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João Maurício Adeodato - A Pretensão de Universalizaç Ão Do Direito Como Ambiente Ético Comum
João Maurício Adeodato - A Pretensão de Universalizaç Ão Do Direito Como Ambiente Ético Comum
Sumário:
Introdução Metodológica
Esta comunicação tem por objetivo traçar uma dentre muitas linhas possíveis de
evolução histórica do direito ocidental, mostrando como a emancipação da moral, da
religião e dos demais sistemas sociais, sobrecarrega o ordenamento jurídico, levando-o a
uma formalização que torna muito improvável a universalização de seus conteúdo éticos.
O direito como Weltwissenschaft: ciência “do mundo”, sim, empírica, mundana, mas não
universal. Pelo menos por enquanto.
Cabe iniciar colocando as três linhas estratégicas da metodologia unificadora que informa
o texto. Em primeiro lugar, uma compreensão e uma crítica do direito dogmático como
forma de organização caracteristicamente moderna do direito, um ponto de apoio para
observar como evolui a realidade jurídica na chamada pós-modernidade, sem esquecer
as especificidades dos países periféricos. Depois, uma abordagem não-ontológica, que
parece fornecer um arsenal filosófico mais adequado a esse direito contemporâneo, que
necessita de um espaço comum mas se vê diante de um pluralismo ético e jurídico –
entendido no contexto de um mundo extremamente desigual, mas unido por redes de
comunicação – como multiplicidade de sistemas de normas éticas aparentemente
inconciliáveis (e não no sentido do “pluralismo” como “diferenças de perspectiva” perante
o “mundo da vida” do primeiro mundo); isso dentro de um quadro de contradições sobre
o papel do Estado como garantidor exclusivo do direito, tendo a chamada “globalização”
como epicentro. Finalmente, a busca por uma ética eficiente mas tolerante,
tentativamente neutra, uma simpatia cética pela diferença, o que parece melhor
responder a um mundo altamente complexo, sobrecarregado de conflitos e informações.
Isso leva à associação dos três temas mais cruciais para o jurista no mundo de hoje,
central e periférico, global e local: primeiro a dogmática jurídica, em seus dois sentidos,
enquanto organização real e ao mesmo tempo conhecimento (“ciência”) do direito; em
segundo lugar o (“pós”-) positivismo, em seu sentido mais amplo, como atitude
jusfilosófica dominante e aparentemente mais apta a explicar este direito; e em terceiro
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lugar a democracia, a forma ideológica de organização política que o garante, ainda que
enquanto mero tipo ideal, nas sociedades contemporâneas dominantes.
Depois de um longo período de indistinção, quando o direito positivo é tido como espelho
da vontade justa dos deuses, a separação entre as duas ordens jurídicas passa a ser
clara e surge a poderosa teoria do direito natural, o jusnaturalismo, que, apesar de todas
as diferenças internas ao longo de mais de dois mil anos, guarda duas características
comuns: a crença na existência de um ordenamento jurídico além do positivo e a
necessidade de submissão da ordem posta a este outro ordenamento. Daí a metáfora
“natureza” para este ordenamento suprapositivo, em que pese a extrema discordância
entre os jusnaturalistas quanto ao seu teor. Embora não concordem sobre a natureza e o
conteúdo dessas super-normas, todo jusnaturalista advoga a existência de normas justas
e válidas em si mesmas, acima, superiores a qualquer pacto jurídico-político, a qualquer
poder positivado.
1
João Maurício Adeodato, Ética e retórica – para uma teoria da dogmática jurídica, São Paulo, Saraiva, 2002,
pp. 2-3.
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3
O princípio da maioria passa a ser, então, o critério democrático para lidar com a
complexidade, as extremadas diferenciações levadas a efeito no Ocidente. A moral, a
religião, a etiqueta permanecem esferas de diferenciação, de individualidade, separando
indivíduos de um mesmo grupo, ensejando a complexidade. Mas aí o desaparecimento de
2
Augustine, The city of God, trad. Marcus Dods, coleção Great Books of the Western World, Chicago,
Encyclopaedia Britannica, 1990, vol. 16, Cf. livro XXI, cap. 5, p. 636 e ss, entre outros trechos.
3
Saint Thomas Aquinas, “Treatise on law”, The Summa Theologica, vol. II, Questions 90-108, trad. Father
Laurence Shapcote, coleção Great Books of the Western World, Chicago, Encyclopaedia Britannica, 1990, vol.
18, p. 208 s.
4
Hugo Grotius, De jure belli ac pacis (Del derecho de la guerra y de la paz), Madrid, Reus, 1925, vol. I, p. 54.
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uma moral e de uma religião generalizadas faz com que o direito passe a ser
sobrecarregado como única base ética comum, com pretensão de racionalidade e
universalidade, um conteúdo ético mínimo. É pouco para unir as pessoas, mas uma
tarefa grande demais para o direito democrático dogmático tradicional, de cunho estatal
e, logo, nacional. Ao contrário, o excesso de diferenciação ética parece estar levando a
uma maior intolerância contra a própria diferença.
Ressalte-se que, diferentemente do que afirma Robert Alexy, o positivismo não defende
necessariamente a Trennungsthese, a tese de separação entre direito e moral5. Todo
direito tem um conteúdo ético. O positivismo apenas duvida de que se possa determinar
um conteúdo ético “correto” para o direito. O direito positivo concretiza uma determinada
postura ética em detrimento das demais, as quais permanecem como “direito natural”
ou, pode-se dizer, “ideologia dos derrotados”: têm sua função social importante, mas não
fazem parte do direito, pois não foram positivadas e “direito positivo” é expressão
redundante.
