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Paleoecologia
Humana e
Arqueociências
Um Programa Multidisciplinar
para a Arqueologia sob a Tutela
da Cultura
TRABALHOS DE ARQUEOLOGIA; 29
COORDENAÇÃO EDITORIAL
José E. Mateus
Marta Moreno-García
António Marques de Faria
DESIGN GRÁFICO
TVM Designers
PRÉ-IMPRESSÃO E IMPRESSÃO
Textype, Artes Gráficas, Lda.
TIRAGEM
500 exemplares
Depósito Legal
189 234/02
ISSN 0871-25
ISBN 972-8662-13-0
Francisco ALMEIDA
Diego E. ANGELUCCI
Ana Cristina ARAÚJO
Thierry AUBRY
Simon DAVIS
Cidália DUARTE
Sónia GABRIEL
Wim van LEEUWAARDEN
José E. MATEUS
Marta MORENO-GARCÍA
Carlos M. PIMENTA
Paula F. QUEIROZ
José Paulo RUAS
João ZILHÃO
Colaboradores
Vera ALDEIAS
Jacinta BUGALHÃO
Randi DANIELSEN
Gisela ENCARNAÇÃO
Cristina GAMEIRO
Javier MANGADO LLACH
Patricia MENDES
Vanda PINHEIRO
Leonor ROCHA
Jorge D. SAMPAIO
ÍNDICE
NOTA DE ABERTURA 11
❚ Fernando Real ❚
PREFÁCIO 15
❚ João Zilhão ❚
INTRODUÇÃO
1. ARQUEOLOGIA AMBIENTAL SOB A TUTELA DA CULTURA – UMA
EXPERIÊNCIA COM 20 ANOS, UM DESAFIO PARA A NOSSA ARQUEOLOGIA
❚ José Eduardo Mateus ❚
LABORATÓRIO DE GEOARQUEOLOGIA
2. A PARTIR DA TERRA: A CONTRIBUIÇÃO DA GEOARQUEOLOGIA
❚ Diego E. Angelucci (com um contributo de Vera Aldeias) ❚
• Geoarqueologia: o que é? 36
– Introdução ao Conceito de Geoarqueologia 36
– Anotações para uma Definição de Geoarqueologia 37
• Modus operandi do Trabalho Geoarqueológico 41
– Conceitos Básicos 41
– A Investigação Geoarqueológica 43
• Geoarqueologia, Paisagens e Territórios 45
• Geoarqueologia e Depósitos Arqueológicos 54
– Processos de Formação em Âmbito Arqueológico: Sedimentação, Erosão e Pedogénese 56
– O Papel da Pedogénese nas Estratificações Arqueológicas 59
– A Definição das Unidades de Escavação 66
– A Descrição 68
– Reconstituir Sequências de Eventos e Correlações 68
• A Área de Geoarqueologia do CIPA 76
• Conclusão (do Capítulo) ou Início (da Geoarqueologia Portuguesa)? 79
• Agradecimentos 80
• Bibliografia Mencionada 80
• Outros Textos Geoarqueológicos de Referência não
Mencionados no Capítulo 84
• Introdução 85
• Recolher Amostras para a Micromorfologia 87
– Propriedades da Amostra Micromorfológica 87
– Extracção da Amostra 88
– Identificação da Amostra, Registo e Tratamento Sucessivo 89
• A Descrição das Lâminas Finas Micromorfológicas: algumas Anotações 91
• A Micromorfologia em Arqueologia: alguns Exemplos 93
– O Reconhecimento dos Artefactos Líticos em Pedra Lascada e das Áreas de Debitagem 93
– A Função das Paleosuperfícies de Ocupação Antrópica: o Caso do Riparo Dalmeri
(Trento, Itália) 95
– A Visibilidade das Mudanças Climáticas Abruptas: o Dryas Recente de la Cativera
(Tarragona, Espanha) 98
– O Impacte Antrópico na Paisagem: o Sítio Neolítico de Lugo di Grezzana (Verona, Itália) 99
– Elementos Arquitectónicos em Terra de Cronologia Romana: o vicus de Bedriacum
(Cremona, Itália) 100
• Micromorfologia em Portugal 102
• Bibliografia 102
LABORATÓRIO DE PALEOECOLOGIA E ARQUEOBOTÂNICA
4. O LABORATÓRIO DE PALEOECOLOGIA E ARQUEOBOTÂNICA –
UMA VISITA GUIADA AOS SEUS PROGRAMAS, LINHAS DE TRABALHO
E PERSPECTIVAS
❚ José Eduardo Mateus ❚ Paula Fernanda Queiroz ❚ Wim van Leeuwaarden ❚
• Introdução 106
• O Território Antigo 106
• As Unidades de Paisagem e os seus Registos 108
• Os Fósseis Vegetais (Diásporas e Fitoclastos) 108
• Sete Linhas de Trabalho 113
– Momentos da Progressão da Pesquisa 114
– Linha 1 - Arquivos Naturais da Memória Ecológica (Turfeiras e Lagos) 116
– Linha 2 - Arquivos Orgânicos do Espaço Doméstico e Adjacente 140
– Linha 3 - Palinologia de Argilas Arqueológicas 146
– Linha 4 - Antracologia Arqueológica 149
– Linha 5 - Eco-fisiografia dos Territórios Históricos de Hoje 156
– Linha 6 - Paleoecologia Experimental 162
– Linha 7 - Arqueologia Virtual 170
• Anexo I – Estruturas Documentais 175
• Anexo II – Lista de Trabalhos e Publicações do Laboratório de Paleoecologia
e Arqueobotânica 181
• Bibliografia 188
LABORATÓRIO DE ARQUEOZOOLOGIA
5. ARQUEOZOOLOGIA: ESTUDO DA FAUNA NO PASSADO
❚ Marta Moreno-García ❚ Simon Davis ❚ Carlos M. Pimenta ❚
• Introdução 235
• Contactos com Instituições Nacionais e Internacionais 236
• A Osteoteca 241
– Método de Preparação 241
– Composição 246
– Organização 257
– Divulgação 259
• Conclusão 260
• Agradecimentos 260
• Bibliografia 261
• Introdução 263
• O Comportamento Funerário e a Arqueologia 264
– Contextos Funerários Arqueológicos – Terminologia 266
– Contextos Funerários Arqueológicos – Diferenças Cronológicas 268
• Metodologia e Legislação em Arqueologia Funerária 276
– Enquadramento da Legislação Portuguesa 276
– Metodologia de Campo 278
– Tratamento Laboratorial 282
• Os Dados Osteológicos Quantitativos 283
– Paleonutrição e Paleopatologia 283
– Abordagens Arqueométricas e Paleodietas 284
– Abordagens Populacionais e Evolução Humana 285
• Equipa de trabalho 288
• Anexo I – Ficha de Escavação de Ossos Humanos
em Contextos Arqueológicos 289
• Anexo II – Dados Osteométricos de Campo 292
• Bibliografia 293
NÚCLEO DE PALEOTECNOLOGIA
8. PALEOTECNOLOGIA LÍTICA: DOS OBJECTOS AOS COMPORTAMENTOS
❚ Francisco Almeida ❚ Ana Cristina Araújo ❚ Thierry Aubry ❚
11
Silva) e do anterior Ministro da Ciência, Mariano Gago, a quem foram entregues pela
Direcção do IPA à época, sucessivos memorandos, sempre acolhidos por palavras de
apreço e encorajamento. Foi então elaborado para o IPA um Regulamento de Bolsas de
Investigação Científica (aprovado a 26/03/01 pela Fundação para a Ciência e a Tecnolo-
gia), de acordo com o Decreto-Lei no 123/99 de 20 de Abril, visando permitir o recruta-
mento e reforço da equipa desse Centro de Investigação em fase de instalação. Neste sen-
tido, foi proposta já em 2000, uma primeira alteração da Lei Orgânica do IPA, a que se
seguiu, no 2o semestre de 2001, uma outra proposta de alteração orgânica ao Quadro do
Instituto com vista à institucionalização deste Centro, não tendo, contudo, sido possível
a sua aprovação durante a legislatura anterior, por razões ligadas com a demissão do
Governo, em 19 de Novembro de 2001.
Na sequência de um longo e consistente processo de desenvolvimento e apetrechamento,
sob tutela do MC, e de um bem sucedido concurso alargado de recrutamento nacional e inter-
nacional de cientistas, o laboratório de investigação apresenta-se hoje como uma unidade de
investigação de maturidade técnico-científica reconhecida, bem apetrechada, e alargada ope-
racionalidade. Diga-se, assim, que falta apenas a sua consagração numa lei orgânica. Dispõe
de oito investigadores doutorados, dois doutorandos (um mestre e um licenciado), e seis téc-
nicos (dois licenciados e quatro bacharéis ou equiparados). Faz-se notar que se trata de um
grupo de especialistas em Arqueologia Ambiental, com uma vasta experiência na aplicação de
técnicas e linguagens das ciências naturais ao património arqueológico.
Até Maio de 2002 altura em que entrou em função a actual Direcção do IPA, para
além de um programa de apetrechamento, instalação laboratorial, constituição de vastas
colecções de referências únicas no País, foram já estabelecidos 89 projectos de coopera-
ção com a comunidade arqueológica nacional; foi assegurada a participação científica em
11 programas de investigação nacional e internacional; foi editada uma série de relatórios
– “Trabalhos do Cipa” (49 volumes). Foram ainda realizadas várias acções de formação e
divulgação com efeito multiplicador evidente. Nesta fase experimental foi ainda criado um
logótipo para ajudar a identificar uma imagem dos laboratórios.
As disciplinas cobertas são: Arqueozoologia (mamíferos, aves, peixes, anfíbios e répteis);
Arqueobotânica (palinologia, carpologia, antracologia, anatomia de madeiras, paleoecologia
vegetal); Geoarqueologia (sedimentologia, geomorfologia, pedologia, micromorfologia);
Paleobiologia Humana (evolução humana, osteobiografia, arqueologia funerária); e Paleo-
tecnologia lítica (estudos de proveniência de matérias primas e das cadeias operatórias).
Um programa do PIDDAC, formalmente aceite pela Tutela e por despacho de
14/Abril/2000 da Senhora Ministra do Planeamento, à época, tem suportado o financia-
mento de bolsas e de contratos de avença e a aquisição do equipamento laboratorial e infor-
mático do Laboratório.
O Laboratório tem efectuado inúmeras prestações de serviço, o que tem gerado recei-
tas que permitem assegurar uma boa parte das despesas correntes do seu funcionamento.
O recrutamento do pessoal tem seguido as regras previstas na mobilidade de funcio-
nários na Administração Pública, concursos públicos e convite no caso de duas bolsas de
cientista convidado.
O projecto PIDDAC em 2003, tem uma dotação anual de 299 279 a e as receitas obti-
das por prestações de serviços ascendem a uma média anual de 64 800 a — verbas que per-
mitiram equipar o laboratório e constituir o seu fundo de maneio. O encargo com os bol-
seiros corresponde a 51% da dotação existente.
A confirmar o êxito deste laboratório, em fase experimental, têm chegado ao IPA, dos
mais prestigiados laboratórios de investigação nacionais e estrangeiros, mensagens de soli-
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
12
dariedade e de apoio à sua institucionalização. Recorde-se que são várias as Universidades,
Câmaras Municipais, Empresas de Arqueologia e arqueólogos que recorrem aos serviços do
Laboratório.
Os projectos aceites no âmbito do Plano Nacional de Trabalhos Arqueológicos (PNTA)
são alvo de um concurso anual de colaboração gratuita.
Um laboratório em Arqueologia Ambiental é uma necessidade premente da Arqueo-
logia em Portugal.
A inexistência de tal laboratório de investigação tem uma explicação e essa é reflexo do
atraso do nosso País, das repetidas alterações nas políticas do Património, das indecisões e
da morosidade dos procedimentos administrativos inerentes à sua criação.
O conjunto dos investigadores e de técnicos que trabalham no IPA em Paleoecologia
Humana e Arqueociências, a sua reconhecida experiência técnico-científica, o apetrecha-
mento laboratorial acumulado, e as importantes colecções de referência já constituídas, são
no seu conjunto uma mais valia do País, da Arqueologia, da Ciência Portuguesa, e do
Ministério da Cultura (MC).
O processo de criação destes laboratórios de Arqueologia Ambiental sob a tutela do MC
dura há mais de 20 anos. Julgamos ter chegado o momento certo, para a sua consagração
formal, no quadro da reestruturação em curso da Arqueologia Portuguesa.
Actualmente já existem os recursos humanos, financeiros e materiais (instalações,
equipamentos e colecções comparativas) para uma unidade laboratorial de excelência.
Importa apenas resolver um problema jurídico e garantir, para o futuro, o plano anual de
actividades. Salienta-se ainda que existem compromissos assumidos no início do corrente
ano com várias instituições e Arqueólogos que importa ter em conta no contexto actual. Tais
compromissos envolvem projectos com Universidades e a preparação de teses de licencia-
tura em História (Variante de Arqueologia), mestrados e doutoramentos.
Uma das missões do laboratório de arqueologia seria a de dar continuidade e poten-
ciar novos protocolos com outros laboratórios de investigação e instituições do ensino supe-
rior em colaboração estreita com a pesquisa que aí é desenvolvida e que tenham interesse,
disponibilidade e recursos para se associarem à investigação em Arqueociências.
Falta apenas uma tomada de decisão superior face ao reconhecimento da urgência e
oportunidade da institucionalização deste Laboratório de Arqueociências como instru-
mento central de salvaguarda do património.
Esta publicação é um repositório e apresentação pública de uma forma organizada do
planeamento, esforço humano e financeiro que tem sido realizado há 23 anos no âmbito dos
organismos que têm coordenado a Arqueologia Portuguesa e que nos últimos anos permi-
tiu avanços significativos.
A ser bem entendida pelo Governo esta necessidade que os arqueólogos sentem
como uma prioridade, poderá ser que, em breve, possamos dispor de um Laboratório
Português de Arqueociências para bem do Património Cultural e da Arqueologia enquanto
disciplina científica.
Fernando Real
Director do IPA
NOTA DE ABERTURA
13
Prefácio
Por razões diversas, ligadas ao atraso geral do país e das suas Universidades, em grande
medida decorrente da história política do pós-1945 português, a nossa Arqueologia foi, durante
quase todo o século XX, quase só assunto de (poucos) amadores, e as ciências com ela rela-
cionadas estiveram praticamente desprovidas de praticantes, individuais ou institucionais.
Também neste aspecto, o 25 de Abril de 1974 representou o início de uma verdadeira revolu-
ção; muita coisa mudou desde então na Arqueologia portuguesa, tanto no campo universitá-
rio como no da administração pública.
No que diz respeito às Arqueociências, porém, e com a singular excepção representada
pela entrada em funcionamento, em 1986, do Laboratório de Radiocarbono de Sacavém, o
fosso que nos separava da Europa não cessou de aumentar, apesar das diversas tentativas de
superação da situação levadas a cabo a partir de 1980, com a criação no Museu Nacional de
Arqueologia (MNA) de um embrião de Laboratório de Paleoecologia. O facto de o ensino da
Arqueologia se fazer nas Faculdades de Letras, o reduzido interesse que o estudo do Quater-
nário suscitava (e suscita ainda) entre os geólogos nacionais, a inexistência de verdadeiros
Museus de História Natural (agravada pelo trágico incêndio que em 1978 destruiu o Museu
Bocage), o subfinanciamento estatal crónico das Universidades em geral e das ciências sociais
e humanas em particular, tudo isso contribuiu para que a expansão do ensino e da prática da
Arqueologia ao longo das décadas de 80 e 90 se tivessem dado num ambiente de divórcio
quase completo com as ciências da natureza e do ambiente.
Não surpreende por isso que, do preâmbulo do Decreto-Lei 117/97, de 14 de Maio, que
criava o Instituto Português de Arqueologia (IPA), constasse que “a gestão do património
arqueológico em todas as suas vertentes é indissociável do apoio à investigação científica, apoio tanto
mais necessário quanto, hoje em dia, a exploração adequada da informação arqueológica exige cres-
centemente o recurso a métodos derivados da física e das ciências naturais, competindo à adminis-
tração central, na situação presente, desempenhar um papel de forte impulsionador do respectivo
desenvolvimento”. Numa primeira fase, procurou-se levar à prática estas orientações nos termos
enunciados em discurso proferido por ocasião da cerimónia de tomada de posse da primeira
direcção do IPA, em 12 de Junho de 1997: “o IPA promoverá igualmente o incremento dos estu-
dos arqueométricos em Portugal, através da celebração de protocolos com Universidades e Institutos
de investigação, visando a constituição de uma rede laboratorial que torne possível que, na Arqueo-
logia portuguesa, os estudos paleoambientais e radiométricos, entre outros, se tornem cada vez mais
a regra e não a excepção”.
Desta política de protocolos viria a resultar a consolidação de um Grupo de Arqueome-
tria no Instituto Tecnológico e Nuclear (ITN), no seguimento da actividade pioneira de J. M.
Peixoto Cabral e A. M. Monge Soares, e com o apoio empenhado de J. Carvalho Soares, Pre-
sidente do ITN ao longo de todo este período. Pela primeira vez em Portugal, constituía-se num
Laboratório do Estado uma equipa científica especificamente dedicada às aplicações arqueo-
lógicas da Física e da Química, consolidando-se linhas de investigação anteriores na análise
de materiais, na ceramologia e nos isótopos estáveis; e, no que diz respeito à datação radio-
métrica, assegurava-se a continuidade do Laboratório de Radiocarbono e criava-se um Labo-
ratório de Termoluminescência. A importância do que estava em causa ficou bem patente no
facto de os Ministros da Cultura e da Ciência terem participado na cerimónia de assinatura do
protocolo entre o IPA e o ITN, celebrada nas instalações deste último em 23 de Março de 1999,
15
e de terem aproveitado a ocasião para proferir discursos programáticos sobre o futuro da
Arqueologia e das Arqueociências em Portugal.
Por protocolo paralelo, procurou-se desenvolver a área das ciências naturais aplicadas à
arqueologia, através do apoio à equipa de Paleoecologia que, em 1995, se havia transferido do
MNA para o Museu Botânico da Universidade de Lisboa. Rapidamente, porém, as insuperá-
veis dificuldades de enquadramento institucional universitário com que essa equipa se depa-
rava fizeram aparecer os limites de tal política. Em finais de 1998, a descoberta da sepultura
infantil do Abrigo do Lagar Velho, com toda a repercussão internacional de que se revestiu, e
consequente obrigação de produzir em tempo útil uma contextualização científica do achado
credível pelos padrões internacionais, tornou ainda mais óbvias as carências do país nesta área.
Foi neste quadro que germinou a ideia de envolver o Ministério da Cultura na criação de um
Centro de Investigação que resolvesse esta grave lacuna do sistema científico nacional.
A ideia foi apresentada superiormente ao Ministro da Cultura, Manuel Maria Carrilho,
em memorando datado de 8 de Fevereiro de 1999. Dele se transcrevem as passagens mais rele-
vantes:
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
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encontrava a equipa de Paleoecologia do Museu Botânico. Em memorando ao Ministro da Cul-
tura datado de 5 de Março de 1999 fazia-se o seguinte resumo das principais conclusões rela-
tivas a este Centro de Investigação (cuja designação se havia por então fixado em Centro de
Investigação em Paleoecologia Humana e Arqueociências — CIPHA ou CIPA) resultantes dos
contactos havidos com o Ministro da Ciência e Tecnologia:
PREFÁCIO
17
podido organizar. Em consequência, o impacte da criação do CIPA fez-se sentir em todo o sis-
tema científico nacional, muito para além das fronteiras da Arqueologia em sentido estrito.
Deve salientar-se que o facto de tanto ter sido conseguido em tão pouco tempo se deve
exclusivamente à competência, dedicação e empenho dos investigadores e técnicos do CIPA,
cujo entusiasmo nunca esmoreceu, mesmo perante as dificuldades administrativas que, ape-
sar do empenho político ao mais alto nível, acabaram por ensombrar a pretendida institucio-
nalização rápida da estrutura. A criação do CIPA como serviço dependente do IPA enquadrado
no sistema de investigação científica nacional fora anunciada conjuntamente pelos Ministros
da Cultura e da Ciência e Tecnologia em 1999, por ocasião da assinatura do anteriormente
referido protocolo com o ITN, e foi reafirmada, após as eleições legislativas de finais desse ano,
em discurso programático do Ministro da Cultura proferido no Museu Nacional de Arqueo-
logia a 6 de Janeiro de 2000. Na mesma ocasião, o Ministro da Cultura assumiu também a
necessidade de proceder a ajustamentos na delimitação das competências do IPA e do IPPAR
fixada pelas leis orgânicas de 1997. Citam-se, da secção do seu discurso relativa aos “objecti-
vos da actual legislatura”, as passagens relevantes:
Foi neste contexto que a direcção do IPA preparou um projecto global de alteração da sua
lei orgânica, no âmbito do qual se promovia a formalização administrativa da estrutura CIPA,
a realizar nos termos do artigo 15o-C desse projecto, que adiante se transcreve:
o
“Artigo 15 -C
Centro de Investigação em Paleoecologia Humana e Arqueociências
1) O CIPA é uma instituição de investigação científica nos termos e para os efeitos do
artigo 4o do Decreto-Lei no 125/99, de 20 de Abril.
2) Ao CIPA compete, nomeadamente:
a) Desenvolver programas de investigação pluri e inter-disciplinares sobre a evolução da
paisagem portuguesa e dos antigos territórios humanos, sobre a história natural do
homem e dos recursos por ele explorados, e sobre a natureza dos diferentes sistemas
de adaptação documentados pela investigação arqueológica;
b) Promover, nomeadamente através da celebração de protocolos, a cooperação técnico-
-científica com outras instituições, com vista a desenvolver programas de pesquisa
interdisciplinar que exijam recurso a domínios exteriores aos seus recursos próprios
de investigação;
c) Desenvolver acções de divulgação nos domínios da Paleoecologia Humana e da Arqueo-
logia Ambiental com vista à promoção destas disciplinas como áreas vocacionais;
d) Promover a celebração de protocolos com instituições de ensino superior com vista a
co-promover e co-orientar cientificamente programas de formação curricular univer-
sitária, nomeadamente pós-graduações, mestrados e doutoramentos;
e) Colaborar em projectos de investigação no âmbito do PNTA.
3. De entre os investigadores a exercerem funções no CIPA, será designado um coorde-
nador de equipa, nos termos de regulamento interno a aprovar pelo Ministro da Cultura,
que será responsável perante a direcção do IPA pela execução do respectivo plano de acti-
vidades.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
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4. O quadro de pessoal do CIPA será aprovado nos termos do artigo 42o do Decreto-Lei
no 124/99, de 20 de Abril.”
João Zilhão
Professor da Faculdade de Letras de Lisboa
Director do IPA entre 15 de Maio de 1997 e 15 de Maio de 2002
PREFÁCIO
19
Introdução
| Arqueologia Ambiental sob a tutela
capítulo 1
da Cultura: uma experiência com 20 anos,
um desafio para a nossa Arqueologia
❚ JOSÉ EDUARDO MATEUS* ❚
Contrastando com os nossos monumentos de pé, cujo espaço ainda habitamos e revi-
vemos (de forma reciclada), os sítios arqueológicos são em geral parcelas de um território
humano enterrado e esquecido sob solo florestal, agrícola, ou urbano. Trata-se assim de um
património imprevisto, abandonado, um recurso ainda “bruto”, embora precioso para a
reconstituição do nosso referencial de identidade cultural que se empobrece rapidamente.
Identificar sítios é apenas o preâmbulo desta actividade produtiva de Cultura. O patri-
mónio arqueológico não se produz na simples descoberta, mas no exercício da desmonta-
gem, registo, e sobretudo na “remontagem” dos testemunhos. Dar forma e conteúdo a frag-
mentos do nosso território de hoje, enquanto novos monumentos da nossa passada existência
constitui um desafio à nossa criatividade técnica, científica, e cultural. A Cultura Material
de outrora preservada no registo arqueológico deve ser reconstituída na sua expressividade
de “obra”, enquanto forma (estrutura) que esteve viva, que funcionou, na sua viabilidade /
criatividade ecológica, económica, social, espiritual. Só desta forma se produz ciência e
património.
Falamos em prole de uma Arqueologia Contextual no seu duplo sentido Processual e
Pós-processual. Por cá, nós os arqueólogos, continuamos a ignorar simplesmente mais de
metade do conteúdo informativo do nosso objecto — o registo material das antigas sociedades
humanas. O caixote de fragmentos líticos e cerâmicos, e os desenhos esboçados dos perfis
dos muros que desventramos constituem na esmagadora maioria a totalidade do espólio
base das intervenções, um potencial científico-cultural muito pobre, dado que muitas das
vezes se constitui na destruição (ignorante e involuntária) do registo arqueo-espacial,
arqueo-biológico, e arqueo-geológico — suportes privilegiados da teia escondida da inteli-
gibilidade dos nossos antigos habitats.
A razão é já conhecida de todos. A formação dos arqueólogos no nosso país é profunda-
mente deficitária nos domínios das ciências do passado — as que permitem identificar, regis-
tar, desmontar, e recuperar os testemunhos de forma integrada e contextualizada. Antes de
se constituírem como “artefactos” (leia-se de forma grosseira “peças de arte”), os registos são
entidades geológicas, pedológicas, ecológicas, biológicas, cuja articulação espacial (reflexo
material da sua funcionalidade) se preserva no “solo arqueológico” — uma parcela do ecos-
sistema onde um metabolismo natural preserva, processa, e consome a informação.
De notar que estamos a falar de identificação, registo, e desmontagem — aspectos a mon-
tante do processo de re-criação do património arqueológico. A juzante, ao nível da remontagem,
as ciências do passado voltam a ser essenciais. A natureza “cultural” dos artefactos e estrutu-
ras só se completa e exprime (para além do formalismo tipológico cru), quando emanando da
sua natureza “natural”, revelada pelas técnicas e linguagens das Ciências Exactas e da Natu-
reza. Composição elementar, origem espacial da matéria prima, cronologia, tecnologia de
21
fabrico e uso, funcionalidade económica, viabilidade ecológica, constituem aspectos desta
contextualização “natural”, a promover após a escavação.
Acresce nesta visão duplamente natural e cultural do Património Arqueológico o facto dos
sítios arqueológicos frequentemente funcionarem como “arquivos de imagens” do espaço
envolvente, permitindo um acesso ao Território Antigo, à sua fisiografia, à sua ecologia, aos
seus recursos potenciais e explorados, à sua funcionalidade económica, à sua estruturação
espacio-cultural. Evoca-se aqui uma visão integrada de sítios, uma macro-escala acessível
pelas Ciências do Território.
Este “contexto natural” (arqueoambiental e espacial), tem sido esquecido e mesmo des-
truído no nosso país. É esta a razão pela qual retemos hoje um património histórico-cultural
único, mas profundamente desvalorizado, face ao panorama internacional.
Neste sentido é hoje fundamental instituir as arqueociências num programa nacional
tutelado pelo Ministério da Cultura.
Não se trata apenas da necessidade de desenvolver a Arqueologia Ambiental no âmbito
lato da Nossa Arqueologia — tarefa que deverá envolver também universidades, câmaras, pri-
vados, e o próprio Ministério do Ambiente — mas simplesmente de assegurar o cumprimento
de objectivos primários, nacionais e de responsabilidade governamental: identificar, inventa-
riar, e assegurar a preservação do nosso património. Afinal uma tarefa que irremediavel-
mente terá que passar por um programa científico coerente.
No entanto, estas preocupações são já antigas e partilhadas por muitos. Recordamos que
tudo começou em 1980 com a dupla tomada de posse de Francisco Alves como director do
MNAE (Museu Nacional de Arqueologia) e do Departamento de Arqueologia do IPPC.
Com o então designado Laboratório de Paleoecologia (Fig. 1-1) procurava montar-se um
serviço laboratorial para a investigação em Paleoecologia Arqueológica, área de interface
entre as Ciências Naturais e a Arqueologia. A responsabilidade deste programa recaiu pre-
cisamente sobre o autor destas linhas, ao qual se juntaram mais tarde três colaboradores,
Paula Fernanda Queiroz (bióloga), Maria João Coutinho (arqueóloga) e Fernando Real
(geólogo), os dois últimos ligados ao embrião de dois sectores (arqueozoologia e geoar-
queologia).
Embora sem reconhecimento orgânico formal o Laboratório de Paleoecologia esteve pre-
visto no projecto de lei orgânica do MNA e consignado na “Proposta de Criação de um Cen-
tro Nacional de Investigação Interdisciplinar em Arqueologia”, da autoria de um grupo de espe-
cialistas designado pelo então Secretário de Estado da Cultura.
Graças ao apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, a um protocolo com o Museu Botâ-
nico (U.L.), e a um programa de cooperação com a Universidade de Utreque (Holanda), a área
de Arqueobotânica pôde florescer em torno de dois doutoramentos (JEM e PFQ) versando a
Paleoecologia da Paisagem Portuguesa — teses orientadas respectivamente por Cornelius
Roelof Janssen (Utreque) e Fernando Mangas Catarino (Lisboa).
Em 1995, com a criação do IPM, tornou-se nebulosa a definição institucional do “Labo-
ratório de Paleoecologia” no MNA pelo que foi então assinado um protocolo com o Museu
Botânico da U.L. que permitiu a passagem desta unidade para a alçada do Museu Nacional de
História Natural (M.N.H.N.).
Esta estada na U.L. (sob a tutela de Fernando Catarino) foi prolífera: Aumentou a equipa
e novas áreas de investigação no âmbito das ciências do passado e do território foram desen-
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
22
volvidas; O LP consolidou a sua cooperação em programas internacionais e nacionais; Formou-
-se gente em áreas carentes e inéditas entre nós; Enfim, foi também crescendo o apetrecha-
mento da unidade quer em equipamento laboratorial, informático, e de microscopia, quer em
estruturas documentais e colecções de referência.
Nos finais de 1999 o Laboratório de Paleoecologia regressou ao Ministério da Cultura.
Através de novo protocolo IPA - Museu Botânico foi possível recuperar integralmente o con-
junto da equipa, apetrechamento, projectos, e colecções de referência, em crescimento desde
1980. Foi um dos primeiros passos para o PROGRAMA CIPA, promovido por João Zilhão e
Monge Soares, que neste domínio contaram com o empenho comprometido dos Ministérios
da Cultura e da Ciência. Juntava-se entretanto à arqueobotânica e paleoecologia (com José E.
Mateus, Paula F. Queiroz, e Wim van Leeuwaarden) um novo grupo para a zoo-arqueologia
(Simon Davis e Marta Moreno-García), recrutado através de concurso internacional, e que dado
o seu currículo e “know-how” pôde em três anos reconstituir um laboratório de zoo-arqueolo-
gia integralmente apetrechado, operacional, e de nível europeu. Davam-se ainda passos fun-
damentais para mais três áreas — paleobiologia humana, geo-arqueologia, e paleotecnologia
com a participação de Cidália Duarte, Diego Angelucci, Thierry Aubry, Francisco Almeida e
Ana Cristina Araújo (Fig. 1-2).
Vislumbrando agora mais de vinte anos de percurso pelas Arqueociências, reconhecemos
que estamos em presença de um processo institucional e técnico-científico historicamente
semelhante e paralelo ao que ocorreu com a Arte Rupestre e com a Arqueologia Naval e Suba-
quática no âmbito do MC (instâncias já organicamente consagradas). Sentimos no entanto o
particularismo de se envolver necessariamente uma ligação ao estatuto regulamentado da
investigação científica (com o seu sistema de bolseiros, orientadores, e prestação de provas),
e aos meios académicos — articulação que é naturalmente crucial, mas pouco usual no âmbito
do Ministério da Cultura. Resta-nos o mesmo comprometimento com o património arqueo-
lógico deste país.
ARQUEOLOGIA AMBIENTAL SOB A TUTELA DA CULTURA: UMA EXPERIÊNCIA COM 20 ANOS, UM DESAFIO PARA A NOSSA ARQUEOLOGIA
23
O Laboratório de Paleoecologia
Antecedentes do programa CIPA
– O Laboratório de Paleoecologia. Antecedentes do programa CIPA. Imagens das instalações do LP no Museu Nacional de
FIG. 1-1
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
24
Programa CIPA
Laboratórios e infra-estruturas actuais
no Instituto Português de Arqueologia
ARQUEOLOGIA AMBIENTAL SOB A TUTELA DA CULTURA: UMA EXPERIÊNCIA COM 20 ANOS, UM DESAFIO PARA A NOSSA ARQUEOLOGIA
25
Colecções de Referência
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
26
Trabalhos do CIPA
– Série de relatórios do programa CIPA, ao abrigo da colaboração com a comunidade arqueológica e científica nacional:
FIG. 1-3
Os “Trabalhos do CIPA”.
ARQUEOLOGIA AMBIENTAL SOB A TUTELA DA CULTURA: UMA EXPERIÊNCIA COM 20 ANOS, UM DESAFIO PARA A NOSSA ARQUEOLOGIA
27
Outra eventual fonte de confusão, felizmente a dissipar-se, prende-se com a forma de coo-
peração “Arqueólogo cultural – Arqueólogo ambiental”. Ainda está bem enraizada a velha visão
do “arqueólogo” que bate à porta do “especialista” com um saco na mão e uma pergunta na
mente. De facto, essa visão ainda parcialmente verdadeira quando falamos da Arqueometria,
é desajustada quando falamos de Arqueologia ambiental, da Paleobiologia, ou da Arqueolo-
gia espacial. Questionar o registo territorial ou biológico dos sítios envolve muitas das vezes
uma verdadeira cooperação interdisciplinar desde o início do projecto, ou seja na escavação,
ao longo da desmontagem, na própria “remontagem”. Isto porque o arqueólogo arqueoam-
biental contribui com o seu questionar específico, com a sua visão particular de ponto de vista,
com a sua estratégia de leitura complementar, posicionamento esse que tende a envolver uma
perspectiva também ela de natureza integrativa e global. É esta visão ampla que muitas vezes
é entendida como uma intrusão, um intrometimento, uma forma de “concorrência”.
De facto há que reconhecer que devemos evoluir para projectos de valorização de sítios
através da confluência de diversas arqueologias complementares, e que é mau manter a inter-
venção arqueológica como um programa estanque que se cumpre na escavação rápida, rela-
tório pronto, e publicação sumária de perfis e espólio.
Há que aspirar pela publicação do contributo do arqueo-cientista na monografia dos
sítios, como autor do “anexo técnico”, mas também de alguma forma como co-autor de uma
síntese, eventualmente mais abrangente. Há que reciprocamente incentivar o surgimento de
trabalhos extra-sítio, centrados no território, onde os “responsáveis” dos sítios, igualmente par-
ticipem com anexos, e se revejam também na co-autoria das visões do espaço.
Enfim, há que favorecer as redes científicas no seio da arqueologia e combater a crónica
“estanquecidade e exclusividade” do projecto arqueológico. Ser “dono” de um sítio arqueoló-
gico é sinal do amadorismo que ainda nos sufoca a todos. Responsabilidade científica signi-
fica antes do mais fazer partilhar, fazer diversificar as visões, promover articulações e inte-
grações. Enfim, o novo desafio da Arqueologia no Plural.
Uma das prioridades tem sido a de procurar contribuir para colmatar importantes lacu-
nas na formação técnico-científica dos arqueólogos e historiadores em Portugal, limitações que
advêm de uma formação universitária muito deficitária nos domínios das Ciências Naturais
e do Território. Reciprocamente, procura-se contribuir para uma maior consciência histórico-
-patrimonial no âmbito da protecção ambiental e gestão do território.
Esta acção ao nível da divulgação e formação nas áreas da Arqueologia Ambiental,
Arqueobiologia e Arqueologia Espacial, que já hoje se concretiza por cursos intensivos de
verão (Fig. 1-4), aulas e visitas guiadas, séries de conferências (Fig. 1-5), apoio a bolseiros,
está a evoluir para programas de formação avançada, articulados com as Universidades e
Escolas Superiores, e ainda para iniciativas no âmbito da divulgação mais abrangente (cur-
sos de reciclagem, programas abertos de assessoria técnica complementados com edições
de manuais e outras produções de divulgação técnico-científica). Enquadram-se aqui futu-
ras acções de promoção das Ciências Arqueológicas e do Passado junto dos pré-universitá-
rios e universitários.
O prosseguimento de alguns projectos-piloto desenvolvidos pelo próprio IPA, em sítios
arqueológicos de conservação excepcional constitui uma forma de testar, desenvolver, e aper-
feiçoar novas técnicas de estudo, que poderão funcionar como programas de demonstração,
de âmbito estruturante na Nossa Arqueologia.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
28
Cursos de Pós-graduação
Cursos intensivos de formação - Arqueologia
Ambiental, Arqueobiologia e Arqueologia Espacial
AVECASTA 2001:
>
ARQUEOLOGIA AMBIENTAL SOB A TUTELA DA CULTURA: UMA EXPERIÊNCIA COM 20 ANOS, UM DESAFIO PARA A NOSSA ARQUEOLOGIA
29
Conferências do CIPA:
Falar de Boca Cheia
> Uma das preocupações da equipa que integra o programa CIPA tem sido a divulgação junto
da comunidade arqueológica e científica nacional dos trabalhos, temas e novas metodologias no
âmbito das Ciências do Território e Arqueologia Espacial e Ambiental.
A fim de contribuir para um maior diálogo científico, têm sido organizadas mensalmente
conferências sobre variados temas, que têm contado com a apresentação de comunicações de
arqueólogos e investigadores, nacionais e estrangeiros.
Pretende-se a realização de encontros informais, durante a hora do almoço, na última
semana de cada mês, onde o “farnel” partilhado durante cerca de hora e meia, em conversa
sobre um tema científico, convida à participação desinibida da audiência.
Conferências já realizadas:
26-10-2001 O Presente e o Passado. Comunidades Agro-Pastoris do Rif (Marrocos) Marta Moreno e Carlos Pimenta
30-11-2001 Arqueologia em Terras do Fim do Mundo. Patagónia 2001 Ana Cristina Araújo e Sónia Gabriel
17-12-2001 Les Parures au Paléolithique Superior Francesco d’Érrico e Marian Vanhaeren
18-01-2002 Some New Views of the Iberian Slate Plaques Katina Lillios
25-01-2002 Sistemas de Informação e Gestão Arqueológica – Endovélico Divisão do Inventário do IPA
01-03-2002 Arqueologia ao Microscópio Diego Angelucci
05-04-2002 De pedra em pedra – Sílex, pedra de fogo, pedra de talhe Thierry Aubry
03-05-2002 O CNANS a Nu. Achegas a um retrato de família Francisco Alves
28-06-2002 Uma Variante Marítima de Sepultura de Catástrofe. O caso do San Pedro de Alcântara Maria Luísa Blot
31-10-2002 Gruta do Caldeirão. De quem foi a casa, da hiena ou do homem? Simon Davis
28-11-2002 O Estatuto Social da Criança no Paleolítico João Zilhão
30-01-2003 Luminescense Dating in Archaeology. What an Archaeologist Should Know Daniel Richter
27-02-2003 (PEDRA + COLA) x (X + Y) = Operação potencialmente perigosa. Francisco Almeida
Aplicação do Método das Remontagens Líticas a uma Superfície de Ocupação
Gravettense no Abrigo do Lagar Velho
24-04-2003 “Ao pó voltarás…”.Incinerações da Idade do Ferro no Monte da Tera, Pavia Cidália Duarte, Leonor Rocha
e Vanda Pinheiro
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
30
Uma Articulação Aberta e Abrangente com a Comunidade – Fonte de Criatividade,
Intervenção Pública, e Financiamento.
1 1999 Estudo paleobotânico do depósito conservado numa estrutura romana P.F. Queiroz
reaproveitada em período islâmico do núcleo arqueológico da Rua dos
Correeiros, BCP/Lx.
2 1999 Estudo paleobotânico e paleoecológico dos depósitos argilo-turfosos W. van Leeuwaarden,
da estação arqueológica da Praça do Município (sob antiga Patriarcal) P.F. Queiroz, J.E. Mateus,
C.M. Pimenta e J.P. Ruas
3 2000 Análise antracológica de restos carbonizados recolhidos W. van Leeuwaarden,
nas Soengas de Coimbrões P.F. Queiroz e J.P. Ruas
4 2000 Identificação de um conjunto de fragmentos de madeira da carga W. van Leeuwaarden
do navio "Ria de Aveiro A" e P.F. Queiroz
5 2000 Estudo arqueobotânico do sítio da Ponta da Vigia (Torres Vedras) W. van Leeuwaarden
e P.F. Queiroz
6 2000 Identificação de um conjunto de fragmentos de amostras de madeira W. van Leeuwaarden
recolhidas em elementos da estrutura da embarcação do Corpo Santo e P.F. Queiroz
7 2000 Estudos de Arqueobotânica do sítio arqueológico da praia de Silvalde (Espinho) W. van Leeuwaarden
e P.F. Queiroz
8 2000 Estudo arqueobotânico do Castelo de Silves W. van Leeuwaarden,
P.F. Queiroz e J.P. Ruas
9 2000 Estudo arqueobotânico do sítio da Malhada (Fornos de Algodres/Guarda) W. van Leeuwaarden,
P.F. Queiroz e J.P. Ruas
10 2000 Estudos de arqueobotânica no Outeiro dos Castelos de Beijós (Carregal do Sal) W. van Leeuwaarden,
P.F. Queiroz e J.P. Ruas
11 2001 Estudos de arqueobotânica na Alcáçova de Santarém P.F. Queiroz,
W. van Leeuwaarden
e J.P. Ruas
12 2001 Estudos de Arqueobotânica na anta 2 de Santa Margarida/ P.F. Queiroz
Reguengos de Monsaraz
13 2001 Estudos de arqueobotânica no Penedo dos Mouros P.F. Queiroz e J.P. Ruas
14 2001 Animal bones from Alcácer do Sal, 1996 excavations M. Moreno García e S. Davis
15 2001 Animal bones from Convento de São Francisco, Santarém, Silos 2, 3 and 4 M. Moreno García e S. Davis
16 2001 Animal bones from Quadrado M22, Sé de Lisboa M. Moreno García e S. Davis
ARQUEOLOGIA AMBIENTAL SOB A TUTELA DA CULTURA: UMA EXPERIÊNCIA COM 20 ANOS, UM DESAFIO PARA A NOSSA ARQUEOLOGIA
31
(cont.)
o
N. Ano Título Autores
17 2001 Estudos de arqueobotânica no convento de S. Francisco de Santarém P.F. Queiroz
18 2001 O pastoreio e o mel nas serras da Estrela e da Malcata - Bases ecológicas para J.E. Mateus, P.F. Queiroz,
a valorização integrada e sustentada dos recursos da Beira Interior - W. van Leeuwaarden,
Subprograma Mel (projecto PAMAF n.o 8178, relatório final) P.M. Mendes e F. Picasso
19 2001 Análise dos restos humanos do sarcófago tardo-romano de Monte-Novo-à-Rez C. Duarte
(Ourique)
20 2001 Faunal remains from 3 Islamic contexts at Núcleo Arqueológico da Rua M. Moreno García e S. Gabriel
dos Correeiros, Lisbon
21 2001 Estudos de arqueobotânica no sítio neolítico de S. Pedro de Canaferrim, Sintra P.F. Queiroz e J.E. Mateus
22 2001 Ossadas Humanas do convento das Bernardas (Madragoa, Lisboa). C. Duarte, F. Bragança,
(Análise dos restos humanos exumados entre 1996 e 1999) F. Neto e V. Pinheiro
23 2001 Estudos de arqueobotânica no Castelo de Mértola W. van Leeuwaarden
e P.F. Queiroz
24 2001 Análise antracológica II – Soengas de Coimbrões (Vila Nova de Gaia) W. van Leeuwaarden
25 2001 O Mel da Península de Setúbal – ensaio de caracterização polínica P.F. Queiroz, J.E. Mateus,
P.M. Mendes e
W. van Leeuwaarden
26 2001 O Mel das Serras de Aire e Candeeiros – ensaio de caracterização polínica P.F. Queiroz, J.E. Mateus,
P.M. Mendes e
W. van Leeuwaarden
27 2002 Estudos de Arqueobotânica em quatro estações pré-históricas do Parque
Arqueológico do Vale do Côa P.F. Queiroz
e W. van Leeuwaarden
28 2002 Identificação da madeira do cabo da lança do Almonda P.F. Queiroz
29 2002 Geoarqueologia dos sítios pré-históricos de Vale da Porta 2 e Vale da Porta 3 D.E. Angelucci
30 2002 Estudos de Arqueobotânica na Anta 3 de Santa Margarida P.F. Queiroz
(Reguengos de Monsaraz)
31 2002 Estudo dos restos faunísticos da Anta 3 da Herdade de Santa Margarida M. Moreno García
(Reguengos de Monsaraz)
32 2002 Identificação de um conjunto de fragmentos de carvão vegetal recolhidos W. van Leeuwaarden
na necrópole de Vale Feixe, Odemira e P.F. Queiroz
33 2002 Estudos de Arqueobotânica no Concheiro de S. Julião (Mafra) P.F. Queiroz
e W. van Leeuwaarden
34 2002 Identificação de um conjunto de peças de madeira provenientes do estaleiro W. van Leeuwaarden
da Ribeira das Naus na Praça do Município (Lisboa) e P.F. Queiroz
35 2002 Identificação de um conjunto de madeiras provenientes da estrutura dos W. van Leeuwaarden
navios recuperados no rio Arade e P.F. Queiroz
36 2002 Caracterização polínica de um conjunto de 20 amostras de mel da Beira Serra P.F. Queiroz, J.E. Mateus,
e Sicó P.M. Mendes e
W. van Leeuwaarden
o
37 2002 Estudo dos restos faunísticos da Rua 5 de Outubro n. 33 no Crato M. Moreno García
38 2002 Estudos de Arqueobotânica no Poço dos Paços do Concelho (Torres Vedras) P.F. Queiroz, J.E. Mateus,
P.M. Mendes
e W. van Leeuwaarden
39 2003 Anotações geoarqueológicas sobre o sítio de Belas Clube de Campo (Sintra) D.E. Angelucci
40 2003 Geoarqueologia do Castelo da Lousa (Mourão) D.E. Angelucci
41 2003 As estruturas em fossa de Praça Lima e Brito em Arraiolos: observações D.E. Angelucci e V. Aldeias
geoarqueológicas
42 2003 Ensaio de análise polínica dos depósitos silto-arenosos conservados P.F. Queiroz, J.E. Mateus
no aqueduto Romano de Conímbriga, Condeixa-a-Nova e R. Danielsen
43 2003 Estudos de arqueobotânica na quinta romana de Terlamonte, Covilhã P.F. Queiroz,
W. van Leeuwaarden
e J.E. Mateus
44 2003 Identificação de um conjunto de material lenhoso carbonizado proveniente W. van Leeuwaarden
do povoado pré-histórico de Moreiros 2 (Arronches, Monforte) e P.F. Queiroz
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
32
Laboratório
de Geoarqueologia
| A partir da terra: a contribuição
capítulo 2
da Geoarqueologia
❚ DIEGO E. ANGELUCCI ❚
A investigação arqueológica recolhe a maior parte dos seus dados da superfície terrestre
e da subtil película exterior da crusta terrestre, ou seja, dos sedimentos superficiais e do solo.
Qualquer tipo de espólio arqueológico encontra-se assim intimamente ligado com as compo-
nentes físicas da paisagem, como são, por exemplo, o relevo ou a organização estratigráfica dos
depósitos.
É por essa razão tão elementar que as contribuições das Ciências da Terra, como a Pale-
ontologia, a Estratigrafia ou a Geomorfologia, têm sido determinantes em todas as fases do
desenvolvimento da Arqueologia e que qualquer projecto de investigação arqueológica inclui
uma componente geoarqueológica mais ou menos ampla.
Este capítulo pretende apresentar a metodologia geoarqueológica, ilustrar as bases con-
ceptuais e as técnicas essenciais que a governam e elucidar alguns exemplos do papel da
Geoarqueologia no âmbito da Arqueologia. A amplitude e a diversidade do leque de apli-
cações geoarqueológicas impedem-nos de apresentar um panorama completo desta disci-
35
plina e nem sequer este texto pode ou pretende ser um manual exaustivo da prática geoar-
queológica. Assim, limitar-nos-emos a apresentar aqui uma elucidação introdutiva sobre os
fundamentos do raciocínio geoarqueológico e sobre o modus operandi dos geoarqueólogos
e das geoarqueólogas (por brevidade, doravante utilizar-se-á só o género masculino). Da
mesma forma, esta contribuição não expõe os pressupostos teóricos e científicos que estão
na base da Geoarqueologia, nem os procedimentos técnicos de forma pormenorizada, limi-
tando-se principalmente no âmbito da investigação geoarqueológica de campo.
Geoarqueologia: o que é?
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
36
que, antes de ilustrar alguns exemplos práticos da pesquisa geoarqueológica que está a ser
desenvolvida no IPA, será oportuno tentar definir de forma mais pontual a Geoarqueolo-
gia e examinar como opera o geoarqueólogo.
37
CAIXA 2-1
“[Geoarchaeology is] the geoscience tradition within archaeology [and] deals with earth
history within the time frame of human history” (Gladfelter, 1981, p. 343).
“Geoarchaeology implies archaeological research using the methods and concepts of the
earth sciences.” (Butzer, 1982, p. 35).
“Geoarchaeology is the field of study that applies the concepts and methods of the geos-
ciences to archaeological research […]. Geoarchaeology uses techniques and approaches
from geomorphology (the study of landform origin and morphology), sedimentology (the
study of the characteristics and formation of deposits), pedology (the study of soil formation
and morphology), stratigraphy (the study of the sequence and correlation of sediments and
soils), and geochronology (the study of time in a stratigraphic sequence) to investigate and
interpret the sediments, soils, and landforms at archaeological sites.” (Waters, 1992, p. 3-4).
“In perhaps its broadest sense […] geoarchaeology refers to the application of any earth-
science concept, technique, or knowledge base to the study of artifacts and the processes
involved in the creation of the archaeological record” (Rapp e Hill, 1998, p. 1-2).
Contudo, fica patente que uma definição unívoca da Geoarqueologia não existe, pois
a aproximação dos que “fazem Geoarqueologia” pode ser muito diferenciada. Existem por
exemplo geoarqueólogos que utilizam predominantemente as aplicações próprias da
Arqueometria enunciadas por K. Butzer, mencionado acima.
A razão inerente a este facto depende da própria natureza de fronteira e da transdis-
ciplinariedade da Geoarqueologia, assim como dos diferentes percursos que podem levar
uma pessoa a trabalhar neste campo — os curricula dos diversos investigadores que se eti-
quetam como geoarqueólogos são muito variados e com especializações diversificadas.
Será ainda de ter em conta que em muitos países não existe uma formação universitária
específica em Geoarqueologia e os manuais sobre a disciplina são escassos. Assim sendo,
admitindo que os geoarqueólogos não se entendem na definição da ciência que utilizam,
podemos dizer que a Geoarqueologia ainda se encontra numa fase pré-paradigmática, para-
fraseando Thomas Kuhn (1970). Ou, citando uma frase de D. Clarke (1973), podemos dizer
que o objectivo e a finalidade da Geoarqueologia é o conjunto dos objectivos e das finalidades
de todos os geoarqueólogos e de todas as geoarqueólogas.
Em conclusão, será talvez mais simples definir com que, sobre que, por que, para que,
como, quando e onde se faz a Geoarqueologia — ou as Geoarqueologias — do que tentar
dar uma definição unívoca acerca desta disciplina.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
38
CAIXA 2-2
A primeira etapa demarca assim a época inserida num grande âmbito cronológico que ante-
cede a década de ‘80 do século XX. Neste alargado conjunto, abarca-se uma enorme heteroge-
neidade de situações, abordagens e metodologias.
Nos finais do século XIX, os trabalhos realizados consubstanciam o que poderemos deno-
minar como uma fase formativa, pautada, num primeiro estádio, pela emergência dos estudos
pioneiros acerca da Pré-História no nosso país. Estes trabalhos integram-se numa génese
metodológica que é indissociável do próprio evoluir dos estudos geológicos, não só porque, fre-
quentemente, os autores intervenientes acumulam estas duas formações, mas também porque
o arquétipo mental destes primeiros trabalhos assume como primordial objectivo a compro-
vação da antiguidade do Homem. Ora esta questão só poderia ser coerentemente fundamen-
tada se alicerçada em pressupostos científicos através de contextos devidamente integrados em
estratigrafias fiáveis. É, neste encadeamento, que surgem trabalhos percursores como os de
Carlos Ribeiro, os de A. Pereira da Costa, os de Paul Choffat ou os de Joaquim Filipe Nery
Delgado, entre outros.
Ainda nesta ampla fase pré-’80, poderemos também incorporar os basilares trabalhos
desenvolvidos, genericamente a partir de 1940, assistindo-se a um profícuo desenvolvimento
das investigações no âmbito da Geologia, da Geografia e da Geomorfologia com os estudos de
autores como o abade Henry Breuil, Pierre Birot e Georges Zbyszewski. Não sendo nosso objec-
tivo a referência minuciosa a todos os trabalhos e intervenientes relevantes — tema que ultra-
passaria amplamente o âmbito deste texto — será, no entanto, de realçar o modo de trabalho
da escola de Geografia portuguesa que assume como campo de estudo uma óptica global que
aborda áreas relacionadas com o povoamento, com a geografia humana, a sua evolução e a
>>
39
CAIXA 2-2 (cont.)
caracterização física do meio ocupado, questões que não só incorporam, como estruturam a
noção actual de Geoarqueologia. Salientam-se, deste modo, os trabalhos de geógrafos como
Orlando Ribeiro, Mariano Feio, Hermann Lautensach, Carlos Teixeira, ou Fernandes Martins.
Esta é, não obstante a vasta proliferação de trabalhos de enorme interesse científico, uma
fase em que não poderemos ainda falar de Geoarqueologia, enquanto disciplina individualizada.
Existe antes uma útil colaboração, caracterizada pelas iniciativas decorrentes de formações aca-
démicas distintas e singulares.
Em fase subsequente, a partir da década de ‘80 do século passado, difundem-se um pouco
por todo o espaço europeu cursos e manuais numa perspectiva de assimilação, definição e con-
solidação dos conceitos base da Geoarqueologia.
No contexto português, apesar da proliferação dos estudos e dos grupos de trabalho – como,
por exemplo, o G.E.A.P. (Grupo de Estudos Arqueológicos do Porto) ou o G.E.P.P. (Grupo para
o Estudo do Paleolítico Português) — não se assiste a este esforço de formalização, ainda que
datem desta época as primeiras menções exaustivas dos princípios subjacentes à Geoarqueolo-
gia, nomeadamente com a fundação do Laboratório de Paleoecologia e Estratigrafia. Este Labo-
ratório, situado nas instalações do Museu Nacional de Arqueologia, conhece, para além dos sec-
tores de Arqueobotânica e de Arqueozoologia, a inserção de uma área de Geoarqueologia,
orientada por Fernando Real (vide Introdução, neste volume). É, efectivamente, através dos tra-
balhos de F. Real, que se desenvolvem não só estudos específicos baseados na Sedimentologia,
na Estratigrafia e na Petrografia (Real, 1985a, 1985b, 1986a), como coube também a este inves-
tigador a elaboração de textos de inequívoca vertente formativa sobre o que são e o que estudam
as denominadas disciplinas geoarqueológicas (Real, 1984, 1986b, 1987, 1988).
A noção de interdisciplinaridade assume grande relevância, iniciando-se projectos pri-
mordiais como a formação, no seio da Sociedade Geológica de Portugal, de um Grupo de tra-
balho português para o estudo do Quaternário (Carvalho, 1981), bem como a organização de
colóquios, de entre os quais salientamos a mesa-redonda subordinada à temática da “Contri-
buição das Ciências naturais e exactas à Pré-História e à Arqueologia” realizada no Porto. Este
debate permite, em larga medida, compreender o mosaico de conhecimentos estruturado à
época, nomeadamente com o desenvolvimento da aplicação de métodos tais como a Arqueo-
metria, a Petrografia, a Pedologia, a Sedimentologia, ou a aplicação de datações absolutas na
arqueologia (vide Arqueologia n.o 4, passim).
As colaborações pluridisciplinares desenvolvem-se ainda em grande consonância com os
trabalhos aglutinadores desenvolvidos pela Geografia, manifestando-se diversos exemplos de
cooperações com arqueólogos (recenseados em Daveau, 1981), numa dinâmica de reciprocidade
científica perante a interacção de informações, conceitos e métodos. A valorização científica des-
tas conjugações e a relevância das aproximações pluridisciplinares são avançadas por diversos
autores, dos quais realçamos, pela inequívoca relevância do seu trabalho, Suzanne Daveau, a
quem coube a elaboração de diversos textos acerca desta problemática, bem como a realização
de trabalhos de interacção entre o universo arqueológico e o âmbito geográfico (Daveau, 1980,
1981, 1993-1994; Daveau e Gonçalves, 1985).
Numa 3.a fase, delimitada a partir do devir dos anos ‘90, assiste-se a uma proliferação dos
estudos arqueológicos no contexto nacional, designadamente com o desenvolvimento de pro-
jectos de intervenção que acentuam e apostam mais numa integração dos contextos arqueoló-
gicos no seu enquadramento físico. Inicia-se, assim, uma progressiva adopção dos critérios nor-
teadores da Geoarqueologia enquanto ciência independente, assente em pressupostos discipli-
nares e metodológicos concretos, como de resto é salientado por J. L. Cardoso (Cardoso, 1996),
enumerando os diversos trabalhos e áreas de estudo desenvolvidas no contexto português.
A união de esforços e de informações, nomeadamente em termos de conhecimentos acerca
da evolução quaternária de determinada região, conduziu à inserção de enquadramentos geo-
lógicos e geográficos que abordam temas como o escalonamento de terraços, a sua evolução em
termos das principais fases pedogenéticas, das variações climáticas ou dos processos morfo-
dinâmicos ocorridos. É, neste sentido, que se destaca a presença de geoarqueólogos estrangeiros >
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
40
CAIXA 2-2 (cont.)
Conceitos Básicos
41
considerar uma série de “palavras de ordem” que não podem ser esquecidas, de modo a não
originar informações incompletas ou erróneas.
Uma das bases conceptuais de qualquer geoarqueólogo reside na convicção que as dinâ-
micas culturais podem ser reconstituídas, ou seja, que as comunidades humanas actuaram e
actuam através de processos que são legíveis e interpretáveis com conceitos “geo”. Por outras
palavras, que os humanos deixam, do ponto de vista dos processos e das dinâmicas com que
agem, “assinaturas” que, oportunamente lidas, permitam realizar uma reconstituição com-
portamental e cultural das comunidades humanas do passado.
