tipos de verbos monoargumentais: os ergativos e os inergativos
(ou intransitivos). Verbos ergativos se distinguem dos inergativos porque seu único argumento se
2
em que o único argumento do verbo aparece posposto a ele, como nas sentenças
abaixo3:
Com efeito, a equiparação das sentenças entre 8 e10, de um lado, àquelas entre
11 e 15, de outro, tem alguma razão de ser. De um ponto de vista sintático, ambos os
grupos de sentença são construídos com verbos monoargumentais, cujo único
argumento aparece em posição pós-verbal. De um ponto de vista discursivo, os dois
tipos de construção exercem uma função que tem sido chamada apresentacional, ou
seja, trata-se de construções que introduzem novos referentes no discurso, ou destacam
um referente já mencionado no discurso precedente para imprimir-lhe relevância no
discurso subsequente.
Entretanto, como argumentado em Franchi, Negrão e Viotti, e mais
detalhadamente em Viotti (1999), apesar dessas semelhanças aparentes, existe uma
diferença substancial entre os dois tipos de construção, e essa diferença está associada
às características predicativas do verbo. De um lado, os verbos ergativos são verbos
semanticamente plenos, que têm um único argumento interno ao qual atribuem o papel
semântico tema. Pela própria semântica dos verbos4 é comum eles virem
acompanhados de uma expressão designativa de lugar ou tempo.
De outro, os verbos que constroem sentenças existenciais são verbos que
historicamente selecionavam dois argumentos. Com o tempo, eles foram perdendo
aproxima, por suas características sintático-semânticas, dos objetos diretos dos verbos transitivos,
enquanto que o único argumento dos inergativos exibe características sintático-semânticas próprias dos
sujeitos dos verbos transitivos. Para evidências dessa distinção, ver, especialmente, os trabalhos de
Perlmutter (1978) e Burzio (1981).
3
Alguns destes exemplos são baseados em dados reais colhidos do corpus do Projeto NURC, que podem
ser encontrados em Franchi, Negrão e Viotti (1998).
4
Esses verbos ergativos são conhecidos informalmente como verbos de ‘entrada em cena’, justamente
porque designam o aparecimento, chegada, vinda, saída de algum referente na cena do discurso.
3
transitividade (no sentido de Hopper & Thompson 1980), à medida que passaram a
admitir, como argumento externo, referentes de natureza semântica variada, inclusive
aqueles designativos de lugar e tempo. Observem-se os exemplos com o verbo havere,
no latim5:
18. Postquam coepi plus habere quam tota patria mea habet...
depois comecei mais ter que toda pátria minha (N) tem.
Passei depois a ter mais do que tem o meu país.
5
Agradecemos os exemplos do latim a Ivan Pasta Zanni. A sentença 16 foi tirada de Ovidius, Ars
Amatoria. Livro I, verso 59; as sentenças 17, 18 e 19 foram respectivamente tiradas de Petronius,
Satyricon § 39, 76 e 77.
6
Os exemplos a seguir foram retirados de diversos sítios da web.
4
Essas sentenças evidenciam uma estrutura argumental para o verbo ter em que o
argumento externo é um locativo e o argumento interno é um tema. A sugestão feita
por Franchi, Negrão e Viotti (1998) e explorada em Viotti (1999) foi a de que a rede
temática dos verbos presentes nas sentenças entre 20 e 28, em que o papel de locativo é
hierarquicamente mais baixo que o de tema, possibilitou o surgimento de uma
construção em que o argumento locativo se realiza em uma posição periférica
codificado por um sintagma preposicionado, deixando a posição de sujeito vazia7:
Dados históricos dão suporte a essa hipótese. Depois de ter sido usado para a
expressão de posse durante muitos séculos, o verbo haver, no século XIV, aparecia em
construções existenciais sem sujeito. Crucialmente, muitas das sentenças impessoais
em que o verbo haver aparecia apresentavam o clítico locativo hy/hi (exemplos 34 a
36), dando pistas de que esse tipo de construção tenha seguido o percurso diacrônico
que sugerimos acima. No século XVI, começam a aparecer as primeiras sentenças
existenciais sem sujeito construídas com o verbo ter, também sempre acompanhadas de
um sintagma locativo (exemplos 37 a 40). A nosso ver, o fato de esses terem sido os
primeiros contextos em que se atesta a presença do verbo ter existencial corrobora nossa
hipótese sobre a origem das construções impessoais.8
7
Os exemplos foram retirados do corpus NILC-São Carlos <
http://www.linguateca.pt/acesso/corpus.php?corpus=SAOCARLOS>. Acesso em 23/06/2011.
