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Estado burguês, movimento socialista e democracia – aula 1

Prof. Decio Saes


Bloco I
A origem do Estado Burguês

1. O que é o Estado burguês? Em que momento histórico ele se forma?


2. A resposta a essa pergunta sobre a origem do Estado burguês depende do conceito de Estado
burguês adotado pelo expositor.
3. Por volta do século XIII, ocorreu o renascimento comercial e urbano na Europa Ocidental.
4. Nesse processo, a burguesia comercial de longo curso, que havia declinado durante o período de
fechamento do Mediterrâneo pelos sarracenos e da formação da sociedade feudal, renasce e vai se
tornando influente junto aos centros locais de poder e aos monarcas.
5. Mas o renascimento da burguesia comercial de longo curo não e sinônimo de nascimento do
capitalismo. Sob a forma especifica de capitalismo comercial.
6. As economias ocidentais continuam a ser economias feudais, embora estejam passando por um
processo de mercantilização.
7. Ou seja: as economias ocidentais estão passando, nesse momento histórico, do estágio das
economias feudais de tipo natural para o estágio das economias feudais de tipo mercantil.
8. O renascimento do comercio no ocidente no Ocidente não destruiu as relações socioeconômica
feudais; a servidão do camponês continuou a ser o eixo central do processo de exploração do
trabalho.
9. E o crescimento da influência econômica e política da grande burguesia comercial não implicou a
desmontagem do Estado feudal:
a. O aparelho do Estado continuou a ser controlado pela estrutura fundiária;
b. O sistema jurídico continuou a priorizar os interesses da nobreza, ainda que fazendo
algumas concessões à burguesia comercial.
10. Não se pode, portanto, situar a formação do Estado burguês no momento histórico do
renascimento comercial.
11. Também não se pode situar a formação do Estado3 burguês, no período absolutista; isto é, no
momento histórico que se estende do século XIV ao século XVIII (e ao século XIX, nalguns países
da Eu roupa Central e Ocidental).
12. Para historiadores soviéticos como Boris Porchnev e Joseph Koulisher, o Estado absolutista não
é a primeira forma de Estado burguês; e sim, a última forma assumida pelo Estado feudal.
13. Para essa corrente historiográfica, o Estado absolutista cumpre regularmente a função de manter
a ordem social e feudal:
a. O seu sistema jurídico preserva as relações socioeconômicas servis, que só serão destruídas
no curso da Revolução política burguesa;
b. O seu aparelho de Estado vai intensificar a repressão ao ciclo de revoltas camponesas, que
entra em fase ascensional no século XIV; e, para tanto, vai promover a centralização da
ação repressiva.
14. O que há de específico na atuação dos Estados absolutistas é a tentativa dos monarcas dotados de
poderes ditatoriais (o monarca é declarado “legibus solutus”) de instaurar um equilíbrio, no nível
da política governamental entre os interesses da aristocracia fundiária e os da burguesia mercantil.
15. Mas, esse equilíbrio político não chega ao nível da reorganização do aparelho de Estado feudal e
da reformulação do sistema jurídico feudal.
16. O Estado permanece feudal, mas o monarca procura equilibrar medidas favoráveis às duas classes
dominantes:
a. A favor da burguesia mercantil, o governo absolutista concede subsídios às companhias de
navegação e aos traficantes internacionais de escravos.
b. A favor da nobreza, o governo absolutista assume uma tarefa árdua, que anteriormente
incumbia à própria nobreza das regiões atingidas: a repressão às revoltas camponesas.
17. O resultado histórico dessa busca do equilíbrio político é a progressiva desindentificação das duas
classes dominantes com relação ao Estado absolutista:
a. A aristocracia se lança em movimentos contra a monarquia absoluta, como a Fronda
(insurreição da alta nobreza no século XVII) e a revolta nobiliárquica da década de 1780;
b. A burguesia mercantil se envolve, durante a primeira fase da Revolução Francesa, na ação
pela substituição da monarquia absoluta por uma monarquia constitucional.