A capacidade de reconstituir processos reside, praticamente, no reconhecimento da vali-
dade do método científico e do actualismo. Não vamos aqui entrar no complicado tema da defi-
nição de ciência, sobre o qual existem excelentes textos portugueses e estrangeiros (ex. Pop-
per, 1972; Kuhn, 1970; Chalmers, 1982; Santos, 1995). Será somente de realçar que no trabalho
geoarqueológico, assim como nas Geociências em geral, uma das bases conceptuais é o actua-
lismo, conceito já formulado por James Hutton em 1788 e que podemos resumir de forma
substancial na asserção de que os processos que controlam as modificações do planeta têm sido
sensivelmente os mesmos no decurso do tempo, ou, pelo menos, que têm actuado com moda-
lidades e resultados iguais (ou, como J. Hutton referiu: “The present is the key to the past”). Esta
asserção constitui uma das bases das ciências naturais e foi sucessivamente incluída no
âmbito de teorias mais abrangentes, como o methodologic uniformitarianism de J. Gould (1965).
Para o trabalho geoarqueológico, a aceitação de apetrechos teóricos como o methodologic uni-
formitarianism, associado com os métodos científicos indutivo e dedutivo, permite aceitar o pres-
suposto que o geoarqueólogo pode correlacionar eventos não coevos. Ou seja, os processos e os
agentes que hoje dão origem a um determinado produto são equiparáveis com os que deram ori-
gem a um produto igual no passado. Sem esta base teórica resulta difícil fazer Geoarqueologia.
Outro ponto diz respeito aos sistemas (sub-sistema natural e sub-sistema antrópico) que
o geoarqueólogo analisa, que estão governados por dinâmicas complexas, e que interagem de
forma complexa. É assim fundamental manter uma perspectiva ambiental e contextual, enten-
dendo como contexto “[the] four-dimensional spatial-temporal matrix that comprises both a cultural
and a non-cultural environment and that can be applied to a single artifact or to a constellation of
sites.” (Butzer, 1982, p. 4). Dito de maneira exemplificativa, não é possível compreender a ori-
gem do sedimento arqueológico de determinado sítio sem ter conhecimento da sua situação
ambiental e climatérica ou da morfodinâmica regional, numa perspectiva diacrónica. É assim
importante cruzar informações de origens diversas e exercer um feedback contínuo durante
a recolha e a elaboração dos dados.
É esta a razão pela qual a investigação geoarqueológica actua em diferentes escalas ao
mesmo tempo. Podemos subdividir a escala da acção do trabalho geoarqueológico da seguinte
forma (subdivisões mais pormenorizadas podem ser propostas à semelhança da ecologia —
vide Mateus et al., neste volume):
• macroescala, com ordem de grandeza superior ao quilómetro — análise do contexto de
um ou mais sítios na escala regional e análise do território, como pode ser aplicado, por
exemplo, no estudo dos padrões de povoamento e de subsistência em determinada
região, na análise das modificações do ambiente no decurso do tempo, etc.;
• mesoescala, com ordem de grandeza entre a dezena de metros e o quilómetro — estudo
do contexto de um sítio à escala local, por exemplo, sua posição topográfica, sua locali-
zação geomorfológica, etc.:
• microescala, até à ordem de grandeza da dezena de metros — estudo do sítio e dos seus
componentes considerados no terreno e no laboratório, como pode ser a análise da orga-
nização espacial intra-sítio, da estratigrafia, até chegar a escalas ultramicroscópicas,
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
42
como por exemplo o recurso à observação micromorfológica de lâminas finas prepara-
das a partir de porções de solos, camadas ou estruturas arqueológicas (vide Capítulo 3).
A Investigação Geoarqueológica
A Geoarqueologia pode mudar os seus focos de acordo com os projectos e com as ques-
tões específicas equacionadas. De forma simplificada, podemos agrupar os seus objectivos
principais da seguinte maneira:
• cronologia e estratigrafia, estudos cuja finalidade é reconstituir sucessões estratigráficas
ao nível do sítio, do local ou da região, localizar no tempo acontecimentos, estabelecer
sequências cronológicas, etc.;
• estudos paleoambientais, abordagens que visam à reconstituição do ambiente físico, das
suas modificações no tempo e das relações com as oscilações climatéricas a nível glo-
bal ou regional;
• inter-relações entre humanos e ambiente, com o intuito de estabelecer o sistema de ocu-
pação e compreender as relações entre povoamento e ambiente físico, assim como a uti-
lização dos recursos naturais ou os efeitos do impacte antrópico sobre o território;
• formação do registo arqueológico, estudos que se centram nos processos de formação dos
sítios arqueológicos e dos seus componentes, nas interferências entre processos antró-
picos e não antrópicos, nas modificações sin- e pós-deposicionais dos elementos arqueo-
lógicos, na conservação dos artefactos, etc.
43
São diversas as questões arqueológicas para as quais a Geoarqueologia pode encontrar
soluções e respostas (uma lista exemplificativa encontra-se na Caixa 2-3), utilizando fontes de
informação da geoesfera e técnicas mutuadas das Ciências da Terra (Quadro 2-1).
CAIXA 2-3
QUADRO 2-1
Fontes Disciplinas Técnicas
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44
– Localização dos sítios espanhóis e italianos mencionados nos Capítulos 2 e 3 (para os sítios portugueses vide Fig. 2-28).
FIG. 2-1
1 - Atapuerca; 2 - la Cansaladeta; 3 - la Cativera; 4 - Calvatone / Bedriacum; 5 - Lugo di Grezzana; 6 - Riparo Gaban; 7 - Val Las-
tari; 8 - Riparo Dalmeri; 9 - Plan de Frea.
45
CAIXA 2-4
A Geomorfologia
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
46
Como já se disse, o funcionamento dos sistemas naturais é complexo, razão pela qual não
é possível compreender os processos de formação duma estratificação arqueológica e a evo-
lução de um sítio sem ter uma abordagem, ainda que preliminar, às dinâmicas que actuam
na paisagem e que actuaram no passado. Um caso ilustrativo é o do Castelo da Lousa (Mou-
rão — vide Caixa 2-5), onde a análise geoarqueológica permitiu esclarecer aspectos relaciona-
dos com as dinâmicas naturais do Vale do Guadiana e, através do estudo morfodinâmico, com-
preender a natureza da evidência estratigráfica detectada no sítio.
CAIXA 2-5
QUADRO 2-2
cota perfil cor espessura outros sítios relacionados mapa
do solo horizonte B do solum
T1 5m A-C 10 YR 5-10 cm Q4b
T2 10-15 m A-Bw 7.5 YR 30 cm Barca do Xerez de Baixo Q4a
T3 20-25 m Bt-BC >60 cm Sapateiros Q3?
T4 40-45 m Q2?
T5 60-80 m Bt-Ck 2.5 YR >200 cm Q1?
Terraços aluviais do Guadiana na região de Mourão. Legenda: cota - cota aproximada do topo do terraço sobre o nível
actual do rio, em metros; perfil solo - articulação em horizontes dos perfis de solo observados no terraço; cor do
horizonte B - chroma (Munsell Soil Color Chart); mapa - correspondência com as unidades indicadas na folha 41-A da
Carta Geológica de Portugal (Perdigão, 1971).
ras arquitectónicas romanas já anteriormente destru- dos terraços como no Quadro 2-2).
47
CAIXA 2-5 (cont.)
ídas e situadas a cerca de 20 metros acima do leito médio (Plataforma Norte Inferior - Gonçalves
e Carvalho, 2002), indicando que o rio terá atingido estas posições em fases pós-romanas.
De facto, as estruturas habitacionais do Castelo da Lousa assentam sobre diversas mor-
fologias (Fig. 2-5 e 2-6):
• um terraço fluvial com altura máxima de cerca de 13-15 m acima do nível médio do rio
(T2 no Quadro 2-2), formado por sedimentos que podem ser correlacionados com o conjunto
estratigráfico de Barca do Xerez de Baixo, datado do Holocénico antigo (Almeida et al.,
1999; Araújo e Almeida, 2003);
• a superfície de erosão associada a este terraço (parte da plataforma N);
• uma plataforma constituída pelo topo do esporão rochoso em xisto, onde assenta o edifício
principal;
• a encosta virada para N (ou seja, para o Guadiana), onde se reconhece a cicatriz de um des-
lizamento de vertente de tamanho significativo (Fig. 2-6).
Em posição externa à área ocupada pelo sítio distinguem-se também:
• um terraço de origem mista fluvial - coluvial (T1 no Quadro 2-2), na parte baixa da encosta
esquerda do rio, que atinge a cota de 5 m acima do seu leito médio;
• as vertentes delimitadas por duas ribeiras laterais (Barranco de Galmeirões e Barranco do
Castelo), muito encaixadas;
• uma plataforma de abrasão fluvial em rocha, colocada a 1-2 m acima do rio.
FIG. 2-6 – Esboço geomorfológico da região à volta do Castelo da Lousa. Legenda: 1 - descontinuidades litológicas
do xisto; 2 - rebordo das incisões dos Barrancos do Castelo e dos Galmeirões; 3 - cicatriz de deslizamento;
4 - superfície de abrasão; 5 - unidade morfológica T1; 6 - unidade morfológica T2; 7 - extensão aproximada do sítio
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
48
CAIXA 2-5 (cont.)
erosão estejam relacionadas com oscilações climáticas (em particular com uma mudança no
regime da pluviosidade) ou com a actividade antrópica (ex. desflorestação), nem lhes atribuir
uma cronologia certa. Os resultados da datação OSL (Optically-Stimulated Luminescence) das
amostras recolhidas por Daniel Richter, em análise no Instituto Tecnológico e Nuclear,
poderão talvez aclarar parcialmente estas questões.
Resumindo brevemente os resultados do estudo geoarqueológico, deduz-se que, na
altura da primeira ocupação do sítio, os antigos habitantes escolheram as posições menos
vulneráveis do ponto de vista geomorfológico, ou seja, o terraço aluvial T2 e a plataforma a
montante deste. Estas escolhas não puderam, porém, evitar que as vertentes circundantes
se degradassem rapidamente e que as estruturas habitacionais fossem atingidas pelas
enchentes do rio. As actividades de erosão e sedimentação do Guadiana foram provavelmente
responsáveis pelo deslizamento em massa da encosta N do sítio, que afectou parte das estru-
turas antrópicas, removendo um volume considerável de material. Ao mesmo tempo, o pro-
cesso de embutimento das ribeiras laterais desestabilizou os sectores periféricos do edifício
principal, determinando fenómenos de destabilização de porções da rocha (toppling) e outras
deformações.
Contudo, não parece ter sido uma cheia catastrófica ou outra causa natural a razão do aban-
dono do Castelo da Lousa, embora seja muito provável que a instabilidade do esporão rochoso
(onde se insere o edifício principal) e das encostas adjacentes se fizesse sentir de forma mar-
cada já durante a ocupação do sítio, resultando em sérios problemas de estabilidade das estru-
turas, e podendo ser assim uma provável causa concomitante para o abandono do povoado.
CAIXA 2-6
O sítio do Prazo (Freixo de Numão, Vila Nova de Foz Côa), já conhecido pelo seu espó-
lio de idade romana e medieval, regista também ocupações mesolíticas e neolíticas que
foram objecto de escavações arqueológicas e publicações preliminares por Sérgio Monteiro-
-Rodrigues (2000, 2002) e que serão objecto de uma tese em preparação por este autor.
No âmbito das colaborações PNTA / Arqueologia Ambiental, foi realizado um estudo geo-
arqueológico com vista a contextualizar o sítio do ponto de vista geomorfológico e analisar
a sua estratigrafia (este último tema será brevemente objecto de um artigo em redacção pelo
autor e S. Monteiro-Rodrigues). No que diz respeito à geomorfologia, foi efectuado um
reconhecimento de campo preliminar, apoiado na leitura e interpretação de fotografias
aéreas em estereoscopia, do qual se adiantam alguns resultados provisórios.
O sítio do Prazo integra-se, do ponto de vista geológico, no Maciço de Numão, um
pequeno corpo intrusivo composto por granito de textura porfiróide, de grão médio a gros-
seiro e de duas micas (Ribeiro, 2001). O maciço granítico é atravessado por filões de quartzo,
de pegmatito e de aplito com orientação grosso modo paralela, influenciada pelos alinha-
>>
49
CAIXA 2-6 (cont.)
mentos tectónicos regionais. Em geral, as rochas da região estão afectadas por um sistema
de fracturas e falhas cuja origem remonta a fases tardias da orogénese Varisca: a família prin-
cipal deste sistema possui orientação NNE-SSW, enquanto que outros conjuntos se orien-
tam WSW-ENE e WNW-ESSE (Cabral, 1995). Estes acidentes tectónicos influenciam a dis-
tribuição da rede hidrográfica, a configuração do relevo e o arranjo das coberturas sedi-
mentares.
Geomorfologicamente, a região de Freixo de Numão faz parte da unidade morfoestru-
tural dos “planaltos centrais” (Ferreira, 1978), separada do extenso planalto da Meseta pelo
acidente tectónico Vilariça - Longroiva (Cabral, 1995; Ribeiro, 2001). Na área envolvente do
Prazo, é bem reconhecível uma extensa superfície correspondente à “superfície inferior,
níveis mais altos” de A. Brum Ferreira (1978), cuja continuidade é interrompida por dois ele-
mentos morfológicos principais (Fig. 2-7):
• os relevos residuais relacionados com o aflorar
de litologias mais resistentes, como os altos de
S. Eufémia e da Quinta dos Bons Ares, ambos
assentes sobre filões de quartzo. Os cumes des-
tes relevos configuram uma superfície planál-
tica já quase completamente desmantelada
(“superfície fundamental dos níveis dos pla-
naltos centrais”, segundo Ferreira, 1978)
• um sistema hidrográfico encaixado, formado
por vales incisos e com vertentes geralmente
escarpadas que atingem desníveis de algumas
centenas de metros. Esta rede hidrográfica está
controlada pelo nível do Rio Douro, o elemento
hidrográfico de maior importância da região.
Em redor do sítio, a superfície do planalto
encontra-se bem individualizada, apresentando, a
W e a E do sítio, inclinações opostas: do lado W
evidencia inclinação para W e do lado E para E,
em direcção a um sector rebaixado, provavel-
mente relacionado com a actividade erosiva da
Ribeira dos Amieiros. Estas variações na inclina-
ção da superfície podem dever-se ao rejogo neo-
tectónico das falhas do Vale de S. João e do Alto
de S. Eufémia (falha de Murça). FIG. 2-7 – Esboço geomorfológico dos arredores do
Para N, o planalto é recortado pelo sistema de sítio do Prazo.
vales encaixados, cuja actividade de embutimento
deu origem a uma clara ruptura de pendente. Nos vales, a morfogénese é controlada prin-
cipalmente pela actividade aluvial. O principal elemento hidrográfico nas imediações do
Prazo é a Ribeira de S. João (tributário esquerdo da Ribeira de Murça), que corre com eixo
NNE-SSW, cujo traçado é condicionado pela falha de Murça. As encostas do vale são íngre-
mes e interrompidas por rechãs e patamares implantados a várias altitudes e posições ao
longo da vertente.
O próprio sítio arqueológico assenta numa superfície fracamente inclinada para NNE,
na esquerda hidrográfica do vale, que foi designada como unidade morfológica (UM) do
Prazo. Esta superfície desenvolve-se a partir do sopé do Alto de S. Eufémia e apresenta uma
inclinação discordante à superfície do planalto e à encosta do vale. Este facto sugere que a
génese da UM Prazo não esteja relacionada com os processos de aplanamento dos planal-
tos centrais, nem com a erosão que deu origem ao vale, mas com uma fase inicial de aber-
tura do Vale de S. João, representando talvez uma antiga cabeceira do vale, anterior às fases
de erosão que determinaram o profundo embutimento do vale, sendo, no entanto, poste- >
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
50
CAIXA 2-6 (cont.)
Outra questão que diz respeito à abordagem geomorfológica a sítios e sistemas de povoa-
mento centra-se nas modificações da paisagem no decurso do tempo.
As dinâmicas naturais e o impacte antrópico mudam a paisagem e o ambiente, não só
nas suas vertentes vegetacional e faunística e nas características do modelado e do solo (no
“soilscape”, ou seja na distribuição dos solos em determinada região), mas também na sua
organização geográfica. Estas modificações podem ser tão marcadas ao ponto de conduzi-
rem a uma configuração muito diferente da existente no momento da ocupação do sítio e
não correspondente, no caso de lugares históricos descritos em fontes documentais, com
as informações que nos chegaram dos autores antigos. É este o caso do vicus de Bedriacum
(Caixa 2-7).
A tipologia dos trabalhos geoarqueológicos à escala territorial é muito diversificada e pode-
mos mencionar, como outros exemplos, os seguintes:
• a reconstituição do território de grupos de caçadores-recolectores mesolíticos nos
Pré-Alpes italianos (Angelucci et al., 1999)
• o estudo geomorfológico preliminar do Vale do Lapedo (Angelucci, 2002c).
51
CAIXA 2-7
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
52
CAIXA 2-7 (cont.)
53
CAIXA 2-7 (cont.)
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
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CAIXA 2-8
A Estratigrafia
A Estratigrafia é o ramo da Geologia que
trata do estudo e da interpretação dos mate-
riais estratificados, da sua identificação, des-
crição, organização, cartografia e correlação.
É esta uma das mais antigas Geociências,
datando do século XVII os primeiros estudos
de rochas estratificadas e as primeiras defini-
ções dos princípios estratigráficos (vide ex.
Vera Torres, 1994).
A Estratigrafia articula-se em vários
ramos, dependendo do critério empregue para
o estudo e a classificação dos materiais estra-
tificados. Por exemplo, a litoestratigrafia é o
sector que analisa os sedimentos a partir das
suas características litológicas; a bioestrati-
grafia considera o conteúdo paleontológico
dos materiais estratificados; a magnetoestra-
tigrafia classifica os corpos sedimentares a
partir da sua magnetização. A estratigrafia
arqueológica pode ser considerada, clara- FIG. 2-12 – Todos os materiais que se acumulam
mente, um dos ramos da Estratigrafia, sendo sobre a superfície topográfica ou que ficam
o que analisa os sedimentos a partir do seu expostos em posição próxima da superfície
possuem uma organização interna e
conteúdo arqueológico.
hierarquizada. A imagem mostra um corte
É útil lembrar, finalmente, que as normas no montículo derivado da crivagem, no sítio
de nomenclatura e de classificação estratigrá- pré-histórico de Ra’s al Jins 2 (Sultanato de Omã),
fica estão codificadas e definidas a nível inter- que teve que ser removido três anos após a sua
acumulação para estender a área explorada.
nacional (Salvador, 1994).
O material do montículo apresenta uma clara
organização em estratos de espessura, composição
e forma diferenciadas. Aliás, no interior dalgumas
das camadas, depara-se com a presença de
estruturas sedimentares. Finalmente, no topo
do depósito, desenvolveu-se um subtil perfil
de alteração por efeito da deflação eólica, da
precipitação química de sais e doutros processos
físico-químicos e biológicos.
55
Uma exposição de conceitos e de casos de estudo relativos aos depósitos arqueológicos
dificilmente poderá seguir uma articulação linear, devido à natureza mista destes depósitos:
Por esta razão, nas próximas páginas, as noções da Sedimentologia, da Pedologia e da Estra-
tigrafia alternar-se-ão e combinar-se-ão de forma conjunta.
1. Superfície não estável. A superfície está, neste caso, sujeita a processos sedimentares,
que podem ser ou de acumulação ou de erosão. No primeiro caso, acumulam-se
acima da superfície materiais de natureza variável (naturais ou antrópicos, orgânicos
ou inorgânicos) que dão origem a um registo físico interpretável através dos critérios
da sedimentologia. Por outro lado, caso a superfície esteja sujeita a processos naturais
ou antrópicos de remoção do material preexistente, o único registo restante consiste
numa superfície de erosão, também analisável através de conceitos sedimentológicos.
Existe ainda uma terceira possibilidade, que é o caso do transporte acima da superfí-
cie, que não vamos considerar neste esquema por motivo de simplificar o assunto.
2. Superfície estável. A superfície não está sujeita a processos de acumulação nem de
remoção de sedimento, pelo que a sua interface superior localiza-se essencialmente na
mesma posição no decurso do tempo — ou seja, nem “sobe” por efeito da acumulação
sedimentar, nem “desce” pela erosão. Este caso conhece, normalmente, a instalação,
acima da superfície, de uma cobertura vegetal (condição indicada pelos ecólogos com
a palavra de biostasia, antónima de rexistasia) e o início de fenómenos derivados da
acção conjunta de processos biológicos e físico-químicos, estes últimos geralmente vei-
culados pela água que circula no terreno. Os materiais existentes no local são então
sujeitos a uma interacção complexa entre elementos da litosfera (as rochas e os sedi-
mentos preexistentes), da atmosfera (o ar presente no terreno), da hidrosfera (a água
que se infiltra e circula no depósito), da biosfera (animais e vegetais) e da acção antró-
pica, dando origem a uma profunda reorganização dos materiais que se encontram em
posição próxima da superfície topográfica. Falamos, neste caso, de pedogénese, cujo
resultado será o desenvolvimento de uma subtil película ou zona de interface, de espes-
sura entre as dezenas de centímetros e os poucos metros, designada tecnicamente como
Solo — objecto de estudo da pedologia.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
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CAIXA 2-9
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CAIXA 2-9 (cont.)
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CAIXA 2-9 (cont.)
Sublinhamos que os processos de formação do solo não actuam segundo critérios sedi-
mentares, mas determinam uma modificação in situ que não respeita os critérios da estrati-
grafia arqueológica tradicional (ex. Barker, 1977; Harris, 1979). Se estas entidades pedológi-
cas não forem reconhecidas, a interpretação estratigráfica do sítio, do seu registo e da sua
sequência poderá ser errónea.
A condição resumidamente descrita é muito mais frequente do que se possa imaginar:
os lugares ocupados pelos grupos humanos são estáveis e, na maioria dos casos, ficam expos-
tos em condições de equilíbrio durante intervalos cronológicos mais ou menos longos, pelo
que estão sujeitos a processos não só sedimentares, mas também pedogenéticos. Desta forma,
a presença de solos nas estratificações arqueológicas é vulgar e muitos dos que são usualmente
considerados sedimentos antrópicos são, de facto, paleossolos, ou seja, solos formados em con-
dições diferentes das actuais.
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CAIXA 2-10
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CAIXA 2-11
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CAIXA 2-11 (cont.)
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CAIXA 2-12
– Bioturbação: a
FIG. 2-18 FIG. 2-19 – Crioturbação: solo FIG. 2-20 – Graviturbação FIG. 2-21 – Acção combinada
superfície da camada com estrutura prismática de (efeito da parede): de deformação por gravidade
arqueológica do sítio de grande tamanho devida à deformação e deslocação, e de bioturbação causaram a
Casal de Azemel - acção do gelo permanente junto à parede do abrigo, concentração residual e a
Batalha é atravessada por no loess do Plistocénico de uma lareira no sítio deslocação dos artefactos
canais de raízes de superior da Zonien Forest mesolítico de Plan de Frea líticos no sítio de Vale da
pinheiro. (Bélgica). II (Dolomites, Itália). Porta 2 (Cantanhede).
Processos antrópicos
São materialmente inúmeros e complexos: pisoteio, compactação, desflorestação, cultivo, etc.
63
CAIXA 2-13
Val Lastari localiza-se nos Pré-Alpes do Veneto, nomeadamente no Planalto dos Sette
Comuni, a cerca de 1060 m de altitude. O sítio encontra-se na margem de um vale com
fundo aplanado, entre uma parede calcária e uma depressão cársica. As escavações realiza-
das entre 1990 e 1996 permitiram recolher diversas centenas de milhares de peças líticas e
pôr à luz do dia estruturas arqueológica do Paleolítico superior final (Broglio et al., 1993).
A estratigrafia articula-se em quatro unidades principais (Angelucci e Peresani, 1995,
2000, no prelo - Fig. 2-22):
• unidade 1 e 2: solo superficial, com peças líticas remexidas;
• unidade 3: unidade de textura principalmente siltosa, derivada da acumulação de sedi-
mentos de tipo loess, contendo espólio arqueológico epigravettense na sua parte superior
• unidade 4: cascalheira formada por elementos calcários angulares em matriz siltosa, sem
espólio arqueológico.
FIG. 2-22– Val Lastari: corte transversal à parede. 1 - solo actual (unidades 1 e 2); 2 - sucessão arqueológica (unidades 3A a
3F); 3 - sucessão franco-siltosa sem espólio arqueológico (unidade 3Z); 4 e 5 - camadas cascalhentas alternadas com
camadas siltosas; 6 - artefactos líticos e estruturas antrópicas (modificado a partir de Angelucci e Peresani, 2000).
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
64
CAIXA 2-13 (cont.)
As análises evidenciam uma textura principalmente siltosa em toda a sucessão do sítio, fri-
sando a sua origem eólica. Os processos de pedogénese subsequentes à sedimentação do depó-
sito, levaram primeiro à sua decarbonatação (em nenhum horizonte foi detectada presença de
carbonato de cálcio) com subsequente redução do pH e instalação de processos de acidificação,
que levaram ao desaparecimento dos restos faunísticos eventualmente presentes no depósito.
Os valores elevados do pH, moderadamente alcalino e alcalino, estão relacionados com a uti-
lização recente do solo (vide Angelucci, 2000). A distribuição dos valores do Carbono orgânico
na sucessão tem uma distribuição anómala, pelo incremento que se regista na posição estrati-
gráfica correspondente à paleosuperfície epigravettense.
A análise da distribuição vertical dos artefactos (Fig. 2-23, quadrados de cor negra) eviden-
cia uma redução relativa do número de peças a partir do limite superior da unidade 3. Em par-
ticular, os artefactos líticos concentram-se nos 10 cm superiores da unidade e, com a profun-
didade, a sua quantidade vai decrescendo até desaparecerem. As pedras de origem natural (qua-
drados de cor branca na Fig. 2-23) patenteiam distribuição análoga. Diferente é a situação se
considerarmos o peso médio das peças: o gráfico ponderal é similar ao gráfico de frequência
na parte superior da sucessão, mas na zona correspondente à paleosuperfície antrópica observa-
-se uma anomalia significativa, com concentração de artefactos (e pedras) de peso e de tama-
nho superior à média. De facto, o gráfico da distribuição ponderal é bimodal, diferentemente
do gráfico de frequência, que é unimodal, embora fortemente assimétrico.
Considerando a distribuição vertical dos artefactos, nota-se uma moderada selecção em cate-
gorias: núcleos e pré-núcleo são predominantes na paleosuperfície epigravettense e são escas-
sos no resto da unidade, onde prevalecem lascas e lâminas. Uma ligeira iso-orientação das peças
foi observada na parte superior da unidade 3, caracterizada pela presença de estrutura laminar.
Na parte restante da unidade as peças possuem orientações aleatórias.
Estas observações (pormenores em Angelucci, 1997a; Angelucci e Peresani, 2000), junta-
mente com os resultados das análises de laboratório, sugerem que a distribuição dos artefac-
tos na sucessão de Val Lastari deriva da interacção complexa de diferentes processos.
As primeiras ocupações epigravettenses do sítio assentaram sobre a paleosuperfície exis-
tente à base da unidade 3, que foi sucessivamente enterrada pela sedimentação do sedimento
tipo loess (loess-like sediment). As ocupações antrópicas sucederam-se muito provavelmente
durante a sedimentação do loess ou nos intervalos entre as diferentes fases sedimentares, assim
como após a deposição, em posição próxima à superfície topográfica actual. Sucessivamente,
toda a espessura da unidade 3 foi sujeita à acção conjunta de processos pós-deposicionais: em
particular à bioturbação, responsável pela homogeneização do sedimento, como sugerido tam-
bém pelos resultados analíticos; à crioturbação, que determinou o padrão de iso-orientação na
parte superior da unidade; aos processos de deformação, relacionados com fenómenos de dis-
solução cársica da parede e da dolina próxima do sítio. Estes processos não foram porém sufi-
cientes para “apagar” completamente a evidência da paleosuperfície epigravettense, que ficou
registada na concentração residual dos artefactos de maior tamanho e maior peso, nas carac-
terísticas micromorfológicas observadas (Angelucci e Peresani, 2000) e no registo químico, em
particular no teor mais elevado de matéria orgânica.
– Val Lastari: dispersão vertical dos artefactos (negro) e das pedras (branco) por frequência (em cima) e
FIG. 2-23
>>
65
CAIXA 2-13 (cont.)
De facto, a situação desta jazida, localizada ao ar livre, a altitude relativamente elevada e num
sedimento pouco espesso, representa um caso extremo de actuação de diferentes processos pós-
-deposicionais que provocam uma diminuição da qualidade e quantidade das informações
arqueológicas disponíveis. Embora seja possível reconstituir o tipo de processos que actuaram
no sítio, não é possível discriminar se agiram sincrónica ou diacronicamente, nem determinar
quantas foram exactamente as fases de ocupação do sítio
Além disso, as técnicas da pedologia aplicada (por exemplo, a land evaluation da FAO)
permitem avaliar parâmetros acerca do uso do solo no passado (para fins paleodemográficos, paleo-
económicos, tecnológicos, etc.), do impacte antrópico e dos processos culturais a longo prazo
(vide também Capítulo 3).
Apesar das considerações feitas sobre o papel que a pedogénese assume na formação do
registo arqueológico, não se pode negar que a definição de critérios estratigráficos e a forma-
lização da técnica de escavação representaram desenvolvimentos de grande importância para
a Arqueologia (vide ex. Barker, 1977; Harris, 1979; Carandini, 1991). Não é preciso voltar a ilus-
trar as vantagens da técnica estratigráfica, já discutida na bibliografia e que, na opinião do
autor, representa a única forma de explorar um sítio ou parte dele e de garantir a correcta recu-
peração do espólio arqueológico, assim como o reconhecimento da sequência cronológica.
Existem, porém, contextos arqueológicos onde a aplicação do método estratigráfico “stan-
dard” é difícil ou talvez mesmo impossível, nomeadamente os casos — já discutidos — em que
a sucessão esteja formada por uma única camada mais ou menos espessa de características
homogéneas ou onde prevalece uma acção intensa de processos pedogenéticos e de outros
tipos de processos sin- ou pós-deposicionais.
É então preciso ampliar os critérios que utilizamos na exploração dos sítios arqueológi-
cos e na definição das entidades que empregamos para subdividir as estratificações arqueo-
lógicas, não sendo os critérios meramente estratigráficos suficientes para decifrar todo o
leque de casos que se encontram incorporados nos depósitos arqueológicos.
A questão reside essencialmente na possibilidade de formular regras que nos permitam
definir entidades individualizadas para ser empregues como contextos de recolha do espólio
arqueológico, para a reconstituição de sucessões, para a criação de sequências e como ele-
mentos para a análise espacial. Em arqueologia, utilizam-se entidades diferenciadas (unida-
des estratigráficas, conjuntos de achados, níveis artificiais, etc.), que nem sempre correspon-
dem à efectiva organização estratigráfica do sítio.
A experiência de trabalho com equipas de vários países, em diversos contextos geográfi-
cos e em sítios de variadas cronologias — do Paleolítico antigo ao pós-medieval — levou-nos
a propor uma definição de unidade de campo geoarqueológica que se tem revelado uma boa
ferramenta operacional para a escavação e para a análise sucessiva dos dados. Não devemos
esquecer que a recolha de dados no campo é um dos principais momentos da investigação
arqueológica e não representa apenas a contextualização das amostragens para eventuais aná-
lises de laboratório, mas constitui também o background necessário para interpretar o espólio
arqueológico.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
66
Foi assim criada uma entidade, a “unidade geoarqueológica de campo” (GFU, geoar-
chaeological field unit), que é o elemento mínimo individual para a recolha de informações no
campo.
A GFU define-se como um: “Corpo tridimensional separado do material adjacente por
descontinuidades de qualquer tipo, ou, quando os seus limites não estejam patentes ou cla-
ros, diferente do material adjacente ou, alternativamente, diferenciado arbitrariamente por cri-
térios topográficos ou arqueológicos”.
Desta forma, uma GFU pode ser um corpo tridimensional:
1. composto por material sedimentar (ou materiais sedimentares, se organizados
segundo um padrão reconhecível), natural ou cultural, diferente dos adjacentes; neste
caso, o conceito de GFU corresponde com o conceito de unidade estratigráfica (ou
camada arqueológica, contexto arqueológico) geralmente utilizado na arqueologia
estratigráfica europeia (vide ex. Barker, 1977; Harris, 1979);
2. composto por uma matriz pedogenética diferente das adjacentes; neste caso a GFU
coincide com um horizonte de solo;
3. que contém componentes, naturais ou culturais, que estão ausentes ou que são dife-
rentes dos contidos no material adjacente; neste caso o conceito de GFU pode parcial-
mente corresponder ao de unidade estratigráfica ou de conjunto de achados;
4. delimitado por uma descontinuidade de qualquer forma e tipo, incluindo as antrópi-
cas;
5. definido, à priori, entre duas superfícies arbitrárias de qualquer orientação no interior
de um material aparentemente homogéneo, no caso de nenhuma das condições
acima indicada se verificar; nesta última hipótese, a GFU coincide com o nível artifi-
cial utilizado por vezes em arqueologia como unidade operacional de escavação.
67
A Descrição
Uma vez discriminadas as unidades que empregamos na escavação, será também neces-
sário procurar alguma forma de normalização para descrever as características destas unida-
des. Na bibliografia arqueológica, depara-se, às vezes, na presença de termos das Geociências
que são utilizados de forma inapropriada ou na ausência da descrição de elementos que são
essenciais para inferir a natureza e as condições de formação de determinado depósito arqueo-
lógico.
Uma norma de descrição estratigráfica tem de condizer com critérios de normalização
terminológica, de potencial de reprodutibilidade e incluir, pelo menos, a maioria das situações
observáveis numa estratificação arqueológica, tendo em conta que só os objectos e elementos
já conhecidos e formalizados semanticamente podem ser detectados durante o reconheci-
mento de terreno.
Por essa razão, o IPA está a desenvolver uma norma para a descrição das estratificações
arqueológicas. Este sistema de descrição considerará as várias características que se podem
encontrar num depósito, sejam de origem sedimentar ou pedogenética, natural ou antrópica.
A ficha em elaboração tem origem nas descrições sedimentológicas e pedológicas standards
(Sanesi, 1977; Keeley e Macphail, 1981; Langohr, 1989; FAO-ISRIC, 1990; Soil Survey Staff,
1998), com várias modificações. Na Caixa 2-14, encontra-se um primeiro esboço da ficha que
está em elaboração.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
68
CAIXA 2-14
1. Identificação do corte. O sítio onde se localiza o corte objecto da descrição tem que ser
identificado através de um código unívoco, rapidamente reconhecível e que corresponda ao
código usado pelas amostras e, possivelmente, pela documentação e pelo espólio exumado.
É também importante identificar individualmente o corte, pois em cada sítio descrevem-se,
usualmente, várias secções (cortes mais extensos lateral que verticalmente), perfis (cortes mais
extensos vertical que lateralmente ou com escasso desenvolvimento lateral) ou superfícies de
escavação.
69
CAIXA 2-14 (cont.)
vertente, etc.); os eventuais dados ambientais (uso do solo, acções antrópicas em curso, vege-
tação, fauna, etc.) ou relativos à superfície (afloramentos de rocha, pedregosidade superficial,
acções de erosão ou de sedimentação). Finalmente, é útil anotar se o corte se apresenta seco,
húmido ou molhado, tendo em conta que alguns parâmetros podem mudar dependendo do
conteúdo de humidade presente no terreno.
4. Descrição das unidades. Uma vez proporcionados os dados gerais sobre o corte ou a
superfície em descrição, passa-se à descrição das unidades presentes no corte, utilizando con-
ceitos sedimentológicos, pedológicos, estratigráficos e arqueológicos. Na continuação, fornece-
se uma simples listagem dos principais parâmetros a observar, que são os seguintes:
• designação - número de ordem da unidade em descrição, sua correspondência com a nomen-
clatura arqueológica e, eventualmente, com as designações pedológicas (vide Caixa 2-9;
FAO-ISRIC 1990, p. 27-38; Soil Survey Staff, 1998) ou com as codificações sedimentológi-
cas (vide Benn e Evans 1998, 382-385, com a bibliografia anterior).
• geometria (tendo em conta que na maioria das vezes está a ser feita uma observação bidi-
mensional de um corpo tridimensional) — forma (ex. tabular, lenticular, em cunha, ondu-
lada, descontinua, irregular), variações laterais, outros parâmetros significativos (ex. parale-
lismo com a superfície topográfica, inclinação, pendor).
• profundidade do limite inferior - importante para solos, sendo medido a partir da superfície
topográfica, em cm.
• cor - determinada por comparação com cartas (a mais difundida é a Munsell Soil Color Chart),
de modo a evitar distorções relacionadas com a percepção ou com a sensibilidade pessoal e
apontando se foi determinada em condições de terreno seco ou húmido.
• manchas de cor - se a cor não for homogénea, descrevem-se as variações através uma série
de parâmetros (vide FAO-ISRIC 1990, p. 41-43): cor das manchas, quantidade, tamanho,
contraste, limites, padrão de distribuição (doravante PD) e padrão de orientação (PO).
• textura ou granulometria - conceito fundamental para todos os tipos de depósitos, relativo ao
tamanho das partículas que o compõem, utilizando-se classes dimensionais (frequente-
mente variáveis entre a sedimentologia e a pedologia, assim como de um país a outro),
como: argila; silte (ou limo); areia; franco (terreno formado por percentagens sensivelmente
iguais de argila, silte e areia); balastro; diamicton (sedimento heterogéneo com elementos de
tamanho variável e triagem muito escassa). As classes podem ser combinadas (ex. areia sil-
tosa) ou adjectivadas (finíssimo, fino, médio, grosseiro, muito grosseiro), no caso das areias
e do balastro.
• pedras - descrevem-se aqui as características dos elementos com tamanho superior a 2 mm:
quantidade (FAO-ISRIC 1990, p. 46), tamanho (FAO-ISRIC 1990, p. 47), composição, rola-
mento (angular, sub-angular, sub-rolado, rolado, bem rolado — cf. Ricci Lucchi, 1980, vol. 1,
p. 162), forma (v. Ricci Lucchi, 1980, vol. 1, p. 154-sgg.), PD, PO, e, no caso de sedimentos for-
mados por areia ou balastro, a triagem granulométrica (baixa, média, alta), a compactação, etc.
• agregação - a maioria dos solos possui uma estrutura específica formada por agregados e
poros, sendo os agregados os elementos de massa em que se organiza o solo, dos quais se
aponta o tipo (granular, grumoso, em blocos angulares ou sub-angulares, prismático, lami-
nar, etc.), o grau de desenvolvimento, o tamanho, etc.
• porosidade - os poros, ou seja o conjunto de espaços vazios presentes no terreno, são a
segunda componente da estrutura. Codifica-se o tipo (ocos de empacotamento, canais, câma-
ras, ocos planares, etc.), a quantidade, o tamanho, etc. Outra categoria é constituída pelas fis-
suras, que dependem de processos específicos (ex. dissecação, processos vérticos ou gelo) e
que são anotadas à parte.
• resistência - este conceito exprime a resistência do terreno à ruptura, que pode variar depen-
dendo da sua condição seca ou húmida, da presença de determinados componentes ou de
cimentação. É assim usual anotar diferentes parâmetros: a resistência no estado seco (solto,
fraco, moderadamente duro, duro, muito duro); a resistência no estado húmido (solto, muito >
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
70
CAIXA 2-14 (cont.)
friável, friável, resistente, muito resistente); a adesividade, ou seja a capacidade de adesão (não
adesivo, moderadamente ou muito); a plasticidade, ou seja a propriedade de ser manipulado
(não plástico, moderadamente ou muito); a eventual presença de cimentação (não cimentado,
fracamente, moderadamente ou intensamente).
• matéria orgânica - a matéria orgânica assume um papel extremamente importante nos depó-
sitos arqueológicos e representa frequentemente um dos mais significativos aportes antrópi-
cos; é assim importante anotar (Sanesi, 1977, p. 58-59) a quantidade, o tipo, a decomposição,
descrevendo, possivelmente, se a matéria orgânica está humificada e o tipo de húmus presente.
• raízes - a anotação da quantidade e do tamanho das raízes é apenas significativa em casos par-
ticulares, por exemplo quando se reconheça que podem ter jogado um papel na bioturbação
do sedimento arqueológico ou quando exprimem o grau de actividade de determinado solo
arqueológico (vide Sanesi, 1977, p. 103)
• pedoquímica - é possível, com meios relativamente simples, avaliar a reacção química de um
terreno no campo, medindo o pH com pHmetros portáteis e determinando assim se o ter-
reno tem reacção neutra, mais ou menos ácida ou alcalina, ou o conteúdo em carbonatos,
fazendo reagir uma pequena quantidade de terreno com ácido clorídrico com concentração
do 10% e avaliando o resultado da reacção. Estes parâmetros controlam a conservação de dife-
rentes classes de vestígios arqueológicos.
• pedocarácteres - são todos os elementos que se destacam da massa do terreno (Bullock et al.,
1985, p. 95) e que derivam da actuação de processos pedogenéticos específicos, sendo assim
elementos de diagnóstico para reconstituir a génese do depósito. Existem vários tipos (nódu-
los, cristais, concreções, cimentação, compactação, revestimentos, preenchimentos, slicken-
sides, figuras biológicas, clay bands, glosse, etc. — vide também Capítulo 3): dos quais é con-
veniente apontar o tipo, a composição, a quantidade, o tamanho, a forma, a cor, a estrutura
interna (sem confundi-las com as estruturas sedimentares)
• estruturas sedimentares - representam todas as formas de organização interna de um sedi-
mento, derivada dos processos de sedimentação e de diagénese, podendo ser extremamente
diferenciadas. Assim como os pedocarácteres são elementos de diagnóstico dos processos
pedogenéticos, as estruturas sedimentares são “assinaturas” típicas de determinados ambi-
entes sedimentares e agentes (Ricci Lucchi, 1992). Existem vários tipos: estruturas mecâni-
cas (laminações de diferente feitio, impressões, ripples, imbricação, gradação inversa ou nor-
mal, sulcos, canais), de deformação (fissuras de contracção ou de distensão, lobos de carga
(flute casts), filões sedimentares, dishes and pillars, slumping, etc.), biológicas; de todas deve-
se descrever a visibilidade, o PD e o PO, etc.
• materiais e estruturas antrópicas - é claramente difícil descrever de forma sintética a presença
de espólio arqueológico num corte, sendo estes os próprios objectos da pesquisa arqueoló-
gica. Do ponto de vista geoarqueológico será porém útil, para determinar a posição in situ ou
não do material e a presença de eventuais modificações pós-deposicionais, apontar parâme-
tros como o tipo de material, a quantidade, o PD e o PO, a alteração, a grau de integridade
ou o rolamento, etc.
• materiais faunísticos ou paleontológicos - materiais de origem vegetal - valem as mesmas con-
siderações expressas no ponto anterior (espólio arqueológico)
• limites - finalmente, devem ser descritos os limites da unidade para as unidades adjacentes
(no caso de um perfil de solo usualmente descreve-se o limite inferior de cada horizonte), em
termos de tipo (ou seja, espessura da faixa de transição entre uma unidade e outra, que pode
ser nítido, claro, gradual, difuso), delineamento (linear, ondulado, irregular, inclinado, etc.),
contraste e geometria.
71
CAIXA 2-14 (cont.)
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
72
obviamente, o desenho do corte no campo (Fig. 2-25-a). O procedimento para alcançar o resul-
tado final passou, sucessivamente, pela digitalização em formato raster (escalar) através de um
scanner e pela consecutiva vectorização. Esta última permite juntar diferentes tipos de infor-
mações que são as seguintes: identificação das unidades arqueológicas de escavação, dos mate-
riais arqueológicos patentes no corte e doutros elementos, como os fragmentos calcários
(Fig. 2-25-b); delimitação dos limites das unidades geoarqueológicas de campo, com indicação
da visibilidade do limite (Fig. 2-25-c); criação de tramas referentes à presença de estruturas sedi-
mentares e de características pedogenéticas ou diagenéticas (Fig. 2-25-d); atribuição de tramas
e preenchimentos às unidades geoarqueológicas de campo (Fig. 2-25-e); delimitação dos con-
juntos geoarqueológicos (vide infra) de modo a poder correlacionar com outros cortes da jazida
(Fig. 2-25-f). Desta forma, a versão reproduzida na publicação sintetiza uma série de informa-
ções de cariz diferente (Fig. 2-24). A digitalização permite uma rápida reprodução e manusea-
mento das representações gráficas, para além de consentir a georeferenciação dos cortes levan-
tados, existindo numerosos softwares comerciais para esta finalidade (no caso específico uti-
lizou-se Corel Draw™).
O processo de reconstituição da sucessão, no seu conjunto, centra-se no uso de uma enti-
dade especificamente criada, a par da unidade geoarqueológica de campo (GFU), que é o “con-
junto geoarqueológico” (GC, geoarchaeological complex). Os conjuntos geoarqueológicos, deno-
minados com acrónimos, são corpos físicos derivados do agrupamento das unidades geoar-
queológicas de campo e demarcados pelos seus limites, definindo-se como corpos físicos tri-
dimensionais incluídos entre limites ou descontinuidades marcantes (ex., uma stone-line ou
a superfície truncada de um solo). Podem corresponder às unidades aloestratigráficas utili-
zadas em Geologia do Quaternário (Salvador, 1994) ou aos sequa empregues pelos pedólogos.
Um conjunto geoarqueológico representa um grupo de estratos de sedimento ou horizontes
de solo que mostram características recorrentes ou regularmente variáveis, e utiliza-se para a
reconstituição das sucessões verticais e das variações laterais, assim como para distinguir entre
as fases de acumulação, de erosão e de estabilidade que se alternaram em determinado sítio.
FIG. 2-25 – Procedimento de construção da reprodução do corte E da quadrícula F3 do Abrigo do Lagar Velho.
73
CAIXA 2-15
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
74
CAIXA 2-15 (cont.)
picos do abrigo. Esta transformação, registada pela descida das interfaces erosivas e pela for-
mação de canais de cut-and-fill, parece estar relacionado com a instalação de condições mais frias
e húmidas, que teve lugar no início do LGM (Último Máximo Glaciar), também identificado
através de medições de susceptibilidade magnética (MS) e de outros indicadores paleoclimáti-
cos na Gruta do Caldeirão (Cruz, 1990; Ellwood et al., 1998).
A parte superior da sucessão estratigráfica do Abrigo do Lagar Velho está mal conservada
e a única evidência disponível é a presença do solo no topo, que regista uma fase de estabili-
dade prolongada, de cronologia provavelmente holocénica.
No seu conjunto, a sucessão do abrigo documenta a transição para condições climatéricas e
ambientais gradualmente mais rigorosas, com características gerais de instabilidade / rexistasia,
durante o OIS 2. A comparação da sequência de eventos registados no abrigo com os dados proxy
disponíveis para o Atlântico Norte permite observar uma concordância entre registo estratigrá-
fico e assinaturas paleoclimáticas (Fig. 2-27). Em particular, as principais fases de erosão (bases
dos conjuntos geoarqueológicos tc e us - eventos números 1 e 9 na Fig. 2-27), encaixam crono-
logicamente com os eventos Heinrich números 2 e 3 respectivamente, enquanto que a pedogé-
nese registada no conjunto ls se ajusta com os interestadiais relativos aos eventos Dansgaard-Oes-
chger números 3 e 4 (vide Angelucci, 2002a, com a bibliografia anterior).
Destaca-se assim, no caso do Abrigo do Lagar Velho, a sensibilidade do registo estratigrá-
fico e o seu aparente faseamento com as modificações climatéricas, possível graças a factores
geomorfológicos (posição do sítio e ausência de processos fluviais activos, subsequente ao
embutimento da Ribeira da Caranguejeira) e sedimentológicos (características sedimentares
dos materiais que se acumularam no enchimento e elevada taxa de sedimentação).
QUADRO 2-4
descrição breve intervalos 2σ (anos BC)
erosão na base do conjunto tc 29 944 - 27 592
início da sedimentação do conjunto tc > 26 991 - 25 435
sepultura e interface superior do conjunto gs 26 636 - 25 386
fim da pedogénese no conjunto ls > 24 492 - 24 229 QUADRO 2-4 – Abrigo do Lagar Velho.
início da sedimentação do conjunto ms > 24 541 - 24 199 Eventos datados no registo estratigráfico;
curta fase de pedogénese no conjunto ms 24 156 - 23 696 datações em anos de calendário
topo do conjunto ms 24 140 - 23 522 calculados através de CALPAL (2001),
início da sedimentação do us > 23 052 - 22 362 em age correspondence (pormenores em
estruturas de cut-and-fill no conjunto us < 22 054 - 21 453 Angelucci, 2002a)
75
A Área de Geoarqueologia do CIPA
No âmbito do “projecto CIPA”, coordenado por José Mateus, foi aberto, em Março de
2001, um sector dedicado à Geoarqueologia, com vista a disponibilizar à comunidade cien-
tífica portuguesa a utilização dos instrumentos das Ciências da Terra no quadro da inves-
tigação arqueológica, numa perspectiva integrada e multidisciplinar.
A Área de Geoarqueologia foi criada mediante a obtenção de serviços do autor deste
artigo, até ao momento a única pessoa a integrar o grupo geoarqueológico do IPA. Mais
recentemente, iniciou-se uma colaboração a curto prazo, no âmbito de um projecto espe-
cífico, com Vera Aldeias (vide Caixa 2-16).
De facto, a actual Área de Geoarqueologia herda o núcleo desenvolvido no Laborató-
rio de Paleoecologia do Museu Nacional de Arqueologia por José Mateus, Fernando Real e
outros investigadores portugueses (vide Caixa 2-2 deste capítulo e Mateus, neste volume),
integrando e harmonizando as estruturas disponíveis.
Desde a sua criação, a Área de Geoarqueologia tem desenvolvido projectos internos
e externos, efectuando principalmente, até agora, trabalhos de campo e publicando alguns
resultados. Pese os actuais limites de recursos humanos, a Área de Geoarqueologia pre-
tende estar aberta a toda a comunidade científica e a sua estrutura consente encontrar a
forma adequada para organizar projectos, colaborações ou protocolos. Ao mesmo tempo,
está em curso a instalação de laboratórios de análise, a preparação de protocolos e o desen-
volvimento de actividades de divulgação e de formação, que vamos sintetizar nas próximas
páginas.
Actualmente, a Área de Geoarqueologia está a desenvolver projectos em diversos
campos. A participação nestes projectos pressupõe, normalmente, após a formulação e a
pesquisa bibliográfica, a realização de trabalhos de campo de duração entre poucos dias até
vários meses, a recolha de amostras, a eventual realização de análises de sedimentos e solos
ou a observação de lâminas finas no microscópio (vide Capítulo 3), assim como a compi-
lação de cartografia temática e a redacção de relatórios técnico-científicos e artigos. Desta
forma, realizaram-se cerca de 6 meses de trabalho de campo em 2001 e 5 meses em 2002
e recolheu-se uma centena de amostras. A listagem dos projectos encontra-se no Quadro 2-5
e na Fig. 2-28.
No que toca à divulgação e à publicação de resultados, a Área de Geoarqueologia tem
como prioridade a tarefa de difundir o conhecimento arqueológico e geoarqueológico atra-
vés da participação em congressos nacionais e internacionais, da realização de palestras e
conferências e da publicação dos resultados.
As actividades deste sector foram, até agora, apresentadas no International Working
Meeting on Micropedology (Gent, Bélgica, Julho de 2001 — Angelucci, 2003c), no 1o Semi-
nário dos Geomorfólogos Portugueses (Lisboa, Março de 2002 — Angelucci, 2002a) e na
1a Reunión Nacional de Geoarqueología (Almazán, Espanha, Setembro de 2002 — Ange-
lucci, no prelo; Angelucci et al., no prelo). Efectuaram-se também conferências públicas e
palestras no IPA, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e na Faculdade de Letras
da Universidade do Porto.
As actividades didácticas incluíram a realização, no âmbito do Curso Livre de Pós-Gra-
duação “Avecasta 2001”, do Módulo didáctico de “Geoarqueologia”, além da realização de
excursões científicas e didácticas no Abrigo do Lagar Velho, nas Grutas de Almonda e na
Sierra de Atapuerca (Espanha).
No que diz respeito à publicação de resultados científicos, durante os primeiros dois
anos de vida da Área foram entregues para a publicação 7 artigos (2 em revistas interna-
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
76
CAIXA 2-16
Equipa de Trabalho
Área de Geoarqueologia
Diego ANGELUCCI
Lic. Ciências Geológicas (Univ. de Milão, Itália)
Doutoramento em Ciências Antropológicas, variante Paleoantro-
pologia e Paleontologia Humana (Univ. de Bolonha, Itália)
Responsável pela Área de Geoarqueologia do CIPA.
Áreas de investigação: Geoarqueologia; comunidades de caçadores-
recolectores; metodologia da investigação arqueológica.
Vera ALDEIAS
Lic. História, variante Arqueologia (Faculdade de Letras de Lisboa)
Áreas de investigação: Arqueologia e Geoarqueologia.
77
PROJECTOS PRESTAÇÕES DE SERVIÇOS:
da Área de Geoarqueologia do IPA • Castelo da Lousa (época romana), EDIA e
Arkhaios - 8.
PNTA: • Jogo da Pela - EPUL Martim Moniz, Lisboa, C.M.
Lisboa - 9.
• Prazo (Freixo de Numão) (Neolítico - Bronze), • Barca do Xerez de Baixo (Epipaleolítico), EDIA e
Sérgio Monteiro Rodrigues, Universidade do STEA - 13.
Porto - 1 no mapa de localização (cortesia • Belas Clube de Campo (Neolítico), Emérita - 15.
Armando Lucena). • Vale da Porta (Pré-História), Dryas Arqueolo-
• Castelo Velho e Castanheiro do Vento, (Neolí- gia - 16.
tico - Bronze) Susana Oliveira Jorge e Vítor Oli- • Vale do Ança (Pré-História), Era Arqueologia - 17.
veira Jorge, Universidade do Porto - 2. • Praça Lima e Brito, Arraiolos (Islâmico e Medie-
• Anta 6 de Monte de Lucas (Neolítico - Calcolí- val), Arkhaios - 19.
tico), Leonor Rocha, IPA - 3.
• Penedo de Lexim (Calcolítico - Bronze), Ana PROJECTOS INTERNOS:
Catarina Sousa, C.M. Mafra - 6.
• Sistema Cársico da Nascente do Almonda (Pré-
• Vale de Rodrigo 3 (Neolítico - Bronze), Philine
-História) - 4.
Kalb, Instituto Alemão, e Martin Höck, Univer-
• Gruta do Caldeirão (Paleolítico - Neolítico) - 5.
sidade de Covilhã - 7.
• Abrigo do Lagar Velho - Vale do Lapedo (Paleolí-
• Penedo dos Mouros (Medieval), Catarina Tente,
tico superior) - 14.
IPA - 10.
• Monte de Têra (Idade do Ferro), Leonor Rocha,
PROJECTOS INTERNACIONAIS:
IPA - 11.
• Casal de Azemel - Batalha (Paleolítico), João • Atapuerca - el Mirador (Pré-História), Atapuerca
Pedro Cunha-Ribeiro, Universidade de Lis- Research Team.
– Localização dos sítios em
FIG. 2-28 boa - 12. • Prehistòria i medi ambient de les conques dels
estudo pela Área de Geoarqueologia • Serra de Portel (Pré-História), Ana Sofia Antu- rius Francolí e Gaià (Pré-História), Universitat
do IPA nes, C.M. Portel, e Susana Correia (Ippar) - 18. Rovira i Virgili, Tarragona (Espanha)
QUADRO 2-5
nome do projecto tipo parceiros objecto referências
CG ES MM
1 Estudo geoarqueológico do Abrigo do IPA F. Almeida, J. Zilhão sim sim sim Angelucci, 2002; 2002a;
Lagar Velho e do Vale do Lapedo (Leiria) Angelucci et al., no prelo
2 Estudo geoarqueológico de algumas IPA F. Almeida, J.P. Cunha-Ribeiro, prog sim sim em curso
grutas do Sistema Cársico de Almonda J. Zilhão, J. Correia
(Torres Novas)
3 Processos de formação dos sítios PNTA S. Oliveira Jorge, V. Oliveira sim sim prog em curso, artigo em
pré-históricos de Castanheiro do Vento, Jorge, S. Monteiro-Rodrigues preparação
Castelo Velho e Prazo (V. N. Foz Côa)
4 Estratigrafia do sítio medieval de Penedo PNTA C. Tente, A. Martins sim sim em curso
dos Mouros (Gouveia) e geomorfologia
do território envolvente
5 Análise geomorfológica do território dos PNTA A.S. Antunes sim sim em curso
sítios pré-históricos da Serra de Portel
6 Análise estratigráfico da necrópole PNTA L. Rocha sim em curso
de Monte de Têra (Pavia)
7 Estudo estratigráfico e geomorfológico PNTA L. Rocha sim sim em curso
da anta de Monte do Lucas 6 (Alandroal)
8 Estratigrafia e processos de formação PNTA Ph. Kalb, M. Höck sim sim sim em curso
do registo relacionado com a anta de
Vale de Rodrigo 3
9 Estratigrafia e contexto geomorfológico PNTA A.C. Sousa sim sim prog em curso
do sítio pré-histórico do Penedo
do Lexim (Mafra)
10 Processos de formação do sito paleolítico PNTA J.P. Cunha-Ribeiro sim sim em curso, próxima
de Casal de Azemel - Batalha apresentação em
congresso internacional
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
78
(Cont.)
QUADRO 2-5 – Lista dos projectos realizados ou em curso pela Área de Geoarqueologia (não inclui os projectos não formalizados ou em
definição). LEGENDA: tipo de projecto: IPA - projectos coordenados de forma total ou parcial pelo IPA; PNTA - projectos no âmbito do
Concurso PNTA / Arqueologia Ambiental (4o Concurso CIPA, ano 2002); PS - prestações de serviços (anotações: 1. no âmbito do
projecto da minimização de impactes arqueológicos da barragem do Alqueva; 2. no âmbito do projecto da minimização de impactes
arqueológicos da Auto-estrada A14; 3. outros); INT - projectos internacionais; objecto: CG - reconstituição do contexto geomorfológico
e da evolução do território; ES - análise estratigráfica, de sedimentos e solos; MM - estudo dos processos de formação e observação
micromorfológica (sim: em curso ou já terminada; prog: programada).
79
Agradecimentos
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84
| Introdução à micromorfologia
capítulo 3
dos sedimentos e dos solos arqueológicos
❚ DIEGO E. ANGELUCCI ❚
RESUMO Este capítulo pretende apresentar a ABSTRACT The aim of this chapter is to show how
aplicação da Micromorfologia à investigação Micromorphology can be applied to archaeological
arqueológica. research.