88
Kato e Duarte (2008) têm sugerido que sentenças com o verbo ter que exibem um sintagma de
semântica locativa/temporal na posição de sujeito, como nos nossos exemplos 20 a 28, se originam de
sentenças existenciais sem sujeito, num percurso inverso ao que vimos assumindo desde 1998. Para as
autoras, sentenças como as entre 20 e 28 são consideradas evidência de que o português brasileiro tem
preferido preencher sua posição de sujeito. Segundo essa hipótese, sentenças existenciais com ter, que,
canonicamente, se caracterizam por uma posição de sujeito vazia, estão apresentando uma tendência ao
preenchimento dessa posição. O sintagma locativo/temporal seria o candidato natural a esse
preenchimento. A nosso ver, as evidências do percurso diacrônico dos verbos haver e ter não corroboram
essa hipótese.
5
35. Avya hi hua donzella muy fremosa. CGE 93.12/13
36. Ouve hy muitos mortos e feridos. CGE 94.17
37. Antre esta coroa darea e esta ilha tem canal pera poder sahir. MNS
314.2
38. Dentro tem um ylheo emcostado ao lado de leste. MNS 324.6
39. Para cima tendo dous bons canais hum aloeste e outro ao leste. MNS
324.9
40. Na sua ponta da banda do sua tem hua terra alta. MNS 326.19
9
Para análises que já vêm chamando a atenção para fatos como estes, ver Galves (2001).
6
50. Meu jardim destruiu todo com a reforma.
51. Este prédio tá construindo desde que a casa do vovô vendeu.
52. Esse livro tem na biblioteca da USP.
53. Não tem nenhum caso de concurso que anulou por causa do mérito.
54. Ela ficou com tanto medo, que o sanduíche nem engoliu.
Da mesma forma que o sujeito, o objeto pode ser um paciente, como em 55;
pode ser um movente, como em 56; pode ser um experienciador, como em 57; e pode
ser um zero, como em 61.
Como se vê, não existe um único papel semântico que consistentemente possa
caracterizar o sujeito ou o objeto de uma sentença em português. O que se pode dizer é
que existe uma tendência para que sujeitos correspondam a participantes agentivos, e
uma tendência para que objetos correspondam a participantes de natureza temática, mas
essas correspondências não podem ser tomadas como categóricas e definidoras.
O mesmo pode-se dizer da caracterização de sujeitos em termos das relações
informacionais estabelecidas em uma dada sentença. Nesse sentido, é comum afirmar-
se que o sujeito é o tópico de uma sentença, o participante de que se fala, a informação
velha. Sem querer entrar na complexa discussão sobre o que é efetivamente a estrutura
10
Estamos assumindo, seguindo Langacker (1991: 288), que os papeis semânticos que caracterizam o
pólo oposto ao da agentividade são: zero (conceitualmente mínimo e não-distintivo); movente (do inglês
mover; aquele participante que muda de posição em relação); paciente (papel característico do
participante que sofre uma mudança interna de estado); e experienciador (o participante que passa por um
processo mental—ideias, percepções, emoções, etc.). Tema é o termo esquemático que subsume todos
esses papéis, quando associado a um constituinte autônomo em uma conceitualização de evento feita a
partir do eixo de autonomia-dependência. Voltaremos a falar dessa questão mais adiante.
8
informacional de uma sentença, e como caracterizar cada um de seus elementos
(tópico/foco; tema/rema; etc.), vemos que, embora possa existir uma tendência para que
sujeitos sejam tópicos, nem sempre esse é o caso. Considere-se o seguinte par de
sentenças:
9
Enquanto os papéis semânticos são inerentes à estrutura do evento que está sendo
codificado linguisticamente, a proeminência focal é extrínseca: o conceitualizador
direciona sua atenção (e a de seu interlocutor) a um dos participantes do evento.