O positivismo domina, então, como a teoria do direito mais adequada à democracia. Ele
tem pretensões de universalidade, sim, mas seu universalismo é meramente formal,
procedimental, ele considera a questão do conteúdo ético uma questão extra-jurídica.
Pela solução da modernidade democrática para esse dilema, igualitária, o direito passa a
ser, em primeiro lugar, uma questão de maioria, pois justo não é este ou aquele padrão
de conduta, mas sim aquilo que a maioria decide que é justo; e, em segundo lugar, o
direito torna-se institucionalizadamente mutável, pois sempre novos conteúdos éticos
divergentes podem ser submetidos a novas maiorias. O positivismo retira o problema da
legitimidade e da justiça da esfera da ciência do direito e abandona o ideal iluminista de
um direito internacional6.
5
Robert Alexy, Begriff und Geltung des Rechts, Freiburg-München, Alber, 1992, pp. 15-17.
6
Immanuel Kant, Zum ewigen Frieden. Ein philosophischer Entwurf. Werkausgabe, in zwölf Bände (em 12
vols), vol.XI, Wilhelm Weischedel (Hrsg.), Frankfurt a. M., Suhrkamp, 1977, pp. 191 251.
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Fácil entender, assim, como o positivismo exegético evolui para o decisionismo. Com a
crescente complexidade social e o progressivo dissenso sobre a significação concreta dos
textos jurídicos, a objetividade, mesmo formal, da legislação é mais e mais posta em
dúvida. O positivismo contemporâneo perde seu caráter cientificista e torna-se cada vez
mais casuístico, esvaziando o papel do Legislativo e enfatizando a concretização da
norma jurídica por meio do Judiciário e demais partes envolvidas no caso concreto. A lei
e mesmo o precedente judicial são vistos como textos, não como normas, são meros
dados de entrada para construção da norma diante do caso. O apelo a princípios,
máximas ou a sobreprincípios como a proporcionalidade, passa a ser mais uma
estratégia para dispor de espaço livre na adaptação do sistema à complexidade dos
casos. Uma racionalidade casuística ou mesmo casual é o máximo que se pode esperar.
Essas dificuldades para uma racionalização universal tornam-se ainda mais agudas no
âmbito do direito internacional, pois, mesmo se fosse possível um acordo sobre um
conteúdo ético definido, isso não bastaria a uma efetiva constituição do direito
internacional. Como já afirmava Kant (também em Zum ewigen Frieden, de 1795), uma
coercitividade internacional, certamente via um tribunal soberano, seria indispensável,
pois, como ele coerentemente diz, “Das Recht ist mit der Befugnis zu zwingen verbunden
(o direito está ligado à autorização para coagir)7. O direito internacional tem chegado, na
melhor das hipóteses, ao princípio de Hugo Grotius pacta sunt servanda, regra máxima
esta também meramente formal, pois nada diz sobre o conteúdo ético desse pacto, não
diz o que deve e o que não deve ocorrer. Sim, pois a adesão dos Estados nacionais, por
definição os sujeitos do direito internacional, é autônoma, enquanto que a adesão dos
cidadãos ao direito dogmático nacional é heterônoma. Parece haver uma diferença
fundamental de conceitos.
Pode-se tomar como ponto de argumentação a tese do “respeito mínimo aos direitos
humanos”. Verifica-se que a idéia de direitos humanos fundamentais e inalienáveis,
válidos por si mesmos, independentemente e acima do pacto político constituinte da
ordem jurídica, que parecia caminhar para uma universalização definitiva nessa
7
Immanuel Kant, Die Metaphysik der Sitten. Werkausgabe, in zwölf Bände (em 12 vols), vol. VIII, Wilherm
Weischedel (Hrsg.), Frankfurt a. M., Suhrkamp, 1977, pp. 338-339 (A-B 35-36).
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6
8
Jürgen Habermas, Die postnationale Konstellation. Politische Essays, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1998, pp.
96-105.
9
Friedrich Muller, Wer ist das Volk? Die Grundfrage der Demokratie (Schriften zur Rechtslehre, Bd. 180), Ralph
Christensen (Hrsg.), Berlin, Duncker & Humblot, 1997.
10
Robert Alexy, Theorie der juristischen Argumentation. Die Theorie des rationalen Diskurses als Theorie der
juristischen Begründung, Frankfurt a.M., Suhrkamp, 1983, p. 361 e ss. (Anhang).
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diretamente contrárias a essas sempre fizeram e fazem até hoje parte do direito positivo,
sempre discriminatório.
Universalizar o direito enquanto regras formais coercitivas, sentido importante que têm
as normas jurídicas, enfatizado pelo positivismo, isso é difícil, mas até parece possível. E
isso querem os fundamentalistas do norte e do sul, do leste e do oeste. Sempre é
possível salgar a terra devastada, como fazia Gengis Khan. Isso depende de eficiência,
controle efetivo. O problema maior vem quando se fala no outro sentido do direito,
assunto deste colóquio, a questão da universalização de conteúdos éticos definidos.
Parece claro que a universalização de regras procedimentais, instrumentais, é mais fácil,
o problema é o lado ético do direito e a conseqüente força impositiva que precisa ter
sobre aqueles que não querem ser moralmente persuadidos. Terrorismo não se combate
com argumentação moral e racional, assim como isso não pode servir de base à luta
contra violações aos direitos humanos, crimes ecológicos e até à conciliação de
interesses econômicos antagônicos, como no caso da ALCA.
Chame-se atenção aqui para apenas dois aspectos importantes desse problema, um
dirigido à periferia e outro ao centro dessa sociedade pretensamente globalizada em
torno de eficiência econômica e eficiência tecnológica.
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