Esta técnica, derivada da Pedologia, consta da This technique is derived from Soil Science and
análise de preparações microscópicas - as lâminas consists of the microscopic analysis of thin sections
delgadas - obtidas a partir de amostras de obtained from loose sediment or soil samples. The
sedimentos não consolidados ou solos. O estudo micromorphological study of archaeological
micromorfológico de um depósito arqueológico deposits allows us to observe the nature of its
permite observar a origem dos seus componentes, components, its structural organisation, and all
a sua organização estrutural e todas as those features indicating the action of sedimentary,
características de diagnóstico provenientes da diagenetic or pedogenetic processes - both natural
actuação de processos sedimentares, diagenéticos and human - in their original context. Thus it is
ou pedogenéticos - naturais ou antrópicos, no seu possible to deduce useful information on the
contexto original. É possível assim deduzir formation processes of the deposit, as shown by
informações úteis sobre os processos de formação some case studies presented in this chapter.
do depósito, como ilustrado pelos casos de estudo
apresentados no capítulo.
Introdução
85
A micromorfologia (ou micropedologia) ocupa-se do estudo de sedimentos em geral não
consolidados e de solos através de técnicas microscópicas, a saber: “Micromorphology is the
branch of soil science that is concerned with the description, interpretation and, to an increasing
extent, the measurement of components, features and fabrics in soils at a microscopic level, i.e.
beyond that which can readily be seen with the naked eye. It is fundamental to an understanding of
the processes involved in soil formation whether they be produced by the normal forces of nature or
artificially induced by the effect of man.” (Bullock et al., 1985, p. 9)
É uma metodologia derivada da Pedologia, que se desenvolveu a partir dos anos ‘70 do
século passado, com excepção de alguns estudos pioneiros. A sua utilização na Geologia do
Quaternário e na Geoarqueologia é ainda mais recente, enquanto que o uso do microscópio
óptico (a ferramenta mais vulgar na micromorfologia) tem sido rotina desde há vários decé-
nios em outros campos das Ciências da Terra, como na Mineralogia, na Petrografia ou na
Petrologia do Sedimentar.
A potencialidade da aproximação microscópica, claramente adicional e não substitutiva
dos métodos de terreno e de laboratório, reside na possibilidade de observar amostras íntegras
de sedimentos e de solo com ampliações até 500x no microscópio óptico, valor que pode ser
muito mais elevado quando se recorre a técnicas de microscopia electrónica. É assim possí-
vel averiguar a origem dos materiais que constituem o depósito - sejam eles orgânicos ou mine-
rais - a sua organização espacial, a estrutura do solo, a eventual presença de características deri-
vadas da actuação de determinados processos no passado ou na actualidade. Tudo isto possi-
bilita a recolha de informações sobre o ambiente e as condições de formação do depósito
arqueológico, sobre os agentes e os mecanismos responsáveis pela sua génese e sobre os pro-
cessos de modificação (quer naturais quer antrópicos).
O procedimento clássico da investigação micromorfológica consiste na observação de
uma preparação de microscópio — a lâmina delgada (ou lâmina fina) — ao microscópio
óptico. É um processo relativamente simples, influenciado porém por alguns factores cons-
trangedores que são, em particular, o custo elevado e o longo tempo de preparação das lâmi-
nas e de descrição no microscópio.
A lâmina delgada micromorfológica é obtida através da impregnação por resinas e do sub-
sequente corte a partir de uma amostra de sedimento íntegro (ou seja, não perturbado nem modi-
ficado de qualquer forma). A impregnação visa, obviamente, a consolidação do sedimento solto,
permitindo assim o seu corte até a uma espessura infra-milimétrica. De facto, as lâminas possuem
usualmente uma espessura entre 25 e 30 µm, podendo, para preparações especiais, ser mais finas
ou mais espessas. A fatia de terreno consolidado é em seguida colada sobre uma lâmina de vidro
e, geralmente, coberta por uma lamela mais fina, também de vidro. O tamanho da lâmina delgada
assim preparada é de comprimento variável, geralmente entre 6 e 15 cm (Fig. 3-5).
A observação micromorfológica tem um alcance notável na Arqueologia, pois permite a
observação de sedimento arqueológico no estado íntegro, ou seja, sem que haja destruição ou alte-
ração das relações espaciais entre os componentes (por exemplo, os artefactos) e o contexto sedi-
mentar e pedogenético, característica esta que é única no âmbito das ciências arqueológicas.
Outro aspecto relevante está na universalidade da técnica, que pode ser aplicada, aten-
dendo as particularidades caso a caso, a qualquer sítio ou depósito arqueológico, indepen-
dentemente da sua localização geográfica, do contexto ambiental passado e presente, da sua
idade ou da sua função.
É importante realçar que a observação micromorfológica constitui a fase final do percurso
de investigação geoarqueológica, pois este tipo de análise tem que ser necessariamente precedida
por uma atenta avaliação da organização do sítio, pela reconstituição das dinâmicas geomorfo-
lógicas e do contexto ambiental do território envolvente e pela descrição da evidência de campo.
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Todos estes pontos são fundamentais para que a aproximação micromorfológica não seja mera-
mente um artifício tecnicista desligado do registo arqueológico que está a ser examinado.
Do ponto de vista prático, para realizar um estudo micromorfológico é necessário, além
da disponibilidade de um especialista neste domínio, a disponibilidade de um laboratório de
corte de lâminas delgadas micromorfológicas. Mais complicada é a instalação ex novo de tal
tipo de laboratório, pelos problemas relativos ao funcionamento de rotina, ao manuseamento
de substâncias tóxicas e ao custo elevado das lâminas. Na Europa existem vários laboratórios
que preparam lâminas delgadas micromorfológicas, em regime de prestação de serviços, com
preços e qualidades diversificadas.
O que é preciso possuir, para uma iniciação à micromorfologia, é um microscópio óptico
petrográfico e um sistema para a captação de imagens e o seu armazenamento.
O primeiro passo para obter lâminas finas a partir de um depósito arqueológico é reco-
lher amostras com características apropriadas. A amostragem tem que ser particularmente cui-
dadosa tanto na estratégia da selecção do perfil a amostrar como na recolha da amostra, de
forma a garantir que o material recolhido seja representativo, significativo, e analisável.
É importante respeitar algumas condições básicas, às quais estão dedicadas as próximas pági-
nas, lembrando, contudo, que é usual ser a mesma pessoa que recolhe as amostras e as inves-
tiga. Não incluímos indicações sobre a estratégia de amostragem, que depende de questões
arqueológicas e de parâmetros económicos.
Uma amostra micromorfológica tem que ser
(Fig. 3-4):
• íntegra, de maneira a conservar, sem modifi-
cações ou deformações, a estrutura do terreno,
a sua organização, as relações originais entre os
componentes, etc.;
• localizada univocamente no espaço;
• relacionada de forma inequívoca com a estrati-
ficação ou com as estruturas do sítio;
• orientada para cima e, possivelmente, com
indicação do N;
• de tamanho apropriado: bastante grande para
optimizar a área útil de observação ao micros-
cópio, sendo que as lâminas delgadas arqueo-
lógicas são maiores que as petrográficas (em
micromorfologia, size matters!), mas, ao outro
lado, bastante reduzida para não gastar muita
resina durante a impregnação (ex. 10 cm x
6 cm x 6 cm);
FIG. 3-1 – Recolha de amostras micromorfológicas,
• de forma regular, possivelmente em forma de fases preliminares. As partes de depósito
paralelepípedo, para ajudar ao processo de arqueológico a amostrar foram isoladas do
sedimento circundante para a subsequente
armazenamento e impregnação; aplicação das ligaduras de gesso. La Cativera
• sem tratamento químico de qualquer tipo. (Tarragona, Espanha), corte X1.
87
O número total das amostras não deve ser excessivo, pois a preparação de lâminas é cara
e a observação no microscópio muito demorada, pelo que é aconselhável evitar amostragens
desnecessárias. Muitas vezes, os objectivos podem ser alcançados com uma cuidadosa des-
crição de campo ou considerando outras fontes de informação alternativa.
Extracção da Amostra
FIG. 3-2 – Recolha de amostras micromorfológicas. Revestimento – Amostras revestidas com ligaduras de gesso após a
FIG. 3-3
do sedimento com ligaduras de gesso, após ter sido isolado sua extracção e antes de revestir o lado interno. Abrigo do
do depósito envolvente, por Cristina Gameiro. Barca do Xerez Lagar Velho (Leiria), amostras LV10, LV11 e LV12 (da
de Baixo (Reguengos de Monsaraz), Área 1, corte E, amostra esquerda para a direita; a lâmina delgada derivada da
BX01. amostra LV12 está na Fig. 3.5).
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Extracção simples. Em sedimentos resistentes (ex. ricos em argila, consolidados ou cimen-
tados), as amostras podem ser extraídas simplesmente escavando à volta da porção de terreno
a retirar e, uma vez completamente isoladas, removendo-as da superfície (Fig. 3-1 e Fig. 3-4a).
A técnica precisa de alguma experiência e cuidado para evitar a ruptura da amostra. Após a
extracção, a amostra é embrulhada em papel (Fig. 3-4b), nunca em folhas de alumínio ou plás-
tico, que, sendo impermeáveis, mantêm a humidade do terreno e podem provocar a ruptura
da amostra durante o transporte.
Cada amostra micromorfológica tem que ser etiquetada, obviamente, de forma clara e
resistente no tempo, com as seguintes indicações (Fig. 3-4b):
• nome e número, em dois ou mais lados;
• seta marcando o alto nos lados e as indicações de polaridade (alto, baixo) respectiva-
mente nos lados superiores e inferiores;
• possivelmente, uma referência de orientação, por exemplo o Norte (indicando se se trata
do N geográfico ou do N convencional da escavação);
• o traço da superfície onde se cortará a lâmina.
89
tendo em conta que após a extracção da amostra a relação contextual com o sedimento já
não existe e que a continuação dos trabalhos irá provavelmente destruir o corte ou a super-
fície donde foi retirada a amostra.
As características próprias das amostras micromorfológicas implicam cuidados extras no
seu manuseamento e transporte, com vista a salvaguardar a sua integridade. É sempre con-
veniente, antes de manusear as amostras, secá-las ao ar para que percam a humidade natural
e não se verifiquem colapsos ou se formem fendas. A secagem tem que ser gradual e nunca
com exposição da amostra ao sol directo. O transporte para o laboratório ou para o armazém
deve evitar qualquer ruptura acidental, colocando por exemplo as amostras numa caixa forrada
com papel ou outro material macio entre elas e no contacto com as paredes do contentor usado
para o transporte.
O processo de secagem pode ser continuado em laboratório com técnicas diferentes: em
estufa, à temperatura de 40oC (a amostra é definitivamente seca quando o seu peso não muda
com o tempo), ou, alternativamente, com acetona líquida ou gasosa.
A impregnação da amostra é usualmente realizada com resinas (por exemplo, resina de
poliéster associada a estireno monómero), em condições de vácuo. Após a impregnação, corta-
-se uma “fatia” do bloco que é em seguida colocada sobre uma lâmina de vidro e gradualmente
rebaixada por abrasão até atingir a espessura desejada, obtendo assim a preparação apro-
priada à microscopia óptica de transmissão (Fig. 3-5).
– Lâminas delgadas de médio (à esquerda) e pequeno tamanho (à direita). Abrigo do Lagar Velho (Leiria), lâminas
FIG. 3-5
LV12 e LV14.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
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A Descrição das Lâminas Finas Micromorfológicas: algumas Anotações
– (a, à esquerda) O microscópio petrográfico actualmente em uso no IPA: modelo Jenapol do produtor Carl Zeiss.
FIG. 3-6
(b, à direita) Pormenor do revólver (as objectivas visíveis são as: 3.2x, 10x, 20x e 50x) e do estativo rotativo do microscópio.
91
o SEM, eventualmente associado à microsonda electrónica) ou química (ex., espectrometria)
que permitem estudar as características da fracção mais fina.
De seguida, ilustram-se alguns dos conceitos básicos da norma descritiva do Handbook
for Soil Thin Section Description (Bullock et al., 1985).
Qualquer material de sedimento ou solo observado ao microscópio compõe-se de um
fundo matricial (groundmass - Fig. 3-7a) que exprime as características principais da massa
constituinte do terreno considerada no seu conjunto, no que diz respeito à textura, à homo-
geneidade, à cor, à limpidez ou à relação entre os componentes. Os componentes individuais
são normalmente separados em duas classes: componentes grosseiros e componentes finos,
sendo o limite entre as duas classes (limite g/f) usualmente posto a 2 µm, ou seja, ao limite
de resolução do microscópio óptico. Os componentes grosseiros são todos os elementos reco-
nhecíveis, de natureza mineral ou orgânica, dos quais se descreve a composição, o tamanho,
a triagem, a forma, a alteração, a distribuição e a orientação, distinguindo minerais (Fig. 3-7b
e Fig. 3-7c), fragmentos de rochas, resíduos inorgânicos de origem orgânica (Fig. 3-7d e
Fig. 3-7e), artefactos (vide abaixo), e componentes orgânicos. O material fino compõe-se pelas
FIG. 3-7 – Anotações sobre as fotografias obtidas ao microscópio óptico. Todas as imagens foram obtidas com câmara digital JVC TK-
C1381 ligada a um microscópio petrográfico Olympus BH2 (propriedade da Área de Pré-história da Universidade Rovira i Virgili
de Tarragona, Espanha), através do software Micro Image 32™, sem qualquer tipo de tratamento digital posterior. As imagens são
obtidas sem a utilização de condensador e estão orientadas com o topo para acima (excepto quando expressamente indicado).
As imagens com baixa ampliação estão ligeiramente desfocadas por causa da amplitude do campo de visão da objectiva 1x. Sob a
legenda, dão-se algumas indicações técnicas: sítio; número da lâmina delgada (TS); referência da imagem (ref.); largura da
imagem em milímetros (l); tipo de luz (PPL - luz plana polarizada, XPL - luz polarizada com nícois cruzados); eventuais indicações
suplementares. (a) Exemplificação do fundo matricial constituinte do solo observado em lâmina delgada. A matriz é composta
por elementos minerais grosseiros (na sua maioria grãos de quartzo, feldspato e mica) embalados num material fino, argiloso,
de cor castanha-amarelada, com manchas mais escuras devido ao enriquecimento em matéria orgânica. No fundo matricial,
destacam-se os poros (entre os quais o poro aplanado que atravessa diagonalmente toda a imagem) e alguns pedocarácteres, por
exemplo, o revestimento argiloso no poro aplanado e os nódulos de óxido ferro-manganesiano na parte baixa da imagem. Lugo
di Grezzana; TS LG19; ref. LG1908; l = 2 mm; PPL (b) Componente grosseiro da categoria dos minerais: grão de feldspato no
calibre das areias, sujeito a moderada meteorização. Calvatone; TS CLV6; ref. CLV63; l = 0.8 mm; XPL. (c) Componente
grosseiro da categoria dos minerais, modificado por impacto antrópico: grão de quartzo no calibre da areia com subtil
revestimento opaco de óxido ferro-manganesiano ao longo do bordo. La Cativera; TS AC2B ; ref. ac215; l = 2 mm; PPL.
(d) Componentes da categoria “resíduos inorgânicos de material orgânico”, derivados de acção antrópica indirecta: fitólitos (são
os elementos mais ou menos alongados, transparentes, com contorno rectangular ou ovóide). Riparo Gaban (Trento, Itália); TS
GB05; ref. gb0512; l = 0.3 mm; PPL; micrografia realizada em colaboração com Giovanni Boschian (Universidade de Pisa, Itália).
(e) Componentes da categoria “resíduos inorgânicos de material orgânico”, derivados de acção antrópica indirecta: esferólitos.
Riparo Gaban (Trento, Itália); TS GB06 ; ref. gb0601; l = 0.3 mm; XPL; micrografia realizada em colaboração com Giovanni
Boschian (Universidade de Pisa, Itália). (f) Exemplo da microestrutura do solo: o material da imagem está organizado com uma
agregação prismática (de escala maior que a imagem e que a própria lâmina), reconhecível pela presença de poros aplanados com
orientação vertical ou horizontal. Lugo di Grezzana; TS LG19; ref. lg1901; l = 8 mm; PPL. (g) Exemplo de um pedocarácter:
enchimento de canal de origem biológica. Campoluzzo di Mezzo (Vicenza, Itália); TS CL05; ref. cl0505; l x; PPL. (h) Exemplo
de um pedocarácter: nódulo de óxido ferro-manganesiano. Lugo di Grezzana; TS LG05; ref. lg0507; l = 2 mm; PPL.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
92
partículas não individualizáveis ao microscópio óptico e descreve-se em termos de “massa”,
observando-se a sua cor, limpidez e propriedades ópticas.
Uma característica específica do solo é a presença de uma organização estrutural inde-
pendente da organização deposicional original das partículas que o formam e cujo desenvol-
vimento está ligado à actuação dos processos pedogenéticos - é este um critério fundamental
para diferenciar um sedimento de um solo (vide Caixas 2-9 e 2-14 do Capítulo 2). Em micro-
morfologia emprega-se o conceito de microestrutura, que descreve a organização interna dos
componentes segundo dois parâmetros: a agregação, constituída pelos elementos estruturais
em que está organizado o fundo matricial (dos quais se observa a morfologia, o tamanho, a
compactação, etc.), e a porosidade, ou seja o conjunto de espaços vazios entre os agregados,
de que se anota o tipo, a forma ou a quantidade absoluta (Fig. 3-7f).
Entre os elementos de diagnóstico para a reconstituição dos processos pedogenéticos ou
diagenéticos que tiveram lugar num terreno, temos que lembrar os ditos pedocarácteres
(pedofeatures - Stoops, 1986), palavra que agrupa todos os elementos distintos do fundo matri-
cial, como áreas enriquecidas ou empobrecidas num qualquer elemento ou substância, excre-
mentos, revestimentos (Fig. 3-7a), enchimentos (Fig. 3-7g), nódulos (Fig. 3-7h) ou cristais.
93
Mesmo assim, parece possível compilar uma série de características que, no seu conjunto,
permitam fundamentar a identificação de artefactos líticos em pedra lascada ao microscópio,
pelo menos em contextos cronológicos a partir do Paleolítico superior e caso sejam artefactos
produzidos em sílex — situação em que foi possível, até agora, uma identificação inequívoca.
Estes critérios são enunciados de seguida.
De acordo com a norma descritiva de Bullock et al. (1985), os artefactos líticos incluem-
-se na categoria dos “componentes grosseiros”. O seu tamanho é heterogéneo, desde cente-
nas de mícrones até à ordem de grandeza dos centímetros.
No que diz respeito à composição, só foram observados artefactos em sílex, embora o
leque de materiais usados para o talhe seja muito mais amplo. Um dos primeiros critérios que
parece útil para a identificação das peças é a aloctonia do tipo litológico empregado para a sua
produção em relação à situação geológica local do sítio arqueológico. Exemplos desta presença
discordante são os artefactos em sílex em abrigos sob rocha com substrato calcário ou de objec-
tos em quartzito em sedimentos de vertente ou eólico. Só num dos casos observados — o do
sítio neolítico de Lugo di Grezzana (vide abaixo) — o sílex está presente no sistema sedimen-
tar local, apresentando porém o sílex natural claras diferenças para com o sílex usado nos arte-
factos, nomeadamente na alteração (além doutras características ilustradas abaixo). No sítio de
Lugo, as peças talhadas estão compostas por sílex micro- ou criptocristalino que não patenteia
qualquer alteração ou meteorização (Fig. 3-8c e Fig. 3-8d), enquanto que os fragmentos natu-
rais podem apresentar alteração variável, até atingir graus significativos (Fig. 3-8e e Fig. 3-8f).
FIG. 3-8– Para as indicações gerais vide Fig. 3-7. (a) Artefacto lítico composto por sílex microcistalino, muito provavelmente uma
lâmina microlítica cortada em sentido transversal relativamente ao seu eixo. Na micrografia, o lado superior corresponde à face
dorsal do objecto, como é visível pela presença de nervuras, enquanto que o lado inferior é a face ventral, caracterizada pelo
perfil côncavo regular e contínuo. Notem-se os grãos de quartzo embalados no material fino circundante ao artefacto. La
Cativera; TS AC2B; ref. ac203; l = 2 mm; PPL; imagem orientada obliquamente (as cores anómalas de interferência devem-se à
elevada espessura da lâmina delgada). (b) Artefacto lítico caracterizado pela presença de uma densa rede de microfracturas com
perfil ondulado e curvilíneo. La Cativera; TS AC3B; ref. ac327; l = 2 mm; PPL. (c) Artefacto lítico, provavelmente uma lâmina
microlítica cortada quase longitudinalmente. Notem-se: o delineamento do contorno; a ausência de alteração ao longo dos
bordos do objecto; a cor escura do material fino, devido à presença de matéria orgânica finamente distribuída; o revestimento
argiloso no poro em baixo, à esquerda da imagem. Lugo di Grezzana; TS LG04; ref. lg0407; l = 2 mm; PPL; orientação oblíqua.
(d) Mesma imagem da fig. 8c, mas em XPL, que permite averiguar a composição petrográfica do artefacto (sílex criptocristalino).
Lugo di Grezzana; TS LG04; ref. lg0408; l = 2 mm; XPL; orientação oblíqua. (e) Pormenor do bordo de um fragmento de sílex
natural, caracterizado pela presença de uma faixa de alteração opaca ao longo do seu bordo exterior. Lugo di Grezzana; TS LG08;
ref. lg0809; l = 1 mm; PPL. (f) Mesma imagem da fig. 8e, mas em XPL, o que permite averiguar a composição petrográfica do
objecto (sílex microcristalino). Lugo di Grezzana; TS LG08; ref. lg0810; l = 1 mm; XPL. (g) Pormenor do bordo de artefacto
lítico, com limite exterior extremamente abrupto e sem qualquer alteração (ampliação do artefacto ilustrado na fig. 9f). Riparo
Dalmeri; TS RD24A; ref. RD24A04; l = 1 mm; PPL; orientação oblíqua. (h) Mesma imagem da fig. 8g, mas em XPL; o
artefacto lítico revela-se como composto por sílex microcristalino. Riparo Dalmeri; TS RD24A; ref. RD24A05; l = 1 mm; XPL;
orientação oblíqua.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
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Todos os artefactos descritos em lâmina fina não apresentam evidência de alteração (vide tam-
bém Figs. 3-8a, 3-8g, 3-8h e 3-9f), mas é evidente que o critério não pode ser generalizado, sendo
que em situações diferentes das analisadas ou em contextos cronológicos anteriores ao Paleo-
lítico superior os artefactos talhados poderão ter sofrido processos de alteração mais ou menos
intensos.
Em relação à forma (bidimensional) observada em lâmina delgada, os artefactos em
pedra lascada apresentam-se com aspecto tabular ou achatado (por exemplo, Fig. 3-8a e
3-8c). Outros parâmetros morfológicos, como a presença de cristas ou nervuras num dos
lados do objecto (a face dorsal) e de ângulos muito agudos nas extremidades, permitem por
vezes caracterizar de forma clara o objecto, evidenciando assim uma morfologia que reflecte
aquela dos produtos de debitagem que qualquer arqueólogo pode reconhecer (um exemplo
é ilustrado na Fig. 3-8a).
Outros atributos morfológicos são típicos (Fig. 3-8 – excepto 3-8e e 3-8f – e Fig. 3-9f),
como: o baixo grau de rolamento, com formas angulosas ou muito angulosas; a superfície
lisa (em termos de surface roughness); o limite exterior muito abrupto e caracterizado por um
contraste significativo entre o objecto e a matriz adjacente; o delineamento direito ou mais
ou menos arqueado dos bordos externos (vide Bullock et al., 1985 e Stoops, 1986 para a ter-
minologia aqui utilizada).
Ocasionalmente observaram-se características adicionais, como a presença de uma
densa rede de microfracturas, por vezes com delineamento curvo (Fig. 3-8b), que pode estar
relacionada com o impacto térmico (combustão) dos artefactos. Outra característica obser-
vada ocasionalmente é a existência de subtis revestimentos de óxido ferro-manganesiano ao
longo do bordo exterior da peça. Esta evidência interpretou-se, em sítios do Paleolítico
superior e do Mesolítico, como derivada da utilização de óxidos amorfos para curtir a pele
(Bergadà, 1998), mas pode também estar relacionada com o aquecimento por temperatu-
ras superiores a 250 oC, que produz efeitos idênticos em grãos de quartzo (Wattez, 1992,
p. 213; Angelucci, 2002a - Fig. 3-7c).
O conjunto de características acima mencionadas permite identificar artefactos talhados
em sílex em contextos cronológicos relativamente recentes. Trata-se de uma primeira aproxi-
mação à questão, pois nas lâminas delgadas observam-se frequentemente objectos de difícil
interpretação e que não podem ser incluídos na categoria das peças líticas, já que não apre-
sentam o conjunto de características acima descrito. Contudo, o progresso da micromorfolo-
gia e o eventual desenvolvimento de trabalho experimental poderão ampliar os parâmetros uti-
lizados para o reconhecimento destes objectos e aplicá-los a outros tipos litológicos, permitindo
atingir a definição de critérios descritivos para a identificação de artefactos em pedra lascada,
de forma independente do factor litológico ou cronológico.
O Riparo Dalmeri localiza-se no Planalto dos Sette Comuni (Itália), um dos maciços de
natureza calcária que bordam o limite meridional dos Pré-Alpes italianos. Trata-se de um
abrigo sob rocha aberto em calcário margoso, virado para N e situado à altitude de 1240 m.
As escavações realizadas pelo Museu de Ciências Naturais de Trento nos anos ‘90 puse-
ram à luz do dia uma sucessão estratigráfica holocénica e tardiglacial, contendo esta última
evidência de uma fase de ocupação antrópica datada do Epigravettense (entre 11 000 e
11 500 anos BP). A análise da estratificação epigravettense revelou a existência de uma estru-
95
tura de habitação de contorno circular, muito provavelmente uma cabana colocada no interior
do abrigo, com áreas funcionalmente diferenciadas (Dalmeri e Lanzinger, 1991; Bassetti e
Dalmeri, 1995; Bassetti et al., 2001).
Uma das questões principais do estudo geoarqueológico (Angelucci e Peresani, 1996,
2001; Angelucci, 1997b) era, além dos objectivos gerais (processos de formação, reconstitui-
ção paleoambiental, diferenciação dos aportes antrópicos e naturais), a caracterização de even-
tuais áreas de actividade na paleosuperfície epigravettense e a elucidação dos processos de
modificação e de degradação desta superfície. Em particular, durante a escavação identifica-
ram-se, no interior da estrutura habitacional, sectores “vazios” (Fig. 3-9a), ou seja sem a
presença de artefactos ou ecofactos, situação destoante quando comparada com a riqueza do
espólio arqueológico doutras unidades e sectores do sítio. Foi assim iniciado um projecto de
análise geoarqueológica da estratificação, que incluiu a observação de lâminas delgadas da paleo-
superfície e da restante sucessão.
A observação micromorfológica evidencia uma certa ubiquidade nos componentes naturais
que constituem a estratificação tardiglacial do Riparo Dalmeri, facto que foi interpretado como
devido à peculiaridade do microambiente e à relativa uniformidade do sistema sedimentar da
jazida. Todas as lâminas contêm fragmentos heterométricos de calcário proveniente do abrigo,
marcadamente maioritários (vide, por exemplo, Fig. 3-9e), aos quais se associam minerais como,
predominantemente, o quartzo, o feldspato e as micas, sobretudo no calibre do silte e da areia.
As unidades antropizadas são claramente reconhecíveis ao microscópio pela presença
mais ou menos sistemática de outros elementos, a saber: matéria orgânica dispersa no mate-
rial fino (ou seja, abaixo de 2 µm - Figs. 3-9b, 3-9c e 3-9f); carvões de tamanho variável; frag-
mentos heterométricos de ossos, por vezes impregnados por fosfatos amorfos (Figs. 3-9c e
3-9d); ocasionais artefactos líticos (Fig. 3-9f). Os elementos antrópicos são frequentemente orga-
nizados em microcamadas de espessura milimétrica, mais ou menos deformadas (Fig. 3-9e).
As lâminas provenientes da superfície epigravettense (com a excepção da área “vazia”
acima mencionada) caracterizam-se pela elevada quantidade de componentes de origem
antrópica e de substância orgânica, que lhe confere uma cor em geral escura, revelando assim
a natureza eminentemente “cultural” deste sedimento. Pelo contrário, a microestrutura e os
pedocarácteres estão predominantemente ligados à actuação de processos de modificação
sin- e pós-deposicional, revelando amiúde uma estrutura granular (Fig. 3-9f) ou por vezes
laminar, uma desorganização estrutural (Fig. 3-9e) e a presença de pedocarácteres (como cap-
ping, link e revestimentos de dusty clay). Estas características indicam que, após a ocupação, a
superfície antrópica ficou exposta à acção do gelo, que não foi porém tão intensa ao ponto de
provocar o remeximento da estratificação e a desorganização da distribuição espacial.
A situação observada na área “vazia” é diferente daquela acima descrita. Nesta zona apa-
rece uma microsequência organizada e com características peculiares (Fig. 3-9b). A superfí-
cie superior apoia sobre um nível subtil e compacto, constituído por grãos minerais e raros
fragmentos de sílex e de carvão bem triados, no calibre do silte grosseiro e da areia fina, emba-
lados num material fino orgânico e, por vezes, impregnado por fosfatos (Fig. 3-9c e Fig. 3-9d).
Nesta unidade superior, os minerais alongados e os poros — muito escassos — estão orien-
tados paralelamente à superfície. Abaixo desta microcamada podem aparecer unidades que
manifestam a mesma composição, mas mostrando diferenças quanto a frequência relativa dos
diversos componentes (Fig. 3-9b), ou características análogas às unidades mais ricas de con-
tributos antrópicos, embora sem mostrar as mesmas modificações pós-deposicionais (Fig. 3-9c
e 3-9d - para mais informações vide Angelucci e Peresani, 1996).
Ora, a sequência observada nestas lâminas delgadas constitui um típico exemplo de
microfácies antrópica. A composição, a granulometria e a selecção destas microcamadas con-
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(a) (b) (c) (d)
– Para as indicações gerais vide Fig. 3-7. (a) Imagem da paleosuperfície epigravettense do Riparo Dalmeri.
FIG. 3-9
(b) Pormenor da “área vazia” da superfície epigravettense do Riparo Dalmeri. Note-se a organização em dois níveis, sendo o
superior muito fino, compacto, quase sem porosidade, e o inferior composto por material do calibre do silte, com os elementos
alongados ligeiramente orientados paralelamente à superfície superior. Riparo Dalmeri; TS RD19; ref. diapositivo RD19-05; l = 8 mm;
PPL. (c) Pormenor da superfície epigravettense do Riparo Dalmeri. No ponto onde foi recolhida a presente amostra, a
superfície está bem preservada, compactada (provavelmente de forma intencional) e fortemente enriquecida em matéria
orgânica e fosfatos. O fragmento de osso no centro da imagem está parcialmente fosfatizado, como indicado pelas manchas
negras no seu interior. Riparo Dalmeri; TS RD15A; ref. RD15A03; l = 2 mm; PPL. (d) Mesma imagem que na fig. 9c, mas em
XPL. Note-se a cor de interferência muito baixa do osso e o aspecto indiferenciado do material fino, devido à presença de
matéria orgânica e de fosfatos finamente dispersos. Riparo Dalmeri; TS RD15A; ref. RD15A04; l = 2 mm; XPL. (e) Exemplo
de modificações pós-deposicionais que afectaram a superfície epigravettense do Riparo Dalmeri aqui discretamente degradada
e num mau estado de conservação. A imagem mostra dois tipos diferentes de sedimento, com componentes grosseiros
verticalizados (ver o artefacto lítico no lado esquerdo da imagem e os fragmentos de calcário no lado superior e no lado direito).
Estas características são ambas imputáveis à acção do gelo. Riparo Dalmeri; TS RD24A; ref. RD24A10; l = 2 mm; XPL.
(f) Superfície epigravettense do Riparo Dalmeri. O sedimento, muito enriquecido em matéria orgânica, apresenta uma estrutura
complexa, principalmente microgranular, com elevada porosidade, resultando da acção conjunta do gelo, da bioturbação e do
pisoteio antrópico. O artefacto lítico no centro da imagem é o mesmo das imagens das fig. 8g e 8h. Riparo Dalmeri; TS RD24A;
ref. RD24A02; l = 8 mm; PPL; os círculos na parte central da imagem são pequenas bolhas de ar entre a lâmina delgada e a
lamela que a cobre; orientação obliqua. (g) O sedimento da sucessão fluvial de la Cativera, organizado em microcamadas
(no campo apresentam-se como uma laminação muito fina) distinguíveis por variações granulométricas e caracterizado pela
presença de crostas sedimentares (slaking crusts) no topo das micro-sequências individuais. A presença de poros de origem
biológica (como os canais respectivamente no ângulo no topo à direita e no lado esquerdo) indica a acção da bioturbação,
embora moderada, sendo que não conseguiu destruir a organização original do sedimento. La Cativera; TS AC2B; ref. ac208;
l = 2 mm; PPL. (h) Pormenor de um dos níveis arenosos da fig. 9g, que ilustra a composição das areias, formadas por
elementos rolados, de natureza poligénica e com elevada porosidade entre os grãos, devida ao empacotamento dos próprios
grãos na altura da acumulação sedimentar. La Cativera; TS AC2B; ref. ac202; l = 0.8 mm; PPL.
trastam de forma clara com as outras unidades observadas no abrigo. Outros pormenores,
como a compactação e os padrões de orientação, levam a pensar que o depósito que constitui
a massa sedimentar destas amostras da área “vazia” terá sido trazido intencionalmente do exte-
rior para o abrigo, provavelmente a partir de afloramentos de loess. A organização em níveis
diferenciados (Fig. 3-9b) faz lembrar os casos descritos em bibliografia de superfícies de ocu-
pação estruturadas, onde teve lugar a preparação prévia da área e o seu posterior revesti-
mento com tapetes ou esteiras (vide, por exemplo, Gé et al., 1993; Courty et al., 1994). As outras
unidades observadas em lâmina delgada reflectem, pelo contrário, dinâmicas de formação rela-
cionadas com o processamento de alimentos, com a acumulação de resíduos orgânicos e
inorgânicos (embora se observe uma relativa estabilidade da superfície, que indicaria também
um processo de remoção dos resíduos - Fig. 3-9c e 3-9d), com a debitagem e com a incorpo-
ração de matéria orgânica por pisoteio. A área vazia representaria portanto um sector da pale-
osuperfície intencionalmente afeiçoado e deixado livre (ou, pelo menos, periodicamente
limpo), permitindo interpretá-la como uma área de circulação ou de repouso no interior da
97
estrutura de habitação. As propriedades físicas destas unidades, em particular a compactação
e a granulometria, terão proporcionado uma menor susceptibilidade aos processos de modi-
ficação pós-deposicional, permitindo a sua boa conservação, ulteriormente favorecida pelo
rápido enterramento da estratificação epigravettense.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
98
aportes antrópicos, comparativamente às situações reflectidas nas lâminas delgadas prove-
nientes das unidades sobre- e subjacentes.
À escala microscópica reconhece-se assim que a sequência fluvial tardiglacial foi truncada
pela activação dos processos de erosão, nomeadamente por mecanismos de escorrência super-
ficial e de movimentação em massa, que retomaram parcialmente os mesmos sedimentos.
Os processos de erosão continuaram durante o Dryas Recente e, correspondendo ao limite Plis-
tocénico - Holocénico, regista-se uma nova fase de erosão moderada. Paralelamente, os pedo-
carácteres indicam condições climáticas tendencialmente mais frias e com disponibilidade
hídrica no sistema (assim como o provável desaparecimento parcial da cobertura vegetal). Esta
situação só mudará a partir do início do Holocénico, quando aparecem as primeiras claras ten-
dências climáticas xéricas, ligadas à instauração de condições mediterrâneas.
Este registo sedimentar foi interpretado, do ponto de vista morfodinâmico, como resul-
tante do encaixe do Rio Gaià, processo que levou à reactivação das vertentes para o reequilí-
brio do sistema de fundo de vale/encosta, tendo chegado ao equilíbrio só no Holocénico
médio. A oscilação climática do Dryas Recente ficou assim registada nas assinaturas sedi-
mentares e pedogenéticas do sítio, embora à escala microscópica, representando uma fase de
“crise” ambiental que coincide com uma significativa diminuição da presença antrópica no
abrigo.
99
(silte e areia, além da argila) consequentemente ao colapso da estrutura do solo. Ora, meca-
nismos deste tipo podem dever-se exclusivamente ao periódico desaparecimento do manto vege-
tal e à ausência de cobertura que pudesse proteger a superfície superior do solo da infiltração
maciça de água. Tais efeitos são normalmente imputados ou à acção do gelo ou ao impacto
antrópico. Considerada a localização do sítio, a sua cronologia e a ausência doutras evidências
de crioturbação, é possível descartar a hipótese que tais elementos pedogenéticos derivem da
acção do gelo, ficando assim apenas a hipótese que se devam à acção humana.
Estes tipos de pedocarácteres já foram descritos na bibliografia micromorfológica como
“agricutans” (vide, exemplo, Courty et al., 1989, p. 131) e a laminação das argilas que constituem
os revestimentos foi interpretada como devida à desflorestação periódica de áreas específicas,
talvez como resultado de práticas agrícolas como a do slash-and-burn, como já documentado
noutros sítios da Itália nordeste (Ottomano, 2000), ou de outras práticas que incluíam a
mobilização agrícola durante ciclos anuais.
Ao mesmo tempo, as primeiras coluviões que truncam e cobrem directamente as estru-
turas relativas às ocupações neolíticas antigas, além de derivarem da erosão de solos preexis-
tentes, contém pedorelicts (Brewer, 1976), ou seja fragmentos de solos resedimentados.
O quadro evidenciado pela micromorfologia, fornece assim a evidência de que os grupos
neolíticos que ocuparam o sítio de Lugo di Grezzana realizaram práticas agrícolas à superfí-
cie do paleossolo então exposto e sugerem que estas mesmas actividades antrópicas levaram
à desestabilização da encosta, com o início dos processos de erosão e a consequente destrui-
ção parcial e o enterramento das estruturas antrópicas neolíticas. A evidência estratigráfica e
as datações disponíveis colocam o início destes processos a aproximadamente 6500 BP
(Improta e Pessina, 1998), fornecendo assim uma das mais antigas provas de significativo
impacte antrópico na paisagem.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
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(a) (b) (c) (d)
– Para as indicações gerais vide Fig. 3-7. (a) Pormenor do limite inferior da camada arqueológica C1, onde se reconhecem,
FIG. 3-10
no fundo matricial, fragmentos redepositados de sedimento fluvial, um dos quais (no ângulo do topo direito) mostra polaridade
invertida (comparar este fragmento com o sedimento fluvial in situ na fig. 9g). La Cativera; TS AC4; ref. ac408; l = 8 mm; PPL.
(b) Pormenor de um dos fragmentos de sedimento fluvial da fig. 10a. La Cativera; TS AC4; ref. ac410; l = 2 mm; PPL.
(c) Revestimento complexo no interior de um poro de origem biológica (muito provavelmente um canal cortado em sentido
transversal). O pedocarácter compõe-se de duas gerações diferentes de revestimentos, uma (a exterior) de argila microlaminada
do tipo dusty clay e a outra (a interior) de argila inter-estratificada com silte e ocasionais grãos de areia muito fina. Lugo di
Grezzana; TS LG04; ref. LG0403; l = 2 mm; PPL; orientação oblíqua. (d) Pormenor do revestimento da fig. 10c. Lugo di
Grezzana; TS LG04; ref. LG0405; l 20x; PPL; orientação lateral. (e) Aspecto geral da massa constituinte um elemento estrutural
de adobe. Os componentes são heterogéneos do ponto de vista dimensional, indicando uma selecção escassa, não havendo
qualquer forma de orientação preferencial. A porosidade é relativamente elevada, sugerindo a ausência
de compressões orientadas no momento da produção do adobe. Alguns dos poros (um em baixo à esquerda e outro no lado
superior) são pseudomórficos de material orgânico, provavelmente palha. Calvatone - Bedriacum; TS CLV3; ref. CLV31; l = 8 mm;
PPL. (f) Mesma imagem da fig. 10e, mas em XPL, o que permite averiguar a presença de um enriquecimento
pós-deposicional de carbonato de cálcio, indicado pelos revestimentos calcíticos nos poros e pela presença de micrita (calcita
cristalizada com cristais de tamanho na ordem dos mícrones) dispersa na massa. Calvatone - Bedriacum; TS CLV3; ref. CLV32;
l = 8 mm; XPL. (g) Fragmento de cerâmica na massa utilizada para a produção de adobe (chamota). Note-se a cor vermelha
intensa, homogénea do material fino. Calvatone - Bedriacum; TS CLV8; ref. CLV81; l = 2 mm; PPL; orientação oblíqua.
(h) Mesma imagem que na fig. 10g, mas em XPL. O material fino do fragmento cerâmico apresenta-se aqui indiferenciado
(como é bem visível comparando com o fundo matricial circundante), o que, juntamente com a cor observada em PPL, indica
uma completa separação do óxido de Ferro devido ao processo de cozedura da cerâmica. Calvatone - Bedriacum; TS CLV8;
ref. CLV82; l = 2 mm; XPL; orientação oblíqua.
casos observados, foi utilizado sem qualquer processo de selecção (crivagem nem decantação
- Figs. 3-10e e 3-10f), pois a granulometria e o grau de triagem textural são iguais às do sedi-
mento local (enquanto que os materiais usados para a preparação de pavimentos e revesti-
mentos em terra revelam uma cuidadosa selecção granulométrica). Na preparação da massa
para o adobe adicionaram-se elementos carbonatados de origem exótica (provavelmente már-
more triturado dos Pré-Alpes) e fragmentos de chamota (cerâmica moída - Figs. 3-10g e 3-10h).
Além disso, a morfologia da porosidade presente no adobe demonstra também a utilização de
elementos orgânicos, como a palha (Fig. 3-10e), fragmentos de cana e de restos de conchas.
A massa assim formada não foi sujeita a um manuseamento prolongado, sendo que a homo-
geneidade do conjunto é escassa. Sobretudo, a organização estrutural não evidencia orientação
preferencial ou compactação (Fig. 3-10e), levando assim a interpretar o elemento estrutural ana-
lisado como um bloco de adobe do tipo conhecido tecnicamente como torchis (Adam, 1984).
Neste caso, a observação micromorfológica permite fornecer assim informações que
não teriam sido possíveis de deduzir doutra forma: a proveniência local da matéria-prima, a
ausência de selecção ou preparação, a utilização de desengordurantes minerais e ligantes
orgânicos, a técnica de colocação do material dos muros, que foi edificado em blocos de adobe
e não como pisée.
101
Micromorfologia em Portugal
BIBLIOGRAFIA
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
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103
Laboratório de Paleoecologia
e Arqueobotânica
| O Laboratório de Paleoecologia e
capítulo 4
Arqueobotânica – Uma visita guiada aos seus
programas, linhas de trabalho e perspectivas.
❚ JOSÉ EDUARDO MATEUS ❚ PAULA FERNANDA QUEIROZ ❚ WIM VAN LEEUWAARDEN ❚
Introdução
O Território Antigo
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
106
A tradicional (e institucional) oposição entre ciências “sociais” e “naturais” tem vindo a
causar dificuldades ao estudo integrado do território humano simultaneamente como artefacto
e ecossistema. Caberá precisamente à Arqueologia contribuir para este objectivo dado que Cul-
tura Material é antes de mais Estrutura, Organização e Função do espaço dos homens.
Neste sentido recorremos ao conceito de “eco-transformação” na explicação da organi-
zação espacial do território: o desvio, em termos estruturais, informacionais e energéticos, do
ecossistema artefactuado relativamente ao ecossistema original, não actuado. Reflecte o “grau
de artefactualização”, ou seja, de impacte humano “inscrito de forma espacialmente organi-
zada”, nos biótopos e biocenoses. Considerar este “factor ecológico”, ou “atributo cultural”,
implica reconhecer um conjunto diversificado de variáveis do meio afectadas, traduzindo-se
espacialmente num sistema zonado de paisagem, onde padrões de decrescente impacte
humano se exprimem de forma discreta (não-contínua) (Mateus, 1990).
A natureza discreta da distribuição desta “eco-transformação” evoca naturalmente uma
tipologia de partição do território, sugerida pelo saber tradicional. Neste modelo de zonação
“eco-territorial” reconhecem-se cinco unidades eco-produtivas:
1. Território doméstico (da casa) – zona de máximo impacte, constituída por habitats
“artificiais” onde os subsistemas abióticos (clima, hidrótopo, geoforma, solo) estão pro-
fundamente transformados e onde ocorre uma redução drástica da biocenose e seu
confinamento a biótopos artificiais (vasos, canteiros, estábulos);
2. Território adjacente (da horta) – zona de elevado impacte, associado à agricultura
intensiva, com um elevado índice de eco-transformação do biótopo (terraplanagens,
construção de muros e cercas, sistema de rega e aplicação de nutrientes) e da bioce-
nose (redução artificial drástica das populações não-culturais – daninhas e “infestan-
tes”);
3. Território próximo (do campo) – zona de forte impacte, associado à agricultura exten-
siva, zona das searas e pastagens, com uma transformação moderada do biótopo, e
extensiva (menos intensiva) da biocenose original;
4. Território periférico (do monte) – zona de impacte menos acentuado, correspondendo
aos matos de carácter seminatural onde a transformação do biótopo e da biocenose é
limitada, caracterizada essencialmente pela expansão (artefactualmente induzida) de
comunidades secundárias de maior produtividade líquida, exploradas e mantidas em
regime de pastoreio e fogo (semi)controlado;
5. Território remoto (da mata) – zona de menor impacte, caracterizada pelos ecossiste-
mas perto da situação “clímax” ou “pré-clímax” (tipicamente a floresta natural, os mata-
gais palustres ou “secos”, os caniçais naturais,...). É ainda um território produtivo
(fauna e flora selvagem comestível, madeira, folhada para estrume,...).
Sublinha-se assim a ideia de que os territórios de hoje, como os de outrora, não são cul-
turalmente homogéneos, mas centrípetamente zonados. Embora este esquema se constitua
como uma generalização de um território de tipo “rural tradicional”, serve também uma ideia
evolutiva (Mateus, 1990). De facto, reconhecemos nesta zonação espacial os traços da própria
macro-zonação temporal da evolução das sociedades humanas:
• Território Remoto único (R) característico do Paleolítico;
• O par Remoto-Periférico (RP) característico do Mesolítico;
• O trio Remoto-Periférico-Próximo (RPP) dominante durante o Neolítico;
• O quarteto Remoto-Periférico-Próximo-Adjacente (RPPA) típico da Idade do Bronze;
• Finalmente, a emergência do quinteto Remoto-Periférico-Próximo-Adjacente-Domés-
tico (RPPAD) com o advento das sociedades histórico-urbanas.
O LABORATÓRIO DE PALEOECOLOGIA ARQUEOBOTÂNICA. UMA VISITA GUIADA AOS SEUS PROGRAMAS, LINHAS DE TRABALHO E PERSPECTIVAS
107
As Unidades de Paisagem e os seus Registos
No centro das atenções está o pólen (Fig. 4-1), uma estrutura de grande complexidade
morfológica, estrutural e química, representando bem “a outra face” dos seres vegetais – o
“(micro)gametófito” contrapondo-se na alternância de gerações ao “esporófito”, geralmente
mais visível, objecto tradicional da botânica. O pólen é uma das estruturas mais perenes do
mundo vivo graças à inércia química da sua parede — a exina — onde a esporopolenina lhe
assegura uma quase indestrutibilidade em meio anaeróbio. Esta característica, aliada ao facto
de ser uma estrutura produzida anualmente em cada paisagem em números astronómicos (da
ordem do milhão de grãos por flor) faz do pólen o fóssil mais comum do “registo geológico”.
A sua capacidade de dispersão na atmosfera e hidrosfera, a sua resistência, a sua quase omni-
presença, quando em presença de territórios onde ocorram lagos e pântanos permanentes —
bacias de microestratificação anual de películas de turfa e lodo — permitem com realismo a
analogia da “imagem polínica das antigas paisagens”, obtida assim através de uma espécie de
máquina fotográfica do tempo (vide Fig. 4-7).
As “imagens da paisagem” na superfície da turfa, do lodo, dos solos, que o tempo fossi-
liza, são enriquecidas por outros microfósseis (Fig. 4-2) — micro-estruturas resistentes de fun-
gos, algas, e invertebrados — frequentes nos sedimentos arqueológicos e palustres, e que nos
falam sobretudo das condições dos locais de fossilização onde habitaram.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
108
Os frutos e sobretudo as sementes (Fig. 4-3) com os seus pericarpos resistentes, para pro-
tecção quando da dispersão pelo vento, a água ou o transporte animal, permitem maior deta-
lhe na reconstituição, acrescentando maior precisão taxonómica, ao conjunto fóssil. O seu
papel na alimentação humana, na cadeia de actividades de recolecção, colheita, armazena-
mento, processamento, consumo, justificam uma atenção privilegiada.
Finalmente, os próprios tecidos lenhosos, as madeiras (Fig. 4-4), conservadas em meio
palustre anaeróbio, ou pela carbonização nas fogueiras e fogos acidentais, constituem uma
importante fonte de informação, particularmente da utilização dos recursos vegetais.
O Pólen
Columelas
Abertura da camada
externa da exina
(ecto-colpo)
Semi-tecto
Estrutura da parede
(exina) vista em corte
Abertura da camada
interna da exina Camada externa (sexina)
(endo-poro)
FIG. 4-1 – O Pólen. Exemplo de um grão de pólen (Cistus populifolius – esteva) e algumas características da sua parede (exina).
O LABORATÓRIO DE PALEOECOLOGIA ARQUEOBOTÂNICA. UMA VISITA GUIADA AOS SEUS PROGRAMAS, LINHAS DE TRABALHO E PERSPECTIVAS
109
Microfósseis não Polínicos
Microfósseis
identificados
no perfil
sedimentológico
Invertebrados Invertebrados Invertebrados de Figueira
LP21: pelo de LP17A: “meio- LP24: espermatóforo de Baixo.
MICROFOTOGRAFIAS
invertebrado (x600) -ovo” (x300) de Copepoda (x1000) MO: J.E. MATEUS
– Microfósseis não polínicos. Alguns exemplos de esporos de algas, esporos de fungos e micro-estruturas de origem
FIG. 4-2
animal.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
110
Frutos e Sementes
1 2 3
6. Azeitona, Castelo de
Mértola, Islâmico;
FIG. 4-3 – Frutos e sementes carbonizados, conservados em sítios arqueológicos. Alguns exemplos.
O LABORATÓRIO DE PALEOECOLOGIA ARQUEOBOTÂNICA. UMA VISITA GUIADA AOS SEUS PROGRAMAS, LINHAS DE TRABALHO E PERSPECTIVAS
111
Madeira e Carvão
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
112
Sete Linhas de Trabalho
Os lagos, pântanos e turfeiras (vide Fig. 4-6 e 4-7), constituem por excelência os
“arquivos naturais da memória ecológica” dada a sua capacidade contínua de captação e
arquivo do registo de reflexo. O estudo deste registo é particularmente indicado para a
reconstituição do território na sua macro-escala e diversidade eco-produtiva — principal
objectivo do programa ARQUIVOS NATURAIS DA MEMÓRIA ECOLÓGICA que visitaremos
mais à frente.
A contínua sedimentação e alagamento caracterizam estas bacias naturais, localizadas
em geral fora dos povoados (em território remoto, periférico, ou próximo). No entanto
estas mesmas circunstâncias podem ocorrer artificialmente nos espaços domésticos e adja-
centes, sob a forma de poços, açudes, valas de drenagem, aquedutos, esgotos, vazadouros.
Estes ARQUIVOS ORGÂNICOS DO ESPAÇO DOMÉSTICO E ADJACENTE dão corpo à segunda
linha de trabalho deste laboratório.
Para além destes 2 tipos de contextos, onde poderemos falar de verdadeiras séries
temporais de conjuntos arqueobotânicos bem conservados, a evidência torna-se em geral
fragmentária e muito descontínua. A preservação da matéria orgânica morta torna-se
impossível ao ar livre, em solos arejados (aeróbios), ou sujeitos a processos de oxidação.
O problema essencial é o da bio-degradação, promovida por bactérias, fungos, e micro-
invertebrados. Outro aspecto chave é o da falta de um mecanismo de incorporação con-
tínua dos conjuntos em “envelopes matriciais” mais ou menos estanques. Note-se que a
deposição de películas de argila, por processos recorrentes de coluvionamento ou acu-
mulação antrópica pode propiciar condições de preservação algo semelhantes às que
ocorrem em meio húmido — veja-se a linha de acção PALINOLOGIA DE ARGILAS
ARQUEOLÓGICAS.
A carbonização intencional ou involuntária de madeiras, frutos, e sementes, constitui
o grande vector de produção do registo vegetal nos sítios arqueológicos, propiciando mui-
tas vezes a única fonte de informação neste domínio. De facto não é possível consumir car-
bono puro pelo que a bio-degradação não ocorre pura e simplesmente. A interpretação des-
tes conjuntos antracológicos é complexa e mais ou menos limitada, dependendo do tipo de
contexto em questão, como se referirá na apresentação desta linha de pesquisa – ANTRA-
COLOGIA ARQUEOLÓGICA.
Cada uma destas linhas de pesquisa participa de forma complementar para se com-
preender a organização do Território Antigo, dos seus recursos, das suas actividades, con-
tribuindo com o seu “ponto de vista” próprio, espacialmente condicionado. O grande desa-
fio é integrar os resultados no território concreto — esse macro-artefacto singular de natu-
reza histórico-arqueológica — e não apenas evocar tipos teóricos de paisagens. Esta orien-
tação implica uma abordagem directa ao território de hoje. Nele encontramos enraizadas as
entidades eco-fisográficas (biogeocenóticas) de tempo longo, que embora “ainda vivas”
assumem carácter secular e milenar, funcionando como pontos de ancoragem pluritem-
poral do desenvolvimento do território. Esta linha, que designamos por ECO-FISIOGRAFIA
DOS TERRITÓRIOS HISTÓRICOS DE HOJE, suporta-se das técnicas dos Sistemas de Infor-
mação Geográfica (SIG), da tele-detecção, e da ortofotogrametria. O objectivo é essencial-
mente espacializar (mapear) e quantificar.
É em estreita associação com este contexto cartográfico que se desenvolvem estudos de
natureza actualista — a PALEOECOLOGIA EXPERIMENTAL. Aqui se procura “experimentar”
o potencial informativo e fossilífero das unidades de paisagem (hortas, campos, charnecas,
matas…), aspecto que se refere aos processos de formação do registo arqueobotânico. No
O LABORATÓRIO DE PALEOECOLOGIA ARQUEOBOTÂNICA. UMA VISITA GUIADA AOS SEUS PROGRAMAS, LINHAS DE TRABALHO E PERSPECTIVAS
113
essencial avaliam-se as capacidades e constrangimentos da produção e dispersão do pólen,
das sementes, das outras estruturas vegetais (diásporas e fitoclastos), a sua deposição e
incorporação nos sedimentos, a sua decomposição parcial pelos processos de diagénese
pedológica.
Enfim, procura-se calibrar as técnicas de reconstituição paleoambiental, e compreen-
der a tafonomia específica dos arquivos arqueobotânicos naturais e artificiais.
Finalmente os esforços da remontagem. Dada a natureza vestigial, ou imagética dos
seus materiais e resultados, esta arqueologia do território não tem a vocação museográfica
tradicional, centrada nas colecções dos utensílios móveis. Procura-se agora contextualizar
a ruína para além do seu esqueleto de pedra e barro, completá-la, revesti-la de protagonis-
tas orgânicos, entendê-la na sua funcionalidade do dia-a-dia, envolvê-la de reflexos e arti-
culações com o espaço que a cerca, compõe, constringe.
Este espaço-território, de dentro e de fora, é assim também entendido como forma e
drama. É uma geometria da terra e dos protagonistas arquitectónicos e biológicos que a enci-
mam, é uma arrumação de “actores” históricos. Esta preocupação suscita o interesse dos
programas de restituição virtual por computador, utilizando as técnicas de modelação 3D,
que aqui se desenvolvem no âmbito da ARQUEOLOGIA VIRTUAL.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
114
Arqueologia Virtual
Forma e Drama dos territórios Antigos
restituição
do espaço divulgação
e do tempo
multimédia
produção cultural
reconstituição
do território
antigo
calibração
Paleoecologia
de superfície
• Flora e vegetação
• Tafonomia
Palinologia das argilas arqueologicas
do registo • Habitats
• Unidades
Modelos de produção
análise de paisagem
e dispersão polínica
estatística
Chuva polínica local,
Descrição e inventariação
Antracologia Arqueológica
extra-local e regional
Cartografia
Padrões de incorporação Modelação 3D
nos sedimentos
Padrões diferenciais análise
de preservação polínica arqueobotânica
amostragem
tipologia
Acervo Documental
Colecções de referência Catálogos Morfológicos Bases de Dados
FIG. 4-5 – Esquema de articulação das sete linhas de trabalho, na progressão dos momentos de pesquisa.
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115
Linha 1 – Arquivos Naturais da Memória Ecológica (Turfeiras e Lagos)
A prevalência da série
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116
Lagoas e Turfeiras
Contextos privilegiados para uma arqueologia
ecológica dos territórios antigos
O LABORATÓRIO DE PALEOECOLOGIA ARQUEOBOTÂNICA. UMA VISITA GUIADA AOS SEUS PROGRAMAS, LINHAS DE TRABALHO E PERSPECTIVAS
117
Uma Máquina Fotográfica
do tempo e do espaço
FIG. 4-7 – Lagoas e turfeiras: arquivos naturais da memória ecológica; “máquinas fotográficas” do tempo e do espaço antigos.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
118
Sondagem e amostragem
Reconhecimento lito-estratigráfico
O LABORATÓRIO DE PALEOECOLOGIA ARQUEOBOTÂNICA. UMA VISITA GUIADA AOS SEUS PROGRAMAS, LINHAS DE TRABALHO E PERSPECTIVAS
119
Sondagem mecânica
Programa de colaboração – IPA – IGM
FIG. 4-9 – Sondagem mecânicas das longas sequências dos sistemas fluviais.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
120
Sedimentos orgânicos
Turfas e lodos
1. Turfa de esfágno.
Serra da Estrela
2. Turfa de
monocotiledóneas.
