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2020 - Ser Ou Não Ser Na Sociedade Capitalista
2020 - Ser Ou Não Ser Na Sociedade Capitalista
-2-
SER OU NÃO SER NA
SOCIEDADE
CAPITALISTA:
O MATERIALISMO HISTÓRICO-DIALÉTICO
COMO MÉTODO DA PSICOLOGIA
HISTÓRICO-CULTURAL E DA TEORIA DA
DETERMINAÇÃO SOCIAL DOS PROCESSOS
DE SAÚDE E DOENÇA
-3-
DIREÇÃO EDITORIAL: Willames Frank
DIAGRAMAÇÃO: Jeamerson de Oliveira
DESIGNER DE CAPA: Willames Frank | Jeamerson de Oliveira
IMAGEM DE CAPA: https://www.pexels.com
O padrão ortográfico, o sistema de citações e referências bibliográficas são
prerrogativas do autor. Da mesma forma, o conteúdo da obra é de inteira e
exclusiva responsabilidade de seu autor.
Todos os livros publicados pela Editora Phillos estão sob os direitos da
Creative Commons 4.0
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR
S241p
LOPES, Jozélio Agostinho, FIREMAN, Elton Casado, SILVA, Monique
Gabriella Ângelo da.
ISBN: 978-65-87324-14-2
-4-
ADRIANA DE FÁTIMA FRANCO
SILVANA CALVO TULESKI
FERNANDO WOLFF MENDONÇA
(Organizadores)
Goiânia-GO
2020
-5-
Direção Editorial
Willames Frank da Silva Nascimento
1- LISTA DE QUADROS
a. Quadro 1 – Quantidade de crianças que
fazem uso de medicação controlada na
Educação Infantil
b. Quadro 2 – Diagnóstico mais frequente de
crianças na Educação Infantil
2- LISTA DE GRÁFICOS
a. Gráfico 1- Produção agregada (kg) de
anfetaminas e metilfenidato
b. Gráfico 2- Número de crianças medicadas
por série.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .......................................................10
PARTE I - CATEGORIAS GERAIS DE ANÁLISE.20
CAPÍTULO I
CIÊNCIA NÃO É NEUTRA: IMPLICAÇÕES
POLÍTICAS DA PSICOLOGIA .................................... 21
PARTE II PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL E
EDUCAÇÃO....................................................................53
CAPÍTULO II
DIALÉTICA SINGULAR-PARTICULAR-UNIVERSAL:
IMPLICAÇÕES DO MÉTODO MATERIALISTA
DIALÉTICO PARA A PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO. 33
PARTE II - PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL
E EDUCAÇÃO ..............................................................53
CAPÍTULO III
DIDÁTICA DESENVOLVIMENTAL: UM OLHAR
PARA SUA GÊNESE NA TRADIÇÃO DA TEORIA
HISTÓRICO-CULTURAL E POSSÍVEIS
DESDOBRAMENTOS PARA A REALIDADE
BRASILEIRA .................................................................54
CAPÍTULO IV
IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS PRELIMINARES
ACERCA DO DESENVOLVIMENTO DA ATENÇÃO
VOLUNTÁRIA DE CRIANÇAS NOS ANOS INICIAIS
DO ENSINO FUNDAMENTAL ....................................88
CAPÍTULO V
A MEDICALIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO INFANTIL NO
ESTADO DO PARANÁ: ALGUNS APONTAMENTOS
A PARTIR DA PSICOLOGIA HISTÓRICO-
CULTURAL ..................................................................122
PARTE III - PSICOLOGIA HISTÓRICO-
CULTURAL E O CAMPO DA SAÚDE ...................149
CAPÍTULO VI
DETERMINAÇÃO SOCIAL DO PROCESSO SAÚDE-
DOENÇA: ALGUNS ELEMENTOS CONCEITUAIS.150
CAPÍTULO VII
OS PROCESSOS SAÚDE-DOENÇA NA SOCIEDADE
CAPITALISTA: UMA QUESTÃO DE GÊNERO? .....164
CAPÍTULO VIII
A FORMAÇÃO SOCIAL DOS TRANSTORNOS DO
HUMOR ........................................................................192
CAPÍTULO IX
A ESQUIZOFRENIA É DETERMINADA
BIOLOGICAMENTE? APONTAMENTOS ACERCA
DAS CONSEQUÊNCIAS DA FRAGMENTAÇÃO DA
UNIDADE BIOLÓGICO-SOCIAL ..............................201
[SOBRE O(S) AUTOR(ES)]..........................................231
APRESENTAÇÃO
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Chile, Haiti, Uruguai, entre outros, revoltarem-se contra as
medidas neoliberais que só aprofundam a desigualdade e
expõem a grande massa da população a situações cada vez
mais graves de pauperização. Todos os levantes e
mobilizações demonstraram, por um lado, que somos
muitos e que estes muitos podem enfrentar com coragem a
força bruta e opressora. Houve recuos por parte do Estado
burguês, é certo, em parte foi uma vitória, porém esse
recuo foi estratégico e precisamos ter clareza, ele se deve
ao fato de que é melhor perder um pouco para não se
perder tudo. Este recuo, porém, deve servir para a tomada
de consciência de que uma maioria de explorados,
precarizados, marginalizados, pode mudar o estado de
coisas, desde que haja organização coletiva e que o
movimento massivo não se deixe cooptar por
oportunismos e oportunistas. A América Latina ferveu em
2019, pôs-se em ebulição (e também o mundo), no entanto
é necessário nascer das entranhas da classe trabalhadora
líderes organicamente vinculados aos seus interesses. É
preciso dizer basta, que chegou o fim da tutela, de se
delegar a seres iluminados, prepotentes e arrogantes, o
poder de dirigir como protagonistas os anseios da classe
trabalhadora. Cabe aos “intelectuais” compreenderem o
seu papel de subordinados neste movimento.
Em termos de Brasil, de 2016 para cá podemos
dizer que muita coisa mudou, porém não para melhor no
que se refere às condições da classe trabalhadora. Desde o
governo de Michel Temer até a eleição do atual presidente
Jair Bolsonaro, as contradições se aprofundam e os
mecanismos para sua dissimulação e contenção se
- 11 -
intensificam. Foram aprovadas medidas cada vez mais
drásticas que cortam na carne os direitos duramente
conquistados pelos trabalhadores. Podemos citar como
exemplos a Reforma Trabalhista, a Reforma da
Previdência, o contingenciamento de recursos da
Educação Pública, o Projeto Future-se para as
Universidades Federais e seu irmão gêmeo para as
Universidades Estaduais do Paraná, intitulado Lei Geral da
Universidades (LGU), entre tantos outros desmontes nas
políticas de saúde pública, meio ambiente, etc.
No entanto, juntamente com um aparato repressor
cada vez mais aparelhado, de um Estado cada vez mais
militarizado, verificamos um investimento maciço em
tecnologias de ponta aplicado às formas de comunicação
de massa, cujo objetivo visa confundir, nublar a diferença
entre fato/conhecimento e mentira. Em resumo, governam
por meio de notícias fantasiosas que manipulam o
imaginário da população, suas emoções mais profundas,
criando incertezas sobre tudo e sobre todos. Aprofundam
com isso a sensação de desamparo e estabelecem a dúvida
sobre as possibilidades de criar uma nova ordem social
aqui na terra, pelos seres humanos. Incentivam o embate
com aqueles que estão do mesmo lado da barricada, geram
desconfiança, estimulando a fé que a superação destas
condições precárias de vida só seria possível em um outro
mundo supraterreno. Enfim, destituem-nos daquilo que
nos faz sujeitos da história.
Podemos dizer que, se o historiador marxista Eric
Hobsbawm, falecido em 2017, continuasse a sua coleção,
talvez estivéssemos ingressando na Era da Insanidade.
- 12 -
Com a sociabilidade capitalista em franco declínio, temos
o acirramento da posição reacionária da burguesia
dominante, representada pelos grandes conglomerados
multinacionais e sistema financeiro também mundializado.
Instaura-se de modo ainda mais intenso na esfera
ideológica o elogio ao irracionalismo que se exprime nas
mais diversas formas de fanatismo, seja este religioso,
partidário, esportivo, com suas manifestações grotescas de
excessiva violência física e simbólica. Na aparência
fenomênica se tem a violência física e extermínio de
segmentos da população considerados mais frágeis e
inferiores (por sua sexualidade, seu gênero, sua idade, sua
raça), mas também a desqualificação por meio do
deboche, da aniquilação individual ou grupal de pessoas
que sejam dissonantes. O fanatismo, infelizmente, não
atinge apenas o que em termos políticos se considera
“direita”, mas também contamina aqueles segmentos que
em discurso se colocam como progressistas e/ou
revolucionários.
O fanatismo como expressão cabal do
irracionalismo, quando consideramos pela perspectiva da
Psicologia Histórico Cultural de base marxista, toma da
unidade afetivo-cognitiva, o afeto, as emoções mais
primitivas e menos desenvolvidas como reitoras da razão,
do intelecto. Nesta perspectiva não há debate, não há
discussão, não há argumentação, não há espaço para
entender a perspectiva alheia, mesmo que o outro seja da
mesma classe. Perde-se a capacidade de análise, de
compreensão da gênese e desenvolvimento dos
fenômenos, sua historicidade. Com isso se estabelece um
- 13 -
campo de disputa, que se assemelha à disputa de pastores
por seus fiéis, de partidos por seus eleitores e de times em
um campeonato. Nesta disputa há sempre um vencedor e
um derrotado, na sociabilidade burguesa esta muitas vezes
se caracteriza pela perspectiva do “vale tudo”, dos “fins
justificam os meios”. Por outro lado, quando defendemos
outra forma de sociabilidade, diferente da capitalista e
diferente do que foi denominado de socialismo real, ainda
que consideremos os avanços por este alcançado, é
necessário revisitar não somente os textos clássicos de
Marx, mas compreender à luz de tais elaborações, as
características atuais do capitalismo e seu impacto
objetivo-subjetivo. Este foi o propósito do IV Evento e se
expressa nos textos contidos neste livro, fruto das
conferências realizadas.
Peço aqui a licença para trazer algumas reflexões
importantes de A. N. Leontiev, em seu livro “Atividade,
consciência e personalidade”, que nos ajudam a
compreender como nos constituímos no interior da
sociedade de classes. Para o autor, o processo de
desenvolvimento da personalidade é individual e
irrepetível e vai mostrar fortes deslocamentos de acordo
com a idade e em algumas ocasiões provoca uma
degradação social da personalidade. Diz ele:
“É particularmente dramático na
sociedade de classes, com suas inevitáveis
alienações e parcialização da
personalidade, com suas alternativas entre
a submissão e a dominação. Se
subentende que também na sociedade
socialista as circunstâncias vitais
- 14 -
concretas deixam sua marca no curso do
desenvolvimento da personalidade. A
liquidação das condições objetivas que
criam o obstáculo para devolver ao
homem sua verdadeira essência, isto é,
para que sua personalidade se desenvolva
de modo universal e harmônico, faz que
pela primeira vez esta perspectiva seja
real, mas de modo algum reestrutura a
personalidade de forma automática. A
modificação fundamental consiste em
outra coisa, que surja um novo
movimento: a luta da sociedade pela
personalidade humana. Quando
dizemos: ‘pelo bem do homem, pelo
homem’, isto não significa simplesmente
para seu consumo, quer dizer para sua
personalidade, ou seja, que fique
subentendido que o homem deve ser
abastecido de bens materiais e alimento
espiritual” (p. 167, grifos nossos).
- 15 -
de seus conhecimentos e das normas de
conduta que assimila. Tudo isso é o que
constitui estas aquisições com as quais se
vai estruturando a personalidade na etapa
de sua formação inicial. É acaso possível
e necessário referir-se a isto como caráter
de classe da personalidade? Sim, quando
se trata do que a criança vai tomando de
seu entorno; não, porque nesta etapa ele é
só um objeto – se assim podemos dizer –
de sua classe, de seu grupo social. A
transformação posterior consiste
precisamente de que forma se torna
sujeito deles. Então, e só então, sua
personalidade começa a formar-se como
classista em outro sentido, no sentido
próprio da palavra: talvez no começo seja
sem dar-se conta, mas tomando
consciência dele, mais cedo ou mais tarde
ocupa inevitavelmente sua posição, que
pode ser mais ou menos ativa, decidida ou
vacilante. Por isso não é simplesmente
‘acaba por ser’ em meio aos confrontos de
classe, mas se coloca de um ou outro lado
das barricadas. O que resulta é outra
coisa: que em cada curva do caminho
da vida tem que liberar-se de algo,
afirmar algo em si mesmo, e tudo isso é
preciso fazê-lo e não só ‘submeter-se às
influências do meio’”. (p. 168, grifos
nossos)
- 16 -
conhecimento de suas características individuais, mas uma
diferença na tomada de consciência de si dentro do
sistema de relações sociais, o que implica na tomada de
consciência de seu ‘eu’, que condicionará a sua atividade e
vínculo com o mundo social, ou seja, a autoconsciência
abarca a consciência de classe.
Por isso, quando defendemos uma sociedade que
supere, como nos diz Marx, o reino da necessidade pelo da
liberdade, em que todos trabalharão em acordo com suas
possibilidades e necessidades, entendemos ser de
fundamental importância superar por incorporação as
nossas características burguesas de individualismo e
competitividade, dentre outras. Significa nos colocarmos
lado a lado como classe, que diverge, que debate, que
argumenta e avança no conhecimento da realidade
objetiva e de nossa própria subjetividade, ainda forjada
nos ditames do Capital.
O evento e o conteúdo deste livro se propõe a isso,
acolhe as mais diversas posições no campo da esquerda
revolucionária que tenha como base o materialismo
histórico-dialético que embasa tanto a Psicologia
Histórico-Cultural, como a Teoria da determinação
social dos processos de saúde e doença, não como um
ringue de disputa para obtermos vencedores e vencidos,
mas para debate e discussão, superação de possíveis
posições antagônicas na direção comum de construção de
uma outra ordem social como horizonte para o Brasil, a
América Latina e para o mundo.
Nesta direção, o livro foi organizado em três
seções que se relacionam. A primeira intitulada
- 17 -
Categorias gerais de análise engloba os dois primeiros
capítulos trazendo elementos fundamentais para uma
análise materialista histórica dos fenômenos objetivo-
subjetivos da atualidade. A segunda seção, Psicologia
Histórico-Cultural e Educação, abrange três capítulos e
destaca o recorte do desenvolvimento humano, o papel da
Educação Escolar neste contexto de acirramento das
contradições e esfacelamento de relações humanizadoras.
A terceira seção, denominada Psicologia Histórico-
Cultural e o campo da saúde, abrange quatro capítulos
nos quais busca-se a interlocução entre a Psicologia
Histórico-Cultural e a Teoria da determinação social dos
processos de saúde e doença, para focalizar os processos
de sofrimento psíquico na atualidade para além da visão
dicotômica da lógica formal.