Cognitivamente, é muito difícil visualizar e conceber um evento complexo de maneira
global e totalmente equilibrada. A atenção tem que se concentrar em algumas partes
mais do que em outras. Sendo assim, para um mesmo evento complexo, são possíveis
diferentes combinações de direcionamento de atenção.
Partindo da ideia de que o verbo denota um evento, ou seja, uma relação entre
participantes, para Langacker o sujeito é o sintagma nominal que codifica o participante
para o qual nós, enquanto conceitualizadores, prioritariamente escolhemos voltar nossa
atenção. Ou seja, o sujeito é o constituinte ao qual atribuímos uma proeminência focal
primária; o objeto, por outro lado, é o sintagma nominal que codifica o participante que
constitui o segundo foco de nossa atenção, tendo, assim, a proeminência focal
secundária.11 O comportamento gramatical de sujeitos e objetos (ordem na sentença;
concordância; tipo de marcação de caso morfológico) são, para Langacker, sintomas do
fato de que seus referentes receberem maior ou menor proeminência focal. Embora
translinguisticamente exista uma grande variabilidade das marcas gramaticais de sujeito
e objeto, a caracterização dessas funções em termos de proeminência focal parece se
aplicar universalmente.
As construções do português brasileiro apresentadas na seção anterior envolvem
diferentes possibilidades de codificação de participantes de um evento. Como
observamos acima, construções como as sentenças entre 44 e 54, apresentam o
participante do evento que tem um papel semântico tema na posição de sujeito. Isso
11
Langacker (1987, 1991, 2008) chama essa relação entre focos de atenção de alinhamento trajetor-
marco. Para o autor, esse alinhamento é estabelecido independentemente das noções de sujeito e objeto,
sendo um aspecto geral da construção do significado linguístico. Algumas expressões denotam a mesma
relação, mas podem ter significados diferentes dependendo das escolhas de seus trajetores ou marcos.
Comparem-se, por exemplo, sentenças como A Ana é irmã da Bia e A Bia é irmã da Ana. As duas
sentenças denotam a mesma relação, mas, na primeira, Ana é o participante sobre o qual recai nossa
atenção primária, enquanto Bia é o participante ao qual prestamos atenção secundariamente; na segunda
sentença, a focalização da atenção se inverte: prioritariamente focalizamos Bia, para deixar Ana como um
foco secundário. O mesmo ocorre com pares de preposição ou locuções preposicionais, como, por
exemplo, sobre/sob ou em cima de/embaixo de: o dicionário em cima do livro versus o livro embaixo do
dicionário.
10
indica que é esse participante que está recebendo o foco de atenção.
Em princípio, não há nada surpreendente no fato de o argumento tema ser o
participante com proeminência primária. Afinal, como bem ressalta Langacker, a
proeminência não é inerente ao papel que um determinado participante desempenha
num evento; ela é atribuída pelo conceitualizador, e pode recair, teoricamente, sobre
qualquer um dos participantes. Mas as línguas têm certas formas canônicas para
expressar a proeminência de um tipo ou outro de participante. No caso do português, a
sentença na forma ativa é a forma canônica para expressar a proeminência do agente; e
a construção passiva é a forma canônica para codificação da proeminência do tema. O
que surpreende nos fatos do português brasileiro sob análise é que, para expressar a
proeminência do tema, a passiva foi preterida em favor de (coexiste com) uma
construção com o verbo na forma ativa. Para entender os motivos pelos quais essas
construções chamam nossa atenção, é preciso entender os modelos conceituais que estão
por trás da conceitualização de eventos e suas formas de codificação em termos de
estruturação da sentença. Vamos a isso.