Lagoa da Casa, Fernão
Ferro
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121
Datação dos sedimentos orgânicos
Turfas e lodos
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
122
Identificação e contagem
Micro e macrofósseis
O LABORATÓRIO DE PALEOECOLOGIA ARQUEOBOTÂNICA. UMA VISITA GUIADA AOS SEUS PROGRAMAS, LINHAS DE TRABALHO E PERSPECTIVAS
123
Diagramas polínicos
> Os resultados da análise polínica reportando-se a sequências temporais são em geral apresentados
sob a forma de diagramas. Os diagramas polínicos são gráficos constituídos pela justaposição de cur-
vas de frequências de cada tipo polínico ao longo do eixo profundidade ou tempo (ordenada). Podem
ser curvas de valores percentuais (com base num somatório total ou parcial de pólen), ou de concen-
tração absoluta (número de grãos de pólen por unidade de volume ou peso de matriz sedimentar).
A ocorrência de diferentes padrões de chuva polínica (local e regional) introduzem a necessidade
de construção de dois sub-diagramas polínicos — local e regional — agregando respectivamente os
tipos polínicos adscritos à vegetação palustre e aquática das turfeiras, e à vegetação dos solos “secos”
da paisagem envolvente. No caso típico de uma turfeira com cerca de 300 metros de diâmetro, esta flora
polínica da vegetação “seca” envolvente estará representada quase exclusivamente por uma deposição
de tipo regional, constituída por grãos de pólen que subiram verticalmente centenas de metros no seio
da atmosfera, aí posteriormente homogeneizados e depois “chovidos”, reconstituindo assim um con-
junto verdadeiramente representativo de uma área de diversos quilómetros em redor da turfeira.
Por analogia com as zonas ecológicas ou biogeográficas que organizam e dão sentido à des-
continuidade da paisagem, os diagramas polínicos são zonados em faixas horizontais dividindo a
ordenada tempo/profundidade em parcelas. Cada zona polínica incluirá espectros polínicos contí-
guos com um conteúdo polínico homogéneo, separados por limites representativos de momentos
de maior descontinuidade e mudança patenteada nas curvas polínicas (“zona de conjunto-polínico”).
Zonas polínicas são entidades estáticas. A história da vegetação e a evolução ecológica diz respeito
à mudança, à sequência de eventos ecológicos e de vegetação mais ou menos associados, deduzi-
dos a partir do comportamento das curvas polínicas. Por vezes a mudança é muito rápida e marcada.
Neste caso a história da vegetação não se esgota na descrição da sequência de zonas de conjunto-
polínico, ou seja no desfilar ao longo do tempo de paisagens mais ou menos em equilíbrio com os
factores do meio (paisagens clímax). Sob forte pressão das sociedades humanas ou na faixa litoral
de grande dinamismo a história da paisagem é uma sequência por vezes desenfreada de “catástro-
fes” ecológicas de escala e extensão diversas e que em termos polínicos se patenteia por curvas de
comportamento drástico e localizado. Daí a necessidade de se completar a zonação de conjunto-polí-
nico, mais adaptável à paisagem estável, com uma zonação polínica com base em padrões de com-
portamento (“zonas de comportamento”), isolando máximos, mínimos, ou “picos” de ocorrência
específica nas curvas polínicas seleccionadas.
FIG. 4-13 – Diagramas polínicos. Sub-diagramas locais e regionais; zonação dos diagramas.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
124
Diagnosticar, localizar, quantificar
Que comunidades?
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125
Onde?
Responder à questão “onde?” implica coleccionar visões obtidas em vários locais do ter-
ritório, de preferência provenientes de bacias naturais ou contextos arqueológicos ao longo de
gradientes paisagísticos (vide Fig. 4-6). Não esquecer que um lago ou uma turfeira de certa
dimensão regista imagens de uma região muito vasta em seu redor. Mas é no entanto preciso
“focar”, adquirir tridimensionalidade nas visões, estereoscopia (vide Fig. 4-15). Por outro lado,
a diferente capacidade de transporte por parte das diásporas, (ex. pólen leve anemófilo (vector
vento), pólen pesado entomófilo (vector insecto), sementes aladas voadoras (vector vento),
sementes enclausuradas em pesados frutos carnudos (vector animal)) — algo que podemos
conhecer pela Paleoecologia Experimental (ver à frente) — permite decidir da proximidade da
“fonte produtora” quando se interpreta um diagrama polínico ou carpológico de um arquivo
natural. O próprio padrão dinâmico das curvas polínicas e de macrorrestos, que no fundo
reflecte a história das populações vegetais envolventes é muitas vezes expressivo da localiza-
ção destas mesmas populações. Este problema foi sistematizado por C.R. Janssen (Utreque)
na sua definição de chuva polínica local, extra-local, regional, e extra-regional (Janssen, 1973;
1980). Finalmente, a visão complementar do actualismo: Os territórios de hoje ainda mantêm
activos os condicionantes ecológicos, os “nichos”, (mesmo que por vezes “potenciais”) das uni-
dades de vegetação, sobretudo as de carácter mais permanente.
Programas
1.1 Séries de baixa resolução (ao longo dos séculos)
Um dos aspectos desta linha de trabalho diz respeito ao estudo de séries organo-sedi-
mentares longas (longas em termos relativos, leia-se “portugueses”). São séries que cobrem
de forma contínua (ou só ocasionalmente entrecruzada por hiatos), os últimos 8 a 15 milénios.
Trata-se de uma investigação à “macro-escala”, onde se investiga, numa base temporal
mais alargada (sub-secular a pluri-decadal), a sucessão das antigas paisagens e territórios sob
a acção modeladora do clima, do homem, da acção do mar e da dinâmica litoral. É natural-
mente a primeira série de leituras que os diagramas propiciam e encorajam, e que vem pro-
curar colmatar lacunas importantes do conhecimento da evolução natural e cultural do país
ao longo dos séculos. Embora se tenham recentemente iniciado os estudos no Litoral Centro
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
126
Entidades de paleovegetação
As comunidades vegetais do território antigo
I. do pólen à planta
No reconhecimento das unidades de vegetação do
passado — entidades de paleovegetação — ocorrem dife-
rentes momentos no processo de inferência:
• A partir dos tipos polínicos identificados reconsti-
tuem-se as espécies vegetais correspondentes.
• A partir dos estudos geobotânicos das actuais comu-
nidades vegetais — análogos actuais — reconhecem- amieiro (Alnus)
-se padrões de afinidade ecológica entre as espécies.
• A partir dos comportamentos das curvas polínicas ao
longo dos perfis reconhecem-se padrões de afinidade
estratigráfica entre as curvas polínicas.
Da integração destes padrões de afinidades nascem
os grupos polínicos eco-estratigráficos — protótipos das
entidades de vegetação do território antigo (cf. Fig. 4-31). salgueiro (Salix)
< Transecto
esquemático de
vegetação actual na
margem palustre da
Agualva de Baixo.
Descreve-se a
comunidade vegetal
Alnus glutinosa –
Salix atrocinerea. lisimáquia (Lysimachia)
DESENHO: P.F.QUEIROZ
O LABORATÓRIO DE PALEOECOLOGIA ARQUEOBOTÂNICA. UMA VISITA GUIADA AOS SEUS PROGRAMAS, LINHAS DE TRABALHO E PERSPECTIVAS
127
Estereoscopia polínica
A mesma paleovegetação vista por ângulos distintos
> A utilização de vários tipos de bacia, ou de vários cores obtidos no seio da mesma bacia,
mas em locais distintos, permite uma visão estereoscópica pela complementaridade das ima-
gens diferentemente filtradas do mesmo objecto (da mesma entidade de paleovegetação).
Focalizar (discriminar e localizar) as entidades de paleovegetação implica integrar múlti-
plas linhas de evidência com vista a maximizar os testes de afinidade (co-espacial, co-com-
portamental) das curvas polínicas entre si, conforme se prevê da definição enunciada de paleo-
vegetação (vide texto).
Poço do Barbaroxa de Cima (PBC). Região da Bacia de Santo André, litoral norte Vale da Carregueira (VCA). Turfeira
Turfeira interdunar costeira, próxima alentejano. Localização das turfeiras estudadas. fluvial adjacente, mais interior.
da actual linha de costa. FOTO AÉREA DESENHO: P.F.QUEIROZ FOTO AÉREA VOO IGC, 1993
Comparação das curvas polínicas de pinheiro (Pinus), amieiro (Alnus) e carvalho (Quercus) em duas sequências
polínicas estudadas em Santo André – PBC e VCA. Os padrões de desenvolvimento polínico, reflectindo as mesmas
entidades de paleovegetação em locais distintos, são complementares e discriminativos da sua localização espacial.
Veja-se por exemplo a localização óbvia do amial nos sistemas fluviais, com grande representação polínica em VCA
e apenas um reflexo mais afastado em PBC. DESENHO: P.F.QUEIROZ
– Pesquisar a localização espacial das entidades de paleovegetação do território antigo. Estereoscopia polínica; a mesma
FIG. 4-15
paleovegetação vista por ângulos distintos. Um exemplo da região de Santo André no litoral norte alentejano.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
128
Influxo polínico
Métodos quantitativos de análise polínica
FIG. 4-16 – Diagramas de concentração absoluta e de influxo polínico. Métodos quantitativos de análise polínica.
O LABORATÓRIO DE PALEOECOLOGIA ARQUEOBOTÂNICA. UMA VISITA GUIADA AOS SEUS PROGRAMAS, LINHAS DE TRABALHO E PERSPECTIVAS
129
e na Serra da Estrela, a grande maioria destes diagramas provêm do litoral sudoeste, entre
Sines e Lisboa.
Estas leituras esquematizam-se em quatro temáticas (vide figuras respectivas – Fig. 4-18 a
4-21), onde essencialmente se fala de evolução, o devir irreversível das sociedades e das paisagens.
1. A evolução da vegetação natural
2. A evolução litoral
3. A evolução climática
4. A evolução do impacte e da modelação humana
Sob o tema 1 esboça-se a evolução das nossas florestas, matagais, matos, charnecas, e pra-
dos naturais ao longo dos milénios e nos grandes cenários naturais: vales, interflúvios, terras
baixas lacustres e fluviais, dunas litorais, baixas estuarinas, e montanhas. No segundo tema
vislumbram-se os eventos de paleovegetação (frequentemente drásticos) adscritos à faixa lito-
ral e aos seus ecossistemas. A paleohidrologia tem aqui um papel privilegiado. A prevalência
costeira de uma grande parte das turfeiras e sistemas fluvio-lagunares explica a importância
deste tema, que potencia não só uma interpretação paleoclimática dos registos, mas também
uma compreensão da conjuntura ecológica da evolução da ocupação humana do litoral por-
tuguês. No tema 3 integram-se as duas leituras anteriores para ensaiar uma primeira perio-
dização bioclimática do Holocénico (pontualmente estendida ao Tardiglacial). Finalmente no
último tema esquematizam-se e avaliam-se as principais fases de impacte e modelação
humana da paisagem e dos seus territórios, os padrões evolutivos de uso-da-terra.
Projectos incluídos:
TABELA 4-1
Projecto Descrição Financiamento Situação (Referências)
Estudo paleoecológico da Lagoa Análise polínica, de microfósseis não CE-DG XII Material amostrado
da Apúlia, Esposende polínicos, e de macrorrestos da sequência (I.58)
de sedimentos turfo-lodosos (7 m)
Estudo paleoecológico do Valado Análise polínica, de microfósseis não CE-DG XII Material amostrado
de Frades, Nazaré polínicos, e de macrorrestos da sequência
de sedimentos argilo-lodosos (20 m)
Estudo paleoecológico da Lagoa Análise polínica, de microfósseis não CE-DG XII Material amostrado
Clementina, Nazaré polínicos, e de macrorrestos da sequência (I.55)
de sedimentos turfo-lodosos (4.1 m)
Estudo paleoecológico da Lagoa Análise polínica, de microfósseis não CE-DG XII Em realização
do Saloio, Nazaré polínicos, e de macrorrestos da sequência (I.55)
de sedimentos turfo-lodosos (4.8 m)
Estudo paleoecológico da várzea Análise polínica, de microfósseis não CE-DG XII Em preparação
da Foz do Lizandro, Mafra polínicos, e de macrorrestos de uma
sequência de sedimentos turfo-lodosos
Estudo paleoecológico do vale de Alpiarça Análise polínica da sequência Concluído (I.11)
de sedimentos turfo-lodosos (8.9 m)
Estudo paleoecológico do Alfeite, Almada Análise polínica e de microfósseis não CE-DG XII Concluído (I.11; I.27)
polínicos da sequência de sedimentos
argilo-lodosos (3.2 m)
Estudo paleoecológico da Lagoa do Golfo, Análise polínica e de microfósseis Concluído (I.44)
Fernão Ferro, Sesimbra não polínicos de duas sequências
de sedimentos turfo-lodosos (0.9 m) –
GOL1; (0.2 m, na base) – GOL2
Estudo paleoecológico da Lagoa da Casa, Análise polínica, de microfósseis não CE-DG XII Em realização
Fernão Ferro, Sesimbra polínicos, e de macrorrestos da sequência (I.55; I.58)
de sedimentos turfo-lodosos (2.2 m)
[Continua na pág. 132]
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
130
Séries paleoecológicas de baixa resolução
ao longo dos séculos...
DESENHO: P.F.QUEIROZ
FIG. 4-17 – Séries paleoecológicas de baixa resolução; O “filme” da evolução da paisagem e do território século a século.
O LABORATÓRIO DE PALEOECOLOGIA ARQUEOBOTÂNICA. UMA VISITA GUIADA AOS SEUS PROGRAMAS, LINHAS DE TRABALHO E PERSPECTIVAS
131
Evolução da vegetação natural
O exemplo do noroeste alentejano
(Mateus e Queiroz, 2000)
> Este tema de síntese parte em geral do estabelecimento de zonas regionais de conjunto-
-polínico definidas numa base de resolução temporal média a larga nos perfis estudados. Em
foco a sequência de paisagens “regionais” de carácter permanente (através da leitura dos sub-
diagramas “regionais”) sob a influência da transformação climática, da maturação dos solos,
e dos resultados cumulativos da ocupação humana. A palinoestratigrafia do Quaternário
Recente tem por base esta linha de pesquisa.
Pinhal bravo
e manso nos
interflúvios;
carvalhal vestigial
nos fundos de vales;
disclímax de
sobreiro
e matos esclerófilos
(carrascal e urzal);
amial reduzido; fase
salgueiral, choupal, TERMO-MEDITERRÂNEA
freixial e matagais
húmidos nas
margens ripícolas
fase MESO/
SUPRA-MEDITERRÂNEA
fase
Pinhal silvestre nos
SUB-ALPINA
interflúvios;
(ou oro-mediterrânea)
carvalhos (negral?)
e vidoeiros nos
sistemas de vale
DESENHO: J.E.MATEUS
FIG. 4-18 – Evolução da vegetação natural. O exemplo da evolução da vegetação natural e semi-natural no litoral norte alentejano.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
132
Evolução costeira
O exemplo do noroeste alentejano
(Mateus e Queiroz, 2000)
Perfis litológicos das sequências organo-genéticas estudadas no litoral norte alentejano e representação esquemática da
vegetação local dominante. DESENHO: P.F.QUEIROZ
O LABORATÓRIO DE PALEOECOLOGIA ARQUEOBOTÂNICA. UMA VISITA GUIADA AOS SEUS PROGRAMAS, LINHAS DE TRABALHO E PERSPECTIVAS
133
Evolução climática
Evolução da paisagem no noroeste alentejano sob influência climática
(Mateus e Queiroz, 2000)
Hiato por secagem na Terrestrialização nos pântanos fluviais Expansão de taxa termomediterrâneos
sedimentação das turfeiras > Clima mais seco ( ≈ 4150 – 3250 BP)
interdunares (PBC);
Terrestrialização nos Fase de clima mais seco que o actual. Diagrama polínico sumário (curvas seleccionadas)
pântanos fluviais (VCA) – do Vale da Carregueira (Santo André) e perfis litológicos esquemáticos do Vale da
vide Fig. 4-19 Carregueira e do Poço do Barbaroxa de Cima (Santo André). DESENHO: P.F.QUEIROZ
Para além de um esboço de história climática traçado em grandes linhas a partir da evo-
lução da vegetação, torna-se particularmente difícil na Região Mediterrânea reconstituir direc-
tamente estimativas paleoclimáticas de valores de temperatura e insolação com base em dados
palinológicos “proxy”. Há a referir duas grandes limitações na identificação das flutuações espa-
ciais das zonas bioclimáticas: a estrutura profundamente estratificada das matas, que de
alguma forma reproduz verticalmente o que a zonação bioclimática e fitogeográfica estabelece
no espaço horizontal; e a dinâmica de refúgio edafo-microclimático de muitas espécies no com-
plexo mosaico da diversidade de biótopos, para situações reliquiais de natureza catenal.
A estratégia de investigação procura privilegiar a paleohidroclimatologia — sendo a água,
afinal, o factor limitante por excelência neste contexto. A investigação está aqui principalmente
orientada na reconstituição das flutuações do nível freático em locais seleccionados fora da
influência marinha (lagos de montanha e lagoas interfluviais costeiras).
Dado que existem diferentes factores locais de controlo das flutuações de nível freático das
lagoas, de difícil discriminação, a investigação deverá a) incidir em diferentes tipos de lagoas
/ bacias hidrográficas e respectivas ecozonas (margens de lagoa, paúl central...) onde cada variá-
vel-condicionante estará diferentemente representada; b) maximizar o número de variáveis
(paleoecológicas) de resposta (tipos de paleovegetação palustre e regional, associações de fun-
gos, microcenoses planctónicas e não-planctónicas, fácies sedimentar, associação geoquímica
e composição isotópica...); c) maximizar o número de padrões de resposta, estreitando a reso-
lução temporal entre amostras contíguas); d) realizar uma detalhada cronologia absoluta (ou
relativa) de modo a permitir uma correlação inter-cruzada dos dados parcelares (de sítio)
numa grelha compreensível onde as regularidades regionais se tornem evidentes.
FIG. 4-20 – Evolução climática. Exemplo da evolução da paisagem no noroeste alentejano sob influência climática.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
134
Impacte humano
Evolução da paisagem no noroeste alentejano sob influência antrópica
(Mateus e Queiroz, 2000)
> O tema da evolução e história do impacte humano na paisagem regional tem por base a
dinâmica catastrófica da vegetação. Um duplo interesse é considerado — mudanças quer ao
nível da ecologia das baixas palustres quer dos ecossistemas terrestres regionais. Em foco os
eventos de palaeovegetação ligados à sucessão ecológica secundária e a retrogressão antropo-
génica do coberto vegetal, interpretados a partir dos padrões de desenvolvimento das curvas
polínicas. São utilizadas resoluções médias a finas e esquemas de sub-zonação dos diagramas
com base em padrões de comportamento de curvas polínicas com sentido indicador.
DESENHO: J.E.MATEUS
– História do impacte humano na paisagem. O exemplo da evolução do território no noroeste alentejano sob influência
FIG. 4-21
antrópica.
O LABORATÓRIO DE PALEOECOLOGIA ARQUEOBOTÂNICA. UMA VISITA GUIADA AOS SEUS PROGRAMAS, LINHAS DE TRABALHO E PERSPECTIVAS
135
TABELA 4-1 (cont.)
Projecto Descrição Financiamento Situação (Referências)
Estudo paleoecológico da Estacada, Análise polínica da sequência de Concluído (I.3; I.5; I.44)
Apostiça, Sesimbra sedimentos turfo-lodosos (2,4 m) – EST
Estudo paleoecológico da Apostiça, Análise polínica e de microfósseis não CE-DG XII Concluído (I.17; I.27;
Sesimbra polínicos da sequência de sedimentos I.44)
turfo-lodosos (7,4 m) – APO
Estudo paleoecológico do Amial, Análise polínica e de microfósseis não CE-DG XII Concluído (I.27; I.42)
Apostiça, Sesimbra polínicos da sequência de sedimentos
turfo-lodosos (6 m) – AMI
Estudo paleoecológico da Lagoa Análise polínica, de microfósseis não Material amostrado
dos Cachopos, Alcácer do Sal polínicos, e de macrorrestos da sequência
de sedimentos turfo-lodosos (3,4 m)
Estudo macropaleobotânico da Lagoa Análise dos macrorrestos vegetais CE-DG XII Em realização (I.55)
Travessa, Carvalhal, Grândola da sequência de sedimentos turfo-lodosos
(8.6 m) – LT1
Estudo paleoecológico da Lagoa Travessa, Análise polínica da sequência Concluído (I.2; I.6; I.12)
Carvalhal, Grândola de sedimentos turfo-lodosos (8,6 m) – LT1
Estudo paleoecológico da Figueira Análise polínica e de microfósseis não Concluído (I.12)
de Baixo, Carvalhal, Grândola polínicos da sequência de sedimentos
turfo-lodosos (3,9 m) – FIG
Estudo paleoecológico do Monte Análise polínica e de microfósseis não CE-DG XII Concluído (I.27; I.41)
dos Cantos, Melides, Santiago do Cacém polínicos da sequência de sedimentos
turfo-lodosos (3,6 m) – MCA
Estudo paleoecológico da barra da Lagoa Análise polínica e de microfósseis não CE-DG XII Concluído (I.17; I.27;
de Melides, Santiago do Cacém polínicos de amostras de material orgânico I.44)
da estratigrafia do cordão dunar
vestibular- MEL
Estudo paleoecológico do Poço Análise polínica, de microfósseis não Concluído (I.44)
do Barbaroxa de Cima, Santo André, polínicos, e de macrorrestos da sequência
Santiago do Cacém de sedimentos turfo-lodosos (3,7 m) – PBC
Estudo paleoecológico do Poço do Análise polínica e de microfósseis não CE-DG XII; Em realização
Barbaroxa de Baixo, Santo André, polínicos da sequência de sedimentos FCT (I.39)
Santiago do Cacém turfo-lodosos (3,8 m) – PBB
Estudo paleoecológico do Vale Análise polínica e de microfósseis não Concluído (I.44)
da Carregueira, Santo André, Santiago polínicos da sequência de sedimentos
do Cacém turfo-lodosos (3 m) – VCA
Estudo paleoecológico da Ribeira Análise polínica, de microfósseis não CE-DG XII Em conclusão
de Moinhos, Sines polínicos, de macrorrestos vegetais, (I.40; I.48)
e malacológica da sequência de sedimentos
turfo-lodosos (8 m) – MOI
Estudo paleoecológico da Várzea Análise polínica da sequência de Concluído
da Quarteira sedimentos turfo-lodosos (4,3 m)
Estudo paleocológico do sapal de Castro Análise polínica, de microfósseis não FCT Em preparação
Marim polínicos, e de macrorrestos de uma
sequência argilo-lodosa
Apenas num único caso (Diagrama da Lagoa Travessa II) se ensaiou uma média resolu-
ção com vista a uma aproximação à dinâmica histórica, mais perto da história ecológica e eco-
nómica das sociedades (desenvolvimento, estabilidade, declínio, continuidade, ruptura…) e dos
seus padrões de ocupação do espaço. Trata-se de um ensaio virtualmente correlacionável com
a periodização cultural estabelecida pela Arqueologia, e que urge ser replicado em outras bacias
da região (vide Fig. 4-22).
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
136
Séries paleoecológicas de média resolução
ao longo das décadas...
> O diagrama polínico da Lagoa Travessa 2 é um diagrama de resolução temporal média, com
amostras polínicas separadas entre si apenas de algumas décadas (resolução temporal entre
amostras contíguas entre 15 e 29 anos).
Esta resolução temporal mais fina permitiu uma primeira reconstituição da história dos
padrões de uso da terra e de impacte humano durante a Proto-história e a Época Romana, cujo
esquema de periodização se coaduna de uma forma compatível e expressiva com a periodiza-
ção cultural estabelecida pela Arqueologia dos sítios (Mateus, 1992).
FIG. 4-22 – Séries paleoecológicas de média resolução; A história da paisagem e do território com resolução temporal à década.
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137
Projectos incluídos:
TABELA 4-2
Projecto Descrição Situação (Referências)
Estudo paleoecológico da Lagoa Travessa, Análise polínica e de microfósseis não polínicos de parte Concluído (I.12)
Carvalhal, Grândola da sequência, cobrindo cronologicamente
aproximadamente 1500 a 3200 BP (2.3 m) – LT2
Projectos incluídos:
TABELA 4-3
Projecto Descrição Financiamento Situação (Referências)
Estudo paleoecológico do Centro Análise polínica, de microfósseis não CE-DG XII; Concluído
da Neve, Serra da Estrela polínicos, e de macrorrestos do topo FCT (I.35; I.39; I.43; I.56)
da sequência turfosa (21 cm)
Estudo paleoecológico das Salgadeiras, Análise polínica e de microfósseis não CE-DG XII; Concluído
Serra da Estrela polínicos do topo da sequência turfosa FCT (I.43; I.51; I.56)
(17 cm)
Estudo paleoecológico do Alto Peixão, Análise polínica e de microfósseis não CE-DG XII; Concluído
Serra da Estrela polínicos do topo da sequência turfosa FCT (I.43; I.45; I.51)
(55 cm)
Estudo paleoecológico da Lagoa da Casa Análise polínica e de microfósseis não CE-DG XII; Concluído (I.39; I.40)
(margem Sudoeste), Fernão Ferro, polínicos do topo da sequência turfosa FCT
Sesimbra (22 cm)
Estudo paleoecológico da Lagoa do Golfo Análise polínica, de microfósseis não CE-DG XII; Concluído (I.27)
– "Cladium", Fernão Ferro, Sesimbra polínicos, e de macrorrestos do topo FCT
da sequência turfosa, sob “tussock”
de Cladium mariscus (7 cm)
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
138
Séries paleoecológicas de alta resolução
ao longo dos anos...
> Os estudos polínicos de alta resolução consistem em diagramas cuja resolução temporal
entre amostras contíguas se aproxima ao ano.
Obtemos assim imagens ano a ano, ou de alguns em alguns anos (ou mesmo sazonais),
do desenvolvimento da vegetação regional.
Embora do ponto de vista metodológico, se possam realizar estudos de alta resolução para
qualquer período cronológico (implicando apenas a realização de uma sub-amostragem muito
fina), estes trabalhos têm vindo a ser desenvolvidos especialmente para os últimos séculos, per-
mitindo confrontar os resultados polínicos com séries de registos históricos independentes,
ilustrativos do desenvolvimento da paisagem (dados meteorológicos, informação sobre pro-
dutividade agrícola, fotografia histórica,...). Utilizam-se os métodos de datação por 210Pb.
Para além do interesse histórico-paleoecológico, estas séries permitem testar os modelos
de calibração desenvolvidos pela Paleoecologia Experimental.
Diagrama polínico de alta resolução da Lagoa da Casa (margem sudoeste). Imagem parcial do crono-diagrama (em
ordenadas representam-se os anos de calendário entre 1935 e 1995). Note-se a resolução temporal sub-anual, onde cada
ano está representado por 2 ou 3 amostras. DESENHO: J.E.MATEUS
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139
Linha 2 – Arquivos Orgânicos do Espaço Doméstico e Adjacente
Os sítios chave para aceder ao território antigo são locais de preservação de materiais
orgânicos em séries temporais contínuas e datáveis. Para além dos arquivos naturais já refe-
ridos, são sobretudo parcelas do património construído onde prevalecem condições desfa-
voráveis à bio-degradação pela falta de oxigénio:
• Açudes e barragens antigas
• Poços
• Latrinas, esgotos, valas de despejo
• Entulhos domésticos em meio húmido
• Estruturas de armazenamento
• Repositórios de oferendas votivas de comida
• Estruturas de habitat favoráveis à conservação de vestígios orgânicos
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
140
grandes volumes edificados (claustros de conventos, pátios de castelos) poderão funcionar
como grandes turfeiras, como grandes “máquinas fotográficas” do território envolvente!
Restará ainda algum destes preciosos arquivos, longe das ávidas pás de arqueólogos apenas
interessados em cacos ou de conservadores horrorizados com lodo escuro?
Os segundos contextos (arquivos sujos) falam-nos sobretudo do que se processa e con-
some dentro das habitações, das unidades artesanais/industriais, dos estábulos. Trata-se
de reflexos do território muito distintos da “aura” diaspórica natural que temos referido;
Desta vez são vectores que atravessam o território em direcção oposta — as actividades
humanas de recolecção e colheita. Todo o particularismo é aqui informativo da diversidade
social e económica das parcelas, e, da mesma maneira que a diversidade de bacias natu-
rais é complementar no retrato regional dos “territórios de fora”, a diversidade dos siste-
mas de captação das latrinas domésticas (a montante) às grandes cloacas (a jusante), em
sistemas frequentemente dendríticos, funciona aqui de forma complementar para “os
territórios de dentro”.
Programas
2.1 Lisboa medieval e moderna
Projectos incluídos:
TABELA 4-4
Projecto Colaboração com Descrição Financiamento Situação (Referências)
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141
Arqueobotânica nos vazadouros urbanos
(em meio húmido)
Depósitos argilo-turfosos do sítio da Praça do Município
(Van Leeuwaarden, Queiroz, Mateus, Pimenta e Ruas, 1999, Trabalhos do CIPA, 2)
FIG. 4-24 – Estudos de arqueobotânica do depósito argilo-turfoso do sítio arqueológico da Praça do Município, Lisboa.
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142
2.2 Açudes e barragens
Projectos incluídos:
TABELA 4-5
Projecto Colaboração com Descrição Financiamento Situação (Referências)
Barragem romano- Salete da Ponte Estudo polínico da sequência de depósitos IPA-PNTA Relatório em conclusão
medieval silto-argilosos conservados a montante
de Chocapalhas/Tomar da barragem
Neste programa inclui-se o estudo paleoecológico dos depósitos límnicos acumulados nos
poços, cisternas, aquedutos, lagos e tanques artificiais dos povoados, urbes, e grandes monu-
mentos (fora de Lisboa). Procura-se obter informação sobre a história e evolução da paisagem
(sub)urbana e a organização do uso-da-terra nestes “territórios de dentro”.
A boa preservação do pólen em ambiente límnico (depositado sob água permanente)
potencia aqui uma perspectiva imagética que se procura revelar.
Projectos incluídos:
TABELA 4-6
Projecto Colaboração com Descrição Financiamento Situação (Referências)
Aqueduto Romano Virgílio Correia Dada a matriz areno-siltosa do sedimento IPA-PNTA Concluído (II.37)
de Conímbriga e Pilar Reis não foi viável a realização do estudo
polínico projectado
Paços do Concelho, Guilherme Estudo polínico e carpológico de duas CMTV Concluído
Torres Vedras – poço Cardoso e Isabel amostras do lodo conservado no poço (II.34)
Luna (séculos XIV/XV e XVIII)
Para além dos contextos de Lisboa Antiga, que se individualizaram no programa 2.1,
outras urbes portuguesas serão aqui futuramente centro das atenções.
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143
Arqueobotânica nas barragens
Barragem Romana de Chocapalhas
(Queiroz, Mateus, Danielsen e Mendes, 2003, Trabalhos do CIPA, sn)
Parte do perfil silto-argiloso. Diagrama polínico sumário do perfil da barragem de Chocapalhas. Os tipos polínicos
FOTO: J.P.RUAS identificados foram agrupados em curvas referentes às principais formações vegetais
reconhecidas. Duas diferentes fases no desenvolvimento eco-territorial da região são
patentes no diagrama, porventura de Época Romana e Medieval. DESENHO: P.F.QUEIROZ
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144
Arqueobotânica nos poços
Poço dos Paços do Concelho, Torres Vedras
(Queiroz, Mateus, Mendes e Van Leeuwaarden, 2002, Trabalhos do CIPA, 38)
Sementes
encontradas no
depósito do poço
de Torres Vedras
(barras = 1 mm).
FOTOS: P.F.QUEIROZ
– Estudo arqueobotânico de amostras do depósito sedimentar conservado no poço dos Paços do Concelho de Torres
FIG. 4-26
Vedras.
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145
Projectos incluídos:
TABELA 4-7
Projecto Colaboração com Descrição Financiamento Situação (Referências)
Armadilha de pesca Francisco Alves Identificação dos postes de madeira IPA-CIPA Concluído (II.14)
romana de Silvalde, da estrutura de pesca romana
Espinho
Estaleiro da Ribeira Francisco Alves Identificação de fragmentos de diferentes IPA-CIPA Concluído (II.32)
das Naus, Praça madeiras
do Município, Lisboa
Madeiras na construção Francisco Alves Identificação de fragmentos das madeiras IPA-CIPA Projecto em aberto
naval usadas na estrutura de embarcações (II.2; II.3; II.5; II.6;
II.11; II.7; II.13; II.33)
Programas
3.1 Programas de palinologia arqueológica em sedimentos argilosos
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
146
que não deverá ser demasiado reduzida, quer pela quantificação relativa de classes de pólen com
diferentes graus de susceptibilidade à oxidação (vide Fig. 4-37). Passando este teste ficamos no
entanto com problemas complicados no que se refere à interpretação. Questões relacionadas com
a proveniência e representatividade em termos espaciais do material polínico (como por exem-
plo, podermos estar em presença de uma distorcida sobre-representação de pólen com origem
muito localizada, próxima do ponto de amostragem), terão de ser despistadas sobretudo através
de séries de amostras, e equacionadas caso a caso na interpretação dos resultados.
Projectos incluídos:
TABELA 4-8
Projecto Descrição Financiamento Situação (Referências)
Gruta da Avecasta, Ferreira do Zêzere Análise polínica da sequência estratigráfica IPA-CIPA; FCT Em realização
amostrada no corte da escavação (IV.4; I.51)
e na sondagem mecânica
Embora prevendo uma fraca fiabilidade, dadas as limitações referidas associadas a este tipo
de depósitos oxidados, foram realizadas algumas tentativas de obtenção de concentrações polí-
nicas em sítios arqueológicos de solos areno-siltosos e secos. Utilizam-se métodos laboratori-
ais de “hiper-concentração”, desenvolvidos para “sedimentos pobres em material polínico”. Estes
métodos implicam a utilização de amostras grandes (até dezenas de gramas) e o recurso à sepa-
ração dos grãos de pólen (da fracção silte e areia) por flutuação em líquidos densos.
As concentrações obtidas nos ensaios realizados mostram espectros polínicos altamente oxi-
dados, com concentrações totais baixas e elencos específicos pouco variados e reduzidos a tipos
polínicos com altos teores em esporopolenina e consequentemente muito resistentes à oxidação.
A relação destes espectros com a vegetação envolvente do período em que se depositou
o sedimento analisado torna-se indeterminada.
A lista de projectos que se segue refere maioritariamente depósitos arqueológicos onde
se realizaram ensaios laboratoriais de concentração polínica, mas onde a análise polínica não
foi continuada, perante os precários resultados preliminares obtidos.
Projectos incluídos:
TABELA 4-9
Projecto Colaboração com Descrição Financiamento Situação (Referências)
Abrigo do Lagar Velho, João Zilhão Análise polínica dos depósitos siltosos IPA-CIPA Concluído
Lapedo, Leiria –sepultura e Cidália Duarte da sequência sob a sepultura gravettense (II.36)
Estação neolítica de Teresa Simões Análise polínica dos depósitos IPA-PNTA Concluído (II.24)
S.Pedro de Canaferrim, conservados num dos silos neolíticos
Sintra
Estação arqueológica Francisco Nocete Análise polínica dos sedimentos arenosos Concluído
"La Junta", Espanha e David Calado da estratigrafia arqueológica
Herdade da Sapatoa, Rui Mataloto Análise polínica dos sedimentos silto- IPA-PNTA Relatório em conclusão
Redondo; Évora argilosos do conteúdo de recipientes
(Idade do Ferro)
Quinta romana de Pedro Carvalho Análise polínica dos sedimentos silto- IPA-PNTA Concluído (II.38)
Terlamonte, Covilhã argilosos da fossa identificada na
sondagem2
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147
Palinologia das argilas arqueológicas
Gruta da Avecasta
(Mateus, Queiroz e Pimenta 1997)
Perfil estratigráfico
da sondagem da Gruta da
Avecasta. DESENHO:
J.E.MATEUS
Concentração polínica
de uma amostra.
MICROFOTOGRAFIA MO:
P.F.QUEIROZ.
AVECASTA
camada
12
– Análise polínica dos níveis arqueológicos de matriz sedimentar argilosa e húmida do perfil estratigráfico da Gruta da
FIG. 4-27
Avecasta, Ferreira do Zêzere.
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148
Linha 4 – Antracologia Arqueológica
O resto é carvão...
Numa ecologia optimizada tudo o que morre é reciclado em nova vida, o que sucede em
meios oxigenados onde proliferam ricas associações de micro e macro-organismos devora-
dores. Nestes meios, só a transformação das estruturas vegetais em carbono puro, indigestí-
vel, pela combustão incompleta, nas lareiras, fornos, e incêndios, assegura a sua longevidade.
Aspectos de tafonomia
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149
Programas
4.1 – Conjuntos carpológicos carbonizados em silos e em recipientes domésticos
Neste programa procuramos informação sobre a evolução dos recursos vegetais alimen-
tares das populações humanas e das suas faunas estabuladas, com base no estudo dos restos
dos alimentos armazenados, que se conservaram até hoje por carbonização, muitas vezes invo-
luntária. O conhecimento da natureza económica e ecológica do espaço rural envolvente dos
povoados antigos e das técnicas de exploração agrícola aí utilizadas é o objectivo. Incluem-se
aqui os conjuntos de sementes encontrados em recipientes domésticos, silos e outras estru-
turas de contentorização, para além de outros agregados carpológicos carbonizados, bem
individualizados, cujo contexto estratigráfico e estrutural seja revelador de sincronia e de
uma origem espacial comum (vide Fig. 4-28 e 4-29). Incluem-se ainda neste programa o
estudo de conjuntos de distribuição mais dispersa conservados na matriz de preenchimento
de silos.
Projectos incluídos:
TABELA 4-10
Projecto Colaboração com Descrição Financiamento Situação (Referências)
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
150
Arqueobotânica nos recipientes domésticos
Alcáçova de Santarém
(Queiroz e Van Leeuwaarden, 2001, Trabalhos do CIPA, 11)
pilriteiro (Crataegus ervilha (Pisum sativum) saramago (Raphanus raphanistrum) corriola (Polygonum
monogyna) aviculare)
Frutos e sementes carbonizadas encontradas em dois vasos da Idade do Ferro da Alcáçova de Santarém.
FOTOS: J.P.RUAS E P.F.QUEIROZ
O LABORATÓRIO DE PALEOECOLOGIA ARQUEOBOTÂNICA. UMA VISITA GUIADA AOS SEUS PROGRAMAS, LINHAS DE TRABALHO E PERSPECTIVAS
151
Arqueobotânica nos silos
Convento de S. Francisco de Santarém
(Queiroz, 2001, Trabalhos do CIPA, 17)
papoila (Papaver)
rosmaninho
(Lavandula)
FIG. 4-29 – Estudo arqueobotânico de um silo islâmico do Convento de São Francisco de Santarém.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
152
São objecto de investigação preferencial os restos vegetais carbonizados conservados
em lareiras e estruturas de combustão de sincronia óbvia com o espólio arqueológico dos
sítios (vide Fig. 4-30). Considera-se ainda o estudo de conjuntos de carvões dispersos em
estratigrafias arqueológicas, embora, neste caso, o seu potencial informativo seja menos
valorizado.
Projectos incluídos:
TABELA 4-11
Projecto Colaboração com Descrição Financiamento Situação (Referências)
Abrigo do Lagar Velho, João Zilhão Estudo dos restos vegetais carbonizados IPA-CIPA Em realização
Lapedo, Leiria e Francisco recolhidos na sepultura, nas lareiras (II.35; II.36)
Almeida gravettenses, e nos níveis solutrenses
e proto-solutrenses do "testemunho
pendurado"
Concheiro de S. Julião, Ana Catarina Estudo dos restos vegetais carbonizados IPA-PNTA Concluído (II.31)
Mafra Sousa e Marta recolhidos numa lareira epipaleolítica
Miranda
Sítio arqueológico Gertrudes Estudo dos carvões das estruturas IPA-PNTA Concluído (II.12; II.40)
da Ponta da Vigia, Zambujo de combustão mesolíticas
Torres Vedras e Sandra
Lourenço
No âmbito deste programa pretende-se investigar, através do estudo dos carvões reco-
lhidos nas estações arqueológicas, o uso de materiais lenhosos como fonte de combustível,
como material de construção de estruturas artesanais, de habitações, ou como matéria-prima
na produção de artefactos, por parte das sociedades rurais arcaicas
Procura-se também informação sobre o coberto vegetal na envolvente dos sítios, embora
não esquecendo o carácter parcial da representação dos espectros antracológicos face ao
coberto vegetal, conforme referido. A presença nos conjuntos é sempre reveladora, mas a
ausência de pouco nos serve já que não é verdadeiramente esclarecedora da não-existência das
espécies na região, a menos que se recorra a um número muito grande e verdadeiramente
diversificado, em termos de contexto funcional, espacial e ecológico, de amostras.
Mais uma vez considera-se crucial o estudo tafonómico do registo arqueobotânico, na sua
articulação com as estruturas arqueológicas e estratigrafias identificadas.
Projectos incluídos:
TABELA 4-12
Projecto Colaboração com Descrição Financiamento Situação (Referências)
Sítio neolítico Teresa Simões Estudo dos restos vegetais carbonizados IPA-PNTA Concluído (II.24)
de S. Pedro recolhidos nas estruturas negativas
de Canaferrim neolíticas
Povoado neolítico Rui Boaventura Estudos dos carvões recolhidos IPA-PNTA Concluído (II.39)
de Moreiros 2, na escavação arqueológica (Neolítico)
Arronches, Alentejo
Sítios das Quebradas, António Estudos dos carvões recolhidos IPA-PNTA Concluído (II.27)
Quinta da Torrinha, Faustino na escavação dos 4 sítios arqueológicos
Tourão da Ramila de Carvalho (Neolítico e Calcolítico)
e Fumo, Vale do Côa
(cont.) >>
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153
(cont.)
Povoado calcolítico Patrícia Jordão Estudo dos restos vegetais carbonizados IPA-PNTA Relatório em realização
de S. Mamede, e Pedro Mendes recolhidos na escavação arqueológica
Bombarral
Sítio arqueológico António Carlos Estudos dos carvões recolhidos IPA-PNTA Concluído
da Malhada, Fornos Valera na escavação arqueológica (Calcolítico) (II.16)
de Algodres, Guarda
Sítio arqueológico António Carlos Estudos dos carvões recolhidos na IPA-PNTA Materiais ainda não
da Fraga da Pena, Valera escavação arqueológica (Calcolítico Final) disponíveis
Fornos de Algodres,
Guarda
Povoado fortificado Ana Catarina Estudos dos carvões recolhidos na IPA-PNTA Em realização
do Penedo do Lexim, Sousa e Marta escavação arqueológica (Neolítico Final
Mafra Miranda a Idade do Bronze)
Gruta da Avecasta, Estudos dos carvões recolhidos IPA-CIPA Material em depósito
Ferreira do Zêzere na sondagem arqueológica
Complexo megalítico Victor Estudo dos restos vegetais carbonizados IPA-PNTA Concluído (II.19; II.29)
de Santa Margarida, Gonçalves recolhidos nas antas de S. Margarida
Reguengos
de Monsaraz
Projectos incluídos:
TABELA 4-13
Projecto Colaboração com Descrição Financiamento Situação (Referências)
Necrópole de Vale Jorge Vilhena Estudo de restos vegetais carbonizados IPA-PNTA Concluído (II.30)
Feixe, Odemira recolhidos numa cista da Idade do Bronze
Outeiro dos Castelos de João Senna Estudo dos restos vegetais carbonizados IPA-PNTA Concluído (II.17)
Beijós, Carregal do Sal Martinez recolhidos no cinzeiro de uma fornalha
da Idade do Bronze Final
Quinta da Pedreira, Rio Paulo Félix Estudo dos carvões recolhidos IPA-PNTA Relatório em conclusão
de Moinhos, Abrantes na escavação arqueológica (Idade
do Bronze Final)
Lança do Almonda Identificação da madeira do cabo da lança IPA-CIPA Concluído (II.28)
da Idade do Ferro
Alcáçova de Santarém Ana Margarida Estudo dos carvões recolhidos na IPA-PNTA Em realização
Arruda escavação arqueológica (Idade do Ferro, (II.18)
Romano e Medieval)
Quinta romana de Pedro Carvalho Estudo dos restos vegetais carbonizados IPA-PNTA Concluído (II.36)
Terlamonte, Covilhã recolhidos na estratigrafia arqueológica
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
154
Concheiro de S. Julião
Arqueobotânica
(Queiroz e Van Leeuwaarden, 2002, Trabalhos do CIPA, 33)
Carvão de pinheiro
bravo, corte radial,
traqueídos com
pontuações areoladas
(aprox. X 200).
FOTO: P.F. QUEIROZ
O LABORATÓRIO DE PALEOECOLOGIA ARQUEOBOTÂNICA. UMA VISITA GUIADA AOS SEUS PROGRAMAS, LINHAS DE TRABALHO E PERSPECTIVAS
155
4.5 Utilização das madeiras nas sociedades medievais e modernas
Para além dos objectivos referidos no programa anterior, procura-se neste contexto his-
tórico-arqueológico contribuir para o conhecimento da utilização dos recursos lenhosos em
actividades artesanais e industriais.
Projectos incluídos:
TABELA 4-14
Projecto Colaboração com Descrição Financiamento Situação (Referências)
Castelo de Silves Rosa Varela Estudos das madeiras carbonizadas IPA-PNTA Concluído (II.15)
Gomes de várias estruturas islâmicas
Penedo dos Mouros, Catarina Tente Estudos das madeiras carbonizadas dos IPA-PNTA Relatório em conclusão
Gouveia derrubes das estruturas medievais
São Pedro de Catarina Coelho Estudos dos carvões de várias estruturas IPA-PNTA Relatório em conclusão
Canaferrim, Castelo islâmicas
dos Mouros, Sintra
Povoado da Quinta Nuno Ribeiro Estudo dos restos carbonizados (madeiras, IPA-PNTA Em realização
da Torrinha, Góis frutos e sementes) recolhidos (Alta Idade
Média)
Soengas de Coimbrões, Manuela Estudo dos restos vegetais carbonizados IPA-PNTA Concluído (II.10; II.26)
Vila Nova de Gaia Ribeiro recolhidos nas soengas (sécs. XVIII a XX)
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
156
Programas
5.1 Flora e vegetação
Projectos incluídos:
TABELA 4-15
Projecto Descrição Financiamento Situação (Referências)
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157
Eco-fisiografia do território
Flora, Vegetação, Unidades de Paisagem
Esquema das unidades de vegetação ao longo de um transecto catenal esquemático (do topo da vertente ao fundo de vale). Indicam-se as
unidades de vegetação ocupando a sua zona ecológica específica e os tipos de solos predominantes. Em baixo, as siglas representam os
grupos polínicos (entidades de paleovegetação análogas) correspondentes. DESENHO: J.E.MATEUS
FIG. 4-31 – Eco-fisiografia do território: Flora, vegetação e unidades de paisagem dos territórios actuais.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
158
fotográficas de baixa altitude proporciona a obtenção de DEMs de grande detalhe, compatíveis
com os objectivos de integração espacial de sítios arqueológicos, e dos ensaios de Paleoecolo-
gia Experimental (vide Fig. 4-32).
A partir da geometria pura dos DEMs são extraídos novos objectos cartográficos, novas
camadas de informação, inferindo novos parâmetros quantitativos de natureza eco-fisiográ-
fica (e.g. graus de declive, exposição, insolação e ensombramento potencial, redes virtuais de
drenagem, escoamento, e acumulação de águas). Estes objectos permitem ensaiar modelos
numéricos de integração paisagística das estruturas pedológicas, das comunidades vegetais e
das espécies botânicas, das unidades de uso-da-terra, das estruturas arqueológicas e ainda per-
mitir testar estatisticamente os dados da Paleoecologia Experimental.
Projectos incluídos:
TABELA 4-16
Projecto Descrição Financiamento Situação (Referências)
Modelo digital de terreno Modelo realizado com base nas curvas de nível Concluído
da Lagoa de Albufeira – da carta 1:25000
Plataforma de Fernão
Ferro
Modelo digital de terreno Modelo realizado com base nas curvas de nível IPA-CIPA Concluído (IV.7; IV.8)
do Cabeço da Avecasta – do cadastro
DEM 1
Modelo digital de terreno Modelo produzido por estereofotogrametria IPA-CIPA Concluído (IV.8)
do Cabeço da Avecasta – com base no voo ACEL 1990
DEM 2
Modelo digital do Modelo produzido por estereofotogrametria CE-DG XII; FCT Concluído (I.56; I.61)
transecto Torre – com base no voo USAF, 1958
Candeeira, Serra
da Estrela
Modelo digital do Planalto Modelo de alta resolução produzido por CE-DG XII; FCT Concluído (I.61)
das Salgadeiras, Serra da estereofotogrametria com base no voo de cor real
Estrela FA 1993
O LABORATÓRIO DE PALEOECOLOGIA ARQUEOBOTÂNICA. UMA VISITA GUIADA AOS SEUS PROGRAMAS, LINHAS DE TRABALHO E PERSPECTIVAS
159
Modelação 3D da paisagem e do território
O planalto das Salgadeiras, Serra da Estrela
(Mateus, Queiroz e Van Leeuwaarden, 2003)
> Procura-se produzir modelos digitais de elevação de terreno (DEM) à escala detalhada
(=<1m de resolução de terreno) com vista a permitir ensaiar modelos numéricos de integra-
ção ecológica das comunidades vegetais e das espécies.
A paisagem e o território histórico são assim apreendidos de forma quantitativa, equacio-
nando-se o espaço concreto (não neutral) de estruturas fisiográficas, biológicas e económicas,
historicamente condicionadas.
DEM do planalto das Salgadeiras. Charcos das Clarezas e Salgadeiras, vista virtual de Este para Oeste. Modelo digital de
elevação de terreno produzido por estereofotogrametria, vestido com a fotografia aérea de cor real, voo FA 1993.
FIG. 4-32 – Modelação 3D da paisagem e do território. O exemplo do planalto das Salgadeiras, Serra da Estrela.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
160
Eco-fisiografia do território
Cartografia dos habitats do planalto de Fernão Ferro
(Mateus, Queiroz e Repas, 1999)
Planalto das lagoas de Fernão Ferro, Sesimbra. Cartografia dos habitats realizada à escala 1:25000,
produzida no âmbito da implementação em Portugal da rede NATURA 2000. A imagem à esquerda
representa a imagem base – mosaico de fotografias aéreas de falsa cor (voo ACEL 1990), com
sobreposição de um vector com as curvas de nível (equidistância de 5 metros) e de outro vector
indicando as principais formas de relevo. A imagem da direita corresponde a um conjunto de
vectores sobrepostos referindo-se à cartografia dos habitats palustres e higrófilos. A cartografia foi
produzida por foto-interpretação apoiada em inventários florístico-sociológicos de campo, realizando-
-se a vectorização directa sobre a imagem-base dos polígonos de cada habitat existente no planalto.
– Cartografia das unidades de paisagem e habitats. O exemplo da cartografia dos habitats da região de Fernão Ferro
FIG. 4-33
(Sesimbra).
O LABORATÓRIO DE PALEOECOLOGIA ARQUEOBOTÂNICA. UMA VISITA GUIADA AOS SEUS PROGRAMAS, LINHAS DE TRABALHO E PERSPECTIVAS
161
Projectos incluídos:
TABELA 4-17
Projecto Descrição Financiamento Situação (Referências)
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
162
assim da integração (mais ou menos extensa) das três entidades operatórias – grupos políni-
cos eco-estratigráficos, grupos polínicos eco-topográficos, unidades de vegetação actual.
Os estudos polínicos actualistas procuram compreender e modelar os processos de pro-
dução, dispersão e deposição dos grãos de pólen (e de outras diásporas e fitoclastos) de uma dada
paisagem, formação vegetal ou população botânica. Embora alguns modelos generalistas da dis-
persão polínica tenham sido esboçados, este processo de calibração tem de ser escorado no par-
ticularismo do território concreto, daí o interesse em fazer convergir estudos actualistas e pale-
oecológicos numa dada região. Procura-se interpretar os sinais paleoecológicos em visões rea-
listas do paleo-território qualitativa e quantitativamente. Um bom ajustamento dos resultados
polínicos experimentais aos dados eco-fisiográficos observados (e quantificados através da
linha de acção 5) determina a qualidade da inferência para os ambientes passados a partir dos
modelos de calibração que através da análise numérica serão implementados.
O grande desafio é o de quantificar, mapear, e finalmente fazer reviver, as estruturas eco-
lógicas e funcionais dos antigos territórios, procurando minimizar a subjectividade na inter-
pretação.
Programas
6.1 Monitorização polínica actual: padrões quantificados de produção e dispersão
polínica
Projectos incluídos:
TABELA 4-18
Projecto Colaboração com Descrição Financiamento Situação (Referências)
O LABORATÓRIO DE PALEOECOLOGIA ARQUEOBOTÂNICA. UMA VISITA GUIADA AOS SEUS PROGRAMAS, LINHAS DE TRABALHO E PERSPECTIVAS
163
Aeropalinologia
> O captador polínico de tipo COUR é constituído por um suporte
para painéis quadrangulares de gaze com 20 cm de lado, montado
sobre um catavento, que constantemente orienta os painéis de
captação na direcção do vento. Para estimativas quantitativas da
concentração polínica atmosférica (número de grãos de pólen por
m3 de ar), funciona acoplado a um anemómetro totalizador, que
quantifica a coluna de ar que atravessa o filtro durante o período
de amostragem.
Captador polínico COUR instalado
Para compreender a natureza das “imagens polínicas” de hoje no terraço do Instituto Geofísico
— partilhada pelas suas congéneres do passado — desenvolvem-se do Infante D. Luís. FOTO: J.E.MATEUS
estudos de aereopalinologia que visam monitorizar dia a dia, ou
semana a semana, o pólen do ar e compreender os factores que condicionam a sua quantidade
e diversidade (clima, topografia, calendário fenológico das florações).
Os estudos de caracterização do conteúdo polínico da atmosfera têm vindo a ganhar impor-
tância em vários domínios da investigação científica, e em particular na Paleoecologia, onde a
elaboração de modelos actualistas se torna indispensável para a interpretação dos resultados da
palinologia “fóssil”. Permitem compreender os mecanismos e estratégias de produção e dis-
persão polínica, de diferentes espécies vegetais, e ainda o papel do clima e da topografia no con-
dicionamento destes processos.
Os grãos de pólen são uma das mais importantes fontes de alergias, sobretudo nas cidades,
quando se associam à agressão de outros factores de origem poluente. Os mapas detalhados do
conteúdo polínico atmosférico, sobretudo se realizados de uma forma diária, constituem um ele-
mento essencial do diagnóstico imuno-alergológico.
O conhecimento da sua estreita dependência de factores fenológicos, topográficos e climá-
ticos poderá permitir a construção de modelos de previsão da incidência palino-alergénica,
abrindo lugar à prevenção.
A análise numérica dos dados de concentração polínica diária atmosférica monitorizados em
Lisboa (ordenação canónica) pôs em evidência a relação directa dos factores meteorológicos na
fenologia das espécies vegetais.
Diferentes variáveis climáticas foram consideradas significativas na explicação da variância polí-
nica observada ao longo do ano — a temperatura revelou-se como um factor vital no despoletar da
ântese no desenvolvimento floral de muitas espécies; a sucessão de dias sem chuva corresponde a
um parâmetro climático
de muita importância
como factor modelador
da produção e sobretudo
da dispersão polínica;
o significado estatístico
da velocidade média do
vento atesta o papel
essencial do factor dis-
persor.
O significado esta-
tístico do valor explica-
tivo destas variáveis foi
testado através da téc-
Concentração polínica atmosférica em Lisboa entre Março 1999 e Março 2000. Curvas
nica de Permutação de
polínicas seleccionadas. DESENHO: P.F.QUEIROZ Monte Carlo.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
164
Monitorização polínica anual
Os transectos de captadores polínicos TAUBER
FIG. 4-35 – Séries anuais de monitorização da deposição polínica. O programa dos transectos de captadores polínicos TAUBER.
O LABORATÓRIO DE PALEOECOLOGIA ARQUEOBOTÂNICA. UMA VISITA GUIADA AOS SEUS PROGRAMAS, LINHAS DE TRABALHO E PERSPECTIVAS
165
6.2 Transectos polínicos de superfície
Projectos incluídos:
TABELA 4-19
Projecto Descrição Financiamento Situação (Referências)
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
166
Transectos polínicos de superfície
> Utilizam-se geralmente séries de amostras,
ao longo de sequências de tipos de vegetação –
transectos polínicos de superfície. As amostras
são os próprios musgos (com a sua grande
superfície interfoliar e micro-atmosfera sempre
húmida), ou ainda captadores de pólen artifi-
ciais. A afinidade de ocorrência e de tendência
“comportamental” dos valores percentuais de
cada tipo polínico ao longo do transecto define
só por si grupos polínicos recorrentes. Tais gru-
pos são correlacionáveis com os tipos de vege-
tação do mosaico em observação, correlação que Transecto esquemático da vegetação palustre actual
pode ser explorada (e objectivada) pela análise Lagoa da Casa, Fernão Ferro/Sesimbra. DESENHO: P.F.QUEIROZ
numérica. Estes grupos polínicos de superfície
constituem análogos modernos para compara-
ção com os grupos polínicos reconhecidos ao
longo das sequências de depósitos orgânicos,
constituindo assim a base da interpretação dos
diagramas polínicos.
A análise numérica e a modelação matemá-
tica são ferramentas robustas para a elaboração
dos modelos e para a simulação dos resultados.
Através da ordenação canónica, as amos-
tras polínicas de superfície são relacionadas
com um conjunto de variáveis de explicação da
sua variância (variáveis explicativas), corres-
pondendo quer a factores ecológicos e ambien-
tais (profundidade de água, dados meteoroló-
gicos), quer a factores vegetacionais (relação
FOTO AÉREA: VOO FLORESTAL, 1982 Mapa de vegetação
com as comunidades vegetais presentes).
As amostras de superfície
podem assim funcionar como
conjuntos de treino na explica-
ção dos conjuntos fósseis, con-
tribuindo objectivamente para a
reconstituição ecológica do pas-
sado.
– Transectos polínicos de superfície. O exemplo do diagrama polínico de superfície da Lagoa da Casa, Fernão Ferro,
FIG. 4-36
Sesimbra.