Esperamos que a leitura deste livro não somente
traga respostas às indagações do leitor, mas suscite
dúvidas que criem motivos geradores de sentido para
ações de enfrentamento às forças sociais que teimam em
obstruir o pleno desenvolvimento humano. Por isso, ser
ou não ser na sociedade capitalista é mais do que mera
reflexão subjetiva, mas clama por uma posição ativa e
consciente no interior da sociedade vigente.
REFERÊNCIAS
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PARTE I
- 19 -
CAPÍTULO I
- 20 -
A neutralidade impossível na ciência já foi
exaustivamente debatida, mas permanece uma questão
atual. Nos últimos anos, no campo da educação, nos
confrontamos com o movimento político denominado
“Escola Sem Partido”. Nos meandros de sua argumentação
encontra-se a afirmação de que a ciência pode ser neutra,
defendendo que os conteúdos das disciplinas devem ser
apresentados aos estudantes de modo asséptico e de forma
a inibir qualquer participação de estudantes em lutas
políticas concretas. A incoerência fica por conta de
incitarem estudantes e seus familiares a atuarem como
agentes fiscalizadores e censores do trabalho educativo, de
modo que os conhecimentos produzidos sobre os
antagonismos da sociedade de classes e as suas injustiças
particulares não sejam socializados.
A suposta neutralidade visa tirar de pauta a questão
racial, as discussões sobre gênero, os saberes sobre a
violência contra a mulher, em síntese, visam secundarizar
o saber objetivo e omitir a luta de classes inerente ao
modo de produção capitalista. Esse movimento político-
partidário representa uma “cruzada” contra a socialização
do conhecimento objetivo e, consequentemente, contra a
produção do saber concreto, idolatrando o não saber e a
ignorância como modo de vida. Nesse momento político
ocorrem ataques ao conhecimento em diversas frentes:
questiona-se os conhecimentos e os cientistas que revelam
as contradições do sistema predatório de produção
capitalista, interfere-se nas metodologias de pesquisa que
incomodam os poderes estabelecidos, propagandeiam-se
explicações anticientíficas formadas pelo pensamento
- 21 -
mágico e busca-se formar pessoas sem vínculo com os
conhecimentos científico, artístico e filosófico,
aprisionando-as à empiria do presente por meio de
representações ilusórias sobre a realidade. Trata-se de um
movimento político conservador que pauta a neutralidade
da ciência como um recurso para omitir interesses de
classe e o movimento contraditório entre capital e
trabalho. Por outro lado, nossa reflexão parte do
fundamento de que a produção do saber objetivo e sua
socialização são do interesse da classe social submetida à
exploração do trabalho e dominação política, e que
portanto necessita explicitar as contradições do real e suas
consequências para a vida em sociedade. Observamos que
não se trata de evocar a produção de um conhecimento
particular da classe trabalhadora, mas de produzir saberes
objetivos universais que explicitem o movimento concreto
da realidade (natureza, sociedade, pensamento). A luta que
se trava no campo da produção do conhecimento se
organiza pela contradição entre conhecer – desconhecer,
sendo a prática científica um movimento sistemático e
contraditório em direção ao conhecimento de uma
realidade que não é estática.
Por outro lado, a prática científica e seus resultados
somente podem ser validados pelos critérios da prática
social, considerando que nela encontra-se a teoria como
um dos seus momentos. Os partidários da posição de
classe que se beneficia da exploração e dominação dos
trabalhadores e do vínculo destrutivo do modo de
produção capitalista com a natureza situam-se em um
horizonte intelectual que dificulta a produção do
- 22 -
conhecimento objetivo (LOWY,1994). Esses limites
também se encontram naquele pesquisador ou instituição
rigorosos que almejam produzir conhecimentos objetivos,
mas que, como não possuem consciência do seu lugar no
mundo e desprezam as questões do por que e para quem
produzem ciência, defrontam-se com os limites de sua
posição de classe. Nesses casos, ainda existe algum
compromisso com a produção de conhecimento. No caso
dos ideólogos, trata-se de uma disputa no domínio direto
da prática política conservadora, visto que têm a intenção
de defender interesses particulares sob roupagens
universais e produzem discursos lacunares com o intuito
de formar representação ilusória sobre o real para justificar
as intenções da classe dominante que não podem ser
explicitados. O compromisso, nesse caso, não é com a
objetividade do conhecimento, mas sim com a produção
de ilusões.
O tema da neutralidade encontra-se na fronteira
entre a prática política e a prática científica.
Reconhecemos que a ciência e a política estão em unidade
e isso ocorre mesmo que a ciência não se saiba política.
Ponderamos que os movimentos conservadores de nosso
tempo exercem pressão sobre a produção científica
buscando reprimir as condições concretas para a produção
do conhecimento objetivo e para a sua socialização. O
ataque ao sistema educacional e aos órgãos de pesquisa
não ocorre ao acaso. Os elementos do denominado
populismo autoritário são a aceitação ou defesa aberta da
desigualdade, o apoio às formas autoritárias de governo e
o chauvinismo nacionalista (ZAMORA, 2019). Assim, a
- 23 -
distorção da história visando banalizar a memória das
vítimas dos estados repressivos anteriores, as explicações
simplistas da sociedade pelo darwinismo social e a criação
artificial de inimigos internos, a partir de opiniões
tendenciosas e agressivas, são conteúdos necessários a
uma política que abertamente se antagoniza à ciência, à
arte e à filosofia. Em contraposição, a produção científica
atua no sentido de demonstrar as contradições reais
ocultadas pelos argumentos conservadores, trabalhando de
modo rigoroso no sentido de conhecer a realidade em seu
movimento, destacando contradições que necessitam de
superação na e pela prática social real.
O problema mais geral dessa conferência refere-se
à relação entre ciência e política, mais particularmente
entre psicologia e política. Não é possível conceber a luta
política sem considerar o projeto de formação da
consciência das pessoas a partir de uma determinada visão
de mundo, como também não é possível compreender a
formação da consciência abstraindo os conteúdos da vida
social e a luta política que se trava no campo das
representações de mundo. Evidentemente que essa
unidade não significa a identidade absoluta de política e
psicologia. A ciência psicológica tem como objeto o
processo de personalização, ou seja, o movimento de
transformação das formas de a pessoa sentir, pensar e agir
no mundo, considerando as determinações sociais que
produzem histórias pessoais. A política, por sua vez,
refere-se às relações de poder e domínio social que
parcelas da sociedade exercem sobre o conjunto das
pessoas que integram uma formação social dada,
- 24 -
articulada ao domínio da história social. Estas
particularidades encontram-se nas relações sociais
concretas de que participam os indivíduos, que por sua vez
são organizadas nas atividades sociais. Assim, da relação
entre história social – história pessoal as teorias
psicológicas não podem escapar, mesmo que determinados
sistemas conceituais da psicologia não explicitem o
posicionamento quanto à dimensão política do fazer
psicológico.
Em síntese, a prática psicológica não é neutra e em
uma sociedade cindida por interesses antagônicos, sua
atividade no mundo orienta-se pelo fortalecimento de uma
parte da sociedade e negação da outra parte, inserindo-se
no dinâmico processo de luta de classes. Considerando as
particularidades da relação capital e trabalho e a dinâmica
histórica de suas lutas, podemos nos perguntar: qual
dessas classes indica possibilidades concretas de
beneficiar e atender aos interesses do conjunto da
sociedade? Qual delas traz possibilidade de lutar pela
superação das relações de exploração e dominação? Qual
delas nos indica caminhos de fortalecimento da
humanização em detrimento da alienação?
A história tem demonstrado que o capitalismo,
evidentemente dirigido pelo capital, produz riqueza e a
mais absoluta miséria para a maioria das pessoas,
produzindo um mundo de destruição e violência. Ele não
vem dando mostras de superar essa tendência política,
visto que sua organização articulada aos interesses
imediatistas de realização do valor no mercado não abre
espaço para projetos em que o humano se sobreponha ao
- 25 -
capital e passe a exercer domínio sobre o objetivo de
acumular valor. Sua tendência é desconsiderar o humano
na dinâmica de produção, distribuição, troca e consumo
visando gerar capital – essa é a sua centralidade, mesmo
que isso represente fragmentar o ser humano na produção
da pessoa unilateral e restrita.
O projeto científico orientado à formação humana,
à produção criativa e à superação das determinações que
limitam a existência livre do ser humano somente pode
viabilizar-se pela crítica ao modo de produzir e reproduzir
capitalista. Crítica negativa no sentido de revelar as
contradições que os ideólogos e os cientistas “ingênuos”
(no melhor dos casos) omitem em suas produções,
demonstrando racionalmente a desumanidade e a
alienação que se expressam na vida das pessoas a partir
das determinações que se encontram fora da vida interior,
deslocando a produção do conhecimento psicológico da
subjetividade isolada para a relação das pessoas com o
mundo material. Crítica que demonstre que essas relações
sociais organizadas estruturalmente produzem
necessariamente morte, sofrimento, doenças, suicídios,
engendrando a “pobreza” material e ideal como seu
resultado “lógico”. Crítica positiva no sentido de atuar na
superação das contradições que foram pensadas no
momento anterior, demonstrando a necessidade de uma
práxis no campo da psicologia articulada às forças sociais
que visam superar essa realidade que não merece ser
vivida, portanto partidária da classe dos trabalhadores. A
psicologia científica a partir desse horizonte tem como
tarefa combater concepções idealistas de cientistas e
- 26 -
ideólogos e lutar contra hipóteses pseudocientíficas na
particularidade dessa ciência.
Esse preâmbulo deixa evidente a complexidade do
tema da mesa e as dificuldades de tratamento da questão
abordando a ciência em geral ou mesmo a psicologia em
geral, como se houvesse uma psicologia que
hegemonizasse os temas inerentes a essa disciplina
científica. O objetivo introdutório foi o de antecipar uma
posição referente ao conteúdo solicitado para abrir o
debate sobre a relação política – psicologia. Adiantamos
que nossa abordagem parte da Psicologia Histórico-
Cultural, cujo fundamento filosófico é o Materialismo
Histórico Dialético. A base desse sistema integra filosofia
(dialética), política (socialismo – comunismo), ciência
(economia política) e Historia (consciência para si), tendo
como centro de unidade a luta de classes (BADIOU,
2019). O movimento coletivo de conhecer o real em sua
atividade viva caracteriza-se como mediação do processo
de transformar a realidade no sentido da superação da
desigualdade substancial e da formação unilateral dos
indivíduos. Assim, fica explícita e declarada a relação
entre psicologia e política nesse sistema teórico,
destacando-se a centralidade da práxis.
Para delimitarmos nossa intervenção abordaremos
o tema da mesa a partir de duas contradições: objetividade
– subjetividade e real - ideal. Na primeira, identificamos
que os defensores da neutralidade científica entendem a
subjetividade como algo inerente à produção científica,
mas que deve ser negada ou circunscrita ao máximo, visto
que a subjetividade do pesquisador afasta o cientista da
- 27 -
produção do conhecimento. O conhecimento encontrar-se-
ia na descrição rigorosa do objeto de estudo e estaria
contido no dado da realidade. Assim, nosso objetivo ao
trabalhar essa primeira contradição, em que pese a face
verdadeira desse problema, será o de apresentar a
subjetividade não apenas pelo lado negativo, no sentido de
distorção da realidade pesquisada, mas também como
momento positivo do processo de produção de
conhecimento, indicando a necessidade de que a
subjetividade participe ativamente na produção do
conhecimento objetivo. Apresentaremos o papel do
pensamento na produção científica no sentido de superar a
aparência dos fenômenos.
Na segunda contradição, indicaremos a
compreensão sobre o ideal como um momento do
processo produtivo, caracterizando a forma mais elaborada
e sintética de conhecimento, ou seja, aquela que busca a
sua realização prática. O objetivo é o de reforçar que na
produção do materialismo histórico dialético e,
consequentemente, na Psicologia Histórico-Cultural, a
produção científica caracteriza-se pela intenção de
produzir formas e ideias segundo as quais o mundo pode e
deve ser mudado. Não poderia, portanto, ser mudado ao
sabor dos desejos do pesquisador e de seus valores
pessoais, pois existe a necessidade de pesquisar as
contradições reais e as tendências do movimento real para
identificar possibilidades, para sintetizar em ideal o vir-a-
ser possível para a prática social humanizadora. A política
se expressa pela defesa de uma tendência de futuro e a
negação de outras, sendo possível afirmar que o
- 28 -
pensamento teórico, cujo conteúdo é o real em
movimento, é uma forma de subjetividade voltada para a
realização do futuro que não pode se omitir da dimensão
política e histórica inerente à prática social humana.
Trataremos essas duas contradições a partir do
Materialismo Histórico Dialético. Nos concentraremos,
nessa exposição, nas contribuições de Kopnin sintetizadas
no livro “A dialética como lógica e teoria do
conhecimento” e no texto de Ilienkov “De idolos e
ideales”, para fundamentar nossa argumentação. Nosso
objetivo geral é o de indicar que a necessidade de produzir
conhecimentos objetivos para explicitação das
contradições do real encontra-se em unidade com a tarefa
prática de buscar a superação dessas contradições.
Concluiremos afirmando que a prática do
Materialismo Histórico Dialético não se caracteriza pela
convivência neutra com as contradições do real
reproduzidas como concreto pensado, como também não
se trata de superar as contradições arbitrariamente e
dogmaticamente no pensamento a partir de soluções
mágicas nos moldes de posições idealistas, visto que o
problema se encaminha para luta concreta de resolução
das contradições da vida substantiva.
A fraqueza ou fragilidade do indivíduo diante de
uma força que lhe é hostil, como é o caso do movimento
desumano promovido pela sociedade capitalista,
normalmente é “explicada” de forma ilusória como uma
potência natural na qual todos devem se conformar,
inclusive subjetivamente, deslocando o “olhar” para
dentro de cada um para adequar-se ou submeter-se diante
- 29 -
do “deus” mercado. Essas explicações sobrenaturais da
condição de fragilidade da pessoa diante da sociedade são
resultado da luta de classes, que ideologicamente produz a
representação de mundo em que as coisas ganham vida e
as relações sociais se transformam em relações entre
coisas. Em que pese a dimensão válida dessa posição em
se tratando da sociedade alienada, a psicologia de
fundamento materialista dialético nega a naturalização e
universalidade dessa condição, e se engaja na luta pela
superação da sociedade de classes. Qual seria a
particularidade da ciência psicológica na luta pela
superação da alienação?
Ilienkov (2012), ao defender a formação
omnilateral, afirma que a fragmentação do trabalho gera a
fragmentação das profissões e que a formação unilateral
cria uma situação de especialização em que, na conversa
entre um pintor e um músico, o pintor seria surdo e o
músico seria cego. O matemático seria cego e surdo.
