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CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO EXTREMO SUL DA BAHIA


FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS

Revista Eletrônica do CESESB

A Pretensão de Universalização do Direito como Ambiente Ético Comum

João Maurício Adeodato


Professor Titular das Faculdades de Direito do CESESB e da UFPE

Sumário:

Introdução Metodológica. I. Concepção do Direito em Sociedades Primitivas e sua


Evolução no Ocidente. II. Emancipação do Direito e Sobrecarga de Funções. III.
Positivismo Jurídico e Soluções das Democracias Modernas. IV. Crise do Direito na Pós-
Modernidade. V. Conclusão: O Problema da Universalização de Conteúdos Éticos.

Introdução Metodológica

Esta comunicação tem por objetivo traçar uma dentre muitas linhas possíveis de
evolução histórica do direito ocidental, mostrando como a emancipação da moral, da
religião e dos demais sistemas sociais, sobrecarrega o ordenamento jurídico, levando-o a
uma formalização que torna muito improvável a universalização de seus conteúdo éticos.
O direito como Weltwissenschaft: ciência “do mundo”, sim, empírica, mundana, mas não
universal. Pelo menos por enquanto.

Cabe iniciar colocando as três linhas estratégicas da metodologia unificadora que informa
o texto. Em primeiro lugar, uma compreensão e uma crítica do direito dogmático como
forma de organização caracteristicamente moderna do direito, um ponto de apoio para
observar como evolui a realidade jurídica na chamada pós-modernidade, sem esquecer
as especificidades dos países periféricos. Depois, uma abordagem não-ontológica, que
parece fornecer um arsenal filosófico mais adequado a esse direito contemporâneo, que
necessita de um espaço comum mas se vê diante de um pluralismo ético e jurídico –
entendido no contexto de um mundo extremamente desigual, mas unido por redes de
comunicação – como multiplicidade de sistemas de normas éticas aparentemente
inconciliáveis (e não no sentido do “pluralismo” como “diferenças de perspectiva” perante
o “mundo da vida” do primeiro mundo); isso dentro de um quadro de contradições sobre
o papel do Estado como garantidor exclusivo do direito, tendo a chamada “globalização”
como epicentro. Finalmente, a busca por uma ética eficiente mas tolerante,
tentativamente neutra, uma simpatia cética pela diferença, o que parece melhor
responder a um mundo altamente complexo, sobrecarregado de conflitos e informações.

Isso leva à associação dos três temas mais cruciais para o jurista no mundo de hoje,
central e periférico, global e local: primeiro a dogmática jurídica, em seus dois sentidos,
enquanto organização real e ao mesmo tempo conhecimento (“ciência”) do direito; em
segundo lugar o (“pós”-) positivismo, em seu sentido mais amplo, como atitude
jusfilosófica dominante e aparentemente mais apta a explicar este direito; e em terceiro

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lugar a democracia, a forma ideológica de organização política que o garante, ainda que
enquanto mero tipo ideal, nas sociedades contemporâneas dominantes.

A base filosófica deste texto, assim, é o milenar questionamento a que a retórica


submete a filosofia. Isto se dá em dois planos principais. O primeiro deles é a crítica e o
conseqüente ceticismo gnoseológico. O segundo é a tentativa de compatibilizar uma
postura ética construtiva com este ceticismo, uma ética da tolerância, na busca de evitar
que as dúvidas quanto ao conhecimento verdadeiro levem a uma indiferença axiológica
ou a posturas negativistas sobre a situação humana no mundo1.

I. Função do Direito em Sociedades Primitivas e sua Evolução no Ocidente

Sociedades primitivas se caracterizam pelo que se pode denominar de indiferenciação


ética. Quanto ao direito, aqui entendido como espécie do gênero ética, isso se dá em dois
pontos: primeiro, ele não se distingue nitidamente das demais espécies ou ordens éticas;
quando se distingue, trata-se de conflitos extremados, sobretudo no direito penal,
coincidindo com moral e religião. Segundo, não parece haver distinção entre o direito
justo (ideal, natural) e o direito posto (positivo), o que já exige um elevado grau de
complexidade social. Aí a peculiar evolução do direito no Ocidente, na direção dessas
separações, hoje patentes, entre o direito e os demais ordenamentos éticos, de um lado,
e entre o direito justo e o direito posto, de outro. Na primeira, com a crescente
complexidade social, vão se diferenciando a técnica e a ética e, dentro desta, o direito, a
religião, a moral, a política, a etiqueta, os usos sociais. O que aqui interessa mais de
perto, contudo, é a segunda separação, aquela entre o direito ideal e universal (natural)
e o direito localizado, efetivamente praticado.

