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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS COLABORATIVAS NA ALFABETIZAÇÃO DO ALUNO COM TRANSTORNO


DO ESPECTRO AUTISTA
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Vera Lucia Messias Fialho Capellini , Priscila Hikaru Shibukawa Shibukawa , Simone Catarina de Oliveira Rinaldo
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Universidade Estadual Paulista - FC-UNESP, Departamento de Educação, Bauru, SP. Universidade Estadual Paulista-FCLAR-UNESP,
Departamento de Pscicologia da Educação, Araraquara, SP.E-mail: verinha@fc.unesp.br

RESUMO
A apropriação do sistema da escrita pelos alunos com Transtorno do Espetro Autista (TEA) é uma forma de facilitar a
sua comunicação, dificuldade peculiar do transtorno. Assim, este estudo teve como objetivo investigar e descrever o
processo de alfabetização de um aluno com TEA inserido em uma classe comum do ensino regular, observando-se as
estratégias utilizadas pelo professor no processo de alfabetização e o apoio colaborativo. Participaram do estudo, uma
professora e um aluno com Transtorno do Espectro Autista de uma escola pública municipal do interior paulista. Para
a coleta de dados utilizou-se a técnica observacional e uma entrevista inicial e final com a professora. Os resultados
mostraram a dificuldade em realizar as intervenções de maneira colaborativa. Porém, pôde-se constatar um avanço
no desenvolvimento da linguagem escrita pelo aluno autista. Conclui-se que a credibilidade na aprendizagem do aluno
com TEA é o primeiro passo para a sua alfabetização e letramento, sendo necessário o trabalho colaborativo entre
educação especial e ensino comum.
Palavras-chave: Alfabetização, Transtorno do Espectro Autista, Autismo, Ensino Colaborativo, Inclusão Escolar.

COLLABORATIVE EDUCATIONAL PRACTICES IN LITERACY A STUDENT WITH AUTISM SPECTRUM DISORDER.

ABSTRACT
The appropriation of the writing system by students with Autistic Spectrum Disorder (ASD) is a way to facilitate their
communication, peculiar difficulty disorder. This study aimed to investigate and describe the literacy process of a
student with ASD inserted into a common class of mainstream education, observing the strategies used by the teacher
in the literacy process and collaborative support. They participated in the study, a teacher and a student with Autism
Spectrum Disorder a public school in São Paulo. For data collection was used the observational technique and initial
and final interview with the teacher. The results show the difficulty in performing interventions collaboratively.
However, it could be seen a breakthrough in the development of written language by autistic student. It concludes
that the credibility on student learning with ASD is the first step in its literacy and literacy, requiring collaborative work
between special education and regular education.
Keywords: Literacy, Autism Spectrum Disorder, Autism, Collaborative Education, School Inclusion.

A. INTRODUÇÃO E neste processo de alfabetização, cada


O processo de alfabetização e criança aprende de uma forma diferente, sendo
letramento é essencial para que o sujeito consiga que este também se aplica às pessoas com
interagir na sociedade, isso porque o código deficiências. Elas aprendem de acordo com suas
linguístico se constitui de signos arbitrários singularidades, ou seja, cada criança apresenta
convencionados socialmente, utilizados para características próprias como resposta ao
transmitir uma ideia ou um ponto de vista, processo ensino-aprendizagem. Dessa forma, as
desenvolvendo comportamentos e habilidades de diferentes deficiências exigem práticas
uso competente da leitura e da escrita em pedagógicas especiais próprias, de acordo com
práticas sociais. Assim, é por meio da suas necessidades e potencialidades. Este
alfabetização e do letramento que o sujeito se também é o caso de criança com Transtorno do
torna capaz de perceber e compreender as mais Espectro Autista (TEA), foco deste estudo.
diversas situações de interação que ocorrem na O autismo ou TEA é uma condição que foi
sociedade, conseguindo analisar crítica e descrita, inicialmente, na década de 1940, mas,
reflexivamente a sua realidade, bem como ainda hoje, intriga profissionais de diversas áreas,
modificá-la (SOARES, 2000). bem como a população de maneira geral. Isto se