Afirma também que essa fragmentação cria a figura do
político profissional, sendo que as pessoas cada vez mais
necessitam de mediadores para a vinculação com o real,
gerando uma situação de “pobreza” pessoal. Considerando
o tema da mesa e o problema da formação omnilateral,
podemos afirmar que o psicólogo necessita abrir-se para o
mundo da ciência, da arte, da filosofia, da política para
não correr o risco de se tornar um profissional cego diante
da beleza, surdo diante da riqueza musical e passivo
(conivente) diante da política de dominação e submissão
engendrada pelas classes que dominam o modo de
produzir que socializa a miséria humana.
- 30 -
REFERÊNCIAS
- 31 -
CAPÍTULO II
DIALÉTICA SINGULAR-PARTICULAR-UNIVERSAL:
IMPLICAÇÕES DO MÉTODO MATERIALISTA
DIALÉTICO PARA A PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO
- 33 -
Então, não foi por acaso que a psicologia nascente sob a
orientação de Vigotski tomou como problema a formação
da consciência e ela, como expressão do psiquismo
propriamente humano. Sendo assim, podemos inferir que a
consciência represente a via mais efetiva e fiel para o
acesso aos alcances do desenvolvimento psíquico.
Ademais, para o enfrentamento do ‘problema’
então assumido, urgia a análise crítica da “velha
psicologia” – nas palavras de Vigotski, desvelando assim
seus limites, que não eram outros, senão, aqueles da ordem
do método! A psicologia, desde as suas origens se fez
marcada pela ausência de um paradigma e, na falta de um,
se firmou como uma ciência multiparadigmática e,
consequentemente, multifacetada. Ou seja, ainda hoje não
se pode falar de psicologia no singular.
Sob tais condições, esta ciência edificou-se entre as
veredas do positivismo e do idealismo, aptos à apreensão
do objeto nas suas aparências fenomênicas. Na
especificidade dos métodos adotados elaborou teorias
associacionistas, materialistas-mecanicistas, racionalistas e
introspeccionistas, culminando, em síntese, em inúmeros
conjuntos de constructos que não encontram equilíbrio no
pêndulo da balança – ora primando por uma objetividade
sem sujeito, ora primando por um subjetivismo sem
objetividade. Daí que Vigotsky (1997) conclame a
superação da psicologia tradicional, abstrata, pela via
lógico-dialética, o que para ele significava a elaboração da
psicologia científica.
Foge aos objetivos e possibilidades deste texto uma
apresentação mais abrangente das expressões materialistas
- 34 -
dialéticas presentes nas proposições de Vigotski, de modo
que vou colocar em pauta dois pontos: o primeiro,
referente ao seu apelo à existência de uma psicologia
geral, que conferisse unidade a todas as suas ramificações
ou especializações; o segundo, referente à apreensão
lógica e histórica do psiquismo humano, o que significa
dizer, o enfoque gnosiológico e ontológico pelo qual deu
seus contributos à psicologia.
Em relação ao primeiro ponto: ele considerou que
os sistemas psicológicos tradicionais encontravam-se
aprisionados a três objetos: o psíquico e suas propriedades;
o comportamento e o inconsciente; que tratavam-se,
segundo ele, de três fatos diferentes, cujas explicações
trilhariam caminhos tanto mais distintos entre si quanto
mais aprofundados seus percursos particulares.
Diferentemente do que se possa imaginar o que
Vigotski colocava em causa não era a necessidade de,
primeiro, haver uma psicologia geral e depois suas
especializações (ou, ‘ciências particulares como ele
colocava). Pelo contrário, segundo ele, a psicologia geral
deveria ser resultante das teorias, das leis e dos métodos
que colocassem a descoberto os traços dos fatos tomados
da realidade para estudo, encontrando neles o dado
comum. Por esta via, ao invés de seguirem como ciências
independentes e distintas, confluiriam na descoberta do
elemento comum, que reúne diversas ramificações
científicas em torno de um núcleo compartilhado. Essa
proposição nos interessa por seu conteúdo, mas adquire
importância, também, por evidenciar a adoção “por
- 35 -
dentro” que Vigotski fazia do método materialista
dialético. Vejamos porquê!
Em última instância, o que ele estava propondo?
No ponto de partida, teríamos os fatos psicológicos
captáveis da realidade, porém, em suas manifestações
imediatas, parciais e sincréticas. Tomá-los para análise
deveria ser a primeira tarefa e, pelo movimento lógico
indutivo, decodificando suas particularidades, chegar-se-ia
às suas expressões mais gerais (formulados em conceitos,
leis, etc). Das identificações de tais expressões – no
contraponto entre diferentes objetos e diferentes
explicações, a tarefa seria então, a identificação do traço
comum, portanto, universal, a ser agora, pela via dedutiva,
contraposto com novos graus de generalização, às
expressões singulares do ponto de partida.
Portanto, a psicologia científica superaria o
percurso indutivo próprio à psicologia tradicional sem
abrir mão dele, ou, superando-o por incorporação do
movimento lógico dedutivo. Chegaria, assim, ao seu
conceito de “mercadoria” – à sua unidade mínima de
análise!!!! Vigotski não se propunha a uma “nova
abordagem” em psicologia e nem afirmou que o problema
da psicologia fosse em relação aos seus inúmeros objetos.
Advogava sim, a necessidade de uma psicologia científica,
edificada na unidade entre a psicologia geral e suas
especializações. Nas palavras de Vigotsky (1997, p.
384):“Vemos que a psicologia tem dois caminhos: ou o da
ciência, e nesse caso deverá saber explicar; ou o do
conhecimento de visões fragmentárias, e neste caso é
impossível como ciência” .
- 36 -
Eis porque Vigotski sempre afirmou que o
problema era da alçada do método! Ou seja, da ausência
da unidade contraditória entre indução e dedução. Trago
aqui outra citação: “A dialética abarca a natureza, o
pensamento, a história: é a ciência mais geral, universal
até o máximo. Essa teoria do materialismo psicológico ou
dialética da psicologia é o que eu considero psicologia
geral” (VIGOTSKY, 1997, p. 392). Contudo, opondo-se a
muitos psicólogos soviéticos, ele era contra uma
transposição linear e mecânica dos preceitos do
materialismo histórico-dialético para a psicologia.
Vigotski entendia que tais preceitos deveriam operar como
critérios (como parâmetros metodológicos) na explicação
do objeto da psicologia, chegando assim ao que ele
chamou de “teoria do materialismo psicológico”, o que
corresponde à célebre frase: a psicologia precisa elaborar o
seu próprio ‘O Capital!!! Portanto, entendo que o
arcabouço edificado pela “Escola de Vigotski” está para a
psicologia tanto quanto o materialismo histórico está para
a análise da sociedade burguesa.
Com isso me encaminho para o segundo destaque
anunciado: apreensão lógica e histórica do psiquismo
humano. O primeiro desdobramento desse postulado é a
afirmação de que o objeto da psicologia deveria ser o
processo de formação (o desenvolvimento) dos fenômenos
psicológicos – e não o produto, tal como o faziam as
psicologias objetivistas ou subjetivistas. Decodificar o
processo seria, porém, sinônimo de explica-lo, o que é
diferente de meramente descrevê-lo. E, nesse processo
explicativo, arqueológico, desmistificar a natureza dos
- 37 -
processos fossilizados, isto é, aparentemente ‘naturais’
mas socialmente formados que se ocultam na base do
funcionamento psíquico.
Eis, para ele, o caminho que conduziria à
constatação da natureza social do desenvolvimento
humano, o que significa dizer: entendê-lo como expressão
das contradições históricas entre natureza e cultura. A
formação humana assim compreendida se revela um
processo ativo e mediado. Um processo que pressupõe,
necessariamente, sujeito, objeto e interposição de signos
entre eles.
Essa proposição demandará, por conseguinte,
resposta a uma questão central: como, um ser que é social
(universal) por natureza se torna um ser singular, único e
irrepetível? E Vigotsky (1996) apresenta como possível
resposta a esta interrogação o conceito de vivência
(perejivânie) que representa, em última instância, a
unidade de pessoa e sua situação social de
desenvolvimento. Compreender perejivânie como unidade
é mais do que apreender de modo interacionista a relação
sujeito – objeto, ou indivíduo – sociedade, outrossim,
implica reconhecer que ela não resulta nem do polo sujeito
nem do polo objeto (entendido como entorno físico e
social da pessoa) mas do entrelaçamento que
particularmente se trava entre ambos ao longo da história
do indivíduo.
- 38 -
da vivência singular de inúmeras particularidades dadas
pela atividade realizada pela pessoa. Por esta via, o
objetivo se converte em subjetivo, o material, em ideal, o
social em individual.
Portanto, concluímos que para Vigotski o entorno
físico e social não influi de modo imediato sobre o
desenvolvimento – tal como para os demais animais
superiores, mas sim, pela mediação da vivência que o
sujeito tenha dele, vivência essa, reitero, sustentada pela
atividade e orientada pelos significados e sentidos
experienciados.
- 39 -
2.1. Dialeticidade entre singularidade, particularidade e
universalidade e conceituação de vivência
- 40 -
como expressão de uma relação mais ampla, isto é, da
relação indivíduo-genericidade, pois a concretização da
genericidade na vida do indivíduo, isto é, sua constituição
como ser pertencente ao gênero humano, só se realiza por
meio do processo de sua sociabilidade, na dependência das
apropriações, particulares, das objetivações humano-
genéricas.
Na ontologia marxiana, a correta compreensão do
indivíduo como ser social demanda sabê-lo instituído
cultural e historicamente, num processo que imbrica o
indivíduo (singular) e o gênero humano (universal) por
meio da relação que entre eles se estabelece (particular).
Por isso, para Marx, do ponto de vista ontológico, não há
antagonismo entre individual e social, sendo ambos, polos
de um mesmo processo histórico.
Tecidas estas considerações, conduzo-me ao
conceito vigotskiano de vivência. Sem adentrar nos
meandros das dificuldades de tradução do termo russo
perejivânie (vivência), temos como tal o processo de
constante formação e transformação que pauta a vida das
pessoas, configurando-as como seres únicos e irrepetíveis.
A vivência abarca, pois, os processos psíquicos
desencadeados pela relação sujeito-objeto e que se tornam
instituintes da realidade subjetiva (imagem subjetiva da
realidade objetiva), firmando-se como sistemas de
referência para o trato consigo mesmo e para com o
entorno físico e social. Sendo assim, conforme Vigotsky
(1996) a vivência reflete a unidade afetivo-cognitiva entre
externo e interno ancorada nas situações sociais de
desenvolvimento que marcam os vários períodos da vida.
- 41 -
É na atividade particular que vincula sujeito e
objeto que as vivências se configuram, tendo como
conteúdos os significados e sentidos por ela engendrados.
Que o objeto da atividade afete o sujeito é a primeira
condição para que ele se faça representado subjetivamente,
de sorte que, se de um lado a imagem subjetiva reflete o
objeto em sua significação supra-individual, de outro,
reflete a singularidade da relação do sujeito com ele,
representada pelo sentido pessoal.
Todavia, Vigotsky (1996) deixou claro que nem
tudo que se experiencia configura-se como vivência, posto
que ela resulte das reações da pessoa em face dos objetos.
Esta reação, por seu turno, ocorre na medida da
mobilização de todo o sistema psíquico, isto é, reage-se ao
mundo por sensações, percepções, atenção, registros
mnêmicos, pensamentos, afetos, etc. Portanto, e com base
no autor referido, defino vivência como o experienciado
pelo sujeito em cada situação social de desenvolvimento e
que culmina representado na forma de imagem subjetiva,
posto modificar a atitude do sujeito em face do objeto,
haja vista mudanças no tono reativo que provoca.
Tais modificações resultam de uma vasta gama de
fatores, dentre os quais destaco a circunstância imediata de
confronto com o objeto, o seu significado, os motivos e
fins da atividade que o envolve, as exigências que o
próprio sujeito se impõe nessa atividade, as implicações de
seu resultado na vida da pessoa, etc. Por conseguinte, as
vivências vão se configurando em um sistema de
indicadores formados pelas impressões, isto é, pelas
marcas, legadas pelo trato com o mundo e que,
- 42 -
dialeticamente, se firmam e se transformam, passando a
operar como parâmetros, como ‘modelos’ fixados na
memória, em razão de seus matizes emocionais. É na base
desses parâmetros que erige-se a personalidade da pessoa.
As vivências representam, assim, o núcleo da
personalidade - face singular do ser social instituída por
mediações particulares.
- 43 -
(p. 73) para a compreensão deste papel. Ainda que a
análise empreendida por este autor diga respeito à
pedologia, entendo que suas proposições possam ser
generalizadas ao desenvolvimento em geral.
Dentre as ‘leis’ indicadas, destaco aquela que ele
considerou a mais geral, qual seja: as influências do meio
só podem ser abordadas do ponto de vista da relação do
sujeito para com ele, haja vista que seus significados
mudam ao longo dos períodos do desenvolvimento. Não
se trata de nenhuma forma de relativismo interpessoal,
mas sim, do fato de que a vivência perpassa a tomada de
consciência da pessoa acerca da situação, e, sendo assim,
os alcances de sua compreensão se tornam variáveis
intervenientes na natureza da influência exercida pelo
meio.
Desta proposição destaquei dois pontos que julgo
dignos de nota tendo em vista a dialética singular,
particular e universal: a tomada de consciência e os níveis
de compreensão alcançados, posto entender que os
mesmos remontam, primeiramente, ao processo de
formação de conceitos e, consequentemente, às estruturas
de generalização que lhe confere sustentação. Por
conseguinte, a configuração da vivência não se aparta do
processo que engendra a formação da consciência que, por
seu turno, não se desvincula da atividade.
Recorro, pois, à distinção feita por Leontiev (1978,
p. 176) em relação à não identidade entre “consciência
sobre si” e “autoconsciência”. A consciência sobre si,
como qualquer outro conhecimento, compreende a
delimitação de propriedades externas e internas resultantes
- 44 -
de comparações, análises e generalizações sintetizadas em
sistemas de conceitos, significados e sentidos. Esta
configuração subjetiva abarca as representações acerca do
mundo e do próprio sujeito e, conforme o autor referido,
vai se formando desde as etapas iniciais do
desenvolvimento, em conformidade com os vários
períodos que o constitui. Este processo sustenta e culmina
no conhecimento acerca de todos os fenômenos, inclusive
no conhecimento dos traços ou propriedades individuais.
A ‘consciência sobre si’ reflete, pois, as vivências do
sujeito em sua singularidade.
Já a “autoconsciência” implica, para além do
conhecimento sobre si, o estabelecimento consciente dos
nexos existentes entre esse conhecimento e o sistema de
relações sociais no qual o sujeito se insere. Pressupõe a
consciência sobre si no confronto com o telos humano-
genérico, ou por outra, com o mundo circundante
compreendido como produto da prática histórico-cultural
do conjunto dos homens. Sendo assim, a autoconsciência
identifica-se com o processo de ir além de si mesmo, pelo
qual o indivíduo se reconhece na realidade mais ampla na
mesma medida que a reconhece em si, refletindo, portanto,
a dimensão de sua universalidade.