18. Concluindo:
a. O Estado burguês não se forma na era do renascimento comercial;
b. O Estado absolutista não é o Estado burguês em sua última forma;
c. É a revolução política burguesa que determina a formação do Estado burguês; e este novo
Estado criará as condições jurídicas ideológicas e políticas para a implantação da economia
capitalista.
19. Cabe agora criticar uma tese histórica de cunho evolucionista. A tese segundo a qual o Estado é o
resultado final da evolução progressiva e natural do Estado absolutista.
20. O pioneiro na defesa de uma tese similar, embora formulada noutros termos teóricos foi o ----
político francês Alexis de Tocqueville, da primeira metade do séc. XIX.
21. Em O Antigo Regime e a Revolução, Tocqueville sustenta que o Estado Absolutista evoluía de
modo progressivo e natural para um alto grau de centralização política e administrativa, típico do
Estado Moderno.
22. Para Tocqueville, a ruptura violenta das instituições políticas, provocadas pela Revolução Francesa,
teria sido inútil.
23. E isto porque, uma vez superada a fase revolucionária, o processo de centralização político-
administrativa teria se recomposto, chegando ao auge com o império napoleônico.
24. Para Tocqueville, mesmo que tivesse ocorrido a Revolução Francesa para uma forma mais
centralizada, típica do Estado moderno.
25. Atese evolucionista escampada por muitos historiadores e cientistas políticos contemporâneos
(por exemplo: François Furet) não é incorreta por apontar a recorrência de um processo de
centralização político-administrativa na passagem do Estado absolutista ao Estado burguês.
26. Esse processo de fato ocorreu; mas ele é apenas uma dimensão especifica de um processo mais
amplo de transformação da natureza de classe do Estado de construção de uma estrutura jurídico-
política radicalista nova.
27. Todas as Revoluções políticas burguesas determinam as transformações jurídicos-politicas bem
mais profundas que a mera centralização político-administrativa; mas a centralização foi um
processo importante para a transformação global do tipo histórico de Estado.
28. Na Inglaterra, a Revolução puritana de 1640 e Revolução gloriosa de 1689 constituíram duas etapas
de Revolução política burguesa, tendo havido entre elas uma tentativa de restauração do Estado
feudal-absolutista comandada pela dinastia Stuart.
29. No curso dessas duas etapas, os agentes revolucionários (pequenos e médios proprietários rurais):

a. Promoveram a abertura do aparelho de Estado a todas as classes sociais;


b. Liquidaram a servidão, que foi sucessivamente revogada, restaurada de forma atenuada na
volta da dinastia Stuart, e reprimida definitivamente após a Revolução gloriosa.

30. Essa Transformação do modo de organização do aparelho do Estado e do sistema jurídico foi
possível graças a centralização político-administrativa promovida por Oliver Cromwell e seu
exército revolucionário.
31. Isto é: a ação da força revolucionária anulou o controle da nobreza feudal sobre o poder local (os
“Condados”), abrindo esse centro de Poder a todos os que comprovassem ser detentores do
mérito pessoal, independentemente da sua origem de classe ou de sua condição socioeconômica.
32. E essa democratização da gestão dos condados permitiu em tese, o exercício de uma pressão estatal
local em prol do cumprimento de nova legislação antissocial.
33. Na França, a Revolução política burguesa começa no bojo de um movimento burguês pela reforma
da monarquia; isto é, pela transformação da monarquia absolutista em monarquia constitucional.
34. Mas, em 1793, há uma radicalização do processo político, e o partido jacobino representante
ideológico das classes populares assumia o controle político da Convenção Nacional, passando a
operar um Poder ditatorial revolucionário através de um órgão executivo- o comitê de Salvação
Pública, onde pontificam lideranças de origem burocrática ou aristocrática, como Robespierre e
Saint- Just.