O LABORATÓRIO DE PALEOECOLOGIA ARQUEOBOTÂNICA. UMA VISITA GUIADA AOS SEUS PROGRAMAS, LINHAS DE TRABALHO E PERSPECTIVAS
167
Projectos incluídos:
TABELA 4-20
Projecto Descrição Situação (Referências)
Teste de oxidação em amostras Análise polínica de uma amostra subdividida sujeita Concluído (VIII.1)
de lodo turfoso da Lagoa Travessa a tratamentos químicos com oxidação crescente
Projectos incluídos:
TABELA 4-21
Projecto Colaboração com Descrição Financiamento Situação (Referências)
Cargas polínicas EAS Monitorização polínica de uma colmeia Concluído (VII.1; VII.2)
de abelhas de uma ao longo do ano para definição
colmeia da escola dos padrões de recolecção
Agrária de Santarém
Caracterização polínica ADIRN Caracterização polínica de amostras Concluído
dos méis do Ribatejo de mel produzido na região
Norte
Caracterização do mel Caracterização polínica de amostras PAMAF Concluído (VII.4; VII.5;
das Serras da Estrela de mel produzido na região VII.8; VII.9; VII.11)
e Malcata
Cargas polínicas Monitorização diária ao longo do ano PAMAF Concluído
de abelhas do apiário da recolha polínica da colmeia (VII.11; VII.15)
da Loriga, Serra
da Estrela
Cargas polínicas de Monitorização diária ao longo do ano PAMAF Amostras em depósito
abelhas de um apiário da recolha polínica da colmeia (VII.11; VII.15)
na Serra da Malcata
Pólen e Mel – Aplicação multimédia sobre palinologia PAMAF Concluído
Multimédia apícola (VII.11; VII.15; VII.21)
(cont.) >>
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
168
Estudos experimentais sobre preservação do pólen
(Processos pós-deposicionais)
Resultado da análise polínica de oito porções de uma mesma amostra de limo orgânico homogeneizado da Idade do Ferro da Lagoa
Travessa. As 8 sub-amostras foram sujeitas a intensidades crescentes de oxidação com água oxigenada. Evidencia-se desta forma uma
susceptibilidade polínica diferencial aos efeitos da oxidação. Os tipos polínicos foram ordenados numericamente pela análise factorial
de correspondências dos “muito resistentes” aos “muito frágeis”. DESENHO: J.E.MATEUS.
– Estudos experimentais sobre preservação do pólen. Exemplo de um teste realizado em laboratório sobre o efeito da
FIG. 4-37
oxidação numa amostra de lodo orgânico fóssil.
O LABORATÓRIO DE PALEOECOLOGIA ARQUEOBOTÂNICA. UMA VISITA GUIADA AOS SEUS PROGRAMAS, LINHAS DE TRABALHO E PERSPECTIVAS
169
(cont.)
Principais Estratégias
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
170
7.2 Modelação sintética por primitivas modeláveis
Tem por base a modelação a partir da vectorização (em splines) de vários perfis de pro-
jecção desenhados ou fotografados, a sua integração em redes de splines, e finalmente a sua
conversão em superfícies, por modificadores apropriados. Trata-se de uma técnica ajustada às
formas orgânicas, irregulares, ou complexas.
MC Ministério da Cultura
IPA Instituto Português de Arqueologia
CNANS Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática
CIPA Centro de Investigação em Paleoecologia Humana e Arqueociências
(programa CIPA)
PNTA Plano Nacional de Trabalhos Arqueológicos
FCT Fundação para a Ciência e Tecnologia
CE-DG XII Comissão Europeia – Direcção Geral XII
CE-DG XI Comissão Europeia – Direcção Geral XI
ICN Instituto da Conservação da Natureza
IPPAR Instituto Português do Património Arquitectónico
MLJB Museu, Laboratório e Jardim Botânico, Universidade de Lisboa
CML Câmara Municipal de Lisboa
CMTV Câmara Municipal de Torres Vedras
SPAIC Sociedade Portuguesa de Alergologia e Imunologia Clínica
INGA Instituto Nacional de Intervenção e Garantia Agrária
PAMAF Programa de Apoio à Modernização Agrícola e Florestal
DIN Desenvolvimento e Inovação Nutricional, SA
EAS Escola Agrária de Santarém
ADIRN Associação para o Desenvolvimento Integrado do Ribatejo Norte
O LABORATÓRIO DE PALEOECOLOGIA ARQUEOBOTÂNICA. UMA VISITA GUIADA AOS SEUS PROGRAMAS, LINHAS DE TRABALHO E PERSPECTIVAS
171
Territórios antigos restituídos
O cabeço da Gruta da Avecasta
(Mateus e Queiroz, 2003)
DEM do cabeço da
Avecasta criado com
base na vectorização
das curvas de nível
do cadastro
topografado, vestido
com a fotografia
aérea (voo
FLORESTAL, 1971).
O modelo digital de
elevação do terreno
produzido serve de
base à restituição e
visualização do
território antigo.
Ensaio de restituição
virtual do Cabeço da
Avecasta no início
do Holoceno.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
172
Registo 3D de integração fotográfica
Modelos de elevação por estereofotogrametria
Par estereoscópico de
fotografias. FOTOS: J.P.RUAS
– Modelação 3D por estereofotogrametria. Produção de modelos digitais de elevação com base em pares estereoscópicos
FIG. 4-39
de fotografias. Exemplo da modelação de uma superfície experimental.
O LABORATÓRIO DE PALEOECOLOGIA ARQUEOBOTÂNICA. UMA VISITA GUIADA AOS SEUS PROGRAMAS, LINHAS DE TRABALHO E PERSPECTIVAS
173
Arqueologia virtual
Modelação tridimensional dos espaços internos
1e4-
Fotografias
do molde em
pedra, segundo
duas vistas
2 - Modelo 3D
do objecto, em
malha de arame
1 2 3
Restituição tridimen-
sional em malha 3D de
um molde de fundição
em calcário, proveniente
3 e 5 - Modelo
da estação arqueológica 3D texturado
da Gruta da Avecasta. (vestido com
Modelo 3D obtido as imagens
fotográficas)
por integração de séries segundo as
de fotos. mesmas vistas
das fotos
4 5
– Arqueologia virtual. Restituição dos espaços internos. Modelação 3D de objectos, estruturas e edifícios, introduzindo
FIG. 4-40
protagonistas dinâmicos (adereços, personagens, actividades, e drama histórico)
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
174
Anexo I – Estruturas Documentais
A morfologia comparada do pólen, da semente, da madeira, tem tido pouca atenção por
parte da ciência botânica portuguesa — uma lacuna que aqui se procura parcialmente col-
matar, sob pena de cair pela base todo o esforço de identificação dos vestígios.
Colecções de referência
Flora polínica
Catálogos foto-descritivos
O LABORATÓRIO DE PALEOECOLOGIA ARQUEOBOTÂNICA. UMA VISITA GUIADA AOS SEUS PROGRAMAS, LINHAS DE TRABALHO E PERSPECTIVAS
175
Colecções de referência
Herbário, Palinoteca, Carpoteca, Xiloteca
Sementes. Pinus
Folha de Herbário. Pinus pinaster pinaster
Madeira.
Pinus
pinaster
Madeira carbonizada.
Pinus pinaster
Madeira carbonizada, Lâmina com cortes de madeira. Pinus pinaster
observada ao microscópio
óptico de luz reflectida.
Pinus pinaster
– Colecções de referência. Exemplo da representação de uma espécie vegetal (pinheiro bravo) no conjunto das colecções
FIG. 4-41
botânicas.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
176
Monografias e catálogos morfotipológicos
> Estudos monográficos e catálogos fotodescritivos, conside-
rando a morfologia das estruturas vegetais fossilizáveis de hoje,
integram um programa fundamental para a aferição e incre-
mento da resolução taxonómica dos estudos paleoecológicos e
arqueobotânicos.
Catálogo morfológico fotodescritivo dos microfósseis não polínicos. Aplicação informatizada desenvolvida por J.E.Mateus
FIG. 4-42 – Estudos monográficos e catálogos morfo-tipológicos das estruturas vegetais fossilizáveis.
O LABORATÓRIO DE PALEOECOLOGIA ARQUEOBOTÂNICA. UMA VISITA GUIADA AOS SEUS PROGRAMAS, LINHAS DE TRABALHO E PERSPECTIVAS
177
Bancos de dados
Aqui se desenvolvem aplicações multimédia com vista a permitir de uma forma didác-
tica, mas exaustiva e integrada, a divulgação e o acesso aos dados e resultados do Labora-
tório (vide Fig. 4-43). Trata-se de um programa importante já que os resultados da investi-
gação pouco se coadunam com os formatos clássicos de publicação, onde se tende a res-
tringir as focagems temáticas e a expressão gráfica dos dados. De facto, a reconstituição
arqueoambiental refere-se em geral a um conjunto muito extenso de dados, quer sob a
forma de longos diagramas onde se juntam centenas de curvas de tipos polínicos, carpoló-
gicos, ou de outros fito-fósseis, quer sob a forma de “chusmas” de referência a espécies botâ-
nicas, em grande parte desconhecidas do leitor não botânico. Por outro lado há sempre uma
preocupação cartográfica ou imagética explícita ou subjacente.
De facto as novas linguagens interactivas dos multimédia são ideais para permitir a
integração de vários níveis de informação que funcionem sob a forma de tesauros temáticos
(polínicos, carpológicos, paisagísticos, botânicos, corográficos).
Com vista a uma maior versatilidade estas aplicações são desenvolvidas em C++, sob
a forma de “programação por objectos”, recorrendo às ferramentas DirectX (Microsoft), que
hoje tendem a dominar a indústria de vídeo-jogos de computador, dada a sua grande fiabi-
lidade de gestão de ambientes multimédia (som, imagem, vídeo, animação).
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
178
Bases de dados e aplicações multimédia
Disponibilização e divulgação dos resultados à comunidade
FIG. 4-43 – Bases de dados e aplicações multimédia. Duas formas de disponibilização e divulgação dos resultados à comunidade.
O LABORATÓRIO DE PALEOECOLOGIA ARQUEOBOTÂNICA. UMA VISITA GUIADA AOS SEUS PROGRAMAS, LINHAS DE TRABALHO E PERSPECTIVAS
179
Equipa de trabalho
Laboratório de Paleoecologia e Arqueobotânica
RANDI DANIELSEN
Nasceu em Haugesund, Noruega, a 23 de Março de 1958
Palinóloga, mestre Biologia (História da vegetação e Palinologia)
Áreas de investigação: Palinologia, macropaleobotânica e paleoecologia.
FIG. 4-44 – Equipa de trabalho do Laboratório de Paleoecologia e Arqueobotânica do IPA (programa CIPA)
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
180
Anexo II – Lista de Trabalhos e Publicações do Laboratório de Paleoecologia
e Arqueobotânica
1. MATEUS, J.E.; QUEIROZ, P.F.; REAL, F. (1983) - Laboratório de Paleoecologia e Estratigrafia do M.N.A.E.: Relató-
rio dos trabalhos de montagem - finais de 1980 a finais de 1982. Lisboa: Museu Nacional de Arqueologia.
2. ☺ MATEUS, J.E. (1985) - The coastal lagoon region near Carvalhal during the Holocene: Some geomorphological
aspects derived from a palaeoecological study at Lagoa Travessa. Actas da I Reunião do Quaternário Ibérico. Lisboa. 2,
p. 237-249.
3. ☺ QUEIROZ, P.F. (1985) - Dados para a História da vegetação Holocénica da Região da Lagoa de Albufeira. Actas da
I Reunião do Quaternário Ibérico. Lisboa. 2, p. 251-259.
4. QUEIROZ, P.F. (1989) - An Erica erigena wood fragment from Lagoa Travessa. In: MATEUS, J.E. - Lagoa Travessa:
A Holocene pollen diagram from the South-West coast of Portugal. Revista de Biologia. Lisboa. 14, p. 92-93.
5. QUEIROZ, P.F (1989) - A preliminary palaeoecological study at Estacada (Lagoa de Albufeira). Revista de Biologia.
Lisboa. 14, p. 3-16.
6. MATEUS, J.E. (1989) - Lagoa Travessa: A Holocene pollen diagram from the South-West coast of Portugal. Revista
de Biologia. Lisboa. 14, p. 17-94.
7. ☺ QUEIROZ, P.F. (1989) - O papel das sementes na reconstituição da vegetação Holocénica: um exemplo do Lito-
ral Norte-Alentejano. In Seminário: Papel dos Jardins Botânicos na conservação dos recursos genéticos vegetais - perspec-
tiva actual e futura. Sesimbra.
8. MATEUS, J.E.; QUEIROZ, P.F. (1991) - Palaeoecology of the North-Littoral of Alentejo. Guide of the XV Gerhard
Lang’s Palynological Excursion. Lisboa: Museu Laboratório e Jardim Botânico. 1, p. 80.
9. ☺ MATEUS, J.E.; QUEIROZ, P.F. (1991) - Aspectos do Desenvolvimento, da História e da Evolução da Vegetação do
Litoral Norte Alentejano: Últimos oito mil anos e actualidade. I Encontro de Arqueologia da Costa Sudoeste. Sagres.
10. DE GROOT, Th., ed. (1992) - Climate Change and Coastal Evolution in Europe. Haarlem: Rijks Geologische Dienst.
11. VAN LEEUWAARDEN, W. (1992) - New pollen diagram from Alpiarça (manuscrito).
12. MATEUS, J.E. (1992) - Holocene and present-day ecosystems of the Carvalhal Region, Southwest Portugal. PhD The-
sis. Utrecth: Utrecth University, p. 184.
13. ☺ QUEIROZ, P.F.; MATEUS, J.E. (1992) - Holocene and present-day vegetation in the North-Littoral of Alen-
tejo/Portugal. VIII International Palynological Congress. Aix-en-Provence, p. 118.
14. MATEUS J.E.; QUEIROZ, P.F. (1992) - Holocene vegetation change in the North-West Alentejo/Portugal. VIII
o
International Palynological Congress. Aix-en-Provence, p. 100. (1. prémio – “melhor poster da secção do Quaternário”).
15. ☺ MATEUS J.E.; QUEIROZ, P.F. (1992) - Holocene vegetation change in the North-West Alentejo/Portugal. The role
of man and of Littoral Dynamics. VIII International Palynological Congress. Aix-en-Provence, p. 93.
16. MATEUS, J.E.; QUEIROZ, P.F. (1993) - Os estudos de Vegetação Quaternária em Portugal: Contextos, balanço
de resultados, perspectivas. In A.P.E.Q. ed. - O Quaternário em Portugal. Lisboa: Colibri, p. 105-131.
17. QUEIROZ, P.F.; MATEUS, J.E. (1994) - Preliminary palynological studies at Lagoa de Albufeira and Lagoa de Meli-
des, Portugal. Revista de Biologia. Lisboa. 15, p. 15-27.
18. ☺ MATEUS, J.E.; QUEIROZ, P.F. (1994) - A preliminary synthesis on the vegetation history of Southwest Portugal.
XIII International Meeting of European Quaternary Botanists. Corsica.
19. ☺ MATEUS, J.E.; QUEIROZ, P.F. (1994) - Lagoas e Turfeiras - Arquivos Naturais da História da Paisagem - e o seu estudo
em Portugal. Actas do II Seminário “Conservar na Estrela”. Guarda: Parque Natural da Serra da Estrela, p. 115-140.
20. MATEUS, J.E.; QUEIROZ, P.F. (1994) - O Laboratório de Paleoecologia: Percursos de uma visita guiada. Lisboa:
Museu Laboratório e Jardim Botânico, p. 35.
21. QUEIROZ, P.F. (1995) - Estudo palinológico do sapal do Alfeite, Estuário do Tejo. (manuscrito)
22. MATEUS, J.E.; QUEIROZ, P.F. (1995) - Mires: Natural Archives for Landscape History. In CATARINO et al., eds.
- Vegetation Dynamics in Mediterranean-Type Ecosystems. Erasmus Intensive Course, Lisboa: Faculdade de Ciências da
Universidade de Lisboa, p. 11-26.
23. MATEUS, J.E.; QUEIROZ, P.F. (1995) - Climate Change and Coastal Evolution in Europe. Report from M.L.J.B.. Lis-
boa: Laboratório de Paleoecologia - Museu, Laboratório e Jardim Botânico.
O LABORATÓRIO DE PALEOECOLOGIA ARQUEOBOTÂNICA. UMA VISITA GUIADA AOS SEUS PROGRAMAS, LINHAS DE TRABALHO E PERSPECTIVAS
181
24. ☺ MATEUS, J.E. (1995) – Lateglacial and Holocene forest and scrubland dynamics in southwest coastal Portugal. In
ESF Conference The ecological setting of Europe: From the past to the future: The Establishment of Plant and Animal Com-
munities in Europe since the Last Glaciation. La Londe les Maures: European Science Foundation. 7-12 October.
25. MATEUS, J.E.; QUEIROZ, P.F.; NANSEN, C.; PIMENTA, C.M. (1996) - O projecto “FOREST” na Serra da Estrela.
Estrela Informação. Manteigas. 14, p. 15-18.
26. MATEUS, J.E.; QUEIROZ, P.F. (1996) - Paleoecologia da Paisagem nos Últimos dois Séculos: um teste à fiabilidade
de uma máquina do tempo. Lisboa: Laboratório de Paleoecologia - Museu, Laboratório e Jardim Botânico.
27. MATEUS, J.E.; QUEIROZ, P.F.; NANSEN, C.; PIMENTA, C.M. (1996) - Climate Change and Coastal Evolution in
the NW Alentejo, Portugal. Lisboa: Laboratório de Paleoecologia - Museu, Laboratório e Jardim Botânico.
28. HICKS, S., ed. (1997) - Forest Response to Environmental Stress at Timberlines: Sensitivity of Northern, Alpine and Medi-
terranean forest limits to climate. Oulu: University of Oulu.
29. MATEUS, J.E.; QUEIROZ, P.F. (1997) - Aspectos do Desenvolvimento, da História e da Evolução da Vegetação do
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O LABORATÓRIO DE PALEOECOLOGIA ARQUEOBOTÂNICA. UMA VISITA GUIADA AOS SEUS PROGRAMAS, LINHAS DE TRABALHO E PERSPECTIVAS
187
BIBLIOGRAFIA
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
188
Laboratório de Arqueozoologia
| Arqueozoologia: estudo
capítulo 5
da fauna no passado
❚ MARTA MORENO-GARCÍA ❚ SIMON DAVIS ❚ CARLOS M. PIMENTA ❚
RESUMO Neste capítulo são descritas as diferentes ABSTRACT We describe the methods used and
perspectivas de abordagem dos materiais results obtained from our studies (undertaken
arqueozoológicos estudados neste laboratório desde since the creation of the zoo-archaeology lab at
finais de 1999, data do início da sua actividade. the end of 1999) of Portuguese zoo-
Integrando conjuntos arqueofaunísticos oriundos de archaeological assemblages extending from the
contextos que se estendem do Plistocénico Superior ao Upper Pleistocene to the post-Medieval period.
pós-Medieval, os resultados obtidos integram vertentes Our results come under the following five
de investigação que compreendem estudos de: headings:
191
(i.e., ossos queimados, com cortes e incisões) cut marks) suggest food preparation, we
mas também na existência de sinais indiciadores have also found evidence that suggests a
de relações afectivas com eles estabelecidas. possible affectionate relationship between
É salientado o papel decisivo das metodologias de man and animal.
recuperação dos restos osteológicos em diferentes The importance of recovery methods is
cenários arqueológicos, como factor determinante highlighted as well as the need for the
para a concretização e aprofundamento do seu zoo-archaeologist to be involved in an
estudo posterior, sublinhando as vantagens do archaeological project from its inception.
estreitamento do contacto entre arqueólogos e
arqueozoólogos antes, durante e após as
intervenções desenvolvidas no terreno.
Joseph Prestwich
lido na Royal Society, Londres
26 de maio de 1859 (Prestwich, 1861)
O que é a Arqueozoologia
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
192
O Laboratório de Arqueozoologia do IPA
193
Equipa de trabalho
Laboratório de Arqueozoologia
MARTA MORENO-GARCÍA
Lic. Pré-História e Arqueologia (UAM, Espanha)
M.Sc. em Bioarqueologia (Institute of Archaeology, UCL, Inglaterra)
Doutoramento em Arqueologia (University of Cambridge, Inglaterra)
Co-responsável pelo Laboratório de Arqueozoologia do CIPA.
Membro do International Council of Archaeozoology (ICAZ).
Áreas de investigação: Arqueozoologia, etno-zoologia e tafonomia.
SIMON DAVIS
B.Sc. em Zoologia (University of London, Inglaterra)
M.Sc. em Zoologia (University of Jerusalém, Israel)
Doutoramento em Zoologia (University of Jerusalém, Israel)
Co-responsável pelo Laboratório de Arqueozoologia do CIPA.
Membro do International Council of Archaeozoology (ICAZ).
Áreas de investigação: Fauna do Plistocénico-Holocénico
e domesticação.
CARLOS PIMENTA
Formação em Biologia na Faculdade de Ciências de Lisboa
Técnico no Laboratório de Arqueozoologia do CIPA.
Áreas de investigação: Microfauna, etno-zoologia, arqueologia,
paleoecologia e ecologia de microvertebrados.
SÓNIA GABRIEL
Lic. em Arqueologia (Universidade de Coimbra)
Bolseira da FCT na Universidad Autónoma de Madrid, Espanha.
Áreas de investigação: Ictiofauna e arqueologia.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
194
Projectos
Conjuntos arqueofaunísticos estudados no Laboratório
de Arqueozoologia do IPA
– Relação dos diferentes projectos e estudos arqueozoológicos em que o Laboratório de Arqueozoologia do IPA está
FIG. 5-2
envolvido.
195
rinários e estudantes, portugueses e estrangeiros, quer através da nossa página web
(www.ipa.min-cultura.pt/cipa/zoo), quer no nosso espaço de trabalho.
Após três anos de actividade afirmamos o nosso empenhamento na divulgação dos resul-
tados conseguidos e expressamos o desejo de colaborar na formação das futuras gerações de
arqueozoólogos portugueses.
A nossa actividade não deve estar limitada ao laboratório, fazendo a análise dos restos fau-
nísticos recolhidos em diferentes locais, mas deverá começar no campo antes ou durante a sua
recuperação. Seria importante que os arqueólogos interessados no estudo de materiais arqueo-
zoológicos nos contactassem no início dos seus projectos, para que pudéssemos fornecer ori-
entações relativas à recuperação, acondicionamento e conservação dos materiais osteológicos.
Dado que cada jazida é única e irrepetível, na nossa perspectiva, aquelas visitas seriam essen-
ciais para compreendermos as condições em que a escavação se desenvolve, identificando com
o arqueólogo a estratégia mais conveniente a seguir nos contextos onde a fauna pode apare-
cer ou ser recuperada.
Nalguns casos fomos consultados por colegas arqueólogos, quer durante o decorrer das
escavações (i.e., Penedo do Lexim em Mafra (Fig. 5-3), Abrigo do Lagar Velho no vale do
Lapedo (Leiria), Banco Nacional Ultramarino de Tavira, Gruta do Ourão, Cova do Ladrão e
Gruta da Buraca Grande, na Serra do Sicó, Pombal), quer após as campanhas de escavação (i.e.,
Castelo e Alcáçova de Mértola, Gruta de Avecasta e Gruta do Caldeirão, ambas em Tomar). Em
todos eles, as deslocações efectuadas pelos membros da equipa revelaram-se importantes, per-
mitindo trocar informações in situ com os arqueólogos responsáveis traduzidas num mútuo
enriquecimento das nossas actividades.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
196
O espólio de origem animal pode representar quantidades e características muito variá-
veis, dependendo das condições particulares de cada jazida e do rigor que presidir à sua recu-
peração. Qualquer conjunto de ossos recolhidos num dado sítio constitui uma amostra. Con-
tudo, são as suas características que irão influenciar o tipo de estudos que podem ser realiza-
dos. Deste modo, os critérios relativos à conservação, ao tipo de contexto arqueológico e à
dimensão da amostra devem ser considerados e avaliados na hora de recuperar o material
arqueofaunístico no terreno (Fig. 5-4). Durante os trabalhos de exumação deve existir uma
estratégia previamente pensada e organizada, não necessariamente igual para todos os sítios,
que permita o desenvolvimento do estudo e a correlação daqueles restos.
FIG. 5-4 – Organigrama dos potenciais aspectos limitantes presentes nas amostras arqueofaunísticas.
Aspectos Limitantes
197
Estados de conservação
Alguns exemplos
FIG. 5-5 – Diferentes estados de conservação que afectam o desenvolvimento dos estudos arqueofaunísticos.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
198
Idade do Bronze são iguais aos de uma cabra pós-medieval. Portanto, o seu valor e potencial
dependem em grande medida da sua proveniência e contexto. Consequentemente, as amos-
tras devem ser recolhidas de unidades estratigráficas que possam ser datadas, de contextos
estratificados, sem materiais residuais ou revolvidos, que sejam arqueologicamente compre-
ensíveis e susceptíveis de serem relacionados com outros contextos da mesma jazida (Gam-
ble, 1978; Meadow, 1980). Depósitos, camadas ou unidades com estratigrafia duvidosa não
devem ser considerados.
Recuperação - Na maior parte dos casos os restos faunísticos são recuperados manual-
mente com o restante espólio arqueológico. Todavia, existem trabalhos experimentais publi-
cados desde há décadas (Payne, 1972, 1975a; Jones, 1982; Rackham, 1982; Stahl, 1996;
James, 1997) que demonstram como durante uma recolha manual não são recuperados os
dentes e os pequenos ossos dos membros (carpais, tarsais e falanges) dos mamíferos de
média ou pequena dimensão (i.e., ovicaprídeos, pequenos carnívoros, coelhos, etc.), restos
de aves e a maioria dos restos de peixes, micromamíferos (i.e., roedores, insectívoros),
anfíbios e répteis.
Para garantir que não sejam ignorados os elementos anatómicos de menor dimensão e
os grupos de pequenos vertebrados, deve efectuar-se uma crivagem dos sedimentos que
potencialmente os integrem (Fig. 5-6).
Dimensão - Nem todas as jazidas podem proporcionar amostragens significativas, ou seja,
que contenham um número razoável de restos identificáveis. Num conjunto composto por
algumas dezenas de restos pertencentes a várias espécies, apenas será possível registar a sua
presença (i.e., Rua 5 de Outubro n.o 33 no Crato; Moreno-García, 2002b), enquanto uma
amostragem que contenha centenas, permitirá conhecer as proporções relativas em que aque-
las foram exploradas (Moreno-García e Davis, 2001c). Conjuntos compostos por milhares de
restos podem proporcionar informações intra-específicas relativas a estratégias sócio-econó-
micas e culturais desenvolvidas naquele local (i.e., Alcáçova de Santarém; Davis, em prepara-
ção). Quanto maiores forem as amostras, mais representativas serão dos restos originalmente
depositados, permitindo retirar mais informações sobre o papel da fauna naquele contexto.
Acondicionamento - Para além das limitações derivadas dos critérios anteriores, o estudo
arqueozoológico pode ser igualmente afectado pelo modo como os materiais são tratados
após a escavação. Os métodos empregues no seu tratamento, embalagem, transporte e arma-
zenagem (Fig. 5-7), podem reduzir as hipóteses de obter dados essenciais no estudo posterior.
Um mau acondicionamento das amostras irá afectar a sua conservação, ocasionando sobre-
tudo elevados índices de fracturas recentes.
Informações Necessárias
Antes de iniciar o estudo de um conjunto faunístico são necessários dois tipos de infor-
mações:
1) Informação geral sobre o sítio e sobre as escavações para poder estabelecer a origem,
a natureza do espólio arqueofaunístico e as questões às quais se espera responder. Deve
incluir:
• resumo sobre a natureza e história do sítio, mencionando os trabalhos que tenham sido
anteriormente efectuados;
• relação dos motivos pelos quais se efectuou a escavação, métodos de recolha e os seus
principais resultados, incluindo um resumo das estruturas, períodos e datações dis-
poníveis;
199
Crivagem e triagem
FIG. 5-6 – Algumas notas relativas aos métodos de crivagem e posterior triagem de materiais arqueofaunísticos.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
200
Limpeza e acondicionamento
de material osteológico
> O acondicionamento dos materiais osteológicos é outro aspecto
da maior relevância que irá influenciar o estudo arqueozoológico.
Um primeiro passo diz respeito à eliminação dos sedimentos. Sem-
pre que se apresentem em boas condições podem ser lavados com
água, utilizando uma escova macia ou gaze. Não é aconselhável o uso
de instrumentos pontiagudos, uma vez que podem danificá-los e pro-
duzir marcas falsas. Depois de escovados devem ser lavados em
água limpa e deixados secar lentamente.
No caso de materiais fragilizados, torna-se necessário proceder à
>
FIG. 5-7 – Considerações práticas relativas à limpeza, consolidação e acondicionamento de restos arqueofaunísticos.
201
• lista com as questões específicas que o arqueólogo espera ver respondidas através do
estudo arqueozoológico;
• informações sobre outros espólios arqueológicos que possam ser relevantes (ossos tra-
balhados, pesos de tear, queijeiras, etc.)
2) Informação específica sobre cada um dos contextos em que o espólio faunístico foi
recuperado, incluindo:
• contexto estratigráfico;
• tipo de contexto ou depósito;
• localização em relação às principais estruturas;
• hipóteses de contaminação com materiais mais recentes;
• presença de materiais residuais ou remexidos;
• informações sobre a quantidade de material recolhido (peso, número de caixas ou con-
tentores).
Ponto de Partida
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
202
Caracterização Morfo-osteométrica de Espécies Semelhantes
A tafonomia é o estudo das leis (nomos) do enterramento (taphos) (Efremov, 1940). Quer
dizer, é o reconhecimento dos factores responsáveis pela transição de materiais orgânicos da
biosfera para a litosfera ou para o registo geológico. Na área da Arqueozoologia, este domínio
203
Distinção morfométrica de espécies
semelhantes (I)
> 1) Hiena riscada (Hyaena hyaena) e Hiena
malhada (Crocuta crocuta)
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
204
Distinção morfométrica de espécies
semelhantes (II)
> 3) Cavalo (Equus caballus), Zebro (Equus hydruntinus) e Burro (Equus asinus)
Os dentes dos equídeos têm uma estrutura complicada com dobras de esmalte na super-
fície de oclusão características das diferentes espécies. Observando a variação destes padrões,
foi identificada a presença de burro e cavalo na Alcáçova de Santarém (Davis, em preparação).
Na imagem de cima estão representados os dentes de duas mandíbulas (em vista oclusal).
A de baixo, corresponde à parte posterior de uma mandíbula de equídeo com primeiro,
segundo e terceiro molares (1999 U.E. 247; período islâmico) identificada como Equus caballus.
Repare-se na morfologia da dobra interna em forma de “U” e na penetração parcial das dobras
externas, tanto no segundo como no terceiro molar.
Os quatro dentes representados em cima na imagem foram identificados como Equus asi-
nus (1999 U.E. 335; Idade do Ferro). Observar a morfologia em forma de “V” da dobra interna
e a ausência de qualquer penetração das dobras externas, no segundo e no terceiro molar.
205
Distinção morfométrica de espécies
semelhantes (III)
> 4) Ovelha (Ovis aries) e Cabra (Capra hircus)
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
206
2000; Ruiter e Berger, 2000) e aves de rapina (Mundy, 1976; Mayhew, 1977; Plug, 1978; Dod-
son e Wexlar, 1979; Hoffman, 1988; Andrews, 1990; Guillem Calatayud e Martínez Valle,
1991; Cereijo Pecharromán, 1993; Schmitt, 1995; Hockett, 1996; Robert e Vigne, 2002) tem
sido fundamental para os identificar como potenciais agentes acumuladores de conjuntos fau-
nísticos em contextos arqueológicos.
Nos espaços naturais que eles frequentaram é comum encontrar restos das carcaças das
presas por eles consumidas, constituídas por ossos mordidos (Haynes, 1983), com marcas
FIG. 5-11 – Distinção osteométrica entre javali (Sus scrofa) e porco doméstico (Sus domesticus) em jazidas portuguesas. Histogramas
da largura da trochlea (BT) do úmero e do comprimento máximo lateral (GL) do astrágalo. Comparam-se dados provenientes de
concheiros Mesolíticos (Cabeço do Pez, Cabeço da Arruda, Moita do Sebastião e Poças de São Bento), povoados calcolíticos
(Penedo do Lexim (Moreno-García, em preparação-a), Zambujal (a ponteado; Driesch e Boessneck, 1976) e a sequência da Idade
do Ferro ao período islâmico da Alcáçova de Santarém (Davis, em preparação). Em cima, para comparação, apresenta-se a
amostra de porcos medievais provenientes do castelo de Launceston, Inglaterra (Albarella e Davis, 1996). Notar as pequenas
dimensões destes últimos quando comparados com os presumíveis javalis do Mesolítico português. É de supor que a maioria
dos espécimens calcolíticos e da Alcáçova de Santarém correspondam a porcos domésticos. No entanto, a ampla dispersão
observada pode sugerir a ocorrência das duas espécies.
207
Actividade de predadores
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
208
dos dentes (no caso dos mamíferos), regurgitados, parcial ou totalmente digeridos (Andrews
e Nesbit Evans, 1983) (Fig. 5-12). Dado que em muitas situações esses locais lhes serviram
de refúgio e abrigo, é também frequente recuperar os restos destes predadores. Assim, na
Gruta do Caldeirão (Davis, 2002) a ocorrência de restos de grandes carnívoros como a hiena,
o urso, o leão, o leopardo ou o lobo no Moustierense e Paleolítico Superior (Tabela 5-1) coin-
cide com a maior abundância de restos que reflectem a sua actividade predadora, verificando-
-se a sua diminuição a partir do Solutrense. Desta alteração é possível inferir que eles foram
os principais agentes responsáveis pelas acumulações ósseas ali presentes durante os perío-
dos mais antigos, acentuando-se a presença e acção do homem nos períodos mais recentes.
TABELA 5-1
Must EUP Sol Magd Neol
Urso + +
Leão + +
Hiena + +
Leopardo + + +
Lobo + + +
Lince + + + + +
Raposa + + + + +
Gato bravo + + +
Texugo + + +
– Ocorrência de restos de carnívoros na Gruta do Caldeirão (Davis, 2002). Sobrevivência e extinção – hipótese
TABELA. 5-1
preliminar. Must: Moustierense, EUP: Paleolítico Superior Inicial, Sol: Solutrense, Magd: Magdalenense, Neol: Neolítico.
209
Actividade de animais comensais
> Os restos da alimentação humana são por vezes aproveitados por alguns animais comen-
sais que partilham com o Homem os espaços domésticos. Os sinais deste comportamento são
sobretudo visíveis em lixeiras, fossas, silos, etc.
Esta situação tem sido frequentemente observada nalguns estudos que realizamos sobre
restos de contextos islâmicos (i.e., Convento de São Francisco, Santarém; Alcácer do Sal; Sé de
Lisboa (Moreno-García e Davis,
2001c) e Núcleo Arqueológico da
Rua dos Correeiros em Lisboa
(Moreno-García e Gabriel, 2001).
Nestas duas imagens podemos
observar as marcas produzidas
pelos pequenos molares de um gato
nas áreas de articulação de um tibi-
otarso proximal de galinha (Gallus
domesticus), à esquerda, e na parte
distal de dois fémures de coelho
(Oryctolagus cuniculus), à direita.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
210
Interpretação Paleoecológica
Microvertebrados
Este conjunto integra diferentes organismos (anfíbios, répteis, pequenas aves e micro-
mamíferos) que podem conduzir a diferentes níveis de informações paleoecológicas dada a sua
adaptação a nichos ecológicos e condições ambientais bem definidas.
Podemos tomar como exemplo os roedores, cujo testemunho paleoecológico e paleocli-
mático lhes tem atribuído grande importância nos estudos de Quaternário (Chaline, 1972;
Póvoas et al., 1992; Jeannet, 2000; Póvoas, 2001). Na Europa Continental foi possível esta-
belecer curvas climáticas baseadas nos padrões cíclicos de ocorrência de lemingues (Lemmus
lemmus e Dicrostonyx torquatus) “espécies termómetro”, actualmente circunscritas às tundras
árcticas (Chaline, 1972).
Na arqueologia portuguesa, escassos foram os esforços para a recuperação dos micro-
vertebrados. No entanto, o reduzido património informativo disponível, permitiu já assinalar
a presença de algumas espécies actualmente ausentes (Microtus nivalis) ou extintas (Allocricetus
bursae) em Portugal (Póvoas et al., 1992, Póvoas, 2001), indicadores preciosos das condições
frias do Paleolítico Superior Antigo.
Na ausência de espécies tão significativas, torna-se necessário explorar as variações nas fre-
quências daquelas que actualmente existem no nosso território embora hoje com distribuições
geográficas diferentes das registadas no passado. Esta foi a abordagem seguida no estudo pre-
liminar da microfauna recolhida em dois testemunhos sedimentares do Plistocénico Superior
no Abrigo do Lagar Velho, Lapedo (Moreno-García e Pimenta, 2002). Como variação mais sali-
ente na composição das duas amostras (Tabela 5-2), registou-se a redução de Microtus (Pitymys)
lusitanicus/duodecimcostatus do período gravettense (TP 06) ao período solutrense (TP 09),
211
acompanhada de um aumento de Microtus arvalis/agrestis (22,5% em TP 06 para 31,7% em
TP 09). Do mesmo modo, apesar da exiguidade da amostra, assinalou-se uma ligeira subida de
Apodemus sylvaticus (7,5% em TP 06 para e 17,1 % em TP 09) e dos Gliridae (2,5% em TP 06
para 4,9% em TP 09) associados à presença de zonas de floresta temperada (Póvoas et al., 1992).
A variação nas frequências de ocorrência destas espécies foi interpretada como podendo signi-
ficar um aumento da cobertura florestal, indiciando a presença de um ambiente mais fechado
e mais húmido no interior daquele vale durante o Solutrense.
TABELA 5-2
TP06 TP09
Amphibia Amphibia
Anura 50 6 15 Anura 62 7 17,1
Urodela 9 2 5 Urodela 3 1 2,4
Reptilia Reptilia
Lacertidae 6 2 5 Lacertidae - - -
Colubridae 4 1 2,5 Colubridae 13 1 2,4
Insectivora Insectivora
Erinaceus europaeus 1 1 2,5 Erinaceus europaeus - - -
Crocidura sp. 1 1 2,5 Crocidura sp. 1 1 2,4
Sorex sp. 1 1 2,5 Sorex sp. 2 1 2,4
Talpa sp. 7 2 5 Talpa sp. 2 1 2,4
Rodentia Rodentia
Gliridae 1 1 2,5 Gliridae 2 2 4,9
Arvicola sapidus 61 4 10 Arvicola sapidus 57 4 9,8
Microtus 27 7 17,5 Microtus 7 3 7,3
(Pit.)lusit./duod. (Pit.)lusit./duod.
Microtus arv./agrest. 40 9 22,5 Microtus arv./agrest. 33 13 31,7
Apodemus sylvaticus 16 3 7,5 Apodemus sylvaticus 18 7 17,1
TOTAIS 224 41 TOTAIS 200 41
Velho, Lapedo (Leiria; Moreno-García e Pimenta, 2002). TP06= Proto-Solutrense; TP09= Solutrense. As percentagens foram
obtidas a partir do número mínimo de indivíduos (NMI).
Aves
As aves constituem um grupo muito diversificado cuja mobilidade lhes permite alterar
a sua distribuição geográfica com uma facilidade e rapidez inacessível a outros vertebrados.
Os diferentes estatutos das aves que actualmente frequentam o nosso território (residentes,
estivais ou invernantes) variaram ao longo dos tempos. O registo de espécies actualmente
ausentes em Portugal, indicia áreas de distribuição mais alargadas ou latitudinalmente des-
locadas — quebra ossos (Gypaetus barbatus) no Zambujal (Driesch e Boessneck, 1976) e
Penedo de Lexim (Moreno-García, em preparação-a), pelicano (Pelecanus crispus) e cisne
(Cygnus sp.) na Alcáçova de Santarém (Davis, em preparação), Pinguinus impennis na Gruta da
Figueira Brava (Mourer-Chauviré e Antunes, 2000). Noutros casos, algumas espécies migra-
doras podem ser indicadoras da exploração sazonal destes recursos como fonte de alimento
ou de matéria-prima, como penas, gordura, ossos, etc. (i.e., ganso patola (Sula bassana) nos
níveis calcolíticos de Leceia (Gourichon e Cardoso, 1995)).
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
212
Por último, a identificação de presas no conjunto de restos alimentares acumulados por
diferentes aves da rapina, pode conduzir ao conhecimento da sua presença e, consequente-
mente dos biótopos por elas explorados nos seus territórios de caça (Chaline et al., 1974;
Andrews, 1990).
gos utilizaram a dimensão dos dentes dos (P11 865 K corte) da Gruta do Caldeirão em perspectiva biométrica
geral, comparada com espécimens de períodos glaciares e
mamíferos como indicador da temperatura interglaciares de grutas inglesas (Klein e Scott, 1989, tabela 1).
no passado (Kurtén, 1960, 1965; Davis, O gráfico mostra o comprimento antero-posterior do dente
carniceiro (M1). Para cada uma das amostras inglesas a média
1981; Klein e Cruz-Uribe, 1984). Klein e aparece como uma linha horizontal, o âmbito métrico como
Scott (1989), que estudaram restos de hiena uma linha vertical e o intervalo de confiança de 95% como um
em grutas britânicas e hienas modernas rectângulo. Entre parêntesis o número de espécimens.
Segundo Klein e Scott o facto das três amostras interglaciares
africanas, observaram que na Grã Bretanha, serem menores que as dos períodos glaciares concorda com a
a Crocuta do Plistocénico final era maior regra de Bergmann, que correlaciona baixas temperaturas com
um aumento das dimensões do corpo dos animais de sangue
durante o máximo glacial que nos períodos quente. Notar o grande tamanho do exemplar da Gruta do
inter-glaciares (Fig. 5-14), e corroborativa- Caldeirão (Davis, 2002). Seria o clima muito frio em Portugal
mente que na actualidade a dimensão deste durante o Moustierense?
213
animal em África aumenta com a latitude. Estas duas tendências, na opinião destes autores,
evidenciam a relação inversa entre dimensão do corpo e a temperatura assumida pelo efeito
Bergmann.
Para esta metodologia poder ser aplicada e obter resultados estatisticamente signifi-
cativos a partir das medidas de ossos e dentes fósseis, são necessárias grandes amostragens.
Na Gruta do Caldeirão foi apenas recuperado um dente carniceiro (M1) de hiena extrema-
mente grande (comprimento = 35,0 mm) no nível moustierense (Fig. 5-14). Esta situação
indicaria a presença de condições muito frias no centro de Portugal durante este período,
embora Klein (comunicação pessoal) tenha sugerido que este facto pudesse estar relacionado
também com a reduzida competição com o homem (Davis, 2002).
Restos de veado do Plistocénico Final e Holoceno parecem evidenciar algo seme-
lhante. Esta espécie era consideravelmente maior do que hoje em dia tanto na Península Ibé-
rica como no resto da Europa (Walvius, 1961; Mariezkurrena e Altuna, 1983; Lister, 1987;
Klein e Cruz-Uribe, 1994). Na Fig. 5-15 apresenta-se uma sequência da variação de dimen-
sões de veado obtida a partir da medição do comprimento máximo do astrágalo em amos-
tras provenientes da Gruta do Caldeirão (Moustierense-Magdalenense), dos concheiros
mesolíticos do Cabeço do Pez e de Poças de São Bento, do Castro Calcolítico do Zambujal
(níveis 1-4; Driesch e Boessneck, 1976), da Alcáçova de Santarém (Idade do Ferro-pós-
-medieval) e de veados modernos do Norte de França (Oise, no Museu de História Natural
de Paris). Os veados do Plistocénico Superior são claramente maiores que os veados de perí-
odos posteriores. Esta redução pode reflectir uma maior qualidade de pastagens no Plisto-
cénico e/ou temperaturas mais frias. Todavia, em Portugal é intrigante notar o aumento de
dimensão que parece verificar-se entre o Mesolítico e a Idade do Ferro (Fig. 5-15). Como
hipótese preliminar de interpretação para este aumento podemos sugerir uma redução da
pressão da actividade cinegética após o Mesolítico (Davis, em preparação), momento que
coincide com a gradual importância que as espécies domesticadas vão adquirindo na ali-
mentação humana. A substituição de uma ecologia florestal fechada por uma paisagem
(sub) arbustiva mais aberta, produzida pela instalação das comunidades agrárias, poderia
ter concomitantemente contribuído para esta adaptação.
Extinções e Introduções
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
214
– Histogramas do diâmetro mínimo da trochlea (HTC) do úmero e do comprimento máximo lateral (GL) do astrágalo de
FIG. 5-15
veado (Cervus elaphus). Comparam-se dados provenientes da Gruta do Caldeirão, Tomar (Davis, 2002), de concheiros
Mesolíticos (Cabeço do Pez e Poças de São Bento, ambos no estuário do Sado), do povoado calcolítico de Zambujal (níveis 1-4;
Driesch e Boessneck, 1976), da sequência da Idade do Ferro ao período pós-medieval da Alcáçova de Santarém (Davis, em
preparação) e de uma pequena amostra de veados actuais do norte de França (os quadrados representam machos e os círculos
fêmeas; estes esqueletos provêem do Museu de História Natural de Paris). Note-se a grande dimensão dos veados na Gruta do
Caldeirão, a sua redução durante o Mesolítico, um novo aumento no Calcolítico e a ausência de qualquer alteração em toda a
sequência de Santarém. Poderá o aumento entre Mesolítico e Calcolítico reflectir uma menor pressão de predação sobre o veado
no centro de Portugal naquele momento? A grande dimensão dos veados no Plistocénico Superior pode reflectir ambiente frio
e/ou melhores condições de pastagens.
Zbyszewski e Ferreira, 1990; Cardoso, 1993). Nos conjuntos faunísticos estudados até ao
momento neste laboratório foi possível identificar algumas delas (Fig. 5-16).
Outra situação que se reveste da maior importância refere-se à introdução voluntária
ou involuntária de espécies exóticas. Algumas delas desempenharam um papel determi-
nante no sucesso das populações a partir do Neolítico (caso das espécies domésticas)
enquanto que outras fariam sentir a sua presença de forma devastadora (o rato negro Rat-
tus rattus responsável por surtos de peste negra na Europa medieval). Permanece obscura
a cronologia da introdução de muitas espécies que actualmente integram a fauna de Por-
tugal (a gineta (Morales Muñiz, 1994), o saca-rabos, o gamo, etc.). A arqueologia desem-
penha um papel determinante na revelação das épocas e contextos em que estes novos ele-
mentos aqui chegaram, auxiliando a compreender o impacto que essa circunstância impli-
cou no nosso meio natural bem como o relacionamento que o Homem com elas estabeleceu.
215
Espécies extintas
Alguns exemplos registados nos nossos trabalhos
• Capra pyrenaica
No Penedo
>
Na Alcáçova de Santarém:
>
do Lexim:
• Gypaetus barbatus • Ursus arctos
• Cygnus sp.
• Pelecanus crispus
> Úmero distal de
Cygnus sp. (cisne) à
esquerda. 1999 U.E.
162, ROM2.
Úmero distal de
Pelecanus crispus
(pelicano) à direita.
1999 U.E. 210, MED1.
– Alguns exemplos de espécies extintas da fauna portuguesa cuja presença foi evidenciada em várias jazidas estudadas no
FIG. 5-16
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
216
Estratégias de Exploração
217
Idades de Abate
Para determinar a idade de morte dos mamíferos habitualmente são aplicados dois
métodos de observação. Um considera o estado de ligação das epífises com as diáfises dos
ossos longos do esqueleto apendicular. As extremidades destes ossos só se ligam às res-
pectivas epífises após o fim do período de crescimento do animal (Silver, 1969). Portanto,
a existência de epífises não ligadas indica a presença de indivíduos juvenis e sub-adultos.
O outro método considera a erupção da dentição permanente e consequente substituição dos
dentes de leite, assim como os diferentes estados de desgaste das suas superfícies de oclu-
são (Payne, 1973).
A variável idade de abate revela-se da maior importância na medida em que permite
inferir o tipo de exploração e/ou aproveitamento que foi praticado. Uma comunidade que
deu prioridade à produção e ao consumo de carne procederia ao abate de indivíduos sub-
adultos uma vez atingido o máximo do seu crescimento, mantendo apenas um baixo
número de animais reprodutores. Pelo contrário, uma comunidade virada para o aprovei-
tamento dos chamados produtos secundários (lã, leite, estrume, etc.) e força de tracção, man-
teria animais adultos até ao esgotamento da sua vida produtiva.
A aplicação desta abordagem nas mandíbulas de ovicaprinos recuperadas no Penedo de
Lexim (Moreno-García, em preparação-a) apesar de não constituir uma amostra muito vasta,
permitiu observar uma mudança no padrão de abate deste grupo entre o Neolítico Final e o
Calcolítico (Fig. 5-18). No Neolítico, quase
metade das mandíbulas apresentam estádios de
desgaste B (pertencentes a animais de entre 2 e
6 meses de idade) e C (animais de entre 6 meses
e 1 ano de idade). Observa-se deste modo uma
elevada mortalidade de indivíduos muito jovens,
situação que contrasta com o padrão obtido para
o período Calcolítico, onde o pico de abate se
situa nos animais com idades compreendidas
entre 4 e 6 anos de idade (i.e., estádio G).
Esta mudança poderá indicar uma altera-
ção das estratégias de produção seguidas pelos
habitantes do Penedo do Lexim ao longo do
tempo. Como hipótese de trabalho sugerimos
que a abundância de indivíduos jovens no Neo-
lítico esteja relacionada com o aproveitamento
prioritário da sua carne, sendo os produtos
secundários (leite, lã, estrume, pele) de menor
importância na economia local. Contrariamente,
durante o Calcolítico, a manutenção de ovelhas
e cabras até idade avançada favoreceria a explo- FIG. 5-18 – Idade de abate dos ovicaprinos no Neolítico Final
ração desses outros produtos, passando a carne e Calcolítico no Locus 1 do Penedo de Lexim (Moreno-
a ser relegada para segundo plano. Neste con- García, em preparação-a). Percentagens das mandíbulas
nos diferentes estádios de desgaste dos dentes (Payne,
texto, devemos anotar que paralelamente se pro- 1973). Note-se a maior mortalidade de indivíduos mais
duz um incremento moderado no número de jovens no Neolítico Final (estádios B e C) em relação à
restos de porco que poderia estar relacionado amostra do Calcolítico (pico no estádio G). Estádios:
A= 0-2 meses; B= 2-6 meses; C= 6-12 meses;
com o maior consumo da carne desta espécie no D= 1-2 anos; E= 2-3 anos; F= 3-4 anos; G= 4-6 anos;
Calcolítico (Moreno-García, em preparação-a). H= 6-8 anos; I= 8-10 anos.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
218
Presença de Diferentes Sexos
Para nos auxiliar a compreender os propósitos pelos quais uma determinada espécie era
mantida no passado, é útil ter uma ideia das proporções em que cada sexo está representado.
Na maior parte das espécies animais machos e fêmeas diferem dimensionalmente – sendo,
no caso dos mamíferos, os machos maiores que as fêmeas. Porém, por vezes, a diferença de
dimensão não é suficientemente acentuada para podermos identificar o sexo a que pertenceu
um osso isolado. Em muitos casos, torna-se necessário elaborar gráficos de parâmetros osteo-
métricos de um determinado osso, onde se evidenciem dois picos: um pertencente a fêmeas
e outro, normalmente maior, evidenciando os machos. No entanto, é raro que cada sexo pro-
duza conjuntos totalmente distintos morfometricamente.
As galinhas (Gallus domesticus) são uma espécie que apresenta maior dimorfismo
sexual nalguns ossos como, por exemplo, no tarso-metatarso. Este osso é normalmente
robusto no galo e grácil na galinha. Além disso, o tarso-metatarso do galo possui um espo-
rão – arma usada no combate entre machos. Deste modo, utilizando este osso é possível
determinar as proporções da presença de machos e fêmeas em amostras arqueológicas.
A Fig. 5-19 apresenta o gráfico de dispersão onde se representam tarso-metatarsi de galinha
recolhidos na Alcáçova de Santarém, dos períodos romano e islâmico. Os resultados são
interessantes, embora devam ser interpretados com cautela, nomeadamente os referentes
FIG. 5-19 – Comparação dos tarsometatarsi de galinha (Gallus domesticus) nos períodos romano e islâmico da Alcáçova de Santarém
(Davis, em preparação). O gráfico de dispersão mostra a robustez (largura mínima da diáfise dividida pelo comprimento;
SD/GLx100) versus a largura distal (Bd). Os machos (galos) têm em geral tarso-metatarsi mais robustos e apresentam um
esporão, enquanto as fêmeas são mais gráceis e não têm esporão. Note-se a abundância de fêmeas no período islâmico.
219
ao período romano onde a amostra existente representa apenas 5 indivíduos (quatro galos
e uma galinha). Pelo contrário, a maior parte dos tarso-metatarsi islâmicos pertencem a
fêmeas (14 galinhas e só um galo).
A disparidade entre sexos observada neste último período poderia estar relacionada com
o maior interesse em manter vivas as galinhas mais pelo valor dos ovos do que pela sua carne,
já que esta seria obtida consumindo galos jovens, cujos ossos ainda não formados não são men-
suráveis (Davis, em preparação).
Neste momento, até que surjam mais amostras portuguesas de ossos de galinha do período
romano que possam ser estudadas, apenas é possível sugerir que aparentemente houve um
interesse mais acentuado na produção e consumo de ovos no período islâmico que no romano.
Segundo referem as fontes históricas, em Al-Andalus os ovos eram consumidos em grandes
quantidades por todos os estratos da sociedade e os médicos recomendavam-os escalfados,
cozidos e fritos em azeite (García Sánchez, 1996). Actualmente no Magreb, e em geral no
mundo islâmico, os ovos continuam a ser um produto muito apreciado.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
220
arqueofaunísticas e reconhecer as mudanças de estratégia de exploração de uma determinada
espécie ao longo do tempo.
Alguns dos restos de ovelha recuperados na sequência cronológica da Alcáçova de San-
tarém (da Idade do Ferro ao período Islâmico) evidenciaram variações osteométricas, que pode-
riam estar relacionadas com mudanças nos tipos de ovelha ali representadas. Por exemplo,
como mostra a Fig. 5-20, os comprimentos dos calcanea no período islâmico são maiores que
os verificados nos períodos anteriores (diferença estatisticamente significativa se comparar-
mos a amostra islâmica com o conjunto das amostras do período Romano e da Idade do Ferro;
Davis, em preparação).
Na ausência de dados referentes a raças tradicionais ibéricas, as variações das ovelhas
de Santarém foram comparadas com uma população moderna de ovelhas da raça Shetland
(Davis, 1996, 2000). Na Fig. 5-20, podemos observar que a diferenciação sexual nas ove-
lhas Shetland é muito reduzida e, portanto, insuficiente para explicar o aumento de dimen-
são que acontece nas ovelhas de Santarém desde a Idade do Ferro até ao período Islâmico.
Se considerarmos as dimensões e a morfologia do astrágalo, os resultados confirmam a
escassa distinção sexual (Fig. 5-21, gráfico à direita) notando-se, no entanto, uma tendência
para a maior parte das fêmeas ocuparem o canto inferior esquerdo, enquanto os machos e
castrados tendem a situar-se no canto superior direito. Pelo contrário, segundo avançamos
FIG. 5-21 – Dimensão e morfologia de astrágalos de ovelha. Os gráficos de dispersão representam o índice largura/ profundidade
(Bd/Dd) versus o comprimento lateral (GL) na sequência cronológica da Alcáçova de Santarém (à esquerda) e numa amostra de
ovelhas Shetland actuais de sexo conhecido (à direita; Davis, 1996, 2000). Note-se a escassa distinção sexual existente nas
ovelhas Shetland, situando-se as fêmeas no canto inferior esquerdo e os machos e castrados à direita em cima, enquanto a
dispersão das ovelhas da Alcáçova de Santarém acontece de baixo para cima segundo avançamos no tempo. Poderá reflectir esta
mudança um melhoramento nas ovelhas portuguesas?
221
no tempo, constata-se que a dispersão das ovelhas da Alcáçova de Santarém acontece de
baixo para cima.
Como hipótese de trabalho gostaríamos de propor que as mudanças observadas nestes
ossos (morfologia e dimensões) podem representar uma alteração eventualmente devida à
introdução de novas raças nesta área de Portugal. A dispersão na amostra do período Islâmico
pode inclusive ser devida à origem mais heterogênea das ovelhas que foram morrer a Santa-
rém — duas raças? Animais importados de longe? Outra hipótese resulta da possibilidade de
estarmos perante um melhoramento da(s) raça(s) existente(s). Ambas as explicações são inte-
ressantes dado que podem reflectir tentativas de melhoramento nas práticas agro-pecuárias
na Lusitânia e no al-Garb andalusi, durante os períodos romano e islâmico, respectivamente
(Davis, em preparação).
Condições Patológicas
A análise das variáveis acima descritas, bem como as informações que podem ser reti-
radas do seu estudo, constituem as principais linhas de pesquisa habitualmente utilizadas em
Arqueozoologia para reconhecer as estratégias de exploração animal seguidas pelos nossos
antepassados. No entanto, existem outras abordagens que têm aberto novas áreas de investi-
gação, nomeadamente aquelas que se referem ao reconhecimento das condições de vida em
que os animais domésticos estiveram envolvidos e que ficaram reflectidas no seu próprio
desenvolvimento. Por exemplo, a disponibilidade e a qualidade das pastagens são aspectos da
máxima importância que determinaram o tipo de estratégia pastoril seguida na Antiguidade.
A exploração de rebanhos de ovicaprinos a pequena, média ou grande escala e a especializa-
ção ou diversificação em determinados produtos dependia desta circunstância. Intimamente
ligada a esta questão surge a prática de uma das estratégias pastoris mais significativas no
mundo mediterrânico em geral, e na Península Ibérica, em particular — a transumância
(Braudel, 1972; Delano Smith, 1979; Lewthwaite, 1981; Bartosiewicz e Greenfield, 1999).
No trabalho anteriormente realizado (Moreno-García, 1999a, 1999b, 2001) sobre as evi-
dências arqueozoológicas da transumância com duas populações de ovelhas actuais da Serra
de Albarracín (Teruel, Espanha), constatou-se que as condições de vida de rebanhos sedentá-
rios e estabulados são diferentes dos rebanhos transumantes, sobretudo no que diz respeito
ao stress a que os primeiros estão sujeitos durante os meses de inverno. Um dos métodos de
análise utilizado (Fig. 5-23) incidiu na observação sobre o modo como o cimento dentário se
acumula ao longo da vida destes animais.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
222
Observações patológicas
Consequências da exploração animal
FIG. 5-22 – Condições patológicas associadas a diferentes estratégias de exploração de animais domésticos.
