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NGOMA USUKU

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UM CARDUME DE BAGRES PARA O SOBA
Ficha Técnica Biografia da Autor
COPYRIGHT © 2021 BY EDIÇÕES
HANDYMAN & LEITURAS ASSISTIDAS
TODOS DIREITOS RESERVADOS

AUTOR
NGOMA USUKU
TÍTULO
UM CARDUME DE BAGRES PARA O
SOBA
GÊNERO
DRAMÁTICO
ISBN
978-989-9029-32-3 Ngoma Usuku
COLEÇÃO
LEITURAS ASSISTIDAS Pelágio Jorge Chaves Seca. Nasceu na
1.ª EDIÇÃO Maianga, Luanda – Angola, 19 de Março de
1987.
DIAGRAMAÇÃO
GONÇALVES KIZELA Fez o 4.º Ano do Curso de Língua e Li-
teraturas em Língua Portuguesa pela Faculdade
ILUSTRAÇÃO DA CAPA
GONÇALVES KIZELA de Letras (2012), a 12.ª Classe do Curso de
Pintura pela Escola Nacional de Artes Plásti-
REVISÃO TEXTUAL cas, ENAP (2006) e trabalhou como Guionista
ADILSON GONÇALVES na Mona Afro Filmes (2015-2017).
MONIZ MÁRIO
Atualmente, trabalha como Professor de
Língua Portuguesa no IPIL.
FACEBOOK // EDIÇÕES HANDYMAN
WHATSAPP // +244993808211
CONTATOS
+244912180029 // +244924375565

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A autora, premiada em primeiro lugar,
NGOMA
recebeu quinhentos USUKU os autores do
mil Kwanzas,
segundo e terceiro lugares receberam cinquenta
mil kwanzas relativos a direitos autorais da
Texto de Abertura publicação digital, bem como os três premiados
tiveram leituras públicas de suas obras no âm-
bito das Leituras Assistidas, além de compo-
Por: KLAUS NOVAIS rem com outros quinze textos destacados no
Coordenador de Leituras Assistidas concurso os acervos de dramaturgia inaugura-
dos no CCBA - Centro Cultural do Brasil em
Angola, Camões - Centro Cultural Português e
A primeira edição do Concurso Nacio- na Mediateca do Cazenga.
nal de Dramaturgia - Leituras Assistidas chega
à sua culminância nesta publicação digital dos A premiação ocorreu em 26/03/2021,
três textos premiados no concurso, em parceria no evento de abertura das Leituras Assistidas,
com as Edições Handyman, para a valorização na Mediateca do Cazenga, pelo Embaixador do
do Gênero Dramático e da escrita teatral, bem Brasil em Angola, sr. Rafael Vidal, na presença
como oferecer a leitura de autores angolanos de representantes das instituições apoiadoras e
contemporâneos no âmbito das artes cênicas. parceiros culturais: MED Lab, Premium, Alpha
Medic e Edições Handyman, que proporciona-
Largo da Peça (Drama/2020), de Ana
Andrade; A Inauguração (Drama/2021), de ram este projeto de incentivo à leitura do Gêne-
Igor Fortes Gabriel; Um Cardume de Bagres ro Dramático, por um grupo de leitores seleci-
para o Soba (Drama/2021), de Ngoma Usuku, onados, em que se privilegia a leitura de auto-
são os textos premiados, respetivamente, em res da Língua Portuguesa, apresentações tea-
primeiro, segundo e terceiro lugares, represen- trais, concursos e criação de acervos de Drama-
tantes legítimos da intensa produção de textos e turgia.
da adesão ao concurso pelos autores nacionais.
Agradecemos a todos os envolvidos
O concurso recebeu 78 submissões, de neste processo, especialmente o apoio cultural
todas as províncias do país, das quais 46 foram
da Embaixada do Brasil em Angola, premia-
habilitadas e avaliadas por uma comissão inter-
disciplinar de seis avaliadores: Klaus Novais dos, leitores, público que prestigiou a iniciati-
(coordenador), Marisa Cristino (diretora do va, e aos leitores e leitoras que prestigiam esta
CCBA), Luamba Muinga (escritor e crítico de publicação digital. Sem mais, registramos que a
arte), Dílson Maria (moderador Clube de Leitu- segunda edição do Concurso Nacional de Dra-
ra), Kaio Carmona (professor-leitor na Univer- maturgia – Leituras Assistidas está garantida
3
sidade Agostinho Neto) e Sérgio de Toledo
para 2022, com votos de premiarmos mais tex-
(Ministro Conselheiro - Embaixada do Brasil).
tos angolanos do Gênero Dramático, e de boa
leitura!
Os Frutos da Preguiça
UM CARDUME
ACERVO DE DE BAGRES PARA O SOBA
DRAMATURGIA Dhiafragma (Luanda)
DO CONCURSO
(em ordem alfabética): O Legado
Amilihany Santos (Sumbe)

A Inauguração Sandala e Nandala


Igor Fortes Gabriel (Luanda) Armando Rosa (Sumbe)

A Mina Tradicional Sol da Minha Vida


Ndengue Mona Ya Diyala (Luanda) Luz Feliz (Luanda)

Angola no Banco dos Réus Todas as Flores do Futuro


Habrazacx (Huambo) Lúcio Silveira (Luanda)

ARCOIRIS Um Cardume de Bagres para o Soba


N'zala Mujahid (Luanda) Ngoma Usuku (Luanda)

Basta, o Bastante...
Nelson António Ndongala (Huíla) INSTITUIÇÕES ONDE OS TEXTOS PO-
DEM SER CONSULTADOS:
COnVIDem o Vírus
João Fernando André (Cuanza Norte) CCBA – Centro Cultural do Brasil em An-
gola
Largo da Peça Rua Cerveira Pereira, 19
Ana Andrade (Benguela) Bairro Coqueiros – Baixa de Luanda

Memórias A Um (in)Consentido Até Sempre CAMÕES – Centro Cultural Português


César Marcelino Mateus Miranda (Luanda) Av. De Portugal, 50
Ingombota – Luanda
Morte Silenciosa
Mille Tavares (Lubango) MEDIATECA ZÉ DÚ
Av. Dos Comandos, s/n
Nkamalonga Cazenga – Luanda
Silveiro Campos - O Corvo (Gabela-Amboim)
LEITURAS ASSISTIDAS
O CasAumento Contatos e Informações:
J.P. Domingos (Malange) leiturasassistidas@gmail.com
Página de Facebook:
4
O Fim da Maldição Familiar
Jofre Martins (Sumbe)
https://www.facebook.com/Leituras-Assistidas-
105823284319967
NGOMA USUKU

NGOMA USUKU

UM CARDUME
DE BAGRES
PARA O SOBA
(3.º Lugar no Concurso Nacional de
Dramaturgia - Leituras Assistidas)

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UM CARDUME DE BAGRES PARA O SOBA

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NGOMA USUKU

Dedicatória
Dedico ao meu clube de “críticos lite-
rários” que sempre são os primeiros a ler
uma minha obra e a dar-me ideias de como
a melhorar: Caliana Letícia Tchandomben-
da Cristóvão, Carla Francisco Paulo
Muhongo, Cláusia Lina Chaves Seca,
Djanir Marília de Carvalho Tarquínio, Er-
nesto Josemar David Pipa, Hermenegildo
Jorge Chaves Seca, Horivaldo Horácio da
Silva Pascoal, Isabel Mavinga de Almeida,
Josefo Lopes Afonso, Lucélia da Graça Fé-
lix, Luzia Celmira Feijó Sanzala, Nelson
Esteves Alves, Rita Branca Correia Vieira,
Tânia Normanda Bastos Martins, Vicentina
Emanda Mazebo de Carvalho, William Gil-
berto Pimentel Ferreira, Wiza Medina Sa-
muel de Melo Lopes, Yassin Paulo Gaspar
de Carvalho e Yocana Josefa Lima Gonçal-
ves.
Por último, mas não menos importan-
tes, dedico aos meus irmãos, primos, sobri-
nhos, netos, vizinhos, a todos os que me co-
nhecem e aos que, sem se aperceberem, me
inspiram a escrever essas histórias.7
UM CARDUME DE BAGRES PARA O SOBA

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NGOMA USUKU

Agradecimentos
Agradeço à minha esposa, Rita Muanha Bento Seca, pelo seu
amor extraordinário e incondicional, à minha filha Makyese Abgail Ben-
to Seca, por me inspirar a escrever o insólito, e aos meus pais, Jorge Fer-
raz Seca e Maria Isabel Chaves Seca, pela vida e educação.