Isso posto, podemos nos perguntar: como alcançar
a compreensão das particularidades que medeiam a
relação entre consciência sobre si (singularidade) e
autoconsciência (universalidade)? Para responder a esta
interrogação, entendo que a primeira exigência seja, tal
como proposto por Oliveira (2005) superar enfoques que
tomam, na relação indivíduo-sociedade, o polo ‘indivíduo’
- 45 -
como o singular e o polo ‘sociedade’ como o universal.
Segundo a autora, esta ótica encerra dois problemas: como
o polo sociedade é tomado como universal, perde sua
função de mediação particular na relação indivíduo-gênero
humano; e como o polo ‘gênero humano’ não é
considerado, perde sua função de universal nesta relação.
Como consequência, a genericidade deixa de ser o
elemento no qual se encontra a meta máxima do
desenvolvimento do indivíduo, que fica então circunscrito
aos estreitos limites das relações particulares da pessoa
com seu entorno físico e social.
Nesta mesma direção, em análise dos Manuscritos
de 1929 escrito por Vigotski, Góes (2000, p. 128) chama-
nos a atenção para os riscos de simplificação na
interpretação vigotskiana acerca da relação eu-outro ou
indivíduo-sociedade. Nas palavras da autora:
- 47 -
A segunda, diz respeito exatamente à análise das
expressões da alienação no âmbito das vivências do
indivíduo, de sorte que este conceito (alienação) passe a
operar, verdadeiramente, como categoria interpretativa da
subjetividade e, consequentemente, das vivências das
pessoas. Para tanto, urge que se leve em conta os reflexos
pessoais das determinações econômicas e políticas da
estrutura social – tal como proposto por Vigotski, sem se
perder de vista que vivemos numa sociedade capitalista,
produtoras de mercadorias, universalizadora do valor de
troca, enfim, numa sociedade essencialmente alienada e
alienante, cujo enfrentamento exige clareza subjetiva e
vínculos coletivos objetivos de luta.
Tal fato se justifica uma vez que em relações
sociais de dominação, quando os processos de apropriação
e objetivação são alienados e alienantes, a particularidade,
a afirmação e defesa da própria vida torna-se o eixo a
partir do qual as vivências são elaboradas e pelas quais o
sujeito singular organiza sua vida. Sob tais circunstâncias
a particularidade se recrudesce, embotando e limitando os
alcances da e para autoconsciência.
Haja vista considerarmos que a psicologia é uma
ciência subsidiária à educação, qualquer subjetivismo por
ela veiculado espraia-se na esfera educacional, sobretudo,
na educação escolar. Nosso entendimento, à luz da
Pedagogia Histórico-crítica, é o de que a escola deve ser
lócus para vivências ricas, aptas a transformarem a
subjetividade das pessoas em direção à máxima
humanização. Nesta direção, temos que os conteúdos
escolares devam operar como mediadores no processo de
- 48 -
formação da consciência, no tensionamento dialético entre
consciência sobre si e autoconsciência. Ampliar os
alcances afetivo-cognitivos de decodificação da realidade
concreta, torna-se, pois, sua tarefa fulcral.
Todavia e para tanto, há que se superar (em seu
significado marxiano) a centralidade muitas vezes
conferidas à particularidade dos indivíduos imiscuídos à
cotidianidade em nome de um suposto respeito à sua
‘subjetividade’. Como afirma Heller (1970), as pessoas já
nascem inseridas em sua cotidianidade e seu
desenvolvimento mais rudimentar identifica-se com a
aquisição das habilidades e dos conhecimentos necessários
para vive-la por si mesmas. Porém, a máxima
humanização dos indivíduos, pressupõe a apropriação de
formas de elevação acima da vida cotidiana, isto é, um
processo em direção ao humano-genérico. E, a nosso
juízo, este processo exige um modelo de educação escolar
que prime pelo desenvolvimento do pensamento teórico,
rigorosamente abstrato, cujo conteúdo e percurso de
formação não é outro, senão, a elaboração de sistemas
conceituais.
Uma ‘teoria do materialismo psicológico’ a serviço
da educação escolar alia psicologia e pedagogia a serviço
da emancipação humana, cientes de que o fim último do
ensino deva ser a formação da consciência por meio da
apropriação dos conhecimentos, das habilidades, métodos
e técnicas pelos quais as pessoas possam intervir na
realidade e tomar parte da história como sujeitos
autoconscientes. Mas, para tanto, a educação escolar
precisa fomentar motivos para a aprendizagem
- 49 -
desenvolvente, ou seja, carece ultrapassar o trato mecânico
e/ou pragmático em relação aos conceitos que veicula.
Há que se recuperar o fato de que os conceitos, as
teorias, os métodos e as técnicas são produtos do trabalho
de homens e mulheres que visaram e visam a
decodificação abstrata da realidade concreta, a mesma
realidade sobre a qual cada um erige sua vida e edifica
suas vivências. Afinal, vivenciar não deixa de ser viver
uma dada situação deixando-se afetar por ela. Considero
que tornar a escola um espaço de vivências ricas para
todos os agentes sociais nela envolvidos, posto oportunizar
a apropriação das objetivações éticas, científicas e
estéticas representativas do real significado do que seja ser
humano, não deixa de ser, ainda, um desafio tanto para a
psicologia quanto para a educação.
REFERÊNCIAS
- 50 -
LUKÁCS, G. Introdução a uma estética marxista. Rio
de Janeiro, Civilização Brasileira, 1970.
- 51 -
PARTE II
PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL E
EDUCAÇÃO
- 52 -
CAPÍTULO III
1
As análises e discussões apresentadas foram produzidas a partir de
pesquisas desenvolvidas com apoio financeiro da Capes, CNPq e
Fapemig.
- 53 -
LONGAREZI, 2017c, 2019; entre outros), em interface
com pesquisadores cubanos, mexicanos, chilenos,
italianos, portugueses, ingleses, dinamarqueses,
finlandeses, russos, ucranianos, entre outros; somando
esforços para que se ampliem o acesso ao pensamento e à
produção da época, inclusive com traduções para a língua
portuguesa.
Como contribuição para o estudo no campo
específico da Didática Desenvolvimental, tem-se realizado
pesquisas teóricas e de intervenção (LIBÂNEO, 2004;
MOURA, 2016; MOURA; ARAUJO; SERRÃO, 2019;
CEDRO; MORETTI; MORAES, 2019; LONGAREZI,
2017b, 2019a, 2019b, 2019c; LONGAREZI; DIAS DE
SOUSA, 2019; FRANCO; SOUZA; FEROLA, 2019;
ROSA; DAMAZIO; ARAUJO; ASBAHR; MOURA;
SERRÃO; EUZEBIO, 2013; MOURA, 2016 PUENTES,
2017, 2018 etc.), com foco para a compreensão da rica e
complexa produção didática da época, assim como para a
análise e produção de modos particulares de organização
didática frente à realidade escolar brasileira, que
resguardem os princípios psicológicos e didáticos
desenvolvedores, bases e fundamentos a partir dos quais
se edificaram os vários sistemas didáticos soviéticos
elaborados desde a segunda metade do século passado.
Por essa via, pretende-se, nos limites desta
comunicação2, defender duas teses relacionadas à Didática
2
As teses, aqui desenvolvidas de forma objetiva, podem ser melhor
exploradas a partir da extensa lista de referências bibliográficas
- 54 -
Desenvolvimental, uma corresponde à sua gênese
histórico-cultural e a outra aos seus possíveis
desdobramentos para a realidade brasileira hodierna. A
primeira delas é a de que tanto a Didática
Desenvolvimental, quanto a própria PSICOLOGIA
HISTÓRICO-CULTURAL, não representam um bloco
único e coeso do pensamento soviético acerca desse
campo teórico-metodológico. Pretende-se defender que
não há homogeneidade nessas teorias e, em decorrência,
não há uma Didática Desenvolvimental una, ela é
complexa, diversa e heterogênea.
A segunda corresponde à tese em defesa da
produção de modos particulares de organização didática
desenvolvimentais, face à realidade sócio-político-
econômico-ideológica brasileira atual. Com essa
perspectiva, socializar-se-á uma proposta de “obutchénie3
por unidades”, produzida a partir de pesquisas teóricas
(SOUZA, 2019; FEROLA, 2019; FERREIRA, 2019;
4
A intervenção didático-formativa (LONGAREZI, 2012, 2014,
2017a) se constitui em um tipo de pesquisa didática no âmbito da
teoria histórico-cultural e da teoria desenvolvimental, produzido
enquanto esforço coletivo de um grupo de pesquisadores do GEPEDI
– Grupo de Estudos e Pesquisas em Didática Desenvolvimental e
Profissionalização Docente, da Universidade Federal de Uberlândia.
Trata-se de uma “[...] ação investigativo-formativa, a partir da qual se
faz, de forma intencional, uma intervenção no contexto educacional
pela via da formação didática do professor; e, nesse processo, se
constitui simultaneamente intervenção didática junto a classes de
estudantes. [...] a intervenção didático-formativa tem como objetivo-
fim a formação-desenvolvimento de professores e estudantes pela
atividade pedagógica (objetivo meio).” (LONGAREZI, 2017b, p. 198-
199).
- 56 -
1. Didática Desenvolvimental: gênese e desenvolvimento
- 57 -
Yakimanskaya, e depois, em 1981, no livro Atividade de
Estudo e Modelagem (Учебная деятельность и
моделирование), de V. V. Davidov; aparece
conceitualmente desenvolvida apenas, em 1986, no
importante e conhecido trabalho monográfico Problemas
da aprendizagem desenvolvimental: a experiência de
pesquisa teórica e experimental na psicologia
(Проблемы развивающего обучения: Опыт
теоретического и экспериментального
психологического исследования), defendido por V. V.
Davidov (1988b). Apesar disso, a Obutchénie
Desenvolvimental só é, de fato, reconhecida enquanto
teoria, em 1995 e 1996, com as respectivas publicações
dos livros de V. V. Davidov O conceito de aprendizagem
desenvolvimental (О понятии развивающего обученияe)
e Teoria da aprendizagem desenvolvimental (Теория
развивающего обучения) (PUENTES, 2019).
Os fundamentos dessa perspectiva didática podem
ser localizados nos princípios psicológicos histórico-
culturais inaugurados por L. S. Vigotski (e, portanto,
alicerçados no materialismo histórico-dialético), para
quem se faz valer todo o reconhecimento do importante e
grandioso trabalho empreendido para a emergência de
uma psicologia marxista. Contudo, o legado produzido
pelo que hoje se tem consolidado enquanto Psicologia
Histórico-Cultural é resultado do esforço e da produção
conjunta de L. S. Vigotski (1896-1934), S. L. Rubinstein
(1889-1960), G. D. Lukov (1910-1968), V. I. Asnin
(1904-1956), A. V. Zaporozhets (1905-1981), P. I.
Zinchenko (1903-1969), L. I. Bozhovich (1908-1981) e
- 58 -
inúmeros outros psicólogos, filósofos, filólogos e didatas
soviéticos; tendo em S. L. Rubinstein e L. S. Vigotski seus
principais precursores.
A despeito do espírito colaborativo em torno da
estruturação dessa nova psicologia, havia diferenças
significativas de objeto, métodos de apreensão dos objetos
e mesmo de interpretações das teses fundamentais de L. S.
Vigotski que foram delineando produções teóricas
singulares. Com princípios gerais comuns a essa
psicologia materialista histórico-dialética, as
especificidades que esses estudos foram assumindo deram
origem a perspectivas teóricas próprias, que lhes
asseguravam certa identidade: 1) uma Teoria da Atividade,
representada pelos vários grupos coordenados, entre
outros, pelo moscovita A. N. Leontiev (1903-1979) e pelo
ucraniano S. L. Rubinstein (1889-1960); 2) uma Teoria da
Personalidade, proposta pelos coletivos que trabalharam
com os(as) soviéticos(as) L. I. Bozhovich (1908-1981), N.
G. Morozova (1906-1989), B. G. Ananiev (1907-1972), B.
F. Lomov (1927-1989), L. S. Slavina (1906-1988) e L. I.
Aidarova; e 3) uma Teoria da Subjetividade, elaborada
pelos psicólogos cubanos F. Gonzáles Rey (1949-2019) e
A. M. Martínez (1949- ).
Alinhados pela tentativa de investigar
experimentalmente às teses gerais da psicologia
vigotskiana da não espontaneidade na constituição
humana, do caráter desenvolvimental que a obutchénie
pode assumir e do potencial da colaboração na zona de
desenvolvimento do estudante, assim como aos
pressupostos desenvolvimentais defendidos a partir da
- 59 -
Teoria Psicológica da Atividade, são produzidos pelo
menos três sistemas didáticos: 1) Elkonin-Davidov-
Repkin5, 2) Galperin-Talizina e 3) Zankov (LONGAREZI,
2019a; LONGAREZI; SILVA, 2018; PUENTES, 2017;
PUENTES; LONGAREZI, 2017a, 2017b).
A Didática Desenvolvimental se estrutura, então, a
partir de princípios comuns e aspectos particulares que
delineiam perspectivas próprias, assim como a Teoria
Histórico-Cultural. Nesse sentido, os sistemas didáticos
não representam um modo único de Didática
Desenvolvimental, seguem perspectivas específicas, em
muitos aspectos, distintas. O sistema Elkonin-Davidov-
Repkin produziu uma “Teoria da Atividade de Estudo”, o
sistema Galperin-Talizina, uma “Teoria da Formação de
Ações Mentais por Etapas” e o sistema Zankov, um
“Método de obutchénie que desenvolve coração, mente e
mãos” (NECHAEVA, 2019).
As especificidades dos sistemas têm sido, no
Brasil, objeto de estudos (NUNEZ, 2009; MENDOZA;
DELGADO, 2018; ROSA; DAMAZIO; SILVEIRA,
2014; LIBANEO; FREITAS, 2013, LONGAREZI, 2019a;
2019b; LONGAREZI; SILVA, 2018; LONGAREZI;
PUENTES, 2017a, 2017b; PUENTES; LONGAREZI,
5
“Ainda quando o trabalho elaborado em torno desse sistema tenha
sido difundido a partir da denominação “sistema Elkonin-Davidov” e
que reconheçamos D. B. Elkonin (1904-1984) e V. V. Davidov (1930-
1998) como os precursores dessa elaboração didática em Moscou,
optamos por denomina-lo enquanto “sistema Elkonin-Davidov-
Repkin” por admitir, assim como V. V. Davidov também o fez, a
importante contribuição na Ucrânia, de V. V. Repkin (1927- ) para
a edificação do sistema.” (LONGAREZI, 2019c, p. 164).