Estamos assumindo, com base em Langacker (1987, 1991, 2008), que tanto
quanto a caracterização das relações de sujeito e objeto, a própria conceitualização dos
eventos tem por base modelos cognitivos. Para Langacker, dois são os modelos
cognitivos prioritariamente envolvidos na conceitualização dos eventos. O primeiro,
chamado modelo da bola de bilhar (ou modelo da cadeia de ação), nos conduz a
conceitualizar eventos a partir da fonte de energia que deu início ao evento. Essa
energia é transmitida a outros participantes do evento até afetar um deles, formando,
assim, uma cadeia de ação que pode ser diagramaticamente representada da seguinte
maneira:
a
A
A
Nesse diagrama, cada círculo representa uma entidade participante de um evento
energético. O primeiro desses participantes (o círculo da extrema esquerda, chamado
11
núcleo) entra em contato com o segundo participante, causando uma transferência de
energia. A transferência de energia é representada pela seta dupla. Esse segundo
participante entre em contato com o terceiro, e assim sucessivamente, até a energia se
esgotar, afetando o último participante (chamado cauda). Como observa Langacker
(1991: 285), a cadeia de ação mais simples é aquela em que um núcleo de energia
interage com a cauda, sem que, necessariamente, haja participantes intermediários entre
os dois, como em 67:
AG PAC
12
sílaba; por isso, são consideradas o núcleo das sílabas. Na morfologia, o mesmo se
verifica: raízes são consideradas autônomas em relação aos afixos que se prendem a
elas. No que diz respeito à semântica e à sintaxe, o alinhamento de autonomia e
dependência que subjaz à conceitualização de eventos é crucial para a estruturação
sintática das sentenças.
Já de início, Langacker aponta que eventos são dependentes de seus
participantes. Não há como conceitualizar um evento de quebrar, por exemplo, sem
que façamos algum tipo de referência mental, ainda que altamente abstrata, a uma
entidade causadora da quebra e uma entidade quebrada. Participantes de eventos, por
outro lado, são autônomos, na medida em que podem ser conceitualizados
independentemente dos eventos dos quais eles possam vir a participar.
Mas há ainda um segundo tipo de alinhamento de autonomia e dependência, que
diz respeito à estrutura interna dos eventos. Da década de 1990 para cá, vários autores
têm apontado a necessidade de se estabelecer uma distinção mais refinada da estrutura
interna dos eventos para que se possa dar conta de vários fenômenos linguísticos,
especialmente aqueles relativos à estruturação temática e aspectual das sentenças.12 Essa
estruturação interna dos eventos corresponde à possibilidade de conceitualizarmos
separadamente os subeventos que constituem um evento complexo. Langacker (1991)
exemplifica essa possibilidade dizendo que a explosão de um balão pode ser analisada
como envolvendo os seguintes subeventos: a liberação do ar sob pressão; a emissão de
um som de explosão; e uma mudança drástica e repentina na membrana de borracha do
balão. Crucialmente, em alguns casos, é possível conceitualizar um subevento
independentemente dos demais. No caso da explosão do balão, por exemplo, é possível
pensarmos na mudança na forma da membrana do balão, sem necessariamente termos
que conceitualizar o barulho de explosão que antecedeu essa mudança de forma. Nesse
caso, estamos, então, diante de um subcomponente do evento que é conceitualmente
autônomo em relação aos demais.
Mas Langacker observa que nem todos os subeventos são autônomos. O
controle, por exemplo, é dependente, na medida em que implica a necessidade de uma
ação sob seu exercício. Isso se reflete na estrutura linguística. Consideremos o evento
complexo, expresso pela sentença 69:
12
Ver, entre outros, Parsons (1994) e Pustejovsky (1995).
13
O constituinte a ventania está associado ao subevento relativo à força energética
causadora da queda das folhas. Trata-se de um subevento de controle. Ora, se é assim,
algo tem que necessariamente estar sob esse controle. O subevento de controle é, então,
inerentemente dependente de um outro subevento que, no caso da sentença 69, está
associado ao constituinte as folhas caírem. Sendo dependente, o subevento de controle
não pode ser expresso sozinho, como mostra o exemplo 70.
13
Ver nota de rodapé 10.
14
74. O João escorregou.
75. A Ana tá sofrendo.
76. O vidro quebrou.
14
Preferimos deixar as glosas e a tradução em inglês, como proposto por Givón, para estes exemplos, e
por Langacker, para os exemplos seguintes. Acrescentamos, na última linha, uma tradução para o
português.