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deve ao fato, provavelmente, da diversidade No Brasil, as pesquisas sobre a inclusão


encontrada entre as pessoas com este escolar de crianças com TEA no sistema regular
diagnóstico e da multiplicidade de dúvidas em de ensino estão se intensificando, assim como as
relação à causa e a forma de intervir nos investigações sobre os processos de alfabetização
diferentes casos. e letramento de tais alunos. Entretanto, ainda há
Caracterizado pelas dificuldades nas uma dissociação em relação às discussões sobre
interações sociais e na comunicação, além de esses dois aspectos supracitados.
apresentar um repertório restrito de atividades e Capellini (2004) e Omote (2008) apontam
interesses, as manifestações do TEA variam de a necessidade de se investigar o desempenho
acordo com a idade e a fase de desenvolvimento também acadêmico de alunos com deficiência e
da criança. Os prejuízos nas interações sociais não somente as concepções de professores
envolvem o comportamento não verbal, acerca do processo, assim como promover uma
especialmente aqueles relacionados ao contato reflexão sobre a socialização destes alunos,
visual direto, as expressões faciais e corporais. Na sobretudo daqueles com autismo e sua
comunicação, poderá afetar tanto as habilidades alfabetização.
verbais quanto as não verbais, podendo É importante ressaltar que, assim como a
comprometer o desenvolvimento da linguagem linguagem oral, o processo de alfabetização e
falada e quando falam, podem apresentar letramento é essencial para a consolidação das
dificuldades para manter uma conversação relações interpessoais, especialmente para os
(BRASIL, 2010). alunos com TEA. É necessário que sejam
Quando a fala se desenvolve, estimuladas suas habilidades de comunicação e
o timbre, a entonação, a expressão, para que consigam interagir
velocidade, o ritmo ou a socialmente e compreender a sua realidade e agir
ênfase podem ser anormais. sobre ela, minimizando, dessa forma, as barreiras
As estruturas gramaticais são
trazidas pelo transtorno.
frequentemente imaturas e
incluem o uso estereotipado e
Dessa maneira, principalmente nas séries
repetitivo. Pode-se observar iniciais do ensino fundamental, o aluno com TEA
uma perturbação na precisa de um ensino direcionado, que consiga
capacidade de compreensão auxiliá-lo na interiorização da linguagem social e
da linguagem, como entender exteriorização do pensamento, de modo a
perguntas, orientações ou assimilar os signos arbitrários convencionados
piadas simples (BRASIL, 2010, socialmente e usá-los de modo intencional e
p.15). autônomo. É em busca dessas especificidades
que este estudo se faz relevante.
As crianças com TEA apresentam ainda Em suma, este estudo visou investigar e
prejuízos acentuados na capacidade imaginativa descrever o processo de alfabetização e
e, com frequência, interessam-se por rotinas ou letramento de um aluno com TEA inserido em
rituais não funcionais. Assim, poderão apresentar uma classe comum do ensino regular.
movimentos corporais (todo o corpo) ou
envolvendo as mãos de forma estereotipada, B. MÉTODOS
além de posturas inadequadas. Podem Este estudo é pautado numa metodologia
apresentar, ainda, um interesse persistente em qualitativa de natureza interventiva. De acordo
determinados objetos ou em parte de deles, com Bogdan e Biklen (1994), os estudos
especialmente, aqueles com movimentos qualitativos assumem diferentes significados na
giratórios (BRASIL, 2010). área da educação e visam à descrição e
Esta tríade de comprometimentos – decodificação dos sentidos atribuídos pelos
interação social, comportamento e comunicação participantes. Nesse sentido, poderão ser
– podem acarretar algumas limitações no utilizadas variadas técnicas para a coleta dos
processo de aprendizagem do aluno com TEA. No dados como: entrevistas não estruturadas ou
entanto, sua escolarização é possível, quando lhe semiestruturadas, a observação participante,
são oferecidas as oportunidades de acordo com bem como os grupos focais. Neste estudo,
suas necessidades e potencialidades, a partir de utilizamos a técnica observacional e a entrevista.
uma perspectiva da educação inclusiva. Já os estudos de natureza interventiva
visam à busca de resoluções para os problemas