223
Novas abordagens
Estudo do cimento dentário
> O cimento cresce em bandas concêntricas envolvendo as raízes dos dentes. As primei-
ras camadas estão posicionadas junto da dentina e as mais recentes estão mais próximas da
parte externa da raiz. A principal função do cimento é fixar o dente no seu alvéolo, ligando-
o com o ligamento periodental. Na maior parte das espécies o desenvolvimento de cimento
inicia-se quando os dentes começam a sair.
As camadas de crescimento do cimento dentário são constituídas por um elemento
principal e outro intermédio.
FIG. 5-23 – Análise do cimento dentário. Uma nova tecnologia a desenvolver na Arqueozoologia portuguesa.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
224
Mina e Klevezal (1970) utilizaram o termo “estrutura-registo” para definir as conchas dos
moluscos, as escamas e os otólitos dos peixes, o tecido ósseo e a dentina de todos os vertebra-
dos assim como o cimento dentário dos mamíferos. Em todas aquelas estruturas ficam regis-
tados determinados eventos da vida de um indivíduo (Klevezal, 1996). Segundo Klevezal (1996,
p. 3, 30) “All recording structures are layered ones… The layered pattern of a recording structure is a
result of differences in the morphology of its parts”. “Parts that form with a certain periodicity differ in
morphology and optical density”. O termo “growth layer” (camada de crescimento) resume assim
esta ideia de camadas diferentes formadas periodicamente em qualquer estrutura registo.
A periodicidade na formação das camadas de crescimento nos tecidos ósseo e dentário
resultou na aplicação desta técnica em Biologia para estudar demografia animal nos últimos
50 anos. Concretamente tem sido considerada uma ferramenta muito útil para conhecer a
idade precisa de animais selvagens (Klevezal et al., 1981). Todavia, verificou-se que nem sem-
pre o número de camadas corresponde aos anos de um indivíduo e que as camadas nem sem-
pre podem ser diferenciadas.
As variações observadas no padrão das camadas de crescimento entre indivíduos de uma
mesma espécie em diferentes regiões ecológicas e/ou indivíduos de diferentes espécies numa
mesma área ecológica, favoreceram o reconhecimento de possíveis factores que poderão ter
tido influência na ocorrência daquelas variações (Grue e Jensen, 1979). Portanto, podemos con-
siderar que para além da determinação da idade, outras perguntas relativas à ecologia e bio-
logia animal podem ser abordadas através do estudo de estruturas-registo. Observou-se maior
dificuldade em distinguir as camadas de crescimento em espécimes que habitam em áreas
com baixas alterações sazonais, enquanto a incidência de indivíduos com camadas distintivas
aumenta em regiões com marcada sazonalidade.
As diferenças das condições ambientais e comportamentais a que estão sujeitas ovelhas
transumantes e sedentárias foram consideradas um factor possivelmente visível no padrão de
desenvolvimento do cimento dentário (Moreno-García, 1999b).
Esta abordagem evidenciou como o ritmo de crescimento de animais com acesso a pas-
tagens durante todo o ano (transumantes) era contínuo, não havendo diferenças claras entre
deposição de cimento ao longo das várias estações. Pelo contrário, aqueles que haviam per-
manecido estabulados durante os meses mais frios apresentavam uma deposição mais lenta,
evidente na forma de camadas mais compactas, que poderiam estar relacionadas com o stress
ambiental a que estiveram sujeitos, i.e., alimentação reduzida, falta de ar, de movimentos, etc.
(Moreno-García, 1999b).
A recente aquisição dos equipamentos necessários para a elaboração de lâminas finas nos
laboratórios do IPA, irá permitir o desenvolvimento desta linha de investigação bem como a
sua aplicação na arqueozoologia portuguesa.
Inferências Socio-culturais
As relações estabelecidas entre os homens e os animais em muitas situações tem por base
questões socio-culturais. Em jazidas pre-históricas, os restos faunísticos podem ajudar a
conhecer o tipo de utilização que o homem fez do espaço produtivo, assim como as activida-
des que ali desenvolveu. Evidências como a frequência de diferentes elementos anatómicos ou
a sua distribuição espacial irão permitir responder a questões como, se estamos em presença
de locais onde os animais foram abatidos ou desmanchados ou apenas consumidos ou, pelo
contrário, se estamos perante um local onde todas estas actividades tiveram lugar sucessiva-
mente.
225
A ocorrência de ossos queimados, com incisões, cortes profundos ou determinado tipo
de fractura, permite inferir também a associação desses restos com o homem, constituindo a
prova de terem sido manipulados por ele. O reconhecimento dos utensílios que teriam pro-
vocado essas marcas e a existência de diferentes padrões na sua execução constituem ele-
mentos chave no registo das técnicas de processamento e modos de preparação das carcaças,
associados aos diferentes estádios culturais que marcaram a evolução humana.
Nos níveis proto-solutrenses e solutrenses do Abrigo do Lagar Velho (Moreno-García e
Pimenta, 2002) verificou-se a presença de restos de coelho queimados junto a ossos de javali
e cavalo com finas incisões, assim como de ossos longos de veado fracturados no plano lon-
gitudinal. Para além destes restos evidenciarem a exploração destas espécies pelo homem,
denotam também a manipulação das suas carcaças naquele local para o aproveitamento da
pele, o consumo da carne e da medula óssea.
Na gruta do Caldeirão (Davis, 2002) foi igualmente observada uma maior frequência de
ossos queimados e com cortes nos níveis solutrense e magdalenense em relação aos níveis
moustierense e do Paleolítico Superior Inicial, indicando a redução progressiva do uso daquele
espaço por carnívoros e um aumento da actividade humana no local.
As relações que o homem estabeleceu com o mundo animal não podem ser reduzidas à
relação predador/presa – caçador/consumidor. De facto, o registo arqueológico traz à luz do
dia exemplos que nos auxiliam de algum modo a fazer a história desse relacionamento. O coe-
lho depositado sobre as pernas da criança sepultada no Abrigo do Lagar Velho, Lapedo,
(Moreno-García, 2002c) no interior da sua mortalha, indicia um acto intencional que revela
a existência de um sentimento difícil de interpretar à distância de 25.000 anos: oferenda ritual?
Mascote?... Mais conclusivo poderá ser o enterramento simultâneo de um cão junto aos cadá-
veres de duas mulheres, recuperados no interior da Anta 3, no conjunto megalítico da Herdade
de Santa Margarida (Reguengos de Monsaraz). A datação deste esqueleto parcial é a mesma
dos dois enterramentos humanos: 3720±50 BP (BETA 166420), sugerindo que ele foi parte
daquele ritual funerário. Trata-se de um dos mais antigos registos que indiciam em Portugal
a estreita relação afectiva entre o Homem e o cão (Moreno-García, 2002a).
As inferências sócio culturais, cada vez mais complexas ao longo do tempo, são muitas
vezes difíceis de reconhecer através dos restos arqueológicos. Para aprofundar a nossa leitura
torna-se necessário explorar o conteúdo informativo de amplas amostragens onde seja possí-
vel evidenciar determinados padrões que reflictam comportamentos recorrentes e estrutura-
dos. Assim, semelhança e repetição do mesmo tipo de marcas de corte evidenciados em res-
tos faunísticos provenientes de várias jazidas portuguesas do período islâmico — Alcácer do
Sal (Moreno-García e Davis, 2001a); Convento de São Francisco, Santarém (Moreno-García e
Davis, 2001b); Sé de Lisboa (Moreno-García e Davis, 2001d); Núcleo Arqueológico da Rua dos
Correeiros, Lisboa (Moreno-García e Gabriel, 2001); Paços do Concelho de Torres Vedras
(Gabriel, 2003) sugerem a existência de um padrão no método de processamento das carca-
ças durante aquele período. Nos tratados de culinária hispano-muçulmanos é assinalada a
popularidade dos guisados, cozidos e estufados (Huici Miranda, 1966; Díaz García, 1973; Gar-
cía Sánchez, 1983-1988; Marín e Waines, 1994; García Sánchez, 1996), pratos em que peque-
nos nacos de carne eram cozinhados com verduras. O padrão evidenciado nos restos arqueo-
faunísticos, tanto nos ossos de mamíferos como nos de aves, parece corresponder a esta tra-
dição cultural, em que as carcaças são sucessivamente partidas até obter pedaços adequados
ao tamanho dos recipientes em que seriam cozinhados, originando assim poucos ossos com-
pletos ou semi completos (Fig. 5-24).
Reveste-se da maior importância a pesquisa de potenciais fontes informativas que orien-
tem a nossa percepção sobre estas questões. Os textos históricos referentes a diferentes aspec-
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
226
Inferências culturais
Desmanche das carcaças no período islâmico
>
Crânio de ovicaprino
(Ovis/Capra) com cortes
profundos originados
ao remover os cornos.
Núcleo Arqueológico da
Rua dos Correeiros, Lisboa.
Ulna de bovino
(Bos taurus) juvenil
com cortes e incisões.
Castelo de Alcácer
Corno de bovino (Bos taurus) do Sal.
seccionado. Núcleo
Arqueológico da Rua
dos Correeiros, Lisboa.
Tibia de bovino
(Bos taurus) com
Mandíbula de coelho cortes profundos
(Oryctolagus cuniculus) na diáfise. Núcleo
com pequenas incisões Arqueológico da
no diastema. Castelo Rua dos Correeiros.
de Alcácer do Sal.
Escápula de
ovicaprino
Esqueleto axial:
>
(Ovis/Capra) com
cortes transversais.
Castelo de Alcácer
do Sal.
Tibiotarso de
galliforme, galinha?
(Gallus domesticus)
Axis de ovicaprino (Ovis/Capra) Vértebra lombar de ovicaprino com cortes no plano
com pequenas incisões. Castelo (Ovis/Capra) seccionada no lateral da diáfise.
de Alcácer do Sal. plano sagital. Convento Castelo de Alcácer
de São Francisco, Santarém. do Sal.
Costela de ovicaprino
(Ovis/Capra) com cortes
transversais. Castelo
de Alcácer do Sal.
FIG. 5-24 – Desmanche das carcaças e marcas de descarne em conjuntos faunísticos portugueses no período islâmico.
227
Trabalho etnoarqueológico
Etno-zoologia em Marrocos
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
228
tos do papel que a fauna desempenhou em sociedades do passado e o trabalho etnográfico
desenvolvido junto de comunidades agro-pastoris tradicionais (Fig. 5-25) são algumas delas.
Alertam o investigador para a existência de um vasto rol de situações mesmo para além do sim-
ples consumo: associação de algumas espécies relacionadas com práticas rituais, outras indi-
cadoras de status social (por exemplo, aves exóticas, falcoaria), ou ainda o aproveitamento de
determinadas partes dos animais para diferentes finalidades (actividades artesanais, medici-
nais, etc.), onde assentam as relações complexas do homem com o mundo animal que o cir-
cunda.
Ponto Final
Agradecimentos
Agradecemos a José Paulo Ruas pelas excelentes fotografias que realizou (excepto as das
Figs. 5-23 e 5-25). É um privilégio de qualquer equipa beneficiar do seu apoio técnico-artístico
cuja qualidade muito valoriza este trabalho, sem o qual não teria sido possível visualizar os
exemplos aqui apresentados. A Armando Lucena agradecemos a execução do mapa utilizado
na Fig. 5-2, a Cleia Detry a cedência de algumas referências bibliográficas e a Cathy Douzil
pelos desenhos das Figs. 5-10, 5-11, 5-15, 5-19, 5-20 e 5-21.
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PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
234
| A osteoteca: uma ferramenta
capítulo 6
de trabalho
❚ MARTA MORENO-GARCÍA ❚ CARLOS M. PIMENTA ❚ SIMON DAVIS ❚ SÓNIA GABRIEL ❚
Introdução
235
Uma osteoteca não deve ser considerada
uma simples colecção de ossos, onde esteja
representado apenas um exemplar de cada
espécie. Factores como variabilidade individual
e dimorfismo sexual, muito acentuado em
algumas espécies, devem ser considerados.
Nem todos os ossos que constituem o esque-
leto de um vertebrado permitem um diagnós-
tico seguro ao nível da espécie. No entanto,
existe ainda um longo caminho a percorrer no
âmbito da morfometria, por exemplo, cujos FIG. 6-1 – Utilização prática da osteoteca: identificação de
fragmento proximal de tibia de ovelha.
avanços implicarão leituras mais precisas e
alargadas neste domínio (vide Capítulo 5).
Dada a inexistência em Portugal de uma colecção de referência de esqueletos de verte-
brados de apoio à Arqueozoologia, no início do ano 2000 a Direcção do Instituto Português
de Arqueologia e a nossa equipa estabeleceram a sua construção como tarefa prioritária. Para
concretizá-la foram cumpridos dois aspectos fundamentais:
• A montagem de um laboratório de preparação de esqueletos (Fig. 6-2).
• A disponibilização dos meios logísticos necessários à sua execução, organização e acon-
dicionamento.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
236
FIG. 6-3 – Exemplo de ofício a solicitar apoio a instituições nacionais.
237
Anualmente morrem ou são feridos milhares de animais selvagens. Outros, são criados
ou capturados para fins alimentares. A pesca, a pecuária, a caça (legal e ilegal) e a Protecção
da Natureza, são actividades que mantêm uma relação directa com o mundo animal.
Ao longo de 3 anos de actividade preparámos centenas de espécimes graciosamente
cedidos que hoje integram a colecção de referência. No caso de algumas espécies presentes no
passado mas actualmente ausentes no nosso território, recorremos ao intercâmbio de esque-
letos com entidades internacionais (Tabela 6-2).
Salientamos o papel desempenhado pelo Instituto de Conservação da Natureza, respon-
sável pela cedência da maior parte dos exemplares de fauna silvestre que integram a osteoteca.
Através da sua rede nacional de Áreas Protegidas, recolhemos centenas de animais, merecendo
especial menção o Parque Nacional da Peneda-Gerês onde muitos deles foram necropsiados
(Tabela 6-1). Ali estão conservadas as amostras que integram o Banco de Tecidos de Verte-
brados Selvagens, relevando o papel do ICN como responsável pela conservação, divulgação
e distribuição de material genético de grande valor científico. Partilhamos com os seus técni-
cos um nobre objectivo: evitar o desperdício de material biológico e proporcionar o seu cabal
aproveitamento por diferentes domínios de investigação em Portugal.
TABELA 6-1
Peixes Anfíbios Répteis Aves Mamíferos Total
– Contribuição das diferentes Áreas Protegidas nacionais para a constituição da colecção de referência de vertebrados do
TABELA 6-1
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
238
nario Cantábrico, da Cañada de los Pájaros – Reserva Natural Concertada (avifauna das
zonas húmidas) e Instituições Públicas e Estatais como a Consejería de Medio Ambiente
del Gobierno del Principado de Asturias, cujos responsáveis possibilitaram o acesso a
algumas espécies presentes no Norte da Península Ibérica (camurças, martas e sal-
mões), para além dos apoios e contactos regulares com o Laboratório de Arqueozoologia
da Universidad Autónoma de Madrid.
2) No âmbito do intercâmbio de esqueletos (ou partes de esqueletos) já preparados. Esta
é uma prática habitual entre investigadores de arqueozoologia que permite integrar
nas osteotecas elementos que, pela sua raridade ou inexistência nos países que os soli-
citam, seriam difíceis ou impossíveis de obter. Por esta via, no que respeita à fauna
mamalógica, conseguimos integrar nesta colecção espécies como o castor (Zooar-
chaeology Laboratory, Peabody Museum, Harvard University – USA), a hiena (Hebrew
University of Jerusalem – Israel), o urso (Finnish Museum of Natural History – Finlân-
dia), animais presentes no passado mas actualmente extintos em Portugal. Em rela-
ção à avifauna, recebemos importantes contributos da Polónia (Polish Academy of
Sciences), de Inglaterra (English Heritage), de França (Muséum d’Histoire Naturelle
de Paris), de Israel (Telaviv University) e da Groenlândia (Copenhagen Natural History
Museum).
TABELA 6-2
EM PORTUGAL:
I.C.N. – Instituto da Conservação da Natureza
– Parque Nacional da Peneda-Gerês
– Parque Natural da Arrábida
– Parque Natural do Douro Internacional
– Parque Natural de Montesinho
– Parque Natural da Ria Formosa
– Parque Natural da Serra da Estrela
– Parque Natural da Serra de São Mamede
– Parque Natural de Sintra-Cascais
– Parque Natural do Vale do Guadiana
– Reserva Natural das Berlengas
– Reserva Natural do Estuário do Sado
– Reserva Natural do Estuário do Tejo
– Paisagem Protegida do Litoral de Esposende
– DEP - Divisão de Espécies Protegidas
– DSCN – Direcção de Serviços da Conservação da Natureza
Centro de Biologia Ambiental - Faculdade de Ciências de Lisboa
Parque Ecológico de Monsanto – Lisboa
Estação Zootécnica Nacional – Santarém
Tapada Nacional de Mafra
DRARO – Direcção Regional da Agricultura da Região Oeste
Corpo de Inspectores Sanitários de Pescado da Câmara Municipal de Lisboa na Doca Pesca
Câmara Municipal de Lisboa
– Divisão de Higiene e Limpeza Urbana
– Museu da Cidade
L.N.I.V. - Laboratório Nacional de Investigação Veterinária - Lisboa
Instituto Oceanográfico
Faculdade de Medicina Veterinária - Lisboa
Liga para a Protecção da Natureza
Aquário Vasco da Gama
Instituto de Ciências e Tecnologias Agrárias e Agro-Alimentares – Universidade do Porto
(cont.) >>
239
(Cont.)
EM ESPANHA:
GREFA – Grupo para la Rehabilitación de la Fauna Autóctona y su Hábitat
ACCUCA - Asociación Cultural del Cuaternario Cantábrico
Consejería de Medio Ambiente - Gobierno del Principado de Asturias
Cañada de los Pájaros – Reserva Natural Concertada
Laboratorio de Arqueozoología – Universidad Autónoma de Madrid
EM EUROPA:
English Heritage, Portsmouth – Grã Bretanha
University of Birmingham – Grã Bretanha
Finnish Museum of Natural History – Finlândia
Muséum national d’Histoire naturelle, Paris – França
Polish Academy of Sciences – Polónia
Copenhagen Natural History Museum – Dinamarca
NO RESTO DO MUNDO:
Hebrew University of Jerusalem – Israel
Telaviv University – Israel
Peabody Museum - Zooarchaeology Laboratory, Harvard University – USA
TABELA 6-2 – Relação das instituições nacionais e estrangeiras que apoiam a constituição da osteoteca do IPA.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
240
o
FIG. 6-4 – Descarne do cadáver de um lobo (O adulto, CIPA N 1445). Primeira fase de preparação do esqueleto.
A Osteoteca
Método de Preparação
Existem diferentes métodos para obter o esqueleto de um animal a partir do seu cadá-
ver: enterramento, cultura de organismos necrófagos, maceração em água, etc. São pro-
cessos de manipulação desagradável e, sobretudo, demasiado lentos para a obtenção de
resultados a curto prazo.
O método utilizado no Laboratório de Arqueozoologia do IPA, desenvolvido por Davis
desde 1971, sucessivamente em Jerusalém, no Kurdistão, em Chipre e em Londres (Davis
e Payne, 1992), oferece um conjunto de vantagens inegáveis: rapidez e eficiência. Trata-se
de um processo bioquímico realizado em condições termicamente controladas através do
241
qual, pela actuação de um enzima adicionado à água onde os ossos são imersos, se opera a
destruição dos tecidos moles e ligamentos em poucas horas.
Para apresentar as diferentes operações relacionadas com a construção da osteoteca,
descrevemos detalhadamente as fases do processamento dos cadáveres e os critérios que
foram adoptados para a sua organização.
Identificação
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
242
FIG. 6-5 – Exemplo da ficha individual de preparação utilizada na osteoteca do IPA (modificada de S. Payne).
243
• Separam-se os membros anteriores e posteriores, do lado direito e do lado esquerdo.
Cada um destes conjuntos possui a respectiva chapa metálica.
• Estes ossos ainda articulados, com restos de carne e tendões, são colocados em
meias de nylon separadas, o mesmo acontecendo com os restantes elementos do
esqueleto (crânio, mandíbulas, pélvis, vértebras, etc.).
• Cozem em água a ferver para destruir os ligamentos durante períodos de tempo variá-
veis, de acordo com as dimensões e características do animal em preparação (de
alguns minutos a várias horas). Por exemplo, no caso dos peixes que não os possuem
ou de animais pequenos, dada a fragilidade dos seus ossos, são suficientes apenas
alguns minutos.
• Uma vez retirados da água, sofrem um segundo descarne dos tecidos amolecidos pela
cozedura anterior. Nesta fase, nos mamíferos de média e grande dimensão, são
abertos com um berbequim dois pequenos orifícios nas extremidades dos ossos do
esqueleto apendicular no sentido de estender a acção da enzima ao seu interior e eli-
minar o tutano.
• Após esta operação, uma vez recolocados nas mesmas meias de nylon, são mergu-
lhados em baldes de plástico com água tépida à qual é adicionada uma pequena por-
ção (1 colher de sopa/20 litros de água) de enzima Neutrase 0,8 L. Colocam-se os bal-
des numa estufa à temperatura constante de 45oC, permanecendo ali durante algu-
mas horas. O processo enzimático vai provocar a destruição dos tecidos restantes. No
caso de não ser possível aceder a uma estufa, para aquecer a água nos baldes podem
ser utilizados termóstatos de aquário. Uma alternativa à utilização desta enzima
pode ser o recurso a detergentes comerciais que, embora menos eficientes, produ-
zem resultados semelhantes.
• Terminada esta fase os diferentes conjuntos são retirados das meias, sempre acom-
panhados pela chapa respectiva, e lavados em água corrente. Durante esta operação
são utilizados crivos com malhas variadas, de acordo com as dimensões dos ossos que
estão a ser processados, visando a recuperação de todos os elementos. Depois são
colocados a secar em tabuleiros individuais.
• Uma vez secos, para eliminar a gordura não destruída pelo processo enzimático, pre-
judicial à boa conservação dos ossos e responsável por mau odor no futuro, é habi-
tual mergulhá-los em três banhos sucessivos de acetona durante algumas semanas.
Por vezes, durante a preparação, são recuperados objectos estranhos ao esqueleto
(chumbos de caça, por exemplo) que são guardados juntamente com ele, como comple-
mento da sua biografia.
Finalmente, os elementos registados nas fichas de preparação individuais são intro-
duzidos numa base de dados informatizada (Programa Access) que permite aceder com
rapidez a qualquer informação.
Marcação
Os ossos são marcados individualmente com tinta negra indelével (n.o de ordem,
membro e lado a que pertencem). Naqueles que vão integrar as colecções-índice, além das
marcações mencionadas, é inscrito o nome científico da espécie a que pertencem bem
como o sexo, sempre que tenha sido possível determiná-lo (Fig. 6-7).
Por fim procede-se ao registo na ficha individual do estado do esqueleto após a prepa-
ração (partes danificadas, perdidas, etc.).
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
244
Preparação
Sequência de operações no laboratório
5. Lavagem dos ossos após a acção 4. Baldes na estufa durante o processo enzimático.
enzimática.
245
– Colecção índice de aves. Na célula central podemos observar dois úmeros direitos de abetarda (Otis tarda). Do lado
FIG. 6-7
direito um espécime O, do lado esquerdo um espécime P. Notar o acentuado dimorfismo sexual existente nesta espécie.
Composição
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
246
das 350 inicialmente previstas (Fig. 6-9). Note-
-se a situação geográfica de Portugal como
ponto de passagem de rotas migratórias e área
de arribação de espécies invernantes e estivais.
No caso dos mamíferos, podemos considerar
duas situações: fauna silvestre e animais
domesticados. Espécies presentes no Plistocé-
nico, como os grandes felídeos, o leão ou o leo-
pardo, ou outras que hoje se encontram no
limiar da extinção, como o lince ibérico (Lynx
pardinus), ou o urso (Ursus arctos), não estão
representados ou apenas muito parcialmente
através de ossos isolados (Tabela 6-3). – Gráfico do número de esqueletos preparados na
FIG. 6-8
Em relação às espécies domésticas, que osteoteca do IPA até Abril 2003. Códigos de composição:
1= esqueleto completo; 2= esqueleto parcial; 3= crânio e
constituem a maior parte dos espólios arqueo- mandíbulas; 4= esqueleto muito incompleto; 5= ossos ou
faunísticos desde o Neolítico, torna-se funda- dentes isolados.
mental integrar na osteoteca amostragens sig-
nificativas de exemplares de primitivas raças
autóctones produzidas em Portugal, como
referido na Introdução. Este conjunto constitui
uma das maiores lacunas desta colecção.
Alguns dos contactos efectuados nesse sen-
tido, não produziram até ao momento os resul-
tados desejados. O aparecimento do surto de
febre aftosa em 2001, atrasou a preparação de
exemplares que as diferentes Associações de
Criadores de Ovicaprinos estão dispostas a
ceder-nos, uma vez debelados os condiciona-
lismos de carácter sanitário em vigor. Esta é
uma das prioridades imediatas da continua- – Gráfico do número de espécies representadas na
FIG. 6-9
TABELA 6-3 Relação das espécies que integram a osteoteca do IPA em Abril 2003
Mamíferos:
Insectivora
Erinaceus europaeus Ouriço-cacheiro
Sorex araneus Musaranho-comum
Sorex granarius Musaranho-de-dentes-vermelhos
Neomys anomalus Musaranho-de-água
Crocidura russula Musaranho-de-dentes-brancos
Crocidura suaveolens Musaranho-pequeno-de-dentes-brancos
Galemys pyrenaicus Toupeira de água
Desmana moschata Toupeira-de-água-da-Rússia
Talpa europaea Toupeira-europeia
Talpa occidentalis Toupeira de Cabrera
(cont.) >>
247
TABELA 6-3 (cont.)
Mamíferos:
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248
TABELA 6-3 (cont.)
Mamíferos:
Aves:
Gaviiformes
Gavia stellata Mobelha-pequena
Gavia immer Mobelha-grande
Podicipediformes
Tachybaptus ruficollis Mergulhão-pequeno
Podiceps cristatus Mergulhão-de-crista
Podiceps grisegena Mergulhão-de-faces-brancas
Procellariiformes
Fulmarus glacialis Fulmar-glacial
Calonectris diomedea Cagarra
Puffinus puffinus Pardela-sombria
Oceanodroma leucorhoa Painho-de-cauda-forcada
Diomedea chlororhynchos Albatroz-de-bico-amarelo
Pelecaniformes
Sula bassana Ganso-patola
Pelecanus onocrotalus Pelicano-vulgar
Phalacrocorax carbo Corvo-marinho-de-faces-brancas
Phalacrocorax aristotelis Corvo-marinho-de-crista
Phalacrocorax pygmeus Corvo-marinho-pequeno
Ciconiiformes
Botaurus stellaris Abetouro-comum
(cont.) >>
249
TABELA 6-3 (cont.)
Aves:
>
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250
TABELA 6-3 (cont.)
Aves:
(cont.) >>
251
TABELA 6-3 (cont.)
Aves:
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252
TABELA 6-3 (cont.)
Aves:
(cont.) >>
253
TABELA 6-3 (cont.)
Aves:
Répteis:
Chelonia
Caretta caretta Tartaruga-boba
Dermochelys coriacea Tartaruga-de-couro
Mauremys leprosa Cágado-comum
Testudo graeca Tartaruga moura
Sauria
Tarentola mauritanica Osga-comum
Chalcides bedriagai Cobra-de-pernas-de-cinco-dedos
Chalcides striatus Cobra-de-pernas-de-três-dedos
Anguis fragilis Licranço
Lacerta lepida Sardão
Lacerta monticola Lagartixa-da-montanha
Lacerta schreiberi Lagarto-de-água
Podarcis bocagei Lagartixa-de-Bocage
Podarcis carbonelli Lagartixa-de-Carbonell
Podarcis hispanica Lagartixa-ibérica
Psammodromus algirus Lagartixa-do-mato
Psammodromus hispanicus Lagartixa-do-mato ibérica
Coluber hippocrepis Cobra-de-ferradura
Coronella austriaca Cobra-lisa-austríaca
Coronella girondica Cobra-bordalesa
Elaphe scalaris Cobra-de-escada
Malpolon monspessulanus Cobra-rateira
Natrix maura Cobra-de-água-viperina
Natrix natrix Cobra-de-água-de-colar
Vipera latastei Víbora-cornuda
Vipera seoanei Víbora-de-Seoane
Iguana iguana Iguana (exótica)
Anfíbios:
Caudata
Chioglossa lusitanica Salamandra-dourada
Pleurodeles waltl Salamandra-de-costelas-salientes
>
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
254
TABELA 6-3 (cont.)
Anfíbios:
Peixes:
Acipenseridae
Acipenser sturio Esturjão
Clupeidae
Sardina pilchardus Sardinha
Engraulidae
Engraulis encrasicolus Biqueirão
Salmonidae
Salmo salar Salmão-do-Atlântico
Salmo trutta Truta-comum
Congridae
Conger conger Congro
Merlucidae
Merluccius merluccius Pescada-branca
Gadidae
Gadus morhua Bacalhau-do-Atlântico
Molva molva Maruca
Trisopterus luscus Faneca
Serranidae
Polyprion americanus Cherne
Mycteroperca rubra Garoupa-chumbo
Epinephelus alexandrinus Mero-amarelo
Moronidae
Dicentrarchus labrax Robalo-legítimo
Dicentrarchus punctatus Robalo-baila
Pomatomidae
Pomatomus saltator Anchova
Caranjidae
Trachurus trachurus Carapau
Bramidae
Brama brama Xaputa
(cont.) >>
255
TABELA 6-3 (cont.)
Peixes:
TABELA 6-3 – Relação das espécies que integram a osteoteca do IPA em Abril 2003.
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256
Organização
1. Colecções índice
Assim designamos os tabuleiros temáticos que contêm os diferentes ossos dos vários gru-
pos de vertebrados, método já desenvolvido noutras osteotecas (Corke et al., 1998). É a colec-
ção de uso diário e imediato que permite numa rápida observação, comparar o mesmo osso
em todas as espécies representadas.
A Colecção Índice das aves é composta por 27 gavetas formato A 0 (3 gavetas por cada ele-
mento ósseo; Fig. 6-10) e 9 gavetas formato A 3 (para o caso das aves de menores dimensões
– os Passeriformes, excluindo os corvídeos que pela sua maior dimensão estão integrados nas
– Colecção índice de aves. Gavetas formato A0, divididas em células individuais. Notar as diferentes cores das etiquetas que
FIG. 6-10
representam diferentes super-famílias. A primeira gaveta contém os ossos das espécies de menor dimensão, a segunda os de
média dimensão e a terceira as espécies maiores. Em cada célula deverão figurar dois ossos correspondentes a macho e fêmea.
257
gavetas A 0). Encontram-se dispostos
em células individuais, com etiquetas de
diferentes cores correspondentes às
super-famílias, os 9 ossos acima mencio-
nados. Dado que algumas espécies apre-
sentam acentuado dimorfismo sexual,
caso da abetarda (Otis tarda; Fig. 6-7)
por exemplo, cada célula deverá conter
2 ossos — um macho e uma fêmea.
No que respeita aos médios e gran-
des mamíferos, os ossos principais do
esqueleto apendicular estão organizados
em 8 gavetas A 0 e os ossos de menor
FIG. 6-11 – Tabuleiro temático onde estão organizados em células
dimensão, caso dos carpais e tarsais, em
individuais os ossos carpais dos ungulados mais comuns.
tabuleiros divididos em células indivi-
duais (Fig. 6-11).
O mesmo critério de organização está a ser aplicado aos microvertebrados: Herpetofauna
(répteis e anfíbios; Fig. 6-12) e pequenos mamíferos (Chiroptera, Insectívora e Rodentia).
No caso da ictiofauna, está prevista a aplicação desta mesma solução para os ossos
cranianos mais diagnosticantes e para os otólitos.
2. Colecção de referência
Este conjunto funciona como comple-
mento das colecções índice. Dado que dentro
de uma mesma espécie existem variações mor-
fológicas susceptíveis de levantarem dúvidas
na identificação de alguns restos arqueozooló-
gicos, é aconselhável consultar vários exem-
plares. Na colecção de referência figuram
esqueletos completos, organizados por enti-
dades taxonómicas em caixas separadas
(Fig. 6-13). Cada espécie encontra-se repre-
sentada por 3 esqueletos no caso dos mamífe-
ros (1 macho, 1 fêmea e um juvenil; Fig. 6-14)
e 6 esqueletos no caso das aves (3 machos e
3 fêmeas). Com um número ainda muito redu-
zido de exemplares preparados, as diferentes
espécies da ictiofauna encontram-se acondicio-
nadas em caixas que comportam várias Famílias.
3. Colecção de reserva
Continuamos a preparar, para além dos
números acima mencionados, algumas espé-
– Tabuleiro temático que contém os oito ossos
FIG. 6-12
cies de mamíferos e aves, no sentido de asse- mais diagnosticantes do esqueleto pós-cranial dos
gurar a existência de conjuntos que permitam anfíbios portugueses (Anura e Urodela). Notar que os
ossos de menor dimensão estão acondicionados em
a realização de estudos de variabilidade intra- caixas de plástico individuais etiquetadas. Esta solução
-específica. Estes exemplares excedentes, cujos permite-nos manter separados e identificados os ossos
esqueletos já figuram nas colecções índice e de que não podem ser marcados individualmente.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
258
– Vista geral da colecção de referência
FIG. 6-13 – Caixa da colecção de referência que contém os esqueletos de três
FIG. 6-14
de mamíferos e aves do IPA. gatos domésticos (um macho, uma fêmea e um juvenil).
Divulgação
259
de alunos um contacto directo com diferentes problemas colocados ao estudo de materiais
arqueofaunísticos.
O inventário da osteoteca é divulgado através da página do IPA na Internet (www.ipa.min-
cultura.pt/cipa/zoo). O acesso directo a esta colecção nas nossas instalações é facultado a
qualquer investigador que o solicite, já que, para além de servir eficazmente os objectivos da
identificação arqueozoológica, proporciona abordagens muito diversificadas. Neste sentido,
tem sido regularmente utilizada por arqueozoólogos nacionais e estrangeiros. Tem assumido
um papel importante para alunos da Escola de Medicina Veterinária de Lisboa que ao longo
dos últimos dois anos lectivos aqui vêm estudar gratuitamente esqueletos de animais domés-
ticos, na preparação para os seus exames da cadeira de Anatomia I.
De igual modo tem auxiliado trabalhos desenvolvidos na Estação Florestal Nacional rela-
tivos à identificação de restos osteológicos provenientes do regime alimentar de diferentes
espécies de aves de rapina.
Conclusão
Esta osteoteca representa um património de grande valor científico. Com a sua constru-
ção a Arqueozoologia portuguesa conquista uma ferramenta fundamental para o seu desen-
volvimento. Por outro lado, a sua organização funcional representa um elemento pedagógico
da maior utilidade para a formação dos futuros arqueozoólogos portugueses.
O espírito de abertura e transparência que orienta esta equipa permite-lhe encarar o
futuro com um optimismo responsável. Desejamos continuar a articular as nossas activi-
dades com outras instituições e grupos que possam beneficiar do desenvolvimento deste tra-
balho.
Agradecimentos
Para além das Instituições mencionadas na Tabela 6-2, muitas foram as pessoas que ao
longo dos últimos três anos nos auxiliaram. Alguns, partilhando connosco no laboratório de
preparação de esqueletos o lado mais duro e desagradável deste projecto, têm o seu nome regis-
tado nas respectivas fichas de preparação, mas devemos agradecer-lhes aqui: Cláudia Costa,
Luís LLoveras, Cleia Detry, Ana Silva, Nuno Prista e Jorge Ferreira, para além da participação
pontual de alunos do 1o Ano de Biologia da Faculdade de Ciências e de alunos do 1o Ano da
Faculdade de Medicina Veterinária de Lisboa.
Outros, em Portugal ou no estrangeiro, deram-nos o seu apoio a diferentes níveis, desde
a cedência de espécimes, ao fornecimento de contactos que nos conduziram às instituições
mencionadas. Às seguintes pessoas que nelas trabalham, pessoalmente e em nome do Insti-
tuto Português de Arqueologia o nosso muito obrigado:
Albano Beja Pereira, Aldina Moreira Inácio, Alison Locker, Ana Albuquerque, Ana Isa-
bel Queiroz, Ana Pajuelo, Ana Pinto, Ana Sá, Ann Forstén, António Casanova, António Mira,
António Rebelo, António Teixeira, Armando Loureiro, Armando Lucena, Arturo Morales
Muñiz, Augusto José Pimenta, Carla Marisa Quaresma, Carlos Carrapato, Carlos Guerra, Car-
los Nores Quesada, Carlos Pedro Santos, Cidália Soares, Cristina Gameiro, Christine Lefèvre,
Dinah Sobral, Eduardo Gonçalves Crespo, Elaine Corke, Eric Bignal, Eric Pellé, Eufrasia
Roselló, Eunice Pereira, Francisco Almeida, Francisco Petrucci Fonseca, François Poplin,
Graça Pires, Helena Silva Pinto, Henrique Carvalho, Humberto Carrapato, Inês Barroso,
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
260
Jean-Denis Vigne, Jean-Philip Brugal, Jessica Pearson, Joel Ferraz, Jordi Colás, Jorge Pal-
meirim, José Eduardo Mateus, José Santos Silva, Josefina Barreiro, João Carlos Mateus, João
de Brito Reis Fialho, José Pargana, José Vale Henriques, Kim Aaris Sorensen, Luísa Rodrigues,
Luís Roberto e Sousa, Lurdes Carvalho, Margarida Fernandes, Margarida dos Santos Reis,
Maria Angeles, Maria João Coutinho, Maribel Adrián, Marina Sequeira, Mário Chech, Mário
Jorge Almeida, Merche Matesán, Miguel Henriques, Miguel Oliveira, Nuno Santos, Nuno Ven-
tinhas, Patrícia Mendes, Paul Croft, Paula Queiroz, Paulo Carmo, Paulo Célio Alves, Pedro
Aldana, Pedro Rocha, Plácido Rodríguez, Poly Baker, Ricardo Espírito Santo, Ricardo Luís
Paiva, Richard Meadow, Rivka Rabinovich, Roberto Sousa, Rui Boaventura, Santiago Riera,
Sarah Whitcher, Sónia Jesus, Tamar Dayan, Tony Gouldwell, Umberto Albarella, Victor Váz-
quez Fernández, Wim van Leeuwaarden, Yoram Yom Tov, Yorgos Nicoletti, Zbigniev
Bochenski, bem como a todos os Guardas e Vigilantes de Natureza de Portugal.
BIBLIOGRAFIA
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261
Núcleo de Paleobiologia Humana
capítulo 7 | Bioantropologia
❚ CIDÁLIA DUARTE ❚
Introdução
263
sobre rituais funerários e sobre diversos aspectos da paleodemografia em distintas épocas
da Pré-História e da História do nosso território. Contudo, o cumprimento das metodologias
de terreno não alcançam, por si só, a finalidade desejada de uma leitura integrada do
mundo funerário e da sua interacção com modos de vida, actividades de intervenção no
território e, mais pormenorizadamente, com processos sociais. Debateremos estas questões
mais adiante neste capítulo.
Esta secção pretende incidir sobre dois aspectos distintos da intervenção da Bioantro-
pologia: a abordagem teórica e o alcance da disciplina enquanto fornecedora de conheci-
mento sobre o comportamento humano passado e, por outro lado, os imperativos metodo-
lógicos da disciplina, enquanto intervenção no terreno e em laboratório. Em todas as
circunstâncias tentaremos encontrar exemplos e relações com a experiência de Portugal e
do IPA, em particular.
O Núcleo de Antropologia do CIPA desenvolveu-se como resposta a uma dupla neces-
sidade. Em primeiro lugar, tornou-se premente, para o próprio IPA, avaliar as situações de
terreno que exigissem intervenção de antropólogo. Nesse contexto, o núcleo cumpre uma
função regulamentar, avaliando algumas situações de campo e emitindo pareceres técnicos
sobre diversos processos de escavação a decorrer. Por outro lado, trabalha numa área labo-
ratorial em torno da estabilização de restos humanos provenientes de sítios arqueológicos,
produção de osteobiografias, e definição de gestos funerários a partir da análise dos restos
humanos numa perspectiva arqueológica. Esta abordagem à leitura dos esqueletos procura,
a nível mais abrangente, dissecar os restos humanos e o seu contexto material e espacial,
tentando ler o registo que ainda permanece nesses dados. A partir daí, tenta-se a integra-
ção dessa informação em algo de mais abrangente – o comportamento humano em deter-
minado momento, em determinada comunidade, num espaço geográfico específico. Apli-
cando um “zoom” à abordagem da Paleoantropologia, a focagem seguinte centra-se na lei-
tura dos restos humanos à luz dos princípios obtidos sobretudo na Antropologia Forense
e na Osteologia Humana em geral. Por analogia, estamos a falar do nível de Middle Range
Theory definido por Binford (1971); trata-se da aplicação e teste sistemático de dados
actuais comparativos à investigação arqueológica. Se aplicarmos o zoom a um grau ainda
mais pormenorizado, a Paleoantropologia pretende chegar ao indivíduo e à construção de
osteobiografias.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
264
e, em conjunto com o arqueólogo, integrar estes padrões de natureza comportamental,
inserindo-os num quadro mais vasto de evolução e história humanas. Esta ideia não pode
ser confundida com a visão de que o verdadeiro homem é o homem religioso (vide May, 1986
para definição do conceito) e que o comportamento funerário é a concretização material
dessa religiosidade. O acto funerário, na sua origem, deve estar associado ao desenvolvi-
mento da capacidade de abstracção e de previsibilidade mais do que a qualquer tipo de espi-
ritualidade e religiosidade. Esta abordagem, contudo, não é comum entre arqueólogos, já
que na herança judaico-cristã o medo da morte e do que nela se encontrará existe e motiva
mesmo regras de conduta em vida. Assim, a interpretação do comportamento funerário é
frequentemente confundido com religião (exemplo, Malefijt, 1989, p. 104-144).
Em termos teóricos, o comportamento funerário parece estar mais ligado, na sua
origem, a mecanismos psíquicos. Já no que respeita ao desenvolvimento de formas distin-
tas de abordar a morte, este parece estar mais dependente de variáveis de etnicidade,
vagueando e viajando ao sabor dos próprios movimentos culturais desde a Pré-história,
sejam eles de carácter difusionista ou migratório.
A um nível de pormenor, a Antropologia distancia-se da Arqueologia no que diz res-
peito ao objecto de estudo. Se é verdade que o determinismo ecológico há muito deixou de
ser preponderante na abordagem teórica do saber arqueológico e que é hoje amplamente
aceite pela comunidade antropológica que todo o comportamento humano envolve escolha,
a prática funerária é, na sua essência, distinta da maior parte do comportamento humano
detectável em Arqueologia. Concretizando, se a escavação e interpretação de contextos
habitacionais consegue, em última análise, detectar um dos muitos actos possíveis envol-
vidos na escolha humana, numa dada conjuntura, actos mecanizados nas formas de adap-
tação e de gestão dos espaços, nem sempre planeados individualmente, a exumação de
restos humanos reporta-se sempre a um contexto intencional, planeado, porque envolve o
‘descartar’ de um membro endógeno (ou exógeno) à comunidade que pratica o acto
fúnebre . Tal acto é sempre, e sem excepção, rodeado de angústia, luto, perda e/ou medo,
ansiedade, raiva, ódio e é invariavelmente um acto com envolvimento de pensamento reli-
gioso, quando esse faz parte do todo social de uma dada população.
É na abordagem teórica que a exumação de esqueletos humanos se destaca da arqueo-
logia de espaços ambientais, seja qual for a sua amplitude. A forma de tratar um cadáver é
condicionada por valores sociais, culturais, religiosos e, em última análise, psicológicos.
Contudo, ao nível espacial, a morte e a vida estão imbricadas e é visível, ao longo da histó-
ria humana, a alteração do espaço funerário em relação ao espaço habitado, desde o espaço
doméstico, no caso extremo de Jericó (Hodder, 1990, p. 34-36), até ao território remoto
(vide Introdução e Capítulo 3, para definição de conceitos de espaço).
São várias as abordagens teóricas propostas para a interpretação de comportamentos
funerários. Em todas elas se encontra, a nível conceptual, a ideia de passagem, um ritual de
transição e, a nível social, a transferência de um estatuto de vivo para um estatuto de
defunto (memória), nem sempre coincidentes (vide Metcalf e Huntington, 1991 para dis-
cussão). As diferentes formas de enfrentar e imaginar o universo postmortem condicionam
as opções do tratamento funerário numa dada comunidade. Mesmo olhando para a socie-
dade ocidental em que vivemos, os diversos grupos étnicos e religiosos afirmam-se pela
adopção de rituais fúnebres distintos, exacerbados entre os grupos minoritários numa dada
comunidade (Pearson, 2001, p. 184). Esta especificidade do comportamento funerário, em
conjunto com a diversidade existente dentro de um conjunto populacional, ao nível dos
pormenores do ritual fúnebre, não podem ser olvidados no momento da interpretação de
um contexto mortuário arqueológico.
BIOANTROPOLOGIA
265
Contextos Funerários Arqueológicos- Terminologia
Deposições primárias
Define-se como deposição primária a que se refere ao local em que os restos humanos
foram depositados logo após a morte do indivíduo (quer seja inumação, cremação, deposição
de superfície ou outra). Assim, as transformações sofridas pelos restos humanos sob análise
serão, necessariamente, resultantes das transformações pós-deposicionais, e não de uma
acção do próprio ritual funerário.
As deposições primárias podem, contudo, ser colectivas ou individuais e não serão, por
consequência, abordadas sempre da mesma forma pelo arqueólogo. As deposições primá-
rias/colectivas (que não sejam ossários) sugerem uma metodologia que se aproxima mais
das técnicas utilizadas para as deposições secundárias, acrescida de identificação de esque-
letos individuais e registo de dados osteobiográficos no terreno. Então, para uma dada
sepultura, podem existir vários indivíduos e para esclarecer o seu posicionamento relativo,
o arqueólogo deve utilizar uma metodologia de registo detalhada, aplicável a qualquer outro
tipo de restos arqueológicos, com dados tridimensionais de proveniência. Para além disso,
há que recolher os dados osteobiográficos de terreno (vide Ficha de campo no final do capí-
tulo). É o tipo de contexto mais complexo, em termos de recolha de dados no campo.
Deposições secundárias
Define-se como deposição secundária aquela em que os restos humanos são colocados
em locais distintos daqueles onde foram depositados após a morte. Isto é, a deposição secun-
dária resulta de um tratamento mais complexo do cadáver, em fases distintas e sucessivas.
Essas fases podem ser múltiplas. No caso dos rituais funerários católicos presentemente pra-
ticados nos centros urbanos portugueses a deposição primária é individual, seguida de depo-
sição secundária sob a forma de ossário ou gavetão individual.
Outras instâncias há em que numa sepultura individual pode ocorrer uma deposição
secundária de um ou mais indivíduos que tenham sido sepultados na mesma estrutura ante-
riormente mas cujos ossos foram deslocados para acomodar um cadáver mais recente. Embora
esta não seja a definição típica de deposição secundária ela pode ser, tipologicamente, assim
designada. Classificar-se-ia, assim, como uma sepultura colectiva, onde existe uma inumação
primária e deposições secundárias que lhe estão associadas (porque o esqueleto é manipulado
posteriormente).
Dado que a vasta maioria das necrópoles neolíticas e calcolíticas do território português
são de carácter colectivo (Carvalho et al., 2003; Duarte, 1998; Duarte e Arnaud, 1995; Lago
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
266
et al., 1998; Silva 1997) importa debruçarmo-nos um pouco sobre a recolha de dados neste
tipo de contextos. A recolha e registo dos ossos humanos deve, nestes casos, obedecer a cri-
térios semelhantes aos utilizados para o resto das estruturas evidentes recuperadas em con-
texto arqueológico. Isto é, perante a dificuldade do registo tradicional utilizado especifica-
mente para o esqueleto, o arqueólogo deve optar por uma estratégia semelhante à da defi-
nição de camadas estratigráficas, seguindo níveis artificiais de espessura a definir ou, em
alternativa, utilizando os métodos definidos por Harris (1979, 1989), que permitem uma
flexibilidade de associações, adequada a contextos funerários onde relações horizontais
parecem existir, mesmo se em núcleos distintos, em diferentes coordenadas X e Y.
Independentemente da abordagem estratigráfica, nos contextos funerários colectivos
e/ou secundários o registo de cada um dos elementos ósseos deve ser efectuado tridimen-
sionalmente, com vista à detecção de possíveis padrões de distribuição espacial preferencial
das ossadas e identificar, em laboratório, indivíduos específicos, obtendo um quadro de dis-
persão dos seus ossos no contexto analisado. Preferencialmente, cada nível e quadrante deve
ser fotografado, depois de ser totalmente decapado, para que possam ser identificadas e
documentadas quaisquer conexões anatómicas, mesmo que parciais.
Em contextos de gruta, deve ser pormenorizadamente analisada a possibilidade de exis-
tência de fossas de enterramento, possivelmente delimitadas por blocos de pedra, definindo
sub-áreas específicas dentro do espaço funerário. O entendimento do espaço funerário em
contexto cársico é particularmente complexo, sendo necessário identificar a possível lava-
gem de sedimentos após a deposição dos corpos/esqueletos que, a ter ocorrido, pode ter apa-
gado grande parte das estruturas e inumações existentes bem como pode ter alterado a dis-
posição original dos ossos, quer em número, quer em posicionamento.
Deposições individuais
Entende-se por deposição individual aquela em que uma estrutura funerária é cons-
truída/definida com vista à deposição de um só indivíduo. A exumação de sepulturas indi-
viduais torna possível o registo de elementos específicos que valorizam significativamente
a osteobiografia do indivíduo (vide Ficha de Campo no final do capítulo). Como exemplo, é
possível detectar lesões patológicas não visíveis em ossos isolados, detectar causas de morte
em casos específicos mas, sobretudo, é possível reconhecer-se o conjunto de artefactos asso-
ciados a cada indivíduo. Este tipo de informação é extremamente importante para a carac-
terização de atitudes perante a morte e de tratamento diferencial dos indivíduos consoante
o sexo e a idade, ao longo do tempo de utilização de um determinado espaço funerário.
A primeira questão a ter em conta na escavação de sepulturas individuais é a sua deli-
mitação no espaço; isto é, podemos estar em presença de sepulturas únicas ou integradas
numa necrópole e importa definir a área de ocupação da zona funerária para melhor decidir
a estratégia de escavação e desmontagem. Uma das muitas possíveis é o estabelecimento de
sondagens numa quadrícula abrangente estabelecida sobre a área a intervir, em sistema de
tabuleiro de xadrez, abrindo quadrículas alternadamente. Estabelecida a área a sondar, esta
deve ser limpa de todo o preenchimento superficial, assinalando-se, em todo o caso, a qua-
drícula de proveniência dos mesmos. Só depois de efectuada esta recolha superficial, deve ser
efectuada a exposição dos esqueletos.
Iniciada a escavação em profundidade, cada sepultura terá que ser identificada em termos
de localização tridimensional. Isto é, mesmo em cemitérios onde as sepulturas são individuais,
é necessário localizá-las horizontal e verticalmente, de forma a definir a sequência de enter-
ramentos.
BIOANTROPOLOGIA
267
Deposições colectivas
Ossários
Em alguns casos, após o descarnamento dos corpos, os ossos são reunidos em áreas espe-
cíficas, frequentemente para dar lugar a novas inumações no local de inumação primária. Estes
ossários (exemplo clássico de deposições secundárias) podem ser individuais (como no caso
dos grandes cemitérios urbanos actuais, em gavetas) ou colectivos (como nos casos pré-his-
tóricos do Neolítico ou nos espaços funerários cristãos medievais/modernos).
Porque a estratégia de escavação deve ser definida de forma distinta para cada tipo de
ritual funerário, o arqueólogo deve ter conhecimento do tipo de práticas que encontrará em
contextos históricos ou pré-históricos.
De uma forma geral, para as épocas históricas, é de referir a existência de diversos tipos
de inumações, aos quais se devem aplicar métodos distintos de investigação.
No período clássico romano, por exemplo, os métodos de inumação de cinzas em urna
utilizados durante a Idade do Bronze e Ferro no território português (vide Caixa 7-1, Monte da
Têra) foram-se transformando, assistindo-se a uma alteração dos hábitos funerários, visível
mesmo ao longo do período do Império Romano no Ocidente (Figueiredo, 2001). Passa-se aos
enterramentos em ânfora (vide Caixa 7-2, Tróia) em cova individual, ou à incineração, prati-
cada, sobretudo, no início de influência do Império (vide Caixa 7-3, Martim Moniz) e abando-
nada a partir do século II (Figueiredo, 2001; Tranoy, 2000).
Enquanto que na Idade do Ferro o espaço escolhido para local funerário era junto ao
povoado, tipicamente a uns poucos metros para Oeste, possivelmente em associação com o
pôr-do-Sol, a lei romana olhava os defuntos como algo de perigoso (Res funesta), empurrando
para zonas marginais dos centros urbanos o espaço funerário (Figueiredo, 2001). Por vezes,
a manutenção de ritos fúnebres associados ao espaço doméstico manteve-se durante o perío-
do romano imperial na Península Ibérica (zona norte), o que poderá ser interpretado como um
foco de resistência à ocupação (Figueiredo, 2001).
A partir do séc. III da nossa era o processo fúnebre torna-se, em termos arquitectónicos,
cada vez mais homogéneo, caracterizando-se pela escavação de sepulturas frequentemente
antropomórficas (vide Caixa 7-4, Casal São Brás), destinadas a albergar um só cadáver (vide
Caixa 7-5, BCP), só muito raramente colectivas. Com a expansão dos edifícios religiosos depois
da conversão visigótica ao cristianismo, em 589, os espaços religiosos são cada vez mais uti-
lizados para locais de enterramento e, com limitações cada vez maiores, sobretudo em épocas
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
268
CAIXA 7-1
BIOANTROPOLOGIA
269
CAIXA 7.1 (cont.)
CAIXA 7-2
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
270
CAIXA 7-2 (cont.)
TABELA 7-1
Osso Comprimento/largura Idade sugerida (em meses lunares)
(em milímetros) (Fakekas e Kosa, 1978)
Temporal (Pars petrosa) 39,6/18,6 10
Occipital (Pars basilaris) 13,9/16,5 9
Occipital (Squama occipitalis) 13,9/16,5 10
Occipital (Pars lateralis) Visual 10
Frontal Visual 9
Esfenóide (Ala major) 32,2/ 23,2 9
Clavícula 46,5/ 4,7 > 10
Omoplata 33,7/30,9 9.5
Fémur -/ 6,2 -
Maxilar inferior 41/20 9.5-10
Nenhum dos ossos observados demonstrou fusão das epífises nem calcificação primária
das mesmas, o que confirma a idade sugerida pelos dados osteométricos. Durante a crivagem
e triagem das terras foram identificados alguns fragmentos de coroas dentárias de dentes
deciduais, cujas dimensões são coerentes com o diagnóstico etário aqui apresentado.
A pequena ânfora serviu, assim, de recipiente para depositar o corpo de uma criança de idade
peri-natal, indiciando uma forma de tratamento funerário completo, apesar da reduzida idade
do indivíduo. Este não é um caso isolado; outras sepulturas de Tróia (depositadas em outras
instituições) estão em análise no âmbito de outros projectos de investigação.
BIOANTROPOLOGIA
271
CAIXA 7-3
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
272
CAIXA 7-4
Identificada através de uma prospecção de rotina a um corte realizado num local com memó-
ria arqueológica, a Necrópole do Casal de São Brás foi escavada pela equipa do Museu Municipal
de Arqueologia da Amadora, em colaboração com o núcleo de Antropologia do IPPAR. A datação
pelo radiocarbono efectuada pelo ITN Sacavém localizou-a na Alta Idade Média (séculos VII-VIII).
TABELA 7-2
Referência Referência Tipo Delta C13 0/00 Idade Data calibrada
de laboratório0 da amostra (anos BP)
SAC- 1598 Casal de São Brás Osso humano -17.67 1300+-40 1 sigma: 670-776 cal AD
Sepultura 5 2 sigma: 658-790 cal AD
TABELA 7-3
Sep.I Sep.II Sep.III Sep.IV Sep.V Sep.VI Sep.VII Sep.VIII Sep.IX
Idade Adulto 2 Crianças Adulto Adulto Adulto 2 fetos Adulto Adulto Adulto
Sexo Masc. Fem. Masc. Fem. - Masc. Fem. -
No entanto, a distribuição dos restos humanos por cada sepultura denuncia a escolha de
espaços separados para os adultos, espaços preparados especificamente para cada indivíduo,
sendo todas as sepulturas individuais, sem qualquer repetição de algum elemento ósseo que
pemita identificar uma reutilização de espaços. As crianças e fetos, pelo contrário, foram depo-
sitados em sepulturas múltiplas. De facto, os únicos dois enterramentos colectivos são a sepul-
tura 2 e 6, ambas com dois indivíduos, e ambas com apenas restos ósseos de crianças (Encar-
nação e Duarte, 2000).
BIOANTROPOLOGIA
273
CAIXA 7-5
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
274
mações parecem ter sido efectuadas durante o Paleolítico Médio (Golovanova et al., 1999), o
Paleolítico Superior é, por excelência, a época da Pré-História onde, indubitavelmente, os cor-
pos são inumados (Binant, 1991). A frequência da inumação em gruta pode ser sugerida, uni-
camente, pela maior probabilidade de conservação dos restos humanos em depósitos calcários.
Contudo, o Paleolítico Superior aparenta ser uma época homogeneamente caracterizada por
inumações individuais, por vezes múltiplas, com a utilização de numerosos adornos (Riel-Sal-
vatore e Clark, 2001; Vanhaeren e d’Errico, 2002) (vide Caixa 7.6, A Sepultura paleolítica do
Lagar Velho I) e estando os corpos em posições diversificadas. A intencionalidade é, contudo,
evidente e comprovável, nomeadamente ao nível das sepulturas de crianças (Burenhult, 1993)
e reveste-se de significado social específico, consoante a idade do indivíduo e o período em que
viveu (Zilhão e Trinkaus, 2002a).
CAIXA 7-6
BIOANTROPOLOGIA
275
Em termos cronológicos, o Mesolítico constitui o primeiro momento da Pré-História no
qual foi adoptado o enterramento em cemitério. Portugal possui a maior necrópole conhecida
para este período em todo o mundo — Cabeço da Arruda —, escavado por Jean Roche nos anos
70 (Roche, 1989). A posição dos corpos era preferencialmente flectida, mesmo que em diver-
sos graus, o que leva a que a distribuição dos ossos, ao serem exumados, aparentem uma dis-
conexão anatómica. Contudo, esta pseudo-disconexão reflecte o posicionamento dos ossos após
a decomposição dos tecidos musculares, não representando provavelmente qualquer pertur-
bação pós-deposicional significativa.