35. Nessa fase, a Convenção Nacional decreta:
a. A aberturado aparelho de Estado a todos os indivíduos, agora declarados, “cidadãos”;
b. a abolição incondicional da servidão
c. a reforma agrária nas terras da nobreza imigrada.
36. O desentendimento entre camponeses e artesãos urbanas quanto à política de preços máximos e
mínimos vai solapar a base social do comitê de Salvação Pública.
37. Aproveitando essa crise externa do bloco revolucionário, a burguesia constitucionalista,
representada ideologicamente pelo partido girondino, reorganiza-se no pleno político e derruba a
ditadura jacobina.
38. A instabilidade política de governos girondinos, a partir de 1795, leva a burguesia mercantil a se
inclinar para uma forma política ditatorial.
39. O governo unipessoal será oferecido pelo jovem general Napoleão Bonaparte:
a. numa primeira etapa (anos finais do século XIX), através da instituição política nomeada
“Consulado”;
b. numa segunda etapa (século XIX), através da forma política imperial.
40. No período Napoleônico, completa-se a construção de uma nova estrutura jurídico-política de
caráter burguês.
41. Em primeiro lugar, a burguesia mercantil constrói, através dos seus representantes ideológicos,
uma organização estatal de caráter profissional desvinculada de critérios aristocráticos.
42. A oficialidade do Exército é agora, composta por militares de carreira, formação em Escolas
militares; e não mais por aristocratas aos quais se atribui postos militares em função dos seus títulos
de nobreza.
43. Quanto à tropa: ela não é mais formada por mercenários estrangeiros; e por soldados-cidadãos,
recrutados segundo o princípio da conscrição.
44. O funcionalismo social não consiste mais num corpo de dignitários, dependentes a título pessoal
do Chefe de Estado.
45. Os funcionários compõem agora uma Burocracia, isto é, uma organização hierárquica altamente
profissionalizada, estrutural oficialmente segundo o critério do pertencimento da classe.
46. Em 2° lugar, os representantes ideológicos da burguesia mercantil, com Napoleão Bonaparte à
frente, codificam o direito burguês.
47. O texto-chave do novo direito é o código Civil, onde figuram os princípios essenciais para a
reprodução da estrutura econômica capitalista:
a. A incondicionalidade da propriedade (“ou propriedade plena”): ao contrário do que
acontecia no feudalismo (onde a propriedade era condicional), o bem sobre o qual se
exerce o direito de propriedade pode ser vendido, comprado, doado, emprestado, sem
qualquer restrição;
b. O caráter universal da condição do sujeito de direitos: a lei atribuía a todos os indivíduos
independentes da classe social a que pertençam, a condição de sujeitos de direito, isto é, de
seres racionais, capazes de praticar atos de vontade e, portanto aptos a usufruir as
liberdades civis.
48. Pelo código cível burguês, todo o indivíduo exerce os direitos civis elementares, que correspondem
à cidadania mínima, instaurada no momento histórico da Revolução política burguesa.
49. Outras dimensões da cidadania, como s direitos políticos e os direitos sociais, irão exigir no
decorrer do desenvolvimento do capitalismo.
50. O período napoleônico, além de ser o momento- chave da construção do aparelho de Estado
burguês e da codificação do sistema jurídico burguês, foi também o momento decisivo da
centralização político-administrativa na França.
51. A simultaneidade desses dois processos não é ocasional: sem a centralização do Poder de Estado
os representantes ideológicos da burguesia mercantil (um Napoleão à frente) não teriam podido
vencer as resistências locais (partidas da aristocracia fundiária) à legislação de caráter contratual, ao
caráter incondicional de direito de propriedade e à soberania interna do aparelho do Estado central.

Estado burguês e formação do sistema econômico capitalista

1. É preciso insistir um pouco sobre o fato, que nem sempre é reconhecido pelos historiadores, deque
a Revoluções politicas burguesas antecederam a instauração do sistema econômico capitalista; elas
não foram, portanto, a consequência política da implantação prévia da estrutura econômica
capitalista.