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ou para situações que se apresentem como As produções do aluno foram analisadas,


insatisfatórias, em que há um envolvimento entre estabelecendo-se um comparativo entre seu
o pesquisador e os participantes, promovendo, desempenho antes e depois da intervenção,
dessa forma, mudanças significativas (CHIZZOTTI, observando se houve avanços, retrocessos ou
2003) o que vai ao encontro de nossos objetivos. manteve-se inalterado o desenvolvimento escolar
Participaram deste estudo uma do aluno com relação, especificamente, ao
professora de classe comum e um aluno com processo de alfabetização e letramento.
diagnóstico médico de TEA, de uma Escola do
interior do estado de São Paulo. C. RESULTADOS
Os dados foram coletados a partir da Para a apresentação dos resultados,
observação participante e das intervenções dividiu-se a análise dos dados em três categorias:
realizadas, bem como de entrevista com a relações interpessoais do aluno com o outro
professora da classe comum, de acordo com as (professor, pesquisadora e demais alunos);
seguintes etapas: desafios do professor com relação à inclusão e ao
a) as observações e intervenções ocorreram processo de alfabetização e letramento; processo
durante dois bimestres (fevereiro-junho), três de intervenção e suas contribuições para o
vezes por semana, visando identificar as práticas desenvolvimento da linguagem escrita.
de inclusão e de alfabetização em sala de aula.
Além das observações, neste período, foi Categoria 1 - relações interpessoais do aluno
realizada uma intervenção, apoiando com os demais (pesquisadora, professora e
colaborativamente a professora, auxiliando no alunos)
planejamento e no desenvolvimento de práticas As observações tiveram início no começo
pedagógicas relacionadas à alfabetização para o do ano letivo, o que favoreceu o estabelecimento
aluno com autismo. Todas as informações do vínculo do aluno com a pesquisadora e com a
coletadas durante este período foram registradas professora. Segundo Gauderer (1997), uma das
em um diário de campo, para análises principais barreiras para o processo de
posteriores; aprendizagem está relacionada às interações do
b) antes e após este período de observação e aluno com autismo com os demais ao seu redor.
intervenção foram realizadas duas entrevistas Inicialmente, o aluno não interagia,
com a professora do aluno, uma inicial que teve permanecendo sentado na cadeira, ou
como objetivo analisar a sua visão com relação à movimentando-se pela sala o tempo todo ou,
política de inclusão escolar, bem como os seus ainda, brincando sozinho, e, raras vezes, copiava
conhecimentos a respeito desse tipo de o que estava na lousa. À medida que o vínculo se
deficiência, e outra, ao final, visando a uma fortalecia, observou-se que o aluno se sentia mais
avaliação do desempenho escolar do aluno, bem confortável para fazer questionamentos sobre os
como analisar e comparar os resultados das conteúdos, e sua participação tornava-se mais
observações e da intervenção colaborativa com significativa naquele espaço.
os dados da entrevista. Desde a primeira semana de observação,
Os dados foram analisados e descritos foi possível notar que a professora tratava o
qualitativamente, de acordo com a “análise de aluno de maneira diferenciada em relação aos
conteúdo” de Bardin (2009). A análise do demais, tanto no que se refere aos conteúdos,
conteúdo permite a atribuição de relevância aos quanto em relação ao tratamento pessoal e, até
comentários diretos extraídos das aulas e das mesmo, a linguagem era diferenciada,
entrevistas, considerando-se as palavras infantilizada. Tal fato pode ser sentido como falta
empregadas e os seus significados, o contexto em de credibilidade no potencial do aluno, tratando-
que foram colocadas as ideias, a frequência, a o de forma desigual, privado-o de seu direito de
extensão dos comentários e a especificidade das ser tratado com igualdade, como retrata a
respostas. Constituição Federal Brasileira (BRASIL, 1988).
Para a análise, foram selecionados alguns Durante todo o período de observação e
episódios que contemplam o objeto de estudo, os apoio colaborativo junto à professora, notou-se
registros do diário de campo e as entrevistas com que esta assumia uma postura de distinção no
a professora, agrupando-os em categorias de tratamento e ensino ao aluno com autismo, o
acordo com similaridade ou recorrência, que, consequentemente, dificultava o seu
pertinência e relevância para exame.