No Mesolítico em Portugal, na Ucrânia e na Rússia e Dinamarca, os enterramentos
parecem ter sido efectuados sempre em contextos habitacionais, com sepulturas individuais
bem ordenadas (Masset, 2000) sob solos de ocupação caracterizados por uma acumulação de
conchas e ossos de animais — os concheiros — preferencialmente em zonas estuarinas. As
deposições parecem ser primárias na totalidade e assumem formas variadas de posiciona-
mento do corpo.
Esta forma de organização funerária em cemitério não é, contudo, alargada a todo o Meso-
lítico europeu. Casos há em que os enterramentos em gruta, múltiplos, secundários, colecti-
vos, são a prática comum (Cauwe, 1992) e há mesmo contextos de cremação generalizada
(Masset, 2000).
Em Portugal, é nas épocas posteriores da Pré-História — o Neolítico e o Calcolítico — que
as práticas funerárias se alteram radicalmente. Os cemitérios em contextos habitacionais dei-
xam de existir, para darem lugar a sepulcros colectivos e maioritariamente secundários, cujo
processo de formação é ainda pouco explícito.
O tipo de enterramento condiciona necessariamente a metodologia utilizada na escava-
ção de determinadas sepulturas, sendo necessário adoptar métodos e tipos distintos de reco-
lha de dados para cada caso. Com efeito, a informação recolhida em inumações individuais é
muito mais completa do que no caso dos ossários e contextos colectivos. Por outro lado, a exu-
mação de sepulturas colectivas e secundárias torna-se mais complexa e exige um maior por-
menor na recolha de dados, já que a avaliação dos processos pós-deposicionais é dificultada
pela ‘desordem’ criada pelo método de deposição dos corpos.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
276
CAIXA 7-7
Excerto do Regulamento
dos Trabalhos Arqueológicos
❚ CIDÁLIA DUARTE ❚
Artigo 8.o
Escavação de necrópoles
1. A escavação de necrópoles onde se presume venha a ser encontrado espólio antropológico
só será autorizada caso a equipa promotora tenha garantida a colaboração de especialistas em
antropologia física.
2. A autorização para a realização de escavações em cemitérios históricos só será concedida se
os promotores comprovarem que a realização desses trabalhos merece a concordância das auto-
ridades responsáveis.
Este facto criou uma dinâmica totalmente distinta daquela que é vivida em inúmeros paí-
ses, mesmo alguns com tradição arqueológica consistente, como a Dinamarca, onde a presença
de um antropólogo no terreno, quando se concretiza, é fruto de um diálogo pessoal entre o
arqueólogo responsável pela escavação e um especialista em Antropologia de campo. No caso
português, e desde 1999, essa colaboração é imposta por lei e ultrapassa o diálogo voluntário.
Antes da publicação do Regulamento dos Trabalhos Arqueológicos essa presença era, por
vezes, substituída por um médico, preferencialmente um ortopedista ou um patologista,
criando, assim, a ilusão da presença de indivíduos com formação específica nesta área. Con-
tudo, importa salientar que a Antropologia Física se autonomizou há longa data e que possui
métodos de análise próprios, discutidos em artigos e revistas específicos e que se aproximam
muito mais dos métodos e abordagens teóricas arqueológicas do que das ciências biológicas
e da medicina.
Esta questão é, por vezes, mal compreendida mas olhando alguns exemplos a solução
torna-se clara. No campo é necessária a colaboração estreita entre arqueólogo e antropólogo.
Da mesma forma, o trabalho do antropólogo não pode substituir a experiência e a interpreta-
ção estratigráfica do arqueólogo. Instâncias há em que, pelo facto de ser recente o trabalho con-
junto dos profissionais das duas áreas, existe um pressuposto errado de que o antropólogo deve
tomar as rédeas da escavação de uma necrópole. Tal não pode ser correcto e tem-se revelado
desastroso em algumas situações práticas. Com efeito, é o arqueólogo que tem o controle das
sequências estratigráficas dos sítios, e é ele o responsável pela interpretação da proveniência
cronológica dos restos humanos exumados.
Na ausência de uma organização profissional que certifique a carteira profissional de
arqueólogos e antropólogos, a regulação do trabalho tem estado a cargo dos organismos da
tutela, emitindo estes as autorizações necessárias, actuando assim o Estado de forma mais
BIOANTROPOLOGIA
277
directa. Todas as sanções são aplicadas pela tutela, nomeadamente ao nível da punição por
ausência de publicação de resultados. Este princípio rege-se pela ideia de que o património
arqueológico é material pertencente ao cidadão e o seu gestor deve ser o Estado.
A comunidade científica ligada à Antropologia tem respondido a estas alterações de
forma bastante positiva, tendo disseminado uma série de profissionais formados (sobre-
tudo) pela Universidade de Coimbra e mais recentemente a Universidade de Évora, que têm
assumido a tarefa de Antropólogos de Campo, para além de investigadores em laboratório.
A tendência actual é mesmo a comunhão da formação académica arqueológica e antropo-
lógica, fruto da acumulação de graus académicos e da formação permanente obtidos pelos
jovens recém-licenciados.
O Instituto Português de Arqueologia, pelo seu lado, tem exigido a exumação e o
estudo dos materiais humanos por parte de antropólogos, associados à equipa de Arqueo-
logia, desde a sua intervenção no terreno. No sistema de informação arqueológica Endové-
lico, centralizador de informação sobre sítios arqueológicos, projectos de investigação,
expediente e arquivo, liderado pela Divisão de Inventário do IPA, existem hoje muitos
locais identificados como necrópoles ou locais funerários. Dos cerca de 18 000 sítios e
achados inventariados à data (Abril 2003), 6340 são identificados como locais funerários
(monumentos megalíticos, cemitérios, necrópoles, grutas, sarcófagos, etc); neste inventá-
rio é possível conhecer o espólio existente (e se nele constam ossos humanos) e o seu local
de depósito. Esta foi uma alteração significativa no conhecimento dos restos humanos pro-
venientes de contextos arqueológicos. Tal inventário permite a qualquer antropólogo inte-
ressado em estudar segmentos populacionais no nosso território, para uma determinada
época, ou debruçando-se sobre uma qualquer variável (por exemplo, lesões patológicas),
identificar o número de esqueletos disponível e localizá-los, tornando as avenidas da inves-
tigação muito mais vastas.
A questão fundamental, também para a Osteologia Humana, é a tradução de todos os
dados recolhidos, em conhecimentos transmissíveis, registos com significado. Esse signi-
ficado, pela natureza do património arqueológico, só é passível de se atingir através da inves-
tigação, da leitura dos muitos sinais. Para garantir que esses sinais sejam lidos pelo antro-
pólogo, em laboratório, é necessário cumprir uma série de protocolos, seguir regras de reco-
lha de dados, permanentemente em actualização, durante a escavação arqueológica e após
esse momento.
Metodologia de Campo
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
278
Embora o uso de Cemitérios tenha sido instaurado entre nós por decreto de 21.09.1835,
e regulamentado a 4 de Outubro do mesmo ano, os relatos de enterramentos sem condições
de higiene, sobretudo em zonas urbanas, indiciam a relutância em aceitar as inumações fora
dos locais habituais, insistindo-se na utilização de solos tradicionalmente protegidos religio-
samente (Ferreira, 1880).
A ideia de instalar os cemitérios públicos longe dos locais de habitação tinha já sido defen-
dida entre nós por Pina Manique, em 1787 mas recebera pouco eco junto das populações,
(Bigotte, n/d) tendo sido instituída unicamente em 1844, aquando da publicação da Reforma
da Saúde Pública, na qual se proibiam os enterramentos nas igrejas. Este uso obrigatório dos
cemitérios públicos, previsto na reforma de 1844, esteve, aliás, na origem da revolta da Maria
da Fonte (1846) e são conhecidos enterramentos posteriores a essa data, em recintos religio-
sos, denotando uma desobediência à lei, motivada por crenças religiosas.
A questão da localização dos cemitérios foi, igualmente, objecto de discussão por parte
das entidades governativas. Em 1885, Ricardo Jorge elaborou um parecer — Higiene Social —
no qual defendia não advir qualquer perigo para a saúde pública pela inumação de defuntos
nas áreas populosas, constatando que os únicos factores a ter em conta na escolha dos locais
para construção dos cemitérios públicos é a porosidade do solo e a escassez de pedras, por
forma a facilitar todos os processos biológicos de desagregação do corpo (Bigotte, n/d).
O local de construção dos cemitérios continuou a ser objecto de debate no séc. XIX, dada
a concentração populacional nas cidades. Em Lisboa, foi elaborado um parecer por uma
comissão nomeada em 1878 para indicar a melhor forma de extinguir as valas (Ferreira,
1880), no qual se sugere a cremação como forma eficiente de resposta à escassez de terrenos
nos limites da cidade.
Perante este contexto legislativo, em qualquer intervenção arqueológica em edifício reli-
gioso, castelo, ou capelas de palácios datáveis de antes do período de 1844-48, e após a con-
versão visigótica ao Cristianismo serão, muito provavelmente, encontradas sepulturas em
recintos públicos ou privados. Tal situação, no caso português, deve ser acautelada, sobretudo,
pelos gestores do património edificado classificado — o IPPAR e a DGEMN.
Antes de se iniciar a escavação de um contexto arqueológico com ossos humanos, há que
determinar a natureza da intervenção, em termos de área e intensidade. Isto é, a não ser que
exista um projecto de investigação claro e definido para um determinado cemitério ou sepul-
tura, a escavação das ossadas deve ser limitada ao mínimo, tendo em conta as zonas que pos-
sam ser colocadas em perigo, quer por trabalhos de renovação e construção, quer por proces-
sos naturais de erosão.
Ao iniciar-se a escavação de um determinado contexto funerário, torna-se necessário ava-
liar que tipo de deposições podem estar presentes. O conhecimento prévio das formas habi-
tuais de tratamento dos cadáveres em determinada época é fundamental na definição das estra-
tégias a adoptar no campo. Contudo, essa estratégia deve ser constantemente reavaliada, de
forma a serem detectadas possíveis excepções nos hábitos fúnebres que podem ter significado
especial em determinado contexto. Para cada forma de tratamento dos mortos, são poten-
cialmente adoptadas estratégias distintas de actuação por parte do arqueólogo.
No caso de possíveis enterramentos em áreas ao ar livre, será necessário identificar, em
primeiro lugar, a distribuição espacial da necrópole. Isto é, torna-se imperativo proceder a uma
prospecção de terreno. A fotografia aérea localizada é um poderoso auxiliar, mas nem sempre
se encontra disponível. Potenciais áreas de enterramento tomarão a expressão de depressões
de superfície, em contextos mais recentes. Se, ao delimitar a área funerária, se verificar uma
larga extensão de potenciais enterramentos, dever-se-á optar pela abertura de sondagens em
zonas determinadas a partir de uma grelha de divisão da área considerada (Ubelaker, 1989).
BIOANTROPOLOGIA
279
Os métodos de escavação a utilizar dependerão, necessariamente, do tipo de deposição
funerária em estudo. Duas estratégias distintas serão utilizadas, no caso de se tratar de depo-
sições primárias ou secundárias (vide secção anterior).
Sendo constituído maioritariamente por matéria inorgânica (White, 1991), o osso sofre
processos distintos de deterioração consoante o ambiente em que se encontra depositado (Mad-
sen, 1994). Em ambientes ácidos, a componente inorgânica do osso é mais facilmente afec-
tada, enquanto que em ambientes alcalinos, é a parte orgânica do osso (colagénio) que é mais
acentuadamente danificada (Madsen, 1994, p. 115). Assim, a porção inorgânica do osso per-
manece mas a sua estrutura tende a ser porosa e quebradiça.
O esqueleto humano é constituído por cerca de 206 ossos (vide Anexo II no final do capí-
tulo). Caracterizados por uma heterogeneidade significativa, as suas dimensões variam, desde
o osso mais longo (fémur) até às reduzidas falanges distais do pé.
Se o esqueleto humano possui cerca de 206 ossos no seu estádio adulto, o número mul-
tiplica-se no caso de esqueletos subadultos (crianças e jovens). O processo de crescimento dos
ossos determina esta variação no número de presenças. Isto é, dado que o osso se desenvolve
(em regra) a partir de um centro primário de ossificação (o primeiro centro de formação do
osso) e depois se desdobra em centros secundários de ossificação (isto é, centros de cresci-
mento), estes constituem uma parte integrante do esqueleto humano mas encontram-se
isolados durante as fases de crescimento do indivíduo, antes da idade adulta (vide Anexo II).
O fémur, por exemplo, é formado por uma diáfise (o corpo do osso longo), e duas epífi-
ses (proximal e distal). Entre a diáfise e as epífises situam-se discos de cartilagem, responsá-
veis pela actividade de osteogénese. Ao atingir a idade adulta o osso (neste caso, o fémur) sofre
uma fusão das epífises, unindo-se estas ao corpo do osso — diáfise. Assim, ao escavar um
esqueleto de criança o número de elementos ósseos multiplica-se. O inventário de todos estes
ossos no processo de exumação torna-se valioso na apreciação dos processos pós-deposicionais
que afectaram os depósitos e na identificação de marcas de ocupação habitual e de lesões pato-
lógicas do esqueleto.
Alguns princípios práticos devem ser respeitados na escavação de esqueletos em contextos
arqueológicos. Por regra, não podem ser utilizados quaisquer instrumentos abrasivos na
escavação, por poderem criar falsos vestígios nas superfícies dos ossos, interpretáveis como
marcas de corte ou marcas de roedor. Uma vez expostos, os ossos devem ser protegidos do sol
e recolhidos o mais rapidamente possível. Se for necessário lavá-los, devem ser lavados no
mesmo dia, com pincéis macios, e secos à sombra.
O armazenamento deve ser feito em sacos plásticos cristal, macios, para que não seja exer-
cida qualquer pressão sobre as formas naturais de cada osso. O mais adequado material de
embalagem é o filme alveolar que não só protege de possíveis impactos com outros ossos e com
contentores diversos, mas também assegura a imobilidade do osso dentro da embalagem.
Por princípio, não devem ser utilizados quaisquer consolidantes como auxiliares de remoção
na escavação. Contudo, em contextos mais antigos ou mais danificados torna-se, por vezes,
necessário proceder a um reforço da textura dos ossos antes de estes serem exumados. Neste caso,
é possível a utilização de consolidantes, nomeadamente para que seja mais fácil exumar os ossos.
A escolha de consolidantes depende das condições de escavação, designadamente da tem-
peratura e humidade. Alguns produtos, embora se revelem extremamente eficientes no
aumento da resistência do osso, não oferecem condições do ponto de vista da conservação e
fotografia, dado o brilho que adquirem ou as películas que formam. Este é o caso do Paraloid
dissolvido em acetona.
A forma mais eficaz de reforçar a estrutura de ossos durante a escavação é a impregna-
ção lenta com o consolidante. Uma técnica eficaz é a colocação de pedaços de gaze sobre o osso
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
280
a consolidar, seguida de pincelagem do consolidante sobre a gaze. A estrutura e forma do osso
são, assim, reforçadas, sem que seja necessário movimentar cada elemento. A escolha do con-
solidante deve ser efectuada após consulta do antropólogo que acompanha a escavação, ou dos
técnicos de conservação e restauro envolvidos em cada acção arqueológica. A área consolidada
deve ser sempre registada na Ficha, dado que pode interferir nas análises químicas que pos-
sam ser efectuadas no futuro.
Depois de compreendida a posição do esqueleto, este deve ser completamente decapado,
com auxílio de instrumentos de madeira e plástico (teques de escultura em barro) e pincéis. Os
sedimentos provenientes das áreas sepulcrais devem ser crivados, preferencialmente em labo-
ratório, com crivo de rede plástica de 2 mm, que minimiza os danos na superfície do osso. A reco-
lha dos sedimentos deve ser efectuada por área do esqueleto, separando as seguintes regiões:
• crânio
• região torácica
• região abdominal
• região pélvica
• membros superiores (indicar lado)
• membros inferiores (indicar lado)
BIOANTROPOLOGIA
281
Como auxiliar de exumação, pode utilizar-se folha de alumínio, nos casos em que o osso se
encontra estilhaçado ou fragmentado. Esta técnica evita muitas horas de trabalho no laboratório,
na tentativa de colar fragmentos de um osso sem se conhecer a sua posição relativa. Assim, o posi-
cionamento é mantido no transporte do campo para o laboratório. É de notar que a utilização da
folha de alumínio deve, também, ser assinalada na ficha e deve ser limitada a um período
mínimo de tempo, para que se reduzam as ainda mal esclarecidas alterações à química do osso.
Em todas as circunstâncias, os ossos devem ser expostos ao ar (à sombra), após a sua exu-
mação, para que a humidade possa ser lentamente ajustada ao ambiente circundante e para
que se evite a formação de fungos, no caso de ossos húmidos.
Tratamento Laboratorial
Limpeza
O processo e grau de limpeza dos ossos deve ser avaliado para cada situação. Isto é, nos
casos em que o estado de conservação é elevado, poder-se-á proceder à sua limpeza, mesmo
com água, embora não se deva nunca mergulhar os ossos, mas sim escová-los. As escovas de
dentes NÃO devem ser usadas, sendo preferível a utilização de pincéis vulgares, regular-
mente adquiridos em drogarias.
Se for necessário, poder-se-á utilizar álcool etílico ou acetona, para se proceder à limpeza
do esqueleto, nomeadamente na remoção de sedimentos. Com efeito, a aplicação destes líqui-
dos é preferível à água, dado que têm uma velocidade de evaporação mais rápida, o que reduz
significativamente os danos causados pela dilatação por infiltração. Os ossos devem secar sem-
pre à sombra.
Em todos os casos, devem ser cumpridas as necessárias regras de higiene. Em contextos
urbanos, é frequente os esqueletos exumados serem resultantes de enterramentos relativa-
mente recentes, o que pode criar casos de contaminação patológica que pode ser evitada.
Por outro lado, as contaminações provenientes de redes de esgotos centrais e pluviais são
frequentes.
Etiquetagem
Cada osso deve ser embalado separadamente, com uma etiqueta individual. A etiqueta
deve conter as indicações necessárias para a correcta localização de cada elemento: identificação
do sítio, número de sepultura, número de ordem (que deve corresponder ao número constante
da Ficha), Unidade Estratigráfica identificativa ou nível e camada, data de recolha, e identifi-
cação do osso, incluindo o lado de que provém. Se a identificação anatómica do osso não for
possível, deve ser atribuído um número, com legenda na ficha (dados osteométricos de campo
e inventário). O lado (esquerdo ou direito) deve ser indicado, dado que, no caso das falanges,
é difícil identificá-las depois de exumado o esqueleto.
Igualmente, o posicionamento relativo de cada metacarpiano, metatarsiano e falanges,
deve ser indicado na Ficha e nas respectivas etiquetas dos ossos, bem como a posição relativa
das vértebras e costelas. As etiquetas nunca devem tocar a superfície do osso, devendo ser colo-
cadas entre plástico.
Por fim, e independentemente do local de armazenagem, os restos humanos devem ser
embalados em contentores/caixas revestidas de uma camada almofadada, para que não movam
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
282
em caso de transporte e manuseamento. Em todas as circunstâncias deve ter-se em conta que
a exumação de ossos humanos e a sua manipulação acarreta sempre uma destruição parcial
do conjunto.
É comum o antropólogo ser bombardeado com uma série de perguntas que, infelizmente,
muitas vezes não podem ser respondidas pelo simples facto de existir uma investigação antro-
pológica em curso. São comuns as questões sobre a causa de morte, os hábitos alimentares,
as patologias, as ligações familiares, o número de filhos, a esperança de vida, a existência de
crime, etc. Importa esclarecer que as lesões patológicas que afectam o esqueleto são reduzi-
díssimas em número (Campillo, 2001, p. 33), que a maior parte dessas lesões visíveis no osso
não são causa de morte, são antes condicionantes de estilos de vida, para além do facto do
esqueleto ter que ser submetido a um diagnóstico diferencial que só é possível efectuar
quando este se encontra praticamente completo. Importa salientar que a idade à morte é de
diagnóstico difícil e que exprime (sobretudo para as idades acima dos 40 anos) uma probabi-
lidade de cerca de 60 a 70%, consoante os métodos aplicáveis, com um desvio padrão de cerca
de 10 a 15 anos (McKern, 1970, Kerley, 1970; Krogman e Iscan, 1986). Importa igualmente
esclarecer que as ligações familiares, mesmo dentro de uma estrutura tumular específica, são
de difícil comprovação (salvo com a aplicação de técnicas de comparação de ADN). Sobretudo,
é importante frisar que as grandes certezas em Antropologia Física são, regularmente, reflexo
de relativa ignorância e de wishful thinking. A Antropologia é uma disciplina que baseia a sua
análise em dados populacionais e mesmo na sua aplicação forense, os métodos utilizados são
baseados em estudos populacionais e em distribuições probabilísticas.
Paleonutrição e Paleopatologia
BIOANTROPOLOGIA
283
et al., 1996; Taylor, 1996). Esta é uma utilização distinta do ADN em relação a formulações
de hipóteses mais convencionais, que tentam identificar movimentos populacionais através
da comparação de segmentos genéticos do ADN (Ammermann e Cavalli-Sforza, 1984).
Para além da definição de valores de paleonutrição e paleoepidemiologia, a Paleopatolo-
gia contribui, igualmente, para elucidar como as sociedades humanas responderam, ao longo
da sua história, aos ataques patológicos e como se desenvolveram os cuidados médicos e as
soluções para determinadas manifestações patológicas, desde infecciosas a traumáticas (exem-
plo, Holck, 2002; Anderson, 2002a) ou mesmo para a prática de autópsias (Anderson, 2002b).
Paralelamente, e dentro da mesma linha de investigação, a Paleopatologia avalia a pre-
sença de doenças específicas no passado, identificando lesões ósseas passíveis de ser inter-
pretadas como indicadoras da presença de agentes patogénicos em épocas recuadas, contri-
buindo, assim, para a história da epidemiologia (exemplo, Santos e Roberts, 2001). Um dos
tipos de lesões mais debatidos no seio da disciplina é a Sífilis, considerando a origem e a sua
expansão favorecida pelos navegadores europeus, não porque seja a América pré-colonial a sua
origem, mas dada a forte transmissão que adveio dessas viagens (Campillo, 2001, p. 235). As
lesões ósseas de treponematose, no caso da sífilis venérea, só se manifestam no terceiro está-
dio de desenvolvimento da doença, testemunhando não a causa provável de morte mas o con-
vívio com a doença durante um longo período, sobrevivendo à sua manifestação genital, à sua
fase generalizada com lesões cerebrais para, finalmente, se manifestar no esqueleto. Tal sis-
tema de expansão da doença deve ser devido à utilização do sistema linfático como veículo con-
dutor (Buckley e Dias, 2002).
Outras abordagens da Paleopatologia têm-se concentrado nas questões de lesões trau-
máticas e o seu significado, oscilando entre provas de violência e duras condições de vida na
Pré-História, até à identificação de abusos de menores no século IV, na Normandia (Blondi-
aux e Alduc-le Bagousse, 1993).
Dissemos, no início desta secção, que o tipo de informação obtida a partir do esqueleto
humano abrange o foro arqueométrico, contribuindo para a construção de quadros ambien-
tais e detecção da eficácia adaptativa de estratégias de povoamento, económicas e sociais. Esta
construção faz-se através da leitura de vários sinais presentes no esqueleto a nível químico.
Para além do registo patológico, indiciador de rupturas e pressões populacionais, o
esqueleto fornece indicadores mais directos dos mecanismos adaptativos das comunidades
humanas ao longo do seu percurso — os isótopos de carbono e azoto. Extraídos a partir da com-
ponente proteica do osso — o colagénio — estes são indicadores mais fiáveis e directos do con-
sumo de determinados alimentos por parte do indivíduo a quem pertenceu o osso analisado.
Tal registo, desde as primeiras experiências obtidas na década de 1980 (DeNiro, 1987) tem
vindo a revelar-se o mais eficaz na identificação de paleodietas em contexto arqueológico, tendo
sido bastante explorado na detecção de estratégias alimentares distintas em momentos de tran-
sição. Este é o caso do Mesolítico peninsular (Lubell et al., 1994), das estratégias de adaptação
pré-contacto no Noroeste americano (Lovell et al., 1986) e na invenção da agricultura na Amé-
rica central e sul (Ambrose, 1992; Bender et al., 1981; DeNiro, 1987; Farnsworth et al., 1985;
Larsen et al., 1992)
O princípio que rege a utilização da proporção entre isótopos de carbono e azoto no cola-
génio humano como indicador de tendências dietéticas é simples. Baseia-se na absorção de
diferentes níveis desses elementos em seres que ocupam diferentes posições na cadeia trófica;
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
284
essa absorção cria uma assinatura específica que pode, depois, ser identificada (Katzenberg,
1992) a partir da análise dos restos osteológicos. Esta técnica, contudo, tem que ter em conta
ajustamentos às assinaturas locais nos níveis de carbono e azoto contidos nas espécies poten-
cialmente consumidas (Hancock et al., 1989; Katzenberg, 1992; Schoeninger, 1985) e não pode
ser aplicada de forma directa e empírica, sem calibração. Mais recentemente, têm sido feitos
alertas sobre as condicionantes que devem reger a leitura dos resultados de concentrações iso-
tópicas, levando-nos a colocar a questão se o perfil isotópico reflecte um momento (sazonal)
da vida do indivíduo ou se, pelo contrário, resulta de um processo cumulativo, para ser enten-
dido como um somatório de hábitos alimentares. O recente trabalho efectuado sobre a con-
centração de isótopos de carbono e oxigénio nas várias camadas de esmalte dentário, em
exemplares da espécie Bos taurus com dieta controlada, veio provar que se trata, de facto, de
concentrações sazonais, cujo registo é facilmente alterado (Balasse, 2002). No caso do esmalte
dentário, e dada a natureza do processo de amelogénese (deposição de esmalte), esse registo
fica cativo na matriz inorgânica de alta resistência que constitui a coroa dentária — a bioapa-
tite — mas reflecte somente o perfil dietético específico à época de formação da porção da
matriz coronária sob escrutínio.
Mais duvidosos e de mais difícil controle são os resultados obtidos a partir dos oligoele-
mentos que têm sido identificados como indicadores de maior incidência de cereais, carne,
peixe, na dieta do sujeito analisado — estrôncio, zinco, cobre, etc. Estes valores, para além de
serem obtidos a partir da porção mineral do osso e, por isso, estarem sujeitos a uma influên-
cia diagenética muito mais intensa do que o colagénio, não oferecem garantias de reflectirem
concentrações cumulativas, podendo somente representar índices esporádicos, coincidentes
com o quadro espectrográfico no momento da morte.
Muitas têm sido as críticas a este método de análise, baseadas quer nos processos meta-
bólicos de absorção e acumulação desses oligoelementos, quer nos factores tafonómicos asso-
ciados a processos diagenéticos.
Um dos métodos clássicos de detecção e interpretação de padrões alimentares em paleo-
comunidades tem sido a caracterização do desgaste dentário. O princípio é simples: dietas mais
abrasivas produzem desgaste mais rápido, enquanto que alimentos mais macios provocam
menor desgaste (Hinton, 1981, 1982). A esta dicotomia associa-se a variabilidade do ângulo
de abrasão (Duarte, 1992) e uma proporção inversa entre nível de abrasão e frequências de
lesões cariogénicas (Hillson, 1996; Larsen, 1985). Da mesma forma, a frequência de cárie
tem-se revelado uma variável fundamental na caracterização de sociedades de caçadores-reco-
lectores por oposição a agricultores (Hillson, 2001), embora esta dicotomia não seja aplicável
a todas as zonas do globo e não deva ser, nomeadamente, aplicada a Portugal de forma linear
(Duarte, 1992; Jackes e Lubell, 1996; Lubell et al., 1994).
BIOANTROPOLOGIA
285
trói um quadro de movimentação e relacionamento biológico entre paleopopulações, ten-
tando, assim, definir o quadro filogenético da nossa espécie. Este quadro é construído com base
em características morfológicas do esqueleto e/ou na análise do material genético extraído de
fósseis e de populações modernas.
É de particular interesse verificar que, mesmo com o auxílio da Genética, através da aná-
lise do ADN mitocondrial e do ADN nuclear, as conclusões obtidas sobre relações filogenéti-
cas entre, por exemplo, o Homem actual e os Neandertais, são geradoras de uma discussão
acesa na bibliografia actual. Algumas análises baseiam-se num número reduzido de esquele-
tos mas, para além disso, alguns autores alertam para o facto de que a ausência de caracterís-
ticas semelhantes nos segmentos do ADN mitocondrial analisado não pode ser tida como
prova da não existência de reprodução em comum (Pääbo, 2003). Isto é, a ausência de prova
não pode ser interpretada como prova da sua não existência.
Contudo, e nesta mesma linha de investigação, o ADN mitocondrial e nuclear tem for-
necido alguma informação interessante. Desde a publicação do primeiro texto identificando
uma origem africana para a árvore haplotípica humana (Cann et al., 1987), o ADN tem sido
assediado para fornecer respostas para a nossa origem. Bem longe dos processos relaciona-
dos com a Arqueologia e a Paleontologia Humana, a Genética Molecular tem-se baseado
amplamente na recolha de amostras de sangue de populações actuais com vista a procurar
modelizar a evolução recente e expansão geográfica da actual espécie (Cann, 2002). Tendo em
conta o tempo previsto de coalescência nas árvores haplotípicas obtidas, a maior parte delas
aponta para uma data anterior a 100 000 BP, data previsível se houvesse substituição total de
neandertais ou formas arcaicas pelo homem moderno (Templeton, 2002). Assim, as propos-
tas mais recentes têm sugerido uma série de movimentos migratórios sucessivos a partir de
África, resultando em processos de cruzamento inter-populacional entre as supostas paleo-
espécies que ocuparam o Velho Mundo durante centenas de milénios de evolução humana.
Tal proposta, recentemente testada com nova aplicação estatística às árvores haplotípicas exis-
tentes (Templeton, 2002), não é nova, e há muito tem sido sugerida, mesmo se de formas dis-
tintas, pelos investigadores na área da Paleoantropologia (por exemplo, Wolpoff et al., 1994)
como sendo o padrão maioritário na evolução humana. Por parte dos dados fósseis, a recente
e polémica descoberta do esqueleto Lagar Velho I veio sugerir, para a Península Ibérica, este
cruzamento entre neandertais e homens anatomicamente modernos (vide Caixa 7-8, Lagar
Velho I). Desde a publicação do primeiro artigo sobre esta descoberta (Duarte et al., 1999), o
debate tem sido aceso sobre o verdadeiro significado das diversas características fenotípicas
do esqueleto. A conjugação de toda a informação sobre diferentes aspectos do mosaico de carac-
terísticas que constituem a individualidade deste esqueleto aponta para um indivíduo anato-
micamente ‘moderno’ com alguns indicadores (traços) arcaicos (Zilhão e Trinkaus, 2002b).
O significado paleontológico de tais traços é passível de enquadramento distinto, mais ou
menos adequado, pelos defensores de variadas teorias da evolução humana e do surgimento
da modernidade anatómica.
A interpretação de modernidade não deve, contudo, olvidar que se trata de um conceito
abstracto, centrado numa visão eurocêntrica da morfologia esquelética e que mais não signi-
fica do que a expressão mais ou menos frequente de características osteológicas específicas,
na sua maioria sem verdadeiro significado adaptativo. Da mesma forma, a genética molecu-
lar diz-nos que os indícios evolutivos obtidos a partir do esqueleto, quando vistos em conjunto
e na globalidade, devem ser interpretados em termos de simples ‘traços’ e não de caracterís-
ticas marcantes de tipos de população distintos (Templeton, 2002, p. 50). Alguns autores têm
mesmo insistido na quantificação desses ‘traços’ com vista à análise de variação nas paleo-
populações (Wolpoff e Lee, 2001), numa perspectiva de heterogeneidade e variabilidade, por
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
286
CAIXA 7-8
Lagar Velho I
❚ CIDÁLIA DUARTE ❚
BIOANTROPOLOGIA
287
oposição a uma abordagem dirigida à demarcação de paleo-espécies, enquanto entidades bio-
logicamente incompatíveis.
A abordagem populacional e a exploração do ADN como indicador da história humana
destronaram, sobretudo a partir dos anos 60, a ideia de raça como conceito biológico, verifi-
cando que, num dado bloco de haplotipos existe maior variabilidade entre elementos da
mesma ‘raça’ do que entre indivíduos de compleição diferente, mesmo em continentes dife-
rentes (Caspari, 2003; Pääbo, 2003). Este conceito foi introduzido formalmente por Richard
Lewontin (1972) embora tenha sido objecto de acesa discussão anteriormente, sobretudo no
seio da comunidade antropológica americana (vide Caspari, 2003 para discussão do conceito
de raça). Estava assim destronado o conceito biológico de raça, enquanto entidade de sentido
filogenético e indicativo de proximidade histórica de populações.
CAIXA 7-9
Equipa de Trabalho
Núcleo de Paleobiologia Humana
Cidália Duarte
M.A. Anthropology. Universidade de Alberta, Canadá
Áreas de interesse: práticas funerárias da Pré-História. Tafonomia
humana. Antropologia dentária.
Vanda Pinheiro
Licenciatura Antropologia pelo ISCSP
Áreas de interesse: Osteologia Humana; ténicas laboratoriais
Vanessa Rodrigues
Curso de Conservação da Escola de Valorização do Património da
Câmara Municipal de Sintra.
Curso de Conservação e Restauro do Instituto Politécnico de Tomar
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
288
Anexo I – Ficha de escavação de ossos humanos em contextos arqueológicos
Sepulturas individualizadas
Sítio Arqueológico
Referência espacial
Estrutura tumular n 0 UEs Data
Fotografias Diapositivos
Crivo malha
Posicionamento do corpo
Nível de desarticulação:
Grupo de ossos desarticulados 01 (0= não; 1= sim)
Em feixe, com crânio 01 (0= não; 1= sim)
Em feixe, sem crânio 01 (0= não; 1= sim)
Parcialmente articulado 01 (0= não; 1= sim)
Parcialmente perturbado por outra deposição 01 (0= não; 1= sim)
Ossos dispersos 01 (0= não; 1= sim)
Tronco:
Sobre as costas 01 (0= não; 1= sim)
Sobre o peito 01 (0= não; 1= sim)
Sobre o lado esquerdo 01 (0= não; 1= sim)
Sobre o lado direito 01 (0= não; 1= sim)
Crânio:
Para a esquerda 01 (0= não; 1= sim)
Para a direita 01 (0= não; 1= sim)
De frente 01 (0= não; 1= sim)
Para baixo 01 (0= não; 1= sim)
Descaído sobre o peito 01 (0= não; 1= sim)
BIOANTROPOLOGIA
289
Desarticulado 01 (0= não; 1= sim)
Ausente 01 (0= não; 1= sim)
Perturbado por outra deposição 01 (0= não; 1= sim)
Fragmentado 01 (0= não; 1= sim)
Membros inferiores:
Estendidos 01 (0= não; 1= sim)
Semi-flectidos à direita 01 (0= não; 1= sim)
Semi-flectidas à esquerda 01 (0= não; 1= sim)
Flectidas lado direito 01 (0= não; 1= sim)
Flectidas lado esquerdo 01 (0= não; 1= sim)
Ausentes 0 1 2 3 (0=nenhum; 1= direito; 2= esquerdo;3= ambos)
Perturbados por outra deposição 0 1 2 3 (0=nenhum; 1= direito; 2= esquerdo; 3= ambos)
Ossos dispersos 01 (0= não; 1= sim)
Fragmentado 0 1 2 3 (0=nenhum; 1= direito; 2= esquerdo; 3= ambos)
Braço esquerdo:
Estendido 01 (0= não; 1= sim)
Mão na zona pélvica 01 (0= não; 1= sim)
Antebraço sobre o tórax 01 (0= não; 1= sim)
Mão sobre o ombro 01 (0= não; 1= sim)
Mão sobre o rosto 01 (0= não; 1= sim)
Ausente 01 (0= não; 1= sim)
Perturbado por outra deposição 01 (0= não; 1= sim)
Ossos dispersos 01 (0= não; 1= sim)
Fragmentado 01 (0= não; 1= sim)
Braço direito:
Estendido 01 (0= não; 1= sim)
Mão na zona pélvica 01 (0= não; 1= sim)
Antebraço sobre o tórax 01 (0= não; 1= sim)
Mão sobre o ombro 01 (0= não; 1= sim)
Mão sobre o rosto 01 (0= não; 1= sim)
Ausente 01 (0= não; 1= sim)
Perturbado por outra deposição 01 (0= não; 1= sim)
Ossos dispersos 01 (0= não; 1= sim)
Fragmentado 01 (0= não; 1= sim)
Orientação do corpo:
Entre 0-360 graus a partir do norte
Crânio na extremidade N S E W NE NW SE SW
Espólio associado:
À direita do corpo 01 (0= não; 1= sim)
À esquerda 01 (0= não; 1= sim)
Aos pés 01 (0= não; 1= sim)
Junto ao crânio 01 (0= não; 1= sim)
Distribuído, sem padrão 01 (0= não; 1= sim)
Ocre (assinalar na figura) 01 (0= não; 1= sim)
Manchas (assinalar na figura distribuição e cor) 01 (0= não; 1= sim)
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
290
Tipos de artefactos
Fauna associada:
Misturada com ossos humanos 01 (0= não; 1= sim)
Ossos organizados em núcleo 01 (0= não; 1= sim)
Sobre o tronco 01 (0= não; 1= sim)
Junto ao braço direito 01 (0= não; 1= sim)
Junto ao braço esquerdo 01 (0= não; 1= sim)
Junto à perna direita 01 (0= não; 1= sim)
Junto à perna esquerda 01 (0= não; 1= sim)
Junto aos pés 01 (0= não; 1= sim)
Inventário do esqueleto
Ao elaborar-se o inventário dos ossos presentes, dever-se-á utilizar cores para distinguir os ossos representados entre
100%-75%, 50-75%, menos de 50%. Na mesma ficha de inventário deve ficar assinalada a numeração atribuída aos
ossos exumados nas etiquetas das embalagens. Assim, e não sendo necessário um conhecimento da anatomia
humana, poder-se-á reconhecer o posicionamento dos ossos posteriormente, em laboratório.
| 75 – 100%
| 50 – 75%
| 0 – 50%
Dados osteobiográficos
Sexo M F ?
Idade
Estatura
Desenho e inventário
Fotografia
BIOANTROPOLOGIA
291
Anexo II – Dados osteométricos de campo
D Comprimento do tronco
Comprimento desde o ponto mais superior da
calote craniana até à linha definida pelas duas tube-
rosidades ísquias, correpondendo à altura do indi-
víduo em posição sentada.
Inventário de esqueleto de criança
E Largura dos ombros
Largura definida entre os dois pontos mais laterais
do extremidade proximal do úmero.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
292
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BIOANTROPOLOGIA
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296
Núcleo de Paleotecnologia
| Paleotecnologia lítica: dos objectos
capítulo 8
aos comportamentos
❚ FRANCISCO ALMEIDA ❚ ANA CRISTINA ARAÚJO ❚ THIERRY AUBRY ❚
RESUMO Neste capítulo apresentam-se algumas ABSTRACT This chapter presents the main
das actuais linhas de investigação da tecnologia avenues of research in prehistoric lithic technology.
lítica pré-histórica. Mais do que uma listagem More then a complete list of different ways
completa de abordagens possíveis aos objectos of studying lithic artefacts, we focus primarily
líticos, pretende-se aqui, acima de tudo, explanar on the research that CIPA’s palaeotechnology team
as vias de investigação seguidas no Núcleo de has undertaken in the last three years.
Paleotecnologia do CIPA, e, através de alguns Using several case studies, we demonstrate
exemplos, salientar as vantagens de uma aplicação the value and advantages of applying
multimetodológica ao estudo de colecções a multi-methodological approach to the study
arqueológicas de pedra lascada. of knapped lithic assemblages.
O que é a Paleotecnologia
299
e em alguns casos a falta de sustentação empírica da fórmula utensílio = tipo com valor
cronológico e dos gráficos cumulativos utilizados na seriação e individualização cronológico-
-cultural dos conjuntos líticos. Baseada em parte no conceito de fóssil-director, em que se
associa um tipo a uma determinada cultura, esta análise depressa se veio a revelar insufi-
ciente para o conhecimento das técnicas, dos modi faciendi e, por detrás, das próprias
actividades humanas que as motivaram.
A perspectiva tecnológica, pelo contrário, visa o processo. O objecto e a sua história.
O utensílio, a peça acabada, é entendido apenas, e agora, como fim último de uma biografia
que tem princípio, meio e fim. Esta nova forma de ver e abordar o objecto veio a par com o
desenvolvimento de novas problemáticas, de novos paradigmas, de novas vias de investigação
do Passado, re-situando a Arqueologia no próprio quadro das Ciências do Homem. Para tal
contribuiu, nos anos 70, a chamada Nova Arqueologia, criada no interior da escola antropo-
lógica norte-americana que, fortemente adversária da escola tipológica francesa — lembramos
o célebre debate Binford versus Bordes a propósito do Mustierense — desenvolve os estudos
tecnológicos, aplicando a análise às indústrias líticas de pedra lascada. Quais os fundamentos
teóricos e metodológicos da Paleotecnologia lítica?
Esta nova perspectiva, ou nova forma de recuperar e tornar inteligíveis os vestígios
materiais produzidos pelas sociedades humanas do Passado, visa dar resposta a um deter-
minado número de questões que se colocaram a partir do desenvolvimento de novas pro-
blemáticas de natureza arqueológica e paleoetnográfica. Independentemente do posicio-
namento teórico-metodológico e da própria prática de quem faz arqueologia, é ponto assente
que os comportamentos técnicos, nas suas mais diversas vertentes, reflectem comporta-
mentos sociais. A indústria lítica produzida num determinado contexto espácio-temporal
constitui-se como resposta adaptativa de uma comunidade humana a determinados estí-
mulos e necessidades, sejam elas imediatas ou não, mas, mais importante ainda, resulta de
um conjunto de processos técnicos específicos propiciados por padrões de comportamento
e aptidões histórica e filogeneticamente condicionados, que importa conhecer. Esta reno-
vação de objectivos conduziu, na prática, ao desenvolvimento de novas formas de ler os
objectos.
Essa nova leitura passa pelo conhecimento de toda a história do artefacto, desde a maté-
ria-prima com que foi fabricado até ao seu abandono. Um dos aspectos mais importantes da
leitura tecnológica é a noção de que todo o resto, todo o resíduo produzido no contexto do des-
baste antrópico de qualquer volume de matéria-prima é importante, sendo possível conhecer
o seu lugar, posicioná-lo no interior da respectiva cadeia operatória de produção lítica. Este con-
ceito, desenvolvido por influência dos etnólogos Mauss (1947) e Leroi-Gourhan (1964), fun-
ciona como apetrecho conceptual de análise do objecto enquanto produto resultante de um
conjunto de operações técnicas e gestos comportamentais, organizados em fases sucessivas,
e concebidas a partir de um esquema mental pré-determinado.
A abordagem tecnológica de uma colecção lítica passa, em primeiro lugar, pelo conheci-
mento do tipo, contexto e modalidades de aquisição e aprovisionamento das matérias-primas selec-
cionadas pelo artesão para a confecção do seu instrumental. Esta primeira abordagem ao
objecto requer, previamente, o conhecimento das condições de jazida do sítio, da integridade
dos vestígios nele exumados, da qualidade e rigor do registo utilizado. Numa segunda fase, a
leitura do objecto passa pelo seu posicionamento na cadeia operatória de produção. A utiliza-
ção do método das remontagens permite restituir a ordem, a sequência de gestos e as modali-
dades de desbaste da pedra. Este remake do processo é complementado por uma leitura atenta
dos estigmas presentes nos artefactos, marcadores indeléveis do tipo e técnica de percussão
utilizados pelo artesão, dos percalços encontrados, não raras vezes associados à qualidade das
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300
próprias matérias-primas, das alterações sofridas pelo objecto após o seu descarte. O talhe expe-
rimental tem um papel fundamental neste processo. A sua utilização, orientada no sentido de
dar resposta a questões e problemas muito concretos, tem-se revelado, por vezes, como a única
via de investigação possível para a reconstituição dos procedimentos técnicos utilizados no pas-
sado, e do tipo de estigmas produzidos. Numa terceira fase, a leitura do objecto passa pela pro-
cura de outros atributos técnicos, como a existência de retoque ou de estigmas de utilização,
que o individualizam dos restantes. Através da análise tipológica os utensílios são circunscri-
tos a tipos ou categorias, segundo critérios de natureza fundamentalmente morfológica e fun-
cional (raspador, furador, buril, etc.). O estabelecimento de listas-tipo de utensílios, a utiliza-
ção de gráficos cumulativos, o recurso à quantificação e estatística são alguns dos procedi-
mentos analíticos utilizados pela Tipologia para seriar os vestígios materiais líticos e lhes atri-
buir um significado cronológico e cultural. As perspectivas tipológica e tecnológica de abor-
dagem das colecções líticas constituem-se, assim, como duas vias totalmente distintas, mas
complementares, de investigação arqueológica.
Mais recentemente, e a par do desenvolvimento e aplicação de novas metodologias de
registo e análise do vestígio arqueológico, e do novo posicionamento do Arqueólogo perante
o Objecto do seu estudo, a Traceologia tem vindo a dar resposta a algumas das questões que
se levantam sobre o fim último das operações de talhe: como e sobre que matérias, de origem
animal ou vegetal, foram então utilizados os produtos resultantes do desbaste antrópico de um
qualquer volume de pedra? Apesar das limitações ainda existentes sobre a aplicabilidade e os
resultados desta nova via de abordagem ao objecto, a análise dos vestígios de uso fossilizados
nas superfícies e arestas do objecto constitui uma das vias possíveis para o conhecimento da
função, do gesto e da actividade que lhe está subjacente.
E o objecto constitui-se assim como produto da inteligência humana, como resultado de
um processo técnico determinado, concebido tendo em conta não só as escolhas, opções, sabe-
res e a própria tradição tecnológica do artesão, mas também as limitações inerentes ao con-
texto específico que o produz.
A análise de um conjunto lítico deve começar justamente pela primeira fase da cadeia ope-
ratória: caracterização petrográfica das matérias-primas em presença, identificação das formas
como estas chegaram ao sítio e o reconhecimento das respectivas fontes de aprovisionamento.
301
cas aluviais, a par com os depósitos de vertente, as principais fontes de aprovisionamento em
matérias-primas durante toda a Pré-história. Se a realização de escavações superficiais nos
depósitos detríticos terá sido provável, a abertura de túneis para a exploração de sílex nas for-
mações calcárias não foi ainda descoberta em Portugal.
No nosso território, e durante a Pré-história, o quartzito (vide, por exemplo, Fig. 8-23), o
quartzo (vide Fig. 8-1) e o sílex. (Fig. 8-2) constituem as principais variedades petrográficas de
rochas utilizadas para a confecção de instrumentos cortantes em pedra lascada. Em regiões
onde estas matérias-primas não se encontram disponíveis, foram seleccionados e explorados,
com sucesso, outros tipos de rochas.
O quartzito é uma rocha frequente, que aflora em bancadas da ordem das dezenas de cen-
tímetros nas formações geológicas de idade primária (geralmente do Ordovícico). Em conse-
quência da sua resistência à erosão, esta rocha foi disseminada por processos aluviais e cons-
titui a componente maioritária das cascalheiras aluviais dos principais rios de Portugal (ver,
por exemplo, Fig. 8-17 e Fig. 8-27).
O quartzo é uma das formas da sílica e uma das matérias-primas mais abundantes em
território português, tendo sido explorado a partir de cristais, fragmentos de filão, e de seixos
recolhidos em posição secundária. Quando a cristalização é plena, esta matéria-prima deno-
mina-se quartzo hialino ou cristal de rocha (vide Fig. 8-1), mas, mais frequentemente, os cris-
tais encontram-se imbricados não atingindo a forma de cristal.
O sílex apresenta-se, na natureza, sob a forma de nódulos (Fig. 8-2a), plaquetas ou lajes.
Esta matéria-prima, cuja formação resulta da precipitação de sílica em ambientes marinhos ou
lacustres (Luedtke, 1992), encontra-se presente em diversas formações geológicas (Fig. 8-2b).
A observação do respectivo córtex, o envolcro exte-
rior que constitui o limite entre a concentração de
sílica e a rocha carbonatada, é indicadora do tipo de
fonte explorada. A superfície cortical, quando pre-
servada, permite conhecer a morfologia original
dos blocos explorados e a posição primária ou
secundária da respectiva proveniência geológica.
Os volumes recolhidos em posição secundária
apresentam um córtex rolado, distinto do obser-
vado nos nódulos de sílex que se encontram em
posição primária no interior dos calcários (Fig. 8-3).
Noutros casos, verifica-se a presença, em certos
nódulos, de uma superfície resultante de altera-
ções e deslocações por processos marinhos.
Nem todas as matérias-primas foram explo-
radas tendo apenas em vista a sua adaptabilidade
ao talhe. Outras variedades litológicas de rochas
sedimentares ricas em sílica, metamórficas, erup-
tivas ou vulcânicas foram utilizadas no Passado.
Na construção de estruturas de combustão, por
exemplo, recorreu-se frequentemente a certas
rochas ricas em sílica, de cujas propriedades se
destaca a capacidade de acumulação térmica.
FIG. 8-1 – 1. Cristais de rocha provenientes dum filão nas rochas
Outra rocha frequentemente associada a contextos
metamórficas da formação Desejosa (Vila Nova de Foz Côa);
2. lamelas em cristal de rocha do nível de ocupação gravettense pré-históricos é a hematite. Diversos estudos têm
de Olga Grande 4 (Almendra, Vila Nova de Foz Côa). demonstrado que, para além das suas capacidades
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302
FIG. 8-2 – a. Afloramento de sílex em forma de nódulos,
em calcários do Turocenomaniano (Vale das Chitas, Leiria);
b. tipos de sílex encontrados em diversas formações
geológicas das bacias hidrográficas do Douro, do Tejo
e do Mondego.
Sílex do Cenomaniano
Sílex do Bajociano
FIG. 8-3 – Alterações observáveis, após deslocações em formações detríticas, de sílices provenientes de duas formações geológicas.
de pigmentação e do valor simbólico que por vezes lhe é atribuído, esta rocha possui caracte-
rísticas anti-sépticas e propriedades que facilitam a emulsão entre diversas componentes
orgânicas de colas naturais.
O estudo dum qualquer conjunto arqueológico deve passar, em primeiro lugar, pela
observação, descrição macroscópica e definição das diversas categorias e subcategorias petro-
gráficas em presença. Esta primeira abordagem permite avaliar a variabilidade dos recursos
líticos locais de um determinado contexto arqueológico. Apesar de muitas vezes incompleta,
ou pouco informativa, em relação ao posicionamento e descrição do sílex no interior das for-
303
mações carbonatadas, a cartografia geológica constitui-se como ferramenta de trabalho fun-
damental. Salvo raras excepções, a prospecção orientada permite detectar a proveniência de
grande parte das matérias-primas utilizadas e seleccionar as categorias que devem ser objecto
de outros meios de caracterização. O trabalho subsequente deve seguir uma análise bidirec-
cional entre o material arqueológico e o referencial geológico.
Apesar da sua aparente homogeneidade, as rochas siliciosas incluídas na categoria geral
de sílex formaram-se por precipitação de sílica e encontram-se presentes em diversos am-
bientes sedimentares. O processo de substituição da calcite por sílica permite a conservação,
sem modificação do volume, de determinadas características pré-existentes, como a estrutura
e a textura. Assim, o processo de estudo destas matérias segue a mesma metodologia utilizada
para as rochas carbonatadas (Séronie-Vivien e Séronie-Vivien, 1987; Masson, 1981, 1987;
Mauger, 1985; Tarriño e Aguirre, 1997).
Já foi referida a variabilidade do aspecto do córtex em função do tipo de fonte explorada.
A cor, utilizada frequentemente como critério para diferenciar e isolar diferentes categorias
de matérias-primas, deve ser considerada com muita precaução, sobretudo nos casos em que
não foram realizadas prospecções orientadas com o intuito de avaliar os recursos líticos de uma
determinada área geográfica (Séronie-Vivien e Séronie-Vivien, 1987; Masson, 1987; Man-
gado Llach, 2002; Simmonet, 1999). Com efeito, num mesmo afloramento e, não raras vezes
sobre o mesmo nódulo, observam-se variações significativas no aspecto e na cor do sílex
como resultado da silicificação secundária e da oxi-
dação durante o respectivo transporte em forma-
ções detríticas (vide Fig. 8-3). O tratamento térmico,
por sua vez, e apesar da sua utilização se confinar
apenas a determinados momentos da Pré-História,
tende a provocar modificações no aspecto do sílex,
de que se destacam o brilho e a acentuação das
características estruturais (Fig. 8-4). Este tipo de
preparação da matéria-prima melhora nitidamente FIG. 8-4 – Vestígios de tratamento térmico em materiais líticos do Bajociano, encontrados
a aptidão de talhe dos sílices porosos, não só no na unidade estratigráfica 9a do sítio de Buraca Grande (Redinha, Pombal). 1. lasca com
dois negativos de levantamentos (ver lado direito) posteriores ao tratamento térmico. Como
âmbito de modalidades de debitagem realizadas a pode ser observado, estas superfícies apresentam-se brilhantes. A superfície do lado
partir de nódulos de pequena dimensão, mas tam- esquerdo, porém, e apesar de ter sofrido o mesmo tipo de tratamento, não foi objecto de
modificação posterior. 2. Fragmento de folha de loureiro solutrense, fracturada durante
bém em operações de afeiçoamento e retoque por o processo de fabrico, com o mesmo tipo de contraste entre os levantamentos anteriores
pressão (Bordes, 1969; Tixier et al., 1980). e posteriores ao tratamento. Esc. 1 cm.
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304
• A presença de eventuais inclusões mine-
rais, como é o caso aqui apresentado da
mica existente nas silicificações do sector
Nordeste dos afloramentos do Cenoma-
niano (vide Fig. 8-7, n.o 13);
• A existência de certos fósseis, observáveis
a olho nu ou com recurso a lupa binocu-
lar, permite o reconhecimento de deter-
minados ambientes de formação das
FIG. 8-5 – Estruturas sedimentares preservadas pela epigenia
rochas siliciosas (Fig. 8-6). siliciosa em sílices do Bajociano superior (1) e do Cenomaniano
É importante salientar que a validade destas superior (2).
observações depende essencialmente da repre-
sentatividade do referencial geológico, que deve
ter em conta não só a variabilidade existente
num mesmo afloramento geológico, mas tam-
bém as convergências entre níveis estratigráficos
distintos. A existência de um inventário das fon-
tes de aprovisionamento é fundamental para
documentar determinados aspectos como a
abundância e o tipo de afloramento, por exem-
plo, mas não pode substituir o conhecimento
efectivo no terreno, por parte do investigador
responsável, dessas mesmas fontes. FIG. 8-6 – Restos de conchas de gastrópodes incluídos numa
matriz de calcedónia, observáveis numa amostra geológica de
Os dados obtidos através da análise macros- sílex do Oxfordiano, n 1 (Agroal, Vila Nova de Ourém) e num
o
cópica podem ser precisados através da realiza- vestígio do nível arqueológico mesolítico de Buraca Grande,
n 2 (Redinha, Pombal, 2). Estas associações permitem
o
ção de lâminas delgadas e da respectiva obser- determinar um ambiente de formação em contexto lacustre ou
vação microscópica. Sendo um processo destru- marinho confinado.
tivo, deve ser limitado apenas a amostras que
justifiquem a obtenção de dados mais pormenorizados, e cuja selecção deverá sempre par-
tir duma primeira análise macroscópica. A descrição de rochas siliciosas a partir de lâmi-
nas delgadas segue geralmente as classificações das rochas carbonatadas (Séronie-Vivien e
Séronie-Vivien, 1987), sendo a mais adoptada a de Dunham (mudstone, wackestone, packs-
tone). Salientaríamos aqui duas das principais vantagens da análise microscópica de lâmi-
nas delgadas de sílex: por um lado, a determinação da textura granular (quartzo micro a
macro-cristalino, e opala) ou fibrosa (calcedónia) da sílica; e por outro, o conteúdo em
peloïds e restos de micro-fósseis, determinantes na distinção entre paredes minerais (car-
bonatadas ou siliciosas) e orgânicas (Fig. 8-7).
Outros métodos têm sido aplicados como primeira abordagem (Luedkte, 1979) ou
como critério suplementar à caracterização macroscópica para a atribuição a uma deter-
minada fonte geológica. Essas técnicas consistem em caracterizações físicas (densidade,
absorção da luz, raios X) ou químicas, que se baseiam no estudo de elementos minoritários
(em proporções geralmente inferiores a 2%) na amostra analisada (Mangado Llach, 2002;
Carvalho, 2001). Diversos autores (Séronie-Vivien e Séronie-Vivien, 1987), no entanto,
consideram que a relação custo/informação deste tipo de análises é elevada. Os resultados
obtidos, embora úteis na demonstração da influência do transporte em formações detríti-
cas nas amostras analisadas, por exemplo, não justificam a utilização sistemática deste tipo
de caracterização. Esta deve ser reservada a casos muito específicos de micro-fácies sedi-
mentares de difícil caracterização através da análise de lâminas delgadas.