2. Em uma: a Revolução política burguesa é a pré-condição jurídico-política necessária a implantação
do sistema econômico capitalista.
3. Mesmo em analises marxistas aparece, por vezes, a tese de que, no período absolutistas, a burguesia
já exercia o Poder econômico.
4. A tese subsequente, nessa analises, é a ideia que a burguesia, como consequência de já deter o
Poder econômico, acaba conquistando o Poder político.
5. Essa tese geral pode receber, numa certa análise marxista, dois conteúdos diferentes:
a. Primeiro conteúdo possível: a burguesia já detinha o Poder econômico desde o
renascimento comercial; e teria conquistado o Poder Político com a implantação do Estado
absolutista. Este Estado já seria, Portanto, um Estado burguês.
b. Segundo contudo possível: a burguesia detinha tão somente o Poder econômico no
período absolutista; com a Resolução francesa, formar-se-ia o Estado burguês, e a
burguesia chegaria ao Poder político.
6. Essa tese geral, e qualquer das duas formulações, parece-me problemática.
7. É correto afirmar que a burguesia mercantil, de caráter pré-capitalista, torna-se uma das classes
dominantes no período absolutista.
8. O Estado absolutista não só permite a exploração do trabalho na esfera comercial como também
estimula e subvenciona as atividades mercantis em larga escala (isto é, as companhias de navegação)
9. Nessa media, pode-se dizer que a burguesia mercantil oferece o Poder político conjuntamente com
a aristocracia agrária.
10. Mas a sua inserção no bloco das classes dominantes não significa que a burguesia mercantil exerça
a hegemonia política sobre a aristocracia agrária no quadro do Estado absolutista.
11. O Estado absolutista toma simultaneamente medidas favoráveis a ambas as classes dominantes: é,
de resto, no nível da política governamental de curto prazo que se pode apontar, como fazem
alguns autores marxistas, a existência de um equilíbrio político entre nobreza e burguesia no
período absolutista.
12. Mas, numa perspectiva de longo prazo constata-se que o Estado absolutista não ataca a estrutura
jurídico- feudal e a ordem social feudal.
13. Muito pelo contrário: o Estado absolutista defende ambas.
14. Quando toma medidas favoráveis aos grandes grupos mercantis, o Monarca absolutista age com
vistas a um retorno financeiro, que será obtido pelo Estado através de impostos em empréstimos.
15. O que o Estado absolutista jamais faz (e é isso que indica a sua verdadeira natureza de classe: um
Estado aristocrático-feudal) e tomar medidas que induzam a burguesia mercantil a se transformar
em burguesia industrial.
16. O Estado absolutista não reconhece a liberdade de trabalho, até mesmo os indivíduos que
trabalham em manufaturas atentam a condição servil, devendo, portanto, ser “alugados” pelos
donos de manufaturas, que pagarão uma renda ao senhor, e não, ao próprio trabalhador.
17. O Estado absolutista, portanto, nada fez para que surja o mercado de trabalho, essencial para a
emergência da relação Capital x Trabalho Assalariado.
18. Além disso, o Estado absolutista não reconhecia o princípio da incondicionalidade do direito de
propriedade; e portanto dificulta a circulação livre de riqueza, essencial para a formação do capital
em sua forma monetária e para a ativação dos investimentos da esfera industrial.
19. A burguesia propriamente industrial surgiu como classe dominante e conquistou a hegemonia
política sobre a aristocracia fundiária no quadro dos Estados burgueses.
20. Há portanto uma ordem de sucessão de fenômenos, na formação do capitalismo que corresponde
a uma lei histórica e se repete em vários países, além daqueles já mencionados.