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desenvolvimento tanto da escrita e letramento que a gente tem que incluir os


como nas relações com os demais. alunos e que todo mundo tem
Na entrevista inicial, a professora ressalta que aprender as mesmas
que está cada vez mais difícil ensinar aos alunos, coisas, mas você vê, eles não
conseguem acompanhar.”
tendo em vista a mudança sócio-cultural ocorrida
na sociedade durante esses mais de 20 anos em
Tal discurso retrata o descontentamento
que leciona, conforme se visualizava em seu
com as políticas voltadas para a inclusão escolar e
discurso.
“No meu tempo de magistério
o despreparo pedagógico em relação aos alunos
não tinha essas teorias aí, com deficiência. Observa-se que a própria
construtivismo, essas coisas. docente não acredita na sua potencialidade e no
Era só a cartilha, que eu ainda seu papel enquanto educadora, no sentido de
acho bem melhor, porque criar condições e estratégias para que a
antes o pessoal aprendia, aprendizagem realmente se efetive.
respeitava a professora, hoje Com relação às interações do aluno com
ta cada dia mais difícil, você autismo com os demais, observou-se que,
vê aí, tem muito aluno nessa praticamente, metade deles já havia convivido no
sala desinteressado, que não
ano anterior, mas eram bem poucos aqueles que
quer nada da vida. Aí falam
que você não pode mais usar
procuravam relacionar-se com o aluno com
a cartilha, que tem que dar autismo, mantendo-o, quase sempre, à margem.
textos na aula, eu tento, faço A educação inclusiva de pessoas com
minha parte, mas às vezes deficiência, transtornos globais do
parece que não dá certo.” desenvolvimento e altas
habilidades/superdotação, remete-nos a
É importante esclarecer que esta é a perspectiva de garantia de oferta de uma
primeira experiência da professora com alunos escolarização qualificada que garanta o
com deficiência em sua sala de aula. Há dois aprendizado e sucesso acadêmico dos alunos
alunos autistas (um menino e uma menina) sendo matriculados no ensino comum. A sua
a menina, portadora da Síndrome de Asperger, escolarização impõe uma nova configuração no
atualmente, também inserida no Quadro do espaço escolar e no desenvolvimento do trabalho
Autismo. Deve-se levar em consideração a pedagógico inclusivo. As condições de ensino
formação da professora, que cursou apenas o devem ser modificadas para atender as
Magistério, não se sentindo preparada para a necessidades dos educandos, desde a
atuação com crianças que precisam de uma infraestrutura até as estratégias utilizadas em
atenção pedagógica diferenciada. sala de aula (OMOTE, 2011). Para Capellini e
Seu discurso é evidenciado em vários Rodrigues (2009), a inclusão implica em muitas
episódios, como, por exemplo, enquanto os mudanças na escola (currículo, avaliação,
demais alunos faziam atividades de escrita de formação da equipe), e na política educacional.
palavras ou de leitura, entregava ao aluno com Dessa forma, para que a educação do
autismo uma cópia de um livro de gravuras, aluno com TEA seja significativa, promovendo sua
visando entretê-lo com pinturas. Assim, as socialização e comunicação, o processo de
adaptações realizadas consistiam em facilitar a alfabetização e letramento caracteriza-se como
atividade, e não fazer com que o aluno pudesse um aspecto fundamental. O professor deverá
realizar a mesma atividade que os demais, por buscar conhecimentos, estratégias e recursos
meio de recursos e estratégias diferenciadas. diferenciados para tornar sua prática pedagógica
A própria professora, durante a mais inclusiva, favorecendo ao aluno uma
entrevista, afirma não saber lidar com tais alunos, aprendizagem de efetiva qualidade.
devido à sua formação. Na entrevista inicial, a professora alega
“Acho que o Estado deveria não ter concluído o curso de licenciatura em
dar um curso pra gente saber pedagogia, tendo cursado apenas o magistério
como trabalhar com esses (ensino médio). Esse dado coloca em pauta a
alunos, porque eu fiz questão da qualidade da formação do professor
magistério já tem muito
tanto para o processo de alfabetização e
tempo e na minha época não
tinha essas coisas. [...] Falam