- 60 -
2017a, 2017b; PUENTES, 2017; 2018; PUENTES;
CARDOSO; AMORIN, 2019; PUENTES; MELLO, 2019,
PUENTES; AQUINO, 2019; FEROLA, 2019; AQUINO,
2012, 2017), a partir dos quais se revelam a
heterogeneidade, a diversidade e a complexidade na qual
se produziu a psicologia e a pedagogia marxistas soviética.
Apesar de se evidenciar diferenças na interpretação
de algumas teses de L. S. Vigotski pelos precursores e
elaboradores dos sistemas, podemos observar que, no que
há de comum, os três sistemas defendem um tipo de
educação que promova o desenvolvimento. A Didática
Desenvolvimental se alicerça, portanto, sob a defesa de
que à educação escolar cabe desenvolver um tipo de
especial de pensamento, cuja mudança qualitativa,
mediada pelo conhecimento científico, só pode acontecer
na escola, dadas as condições e os modos de sua
organização. Esse aspecto parece ser consensual entre os
diferentes grupos que trabalharam na elaboração dos
sistemas didáticos, ainda quando seus objetivos e focos
tenham sido distintos.
O sistema Elkonin-Davidov-Repkin teve por
objetivo a formação e o desenvolvimento do pensamento
teórico (NECHAEVA, 2019) e, para isso, desenvolveu,
além de um grande número de materiais didáticos para as
várias disciplinas escolares, uma Teoria da Atividade de
Estudo e, associada à ela, pelo menos dez outras teorias
auxiliares: 1. teoria do diagnóstico, 2. da generalização, 3.
do pensamento teórico, 4. da ascensão do abstrato ao
concreto, 5. da cooperação, 6. da comunicação, 7. da
transição de um nível para outro, 8. da modelagem, 9. da
- 61 -
formação de professores e 10. do experimento formativo.
(ZUCKERMAN, 2011; ДАВЫДОВ, 1991). Os trabalhos
realizados pelos vários coletivos envolvidos na edificação
do sistema didático Elkonin-Davidov-Repkin “[...]
incluíram estudos experimentais sobre o papel de cada
componente da Atividade de Estudo, da tarefa, da ação de
estudo e das ações de controle e avaliação, analisaram-se
as particularidades evolutivas e individuais da Atividade
de Estudo.” (LONGAREZI, 2019c, p. 193).
Por sua vez, o sistema Galperin-Talizina, com o
objetivo de estudar o desenvolvimento gradual dos
processos mentais (NECHAEVA, 2019), elaborou
materiais didáticos e propôs uma Teoria da Formação de
Ações Mentais por Etapas, a partir da qual sistematizam-
se cinco etapas para o desenvolvimento mental: 1.
motivacional, 2. base orientadora de ensino (BOA), 3.
material ou materializada, 4. linguagem externa e interna e
5. mental (GALPERIN, 1995, 2001). P. Ya. Galperin
formula os fundamentos de sua teoria, com basee nos
princípios: 1. do carácter ativo do objeto da psicologia, 2.
da natureza histórico-social da psique humana e 3. da
unidade das formas externas (materiais) e internas
(psíquicas) da atividade humana. A partir de seus estudos,
demonstra como a atividade prática externa se interioriza e
adquire a forma de atividade interna ideal.
Finalmente, o sistema Zankov teve como
finalidade o estudo do desenvolvimento geral de
qualidades, tais como a inteligência, os sentimentos
internos e os valores morais (NECHAEVA, 2019). Nesse
processo, dedicou-se à estruturação de um material
- 62 -
didático organizado, a partir de princípios e orientações
metodológicas elaborados experimentalmente. A proposta
metodológica produzida reúne quatro importantes
qualidades pedagógicas: a multilateralidade, o caráter do
processo, as colisões e a variabilidade (ZANKOV, 1984;
НЕЧАЕВА; РОЩИНА, 2006; FEROLA, 2019);
orientadas por cinco princípios didáticos: 1. o ensino com
um alto nível de dificuldade, 2. o papel principal do
conhecimento teórico, 3. o avanço em ritmo acelerado no
estudo do material planejado, 4. a conscientização do
processo de aprendizagem por parte dos estudantes e 5. o
desenvolvimento da classe de estudantes como um
todo. (ЗАНКОВ, 1963; HЕЧАЕВА; PОЩИНА, 2006;
GUSEVA, 2017; GUSEVA E SOLOMONOVICH, 2017;
FEROLA, 2019; AQUINO, 2012; 2017).
Estudos sobre as especificidades dos vários
sistemas tem, cada vez mais, possibilitado evidenciar as
particularidades produzidas no interior de cada um e
ajudado a melhor entender seus objetivos, princípios e
orientações metodológicas; sinais que ajudam a confirmar
a primeira tese, inicialmente apresentada, de que a
Didática Desenvolvimental é complexa, diversa e
heterogênea, apesar de alguns fundamentos comuns aos
sistemas didáticos desenvolvimentais produzidos no
contexto soviético.
- 63 -
2. Obutchénie por unidades: uma didática desenvolvimental e
dialética em vivências no contexto educacional brasileiro.
Os sistemas didáticos Elkonin-Davidov-Repkin,
Galperin-Talizina e Zankov demonstraram êxito nos
processos desenvolvimentais aos quais estavam
orientados, apesar de suas diferenças e especificidades. O
legado didático produzido pelas várias equipes vinculadas
aos sistemas resultou do intenso trabalho experimental
realizado à época.
No Brasil, tem-se dedicado, especialmente nas
últimas décadas, ao estudo dos sistemas, nas diferentes
disciplinas escolares, orientando-se tanto pelo princípios
gerais da Didática Desenvolvimental, quanto pelos
específicos aos sistemas, particularmente aos sistemas
Elkonin-Davidov-Repkin e Galperin-Talizina. O sistema
Zankov ainda é pouco explorado no país. Na trajetória dos
estudos brasileiros histórico-culturais nota-se que a
aproximação com essa produção tem sido um esforço de
diferentes grupos dedicados à investigação didático-
pedagógica de fundamentação materialista histórico-
dialética.
A pedagogia marxista brasileira (CURY, 1979;
MELLO, 1982; LIBÂNEO, 1985, SAVIANI, 1980, 1994,
1995; SEVERINO, 1999; LUCKESI, 1990; FREITAS,
1994; DUARTE, 1993; GASPARIN, 2005; MAZZEU,
1998; entre outros) tem sua constituição marcada
historicamente por uma abordagem filosófica de educação.
Por esse viés, a escola e os processos educativos a ela
associados têm sido tomados como pilares para a
construção da democratização e transformação social, pela
- 64 -
via do acesso aos conteúdos historicamente produzidos
pela humanidade, na defesa de uma pedagogia crítico
social dos conteúdos (SAVIANI, 1980, 1994, 1995;
LIBÂNEO, 1985; etc.).
A perspectiva didática marxista histórico-cultural,
por sua vez, é mais recente na trajetória da pedagogia
brasileira e tem sua entrada no país, nas décadas finais do
século passado, por um viés psicológico, a partir,
principalmente, dos estudos realizados por L. S. Vigostki e
A. N. Leontiev e, em seu princípio, ainda com forte
influência de uma abordagem filosófica. A entrada dos
didatas soviéticos (V. V. Davidov, V. V. Repkin, G.
Repkina, N. V. Repkina, G. A. Zuckerman, P. Ya.
Galperin, N. F. Talizina, L. V. Zankov, M. V. Zvereva, N.
V. Nechaeva, entre outros) e cubanos (I. B. Núñez, J. Z.
Toruncha, H. J. G. Mendoza, O. T. Delgado, etc.) ganha
força nas duas primeiras décadas do século XXI e se
materializa com pesquisas que têm produzido processos
didático-pedagógicos próprios. Nota-se que, quanto mais
essas iniciativas se distanciam dos primeiros encontros
com a abordagem soviética e, simultaneamente, mais
amplo tem sido o acesso à produção desses psicólogos e
didatas, se concretizam mais profundas e consistentes as
produções didáticas histórico-culturais no país. Esse
esforço tem resultado em produções originais, com
especificidades em suas proposições correspondentes ao
trabalho de intervenções realizado em diferentes contextos
escolares, em níveis de ensino distintos e áreas específicas
do conhecimento.
- 65 -
Para os propósitos desta comunicação, toma-se a
perspectiva de “obutchénie por unidades” (LONGAREZI,
2017; LONGAREZI; DIAS DE SOUSA, 2019), produzida
no bojo desse movimento de estudos no Brasil. As
proposições inerentes a essa perspectiva se alicerçam nos
fundamentos gerais e específicos da Teoria Histórico-
Cultural e da Teoria Desenvolvimental, porém emergem
como processo e produto de várias intervenções didático-
formativas realizadas em escolas públicas brasileiras.
O princípio geral orientador dessas intervenções
encontra, na dialética, seu principal fundamento para
pensar a organização das condições e dos modos
educativos de colocar o pensamento estudantil em
movimento e propiciar, didaticamente, as condições para a
formação do pensamento teórico (formação de conceitos
científicos e ações mentais), como atividade psíquica
humana. Os estudos revelaram três unidades importantes
de se considerar no contexto da educação escolar e que,
vistas enquanto totalidade no processo educativo, podem
orientar a organização didática desenvolvimental e
dialética: 1. unidade conteúdo-forma, 2. unidade imitação-
criação e a 3. unidade ruptura-desenvolvimento.
A unidade conteúdo-forma tem seu fundamento na
categoria de totalidade e na perspectiva davidoviana de
vinculação do método aos conteúdos. A formação do
conhecimento científico e dos modos generalizados de
ações implicam a apreensão do conteúdo pelo domínio
daquilo que lhe é essencial, para além daquilo que lhe é
meramente aparente. Dominar o conceito em seu campo
científico implica, portanto, a apreensão de seu núcleo
- 66 -
conceitual, do lógico-histórico que o compõe. Numa
perspectiva didática, o processo de apreensão do conteúdo
(a forma) precisa compreender o processo de identificação
e apreensão dos nexos conceituais a ele inerentes (outros
conteúdos), compondo uma rede sistêmica complexa, que
vai (pela sua apreensão) complexificando o pensamento,
não pela apreensão do conteúdo em si, mas pela apreensão
das relações que se estabelecem entre os conceitos. É essa
rede conceitual, mediada por signos, cuja compreensão, se
dá mediada por outras redes conceituais (sempre em
relações signo-signo) que caracteriza a dimensão científica
do conceito e resguarda, pela unidade conteúdo-forma, o
desenvolvimento do pensamento teórico.
A unidade imitação-criação, por sua vez, tem sua
célula-mãe na aprendizagem colaborativa, entendida como
aquela capaz de transformar, em real, o nível possível de
desenvolvimento do estudante. O desenvolvimento, em
potencial, depende, como considerou L. S. Vigotski
(2007), dos processos de imitação que ocorrem na
colaboração com o outro na zona de desenvolvimento
possível (ZDP) do estudante. No entanto, é importante que
se entenda que, para L. S. Vigotski (2009), o ato imitativo
não é ato reprodutivo, é processo de criação
(FERNANDES, 2007). Daí emerge a compreensão da
imitação em unidade com os processos criativos
produzidos por cada sujeito. Nesse sentido, os processos
de obutchénie-desenvolvimento se constituem pela
unidade imitação-criação, pois só com a colaboração do
mais experiente é que se pode criar as condições psíquicas
- 67 -
de tornar real, o possível, entendendo a produção/criação
do novo em unidade com a imitação/colaboração do outro.
A última unidade, ruptura-desenvolvimento, tem
seu nuclear nos atributos essenciais do conceito de
dialética, enquanto revelação da emergência do novo,
como síntese da luta/unidade dos contrários, tendo na
dialética o princípio e a lei orientadora do
desenvolvimento, cuja chave da transformação está na
ruptura. E essa emerge dos confrontos entre as forças
contraditórias que atuam nos processos psíquicos, em
situações de obutchénie-desenvolvimento, o que implica
mudanças qualitativas na essência desses processos. À
vista disso, é nessa unidade que o desenvolvimento se
expressa enquanto processo de tomada de consciência,
generalização abstrata dos atributos essências do conceito,
mudança na qualidade do pensamento, ruptura-
desenvolvimento.
Pensadas de forma sistêmica e tomadas enquanto
totalidade na realidade escolar brasileira, as unidades
conteúdo-forma, imitação-criação e ruptura-
desenvolvimento sinalizam, como horizonte, uma proposta
de obutchénie que pode se materializar como unidade dos
contrários, condição sine qua non para uma didática que se
pretenda desenvolvimental e dialética. O esforço de muitas
pesquisas tem sido no sentido de produzir conhecimentos
que permitam dar respostas para as questões educativas
com as quais se depara cotidianamente na educação
escolar brasileira. Produzir processos que avancem em
práticas de ruptura-desenvolvimento, que contribuam, pela
unidade conteúdo-forma, para o desenvolvimento do
- 68 -
pensamento, na unidade imitação-criação, em que os
processos psíquicos-criativos sejam potencializados pela
imitação-colaboração, foi o modo vivenciado por algumas
dessas pesquisas.
A análise produzida em torno de propósitos de
obutchénie-desenvolvimentais revela motivos para a
continuidade, a partir dos quais espera-se ter, cada vez
mais, o ânimo e a força para que os esforços imitativos-
criativo sejam lançados ao desafio permanente de
rupturas-desenvolvimento, de tal modo que novas sínteses
sejam produzidas como possibilidade de luta e unidade em
meio às contradições que caracterizam os contextos nos
quais se está inserido.
REFERÊNCIAS
- 69 -
CEDRO, W.L.; MORETTI, V.D.; MORAES, S.P.G.
Desdobramentos da Atividade Orientadora de Ensino para
a organização do ensino e para a investigação sobre a
atividade pedagógica. Linhas Críticas (ONLINE), v. 24,
p. 402-424, 2019.
- 70 -
DELARI JR. A. Vigotski: linguagem, consciência e
subjetividade. Campinas: Editora Átomo e Alinea, 2013,
238p.
- 71 -
FEROLA, B.C. O desenvolvimento integral na obra de
L. V. Zankov (1957-1977): um olhar para os princípios
e orientações metodológicas [dissertação de Mestrado].
Uberlândia: Programa de Pós-Graduação em Educação.
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- 72 -
apresentada à Faculdade de Educação da UNICAMP.
1994. Disponível em file:///C:/Users/Daniela/Downloads/
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2019.
- 73 -
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zankoviano no atual ensino fundamental. In:
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- 74 -
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e dialética da formação-desenvolvimento do professor e
do estudante no contexto da educação pública brasileira.
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- 76 -
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Cutural), v. 14, p. 5-19, 2018.
- 77 -
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- 78 -
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Trad.). Buenos Aires: Colihue, 2007.