Depois de um longo período de indistinção, quando o direito positivo é tido como espelho
da vontade justa dos deuses, a separação entre as duas ordens jurídicas passa a ser
clara e surge a poderosa teoria do direito natural, o jusnaturalismo, que, apesar de todas
as diferenças internas ao longo de mais de dois mil anos, guarda duas características
comuns: a crença na existência de um ordenamento jurídico além do positivo e a
necessidade de submissão da ordem posta a este outro ordenamento. Daí a metáfora
“natureza” para este ordenamento suprapositivo, em que pese a extrema discordância
entre os jusnaturalistas quanto ao seu teor. Embora não concordem sobre a natureza e o
conteúdo dessas super-normas, todo jusnaturalista advoga a existência de normas justas
e válidas em si mesmas, acima, superiores a qualquer pacto jurídico-político, a qualquer
poder positivado.

Nesse começo da cultura ocidental, nada obstante, a consciência da distinção entre o


justo e o posto não implica o conhecimento dos critérios distintivos. Uma racionalidade
avessa ao acaso não se conforma com o fato de que tantas pessoas reconhecidamente
justas sofram tanto as vicissitudes da vida e outras, eticamente más, desfrutem de todas
as suas vantagens. Daí o Livro de Jó. Daí a tenebrosa visão de Agostinho: todos estão

1
João Maurício Adeodato, Ética e retórica – para uma teoria da dogmática jurídica, São Paulo, Saraiva, 2002,
pp. 2-3.
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condenados ao inferno, mas Deus, incompreensivelmente, em sua infinita misericórdia,


salvará alguns. Mas é despiciendo tentar entender porque... Pode-se chamar essa fase,
neste sentido, de irracionalista2.

O jusnaturalismo teológico, filosofia do Catolicismo vitorioso, já tem uma lógica, como o


nome diz. Mas é uma lógica divina, que necessita da intermediação da Santa Madre
Igreja para transformar a Lex Naturalis na Lex Humana. A pessoa será julgada para a
eternidade por seus atos neste mundo, mas os critérios não estão ao alcance de qualquer
um. Por isso, e também com muita violência contra os recalcitrantes, a extraordinária
hegemonia conseguida pela Igreja Católica, a única intérprete oficial do direito natural3.

Na grande revolução do jusnaturalismo aqui denominado antropológico, a lógica já passa


a ser humana, cada anthropos racional pode perceber o direito justo, e aí o problema
ético passa a ser como decidir se os seres humanos divergem a respeito4. Daí a
politização da igualdade, mesmo com todas as suas restrições iniciais (os votos
capacitário, censitário, familiar, plural) e o surgimento do próximo passo, aqui
denominado jusnaturalismo democrático. Mas note-se que Rousseau, Locke, Hobbes,
Hegel e tantos outros recusam o princípio da maioria, buscando instâncias de
legitimidade que não se reduziriam ao mero contar de cabeças, pois o direito justo não
está necessariamente com a maioria, mas pode ser eventualmente “descoberto” e
“conduzido” por um grupo minoritário. Acontece que a vontade geral ou o espírito do
povo revelaram-se conceitos metafísicos de pouca utilidade jurídico-política e de
impossível determinação conceitual.

Estava aberto o caminho para o positivismo, filho indesejado da ética jusnaturalista.

II. Emancipação do Direito e Sobrecarga de Funções.

Embora a idéia seja comum a todo positivismo, é na primeira escola positivista, a


legalista, chamada exegética, que aparece mais nitidamente seu postulado central, que
equivale a um jusnaturalismo democrático conformado com o princípio da maioria. Se as
pessoas divergem, se todas são iguais e se não há um critério claro para determinar que
grupo carrega a “vontade geral” ou o “espírito objetivo”, mais prático aderir
definitivamente ao princípio da maioria, postulado que permanece até hoje.