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letramento, quanto para atuar com alunos com populares, parlendas e listas diversas. No
deficiência. entanto, tais cartazes eram utilizados como
Desde as primeiras observações, nota-se meios de treinar a leitura, não havia
uma prática tradicional, ou seja, aquela que contextualização, explicação das origens ou
corresponde a uma educação bancária interpretação do porquê da escrita,
(domesticadora), como ressalta Freire (1981). caracterizando um ato mecânico de leitura, ou
Nesta metodologia pedagógica, o sujeito torna-se seja, realizava apenas a decodificação das letras.
um mero receptor passivo de informações que Em alguns momentos, em razão das
lhe são depositadas por outros. conversas paralelas daqueles que concluíam a
Logo no primeiro dia de aula, a atividade mais rapidamente, a professora
professora inicia seu discurso com as regras, acelerava os conteúdos, sendo que a maioria não
sendo que uma delas é a de que não se pode conseguia acompanhar o novo ritmo.
conversar durante a aula, só quando a professora “Eu sei que tem alunos que
permitir. Escreve o cabeçalho na lousa e solicita não estão acompanhando,
que os alunos copiem e informa que, após, ela que são mais fraquinhos, mas
fará a verificação se está certo. Os alunos tem uns que são muito bons,
eles são rapidinhos, e fazem
obedecem, sem questionar, permanecendo em
muita bagunça, então tenho
silêncio. que manter eles ocupados,
Nesse episódio, nota-se que a função da né?! Não dá pra deixar eles
escola está sendo a de domesticar os alunos, não parados, eles começam a
permitindo que interajam entre si, inibe-os de conversar e vira a maior
fazer questionamentos e os coloca em posição de bagunça.”
depósito de conhecimentos.
Esse processo de escolarização, segundo Nestes relatos, observa-se o resultado da
Freire (1981), debilita o potencial humano, falta de conhecimentos pedagógicos e didáticos
quando a educação deveria estimular a libertação atualizados, permanecendo uma prática
da consciência para o desenvolvimento da obsoleta, sem perspectivas de uma educação
potencialidade criativa e emancipação do sujeito para a vida, para a emancipação do cidadão.
social. Pode-se dizer que tal discurso decorre,
A professora relata que, no ano anterior, provavelmente, da defasagem da formação inicial
havia lecionado no 2º ano, e afirma que, às vezes, e continuada da docente, a qual ainda carrega,
ficava nas aulas de educação física e de artes com intrinsecamente, práticas pedagógicas baseadas
um ou dois alunos, no fundo da sala fazendo no modelo tradicional.
exercícios da cartilha “Caminho Suave”, que Nesse sentido, o processo de
guarda em seu armário. A justificativa para alfabetização e letramento de todos os alunos, e
adotar tais práticas é a de que “tem alunos que não somente do aluno com autismo, encontrava-
não conseguem aprender com os métodos se prejudicado, desmotivando a todos. Sem
diferentes, tem que copiar várias vezes, que daí práticas diferenciadas, a docente buscava ensinar
entra na cabecinha deles” a todos de uma mesma maneira, sem repensar
A docente ressalta ainda que mantém meios de potencializar a aprendizagem de todos
guardado o caderno de registros das atividades seus alunos, o que contraria os princípios
do ano anterior, o que facilita quando precisa contidos na Política Nacional de Educação
fazer cópias para a classe atual. De fato, isso Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva
ocorria na maioria dos dias letivos que foram (BRASIL, 2008).
observados: a professora levava cópia-xerox das O desconhecimento sobre as
atividades, as quais consistiam sempre em pintar especificidades do autismo, bem como o de
a figura e após o aluno deveria realizar o que era práticas alternativas para alfabetizar e letrar esse
solicitado, como ligar os pontos, escrever os aluno, impedem que a professora intervenha
nomes dos bichos dentro do espaço em branco, significativamente nesse processo.
preencher o calendário, pintar as letras Na entrevista final, observa-se uma
solicitadas, entre outras atividades pequena mudança em seu discurso em relação à
descontextualizadas. concepção de autismo, acreditando que a
Também se utilizava de cartazes, os quais inclusão do aluno está sendo boa, mostra-se mais
consistiam em cantigas de roda, cantigas sensibilizada com a questão da inclusão de alunos