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UM CARDUME DE BAGRES PARA O SOBA

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NGOMA USUKU

NGOMA USUKU

UM CARDUME
DE BAGRES
PARA O SOBA
(3.º Lugar no Concurso Nacional de
Dramaturgia - Leituras Assistidas)

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UM CARDUME DE BAGRES PARA O SOBA

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NGOMA USUKU

No palco, apenas o Makutu, soba, trajado de roupas tradicionais, da


cintura para baixo, de tronco nu, de costas voltadas para o público,
com a cabeça abaixada, pensativo, e uma cadeira tradicional, como
se fosse um trono. A cadeira é grande, exuberante, e está enfaixada
com tiras de pano de samakaka. Há três esteiras tradicionais à volta
da cadeira. O Makutu suspira, passa a mão sobre a cabeça com al-
guma violência. Range os dentes. Volta-se, com expressão facial de
zanga. Vê-se que ele tem uma catana atravessada no cós das suas
roupas.

Makutu (Para o público.) – Vem! (Aponta à esquerda do palco, con-


tinuando a olhar para o público.). Vem aqui agora, já disse!

(Entra a Ngeve, andando majestosamente, trajada de um vestido tra-


dicional e elegante de samakaka, tendo, sobre a cabeça, um lenço em
formato de tiara tradicional. Ela tem as íris douradas.)

Ngeve (Curiosa.) – Que rispidez é essa, marido? Já sei esse teu tru-
que. (Sedutora, levantando o vestido até mostrar parcialmente as
coxas.) Queres me possuir aqui de novo? Os teus guardas podem en-
trar…

Makutu (Ríspido, gritando.) – Sabes muito bem a razão, sua ardilo-


sa! O que é que disseste ao meu primogénito?

Ngeve (Baixando o vestido, amuada.) – Ah! É sobre isso? O teu pri-


mogénito… que é o meu unigénito, contou-me que estás a pensar em
lhe enviar para longe, para receber educação dos Nkwamanzai. Não
queres que ele seja como tu, pois não?

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UM CARDUME DE BAGRES PARA O SOBA

Makutu – O filho é meu. Faço com ele o que quiser.

Ngeve (Sentimental.) – Mas fui eu que aguentei os enjoos, os vómi-


tos, os nove meses e as dores de parto. Não tenho palavra nesse as-
sunto? Se queres tanto assim que ele se torne soba, não o tornes igual
a ti. Todos te temem, mas, no fundo, têm ódio por ti.

Makutu – Tu não sabes quais são os meus planos, mulher! Mesmo


que eu tos explique, não os entenderás.

Ngeve – E se estiveres errado nestes teus planos?

Makutu - Eu nunca erro. Mesmo quando erro, não errei.

Ngeve – Então, as mortes que andas a causar é coisa boa?! (O Makutu


engole em seco, irado.) Se a paz que vinha dos rios para todas as al-
deias está a entrar em extinção, significa que (Aponta para a cadei-
ra.) quem está sentado nesta omangu é produtor de guerra. Já fiquei
muito tempo calada, mas, como tua esposa, devo-te alertar que…

Makutu (Zangado, para a Ngeve, pegando o cabo da catana como se


a fosse desembainhar.) – Sai! Sai daqui! Sai antes que eu perca a pa-
ciência! Deixa eu cuidar das minhas coisas como bem sei.

A Ngeve suspira. Faz uma vénia ao Makutu e sai, à esquerda do pal-


co. Ouvem-se palmas, à direita do palco.

Makutu (Para o público.) – Venham a mim, mas não me tragam


mais problemas. (Aponta para a direita do palco, continuando a
olhar para o público.) Aproximem-se agora, já disse! (Entram o sol-
dado 1 e o soldado 2 à direita do palco, dão três passos temerosos na
direcção do Makutu e param.)

Soldado 1 (Receoso.) – É melhor nós ficarmos aqui, ngana soba. As


notícias são boas e más. São soluções e... e problemas...

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Makutu (Irritado.) – Como assim? Que paradoxo é esse que disse-


minas nesta tua pusilânime insipiência?

Soldado 2 (Para o soldado 1, sussurrante, dando um passo para


trás.) – O soba só fala esse kimbundu difícil de entender quando está
muito zangado. É melhor que nos retiremos. Sabes muito bem o que
aconteceu ao nosso primo quando o soba lhe falou desse jeito...

Makutu (Gritando.) – Expliquem-se!

(Os soldados ficam de sentido, estáticos.)

Soldado 2 (Gaguejando.) – São… são notícias boas para a aldeia,


mas más para o soba... são notícias que… por isso...

Makutu (Colérico, aproximando-se da face do soldado 2.) – Como


assim? Além de tartamudo também és ilógico? Ou queres gastar sali-
va com o que já é sobejamente sabido? O que é bom para o soba é
bom para a sua aldeia... estás a querer dizer que descobriram aquele
assunto?! (Retira a catana do cós das suas vestes e aponta-a para o
pescoço do soldado 2. O soldado 2 engole em seco. O makutu fala
entredentes, olhando para o soldado 1.) Quem de vocês delatou?
(Aponta para a cadeira.) Quem contou o que aconteceu ao soba que
devia estar sentado naquela omangu? Não se atrevam a me trair! Es-
tou à procura da energia positiva, a energia mais poderosa de todas.
Tudo o que estiver no caminho entre mim e ela será esquartejado!

Soldado 1 (Pigarreia, fecha os olhos, suspira, depois fala com voz


embargada, mas com parcial coragem.) – Por causa das muitas con-
fusões que há entre as pessoas aqui, tudo tem ficado um caos, este é o
problema. E o povo quer resolver, mas não consegue. Como o soba
sabe, aqui a cultura é: quem se desentender com o outro, o errado tem
de ir pescar o peixe da paz, cozinhá-lo, e o errado e o inocente devem
comê-lo ainda quente, com as mãos, como pedido e aceitação de des-
culpas. Mas já não há peixes da paz, ngana soba; todos os cardumes

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UM CARDUME DE BAGRES PARA O SOBA

desapareceram como maldição, meu sekulu. A aldeia queixa-se disso


há meses e tu, ó grande soba, ainda não lhes apresentaste resolução.
Agora, como problema para si e solução para os aldeões, três velhos
amigos do soba estão aqui: Paxiningongo, a estéril, Poko, o mulhe-
rengo, e Ndolo, o desaparecido.

Makutu (Espantado.) – Já chegaram?! Chegaram finalmente! (Sorri,


solta uma gargalhada, volta-se para o público enquanto coloca a
catana no cós das suas vestes.) Manda-os entrar. (Aponta para a es-
querda do palco, continuando a fixar o olhar no público.) Manda-os
entrar, já disse!