O princípio da maioria passa a ser, então, o critério democrático para lidar com a
complexidade, as extremadas diferenciações levadas a efeito no Ocidente. A moral, a
religião, a etiqueta permanecem esferas de diferenciação, de individualidade, separando
indivíduos de um mesmo grupo, ensejando a complexidade. Mas aí o desaparecimento de

2
Augustine, The city of God, trad. Marcus Dods, coleção Great Books of the Western World, Chicago,
Encyclopaedia Britannica, 1990, vol. 16, Cf. livro XXI, cap. 5, p. 636 e ss, entre outros trechos.
3
Saint Thomas Aquinas, “Treatise on law”, The Summa Theologica, vol. II, Questions 90-108, trad. Father
Laurence Shapcote, coleção Great Books of the Western World, Chicago, Encyclopaedia Britannica, 1990, vol.
18, p. 208 s.
4
Hugo Grotius, De jure belli ac pacis (Del derecho de la guerra y de la paz), Madrid, Reus, 1925, vol. I, p. 54.
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uma moral e de uma religião generalizadas faz com que o direito passe a ser
sobrecarregado como única base ética comum, com pretensão de racionalidade e
universalidade, um conteúdo ético mínimo. É pouco para unir as pessoas, mas uma
tarefa grande demais para o direito democrático dogmático tradicional, de cunho estatal
e, logo, nacional. Ao contrário, o excesso de diferenciação ética parece estar levando a
uma maior intolerância contra a própria diferença.

Para o positivista, com efeito, um sistema de normas é jurídico quando é efetivamente


obedecido por seus destinatários ou, em caso de não-obediência, quando as sanções dele
decorrentes são, por sua vez, efetivas. Critérios trazidos pela modernidade como
exterioridade, autonomia, alteridade, coercitividade, são critérios assumidamente
formais, sem conteúdo ético definido. O positivismo não quer saber se o direito coincide
com a moral, se o faz em parte, se dela se separa, a questão não é ontológica.
Simplesmente, argumentos morais não têm espaço na dogmática jurídica só por serem
argumentos morais. É o conceito de autopoiese, com seu acoplamento estrutural: o
direito tem abertura cognitiva para novos conteúdos éticos, mas desde que penetrem no
sistema jurídico através das regras fixadas pelo próprio direito, o fechamento
operacional.

Ressalte-se que, diferentemente do que afirma Robert Alexy, o positivismo não defende
necessariamente a Trennungsthese, a tese de separação entre direito e moral5. Todo
direito tem um conteúdo ético. O positivismo apenas duvida de que se possa determinar
um conteúdo ético “correto” para o direito. O direito positivo concretiza uma determinada
postura ética em detrimento das demais, as quais permanecem como “direito natural”
ou, pode-se dizer, “ideologia dos derrotados”: têm sua função social importante, mas não
fazem parte do direito, pois não foram positivadas e “direito positivo” é expressão
redundante.

III. Positivismo Jurídico e Soluções das Democracias Modernas.

O positivismo domina, então, como a teoria do direito mais adequada à democracia. Ele
tem pretensões de universalidade, sim, mas seu universalismo é meramente formal,
procedimental, ele considera a questão do conteúdo ético uma questão extra-jurídica.
Pela solução da modernidade democrática para esse dilema, igualitária, o direito passa a
ser, em primeiro lugar, uma questão de maioria, pois justo não é este ou aquele padrão
de conduta, mas sim aquilo que a maioria decide que é justo; e, em segundo lugar, o
direito torna-se institucionalizadamente mutável, pois sempre novos conteúdos éticos
divergentes podem ser submetidos a novas maiorias. O positivismo retira o problema da
legitimidade e da justiça da esfera da ciência do direito e abandona o ideal iluminista de
um direito internacional6.

5
Robert Alexy, Begriff und Geltung des Rechts, Freiburg-München, Alber, 1992, pp. 15-17.
6
Immanuel Kant, Zum ewigen Frieden. Ein philosophischer Entwurf. Werkausgabe, in zwölf Bände (em 12
vols), vol.XI, Wilhelm Weischedel (Hrsg.), Frankfurt a. M., Suhrkamp, 1977, pp. 191 251.
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É certo que, depois de estatuídas as primeiras regras, como em um poder constituinte


originário, os poderes legiferantes derivados devem se submeter aos conteúdos éticos
escolhidos. Mas o poder constituinte realmente originário não tem qualquer limite ético,
pois nenhuma norma vale acima do pacto jurídico-político. E, depois de ele estabelecer
suas bases, a legitimidade jurídica é questão de validade, isto é, a norma justa é aquela
fruto de autoridade competente e de rito de elaboração de acordo com o sistema. Em
suma: novamente critérios exclusivamente formais. Dessa maneira, se a variabilidade é
intrínseca ao direito, a universalização de regras jurídicas só pode ter caráter formal,
ficando a cargo de cada Estado, cada povo, cada território a fixação de suas regras.