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com deficiência. Também evidencia o início da qualidade para todos é, hoje,


percepção sobre as práticas alternativas de o fator mais importante na
alfabetização e letramento, relatando, que o redefinição dos currículos
aluno “está aprendendo bastante, porque do jeito escolares, desafiando a
coragem das escolas em
tradicional ele não estava conseguindo. Cheguei a
assumir um sistema
pensar que ele não ia aprender nada, estava educacional ‘especial’ para
ficando desesperada.” todos os alunos.
A análise das questões sobre a leitura e a
escrita está fundamentalmente relacionada à Para tanto, é fundamental que as escolas
concepção que se tem sobre o que é a linguagem aprimorem suas ações pedagógicas, visando ao
e o que é ensinar e aprender. E essas concepções atendimento das diferenças. Nesse sentido, é
passam, obrigatoriamente, pelos objetivos que se imprescindível a transformação desta, na busca
atribuem à escola e à escolarização. de alternativas metodológicas que proporcionem
Nesse sentido, a alfabetização e o um ensino de qualidade. Mudar a escola exige
letramento são dois processos distintos, mas, trabalho de todos os envolvidos no processo, e
extremamente interligados e dialéticos, ou seja, assim, é preciso colocar a aprendizagem como
deve existir uma articulação entre estes dois eixo norteador das práticas educativas inclusivas,
processos, para que a alfabetização possa para que os alunos possam aprender a partir de
ocorrer, de modo contextualizado com a suas necessidades e potencialidades.
realidade significativa. Este processo tem Dessa forma, a inclusão escolar é uma
fundamental importância na integração efetiva e proposta educativa que se estabelece a partir das
significativa dos alunos com TEA na sociedade. políticas educacionais voltadas para a
Isso decorre da possibilidade de diminuir as implementação de um novo paradigma de
barreiras impostas pela deficiência, tendo em educação, no qual a “educação especial” deveria
vista que a alfabetização e o letramento se configurar por um processo
garantiriam mais uma forma de comunicação e escolar/acadêmico, que vai do ensino básico ao
expressão social, já que as suas habilidades da superior.
linguagem oral poderão estar comprometidas.
Assim, se proporcionaria ao aluno a oportunidade Categoria 3 – processo de intervenção e suas
de tornar-se mais autônomo, à medida que contribuições para o desenvolvimento da
desenvolvesse mais uma forma de interação com linguagem escrita.
o mundo externo. No início do processo de alfabetização, o
Tal contexto traz uma situação inédita e aluno não distinguia letras de números. E, no
desafiadora para as escolas brasileiras de ensino início das aulas, o aluno com autismo, recebera
regular, pois, ao mesmo tempo em que devem da professora uma tabela com o alfabeto
acolher a todos os alunos, precisam oferecer-lhes ilustrado, tendo como tarefa, fazer a leitura todos
um aprendizado de qualidade real, como ressalta os dias, em casa e na escola. Dessa forma, o
Freitas (2006, p. 166): aluno apenas memorizou o alfabeto, constituindo
A educação das necessidades uma ideia equivocada dos signos do alfabeto e
educacionais especiais, no
sua representação.
contexto do ensino regular,
permite, tanto aos
Assim, durante o processo de intervenção
professores já atuantes (apoio colaborativo), foi preciso desconstruir essa
quanto aos que estão em ideia inicial, para depois conseguir fazê-lo
formação, rever os compreender o sistema da escrita, o qual é
referenciais teórico- composto por signos arbitrários e é
metodológicos que se convencionado socialmente. Tal desconstrução
alicerçaram na distinção entre foi realizada durante as aulas, principalmente por
educação especial e geral, meio da escrita do próprio nome, sendo que ao
uma vez que [...] a educação escrever seu nome, o aluno conseguia observar
dos alunos com necessidades
que era preciso mais letras do que apenas a
educacionais têm os mesmos
objetivos da educação de
primeira de seu nome. Ele revelou-se
qualquer cidadão. [...] Incluir extremamente esforçado, podendo-se dizer que,
e garantir uma educação de algumas vezes, chegava a um caso de