- 85 -
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Prudente (Orgs.). Teoria da atividade de estudo:
contribuições de D. B. Elkonin, V. V. Davidov e V. V.
Repkin. 2019.
- 86 -
CAPÍTULO IV
- 87 -
atenção voluntária de crianças nos mencionados anos de
suas escolarizações, tendo em vista o processo de ensino
dos conteúdos escolares sob responsabilidade do
professor, cujos resultados serão apresentados de modo
condensado a seguir. Por outro lado, o propósito deste
texto não é refazer o percurso do método e dos
fundamentos que embasaram o desenvolvimento da
pesquisa, mas sim explorar algumas implicações que se
desdobram de seus resultados teórico-concretos.
Dito de outra maneira, este material em específico
é um ensaio de como o professor pode melhor engendrar a
atenção voluntária dos estudantes durante suas aulas nos
anos iniciais do Ensino Fundamental, por isso teve por
objetivo apresentar de forma exploratória e preliminar
alguns desdobramentos para o planejamento e realização
de aulas em contexto escolar com base nos determinantes
pedagógicos identificados, como uma das possíveis
aproximações dos resultados da investigação científica à
prática docente. Recomenda-se para professores e
pesquisadores, portanto, a leitura integral da monografia
caso se busque aprofundamento acerca de tais
fundamentos, sobretudo a respeito dos dados empíricos e
dos procedimentos de coleta utilizados, assim como das
análises e sínteses dialéticas do experimento formativo
(DAVIDOV, 1988) realizado6.
6
O estudo em sua íntegra pode ser encontrada para download no
Repositório Institucional UNESP, mais especificamente do seguinte
endereço eletrônico: <https://repositorio.unesp.br/handle/11449/
157441>.
- 88 -
Ficou demonstrada a tese de que o
desenvolvimento da atenção voluntária em contexto
escolar ocorre por demanda da própria atividade, por meio
de tarefas de ensino planejadas e executadas pelo
professor de modo a conduzir o educando à internalização
de signos que passam a mediar internamente sua atenção,
tornando-a crescentemente autocontrolada por motivos
ligados ao estudo, em uma educação escolar que, ao
ensinar os conteúdos sistemático-científicos, é capaz de
promover intencionalmente o desenvolvimento desta
função superior. Tal elaboração teórica, além de orientar
todo o processo de pesquisa, confirmou-se como a chave
conceitual sobre os modos de se engendrar o
desenvolvimento atencional dos escolares em condições
reais de ensino, cumprindo seu propósito de fazer avançar
o conhecimento científico sobre o tema na forma dos
mencionados resultados, que podem colaborar com
mudanças na realidade escolar pela via da
instrumentalização teórico-prática da atuação docente.
Desde o princípio esteve claro que não se
intencionou produzir um conhecimento propriamente
pedagógico sobre o assunto, mas sim se tratou de um
estudo em psicologia que teve como contexto a educação
escolar, em um empenho científico-social de colaborar
com a atuação do professor por meio de conhecimentos
psicológicos sobre o desenvolvimento da atenção na
atividade de estudo. Seus possíveis desdobramentos
educacionais ainda serão mais bem explorados em
- 89 -
projetos futuros7. Sendo assim, as implicações a seguir
devem ser encaradas com parcimônia, pois são apenas
aproximações iniciais, que merecerão aprofundamento e
análise/síntese críticas; contudo, expô-las aqui incentiva o
debate com pares e profissionais da área, além de trazer
alguns indícios pedagógicos preliminares
psicologicamente embasados e úteis à docência.
Para a realização deste fim, organizou-se este
ensaio da seguinte forma. Incialmente se expôs algumas
das diretrizes histórico-culturais para o estudo da atenção
voluntária em contexto escolar, fruto das investigações
teóricas para elaboração da tese; em seguida se apresentou
sucintamente os determinantes pedagógicos do
desenvolvimento desta função, que foram os resultados de
pesquisa; depois, formulou-se as referidas implicações
pedagógicas preliminares. Nas considerações finais se fez
algumas críticas fundamentadas ao fenômeno da
medicalização da educação e da infância, tema que
constituiu uma das justificativas sociais para a realização
deste estudo; que não foi o objetivo aqui, mas pela sua
relevância e correlação profunda com o assunto tratado,
considerou-se pertinente abordar à guisa de conclusão.
7
Está em processo de pesquisa e elaboração um caderno pedagógico
baseado nos resultados deste e de outros estudos que possam colaborar
com o mesmo propósito.
- 90 -
1. Diretrizes histórico-culturais para o estudo da atenção
voluntária em contexto escolar8
8
Uma versão menos completa e sintética destas diretrizes já foi
publicada em FERRACIOLI (2019). Como há diferenças
significativas entre as versões, recomenda-se a utilização desta, que é
igual à contida no relatório final da tese.
- 91 -
(VIGOTSKI, 2000; VYGOTSKI, 2001), portanto a
investigação do processo atencional deve situar
quem são os sujeitos que atentam, em que
condições agem e quais tarefas exigem deles
atenção;
(2) as funções psíquicas, dentre elas a atenção, podem
ser investigadas em suas especificidades se houver
clareza de que elas concretamente atuam em
concerto no sistema psíquico interfuncional
(LURIA, 1979b);
(3) investiga-se sistematicamente a atividade
(estrutura, dinâmica e conteúdo) e não a função
psíquica em si (em abstrato), pois esta se realiza e
se revela por demanda daquela (VYGOTSKI,
1995b; 2001; LEONTIEV, 1978; 1982);
(4) a base da atividade autocontrolada está na
internalização de signos da cultura que, na forma
de significados socialmente compartilhados,
possam se tornar as ferramentas psíquicas
mediadoras do ato voluntário (VYGOTSKI 1995b,
1996; 2001; GUREVICH, 1960)
(5) atenção voluntária em contexto escolar é aquela
que está sob controle de motivos ligados direta ou
indiretamente à atividade de estudo, sendo os
conteúdos sistemáticos/científicos seus principais
signos mediadores;
(6) crianças dos anos iniciais do Ensino Fundamental
operam por atenção voluntária externa
(VYGOTSKI, 1995a; MARTINS, 2013), o que
significa que dependem de condução interpsíquica
- 92 -
do professor para se apropriarem de signos que
promoverão capacidades atencionais
intrapsíquicas, segundo objetivos pedagógicos
planejados e realizados conforme as possibilidades
internas atuais e externas iminentes de seus alunos;
(7) investiga-se o volume atencional como um todo,
transitando e permeando suas propriedades e
duração na atividade de estudo ou em ações que a
engendrem;
(8) avaliar a atenção de estudantes envolve verificar
aquilo que já é produto intrapsíquico do
desenvolvimento (Nível de Desenvolvimento Atual
– NDA) e, sobretudo, seu processo interpsíquico
propriamente dito (Zona de Desenvolvimento
Iminente – ZDI) (VIGOTSKI, 2010).
- 93 -
Deste modo, com base nos resultados de pesquisa,
os determinantes pedagógicos responsáveis por melhor
promover o desenvolvimento da atenção voluntária de
crianças dos anos iniciais do Ensino Fundamental são:
- 94 -
(4) o desenvolvimento da atenção voluntária de
crianças em contexto escolar é favorecido quando
o professor, por meio dos signos/conteúdos a
serem internalizados, cria condições interpsíquicas
para o surgimento/fortalecimento de motivos de
estudo (DAVIDOV, 1988; ASBAHR, 2011),
através de resultados bem sucedidos das ações de
estudo por ele planejadas e conduzidas junto aos
seus alunos, mesmo que inicialmente indiretamente
relacionadas aos motivos almejados, fazendo com
que a atenção dos aprendizes gradualmente tenha
melhores possibilidades de orientar internamente a
atividade de estudo propriamente dita;
(5) o volume atencional e o autocontrole da conduta de
uma turma de crianças pode variar muito de um dia
para outro ou até ao longo de uma mesma aula,
reforçando que o processo de internalização de
signos e de formação de funções superiores,
incluindo a atenção voluntária, dependem das
condições interpsíquicas do ensino escolar, que são
diversas, plásticas e nem todas sob controle direto
do professor. Apesar destas oscilações
circunstanciais, se houver a internalização de
signos/conteúdos escolares em tarefas de ensino
(estas sim planejadas/realizadas pelo docente) que
exijam apropriadamente a atenção voluntária das
crianças, então o desenvolvimento desta função
ocorrerá, evidenciando-se ao longo do ano letivo
como um todo;
- 95 -
(6) as diferenças individuais no desenvolvimento da
atenção voluntária de crianças de uma mesma sala
diminuem quando o professor mobiliza a dimensão
interpsíquica desta função, por meio dos
signos/conteúdos ensinados, o que significa que
aulas nas quais as possibilidades atencionais
interpsíquicas dos alunos são bem exploradas pelo
docente produzem grupos escolares com níveis de
desenvolvimento mais semelhantes, facilitando o
planejamento/realização das aulas;
(7) resguardadas as afirmações anteriores, a forma de
organização do ensino que melhor mobiliza e
engendra a atenção voluntária de crianças é aquela
em que se divide a tarefa em fases sequenciais
curtas, que não devem durar mais do que o volume
atencional dos alunos. Portanto, quanto mais
restrito o volume desta função para os aprendizes,
maior o número de fases a se dividir uma mesma
tarefa e mais curto o tempo de cada uma delas,
tendo em vista os objetivos de ensino e a coesão
interna da tríade conteúdo-forma-destinatário
(MARTINS, 2013) dentro do contexto no qual a
aula ocorre;
(8) as referidas fases das tarefas de ensino devem
intercalar oportunidades descentralizadas de
realização destas por parte dos alunos com
momentos centralizados de condução/retomada das
mesmas pelo professor, segundo as características
da atenção voluntária externa típica de crianças
neste período de desenvolvimento. As
- 96 -
descentralizadas devem mobilizar o
desenvolvimento atencional atual/intrapsíquico das
crianças de maneira mais autônoma e, ainda assim,
assistida pelo docente conforme demanda de cada
circunstância; enquanto os momentos centralizados
devem promover interpsiquicamente o
desenvolvimento atencional iminente dos alunos
(tanto em nível de dificuldade quanto em duração
da tarefa), também tendo em vista os objetivos de
ensino e a coesão interna da tríade conteúdo-
forma-destinatário dentro do contexto no qual a
aula se realiza;
(9) tal movimento de intercalar oportunidades
centralizadas e descentralizadas de realização das
tarefas deve operar no limite do esgotamento dos
recursos atencionais atuais/intrapsíquicos das
crianças, novamente conforme as característica da
atenção voluntária externa, que serão recuperados
pela ação do professor, dando continuidade às
tarefas e levando os alunos a estenderem um pouco
mais a duração de seus tempos de atenção,
incidindo interpsiquicamente na dimensão
iminente de seus volumes atencionais voluntários
por meio dos signos/conteúdos da atividade de
estudo em andamento. Feito isso, deve-se criar
nova oportunidade descentralizada e mais
autônoma de objetivação dos signos aprendidos/em
aprendizagem, reiniciando o movimento antes
descrito e ampliando gradualmente o nível de
- 97 -
exigência das tarefas segundo os avanços
atencionais atuais e iminentes dos aprendizes;
(10) em articulação com os procedimentos de ensino
planejados/executados pelo professor, os recursos,
materiais didáticos e ambiente de sala devem, na
medida do possível, sofrer adequações casos
estejam aquém ou além do volume atencional atual
e/ou iminente dos alunos em selecionar os
estímulos que devem compor a imagem focal
necessária à realização da tarefa ou de suas fases,
possibilitando que tais alterações
externas/ambientais permitam que a dinâmica de
aula antes descrita tenha melhores condições de se
efetivar na atividade de estudo das crianças.
- 98 -
suscetíveis a modismos teórico-práticos, que
propagandeiam sedutoras “inovações didáticas” para a
formação de sujeitos sociais preparados para os “novos
tempos”, em oposição a uma escola considerada em si
retrógrada e opressora, cujos profissionais deveriam
abandonar seus modos antiquados de ensino, substituindo-
os por modelos completamente diferentes de tudo que
antes faziam. Este autor demonstra que tais movimentos
tão comuns em educação nunca foram casuais, mesmo que
bem intencionados pelos seus propositores, favorecendo
interesses dominantes quando convertidos em políticas
públicas de formação e gestão da educação formal, que
normalmente incorrem no esvaziamento de conteúdos
curriculares e na precarização da docência, sobretudo
quando se trata da escola pública destinada à imensa
maioria dos trabalhadores.
Não foi intenção aqui desenvolver tal questão, mas
apenas salientar com base nesta posição que não se está
dizendo que nada deve mudar na educação escolar, que
tudo vai muito bem ou que não existam melhorias
necessárias neste campo. O que se está discutindo é que,
resguardada a centralidade do ensino dos
conceitos/conteúdos sistemático-científicos, mostrou-se de
maneira incisiva que o professor não precisa jogar fora
tudo que sabe sobre como ensinar, assumindo
procedimentos que lhe são muitas vezes empurrados
“goela a baixo”, sem qualquer preocupação com as
dificuldades que enfrentam no cumprimento de seu ofício
e muito menos com as condições nas quais de fato
realizam suas aulas.
- 99 -
Este estudo se comprometeu em não reproduzir tal
erro, intentando identificar determinantes pedagógicos
responsáveis por promover o desenvolvimento da atenção
que fossem compreensíveis e, sobretudo, exequíveis pelos
docentes nas condições de ensino que hoje possuem, que
via de regra não são as melhores. Uma possível impressão
de que parte ou mesmo de que todos os determinantes
esquematizados anteriormente são familiares está em
consonância com o compromisso de formulá-los de
maneira a alcançarem diretamente a atuação docente, de
tal modo que os professores sejam capazes de incorporá-
los com certa facilidade em suas aulas.
Para além de uma plausível familiaridade,
conhecer de forma mais consciente tais determinantes
pode criar condições para que o professor planeje e
execute suas aulas com maior clareza daquilo que é
essencial para o desenvolvimento atencional de seus
alunos, aumentando as chances de produzir resultados
melhores e mais rápidos9 do que conseguiria sem tal
sistematização; ainda mais se para isso necessitará de
adequações relativamente simples em suas posturas em
9
A expressão “mais rápidos” não deve ser confundida com
“aligeiramentos pedagógicos”, típicos de concepções tecnicistas em
educação (SAVIANI, 2007). O processo de ensino deve levar o tempo
que os aprendizes necessitarem para que ocorram as internalizações
necessárias dos signos/conteúdos, apesar do tempo na prática ser
geralmente escasso para tanto. Porém não há mal algum que isto
ocorra satisfatoriamente com a maior brevidade possível, dando tempo
ao professor de se dedicar com mais vagar a outros assuntos que os
alunos porventura estejam encontrando mais dificuldades no processo
pedagógico.