15
teacher NOM away LOC went
The teacher went away
O professor foi embora
16
revela que, subjacentes a essa característica morfológica, estão dois modelos de
conceitualização diferentes: o modelo da bola de bilhar (ou cadeia de ação) para o
sistema nominativo-acusativo, e o modelo de autonomia e dependência para o sistema
ergativo-absolutivo.
Por serem frutos de padrões recorrentes de nossa experiência, esses modelos
conceituais acima descritos tornam-se arquétipos conceituais, no sentido de que são
prototipicamente usados para a estruturação de nossas conceitualizações sempre que
possível. Em outras palavras, eles se tornam os valores prototípicos que constituem a
base semântica da codificação linguística. Uma estruturação linguística não-marcada é
aquela que toma um desses arquétipos como seu valor prototípico. Nesse sentido, numa
língua do sistema nominativo-acusativo, uma sentença transitiva finita (ativa) pode ser
considerada uma codificação linguística não-marcada, primeiro, porque expressa um
modelo de evento canônico: a interação energética entre um agente e um paciente.
Segundo, em uma sentença transitiva finita (ativa), os participantes que têm o papel
semântico de agente e o paciente correspondem aos focos de proeminência primária e
secundária, respectivamente, como prototipicamente esperado. Diferentemente, nas
línguas do sistema ergativo-absolutivo, como o segundo modelo de conceitualização é o
que é tipicamente preferido, a construção canônica é a intransitiva. É ela que codifica a
conceitualização do evento a partir do participante afetado.
Entretanto, as línguas têm mecanismos para escapar desses modelos canônicos,
podendo escolher uma organização conceitual de evento não-padrão, e podendo atribuir
proeminência a participantes de eventos que não os prototípicos. Assim, nas línguas do
sistema nominativo-acusativo, a construção passiva é uma codificação marcada, na
medida em que, embora seja a expressão de um modelo de evento canônico, o
participante mais energético, que deveria receber a proeminência focal, é preterido em
favor do participante temático. Assim, sentenças como 81 e 82 seguem, ambas, o
modelo canônico de conceitualização de eventos das línguas nominativo-acusativas (o
da bola de bilhar ou cadeia de ação). Entretanto, na sentença 82, a atribuição de
proeminência focal aos participantes do evento é não-canônica, na medida em que o
participante primário não é a fonte de energia, mas aquele que é afetado por ela.
17
brasileiro tem a passiva como estratégia para inverter a proeminência focal dada aos
participantes do evento15, dando maior saliência ao tema e não ao agente, por que é que
ele tem construções como aquelas que vêm chamando nossa atenção e que se encontram
entre os exemplos 44 e 54?
Parece que o que está em jogo não é propriamente um recurso para alterar o
padrão canônico de proeminência focal aos participantes do evento, mas, sim, uma
alteração do próprio modelo de conceitualização. Nas sentenças 81 e 82, as mudanças
morfossintáticas – alteração na ordem dos constituintes e na forma gramatical do verbo
– características da alternância ativa/passiva – tornam visível a inversão da
proeminência focal dada aos participantes do evento denotado pela sentença, que, por
sua vez, reflete um modelo de conceitualização em que uma fonte de energia inicial é
transmitida aos outros participantes do evento até afetar um deles.
Diferentemente, nas sentenças absolutas do português brasileiro, exemplificadas
entre 44 e 54, estamos diante de sentenças intransitivas em que o verbo se mantém na
forma ativa, e que codificam um único participante do evento, crucialmente aquele
afetado por uma energia física ou mental. Trata-se do participante autônomo em um
modelo conceitual de alinhamento de autonomia e dependência, justamente o modelo
conceitual canônico das línguas do sistema ergativo-absolutivo.
Como dissemos acima, todas as línguas têm a possibilidade de seguir os dois
modelos de conceitualização, e, de fato, fazem isso. Línguas do sistema nominativo-
acusativo, como o inglês e o alemão, por exemplo, apresentam construções que refletem
o modelo de autonomia e dependência, típico das línguas do sistema ergativo-
absolutivo:
15
Não há nenhuma evidência de que o português brasileiro esteja diminuindo seu uso de construções
passivas. Ao contrário, Mendes (2007) fez um levantamento dessas construções em um corpus de
gravações feitas na cidade de São Paulo e obteve um alto número de instâncias de passivas.