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perfeccionismo. Escrevia as letras de forma, deve-se a uma das características do autismo, ou


calculando milimetricamente para caberem seja, à “capacidade surpreendente de alguns em
exatamente no espaço entre as linhas. Ao final, memorizar grande quantidade de material que
foi possível observar uma diferença significativa lhe seja interessante” (BRASIL, 2010, p. 09).
no processo de aprendizagem e letramento do O aluno passou a ser incluído em algumas
aluno. A partir da sua realidade (seu nome) atividades realizadas pelo restante da sala, das
apresentou respostas satisfatórias ao trabalho quais, antes, era totalmente marginalizado, além
desenvolvido. de conseguir reconhecer mais colegas de sala por
meio do álbum de fotografia, fato esse que
D. DISCUSSÃO auxiliou no processo de interação e inclusão aos
Diante das atividades propostas pela demais na sala de aula.
pesquisadora, como contação de histórias, álbum Em síntese, o estudo mostrou a
de fotografias, pode-se dizer que o processo de possibilidade da alfabetização do aluno com
alfabetização e letramento ocorreu, de modo que autismo e da sua inclusão na classe comum, mas
a linguagem escrita fora utilizada com vistas a um evidenciou, também, a dificuldade na
alcance social, pois à medida que o aluno implementação da colaboração com a professora
aprendia os nomes dos demais colegas da sala, da classe comum, demandando maiores estudos
favorecia a criação de vínculos, aumentando seu sobre esta parceria prevista na Política de
círculo de amizades. Para ele, o processo de Educação Especial na Perspectiva da Educação
alfabetização e letramento mostrou-se essencial Inclusiva.
para que a interação social com os demais alunos Por meio da metodologia adotada nessa
da sala fosse potencializada. pesquisa, foi possível, além de observar e
Durante os dois bimestres, observou-se descrever o contexto do processo de
uma evolução significativa do aluno em relação à alfabetização e letramento de um aluno com
aprendizagem e ao comportamento. A própria autismo, também realizar intervenções
professora mostrou-se satisfeita com o apoio pedagógicas com o aluno, potencializando sua
recebido, ressaltando na entrevista final: aprendizagem, notando-se considerável
“Não esperava que fosse dar desenvolvimento das linguagens escrita e oral.
certo, imaginava que sei lá, Isso ocorreu tendo em vista a dialogicidade entre
ele pudesse aprender a a fala e a escrita.
escrever algumas coisas Tendo isso posto, avalia-se que, apesar
assim... Mas o nome de uns
das limitações geradas pela deficiência, não se
alunos, né, e da mãe, e do pai
também... Nossa nem
pode deixar de acreditar no potencial do aluno;
imaginava. Fico feliz, porque deve-se, em contrapartida, fazer com que o aluno
assim, no começo achei que se desenvolva por meio de práticas pedagógicas
não ia dar pra ele aprender alternativas e diferenciadas, que favoreçam sua
nada assim mais difícil, só aprendizagem de maneira adequada e com
assim... bola, gato, sabe?! qualidade no ensino.
Palavras mais fáceis”.
REFERÊNCIAS
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linguagem escrita do aluno foi evidenciado a 70, 2009.
princípio pela distinção de números e letras, BRASIL. Ministério da Educação. Educação
refletindo a internalização dos signos linguísticos, especial na perspectiva da inclusão escolar:
demonstrando conhecimento sobre sua transtornos globais do desenvolvimento. Brasília:
funcionalidade para a escrita. Outro aspecto a ser MEC, 2010.
destacado é que o aluno começou a ler e BRASIL. Resolução n. 4, de 2 de outubro de 2009,
escrever palavras com sílabas simples (algumas que institui diretrizes operacionais para o
famílias silábicas que estavam no álbum) e atendimento educacional especializado na
também algumas com sílabas complexas, aquelas educação básica, modalidade educação especial.
pertencentes ao seu cotidiano (nome dos pais, do Brasília: CNE/CEB, 2009.
irmão, da professora, da pesquisadora). Esse BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de
aprendizado ocorreu em um espaço de tempo Educação Especial. Política Nacional de
relativamente curto, sendo que, possivelmente,

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Educação Especial na Perspectiva da Educação Recebido para publicação em 06/07/2015


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