21. Recapitulemos essa de ordem de sucessão de fenômenos:

a. No quadro de uma sociedade ainda feudal, onde se reproduz um Estado absolutista, eclode
uma Revolução política;
b. esse processo político determina a formação de Estado burguês;
c. o Estado burguês recém-criado cria condições jurídicas e políticas para a formação de uma
burguesia industrial pós –manufatureira;
d. a burguesia industrial, que no início se submete à hegemonia do capital comercial ou bancário,
conquista a hegemonia política, promovendo a aceleração do desenvolvimento capitalista.
22. Mencionamos rapidamente outros casos de Revolução política burguesa.
23. Entre 1848 e 1862, ocorre a Revolução política burguesa na Alemanha, primeiro em reinos isolados
(começando com a Prússia), depois na Alemanha Unificada.
24. O chanceler Bismarck, representante ideológico da burguesia a despeito de pertencer à nobreza
prussiana:
a. determina o fim do monopólio aristocrático dos cargos de Estado;
b. cria em burocracia civil e militar moderna;
c. extingue a servidão instaurando o direito contratual moderno.
25. Após a Revolução política burguesa, a Alemanha se converterá de país atrasado e rural, numa
potência industrial, onde a formação do empresariado industrial se faz com apoio dos Estado e
dos bancos.
26. Na década de 1860, ocorre no Japão a Revolução Meiji (ou “Revolução das Luzes”): estimulada
por um vasto ciclo de revoltas camponesas, a categoria aristocrática dos samurais:
a. Derruba o Estado feudal (embora conserve a monarquia imperial);
b. Liquida a servidão;
c. Promove a industrialização pesada, com apoio financeiro do Estado.
27. O resultado econômico desse surpreendente processo político (onde a aristocracia se converte em
vanguarda revolucionária burguesa) é a rápida transformação do Japão em potência industrial,
onde se destacam grandes monopólios privados.
28. Trinta e poucos anos após a sua Revolução política burguesa, o Japão se mostra capaz, em 1905,
uma grande potência europeia: a Rússia czarista.
29. Para terminar, vamos mencionar a Revolução política burguesa no Brasil: No fim do Século XIX,
a classe média civil e militar revoltada contra o sistema imperial de privilégios e contra a ausência
da “cidadania” volta-se contra o Estado escravista imperial.
30. O contexto político geral é o da crise do escravismo brasileiro, resultado da emergência de um
movimento de fugas em massa de escravos rurais
31. A classe média organiza o movimento abolicionista, participa (através da ala militar, apoiada pela
facção civil) da derrubada do Estado escravista imperial e, na Assembleia Constituinte dá início ao
fracasso da construção do direito burguês, que começa com a Constituição republicana de 1891 e
se estende até 1917, quando é publicada a peça-chave do direito burguês: o Código Civil.
32. A formação do Estado burguês entre 1888 e 1891 abrirá caminho para:
a. O nascimento da indústria nos polos urbanos mais desenvolvidos (S.P e R.J);
b. A conquista da hegemonia política pelo capital comercial agroexportador; que procura impedir
que o Estado se lance numa política de estimulo à industrialização.
c. A burguesia industrial só conquistará uma posição política mais favorável após a Revolução de
1930, que abre o caminho para a promoção de uma política de equilíbrio entre o capital
comercial exportador a capital industrial.

Bloco II
O conceito de Estado burguês
1. Pelo que foi exposto anteriormente pode-se talvez intuir o que seja o Estado burguês, como
estrutura jurídico-política particular.
2. De qualquer, forma devemos apresentar aqui com um mínimo de formalização, um conceito
que possa ser operacionalizado na análise histórica dos Estados concretos.
3. O estado burguês é uma estrutura jurídico-política particular, cuja função consiste em criar
condições ideológicas e política necessárias à reprodução da estrutura econômica capitalista
(relação capital x trabalho assalariado)
4. Em toda sociedade de classes, existe um Estado; isto é, uma organização cujos membros são
dotados de recursos materiais (como armas, dinheiro, prédios) e de capacidade coercitiva.