Fácil entender, assim, como o positivismo exegético evolui para o decisionismo. Com a
crescente complexidade social e o progressivo dissenso sobre a significação concreta dos
textos jurídicos, a objetividade, mesmo formal, da legislação é mais e mais posta em
dúvida. O positivismo contemporâneo perde seu caráter cientificista e torna-se cada vez
mais casuístico, esvaziando o papel do Legislativo e enfatizando a concretização da
norma jurídica por meio do Judiciário e demais partes envolvidas no caso concreto. A lei
e mesmo o precedente judicial são vistos como textos, não como normas, são meros
dados de entrada para construção da norma diante do caso. O apelo a princípios,
máximas ou a sobreprincípios como a proporcionalidade, passa a ser mais uma
estratégia para dispor de espaço livre na adaptação do sistema à complexidade dos
casos. Uma racionalidade casuística ou mesmo casual é o máximo que se pode esperar.

Essas dificuldades para uma racionalização universal tornam-se ainda mais agudas no
âmbito do direito internacional, pois, mesmo se fosse possível um acordo sobre um
conteúdo ético definido, isso não bastaria a uma efetiva constituição do direito
internacional. Como já afirmava Kant (também em Zum ewigen Frieden, de 1795), uma
coercitividade internacional, certamente via um tribunal soberano, seria indispensável,
pois, como ele coerentemente diz, “Das Recht ist mit der Befugnis zu zwingen verbunden
(o direito está ligado à autorização para coagir)7. O direito internacional tem chegado, na
melhor das hipóteses, ao princípio de Hugo Grotius pacta sunt servanda, regra máxima
esta também meramente formal, pois nada diz sobre o conteúdo ético desse pacto, não
diz o que deve e o que não deve ocorrer. Sim, pois a adesão dos Estados nacionais, por
definição os sujeitos do direito internacional, é autônoma, enquanto que a adesão dos
cidadãos ao direito dogmático nacional é heterônoma. Parece haver uma diferença
fundamental de conceitos.

IV. Crise do Direito na Pós-Modernidade.

Pode-se tomar como ponto de argumentação a tese do “respeito mínimo aos direitos
humanos”. Verifica-se que a idéia de direitos humanos fundamentais e inalienáveis,
válidos por si mesmos, independentemente e acima do pacto político constituinte da
ordem jurídica, que parecia caminhar para uma universalização definitiva nessa

7
Immanuel Kant, Die Metaphysik der Sitten. Werkausgabe, in zwölf Bände (em 12 vols), vol. VIII, Wilherm
Weischedel (Hrsg.), Frankfurt a. M., Suhrkamp, 1977, pp. 338-339 (A-B 35-36).
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“constelação pós-nacional”8, após a queda do muro de Berlim, em 9 de novembro de


1989, e da União Soviética, em 25 de dezembro de 1991, parece também agora ter sido
apressadamente saudada pelos partidários mais otimistas do Estado democrático de
direito. O que se vê, como sempre, é que a aplicação extra-territorial das leis penais, por
exemplo, só tem ocorrido sobre Estados fracos. Mesmo assim, uma justiça nacional
internacionalizada é muito diferente de uma justiça supranacional.

Com efeito, após os atentados terroristas nos Estados Unidos, em 11 de setembro de


2001, o mundo vê estupefato a “lei patriótica”, aprovada naquele país supostamente
líder na efetivação dos ideais democráticos, transformar em direito positivo uma série de
normas violentadoras dos direitos humanos: mediante meras suspeitas são eliminados
direitos à privacidade em todos os níveis, prisões sumárias são permitidas, tribunais de
exceção podem ser conduzidos em segredo e até em bases militares e navios de guerra,
dentre outras medidas na mesma direção. Não apenas contrário a normas internacionais
de proteção ambiental, o governo dos Estados Unidos também é contra o Tribunal Penal
Internacional e coerentemente defende aquela lei de proteção a funcionários norte-
americanos no exterior (o American Servicemembers Protection Act – ASPA), a qual
permite até a invasão militar de qualquer país para recuperar cidadão norte-americano
ameaçado de ser trazido perante uma corte internacional. Quem ousará? Mais ainda,
outros governos supostamente democráticos, novamente capitaneados pelos Estados
Unidos, não apenas apóiam a guerra contra o Iraque mas também consentem em
estabelecer alianças com exemplares adversários dos direitos humanos como, por
exemplo, o ditador do Uzbequistão Islam Karimov ou o general golpista paquistanês
Pervez Moucharraf. Apenas repetindo a história recente, incluindo a América do Sul.