305
1 2 3 4 5
6 7 8 9 10
11 12 13 14 15
FIG. 8-7 – A observação de lâminas delgadas realizadas a partir de peças arqueológicas e a comparação com amostras geológicas permite definir
os ambientes de formação e, em alguns casos, propor níveis estratigráficos e áreas geográficas de origem. Esta caracterização fundamenta-se
nos seguintes critérios:
- na determinação da forma mineral de cristalização da sílica. 1. sílex miocénico de Rielves, calcedónia length-slow, característica de um
ambiente de formação evaporítico (5 x XPL - em microscopia óptica com luz polarizada com nicóis cruzados); 2. sílex liásico de Sá (Anadia),
mega-quartzo e calcedónia length-fast característica de ambiente de formação calcária (5 x XPL); 3. sílex pliocénico do Facho, opala que revela
um processo relativamente recente de silicificação (2,5 x PPL - microescopia óptica com luz plana polarizada);
- na textura. 4. sílex do limite entre o Bajociano e o Batoniano de Outil, textura de radiolares de ambiente marinho (2,5 x PPL); 5. amostra
arqueológica de Cardina I, textura peloídica de formação marinha (5 x XPL);
- no conteúdo em bioclastos. 6. sílex bajociano/batoniano de Outil, foraminíferos característicos de um ambiente marinho (10 x PPL);
7. amostra arqueológica de Cardina I, fragmento de bryozoa (5 x XPL); 8. amostra arqueológica de Cardina I, fragmento de oogónio de
carófita de ambiente marinho confinado ou de água doce (10 x PPL); 9. sílex miocénico de Rielves, gastrópodes de água doce; 5. amostra
arqueológica de Cardina I, fragmento de concha de lamelibrânquio de ambiente de formação marinho (5 x XPL);
- no conteúdo em matéria orgânica. 10. sílex miocénico de Huescas, tecido vegetal e opala, ambiente de formação evaporítico (10 x PPL);
- no conteúdo mineral outro que sílica. 11. sílex liásico de Pereiros, cristais de feldspato ( x XPL); 12. amostra arqueológica de Cardina I,
cristais de moscovita numa textura peloídica, comparável a amostras geológicas de sílex do Cenomaniano da região entre Vila Nova de
Ourém e Leiria (5 x XPL); 13. sílex pliocénico de Facho, inclusões de óxido de ferro fibro-laminares, ambiente de formação evaporítico
(5 x PPL); 14. sílex miocénico de Rielves, inclusão de gesso característica de um ambiente de formação evaporítico (5 x XPL); 15. sílex
miocénico de Rielves, cristais de dolomita em curso de dissolução (10 x XPL).
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306
cindível, principalmente se levada a efeito no âmbito do conceito teórico de cadeia opera-
tória. Tais proporções constituem o melhor indicador ao nosso dispor com vista a uma apro-
ximação às estratégias de selecção e aprovisionamento das comunidades em estudo. Vários
factores podem estar na origem da variabilidade de matérias-primas de um sítio arqueoló-
gico (Perlès, 1992):
• Em primeiro lugar, a presença ou ausência de certas matérias-primas numa colecção,
mais do que uma efectiva selecção no passado, pode estar relacionada com a dispo-
nibilidade de certas fontes de aprovisionamento durante o período em estudo. Vários
factores naturais poderiam ter limitado o acesso às mesmas ou à respectiva visibili-
dade, como o coberto vegetal, ou o regime hidrográfico, que durante o Inverno pode-
ria impossibilitar a recolha de volumes em contextos de aluvião.
• Certas matérias-primas podem ter sido seleccionadas tendo em conta a sua aptidão
para o talhe e/ou adaptação a objectivos funcionais específicos. Estes dois aspectos
podem, de resto, não ser correlacionáveis. As qualidades de talhe de algumas rochas,
a fineza do seu grão, e respectiva homogeneidade, factores apreciados em experiên-
cias de talhe actuais, podem não ter necessariamente regido a selecção de matérias-
-primas no passado. O grão irregular do quartzito, por exemplo, pode apresentar van-
tagens em relação ao sílex na produção de artefactos com funções de corte.
• As próprias estratégias de redução aplicadas na produção de determinados suportes
ou artefactos podem implicar maiores deslocações, se as matérias-primas locais não
se adaptarem a tais objectivos tecnológicos. Durante a pré-história recente da Estre-
madura portuguesa, por exemplo, a produção de alabardas em sílex estava condicio-
nada pela existência de nódulos com as dimensões adequadas, cuja repartição na pai-
sagem implicaria necessariamente maiores deslocações e/ou trocas do que na pro-
dução de outros artefactos de menores dimensões.
• As proporções de diferentes matérias-primas num sítio arqueológico podem ainda
revelar, de uma forma indirecta, o tempo e o investimento necessários para o apro-
visionamento a partir de determinadas fontes, sempre dependente de outro tipo de
actividades dos grupos em estudo. A presença de determinadas matérias-primas
alóctones constitui ainda um bom indicador do conhecimento pelas comunidades
pré-históricas das respectivas fontes de aprovisionamento.
• Por fim, a própria tradição cultural de um grupo pré-histórico pode ser manifestada na
escolha de determinadas matérias-primas, independentemente de razões funcionais ou
de acesso a fontes de aprovisionamento. Durante o Gravettense Terminal da Estrema-
dura portuguesa, por exemplo, o quartzo terá sido uma matéria-prima seleccionada maio-
ritariamente por motivos culturais, tendo sido talhado segundo os mesmos moldes tec-
nológicos aplicados ao sílex (Zilhão et al., 1997, 1999; Almeida, 2000). Já no Solutrense,
denota-se uma clara preferência em vários contextos por sílices ricos em calcedónia,
padrão menos evidente durante outros períodos da Pré-história (Zilhão, 1997b).
307
FIG. 8-8 – Modalidades de aquisição e deslocação das matérias-primas líticas em função do tipo de sítio.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
308
O Reconhecimento das Técnicas de Debitagem, Afeiçoamento e Retoque
309
O reconhecimento do saber fazer específico a cada momento, sociedade e área geográfica,
a avaliação objectiva das dificuldades técnicas inerentes ao processo de talhe e o cálculo do
tempo efectivo dispendido na produção lítica, constituem-se como objectivos primordiais do
talhe experimental, dificilmente apreendidos pela via tipológica tradicional.
Tal como foi referido na Introdução, o conceito de cadeia operatória funciona como fer-
ramenta conceptual de análise dos conjuntos líticos, cuja aplicabilidade tem revelado inúme-
ras vantagens para a reconstrução dos processos técnicos do trabalho da pedra. Ao considerar
todas as etapas de fabrico do objecto, desde a selecção de um bloco de matéria-prima ao aban-
dono do utensílio produzido, este tipo de abordagem permite apreender o sistema de produ-
ção lítica na sua globalidade, posicionando cada resíduo talhado no interior da respectiva
cadeia operatória de produção. O recurso ao método das remontagens e a análise dos estigmas
de talhe presentes nos objectos são fundamentais para a reconstrução dos gestos e dos pro-
cedimentos técnicos utilizados pelo artesão.
Na área de paleotecnologia do CIPA os trabalhos em curso têm sido desenvolvidos apli-
cando diversos tipos de abordagem ao objecto, desde a análise das fontes de aprovisionamento
das matérias-primas, à análise tecnológica de atributos, à utilização do método das remonta-
gens e à própria descrição tipológica tradicional (que mais do que um fim, deve apenas servir
como uma primeira abordagem comparativa das indústrias).
Embora o método mais valioso para avaliação directa das cadeias operatórias utilizadas no pas-
sado seja o das remontagens líticas, nem sempre é possível a aplicação do mesmo a colecções
arqueológicas. Mesmo em conjuntos onde o grau de sucesso da aplicação do método é elevado,
existe sempre a possibilidade das remontagens não representarem o total da variabilidade tecno-
lógica presente numa indústria. Como esse é o principal objectivo do estudo de uma colecção de
pedra lascada, uma das soluções possíveis e mais recorrente nos estudos actuais é a análise tec-
nológica de atributos. Contrariamente ao método das remontagens, esta pode ser aplicada a todas
as colecções, mesmo às provenientes de escavações ou recolhas antigas e previamente triadas.
Um qualquer artefacto de pedra lascada encontrado no decurso de uma escavação ou
prospecção é fundamentalmente um objecto estático. No entanto, até ter chegado à forma sob
a qual foi abandonado, passou por diversas etapas de fabrico que, no âmbito da aplicação do
conceito de Cadeia Operatória, são possíveis de determinar ou reconstituir. Para além da sua
morfologia geral, da sua integração numa determinada tipologia, e da sua eventual análise tra-
ceológica, cada objecto de pedra lascada apresenta estigmas e características específicas que
nos permitem posicioná-lo numa determinada etapa do seu processo de fabrico e conhecer as
respectivas modalidades de produção. A análise de atributos permite:
• a observação das próprias técnicas segundo as quais foi produzido e/ou retocado deter-
minado objecto (tendo por base dados recolhidos através do talhe experimental), desde
o tipo de percussão aplicado (directa, indirecta, por pressão, bipolar sobre bigorna), ao
tipo de percutor (duro, em pedra branda, orgânico, em metal);
• a reconstituição aproximada da sua localização dentro da sequência de redução de um
determinado volume (teste à aptidão para o talhe, descorticagem, preparação dos pla-
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
310
nos de percussão ou manutenção dos mesmos, preparação da superfície de debita-
gem e das arestas-guia, debitagem plena, acidente de talhe, fase final de debitagem,
abandono);
• a apreciação das estratégias de redução aplicadas na produção de suportes (debitagem
Levallois, discóide, sobre seixo talhado, prismática unidireccional, prismática bidirec-
cional sequencial ou alternante, carenada, etc.).
Uma das principais vantagens da análise tecnológica de atributos é que a mesma pode
ser aplicada a praticamente todas as categorias de artefactos de pedra lascada, desde os núcleos
até aos suportes debitados, passando pela própria utensilagem retocada. O objectivo principal
deste tipo de abordagem é a reconstituição da variabilidade das cadeias operatórias aplicadas
numa determinada colecção. Torna-se possível a obtenção de uma visão “média” da tecnolo-
gia de um conjunto, e da maneira como os vários suportes — lascas, lâminas, lamelas — foram
produzidos e eventualmente retocados. Através do estudo de atributos de natureza tecnológica
(cuja selecção parte da relevância dos mesmos tornada evidente através, por exemplo, do
talhe experimental e de remontagens sobre contextos arqueológicos), pretende-se chegar a uma
“remontagem mental” das várias estratégias de redução lítica aplicadas na amostra em estudo.
Torna-se também possível averiguar o grau de estandardização duma indústria, não só em ter-
mos dimensionais, mas também ao nível das técnicas, dos processos de fabrico, enfim, do
savoir faire do artesão.
A selecção de atributos a analisar pode variar segundo as questões que o investigador pre-
tende abordar, mas deve ter sempre em conta uma aplicabilidade aos vários tipos de artefac-
tos de pedra lascada. Tendo por base o conceito de cadeia operatória, torna-se assim necessá-
rio que os atributos aplicados no estudo dos núcleos, por exemplo, sejam complementares aos
aplicados no estudo dos produtos de debitagem e da utensilagem. Há, no entanto, que ter em
conta os chamados problemas de equifinalidade ou convergência. Tal como já referido em rela-
ção ao talhe experimental, existem certos atributos que podem não ser exclusivos de uma deter-
minada fase da sequência de redução de um volume, de uma determinada técnica de percus-
são, ou de uma determinada estratégia de redução lítica. Nos quadros seguintes apresentam-
se alguns exemplos de atributos passíveis de serem estudados numa colecção de pedra lascada,
e os objectivos pretendidos com a sua utilização.
Esta análise é portanto efectuada tendo por base um conjunto de atributos definidos pre-
viamente, sendo aplicada a cada objecto em estudo. A base de dados assim criada permite ave-
riguar, posteriormente, a recorrência de alguns atributos ou associações de atributos. Tendo
em vista a remontagem mental das colecções em estudo, ou seja, uma aproximação à sua varia-
bilidade tecnológica, a escolha dos parâmetros de análise deve ser concomitante com alguns
objectivos principais:
• o conhecimento da economia das matérias-primas e respectiva estratégia de aprovisio-
namento - através do estudo do tipo de córtex em presença, e o posicionamento dos
objectos dentro das fases iniciais de desbaste dos volumes talhados.
• a determinação das técnicas de percussão aplicadas numa determinada indústria, atra-
vés da análise dos talões da debitagem e da utensilagem e dos planos de percussão dos
núcleos, bem como do eventual tratamento da cornija e da presença de labiado ou esqui-
rolamento do bolbo;
• a localização aproximada de alguns produtos dentro da fase geralmente designada
como debitagem plena, através da associação de determinados atributos, como por
exemplo a ausência de córtex e uma secção trapezoidal. Os vários objectos separados
entre as várias fases de debitagem de um núcleo podem ser assim comparados não
311
só em termos da sua estandardização dimensional e de técnicas de debitagem, mas
também no que se refere ao seu eventual aproveitamento como utensílios retocados.
• delimitar as estratégias de redução lítica aplicadas na produção de suportes, através
do estudo conjugado das respectivas morfologias e padrões dorsais. Numa indústria
rica em núcleos prismáticos com dois planos de percussão opostos, por exemplo,
importa averiguar se os mesmos foram explorados de uma forma sequencial ou
alternante. Na ausência de remontagens, tal tarefa passa obrigatoriamente pela aná-
lise da frequência de padrões dorsais bi-direccionais nos suportes e na utensilagem.
• conhecimento de certas estratégias de redução lítica particulares, através da análise
de alguns atributos específicos, como é o caso da ondulação ventral para tecnologias
bipolares, a dominância de perfis curvos e torcidos em tecnologias de carácter care-
nado ou afocinhado, ou em indústrias ricas em debitagem por pressão.
QUADRO 8-1
Atributos Quantitativos
Comprimento
Largura
Permitem averiguar a variabilidade, e por vezes o grau de estandardização de uma
Espessura
indústria, em termos dimensionais. Alguns destes atributos são ainda
Peso
funcionalmente relevantes nas estratégias de produção de suportes.
Largura do talão
Espessura do talão
Atributos Qualitativos
Presença de córtex na superfície dorsal Permite uma localização aproximada do objecto na sequência de redução lítica.
Tipo de córtex Fornece informação em relação ao tipo de fonte explorada.
Perfil A dominância de perfis curvos e torcidos numa colecção pode indiciar a presença
de tecnologias de carácter carenado para a produção de suportes. Este tipo de
perfis está também associado à debitagem por pressão e percussão indirecta.
Acabamento distal Indicador de acidentes de talhe (ressaltos, ultrapassagens), e da morfologia
do suporte.
Secção Indicador de algumas estratégias de redução, e de posicionamento do suporte na
sequência de redução.
Morfologia dos bordos Indicador de morfologia de suporte pretendida, e de estandardização
da debitagem.
Padrão dorsal Indicador da estratégia de redução aplicada. Permite a visualização de mudanças
de orientação dos núcleos, número de planos de percussão utilizados, e fase da
estratégia de redução lítica.
Tipo de talão Indicador de processos de preparação e manutenção do plano de percussão, bem
como do tipo de percussão e de percutor utilizados.
Tratamento da cornija Indicador de processos de preparação e manutenção do plano de percussão, bem
como do tipo de percussão e de percutor utilizados.
Presença/ Ausência de Labiado Indicador de processos de preparação e manutenção do plano de percussão, bem
como do tipo de percussão e de percutor utilizados.
Simetria em relação ao eixo tecnológico Indicador de morfologia de suporte pretendida, e do grau de estandardização
da debitagem.
Ondulação da face ventral Atributo geralmente associado a tecnologias bipolares sobre bigorna.
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312
QUADRO 8-2
Atributos Quantitativos
Comprimento máximo
Comprimento do eixo de debitagem
Permitem averiguar o grau de exploração de uma indústria, e verificar o estado
Largura
dimensional de abandono dos respectivos núcleos.
Espessura
Volume aproximado
Peso
Atributos Qualitativos
Tipo de córtex Fornece informação em relação ao tipo de fonte explorada.
Volume inicial Indicador de tipo de fonte explorada, bem como de eventual reutilização
de suportes como núcleos.
Produto debitado Informação sobre o tipo de suporte cuja produção é ainda visível no estado
de abandono do núcleo.
Acidentes de talhe / Deficiências Possíveis razões para o abandono do núcleo, que não as respectivas dimensões.
da matéria-prima
Último ângulo entre o plano Possível razão para o abandono do núcleo. ngulos obtusos tendem a inviabilizar
de percussão e a superfície de debitagem o prosseguimento da debitagem.
Número e tipo de plano de percussão Indicador de processos de preparação e manutenção do plano de percussão, bem
como do tipo de percussão e percutor.
Indicador da estratégia de redução lítica aplicada.
Tratamento da cornija Indicador de processos de preparação e manutenção do plano de percussão, bem
como do tipo de percussão e percutor.
Tipo de núcleo Atributo que segue geralmente designações tipológicas já estabelecidas, conforme
o período em estudo. Reflecte, geralmente, a última estratégia de redução aplicada
num volume de matéria-prima.
Conhecido e utilizado desde finais do século XIX (Cels e Depauw, 1886; Smith, 1884; Arts
e Cziela, 1990), na altura com objectivos essencialmente de ilustração e musealização, o método
das remontagens líticas foi redescoberto a partir da década de 70 do século XX, como resultado
das transformações teóricas que afectaram a ciência arqueológica em ambos os lados do Atlân-
tico: em França, através da perspectiva etnográfica implementada principalmente por André
Leroi-Gourhan e sua equipa no emblemático estudo da estação paleolítica de Pincevent (Leroi-
Gourhan e Brezillon, 1972) e, nos Estados Unidos, com o que mais tarde se veio a designar “Nova
Arqueologia” e a sua perspectiva optimista em relação à capacidade do registo arqueológico con-
ter informações preciosas acerca da organização das sociedades humanas do Passado (para um
breve historial, bibliografia e sistematização do método das remontagens, consultar Almeida, 1998).
Alheia a esta mudança de perspectiva encontrava-se a escola tipológica, cuja crise se
acentuou nos finais dos anos 60 do século XX, não só devido aos problemas que se tornavam
evidentes face ao carácter normativo deste tipo de abordagem, bem patentes naquele que foi
um dos mais conhecidos debates da fase de afirmação da “Nova Arqueologia” (Bordes e Son-
neville-Bordes, 1970; Binford e Binford, 1966), mas também pelo esvaziamento, com o
advento das datações por radiocarbono, de uma das suas principais utilidades — a construção
de esquemas cronológicos. O desenvolvimento dos estudos de traceologia e respectivos resul-
tados vieram reforçar ainda mais os argumentos dos detractores da tipologia tradicional.
O conceito de Cadeia Operatória aplicado aos estudos paleotecnológicos resultou numa
adaptação do método das remontagens líticas a problemáticas de natureza fundamentalmente
arqueológica, centradas em quatro grandes linhas de investigação:
313
1. Análises de carácter contextual e tafonómico;
2. Análises espaciais intra e inter-sítio;
3. Análises tecnológicas de colecções de pedra lascada;
4. Interpretações e reconstruções paleoetnográficas.
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314
• Por fim, as remontagens providenciam dados que podem servir não só como teste a
modelos tecnológicos provenientes do talhe experimental e de análises tecnológicas de
atributos, mas também como fonte de novos modelos de cadeias operatórias.
– Propostas de reconstituição de cadeias operatórias para a produção de lamelas para serem posteriormente transformadas em
FIG. 8-11
armaturas.
315
QUADRO 8-3
Condições ideais para a aplicação Vantagens Limites
1 - Sítios com boa preservação 1 - Resolução de problemas de 1 - Pode não detectar a totalidade da
pós-deposicional. Equifinalidade nas Sequências de redução variabilidade tecnológica presente numa
lítica. colecção (dependendo do sucesso de
remontagem, e do grau de curação
sofrido pela colecção).
MÉTODO DAS REMONTAGENS
(Equifinalidade).
ANÁLISE
Remontagens líticas e análise tecnológica de atributos: dois métodos complementares (Almeida, 1998)
Uma das metodologias inerentes à própria abordagem tecnológica diz respeito à análise
espacial, que pode ser efectuada a vários níveis: à escala do objecto, do sítio e do território.
Como vimos anteriormente, o reconhecimento das cadeias operatórias de fabrico do instru-
mental lítico com o recurso ao método das remontagens permite reconstituir a história do
objecto e da sua relação com os outros. Aplicada a uma escala maior, à do sítio, esta análise
possibilita o conhecimento da relação do objecto com o seu lugar de abandono e detectar a exis-
tência de áreas funcionais ou de actividades distintas. Constitui, igualmente, uma ferramenta
de trabalho fundamental para aferir sobre a existência de alterações de natureza tafonómica
não detectadas durante o processo de escavação de uma jazida. Numa visão mais alargada, à
escala do território, a perspectiva tecnológica constitui-se como uma das vias de investigação
arqueológica mais privilegiadas ao permitir, através da procura das fontes de aprovisionamento
das matérias-primas e do percurso empreendido por determinados objectos, o reconheci-
mento dos territórios e das modalidades de exploração e de captação de recursos de uma deter-
minada comunidade humana. A escala mais ampla de relação espacial entre os vestígios
líticos e um espaço geográfico é-nos revelada pela determinação das fontes geológicas
de aprovisionamento dos objectos abandonados num determinado contexto arqueológico.
Esta determinação implica uma avaliação prévia e rigorosa das possibilidades de recolha de
matérias-primas em posição secundária nas formações detríticas.
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316
Exemplos de Análise à Escala do Sítio
CAIXA 8-1
Entre os anos de 2000 e 2002, os trabalhos zonas de combustão, as quais apresentam arqui-
arqueológicos no Abrigo do Lagar Velho (Vale do tecturas e funcionalidades diferentes.
Lapedo, Leiria) têm-se centrado na detecção e esca- Uma das lareiras (parcialmente escavada nas
vação de contextos preservados a cotas inferiores à unidades H 3-4) apresenta-se como uma cuvette
terraplanagem que afectou a estação, antes da sua com cerca de 20 cm de profundidade e cerca de
descoberta como local de interesse arqueológico. 3 metros de diâmetro. O seu conteúdo relaciona-
De entre os vários contextos já detectados, destaca- se claramente com actividades de combustão ou
se uma superfície de ocupação (unidade de esca- preparação alimentar, sendo abundantes, no seu
vação EE15) Gravettense, que neste momento se interior, para além de seixos que estruturam a
encontra escavada, total ou parcialmente, numa sua base, inúmeros fragmentos de carvão (tendo-
área de cerca de 20 metros quadrados. -se já obtido uma primeira datação por acelerador
para esta ocupação, a partir de um fragmento de
Pinus sylvestris, de 22 493±107 BP - Wk-9256) e
dezenas de ossos queimados (destacando-se par-
ticularmente as falanges e fragmentos de osso
longo, sendo o Cervus elaphus a principal espécie
representada), associados a moluscos terrestres
(também aparentemente cozinhados) e a rara
indústria de pedra lascada.
Localizada a cerca de 3 metros para Leste
daquela estrutura, foi escavada uma outra lareira
de características essencialmente diferentes, na
respectiva arquitectura, no conteúdo, e provavel-
mente na funcionalidade. Centrada nas unidades
I-H8, esta estrutura de combustão apresenta
FIG. 8-12– Abrigo do Lagar Velho: Superfície de Ocupação EE15
durante a escavação (campanha 2002). Em primeiro plano, a
lareira em torno da qual foram talhados vários blocos de sílex,
quartzito e quartzo.
317
CAIXA 8-1 (cont.)
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
318
CAIXA 8-1 (cont.)
messo (toss zones), e ainda áreas de efectiva uti- remontadas é assim constituída por esquírolas
lização dos artefactos (a confirmar através de (97%). Um sucesso de tal ordem é raro em colec-
estudos traceológicos). ções arqueológicas. À escala europeia, a média de
• Averiguação do número de zonas de talhe e estu- sucesso em estações onde o método foi utilizado
dar as relações entre as mesmas. Através de uma sistematicamente centra-se em torno dos 20%,
análise conjunta da cronologia sequencial de mesmo em contextos bem preservados, como em
cada bloco debitado e da distribuição tridimen- Pincevent (Leroi-Gourhan e Brezillon, 1972) ou
sional dos respectivos artefactos, obter padrões Etiolles (Pigeot, 1987). O outro único caso onde o
que nos possam indicar se o talhe terá sido levado grau de sucesso se aproxima de quantitativos
a efeito por um só indivíduo, ou se pelo contrá- semelhantes é o que diz respeito a uma ocupação
rio teria havido partilha de alguns dos blocos efémera de gruta — a Lapa do Anecrial — também
entre as várias zonas de talhe, e portanto, even- localizada na Estremadura portuguesa e datando
tualmente entre diferentes indivíduos. do Gravettense Terminal, com um sucesso médio
• Averiguação, numa outra linha de investigação, na ordem dos 51% do total da colecção (92% em
a cronologia inter-blocos, ou seja, que blocos peso) (e.g. Zilhão, 1997b; Almeida, 1998, 2000,
foram primeiramente talhados, e se a mesma 2001, no prelo; Zilhão e Almeida, no prelo). Mais
terá alguma relação com o tipo de tecnologia do que demonstrando a capacidade do investigador
aplicada, de matéria-prima explorada, de suporte que utiliza o método, tal tipo de sucesso é sobre-
produzido, ou de utensílio confeccionado. tudo indicativo do grau de preservação dos con-
Neste momento, e uma vez que a escavação textos e, em parte, da efemeridade e/ou particula-
da lareira e área envolvente foi apenas concluída ridade logístico-funcional das respectivas ocupa-
em Dezembro de 2002, a aplicação do método ções arqueológicas.
das remontagens incidiu apenas nos materiais
em quartzito e sílex. Os dados aqui apresentados
são portanto preliminares, estando ainda o
estudo final da colecção não só dependente de
eventuais remontagens nos blocos de quartzo,
mas também da análise traceológica de alguns
dos utensílios retocados e de suportes brutos.
Mesmo tendo em conta estas limitações, os resul-
tados já obtidos são notáveis, face aos objectivos FIG. 8-15 – Abrigo do Lagar Velho, unidade de escavação EE15:
anteriormente enumerados. Artefactos em sílex que chegaram ao habitat já sob a forma de
suportes ou utensílios. À esquerda, lâmina cujos fragmentos
QUADRO 8-4 sofreram, após o abandono, diferentes processos pós-
Bloco Total Peso Artefactos Peso % Artefactos % Artefactos deposicionais. À direita, peça que entrou na estação já como
Artefactos Total (g) Remontados de Artefactos Remontados Remontados utensílio retocado (raspadeira carenada), e que aí foi explorada
Remontados (g) (peso) como núcleo para lascas através de tecnologia bipolar sobre
QZI-1 219 2206 74 2167 34 98 bigorna.
QZI-2 22 472 20 471 91 100
QZI-3 7 83 5 83 71 100
QZI-4 10 143 7 141 70 99 No estado actual do estudo da colecção é já pos-
SVZ 263 675 73 651 28 96 sível responder a algumas das questões acima enu-
SR 15 13 5 12 33 96 meradas. Em relação ao reforço da caracterização
SL 43 15 10 7 23 47
do contexto tafonómico, o grau de sucesso de apli-
SBA 14 273 12 272 86 100
TOTAL 593 3880 206 3804 35 98
cação das remontagens não deixa lugar a dúvidas
de que se trata de um registo in situ. É no entanto
Abrigo do Lagar Velho: sucesso relativo da aplicação do método na distribuição tridimensional dos artefactos
das remontagens líticas à ocupação da unidade de escavação remontados que o grau de preservação desta super-
EE15. fície de ocupação se revela no seu esplendor, como
abaixo veremos. Centremos, por agora, a nossa
O grau de sucesso de aplicação do método na atenção nos padrões paleotecnológicos revelados
Superfície de Ocupação EE15 centra-se em torno pelas remontagens já efectuadas.
dos 35% num total de 593 peças, correspondendo É interessante, desde logo, a variedade mor-
a cerca 98% em peso. A maioria das peças não fológica com que os vários blocos foram introdu-
>>
319
CAIXA 8-1 (cont.)
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
320
CAIXA 8-1 (cont.)
321
CAIXA 8-1 (cont.)
apreciar os respectivos vazios, e valorizá-los. Afinal, escavação EE15, e tendo em conta o elevado grau de
esses vazios representam as ferramentas que não sucesso na aplicação das remontagens na pedra las-
mereceram ser, naquele momento, abandonadas. cada, a análise desta nunca se poderia reduzir a
Nesta superfície de ocupação do Lagar Velho, uma caracterização detalhada dos respectivos
a que conclusões preliminares podemos desde já padrões paleotecnológicos. Como já vimos, a dis-
chegar em relação a este aspecto? Em primeiro tribuição espacial dos vários blocos de matéria-
lugar, que o quartzito, matéria-prima de acesso prima apresentava concentrações de morfologias
imediato e relativamente generalizado em toda a diferentes, coincidindo algumas delas. Importava
paisagem envolvente, foi explorado de forma expe- estudar em maior detalhe estas distribuições, tendo
diente, sendo a quase totalidade dos artefactos pro- especialmente em atenção três tipos de dados:
duzidos abandonada no local. Em relação ao sílex,
um padrão essencialmente diferente, logo desde a 1. A distribuição espacial das esquírolas, material
sua própria entrada no habitat, onde aparecem maioritariamente não coordenado, que consti-
associados nódulos ainda por debitar, núcleos pre- tuem o melhor indicador de efectivas áreas de
formados, suportes brutos, e um utensílio reto- talhe (drop zones). Durante a escavação da área
cado. À volta da lareira, o talhe do sílex apresenta em torno da lareira, para além da coordenação
padrões tecnológicos, à semelhança do quartzito, tridimensional de todos os vestígios referenci-
de carácter expediente – produção de lascas, e reto- ados, foi decidido, para efeitos de registo e reco-
que de algumas delas sob a forma de denticulados. lha, subdividir, numa primeira fase, cada uni-
Na altura do abandono, nem todos os artefactos em dade em quadrantes de 50 cm de lado. Mais
sílex foram rejeitados. Os vazios das remontagens tarde, e tendo em conta os resultados da tria-
demonstram-no claramente: destaca-se a ausên- gem em laboratório que ia sendo feita à medida
cia de alguns suportes (já sem córtex) e, principal- que os sedimentos chegavam do campo, foi
mente, do núcleo de grandes dimensões do bloco decidido subdividir aqueles quadrantes em sub-
SVZ, onde o material recolhido se resume a uma quadrantes de 25 cm de lado. Esta decisão veio
extremidade do mesmo. Assim, e apesar da tecno- a revelar-se muito útil para a interpretação espa-
logia aplicada a quase todos os volumes ser de cial desta superfície de ocupação.
natureza essencialmente expediente, as remonta- 2. A distribuição tridimensional do material coor-
gens permitiram verificar que o valor diferente das denado de cada bloco. Enquanto as esquírolas
várias matérias-primas e o esforço necessário para indicam essencialmente as zonas de queda, o
a recolha de cada uma delas seriam factores pon- material de maiores dimensões poderá estar
derados nas opções de selecção e de transporte, na associado a estas, mas também a áreas de arre-
altura de abandono do local. Expediência na neces- messo, ou a áreas onde alguns dos suportes e
sidade imediata, curação para o futuro, por vezes utensílios foram utilizados de facto, sem ope-
ambas visíveis num único bloco remontado… e rações de talhe associadas.
nos respectivos vazios! 3. A análise conjunta da distribuição espacial dos
Num cenário ideal, é sempre teoricamente artefactos associada à respectiva localização
possível virmos a encontrar o local para onde os dentro da cronologia interna de cada bloco.
nossos “vazios” foram levados. Constituindo o Objectivo: verificar se cada bloco se restringe a
sonho de qualquer investigador que aplica o uma única área de talhe, ou se terá sido talhado
método das remontagens (sonho já realizado por em várias áreas em torno da lareira e, portanto,
alguns colegas, de resto), tal cenário permitir-nos- eventualmente por vários indivíduos.
ia alcançar a macro-escala dos sistemas de povoa- 4. Por fim, através de uma análise detalhada não
mento e de mobilidade. Seguir, de uma forma só da distribuição horizontal de cada artefacto
directa, os percursos e as paragens de grupos remontado, mas principalmente das respecti-
humanos no seu sistema de adaptação ao territó- vas cotas, ensaiar uma cronologia inter-bloco.
rio. Por agora, e enquanto não paramos de sonhar, Ou seja, testar a possibilidade de nesta super-
é conveniente averiguar o que se passa a uma fície de ocupação ser possível verificar qual a
escala bastante mais pequena: a do sítio, a da estru- ordem pela qual os vários blocos foram sendo
tura, a de cada bloco remontado - a micro-escala. talhados.
Perante uma superfície de ocupação com as Embora ainda em estado preliminar, a análise
excelentes condições de preservação da unidade de preliminar dos padrões espaciais de cada um dos >
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
322
CAIXA 8-1 (cont.)
FIG. 8-20 A– Distribuição espacial de artefactos coordenados do bloco – Detecção de áreas efectivas de talhe. Interpretação
FIG. 8-20 C
de quartzito QZI-1, com indicação das ligações resultantes das resultante da análise conjunta da densidade de esquírolas
remontagens. (sombreado) e da cronologia interna da remontagem do bloco QZI-1.
blocos remontados, da respectiva cronologia utilização. Tal hipótese será testada através do
interna e das densidades de esquírolas sugere não estudo traceológico dos elementos aí recolhidos.
só a existência de pelo menos três zonas efectivas É curioso observar que os blocos de quartzito
de talhe, mas também movimentos de alguns dos com maior número de suportes produzidos (Blo-
blocos entre as mesmas. É ainda provável a exis- cos QZI-1 e QZI-2) a par com um bloco de sílex
tência de uma quarta zona onde artefactos de de qualidade média para o talhe (Bloco SBA)
vários blocos foram abandonados após possível apresentam distribuições que apontam para uma
>>
323
CAIXA 8-1 (cont.)
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324
CAIXA 8-2
325
CAIXA 8-2 (cont.)
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
326
CAIXA 8-3
O sítio de ar livre da Olga Grande 14 está situ- associados a elementos de pedra lascada, atribuí-
ado no limite SE dum afloramento granítico deno- veis, com base na tipologia dos utensílios microlí-
minado Pedras Altas, na margem direita da Ribei- ticos retocados, a uma fase do Gravettense final,
rinha, um afluente temporário da margem também detectada nos sítios próximos de Cardina
esquerda do Côa (Aubry, 1998). O sítio faz parte de I, localizado junto ao rio Côa (Zilhão, 1997a) e de
um conjunto de várias concentrações de vestígios Insula II, na ribeira de Aguiar (Aubry, 2001).
arqueológicos, que se estende ao longo de cerca de Os sedimentos não permitiram a conservação
2 km de um planalto com 550 metros de altitude de macro-restos orgânicos, pelo que a totalidade
máxima inserido entre o Côa e a Ribeira de Aguiar, dos vestígios recolhidos na sequência de níveis do
dois afluentes da margem esquerda do rio Douro. Paleolítico Superior é constituída exclusivamente
por elementos pétreos.
As vãs tentativas de remontagem entre vestígios
da unidade estratigráfica 3A e o conjunto lítico da
base da unidade estratigráfica 2C, excluem virtual-
mente quaisquer processos de natureza pós-depo-
sicional que tenham dispersado os vestígios verti-
calmente, misturando assim as duas ocupações.
A análise das matérias-primas permitiu
demonstrar uma grande variabilidade não só na
respectiva proveniência – com recolha em aflora-
mentos existentes a distâncias que variam entre os
10 metros e os 250 km – como também na dife-
FIG. 8-26 – Vista dos loci de Olga Grande 14 e 4, em relação com
rente funcionalidade de cada uma. Destaca-se,
o afloramento granítico de Pedras Altas e os cursos de água da
Ribeirinha e do Côa. desde já, uma dicotomia entre os elementos líticos
não talhados, utilizados na sua maior parte como
elementos associados a estruturas de combustão,
As sondagens e escavações levadas a cabo e os restos que foram objecto de operações de
desde 1998 revelaram uma sequência de ocupa- talhe. Foram realizadas remontagens nestes dois
ções atribuíveis à Pré-História recente e ao Paleo- tipos de vestígios.
lítico superior (Magdalenense, Solutrense e Gra- A análise dos elementos pétreos termo-altera-
vettense), que se encontravam embaladas em dos permitiu reconhecer a existência de três gran-
areias graníticas acumuladas por processos de des tipos de matéria-prima, cuja cor e tipos de frac-
escorrimento difuso, e nas quais foram detectados tura evidenciam alterações de natureza térmica.
fenómenos pedogenéticos (Sellami, 2000). As O quartzo, matéria-prima disponível a cerca de
sondagens efectuadas numa pequena plataforma 150 metros, está representado por 311 elementos,
topográfica de cerca de 250 metros quadrados, cer- constituindo a rocha mais utilizada; o quartzito,
cada por afloramentos graníticos, e a escavação em disponível a cerca de 300 metros do sítio, encontra-
área de 12 metros quadrados na parte central da se apenas representado por 5 fragmentos; 43 frag-
estação, permitiram evidenciar uma acumulação mentos de granito (presente em afloramentos loca-
de elementos pétreos com alteração térmica na lizados a apenas alguns metros da área escavada)
base da unidade estratigráfica 3 A. Estes aparecem constituem o resto da amostra recolhida.
>>
327
CAIXA 8-3 (cont.)
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
328
CAIXA 8-3 (cont.)
329
CAIXA 8-3 (cont.)
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
330
CAIXA 8-4
331
CAIXA 8-4 (cont.)
FIG. 8-35– Repartição dos elementos pétreos termo-alterados de granito e quartzo com mais de 5 cm na unidade estratigráfica 3
e localização das estruturas detectadas.
>
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
332
CAIXA 8-4 (cont.)
333
CAIXA 8-4 (cont.)
namento das estruturas de combustão e obter largos terão sido seleccionados e levados para
elementos para uma interpretação dos modos de junto das estruturas 1, 2 e 4, onde foram
utilização e alteração pós-deposicional. abandonados. Esta deslocação de elementos
Tal como no caso da Olga Grande 14 (vide de pedra lascada é inversa ao sentido das des-
Caixa 8-3), e de outros casos já estudados em dife- locações de elementos termo-alterados ante-
rentes contextos (Valentin, 1989; March e Soler- riormente referidos.
-Mayor, 1999), também na Olga Grande 4 a per- • A associação de pequenas lascas de sílex rube-
centagem de remontagem de termoclastos é rela- factas às estruturas constituídas por lajes de
tivamente baixa. Também aqui este padrão deve granito (E-2 e E-4) revela que as últimas terão
estar relacionado com o reaproveitamento de funcionado no próprio local onde foram
alguns dos elementos pétreos para a construção encontradas.
de estruturas que eventualmente se encontrem
ainda em áreas não escavadas, ou em estruturas A conjugação dos dados provenientes das
entretanto destruídas. Ainda assim, os dados remontagens dos elementos termo-alterados com
resultantes da análise espacial e estratigráfica dos as remontagens da indústria lítica sugere uma
elementos pétreos com mais de 5 cm, e respecti- possível contemporaneidade de utilização entre
vas remontagens permitem estabelecer as as estruturas 1 e 3, numa fase anterior à repre-
seguintes relações: sentada pelas estruturas 5, 6 e 7, que deverão cor-
• A anterioridade da construção e funciona- responder a uma fase mais tardia do Gravettense.
mento da estrutura 5 sobre as estruturas 6 e 7; A aplicação do método das remontagens às
• A anterioridade das estruturas 1, 2, 3 e 4 sobre diversas categorias de vestígios revelou compor-
as estruturas 5, 6 e 7; tamentos distintos e, provavelmente, separados
• As relações detectadas entre as estruturas 1 e num curto espaço de tempo, entre as deslocações
3 não permitem estabelecer de uma forma de produtos talhados (seleccionados no sítio de
directa uma cronologia relativa entre ambas, talhe para utilização durante uma fase de funcio-
mas a correlação com outro tipo de observa- namento de diversas estruturas de combustão) e
ções favorece uma maior antiguidade da o aproveitamento posterior dos termoclastos.
estrutura 1, nomeadamente um grau de A subrepresentação dos elementos termo-
sucesso mais elevado na remontagem dos ele- alterados relativamente à indústria lascada, cons-
mentos constituintes desta estrutura, e tam- tatada no nível de ocupação gravettense da vizi-
bém a repartição espacial dos elementos que nha Olga Grande 14 (vide Caixa 8-3), sugere que
constituem a unidade de remontagem no11. a reutilização dos elementos pétreos das estrutu-
Com efeito, esta remontagem documenta ras de combustão deveria ter um carácter siste-
como um fragmento queimado de uma placa mático. As remontagens na Olga Grande 4 per-
de quartzo inicialmente debitada junto à mitiram estabelecer relações entre estruturas de
estrutura 1 foi posteriormente retocado e funções diversas, numa área de cerca de 70
abandonado junto à estrutura 3. metros quadrados (dentro dos cerca de 90 metros
A correlação destes dados com as informa- quadrados escavados), provavelmente ocupada
ções espaciais obtidas pelas remontagens da durante uma única fase de ocupação humana.
indústria de pedra lascada permitem constatar: A taxa reduzida de remontagem dos termo-
• A deslocação diferencial por processos de clastos pode ainda ser explicada pela limitação
escorrimento difuso das águas — principal no espaço das condições favoráveis à conservação
componente da sedimentação — dos ele- destes vestígios, determinadas pela topografia do
mentos de dimensões milimétricas recupe- afloramento granítico (Sellami, 2000). A melhor
rados no sítio; preservação pós-deposicional dos vestígios nas
• Uma predominância de actividades de talhe proximidades do afloramento pode estar na ori-
sobre seixos de quartzito e de quartzo, com gem da alta densidade de elementos termo-alte-
vista à produção de lascas, numa área locali- rados observáveis actualmente na superfície dos
zada a Sudoeste da estrutura 3; terrenos, a Oeste do sector escavado, na parte res-
• De entre as várias lascas produzidas junto à tante da plataforma topográfica que constitui a
estrutura 3, os exemplares mais espessos e Olga Grande 4. >
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
334
CAIXA 8-4 (cont.)
335
Exemplos de Análise à Escala do Território
CAIXA 8-5
A introdução de uma componente importante dos dos períodos Pré-boreal e Boreal, é possível
de origem aquática na dieta das comunidades estabelecer uma primeira hipótese sobre as moda-
humanas do Holoceno inicial marca, porventura, lidades de ocupação e exploração dos territórios
e considerando a Estremadura portuguesa, uma destas comunidades humanas de caçadores-reco-
primeira ruptura com os padrões de comporta- lectores. Utilizando determinados critérios de
mento que caracterizaram até então as sociedades natureza arqueológica — implantação geográfica
de caçadores-recolectores do Paleolítico Superior e topográfica, extensão das áreas ocupadas, con-
final. A dependência que passa a existir na explo- teúdos artefactuais, etc. — foram individualiza-
ração intensiva de fontes alimentares de habitat dos três agrupamentos distintos de jazidas:
costeiro e estuarino, sobretudo na recolecção de • O primeiro agrupamento (1) compreende jazi-
moluscos bivalves, parece constituir uma resposta das de ar livre extensas localizadas no interior
adaptativa bem sucedida por parte dos grupos e periferia dos maciços calcários. A indústria
humanos às novas condições ecológicas que a cha- lítica presente nestes contextos é numerosa e
mada Última Mudança Global, que marca o início diversificada, destacando-se uma estratégia de
do Holoceno, desencadeou nos ecossistemas, produção lítica orientada para a produção de
quer nos biótopos quer nas biocenoses. Da análise armaturas. A exploração de recursos de origem
comparativa efectuada aos espólios faunísticos terrestre deveria constituir a principal activi-
exumados em contextos arqueológicos datados do dade de subsistência destas comunidades;
período de transição do Plistocénico ao Holoceno, • O segundo agrupamento (2) inclui jazidas de
verifica-se que, sem excepção, e independente- tipo concheiro, que apresentam uma compo-
mente das distâncias desses locais à respectiva nente industrial lítica centrada na produção
linha de costa, o consumo em larga escala de expedita de lascas a partir de matérias-primas
moluscos aparece apenas, e pela primeira vez, nas de origem local. Estes contextos parecem cor-
jazidas que datam já do pós-glaciar (Araújo, 2003, responder a pequenos acampamentos tem-
no prelo a). O surgimento de um novo tipo de porários sazonais, reocupados sucessiva-
sítio, o concheiro, é o exemplo mais paradigmá- mente, e destinados sobretudo à exploração
tico da importância que este tipo de recurso passa de fontes alimentares de origem aquática;
a ter na dieta das comunidades humanas a partir • O terceiro agrupamento (3) contém jazidas de
do Holoceno. Em contraste, não há qualquer gruta e de abrigo localizadas no interior e peri-
jazida do Paleolítico Superior que documente, até feria dos maciços calcários. Estes contextos
ao momento, um consumo economicamente sig- apresentam características comuns aos dois
nificativo de alimentos de origem aquática. Sendo agrupamentos anteriores: uma subsistência
a exploração intensiva de moluscos aparente- baseada na exploração de recursos de origem
mente correlativa das transformações ecológicas terrestre e aquática, nomeadamente de molus-
operadas na transição do Plistocénico para o Holo- cos bivalves, uma componente lítica que inclui
ceno, até que ponto é que a tecnologia lítica pro- diversos tipos de armaturas microlíticas.
duzida pelas comunidades humanas acompanha
estas mesmas alterações? Esta diferenciação não parece estar associada
Centrando a análise nos contextos arqueoló- a factores cronológicos ou geográficos. Os dados
gicos situados na Estremadura portuguesa e data- actualmente disponíveis apontam para a existên- >
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
336
CAIXA 8-5 (cont.)
337
CAIXA 8-6
FIG. 8-43 – Mesolítico dos Vales do Tejo e do Sado: estratégias de exploração do território. FIG. 8-44 – Produção de
suportes lamelares a partir de
núcleos prismáticos e sua
posterior transformação em
utensílios geométricos
(trapézios, triângulos e
crescentes).
>
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
338
CAIXA 8-6 (cont.)
339
CAIXA 8-7
Modalidades de aprovisionamento em
matérias-primas líticas nos sítios do Paleolítico
Superior do Vale do Côa: dos dados à interpretação
❚ THIERRY AUBRY ❚ JAVIER MANGADO LLACH ❚
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
340
CAIXA 8-7 (cont.)
>>
FIG. 8-48 – Origens e distâncias de deslocações de sílex em níveis deocupação gravettenses do Baixo Côa e da Serra de Sicó.
341
CAIXA 8-7 (cont.)
– Modelos de interpretação dos processos de deslocação das variedades de sílex abandonadas nos sítios do Paleolítico Superior
FIG. 8-49
do Vale do Côa.
Se aceitamos a primeira proposição, este tipo das bacias do alto Douro ou do Tejo) nas jazidas do
de sítios deveria ser caracterizado pela utilização de Côa. Este facto pode estar associado a um processo
sílex de uma única proveniência geográfica, em rela- distinto de difusão, indiciando uma ligação social
ção com o território de exploração directo do grupo privilegiada com os sítios da vertente Norte da Cor-
de origem da deslocação logística. A deslocação sis- dilheira Central.
temática de matérias-primas siliciosas originárias A confirmação ou não destes modelos, ou de
de diversos pontos da região constitui também um um outro, passa necessariamente pela obtenção de
argumento contra este modelo explicativo. dados complementares, provenientes de sítios fun-
A demonstração da existência de um limite cionalmente bem caracterizados, e sobretudo pela
social que corresponda às entidades utilizadas descoberta de outros sítios em áreas geográficas
actualmente pelos geógrafos encontra justificação onde ainda não foram detectados índices de ocupa-
na preponderância da utilização de sílices miocéni- ção humana mas para as quais a exploração dos
cos de ambiente de formação lacustre (provenientes recursos em matéria-prima já está atestada.
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
342
Paleotecnologia e Paleoetnografia. A Mais que Necessária Multidisciplinaridade
O trabalho da pedra constitui apenas uma parcela ínfima das actividades e dos compor-
tamentos humanos que tiveram lugar no Passado. Pedras, ossos, cerâmicas, carvões, semen-
tes, entre tantos outros vestígios materiais aproveitados, produzidos ou criados pelo Homem,
constituem as fontes arqueológicas sobre as quais se debruçam e trabalham os investigado-
res do passado sem escrita. Chegar a este passado é uma tarefa que requer a conjugação de diver-
sos domínios de investigação científica, um trabalho que é feito em partes, para se chegar a um
todo que é comum. E é através da análise e estudo das mais diversas componentes do com-
portamento humano que se reconstrói a História do Homem, do Tempo em que viveu, e do
Espaço que ocupou.
A Paleotecnologia lítica é um domínio de investigação que visa reconstituir os sistemas
tecnológicos do trabalho da pedra. Esta foi transformada e manipulada para satisfazer deter-
minadas necessidades, tornando-se uma ferramenta de intervenção no meio e nos seus recur-
sos. Ler a pedra através da análise dos estigmas produzidos no contexto do seu processo de
fabrico e de utilização é descobrir o artesão, o gesto, e a actividade que lhe são subjacentes. Os
objectos têm uma história e um percurso até chegarem a nós. Aliás, têm duas histórias: uma
que se refere ao período que medeia entre o seu abandono e a sua recuperação no âmbito de
uma prospecção ou escavação; e outra, mais antiga, quando desempenhavam a função para a
qual foram produzidos. A Tipologia abarca essencialmente o período de intersecção entre estas
duas histórias. A Paleotecnologia pretende, através das suas várias linhas de investigação, abar-
car não só o momento de abandono dos objectos, o seu estado final, mas todos os processos
dinâmicos de concepção, fabrico e uso. Implica, portanto, uma abordagem multidisciplinar e
multifacetada às colecções. A análise de atributos, o talhe experimental, as remontagens, os
estudos de proveniência de matérias-primas, a traceologia, a própria tipologia, são metodolo-
gias que devem funcionar de uma forma integrada. Só assim será possível uma reconstitui-
ção tão completa quanto possível das cadeias operatórias e, do mesmo modo, da parte da Pale-
oetnografia subjacente às culturas materiais e aos sistemas técnicos do passado.
Embora as escalas de investigação tradicionalmente mais privilegiadas sejam as do
objecto e do sítio, devido à própria natureza do nosso campo de investigação, a reconstituição
dos comportamentos deverá ter sempre em conta a escala territorial, ou seja, a escala das comu-
nidades do Passado e não a do arqueólogo. O estudo de colecções de pedra lascada, mesmo
quando efectuado a escalas mais restritas, permite alcançar uma escala mais abrangente, ter-
ritorial, como vimos em alguns dos casos apresentados anteriormente (vide Caixas).
O Núcleo de Paleotecnologia do CIPA tem vindo a desenvolver, desde a sua criação, diver-
sos programas de investigação e formação. Numa perspectiva plural da Arqueologia, torna-se
imperativo um contacto estreito entre as diversas áreas de investigação do passado. Hoje em
dia, e face ao estado de desenvolvimento da nossa ciência, torna-se impraticável uma aborda-
gem ao passado que não se revista de carácter multidisciplinar. As comunidades que estuda-
mos desenvolveram mecanismos de sobrevivência e adaptação nos quais o trabalho da pedra
constitui apenas uma parcela do seu comportamento. O estudo de uma estação arqueológica
implica hoje uma responsabilidade que passa para além da mera análise dos artefactos, ou de
simples listas de espécies faunísticas a eles associadas. O trabalho arqueológico deve antes de
mais ser baseado na formulação de várias questões ao respectivo registo. Os resultados de um
projecto de investigação serão, no seu final, mais profícuos quanto mais madrugadora for a
respectiva abordagem multidisciplinar. A participação de áreas como a Geoarqueologia, a
Arqueozoologia, a Paleobotânica, a Paleoantropologia, a Paleotecnologia deve transparecer
desde logo no leque de questões prévias à escavação de uma estação arqueológica. Estas ques-
343
tões condicionam, ou devem condicionar, a própria metodologia de campo, de recolha e de
registo. Posteriormente, já no laboratório, cada área de investigação tem a oportunidade de ava-
liar os dados disponíveis, e de apresentar hipóteses interpretativas para os mesmos. Algumas
hipóteses resultantes de análises paleotecnológicas, por exemplo, poderão ser infirmadas
pelos dados resultantes da arqueozoologia, e vice-versa. Outras passarão o teste de alargamento
da escala de análise. Afinal, o progresso da investigação arqueológica passa não só pela even-
tual confirmação de algumas hipóteses, mas principalmente pela negação de muitas outras.
E esta é uma das principais vantagens de uma Arqueologia multidisciplinar.
CAIXA 8-8
Desde o início da sua actividade, o Núcleo de ções associadas a um inventário de pedra lascada,
Paleotecnologia do CIPA tem apostado na for- desde a separação por matérias-primas e classes
mação, recebendo estudantes em regime de tecnológicas, à classificação tipológica da utensi-
voluntariado, participando em cursos de divulga- lagem retocada. Mais importante que um tipo de
ção como o de Avecasta 2001 ou acolhendo "mão-de-obra barata", estas presenças são impor-
jovens investigadores proporcionando-lhes um tantes no âmbito da formação de uma nova gera-
espaço físico para trabalhar, acesso a equipa- ção de investigadores. Num país onde o ensino
mento e auxilio no enquadramento metodoló- universitário da Arqueologia continua a pecar
gico. pela rara oportunidade dos respectivos estudan-
Uma vez que são muito poucos os investiga- tes em contactarem directamente com materiais,
dores portugueses que trabalham neste domínio o Núcleo de Paleotecnologia do CIPA disponibi-
da Arqueologia é essencial estimular a aprendi- liza não só o acesso a colecções, mas também a
zagem de jovens estudantes nestas matérias. Por vantajosa possibilidade de os voluntários traba-
outro lado, tendo em conta as características da lharem num espaço onde a natureza multidisci-
abordagem tecnológica, a aprendizagem por livre plinar da investigação é por demais evidente.
iniciativa e simples consulta de manuais é insu- Enquanto trabalham no inventário de colecções,
ficiente. É necessário ver material. Aprender tec- os estudantes têm a oportunidade de aprender
nologia lítica, identificar estigmas de talhe da
pedra, tipos de percussão utilizados, ler as cica-
trizes deixadas por levantamentos anteriores,
compreender o posicionamento do objecto na
cadeia operatória exige o manuseamento de peças
arqueológicas, e por vezes experimentais, bem
como a discussão com colegas mais versados na
matéria.
Alguns dos projectos a decorrer no Núcleo de
Paleotecnologia do CIPA têm contado com a par-
ticipação de estudantes, em regime de voluntari-
ado, para tarefas como a inventariação de colec-
ções. Neste âmbito, os voluntários têm a possibi-
lidade de aprender algumas das primeiras opera- FIG. 8-50 – Avecasta 2001: trabalhar a pedra ao jeito da Pré-história
>>
PALEOECOLOGIA HUMANA E ARQUEOCIÊNCIAS. UM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR PARA A ARQUEOLOGIA SOB A TUTELA DA CULTURA
344
CAIXA 8-8 (cont.)
as vantagens e limites da tipologia, do talhe expe- durante a tarde e, antes de uma análise tipológica
rimental, da análise tecnológica de atributos, das de colecções arqueológicas ao anoitecer, foi ainda
remontagens, da traceologia… possível verificar que o método das remontagens
No curso de pós-graduação Avecasta 2001, o não é, afinal, um monstro de sete cabeças.
Núcleo de Paleotecnologia do CIPA organizou um Para além da formação no âmbito de projectos
módulo de aprendizagem sobre as indústrias de do próprio Núcleo de Paleotecnologia do CIPA, a
pedra lascada onde se valorizaram os aspectos prá- equipa de investigadores têm ainda prestado apoio
ticos da análise tecnológica. Os formandos tive- a vários estudantes nacionais e estrangeiros na ela-
ram oportunidade de conhecer os mecanismos de boração das respectivas teses de licenciatura, mes-
inventariação e classificação das colecções, bem trado, e doutoramento. Este apoio engloba não só
como os respectivos fundamentos teóricos. Alguns a disponibilização de espaços de trabalho, de colec-
cortes esporádicos durante o talhe experimental ções arqueológicas e de bibliografia, mas também,
antes do almoço não foram razão suficiente para os e há medida que o tempo o permite, da vontade de
alunos menosprezarem a análise de estigmas aconselhar, discutir, aprender.
Equipa de Trabalho
CAIXA 8-9
Núcleo de Paleotecnologia
Francisco Almeida
Lic. História Variante de Arqueologia (Faculdade de Letras de Lisboa)
M.Sc. em Arqueologia (Southern Methodist University, Dallas, EUA)
Doutoramento em Arqueologia (Southern Methodist University, Dallas,
EUA)
Áreas de Investigação: Paleolítico Superior, Paleotecnologia Lítica.
Remontagens de pedra lascada.
Thierry Aubry
Lic. em Géologie Appliquée (Université de Bordeaux I)
DEA em Anthropologie (Préhistoire) (Université de Bordeaux I)
Doctorat d’Université en Préhistoire et Géologie du Quaternaire
(Université de Bordeaux I)
Equivalência ao grau de Doutor em Letras, variante História (Faculdade
de Letras de Coimbra)
Áreas de Investigação: Paleolítico Superior, Litologia, Arqueologia
Experimental, Paleotecnologia Lítica.
345
Agradecimento
As excelentes fotografias de estúdio inseridas neste capítulo são da autoria de José Paulo
Ruas, a quem os autores expressam o seu agradecimento.
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Autores* e Colaboradores✜
deste Volume
Vera ALDEIAS ✜ Jacinta BUGALHÃO ✜
Av. 22 de Dezembro, n.o 25 L Instituto Português de Arqueologia
2900-670 Setúbal Avenida da Índia, 136
Portugal 1300-300 Lisboa
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Francisco ALMEIDA *
Centro de Investigação em Paleoecologia Randi DANIELSEN ✜
Humana e Arqueociências Rua da Restauração, 9
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falmeida@ipa.min-cultura.pt
Simon DAVIS *
Centro de Investigação em Paleoecologia
Diego E. ANGELUCCI * Humana e Arqueociências
Centro de Investigação em Paleoecologia Instituto Português de Arqueologia
Humana e Arqueociências Avenida da Índia, 136
Instituto Português de Arqueologia 1300-300 Lisboa
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Cidália DUARTE *
Centro de Investigação em Paleoecologia
Ana Cristina ARAÚJO * Humana e Arqueociências
Centro de Investigação em Paleoecologia Instituto Português de Arqueologia
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Gisela ENCARNAÇÃO ✜
Museu Municipal de Arqueologia
Thierry AUBRY * da Amadora
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5150-610 Vila Nova de Foz Côa
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Sónia GABRIEL * Patrícia MENDES ✜
Departamento de Biología Centro de Investigação em Paleoecologia
Facultad de Ciencias Humana e Arqueociências
Universidad Autónoma de Madrid Instituto Português de Arqueologia
Cantoblanco Avenida da Índia, 136
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Vanda PINHEIRO ✜
Javier MANGADO LLACH ✜
Centro de Investigação em Paleoecologia
Department Prehistòria, H. Antiga i
Humana e Arqueociências
Arqueologia, S.E.R.P.
Instituto Português de Arqueologia
Universitat de Barcelona
Avenida da Índia, 136
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mangado@trivium.gh.ub.es vanda@ipa.min-cultura.pt
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Leonor ROCHA ✜ Jorge D. SAMPAIO ✜
Instituto Português de Arqueologia PAVC – Parque Arqueológico do Vale do
Extensão do Crato Côa
lrocha@ipa.min-cultura.pt jsampaio.pavc@ipa.min-cultura.pt
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