- 100 -
sala e nas tarefas de ensino que elabora/realiza, dando-lhe
solo firme sobre o qual poderá favorecer o autocontrole da
conduta das crianças na atividade de estudo, sem com isso
perder o foco do ensino dos conteúdos curriculares e sem
recorrer a medidas coercitivas e/ou medicalizantes.
Dito isso, segue-se às referidas primeiras
aproximações. Uma delas diz respeito ao conhecimento
das leis do desenvolvimento psíquico como um todo e da
atenção em específico. Um professor que compreende a lei
genética geral do desenvolvimento e a centralidade da
internalização de signos como essência do processo de
formação do sistema interfuncional superior, incluindo o
atencional, terá melhores condições de interpretar o que
acontece em sua sala de aula e agir de forma mais precisa
sobre a origem dos problemas pedagógicos que enfrenta.
Este conhecimento aliado à teoria da atividade e à
periodização histórico-cultural do desenvolvimento
(ELKONIN, 1987) permitirá, por exemplo, que ele não
caia no equívoco de aguardar que as crianças por si só
“fiquem quietas/atentas” para então começar sua aula, uma
vez que elas, especialmente nos anos iniciais do Ensino
Fundamental, estão em momento voluntário externo desta
função e precisam da intervenção do professor para que
possam estabelecer imagem focal relacionada a uma ação
de estudo, ou seja, é uma característica daquele período do
desenvolvimento da atenção, que supera por negação
quaisquer justificativas pejorativas e patologizantes sobre
os motivos da conduta considerada desatenta e/ou
hiperativa/impulsiva dos estudantes.
- 101 -
Além disso, se ter alunos mais atentos em sala é
resultado do ensino e não pré-requisito, indivíduos ou
mesmo turmas consideradas desatentas e/ou
hiperativas/impulsivas não mudarão verdadeiramente pela
simples coação ou uso por si de estímulos atrativos
externos, mas sim pelas relações interpsíquicas
pedagogicamente orientadas pelo professor, com vistas à
internalização de signos/conteúdos escolares na atividade
de estudo; o que não acontecerá naturalmente ou por
iniciativa espontânea de uma ou mais crianças, tão pouco
ocorrerá pela ação bioquímica de remédios. Sem aquilo,
elas seguirão supostamente desatentas e
hiperativas/impulsivas, mesmo que circunstancialmente
paradas e caladas, haja o que houver.
Nesta linha, faz-se a crítica ao uso ensimesmado de
procedimentos “divertidos/interessantes” durante as aulas,
capazes de manter os alunos entretidos por muito tempo;
contudo, se não chegam à internalização de signos,
também estão fadados ao fracasso no desenvolvimento da
atenção na atividade de estudo, apesar da aparente eficácia
ou do discurso simplista de que, se foi “divertido”, então
foi automaticamente adequado à educação de crianças dos
anos iniciais do Ensino Fundamental. Em tais condições,
assim que os estímulos externos “interessantes” cessarem,
mais uma vez os alunos seguirão tão desatentos e
hiperativos/impulsivos quanto antes.
Com ênfase, não se está dizendo que as aulas não
devam ser interessantes/divertidas para os educandos,
mesmo porque este fenômeno também envolve funções
psíquicas superiores que se desenvolvem, como no caso
- 102 -
das emoções e sentimentos, que não foram objeto desta
pesquisa, mas compõem o sistema interfuncional tanto
quanto a atenção, o pensamento, a linguagem, e podem
interferir para melhor ou para pior no processo de
ensino10. O que se afirma com todas as letras é que não há
quesito mais essencial ao desenvolvimento da atenção que
a aprendizagem consistente dos conteúdos escolares (sem
o uso de repreensões ou com o mínimo possível deste
subterfúgio, claro), que pelos resultados que produzem
tornarão divertido o próprio ato de estudar/conhecer, na
medida em que a apropriação destes significados sociais
passarem a fazer sentido na atividade dos aprendizes,
tornando-os processualmente proficientes em compreender
e agir de forma cada vez mais autônoma, precisa e criativa
em relação ao mundo, aos outros e a si mesmos.
Tendo isso em mente, existem outras implicações
pedagógicas dos resultados de pesquisa que compõem a
complexidade do fenômeno. Uma destas está no fato de
que durante o ensino de um determinado conteúdo, seja
ele qual for, haverá diferenças nas atenções dos alunos a
depender do domínio que já possuem sobre ele, da forma
de organização da aula e do tempo que precisam para
realizar as tarefas propostas. Sabendo disso, o docente
poderá utilizar de procedimentos que favoreçam mais
10
Sobre a função psíquica das emoções e sentimentos e suas
implicações educacionais, indica-se a leitura de Gomes (2008),
Martins (2013) e Batista (2019). Sobre “aulas-espetáculo” e a
superação de discursos ideológicos a respeito de seus benefícios à
educação e ao desenvolvimento psíquico, recomenda-se a leitura de
Messeder Neto (2015).
- 103 -
relações interpsíquicas no início do que no final do
processo de ensino de um assunto novo, sem a expectativa
de que as crianças já chegarão completamente
concentradas à sala; mesmo que tenham saído assim da
aula anterior. Esta dinâmica provavelmente se repetirá a
cada conteúdo abordado, especialmente para alunos que
ainda atentam de forma voluntária externa (lembrando que
esta característica psíquica do processo de
desenvolvimento da atenção é esperada para os anos
iniciais do Ensino Fundamental, como já dito). Na medida
em que houver, ao longo do ano letivo e da escolarização
como um todo, acúmulo de conteúdos aprendidos sobre
determinadas áreas do conhecimento, que comecem a se
sintetizar em conceitos/juízos cada vez mais abstratos e
totalizantes, pode ser que essas oscilações diminuam;
contudo é irreal esperar que simplesmente desapareçam
em algum momento, já que os níveis de dificuldade dos
conteúdos tendem a aumentar com o avanço da formação
e os contextos do ensino são muito diversos e mutáveis, o
que pode implicar em adversidades que dificultem o
ensino-aprendizagem.
Outra implicação está na clareza de que são as
ações de estudo que fortalecem/criam motivos de estudo
para as crianças, caso sejam bem sucedidas em seus
propósitos de ensino, o que tem consequências diretas ao
desenvolvimento da atenção. O professor poderá se
planejar para primeiro realizar atividades que não são
exatamente de estudo, contudo provocam de forma
premeditada situações sociais de desenvolvimento típicas
desta neoformação, para só então esperar que as crianças
- 104 -
comecem a agir/pensar movidas pelo estudo propriamente
dito e não o contrário. Inicialmente elas farão as tarefas de
ensino, por exemplo, porque estas têm algumas
características dos jogos de papéis (ELKONIN, 1987),
cujos significados já tem sentido para elas, mantendo-as
engajadas; mas em seu bojo os resultados bem sucedidos
destas ações promoverão motivos de estudo que
gradualmente se tornarão mais importantes que os
primeiros (ASBAHR, 2011). Se a atenção voluntária de
crianças dos anos iniciais do Ensino Fundamental é aquela
orientada por motivos ligados à atividade de estudo, este é
um caminho pedagogicamente promissor para que estes
novos signos possam gradualmente orientar a atividade
volitiva das crianças.
Além disso, a clareza de que os alunos realmente
têm níveis de desenvolvimento atencional diferentes entre
si, em termos atuais e iminentes, mesmo em salas de aula
sem quaisquer queixas de desatenção e/ou
hiperatividade/impulsividade, também criam implicações
pedagógicas, sobretudo diante do conhecimento de que, ao
se explorar a dimensão interpsíquica iminente desta
função, tais diferenças individuais diminuem. Isso quer
dizer, em termos práticos, que em turmas considerada
mais difíceis e heterogêneas as tarefas de ensino deverão
privilegiar ainda mais procedimentos interpsíquicos, sob
condução centralizada do professor, possibilitando que
uma mesma ação seja pedagogicamente adequada a todos.
Na medida em que o desenvolvimento ocorrer, a turma se
- 105 -
tornará mais homogênea11 e a ênfase em estratégias
interpsíquicas de ensino poderá equilibrar-se melhor com
momentos intrapsíquicos e descentralizados de
objetivação do que foi aprendido.
Somado a isso, se as dificuldades pedagógicas são
muitas, é recomendável que o professor aumente o número
de fases das tarefas que planeja/realiza, consequentemente
diminuindo o tempo de duração de cada uma delas,
segundo sua avaliação sobre o volume atencional de seus
alunos. O mesmo vale apara adequações simples e
exequíveis em seus recursos e materiais didáticos, para
que fiquem mais próximas das possibilidades de formação
da imagem focal das crianças, consideradas todas as
propriedades da atenção (tenacidade, vigilância,
amplitude, distribuição e duração). Isso pode ser um pouco
custoso ao docente, contudo mostra-se uma alternativa
prudente e menos conflitiva tanto para o professor quanto
para seus aprendizes, abrindo caminho para tarefas cada
vez mais longas e autônomas.
11
A ideia de “turmas mais homogêneas” não deve do modo algum ser
interpretada como uma espécie de anulação autoritária por parte do
professor de idiossincrasias dos estudantes, ou mesmo como uma
postura de menosprezo de suas histórias pessoais e contextos de vida;
pelo contrário, um estado mais semelhante de desenvolvimento da
atenção voluntária dos alunos possibilitará na verdade que as aulas
sejam mais coletivas e pedagogicamente menos complicadas de se
planejar e realizar, o que só fortaleceria características individuais e de
vida destas crianças, incluindo o formação de novas idiossincrasias em
suas formas de agir/pensar/sentir desejáveis à sua própria formação
como ser humano mais livre, esclarecido e coletivo, sem com isso
incorrer em esvaziamento de conteúdos durante as aulas.
- 106 -
Este aspecto está intimamente articulado ao
movimento pedagógico de intercalar oportunidades
centralizadas e descentralizadas de realização destas
tarefas, nos termos já descritos nos determinantes; o que
precisará ocorrer tantas vezes quanto necessário para que
as ações de estudo sejam bem sucedidas, sempre com a
clareza de que o ensino deve ir além do desenvolvimento
atual e incidir na zona de desenvolvimento iminente das
crianças para que realmente avance. Logo, é recomendável
que as tarefas sejam gradualmente mais exigentes em
termos atencionais (duração e outras propriedades); mas,
evidentemente, sempre no limite das possibilidades
iminentes desta e de outras funções, caso contrário
poderão levar os alunos ao fracasso, o que sem dúvida
afetaria negativamente os motivos de estudo caso este
ocorra além do tolerável.
Encerrandas estas aproximações iniciais, segundo
Vygotski (2001), o pensamento conceitual não se mantem
limitado a generalizações oriundas de combinações de
elementos da experiência, atingindo abstrações sobre estes
que vão além de seus vínculos factuais, possibilitando
sínteses essenciais e, portanto, mais verdadeiras sobre o
fenômeno que se pretende conhecer, interagir e
transformar. Isso significa que aquilo que for essencial ao
desenvolvimento da atenção voluntária em contexto
escolar se manterá como é na realidade das relações
humanas, independente de opiniões ou concepções sobre
ele; o que muda é a fidedignidade do conhecimento sobre
o objeto e, consequentemente, as possibilidades de intervir
- 107 -
nele de forma sistemática e intencional para produzir os
resultados desejados.
A maneira como o fenômeno da atenção voluntária
em contexto escolar se manifesta nas salas de aulas reais
das escolas terá múltiplas características que não seria
possível listar aqui, mas que se manifestarão por meio dos
determinantes pedagógicos discutidos, que deverão ser
consideradas caso se deseje planejar e aplicar as melhores
formas de atuar pedagogicamente sobre determinadas
circunstâncias inevitavelmente singulares, nunca tomando
os processos mentais em si mesmos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
- 108 -
quando relacionada à escolarização e à não aprendizagem.
A partir desta pesquisa e de outras sugeridas nas
referências ao final do texto, que fazem a crítica à
medicalização, cabe uma afirmação científica que possui,
ao mesmo tempo, repercussão ética e política sobre a
questão.
Se os resultados teórico-concretos mostraram, a
partir de dados objetivos quantificáveis e reproduzíveis do
experimento formativo realizado, que formas específicas
de organização do ensino são sim os fatores determinantes
no desenvolvimento da atenção voluntária de crianças em
contexto escolar, incluindo aquelas com queixas de
desatenção e hiperatividade/impulsividade (laudadas ou
não), fica explícito quão equivocado está o argumento
organicista e patologizante de que a medicalização é uma
possibilidade de enfrentamento/tratamento de
comportamentos considerados desatentos e/ou
hiperativos/impulsivos, que naturalmente prejudicariam
suas aprendizagens escolares.
Segundo os resultados empíricos e sínteses teóricas
desta pesquisa, seria um disparate atribuir mudanças
significativas no autocontrole da conduta e na atenção
voluntária de crianças (que ocorrerem ao longo do ano
letivo, de uma semana para outra ou até durante um
mesmo dia de aula) a mecanismos neurofisiológicos de
origem genética, que ora se manifestariam e ora
inexplicavelmente desapareceriam na atividade de estudo
dos alunos.
- 109 -
Ignorar todos os determinantes pedagógicos antes
demonstrados sobre contextos, destinatários, conteúdos e,
principalmente, sobre formas de ensino, insistindo em
explicar características atencionais e suas possibilidades
de avanços segundo uma lógica organicista e
medicamentosa ensimesmada, retira o debate do plano das
divergências desejáveis à produção do conhecimento
sistemático, rebaixando-o ao patamar da grave falta de
ética científica.
REFERÊNCIAS
- 110 -
(Org.). La Psicologia evolutiva y pedagogica en la
URSS. Moscú: Editorial Progreso, 1987. p. 104-124.
- 111 -
LURIA, A. R. Atenção. In: _______. Curso de psicologia
geral. Vol. III. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1979a. p. 1-38.
- 112 -
SAVIANI, D. História das idéias pedagógicas no Brasil.
Campinas: Autores Associados, 2007.
- 113 -
VYGOTSKI, L. S. Obras escogidas. Psicología infantil.
Tomo IV. Madrid: Visor, 1996.
- 114 -
Atenção e Hiperatividade (TDAH). In: ARCE, A.;
MARTINS, L. M. (Orgs.). Quem tem medo de ensinar
na educação infantil?: em defesa do ato de ensinar.
Campinas: Alínea, 2007. p. 93-123.
- 115 -
<http://www.eventos.uem.br/index.php/emmp/IIIemhdphc
/paper/view/2788>. Acesso em: 03 abr. 2017.
- 116 -
Psicologia Histórico-Cultural para processos educativos e
práticas pedagógicas. Dissertação de mestrado. Programa
de Pós-graduação em Psicologia, UEM, Maringá, 2016.
- 117 -
E. M.; TULESKI, S. C. (Orgs.). A exclusão dos
“incluídos”: uma crítica da Psicologia da Educação à
patologização e medicalização dos processos educativos.
Maringá: EDUEM, 2011. p. 133-196.