(À esquerda do palco, entra o soldado 3, magro, empunhando uma


lança, com o andar pomposo. Ele é jovem, mas todo o seu cabelo é
branco e o olhar é prateado. O soldado 3 percorre o palco calma-
mente até ficar atrás do soldado 1 e do soldado 2, de costas voltadas
para estes. O Makutu olha para o soldado 1)

Makutu – Não há nenhuma notícia má nisso. São notícias boas. Na


verdade, notícias excelentes! (O soldado 3 faz sinal à frente de si e
entram uma mulher e dois homens, à direita do palco: a Paxiningon-
go, o Ndolo e o Poko, trajados, respetivamente, de roupas de bakon-
go, mumwila e ambundu. A Paxiningongo, o Ndolo e o Poko fazem
uma vénia ao Makutu. Este anda em aproximação deles. Abraçam-se,
um por um, enquanto sorriem. O soldado 3 sai à direita do palco,
andando com pompa.)

A chegada dos amigos.

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NGOMA USUKU

Makutu (Alegre.) – Há quanto tempo, Paxiningongo, Ndolo e Poko,


meus companheiros de infância!

Paxiningongo (Cortês.) – Uns quinze anos, soba Makutu. E é agra-


dável finalmente poder fazer uma viagem de volta à aldeia que me viu
nascer. Muitos dos aldeões bateram palmas quando nos viram. Não
sei se eram saudades, ou se estavam a agir como se nós fôssemos al-
guém que eles aguardavam com grande expetativa. Quantas panelas
de funji reservaste para mim?

Makutu (Olhando para o corpo roliço de Paxiningongo, sorrindo.) –


Devem ser apenas as saudades que alguns tinham. Engordaste muito,
nem pareces a mesma. Já nem fazes jus ao teu nome. Agora pareces
alegria, bonança (Faz gesto de semicírculo perto dos quadris da Pa-
xiningongo.), abundância! Tem kimbombu e kombota para beberes e
voltares às tuas formas mais apetecíveis rapidamente.

Paxiningongo (Sorrindo com o Poko e o Ndolo, olhando para o Ma-


kutu.) – Não mudaste esse teu desejo esses anos todos? Vi que há
vinte e duas mabhata à volta da tua kubata, e ainda estão a construir
mais duas. Duas dúzias de esposas não te chegam? Eh? No entanto
(Dá meia volta e bate na sua própria anca.), esse meu corpo é porque
a aldeia que estou é a melhor. Tem tudo para nos deixar assim (Evi-
dencia os seios à frente do Makutu.) ou maiores, muito maiores.

Ndolo (Pavoneando-se, passando a mão sobre a sua cabeça que está


completamente rapada.) – Mas na minha há mais sábios! Na aldeia
em que moro agora, estamos cada vez mais sapientes, cada vez mais
perto da omnisciência. A nossa fama é tal que, quando chegámos
aqui, vários aldeões disseram que nos oferecerão as lavras que os nos-
sos avós abandonaram como presente de agradecimento por a nossa
sabedoria melhorar as suas vidas.

Poko – Podem até ser sábios, vocês (Mostra um dos seus bíceps, le-
vantando e fletindo um dos braços.), mas os guerreiros da minha al-

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UM CARDUME DE BAGRES PARA O SOBA

deia são mais audazes, incrivelmente mais fortes. Lá eu faço jus ao


meu nome. Cada chapada minha numa luta corta mais que a dentadu-
ra de dez leões. Nunca fui vencido por ninguém. Nem queiram sentir
um soco meu! Até as catanas se enferrujam quando estou perto delas!

Makutu (Solta uma gargalhada.) – Amigos, amigos, vejo que ne-


nhum de vocês perdeu o espírito de comicidade. Na vossa ausência,
antes de me tornar soba, eu tive educação dos Samanyonga do Leste,
adquiri a sabedoria dos Nkwamanzai do Norte, a marcialidade dos
Ngola do Oeste e a força dos Kwanyama do Sul. As mulheres, os
sábios e os guerreiros mais sublimes estão aqui! A minha aldeia é a
melhor das aldeias, por isso é que ela está no centro (Aponta para a
cadeira.), por isso é que só aqui é que a omangu pode ser adornada
com samakaka. (O Ndolo solta um muxoxu, com olhar de reprovação,
enquanto a Paxiningongo e o Poko se riem.) Vocês têm de reconhe-
cer que até mesmo as vossas aldeias dependem da minha, caso contrá-
rio, os vossos sobas não me pagariam tributo e nem vos deixariam vir
aqui quando eu vos convoquei tão em cima da hora.

Ndolo (Sorrindo.) – Makutu, Makutu, makutwe! Se essa é a melhor


das aldeias por estar no centro, diz-nos: porque tiveste de ir aos lados
setentrional, meridional, ocidental e oriental para ser educado?

Makutu (Em tom requintado.) – Para me adaptar à inteligência de


outras aldeias, Ndolo. Achas que é por nada que a minha aldeia se
chama Afrika? O continente todo está representado aqui! Bantu, Impi,
Tutsi, Zulu… todos os povos se encontram cá. Mesmo os que foram
levados para fora, para o estrangeiro, estão aqui representados. Con-
sigo entender quem crê em Kyanda e quem faz os rituais a Iemanjá.
Percebo quem luta ngolu, a dança marcial da zebra, e quem luta capo-
eira, quem age como Njinga Mbandi ou quem vive no lado onírico de
Luther King. Sabes muito bem quão ricos em conhecimento somos!
Até o nosso repertório discursivo é sem igual. É kimbundu conspícuo,
sem corrupção, o primeiro kimbundu dos nossos antepassados. Pre-
tendem que eu vos fale na linguagem de soba, na linguagem soberana

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NGOMA USUKU

e enigmática desta aldeia? (Gargalha. Para a Paxiningongo e o Poko,


em tom mais requintado, enquanto o soldado 1 e o soldado 2 se en-
treolham, preocupados.) Se eu vos ferir com palavras, não poderão,
em herança, conferir as vossas lavras sem se referir a larvas (Para o
ndolo.), pois proferir favas é auferir parvas covas que cavas.

Ndolo (Fixando o olhar para o Makutu, desafiante, sorrindo. O sol-


dado 1 dá um passo em aproximação do Ndolo, empunhando a sua
lança.) Fácil de se retrucar esse teu solilóquio que demonstra que o
teu íntimo está em comoção. Estamos aqui por uma simples acção, e é
por ela que nos mandaste chamar, pois nós somos para ti a solução,
não? Então, sobre o que se passa na tua aldeia em reacção dominó,
fala-nos sobre a repressão e a opressão... (Irónico.) sem pressão.

(Paxiningongo bate palmas alegres. Poko sorri. Makutu suspira. Ma-


kutu faz sinal para que o soldado 1 e o soldado 2 saiam. O soldado 1
e o soldado 2 saem pela direita do palco. Makutu faz sinal para que a
Paxiningongo, o Ndolo e o Poko se sentem em esteiras. Makutu sen-
ta-se na sua cadeira tradicional.)

Makutu (Sério.) – Está bem. Está bem, meus amigos de infância.


Chega de falsear alegria. Vamos ao ponto principal.

(O soldado 3 entra, à esquerda do palco, faz uma vénia ao Makutu. O


soldado 3 volta-se para o público, aponta a lança para alguém da
plateia e, com veemência, bate a haste da lança contra o chão.)

Soldado 3 (Sério.) – A conversa que ocorrerá agora é secreta. Todos


os que a ouvirem não devem nunca a revelar a ninguém. (Para a Pa-
xiningongo, o Ndolo e o Poko.) Estão todos sob juramento.

(a Paxiningongo, o Ndolo e o Poko levantam a mão ao ar. Makutu


suspira, passa a mão sobre o rosto. Ndolo e Poko entreolham-se,
preocupados. Paxiningongo, respeitosamente, pousa a sua mão sobre
o pé do Makutu.)

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UM CARDUME DE BAGRES PARA O SOBA

Paxiningongo – Estamos prontos para te ouvir, soba Makutu. O que


se passa? Porquê nos convocaste com tanta urgência? Porquê os nos-
sos sobas quase que nos retiraram às pressas das nossas casas para
virmos aqui?