Em suma: na pós-modernidade, na contemporaneidade, o direito dogmático e a


democracia positivista tradicionais não têm mais a mesma consistência teórica nem o
mesmo grau de eficiência. A crise se manifesta em diversos sentidos, tais como o alto
índice de abstinência no voto e a possibilidade de partidos não-democráticos chegarem
ao poder e acabarem com os procedimentos democráticos9. Daí porque a tese da
separação autopoiética entre direito e moral, entre direito e conteúdos éticos, oriunda do
positivismo e outrora hegemônica, passa a ser contestada.

Os juristas contemporâneos não-positivistas, assim, passam a apelar à necessidade de


normas de conteúdo ético definido, que não se refiram apenas a regras procedimentais,
ou pelo menos, defendendo regras procedimentais com conteúdo ético, como “todos têm
direito de participar” (por serem iguais)10. Na busca por esse conteúdo, pregam a
necessidade de valores universais, direitos que teriam caráter intrinsecamente humano,
daí estarem acima de qualquer posição de maioria ou regra formal de procedimento, tais
como a igualdade irrestrita entre todos os seres humanos, a proibição da discriminação
racial ou sexual, o banimento da tortura, a injustiça da pena de morte. Regras

8
Jürgen Habermas, Die postnationale Konstellation. Politische Essays, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1998, pp.
96-105.
9
Friedrich Muller, Wer ist das Volk? Die Grundfrage der Demokratie (Schriften zur Rechtslehre, Bd. 180), Ralph
Christensen (Hrsg.), Berlin, Duncker & Humblot, 1997.
10
Robert Alexy, Theorie der juristischen Argumentation. Die Theorie des rationalen Diskurses als Theorie der
juristischen Begründung, Frankfurt a.M., Suhrkamp, 1983, p. 361 e ss. (Anhang).
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diretamente contrárias a essas sempre fizeram e fazem até hoje parte do direito positivo,
sempre discriminatório.

A teoria universalista contemporânea tenta assim, muito logicamente, reerguer o ideal do


direito internacional, até hoje mero ideal.

V. Conclusão: O Problema da Universalização de Conteúdos Éticos.

Universalizar o direito enquanto regras formais coercitivas, sentido importante que têm
as normas jurídicas, enfatizado pelo positivismo, isso é difícil, mas até parece possível. E
isso querem os fundamentalistas do norte e do sul, do leste e do oeste. Sempre é
possível salgar a terra devastada, como fazia Gengis Khan. Isso depende de eficiência,
controle efetivo. O problema maior vem quando se fala no outro sentido do direito,
assunto deste colóquio, a questão da universalização de conteúdos éticos definidos.
Parece claro que a universalização de regras procedimentais, instrumentais, é mais fácil,
o problema é o lado ético do direito e a conseqüente força impositiva que precisa ter
sobre aqueles que não querem ser moralmente persuadidos. Terrorismo não se combate
com argumentação moral e racional, assim como isso não pode servir de base à luta
contra violações aos direitos humanos, crimes ecológicos e até à conciliação de
interesses econômicos antagônicos, como no caso da ALCA.

Chame-se atenção aqui para apenas dois aspectos importantes desse problema, um
dirigido à periferia e outro ao centro dessa sociedade pretensamente globalizada em
torno de eficiência econômica e eficiência tecnológica.

Em primeiro plano, os complexos aspectos infraestruturais desses direitos que se


pretendem universalizar. Ainda que se afirme que direitos humanos de primeira,
segunda, terceira, quarta, décima geração, não são pré-requisitos uns dos outros, a
própria denominação numérica fala contra essa simpática tese. Não parece razoável
esperar que uma população miserável, sem um mínimo de necessidades básicas
satisfeitas, faminta, sedenta, sem educação e atemorizada pelo crime organizado (como
a brasileira, por exemplo), preocupe-se em apoiar grandes propostas contra a pena de
morte, em prol de um tribunal penal internacional ou de proteção da Amazônia.

Depois, o direito racionalmente universal pode levar a uma arrogância ética,


fundamentalista, ainda que pretensamente civilizada e apresentando indicadores
econômicos de grande sucesso. Como toda arrogância, ela é intolerante. São preferíveis
celerados que respeitam regras a santos que viram a luz. Toda luz exclui os não
iluminados, toda luz vai além das regras. Cidadania é inclusão e uma “nova ordem” em
torno dos valores de uma ou outra cultura tende a excluir aqueles que não a
compreendem ou não a aceitam. Daí a dificuldade de universalização de conteúdos éticos
através do direito.

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