18
estejamos diante de um processo de mudança da língua que está associado a uma
mudança na preferência por um determinado modelo de conceitualização de eventos.
Mais que isso: como esse modelo de conceitualização de eventos é o modelo canônico
de uma família de línguas que não aquela a que o português brasileiro está vinculado
por sua própria origem, estamos sugerindo que esta mudança pela qual o português
brasileiro está passando tem consequências tipológicas. Nossa língua está assumindo
características de um sistema híbrido, não mais alinhado inteiramente com a família
nominativo-acusativa, mas tendendo a uma maior adesão à família ergativo-absolutiva.
16
Venda é uma língua banta falada na África do Sul.
19
constituída do verbo e seu argumento interno (se houver). A introdução de novos
constituintes na sentença é mediada pela seleção e projeção sintática de certos núcleos
funcionais responsáveis por abrir posições na estrutura sentencial para a realização
desses constituintes. Esses núcleos funcionais integram um conjunto universal válido
para todas as línguas.
Para ilustrar a proposta de Pylkännen, tomemos alguns dos dados que ela
explora17:
Inglês:
Venda:
17
Esses dados correspondem aos seus exemplos (1) e (2) de Pylkkänen (2008), respectivamente.
18
FV na glosa significa vogal final.
20
venda.
No que diz respeito a sentenças como 87 e 90, em que um objeto indireto
adicional é introduzido na estrutura19, Pylkännen considera-as construções aplicativas.
Esse entendimento é válido não só para esse tipo de estrutura do venda, mas também
para essa estrutura no inglês, e de todas as demais línguas do mundo. Argumentos
aplicativos vão ser introduzidos na sentença por meio da seleção e projeção de um de
dois núcleos funcionais: no venda, trata-se de um nó aplicativo alto, marcado por um
morfema aplicativo que é afixado à raiz verbal, ao passo que, no inglês, trata-se de um
nó aplicativo baixo. No inglês, e em muitas outras línguas, esse núcleo funcional não é
fonologicamente realizado.
Apesar de Pylkkänen admitir que existem diferenças entre o inglês e o venda20,
sua proposta de estender, para todas as línguas, o processo de inserção de argumentos
prototípico de línguas bantas acaba por ofuscar a diferença tipológica, a nosso ver
extremamente importante porque resultante de dois modos de conceitualização
diferentes, entre línguas do sistema nominativo-acusativo e línguas do sistema ergativo-
absolutivo.
Ao propor que todas as sentenças de todas as línguas naturais derivam de uma
estrutura argumental canônica à qual são agregados núcleos funcionais de voz e
aplicativos, Pylkkänen toma o sistema ergativo-absolutivo, e o modelo de
conceitualização de eventos a ele correspondente, como o padrão explicativo universal
da estruturação sintática. O que ela chama estrutura argumental canônica—ponto de
partida da derivação de outros tipos de sentenças—são construções absolutas, ou seja,
sentenças que codificam uma conceitualização do evento baseada no modelo de
autonomia e dependência, que tem início a partir do participante afetado. A derivação
de outras sentenças envolve a inserção de consituintes que codificam subeventos que
vão ser agregados a essa estruturação básica. Desse modo, fica completamente
neutralizada a diferença entre os dois modelos de conceitualização de eventos.
19
Notar que para Pylkännen o objeto indireto é um argumento adicional, pois a forma canônica das
sentenças é a sua estrutura temática, ou seja, o verbo com seu argumento interno.
20
Outras línguas analisadas pela autora que se comportam como o inglês são o japonês e o coreano; e
outras línguas investigadas que se comportam como o venda são o luganda e o albanês.
Fundamentalmente, Pylkännen explica as diferenças entre esses grupos de línguas pela escolhe que cada
uma faz de diferentes núcleos aplicativos.
21
É verdade que modelos teóricos que explicam mais com menos são preferíveis
àqueles que precisam recorrer a um conjunto mais complexo de premissas e entidades.