Makutu – Pelo que o Ndolo acabou de dizer, sei que os boatos já


andam a se espalhar. O que posso vos confessar, vos confirmar, é que
estamos a viver um sério problema aqui. Nem mesmo os vossos sobas
têm certeza desse fato, mas, juntando os boatos e a reverência que
eles devem à minha soberania, responderam prontamente ao meu pe-
dido. O assunto é o seguinte: Perdemos os peixes da paz. (a Paxinin-
gongo, o Ndolo e o Poko sobressaltam-se.) Se não houver paz entre
os aldeões, não haverá paz com os de fora. Todas as tribos entrarão
em guerra. Nós, infalivelmente, nos mataremos a nós mesmos…

Ndolo – Acho que não precisa de ser assim. Podemos solucionar isso
de forma fácil. Podemos mudar de peixe da paz…

Makutu – Como assim?

Ndolo – O peixe da paz é o bagre, certo? (o Makutu, o Paxiningongo


e o Poko meneiam a cabeça, positivamente.) Se já não há bagres, es-
colhemos outro. Um carapau, uma sardinha, um calafate… sei lá!

Paxiningongo – Não! Estaríamos a desrespeitar a cultura, as tradi-


ções. Mudaríamos muita coisa. A carne do bagre é excelente para
apaziguar a raiva e o ressentimento entre homens e mulheres. Não
sabemos que sentimentos surgiriam se fosse com outro peixe. Por
outra, algumas tribos teriam dificuldades em apanhar peixes que são
do mar.

Poko – Concordo. Mudar de peixe neste momento poderia fomentar a


guerra entre as tribos. As aldeias poderiam até se rebelar contra o
Makutu, achando que ele está a impor-lhes um fardo pesado demais
para carregar.

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NGOMA USUKU

Makutu (Sorrindo, aliviado.) – Acabaram de me provar que fiz uma


escolha sábia ao vos convocar. Não podemos deixar que essa energia
negativa se apodere das nossas aldeias! Preciso que façam uma visto-
ria, principalmente naquelas nossas lagoas secretas, aquelas que só
nós os quatro sabemos. Se eu convocasse outros, não sei o que estes
fariam por ambição. Poderiam levar o peixe da paz apenas para as
suas aldeias e começariam a comerciá-lo. Isto não pode acontecer. Se
vocês concordarem em ir procurar e encontrarem os peixes, devem
trazê-los vivos como amostra para que, seguindo rigorosamente as
tradições, comamos um bagre nós os quatro como meu pedido de
desculpas pela massada que vos dou. (o Ndolo, a Paxiningongo e o
Poko meneiam a cabeça, positivamente.) Muito bem. Vocês farão o
que combinarmos e somente o que combinarmos. Não se preocupem
com mantimentos para a viagem. Precisam apenas de ser rápidos para
que o problema que temos em mão não se agrave.

Antes da viagem.

Paxiningongo (Sentada, amarrando rapidamente algumas trouxas de


roupa. O Ndolo está de cócoras ao seu lado, passando-lhe algumas
peças de roupa. O Poko está de pé, segurando uma trouxa de roupa
sobre o seu próprio ombro.) – Essa viagem vai ser interessante. Ago-
ra que o Makutu nos abarrotou de garrafões de kapuka das ponteiras
para os momentos de stress e relaxe, tudo melhorou! Passar por Sa-
kapinji e Kalandula, as quedas, será empolgante ao desembocar de
um bom reco-reco dessa bebida! Há quanto tempo não fazíamos coi-
sas assim, juntos?

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UM CARDUME DE BAGRES PARA O SOBA

Ndolo – Embora seja interessante e empolgante, será perigoso tam-


bém. Temos de ter muito cuidado, cuidado redobrado. Quando o Ma-
kutu enviou um mensageiro para me convocar na minha nova aldeia,
ele disse que o próprio Makutu também iria nessa viagem. Não en-
tendo porque ele mudou de ideias. Se fôssemos os quatro, seria mais
rápido. Ou, pelo menos, ele podia destacar alguns soldados para irem
connosco. Mas, pronto! Ele é soba, tem afazeres soberanos. Paxinin-
gongo, com o corpo que tens, vais conseguir fazer todas as manobras?

Paxiningongo – Ndolo, tenho confiança de que Nzambi cuidará de


nós, assim como cuidou da minha esterilidade...

Poko – Tens razão. Há muitas pessoas a sofrer. Não podemos deixar


a nossa aldeia, a aldeia que nos viu nascer, nesta confusão. Eles podi-
am até se matar uns aos outros. Os nossos irmãos, primos e pais estão
aqui. E isso pode se alastrar até às aldeias onde vivemos agora. Espe-
ra... esterilidade... estás… grávida? (Paxiningongo meneia a cabeça
em positividade.) Essa não é barriga de bebida com carne grelhada?
(Paxiningongo meneia a cabeça em negatividade. Poko pousa a trou-
xa de roupa sobre o chão e abraça Paxiningongo. Ndolo senta-se e
pousa a mão sobre a barriga da Paxiningongo) Essa roupa bem larga
que meteste também está a nos enganar. Aquele compadre finalmente
te atingiu no ponto! Essa abundância toda não é banha de comida, é
banha de…?

Paxiningongo – (Sorrindo.) Já te respondi que estou grávida. Essas


perguntas todas são mais pra quê então? (Para Ndolo e para Poko,
sussurrante.) Ou estão a querer os detalhes? (Gargalha.) Vocês ainda
são crianças! Não posso vos explicar as técnicas e as manobras. (o
Ndolo e o Poko sorriem. A Paxiningongo faz expressão facial de tris-
teza.) O pior é que, como se fosse maldição do meu nome, o meu
esposo (Com voz chorosa.) … o meu marido faleceu. (Poko e o Ndolo
fazem expressão facial de susto, depois, de tristeza. A Paxiningongo
leva as mãos ao rosto e fala com voz chorosa.) Ah, Nzambi, Nzambi,
porque me dás alegria e depois me dás tristeza?! Minha vida é só so-

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NGOMA USUKU

frimento? Toda hora só eu é que lamento? (Ndolo pousa a mão sobre


a cabeça da Paxiningongo. Esta abraça-o e chora sobre o ombro
dele.) Foi exatamente dois dias depois de receber essa convocatória
do Makutu. Meu marido ficou muito doente, mas me aconselhou a vir
aqui, mesmo grávida de sete meses, se ele morresse…

Poko (Triste.) – Os meus pêsames, minha grande amiga. Lamentamos


contigo o teu pesado luto. Viveste com o teu marido por quase duas
décadas, e agora que vos abençoam com filho, acontece esta desgra-
ça? Se te consola, posso vos dizer que eu já estou quase a me casar…

Paxiningongo (Emocionada.) – Eh! O grande mulherengo! (Sorri,


limpando as lágrimas, mas a voz continua parcialmente chorosa.)
Parabéns, ngombidi arrependido! Que tipo de mulher é essa que te
convenceu a ficar apenas com ela?

Ndolo (Para o poko, engraçadamente mordaz.) – Será que ela tem


cem vezes mais curvas que as outras? Será? Será que ela é possuidora
de mil vezes mais mel que as outras? Porque não a trouxeste para a
conhecermos?

Poko – Para ela se apaixonar por ti? Tive de seguir os teus conselhos
para poder fazer ela acreditar que o que pende da minha Baixa de
Kasanji é só p’rá ravina dela.

(O Ndolo sorri, a Paxiningongo faz expressão facial envergonhada,


meneando a cabeça em negatividade.)