5. Essa organização impõe ao conjunto da sociedade de classes um elenco de normas que regulam
as relações econômicas entre proprietários dos meios de produção de trabalhadores destituídos
desses meios.
6. A imposição coercitiva dessas normas aos agentes da produção (proprietário trabalhador)
viabiliza a reprodução, no tempo histórico da relação de exploração entre essas duas classes
sociais.
7. A cada tempo histórico de Estado (escravista, despótico-asiático, feudal, burguês),
correspondem:
a. um modo especifico de organização das atividades estatais (isto é, um tipo particular de
aparelho de Estado;
b. um sistema jurídico particular (isto é, um conjunto de normas que disciplinam as relações
socioeconômica entre as duas classes sociais antagônicas)
8. Ao Estado burguês, correspondem:
a. um sistema jurídico particular, nomeado “direito burguês”
b. um modo particular de organização do aparelho de Estado, nomeado “burocratismo”.
9. Em que consiste a particularidade do sistema jurídico burguês? Ela consiste no fato de que, ao
contrário dos tipos históricos anteriores de direito, que tratam desigualmente os desiguais, o
direito burguês dá um tratamento formalmente igual aos membros da classe explorada.
10. Ou seja: pela primeira vez na história das sociedades de classe, no capitalismo o sistema jurídico
dá um tratamento igual aos desiguais viabilizando uma nova formada denominação ideológica
de classe.
11. Em que consiste esse tratamento igual?
O sistema jurídico burguês estabelecia que todos os indivíduos – pertençam eles à classe
exploradora ou à classe explorada – são sujeitos de direito.
12. Ou seja, todos os indivíduos são reconhecidos, pelo direito burguês, como seres dotados de
vontade subjetiva, e capazes de praticar atos de vontade.
13. Esse processo simultâneo de igualização e de individualização:
a. ganha uma expressão genérica na figura da capacidade jurídica em geral;
b. ganha uma expressão particular na figura do contrato que consiste num ato da troca
resultante da manifestação da vontade de dois sujeitos.
14. O sistema jurídico burguês confere portanto ao processo de exploração do trabalho a forma
do contrato de trabalho; ou seja, a forma de uma troca de equivalentes.
15. Essa forma jurídica, ao mesmo tempo:
a. igualiza os diferentes agentes da produção: capitalista e trabalhador;
b. individualiza os membros da classe trabalhadora, transformando-os, no plano subjetivo,
em seres contratantes.
16. Os membros da classe capitalista já são individualizados pela própria configuração da estrutura
econômica; ou seja, pelo caráter crônico da concorrência entre capitalista individuais.
17. Mas a vigência da forma jurídica contratual produz efeitos individualizadores suplementares
sobre os membros da classe capitalista.
18. Podemos agora resumir a função ideológica do sistema jurídico burguês
19. Essa função se expressa de um duplo modo:
a. a função de individualizar os agentes da produção, convertendo subjetivamente o
trabalhador assalariado num contratante , que presta trabalho excedente sem ser submetido
a coação militar:
b. Neutralizar, no trabalhador, a inclinação potencial à ação coletiva, que poderia resultar do
caráter socializador do processo de produção no capitalismo.
20. Noutras palavras: O sistema jurídico burguês produz no trabalhador assalariado, um efeito de
isolamento; sufocando o efeito agregador produzido pelo caráter coletivo do processo
capitalista do trabalho.
21. Temos de examinar agora a particularidade do modo capitalista de organização do aparelho do
Estado; isto é, o burocratismo.
22. Nos Estados historicamente anteriores ao capitalismo o aparelho estatal era ocupado, de modo
oficial, apenas por membros da classe dominante.
23. No Estado escravista antigo, numa primeira fase apenas a aristocracia fundiária podia ocupar
cargos no aparelho de Estado; numa segunda fase, a classe dos comerciantes conquistou esse
direito.