Entretanto, a parsimônia não pode ser obtida a qualquer custo. De um ponto de vista
descritivo e tipológico, é inegável o fato de que as línguas diferem quanto ao tipo de
estruturação sintática que utilizam, e essa diferença tem consequências importantes para
os tipos de propriedades gramaticais exibidas por cada uma dessas línguas21. O tipo de
estruturação sintática não-marcado de uma língua reflete o modelo prototipicamente
escolhido por essa língua para a conceitualização de eventos. Como visto, as línguas do
sistema nominativo-acusativo, de maneira geral, demonstram uma clara preferência por
sentenças transitivas finitas (ativas), e não por sentenças intransitivas. Isso indica que o
modelo de conceitualização de eventos preferencial nessas línguas é o modelo da bola
de bilhar (ou da cadeia de ação). Nessas línguas são consideradas marcadas as
construções que alteram a proeminência atribuída aos participantes do evento, retirando
o foco de proeminência primário da fonte de energia, para atribuí-lo ao participante
afetado (construções passivas); ou construções que indicam uma diminuição da cadeia
de ação, codificando um número menor de participantes do evento, ou um número
menor de subeventos (construções médias e monoargumentais). Certamente, o inglês é
uma língua que se enquadra bem nesse sistema.
Nas línguas do sistema ergativo-absolutivo, a marcação se inverte. São
geralmente não-marcadas as sentenças intransitivas finitas (ativas) que expressam
apenas um participante e um subevento. E são marcadas todas aquelas que incluem
outros participantes e subeventos, como é o caso das construções transitivas e das
construções aplicativas. Nesses casos, de maneira geral, a introdução de novos
constituintes é sinalizada pela presença de morfemas que vão se afixar a nomes ou a
verbos. Pelo que os dados apresentados por Pylkännen mostram, esse parece ser o caso
do venda. Neutralizar essas diferenças entre o inglês e o venda, e entre as demais
línguas que se alinham a um deles, é perder adequação descritiva.
Considerações finais
Muitos são os estudos sobre português brasileiro que tratam de explicar dados
que explicitam o processo de impessoalização e de ergativização por que vem passando
21
Observar, por exemplo, a correlação entre tipo de estruturação sintática e opção por construções
passivas e antipassivas.
22
essa língua, fato que já vinha sendo observado por Carlos Franchi desde meados dos
anos 1980. Neste artigo argumentamos em favor da hipótese de que esses processos são
resultado de uma mudança no padrão de conceitualização de eventos, com
consequências importantes para a morfossintaxe dessa língua.
Uma das tendências das propostas sintáticas desenvolvidas no âmbito da Gramática
Gerativa é a de buscar explicações de natureza estrutural para fenômenos de natureza
semântica e pragmática, na medida em que essa teoria linguística toma, por hipótese, a
centralidade e autonomia da sintaxe. Entretanto, como nos dizia Franchi em muitas de
nossas conversas, deve-se tomar cuidado para que não se tratem fenômenos de ordem
semântica ou pragmática de forma reducionista, e para que, na busca de uma explicação
elegante para fatos morfossintáticos, não se acabe por ignorar características
importantes das línguas sob análise. Neste trabalho, mostramos que um trabalho como
o de Pylkännen corre exatamente esse risco: ao perseguir uma elegância teórica, acaba
por neutralizar importantes diferenças da semântica das línguas naturais,
comprometendo uma adequação descrita. Ao eliminar a distinção entre os dois grandes
sistemas linguísticos—nominativo-acusativo e ergativo-absolutivo—, Pylkännen gera
dois tipos de inadequação descritiva: de um ponto de vista geral, ela ignora o fato de
que as diferentes marcas morfossintáticas características desses sistemas servem para
codificar diferentes maneiras de conceitualizar eventos tanto semântica quanto
pragmáticamente; de um ponto de vista especificamente relacionado ao português
brasilerio, ela impossibilita ressaltar que as mudanças pelas quais passa o português
brasileiro estão afastando nossa língua do conjunto de línguas românicas, para
aproximá-las de outras famílias linguísticas.
Referências
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