Ndolo (Levanta-se, apanhando uma trouxa com a mão esquerda e


entregando outra trouxa ao poko com a mão direita.) – Bem, vamos
começar então a viagem. Lembram-se do que fazíamos quando crian-
ças? Apanhávamos peixes no rio Kwanza e metíamos os mais bonitos
nos esconderijos do rio Lutaya. Desconfio que aqueles peixes tenham
a solução que precisamos. Talvez alguns sejam bagres. Só temos de
falar com os aldeões de Lutaya. Desconfio que no rio Kasai também

23
UM CARDUME DE BAGRES PARA O SOBA

haja, pois era o esconderijo preferido do Makutu quando queria ocul-


tar de nós os peixes mais especiais que ele apanhava. (Suspira, ale-
gre.) Sendo sincero, eu não queria ir nessa missão depois de sentir
muita arrogância em cada palavra que o Makutu dizia. Ele não era
assim quando éramos crianças. Mudou muito. Parece que o poder
corrompeu-lhe em demasia. Mas, foi graças à procura do Makutu que
eu fui encontrado pelos meus pais. Vocês também ajudaram muito.
Tenho de agradecer a essa aldeia por isso. Vamos. A aventura nos
espera!

O Makutu está sentado na sua cadeira tradicional, com a cabeça


abaixada. Coça os cabelos. Retira a catana do cós das suas roupas e
lança-a para o palco com impaciência. Suspira. Levanta o rosto len-
tamente e fixa o seu olhar avermelhado, irado, para o público.

Makutu (Para alguém da plateia, irritado.) – Se há alguma informa-


ção que me possam dar depois desse tempo todo, entrem. (Aponta
para a direita e para a esquerda do palco, com as mãos correspon-
dentes.) Entrem, já disse! (O soldado 3 entra à esquerda do palco e o
soldado 4, musculado, entra à direita, cada um segurando uma lança.
O soldado 3 e o soldado 4 fazem uma vénia ao Makutu) Como estão
as coisas? Há futuro ou não há futuro? Terei a energia positiva, a
energia absoluta só para mim? A confirmação da minha permanência
nesta omangu ainda é afirmação, ou passou a ser apenas dedução?

24
NGOMA USUKU

Soldado 4 (Com voz firme, grossa, máscula.) – Soberano soba Maku-


tu, já faz uma semana que os três amigos do meu soba, Paxiningongo,
a estéril, Poko, o mulherengo, e Ndolo, o desaparecido, foram procu-
rar o peixe da paz. Eles não conseguiram encontrar nada no Kwanza,
e tiveram o mesmo resultado desprovido de êxito no Lutaya. (Makutu
range os dentes, colérico.) Quase morreram nas quedas de Sakapinji e
estão fatigados por causa das peripécias nas quedas de Kalandula. A
viagem foi acidentada, mas eles finalmente chegaram ao rio Kasai, a
última esperança de encontrarem o objetivo da sua missão.

Makutu (Exaltado.) – Só agora chegaram ao Kasai?! (Desce da ca-


deira e apanha a catana.) Eu lhes dei indiretas para eles entenderem
que infalivelmente havia bagres no Kasai. No Kwanza e no Lutaya
eram apenas despistes, atrasos, se houvesse alguém que estivesse a
ouvir a nossa conversa. (Para o soldado 3.) Já que é assim, faz provi-
sões para que o resto da viagem deles seja melhor. O povo já está
louco! Ontem, duas tribos entraram em fortes conflitos mesmo depois
de receberem minha ordem direta para não lutarem. Quase que já não
se respeita a palavra do soba. Tudo agora é resolvido com mão de
ferro... Sangue. Eu não me tornei soba para isso. Que maldição é essa
no meu sobado? Vai! Arranja as coisas. Faz como combinámos, exa-
tamente como combinámos, senão alguns entrarão em insurreição,
terão a audácia de pensar em me destronar. Vou anular de uma vez
por todas essa energia negativa. (O soldado 4 intenta falar, mas o
Makutu olha para ele e grita, apontando-lhe a catana no rosto. O
soldado 4 engole em seco.) Esta é uma conversa extraordinária de-
mais para você conduzir resposta impeditiva nesta instância. O foco
deve ser induzir falsa esperança, reduzir desconfiança, produzir mais
pujança e seduzir para a intemperança, só assim viremos a introduzir
quebrança para se zurzir com matança! Vão!!! (O soldado 3 e o sol-
dado 4 saem, correndo.) Daqui a pouco virão mais aldeões reclamar.
O que é que essa gente quer de mim? Eu não sou Nzambi… ainda.
(Sai.)

25
UM CARDUME DE BAGRES PARA O SOBA

O cardume.

Paxiningongo (Segurando folhas, sentada sobre uma pedra, entre


chanas, tendo um dos braços enfaixados.) – Essa viagem está a me
dar muita fome. Não é fácil aturar gravidez assim. Quem me mandou
vir nessa aventura? Já escapei morrer três vezes. (Suspira. Olha para
o seu próprio ventre.) Isso tudo é só vontade de cumprir com o desejo
do teu pai, filho? Aqueles dois estão a demorar muito. (Gritando para
a sua esquerda.) Ndolo? Poko? É como então aí? Está quase a anoite-
cer. Se não encontrarmos hoje, podemos muito bem voltar a tentar
amanhã. (Suspira, solta um muxoxu, meneando a cabeça em negativi-
dade.) O rio fica a quinhentos metros daqui. Não estão a me ouvir.
Devem estar a tomar banho, ou a se divertir com uma mulher nua
qualquer que encontraram a nadar aí. (Para as folhas.) Será que dá
p’rá vos comer tipo kizaka, ou pelo menos para fazer um bom saka-
madesu? Eu trouxe feijão...

(À esquerda do palco, entra a kalumba, menina de uns doze anos,


correndo, trajada de vestes tradicionais.)

Kalumba (Para a Paxiningongo, gritando.) – Não come essas folhas.


Isso mata! (Paxiningongo larga as folhas rapidamente, deixando-as
cair no palco.) Aqui não se come à toa. Comida daqui tem que ser
indicada pelos daqui; os das outras aldeias não sabem nada disso. Por
isso é que morrem à toa. Algumas das meninas daqui até usam essas
folhas pra fazer aborto.

(À direita do palco, entram Ndolo e Poko, segurando, cada um, um


balde de água numa mão e uma rede de pesca na outra, dançando
rebita.)

26
NGOMA USUKU

Poko (Alegre.) – Encontrámos, encontrámos finalmente! (Paxinin-


gongo levanta-se e dança alegremente rebita com eles, dando uma
masemba ao Ndolo e outra ao Poko. A kalumba bate palmas, sorrin-
do.). Agora podemos voltar para casa. A aldeia que nos viu nascer vai
realmente ficar em paz. (A Paxiningongo olha para o interior do bal-
de na mão do Ndolo e sorri.) Os que vão dar à luz, vão dar à luz, os
que vão casar, vão casar. Alegria! Alegria! Eu não sei o que vou fa-
zer, talvez vá procurar mulheres também.

Paxiningongo – Eu tenho muita, muita fome. Vamos ainda descan-


sar. (Senta-se, resfolegando.) Me grelham ainda dois bagres desses.
(A kalumba sobressalta-se.) Vou ver com essa menina que folhas
escolher para misturar, já que ela diz que essas folhas daqui são usa-
das para aborto. No meu caso, pelo tempo de gravidez, acho que só
me levaria a ter um parto prematuro. Mas, eh! Estou a falar isso por-
quê? Esse peixe tem de ser engolido agora, com bom tempero. E
quente, bem quente!

Poko – O peixe até podes comer, mas não vais beber nem kimbombu
nem kombota nem kapuka. Estás grávida, Paxiningongo…

Kalumba (Exaltada.) – Bagres?! Vocês encontraram bagres? Vocês


não podem comer esse peixe. Esse já não é peixe da paz, mas o peixe
da morte. Vieram pessoas aqui que (Aponta para a direita do palco.)
construíram aquelas mabhata de cimento, grandes jinzu, e lá muitos
trabalham e o líquido que sai de lá fez mal aos peixes e os peixes fa-
zem mal a nós. Antes, nós não tínhamos bagres aqui. Quando come-
çaram a aparecer, pensámos que era uma bênção. Depois de uns anos,
muitos dos aldeões começaram a morrer…

Poko (Para a kalumba, preocupado.) – Tens certeza disso?