24. No Estado feudal clássico, apenas a nobreza tinha acesso aos cargos do Estado; no Estado-
feudal-absolutista, a burguesia mercantil conquistou um acesso limitado a cargos em geral
ligados a atividades econômicas e financeiras.
25. Já no capitalismo, o aparelho de Estado se configura como uma organização hierarquizada de
funcionários profissionais, formalmente escolhidos pela sua competência administrativa,
aferidas através de concursos públicos.
26. Qual a verdadeira natureza dessa hierarquia burocrática?
O Estado burguês à apresenta ao conjunto da sociedade como uma hierarquia das tarefas (das
mais complexas às mais simples); e consequentemente, como uma hierarquia das competências
requisitadas pelos diferentes níveis de atividades administrativa.
27. Mas essa visão idealizada sobre a organização burocrática estatal:
a. corresponde à ideologia profissional cultivada e difundida pela alta burocracia;
b. ela permite que a burocracia se apresente, no seu conjunto, como um corpo funcional
democrático, e não, elitista.
28. Porém, quando a análise sociológica vai além da superfície da organização burocrática estatal,
ela descobre que a hierarquia burocrática não é uma hierarquia de competências
administrativas; e sim, uma hierarquia política.
29. E isto porque, se a base da burocracia é preenchida através de concursos públicos, o tipo da
burocracia é preenchido por nomeação, o que faz com que ela seja preenchida por indivíduos
ligados a classe dominante.
30. Esse é o caso de cargos como os de Ministro Chefes das Forças Armadas, dirigentes de
autarquias ou empresas públicas, etc.
31. O estado burguês deve ocultar a presença de uma hierarquia de Poder dentro do seu aparelho;
e se apesentar como um corpo funcional hierarquizado segundo o critério universalista da
competência.
32. Só uma aparência universalista permitirá que o Estado burguês desempenhar a sua segunda
função ideológica:
A função de reunificar os indivíduos, separados de uma classe social por obra do sistema
jurídico burguês, numa nova coletividade alternativa à classe social: a Nação (ou o Povo-
Nação).
33. Se a burocracia de apresenta ao conjunto da sociedade como um corpo funcional “universal”
ela poderá encarnar a unidade da Nação, como somatória dos indivíduos que habitam o espaço
territorial controlado pelo Estado.
34. Os Estados pré-burgueses, pelo seu modo abertamente aristocrático de organização do
aparelho estatal:
a. mostram-se incapazes de engendrar um sentimento nacional;
b. puderam no máximo, inculcar o sentimento tradicionalista de lealdade dinástica (isto é, a
fidelidade pessoal a uma família de monarcas)
35. Entende-se que a Nação, como comunidade alternativa dos coletivos enraizados no processo
de produção (as classes sociais), é uma comunidade imaginária, que atrai as pessoas
desconhecedoras do seu pertencimento a classe.
36. Mas essa comunidade imaginária na mediada em que mobiliza praticamente os indivíduos,
converte-se em comunidade real.
37. Ou seja, a imposição de que a Nação exista acaba produzindo efeitos políticos concretos, como
conflitos territoriais e guerras entre Estados.
38. A estrutura jurídico-política burguesa desempenha portanto uma dupla função ideológica;
indispensável à reprodução da estrutura econômica capitalista:
a. Produção de efeito de isolamento: conversão dos agentes da produção objetivamente
pertencentes às classes sociais antagônicas, em sujeitos individuais de direito.
b. Produção do efeito de representação da unidade: reunião dos indivíduos, igualizados pelo
sistema jurídico burguês, num corpo político alternativos às classes sociais: Povo- Nação.
39. Isso significa que a estrutura jurídico-política burguesa atua regularmente no sentido de
impedir a emergência político-pratica das classes sociais.
40. Todos os tipos históricos de Estado funcionam com vistas à frustração da emergência da luta
de classes; mas só o Estado burguês o faz através dos processos de individualização dos agentes
da produção e de reunificação desses indivíduos na Nação.