Kalumba (Passa o indicador da mão direita sob o queixo.) – Juro


pelo sangue da minha mãe que está em baixo da terra! Ela morreu por
causa desse peixe. Podem ver a cor. Cor de bagre bom não é essa. (A

27
UM CARDUME DE BAGRES PARA O SOBA

Paxiningongo, o Poko e o Ndolo olham para os baldes, colocam a


mão no seu interior. Retiram, cada um, um peixe e o observam.) Vi-
ram? Viram como?

Paxiningongo (Enojada.) – Até o cheiro é estranho!

Ndolo – Se essa menina está a falar a verdade, então aqui perto há


uma empresa que está a lançar produtos tóxicos para os rios. De-
vemos falar com o Makutu (A kalumba sobressalta-se.) para que se
reúna com os sobas das outras aldeias. O problema vai-se alastrar se
continuar assim. Não será apenas o peixe da paz que desaparecerá, até
os campos, o gado, tudo o que o rio toca fará mal a quem entrar em
contato com ele.

Kalumba (Assustada.) – Makutu?! Makutu é makutu! Makutu é men-


tira. Ele é mentiroso. Ele mesmo é que mandou o nosso soba dar esse
terreno ao dono da fábrica. Construíram essa maldição para nós. Mi-
nha mãe me disse isso antes de morrer. Makutu queria ficar com ela,
ela não aceitou. Ele lhe obrigou a comer esse peixe!

Paxiningongo (Leva as mãos à cabeça, preocupada, olhando para


cima, enquanto o Poko e o Ndolo fazem expressão facial de dúvida.) -
Nzambié! Nzambi! Isso é verdade? Isso é mentira? (Para o Poko e
para o Ndolo.) Vamos levar esses peixes para a aldeia do Makutu
para averiguar este assunto. São acusações gravíssimas as que acabá-
mos de ouvir. Por outra, o meu marido, antes de morrer…

(Entra um homem com vestes e máscara de mukixi que dança ale-


gremente, interrompendo a fala da Paxiningongo. A Paxiningongo, o
Ndolo, o Poko e a Kalumba olham para ele, admirados. Ele passa
pelo Poko, dançando, pelo Ndolo, dançando, pela Paxiningongo,
dançando, e, quando chega perto da kalumba, vira-lhe o pescoço,
torcendo-o. A kalumba cai, com os olhos fechados. A Paxiningongo
grita. O Poko e o Ndolo largam os baldes e correm na direcção do
mukixi. O mukixi derruba o Ndolo, desferindo um golpe de capoeira

28
NGOMA USUKU

contra o rosto deste. O Poko agarra o pescoço do mukixi com as duas


mãos, furioso, e bate o seu joelho esquerdo contra o peito do mukixi,
enquanto a Paxiningongo se aproxima da kalumba para tentar rea-
nimá-la. O Poko bate o seu joelho direito contra o queixo do mukixi,
depois bate o seu cotovelo contra as costas do mukixi. O mukixi
agarra o Poko pela cintura, para o projetar, o Ndolo empurra o mu-
kixi, e o Poko pontapeia o lado direito do rosto do mukixi. O Ndolo
empurra novamente o mukixi e o Poko pontapeia o lado esquerdo do
rosto do mukixi. A Paxiningongo segura uma grande pedra. O mukixi
rasteira o Ndolo e bate a planta do seu pé contra o estômago do Po-
ko. O Poko cai, deixando cair os baldes. O mukixi bofeteia a Paxi-
ningongo, que cai com a pedra. O Poko derruba o mukixi, esmurran-
do-o brutalmente contra o peito. O mukixi cai, o Poko senta sobre a
barriga do mukixi e esmurra o rosto dele várias vezes até que a más-
cara de mukixi sai do rosto do mukixi e eles conseguem ver que é o
soldado 3. A Paxiningongo aproxima-se e bate a pedra contra a ca-
beça do soldado 3.)

Soldado 3 (Gritando.) – Ai! Ayue! (A Paxiningongo intenta bater


novamente a pedra contra a testa do soldado 3, mas o Ndolo a impe-
de, recebendo-lhe a pedra.) Não adianta me matar. Agora os vossos
bagres também estão mortos. Sem água não chegarão com eles vivos.
Foi o Makutu que me enviou para vos controlar e só vos deixar entrar
na aldeia se não descobrissem esse assunto, por isso matei essa meni-
na que vos revelou isso. (Retira uma faca das suas roupas, sorratei-
ramente.) Éramos dois, mas o outro virou-se contra mim no caminho
e tive de o matar. Parece que ele não concordava com as ideias sobe-
ranas do Makutu. Vocês estão todos condenados. Vão morrer aqui
porque vêm aí mais soldados como eu. Depois de vocês serem mor-
tos, mandaremos outros para procurarem o bendito peixe da paz. Ma-
kutu fará isso vezes sem conta, vezes sem conta, até ele encontrar os
escolhidos para gerar a energia positiva absoluta, nem mesmo que
seja o filho dele primogénito. Vocês estão condenados! Condenados!
(Intenta espetar a faca na jugular do Poko, mas o Ndolo bate feroz-
mente a pedra contra a testa do soldado 3. O soldado 3 estrebucha e

29
UM CARDUME DE BAGRES PARA O SOBA

fecha os olhos. O Poko range os dentes e soqueia o chão. Levanta-se


e olha para os baldes deitados e os peixes sobre o chão. O Poko gri-
ta, irritadíssimo. O Ndolo corre na direcção dos baldes e coloca al-
guns peixes dentro dele, apanhando-os do chão.)

Paxiningongo – Não estamos condenados nada. Estamos longe de


qualquer rio e, se formos a uma aldeia, até voltarmos, esses peixes
estarão mortos. (Apanha algumas folhas e pousa as mãos sobre a sua
própria barriga.) Eu tenho água aqui.

Poko – Não, não, não! Esquece isso! Os teus filhos...

Paxiningongo – Não temos tempo a perder. Vou comer essas ervas


para o bem de todos nós. Que seja o que Nzambi quiser. Vamos. O
tempo urge! Vamos por outro caminho para não nos encontrarmos
com esses soldados. Com certeza, o Makutu não poderá nos matar na
própria aldeia dele para não chamar atenção indevida dos outros so-
bas. Assim como há soldados que não concordam com o pensamento
dele, mais pessoas poderão nos ajudar lá. Temos apenas de confiar
em Nzambi para eliminarmos esse mal de uma vez por todas. Pelo
que vejo, só há uma solução, e só nós, dando as nossas vidas, pode-
remos resolver isso. (Pousa a mão sobre o ventre.) Perdoa-me, filha.
(Para o Ndolo e o Poko.) Vamos! Vamos! (O Ndolo, o Poko e a Pa-
xiningongo saem de cena andando rapidamente, enquanto a Paxinin-
gongo põe as folhas na boca. O soldado 3 levanta-se, tossindo, e sai
pelo lado oposto, cambaleante.)

Entre esposas e concubinas.


A Dizanga e a Kimpa estão de pé, cada uma pegando um grande pau,
batendo-o no interior do grande almofariz que está entre elas. A Tu-
taleni entra, correndo.

30
NGOMA USUKU

Tutaleni (Resfolegando.) – Num vos conto num vos falo. (A Dizanga


e a Kimpa sobressaltam-se, e ficam à frente do almofariz, como se o
quisessem esconder) Só o que está a acontecer!

Dizanga e Kimpa – Hum! O que é?

Tutaleni – As três visitas do nosso marido então já estão quase a


chegar. Ouvi já umas aí a se baterem no peito por que “ah, agora é
que as coisas vão melhorar!” Essa gente! Sonha muito e sonha à toa.
Desde que o Makutu tomou as rédeas dessa aldeia que as coisas estão
bem. Agora, só por causa de um problema… inda por cima problema
de peixe, esquecem tudo?

Kimpa – Tutaleni, você é mulher de soba, come do bom e do melhor


todos os dias. Não tens preocupações. Os aldeões estão preocupados
com a geração futura, o que aguarda a nossa linhagem que vai conti-
nuar com as nossas tradições. A ditadura imposta pelo Makutu…

Tutaleni (Para a Kimpa, ríspida, interrompendo-a.) – Eh, Kimpa!


Você que de concubina não passa, estás a falar o quê? Estás a se fin-
gir de inocente? (Para Dizanga.) Lembras quando isso começou?
Quando éramos só cinco? Estava tudo bem. Paríamos à vontade e
tudo era nosso. Esse estalo de mandar em tudo é que pôs o Makutu
assim. Desconfio que foi uma concubina que pôs isso no coração de-
le. (A Dizanga faz expressão de admiração enquanto a Kimpa solta
um muxoxu.) Ah, sim! Só depois de ele começar a ter filhos com as
nossas escravas é que ficou assim. (Para a Kimpa.) Como sabemos,
você, Kimpa, é a primeira concubina, a mãe grande das sobras que
deixámos para o Makutu vos dar. Como andaste a se roer de inveja
para chegares aos nossos pés, chateaste tanto a cabeça do Makutu que
ele ficou assim frustrado. Agora estás aí a vir por que… xé! (Faz ges-
to como se fosse esbofetear o rosto de Kimpa.) Vou te…

Dizanga – Cuidado com o que falas, Tutaleni. A Kimpa é escrava da


Ngeve. (Impede a Tutaleni de voltar a levantar a mão contra o rosto

31
UM CARDUME DE BAGRES PARA O SOBA

da Kimpa. A Tutaleni olha para o interior do almofariz) Não tens


medo de como as coisas estão? Um dia, para ter cada vez mais poder,
o Makutu pode até chegar a vender-nos ou, pior, vender os nossos
filhos!

Tutaleni – Falas demais e falas à toa. (Apontando para o interior do


almofariz.) Eh! Isso aqui é quê que vocês estão a pisar? Isso aqui não
é antídoto da aldeia dos Nkwamanzai, aquele antídoto que cura tudo?
É pra quê isso? Já vos desconfiava. Estão muito amigas, amicíssimas
demais pro meu gosto. Vou vos queixar!

(Começa a andar para sair, mas entram o soldado 1 e o soldado 2


que ficam à frente da Tutaleni, impedindo-lhe a passagem.)

Soldado 1 (Para Kimpa e Dizanga.) – Pelas informações que temos,


a Paxiningongo, o Poko e o Ndolo já estão muito perto daqui. Encon-
traram o peixe da paz! (A Kimpa e a Dizanga olham para cima, le-
vantando as mãos com alegria.) Eles também já forjaram um plano
para deter o Makutu. O reinado dele está a devorar as nossas terras.
Está a matar os nossos familiares que não concordam com ele. Acaba-
ram o vosso trabalho?

Tutaleni – Xé! Vocês estão a conspirar contra o meu marido?! Vou


vos queixar! Hoje mesmo vão ser mortos. (Dá passos para sair de
cena, mas o soldado 1 e o soldado 2 a seguram pelos braços, impe-
dindo-a.) Eh! Me largam! Ninguém me toca aqui. Socorro! Socorro!
(Entra a Ngeve.)

Tutaleni – Primeira esposa, primeira esposa do Makutu, vê só estão a


me prender. Me ajuda, Na Ngeve. Me ajuda!

Ngeve – (Para o soldado 1 e o soldado 2.) Escondam-na, bem amar-


rada!

32
NGOMA USUKU

(A Tutaleni sobressalta-se e faz movimentos bruscos enquanto o sol-


dado 1 e o soldado 2 continuam a agarrá-la com firmeza.)

Dizanga (Suspira.) – Se não sabes bem a história, eu te explico, Tuta-


leni. As coisas iam bem nesta aldeia, até o primeiro soba falecer. O
herdeiro dele desapareceu misteriosamente e ninguém sabe o seu pa-
radeiro. Depois, o Makutu sentou-se naquela omangu com samakaka.
Todavia, ouviu-se que o primeiro soba, antes de falecer, disse à sua
esposa mais jovem que, se houvesse um soba mau, este seria derrota-
do no dia em que aparecesse um cardume do peixe da paz. (Para a
Ngeve.) Essa esposa és tu, Na Ngeve. Makutu até hoje não sabe disso.
Mas alguns dos anciãos da aldeia sabem, e é por isso que estão a fazer
tanta confusão, visto que pensam que o desaparecimento do peixe da
paz pode garantir a Makutu o reinado eterno.

Tutaleni – Então estão a me prender p’rá quê? Esses velhos amigos


do Makutu já não reencontraram o peixe da paz para se garantir que
as coisas voltem ao normal? Eu só quero criar bem os meus filhos.
Isso de superioridade perante os outros não me interessa p’rá nada.
Pobre ou rico, magro ou forte, há um momento na vida em que en-
gordamos muito e depois emagrecemos absurdamente: este momento
chama-se morte. Somos todos iguais, não importam as posses. (Para
a Ngeve.) Então, vamos só chamar o nosso marido à razão, e pronto!
Ele vai entender.

Ngeve – Achas que já não tentámos, Tutaleni? Achas? Cada chapada


que levámos! Até dentes já perdemos. Acho que ele não nos matou
com aquela catana só porque Nzambi não permitiu. (Para o soldado 1
e o soldado 2.) Prendam-na bem longe daqui, ainda que este bem lon-
ge signifique que ela deixe de respirar.

Tutaleni (Enquanto é arrastada pelo soldado 1 e pelo soldado 2.) –


Eu vou me libertar e o Makutu vai saber disso! (Gargalha malefica-
mente.) Ele já tinha ideias de superioridade, mas eu lhe influenciei
mais ainda, lhe mostrei o caminho do proibido. A ideia vocês já de-

33
UM CARDUME DE BAGRES PARA O SOBA

vem ter entendido: é colocar tudo e todos aos nossos pés. O vosso
pensamento é pequeno demais. Eu sou Namanyonga, dona dos pen-
samentos. Sou mais intrépida e inteligente que os Samanyonga e os
Nkwamanzai. Vocês não querem se submeter a esse desejo, melhor
para mim, menos esposas para partilhar o meu homem. O meu povo
me expulsou e vim para aqui. Apenas o Makutu me acolheu como
quinta esposa. Vi um espírito nele que confluiu com o meu… e assim
seremos, unidos, para sempre.

(O soldado 1, a Tutaleni e o soldado 2 saem.)

Ngeve (Para a Kimpa e a Dizanga.) – Hoje é o dia de libertação.


Vamos depositar toda a nossa esperança naqueles três, mas, se eles
não conseguirem, nós mesmos lutaremos hoje contra o Makutu. Se
não o conseguirmos vencer, ao menos morreremos tentando. (Apon-
tando para o almofariz.) Tragam isso para a minha kubata. Que
Nzambi seja piedoso connosco!

(A Ngeve sai. A Kimpa e a Dizanga saem, levando o almofariz.)

Apocalíptico.
O Makutu está sentado na sua cadeira. O soldado 1 e o soldado 2
estão de pé à frente dele. Há quatro esteiras à frente da cadeira.

Soldado 1 – Os enviados para a missão chegaram, soberano soba


Makutu!

Makutu (Alegre.) – Que entrem! (Entram a Paxiningongo, o Poko e


o Ndolo. O Poko está a segurar uma panela da qual sai algum vapor.
O Ndolo está a segurar um balde pesado. A Paxiningongo, o Ndolo e

34
NGOMA USUKU

o Poko fazem uma vénia ao makutu. Este levanta-se. A Paxiningongo


está a suar, mordendo a língua discretamente, abafando gritos.) Ah!
Que cheiro agradável!