41. Os demais tipos históricos de Estado frustraram a emergência das classes sociais antagônicas:
a. Não criando o indivíduo e a Nação, como o Estado burguês
b. E sim criando coletivos diferenciados, como as ordens (no escravismo); as cartas (no
escravismo); as castas (despotismo asiático) e os estamentos (no feudalismo).
42. Mas não se pode dizer que os efeitos ideológicos produzidos pela estrutura jurídico-política
burguesa irão o reproduzir indefinidamente.
43. Todos os modelos históricos de sociedade de classes entram em crise, o que tende a ocorrer
com o capitalismo.
44. No capitalismo, algo tende a fazer com a individualização e o sentimento nacional sejam
substituídos pelo sentimento de pertencimento de classe.
45. O ponto de partida dessa mudança é um certo desenvolvimento das forças produtivas, que
determina o rearranjo das relações entre os grupos sociais polares, bem como a mudança do
seu comportamento.
46. Ou seja: a evolução do sistema econômico vai empurrando involuntariamente as classes
trabalhadoras para um comportamento coletivo:
a. inicialmente, a formação de indicativos e partidos;
b. a seguir, greves gerais e manifestações de massa;
c. finalmente, a constituição do Estado burguês através da ação insurrecional.
47. Mas a coletivização do comportamento dos trabalhadores não é um fenômeno irreversível; ela
pode sofrer avanços e recuos, em função das mudanças de conjuntura.
48. Por exemplo, conjunturas onde se acumulam contradições, como guerras entre Estados
nacionais, conflitos internos no bloco das classes dominantes, etc, podem levar as classes
trabalhadoras a uma ação revolucionária.
49. Inversamente, conjunturas de estagnação econômica e de alto desemprego podem fazer os
trabalhadores regredirem para uma postura individualista e abandonarem o terreno da ação
reivindicatória.

A representação popular no Estado burguês


1. O burocratismo é uma forma organizacional que confere, pelo seu caráter formalmente
universalista e democrática, uma aparência de representatividade popular ao Estado
burguês.
2. Ocorre que, nas sociedades capitalistas concretas, a pressão popular pode levar ao
surgimento de alguma forma de representação propriamente política, e não meramente
burocrática, de Nação.
3. Enquanto persiste o Estado burguês, a burocracia se apresenta, no plano ideológico como
o representante direto, sem mediações, do Povo-Nação.
4. Mas, em certos momentos históricos, que podem ser mais ou menos longos, novas formas
de representação do Povo-Nação, de caráter diretamente político, podem se inserir no
aparelho de Estado.
5. Nessa situação, instaura-se uma competição, no seio do aparelho de Estado, entre os
agentes da representação burocrática e os agentes da representação política.
6. Essa competição não tem caráter explosivo; ela pode persistir por longos períodos, até
porque a existência do burocratismo se confunde com a existência do próprio Estado
burguês.
7. Em suma: a burocracia do Estado só pode ser destruída caso ocorra uma Revolução
popular, de caráter socialista e conselhista.
8. Mas os defensores de uma forma de representação política do Povo-Nação podem lutar
pela revogação de uma outra forma de representação política, já inserida no aparelho de
Estado.
9. Existem, no capitalismo, três formas possíveis de representação política do Povo-Nação
no Estado:
a. A forma democrática-representativa, fundada no sufrágio universal;
b. A forma corporativa, fundada na inserção de corporações profissionais no
aparelho do Estado.
c. A forma plebiscitária, fundada na legitimação do governo por plebiscito ou
aclamação popular.
10. As formas não burocráticas de representação do Povo-Nação no Estado surgem, em geral,
como resposta a pressão popular.
11. Essa pressão pode fazer com que a burocracia aceite a coexistência com uma dessas formas
alternativas de representação do Povo-Nação no Estado.
12. Mas essa coexistência não pode produzir a desagregação da burocracia, na medida em que
o burocratismo coincide com a própria estrutura do Estado burguês.

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