Poko (Pousa a panela sobre a esteira.) – Sim, conseguimos, sobera-


no Makutu! Conseguimos! Reencontrámos um grande cardume no rio
Kasai, mas, infelizmente, só conseguimos trazer um bagre grande
vivo e os teus soldados viram quando o cozinhámos. (O Ndolo pousa
o balde sobre a esteira.) Temos um cardume para ti, mas um cardume
apenas de crias. Podes desviar o caudal do rio para aqui ou pescar
muitos e trazê-los vivos para que se reproduzam.

Makutu (Retira a catana do cós das suas vestes e coloca-a perto da


panela.) – Que comamos então! (A Paxiningongo, o Ndolo, o Poko e
o Makutu sentam-se à volta da esteira e à volta da panela.) Como vos
disse, esse é o meu pedido de desculpas pela massada que vos dei.
(Cada um, à sua vez, coloca a mão dentro da panela, retira um peda-
ço de peixe e o coloca na boca. O Makutu faz expressão facial de
satisfação. A Paxiningongo abafa um grito. O Makutu faz sinal para
que o soldado 1 e o soldado 2 saiam. O soldado 1 e o soldado 2
saem. O Makutu volta a colocar a mão na panela, retira um pedaço
de peixe e leva-o à boca, mastigando com prazer. O Ndolo e o Poko
tossem, vomitando. A Paxiningongo cospe o peixe. O Makutu sorri
com triunfo. Volta a colocar a mão na panela, retira um pedaço e
coloca-o na boca, mastigando-o prazerosamente em seguida. A Paxi-
ningongo deita-se sobre a esteira, abre as pernas com os pés assentes
no chão e grita.)

Paxiningongo (Hiperventilando.) – Porque é que nós estamos a nos


sentir mal… e tu bem? Porquê? (O Ndolo e o Poko rolam sobre o
chão, estrebuchando.) Nós viemos aqui dispostos a morrer…, mas
também dispostos a te matar.

Makutu (Gargalha, lambendo os dedos.) – Já vos disse, já vos disse.


Ah! Eu sou superior. Dominei a escrita de Sona e a leitura de Man-

35
UM CARDUME DE BAGRES PARA O SOBA

dombe. Nkwamanzai e Samanyonga, até mesmo Ngola, se curvam


diante de mim. Foi arriscado isso de comeres as ervas para que as tuas
águas rebentassem e pudessem vir aqui com peixes vivos. Se sou as-
sassino, tu és pior, porque perdeste o teu marido e agora mataste os
teus filhos… para quê? Para me matar? Eu? O soberano soba Maku-
tu? (Levanta-se e fica de cócoras à frente das pernas da Paxiningon-
go.) Com a água do teu filho, tenho a coisa perfeita. A energia perfei-
ta para dominar o natural e o sobrenatural, sendo assim líder de todas
as aldeias. Sabias que o teu marido é que tinha de ser o soba aqui? (O
Ndolo e o Poko param de estrebuchar e ficam estáticos, mortos. A
Paxiningongo grita, com lágrimas nos olhos, enquanto se ouve o cho-
ro de um bebé.) Eu fiz com que ele perdesse a memória e fugisse para
uma aldeia distante, mas ele começou a lembrar-se de coisas nesses
últimos meses, por isso tive de lhe dar… como é que eu diria? Paz
envenenada para ele se calar… foi ele que me disse que estás grávida
e foi aí que eu consegui criar esse plano. Foi arriscado, muito arrisca-
do. A primeira kubata que viste a ser construída à volta da minha se-
ria para ti, se não te envenenasses. E a segunda? (Olha para o Poko.)
A segunda será para a noiva do Poko. (Gargalha.) Agora que tenho a
energia de um descendente direto do teu marido, misturada com o
peixe mais mítico de todos, nada me deterá, principalmente porque já
tenho exércitos que me foram outorgados pelos donos das fábricas
aos quais eu cedi aqueles pedaços de terra. Serei autoridade para os
empíricos, serei divindade para os científicos!

Paxiningongo – O teu conhecimento é vasto, mas não tem ecografia.


O teu conhecimento não te fez ver que carrego no meu ventre gê-
meos, um casal de gémeos. (O Makutu faz expressão facial de alarde
e começa a sentir-se mal.) E isso anula qualquer energia que penses
vir a ter.

(A Paxiningongo grita e geme, hiperventilando e ouve-se o choro de


outro bebé.)

36
NGOMA USUKU

Makutu (Para o público, segurando o próprio pescoço.) – Entra.


Entra, já disse! (O soldado 3 entra, saindo do público, claudicante,
andando na direcção de Makutu) Eu fiz tudo que me pediram. (Apa-
nha a catana e anda na direcção da Paxiningongo.) Matei até o ho-
mem dessa sofredora, vendi a fertilidade dela, vendi a lealdade do
Poko às mulheres para que ele nunca fosse leal. Mesmo assim não
deu certo? Até mesmo vendi a vida do Ndolo ao Mayombola. Como é
que ele conseguiu sair de lá? Como é que ela ficou grávida? Esse foi
um plano deles contra mim ou foi um plano vosso contra mim? (A
Ngeve entra, segurando um pequeno cesto artesanal, e fica a olhar
para Makutu. O Makutu olha para ela.) Ngeve, Ngevé! Isso que está
a cheirar na tua mão é o quê? É antídoto? Me dá só, me dá só, mulher,
me dá só!

(Fecha os olhos, cai com a catana, morto.)

Soldado 3 (Para o Makutu.) – Isto sempre foi uma má interpretação


tua. Apenas te pedimos para cuidar da aldeia com toda a força da tua
vida, mas tu levaste isso para o lado obscuro, para o lado do feitiço,
da manipulação e da morte. Nunca existiu isso de energia dominado-
ra, energia negativa, positiva ou absoluta. As pessoas sempre tiveram
livre-arbítrio. Ainda que as obriguemos em acções, não as podemos
obrigar na mente, nos seus desejos mais profundos. Eu, que sou o
mais conspícuo dos Nkwamanzai, também me deixei levar e, agora,
tenho o mesmo destino…

(Cai ao lado do Makutu, com os olhos fechados.)

Ngeve (Para o Makutu e para o soldado 3.) – Este é o resultado da


ambição. (Para a Paxiningongo.) Aqui só há um pouco de antídoto.
Salvar a ti significaria condenar todas as aldeias a ficar eternamente
sem o peixe da paz. Só posso salvar os bagres.

37
UM CARDUME DE BAGRES PARA O SOBA

(Retira o que está dentro do pequeno cesto artesanal e coloca dentro


do balde. A Paxiningongo grita novamente e ouve o choro de mais
um bebé.)

Paxiningongo (Resfolegando.) – Como se chamarão os meninos,


Ngeve? Como?

Ngeve – Não sei. (Segura a catana.) Mas posso lhes cortar o cordão
umbilical para que eles tenham esperança. Há guerra aí fora. Várias
aldeias estão a nos atacar. Não sei mais o que poderei fazer por ti…
ou por mim…, mas se eu lhes mostrar que já temos de volta o peixe
da paz…

Paxiningongo – Será que morrerei? Será que eles também morrerão?


(A Ngeve começa a cortar o cordão umbilical de um dos bebés.) Ago-
ra sou viúva, sem amigos, mas mãe de dois meninos e uma menina…
já sei, serão Poko, Ndolo e… Kidi. Kidi é verdade, o contrário de
Makutu, mentira…Kidi é também o nome do meu marido, aquele que
esse assassino matou. Que seja esse o meu momento de felicidade,
nem que dure por pouco tempo.

(A Ngeve ajoelha-se e começa a cortar o cordão umbilical de outro


bebé. Olha para a Paxiningongo. Suspira. Abaixa a cabeça e chora.)

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NGOMA USUKU

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UM CARDUME DE BAGRES PARA O SOBA

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