- 118 -
Histórico-Crítica. Campinas: Autores Associados, 2013.
p. 71-97.
- 119 -
RABATINI, V. G. O desenvolvimento da atenção na
educação do pré-escolar: uma análise a partir da
Psicologia Histórico-Cultural e da Pedagogia Histórico-
Crítica. Tese de doutorado. Programa de Pós-graduação
em Educação Escolar, UNESP, Araraquara, 2016.
- 120 -
CAPÍTULO V
Contato: nadiaeidt@hotmail.com
INTRODUÇÃO
- 121 -
Tal projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da
Universidade Estadual de Maringá, número do CAE
06875112.0.0000.0104 e ancorou-se no referencial teórico
da Psicologia Histórico-Cultural. O projeto teve início em
2012 e sua conclusão está prevista para o ano de 2020,
constituindo-se em resposta às demandas apresentadas
pelas Secretarias Municipais dos municípios paranaenses,
referente ao alto índice de crianças diagnosticadas e
medicadas em decorrência do suposto Transtorno de
Déficit de Atenção e Hiperatividade.
Neste trabalho serão apresentados os resultados
obtidos nos municípios cuja coleta foi realizada por censo:
Ponta Grossa, Cambé, Rio Bom, Cascavel, Maringá,
Paiçandu, Campo Mourão e Mandaguari. O instrumento
da coleta de dados do projeto foi um questionário
constituído por oito perguntas referentes à identificação
dos participantes e sete perguntas investigando o número
de crianças medicalizadas, a idade de início da
administração do(s) medicamento(s) psicotrópicos, a
dosagem diária recebida e se a criança que fazia uso de
medicação psicotrópica recebia algum outro tipo de
acompanhamento. O questionário foi preenchido em
papel, pelo adulto responsável pela criança, no ato da
matrícula e/ou rematrícula da mesma na escola.
Questionários foram considerados inválidos e descartados
nos casos em que os responsáveis não preencheram 50%
ou mais das informações solicitadas nesse instrumento de
coleta. A seguir faremos uma breve síntese das reflexões
teóricas e dos dados obtidos no segmento da Educação
Infantil.
- 122 -
1. Reflexões sobre a medicalização da/na educação
- 123 -
e psíquico. A crítica refere-se ao uso de medicamentos
como primeira e única forma de tratamento para
problemas da vida, em uma sociedade em que tudo é
transformado em mercadoria para obtenção do lucro. Para
uma melhor compreensão sobre este fenômeno,
entendemos ser necessário estabelecer uma distinção
conceitual em relação aos termos medicalização e
medicamentalização. Tal como foi esclarecido acima, o
conceito de medicalização pode ser entendido como um
processo que reduz a complexidade da vida humana a
aspectos individuais (orgânicos ou psíquicos) (TULESKI,
et al, 2019). Esse conceito é, em muitos casos,
equivocadamente compreendido como sendo o “uso de
medicamentos”. Vale esclarecer que ingerir medicamentos
torna-se necessário quando se diagnostica uma doença
orgânica, para a qual não há outra forma de tratamento ou
cura. Por fim, o termo medicamentalização envolve o
emprego de medicamentos em situações em que antes eles
não eram necessários, por isso a medicamentalização
acaba por ser uma das consequências da medicalização
(TULESKI, et al, 2019).
Tomemos como exemplo o aumento dos
diagnósticos de TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção
e Hiperatividade), definido no Manual de Diagnóstico e
Estatística das Perturbações Mentais (2014, p. 59) como
“[...] Um padrão persistente de desatenção e/ou
hiperatividade-impulsividade que interfere no
funcionamento e no desenvolvimento”. No entanto, se
compreendermos o desenvolvimento infantil para além de
uma mera maturação orgânica, funções complexas como a
- 124 -
atenção voluntária ou o autocontrole são desenvolvidas
externamente a partir da primeira infância, o que torna
problemática uma definição que desconsidera o
desenvolvimento humano em seu aspecto sócio-cultural.
Tais definições naturalizantes e genéricas embasam a
ampliação crescente da medicamentalização de
comportamentos considerados desatentos e muito
agitados, desde a tenra infância. E, o tratamento
farmacológico acaba por ser à base de um
psicoestimulante chamado Metilfenidato, que não tem
consenso nem entre os profissionais da medicina, mas
mesmo assim é a principal alternativa para tratamento de
crianças diagnosticadas com TDAH, em idade escolar.
Nessa perspectiva, as dificuldades no aspecto
educativo, escolar ou extraescolar acabam por ser
localizadas na criança e patologizadas. No que se refere à
escolarização, desconsidera-se a precariedade das escolas
e as condições de trabalho docente, que são transformadas
em problemas individuais, supostamente neurológicos, e
tratados pela medicina. Por isso o processo de
medicalização na educação é duplamente perverso: rotula
de doentes crianças normais e, por outro lado, ocupa com
tal intensidade os espaços, os discursos, propostas,
atendimentos e até preocupações, que desaloja desses
espaços aqueles que deveriam ser seus legítimos
ocupantes. Além disso, a medicalização da aprendizagem
escamoteia os determinantes políticos e pedagógicos do
fracasso escolar, isentando de responsabilidades o sistema
social vigente e a instituição escolar nele inserida. Em
outras palavras, as dificuldades de cunho institucional,
- 125 -
social e político ficam reduzidas a supostas doenças
individuais (COLLARES; MOYSÉS, 1996).
De acordo com Leher (2013), o uso generalizado
de Metilfenidato somente foi possível após as mudanças
profundas nos sistemas escolares no período neoliberal,
particularmente a partir da década de 1990. O gráfico
abaixo demonstra a sincronia entre o encaminhamento de
políticas neoliberais e o significativo aumento no consumo
de medicamentos que, supostamente, interferem nos
problemas de aprendizado. Vê-se um Estado
desobrigando-se de investir no setor educacional,
juntamente com um aumento do uso de medicamentos por
supostos transtornos de aprendizagem, aumentando o
lucro das indústrias farmacêuticas.
Fonte: http://www.dea.gov/pubs/cngrtest/ct051600.htm
(citado por LEHER, 2013).
- 126 -
Não temos condições aqui de adentrar em minúcias
referentes à compatibilidade existente entre o projeto
neoliberal de Estado mínimo e a transferência de recursos
para o setor privado, apenas podemos citar o loby da
indústria farmacêutica para conseguir que determinados
medicamentos sejam ofertados pelo governo, ao mesmo
tempo que investem em ampla propaganda e aliciamento
de médicos para as prescrições (CHIEFFI e BARATA,
2010; PALMA e VILAÇA, 2012; BARROS e JOANY,
2002).
Centraremos neste texto, a preocupação com um
determinado segmento da população: da primeira infância
até o término de idade pré-escolar (zero a cinco anos).
Pande, Amarante & Baptista (2018), em levantamento
bibliográfico realizado nas bases BVS e Scielo sobre
pesquisas epidemiológicas e clínicas no Brasil sobre o uso
de psicofármacos em menores de seis anos nos apontam
aspectos extremamente preocupantes, que debateremos a
seguir, em conjunto com os dados coletados em nosso
projeto.
- 127 -
SEED, tais como Norte Central (Mandaguari, Rio Bom,
Londrina, Paiçandu, Cambé e Maringá), Oeste (Cascavel)
e Centro Oriental (Ponta Grossa), inclusive envolvendo
cidades mais populosas do Estado.
O quadro 1 apresenta o percentual de crianças
medicadas nos nove municípios, no que se refere ao
percentual de crianças medicadas com psicotrópicos, na
Educação Infantil.
Ponta
45 3729 3774 36,8% 1,2%
Grossa
52,72 1,86
Cambé 18 948 966
% %
Rio
2 43 45 47,8% 4,4%
Bom
Casca- 1,15
52 4454 4506 49,6%
vel %
Marin- 59,67 1,43
86 5916 6002
gá % %
Paiça- 45,96 1,94
07 352 359
ndu % %
- 128 -
Campo 78,08 1,07
27 2492 2519
Mourão % %
Manda 77,04 0,99
10 1000 1010
guari % %
- 129 -
(n.1) (n.1)
49%TDAH 26,78%
Cascavel 56
(n.27) Risperidona (n.15)
30,23%
26,74%
Maringá Risperidona (n. 86
TDAH (n.26)
23)
42,85% 42,85%
Paiçandu 07
TDAH (n.3) Risperidona (n.3)
Campo 40% TDAH 30% Risperidona
27
Mourão (n.15) (n.17)
62,96% 55,55%
Mandaguari 10
TDAH (n.3) Risperidona (n.4)
- 130 -
envolve agravamento de depressão e tentativas de suicídio,
além de alterações no sistema nervoso central e periférico,
problemas metabólicos e cardiovasculares como obesidade
e risco aumentado de diabetes. Problematizam também a
partir dos debates no cenário internacional, a
predominância do uso off label dos psicofármacos em
crianças com menos de seis anos, a heterogeneidade de
prescrições e o hábito da polifarmacologia nesse campo.
Tais dados também foram encontrados em nossa coleta e
problematizados nos trabalhos de Colaço (2016), Lucena
(2016) e Tabuti (2018).
A revisão de Pande, Amarante & Baptista (2018),
também revelou a carência de estudos de pesquisas
epidemiológicas e clínicas nesse campo no Brasil, a
insuficiência de pesquisas longitudinais de médio e longo
prazo demonstrando os efeitos benéficos e maléficos dos
psicofármacos para esta faixa etária. Destacam os
trabalhos de Minde (1998, citado por PANDE,
AMARANTE & BAPTISTA, 2018), e de Zito et al (2000,
citado por PANDE, AMARANTE & BAPTISTA, 2018),
o primeiro constatou a expansão das prescrições de
psicotrópicos para pré-escolares em países como Estados
Unidos, Canadá, França e Alemanha, principalmente por
generalistas e pediatras. O segundo, expõe o aumento
dramático de psicotrópicos prescritos para crianças entre
dois e quatro anos em planos de saúde norte-americanos,
entre 1991 e 1995. Olfson et al (2010, citado por PANDE,
AMARANTE & BAPTISTA, 2018), abordam que o uso
de antipsicóticos para crianças entre dois e cinco anos de
idade em planos privados de saúde norte-americanos
- 131 -
dobrou nos períodos entre 1999-2001 e 2007. Schwarz
(2014, citado por PANDE, AMARANTE & BAPTISTA,
2018) estimou o uso de medicamentos para o TDAH em
pelo menos 10 mil crianças norte-americanas, de dois e
três anos de idade, em 2014.
Um dos aspectos importantes que merece destaque
é o uso off label dos psicofármacos utilizados na infância,
como por exemplo, apontam os nossos dados referentes à
prescrição da Risperidona para diagnóstico de TDAH em
crianças abaixo dos seis anos de idade. O uso off label, de
acordo com Pande, Amarante & Baptista (2018) refere-se
a prescrição não aprovada ou regulamentada pelas
agências de regulação, o que implica em não haver
indícios satisfatórios da eficiência, eficácia e segurança
necessárias para a sua autorização. No Brasil, a
regulamentação é realizada pela ANVISA e, conforme os
autores citados, a indústria farmacêutica, na bula dos
medicamentos precisa regulamentar-se pelas indicações
das agências de regulação, eficácia e segurança. Porém, a
prescrição de medicamentos off label dependerá da
avaliação do prescritor, sua própria experiência e de outros
clínicos, sendo a experiência pessoal (direta ou pela
interação com demais médicos) a mais relevante, não
havendo como mensurar seus efeitos a médio e longo
prazo. Ainda assim, destacam que o uso off label não é
proibido, pois entende-se que os médicos podem
prescrever medicamentos para usos não autorizados, uma
prática comum no Brasil e em outros países, como os
EUA.
- 132 -
Como observamos no quadro 2, ao invés da
prescrição de Ritalina, nome comercial Metilfenidato,
comumente prescrito para TDAH, encontramos, na
maioria dos municípios pesquisados, a Risperidona, um
antipsicótico não indicado para este transtorno, o que
configura o uso off label. De acordo a bula do
medicamento, ele é indicado para o tratamento de
sintomas psicóticos na esquizofrenia e no transtorno
bipolar, bem como nos comportamentos agressivos,
impulsivos e de automutilação. Há de se considerar que,
de acordo com informações disponibilizadas na própria
bula, este medicamento deve ser ministrado em
adolescentes acima de 15 anos, pois ainda não há estudos
que evidenciam as consequências do uso em crianças antes
dessa idade (CENTRALXS BULAS – RISPERIDONA,
2015). A recomendação é que a Risperidona seja
administrada apenas em casos de autismo severo, e,
mesmo assim, deve ser considerada a relação
custo/benefício, em virtude dos efeitos colaterais da droga.
Além disso, esse medicamento tem efeitos colaterais
comprovados, dentre eles a hieperprolactina.
Pande, Amarante & Baptista (2018) problematizam
o uso frequente em crianças, de medicamentos não
autorizados pelas agências reguladoras. Não há ensaios
clínicos ou estes são inconclusivos sobre os riscos,
benefícios e efeitos adversos dos medicamentos, não
existindo evidências que justifiquem seu uso. Também não
há pesquisas longitudinais e por isso se conhece pouco os
efeitos do seu uso continuado. Exemplificam com a
revisão realizada pelo Ministério da Saúde que analisou
- 133 -
estudos sobre os efeitos da risperidona para sintomas
associados ao autismo, cujos ensaios encontrados e
denominados de longo prazo não ultrapassavam seis
meses, sendo que a maioria das crianças que fazem uso
ultrapassam este período de uso contínuo. Os autores
destacam o projeto chamado Risperdal Boys, um trabalho
fotográfico que objetiva dar visibilidade a rapazes norte-
americanos que usaram risperidona quando crianças, tendo
como efeito colateral e irreversível, a ginecomastia.
Muitos deles precisaram realizar mastectomias e estima-se
que mais que 18 mil pessoas tenham processado a
indústria farmacêutica nos Estados Unidos devido aos
efeitos indesejados do medicamento.
Concordamos com os autores sobre o paradoxo
ético do uso off label de medicamentos na primeira
infância. Enquanto há limitações éticas e regulatórias para
as pesquisas clínicas na infância, para diferentes classes de
medicamentos, de acordo com Santos et al. (2011, citado
por PANDE, AMARANTE & BAPTISTA, 2018), nos
ensaios clínicos para o desenvolvimento de novos
medicamentos não podem ser incluídos pacientes
pediátricos, de modo que sua eficácia, segurança e seus
efeitos adversos só se tornam conhecidos na prática
clínica, o que faz com que as crianças que recebem tais
prescrições de modo empírico, pós-comercialização,
podem ser denominadas de órfãos terapêuticos.
Mais do que nunca é necessário que pais,
professores, profissionais da saúde e educação estejam
atentos às consequências desta prática clínica. O emprego
indiscriminado de medicamentos de uso controlado em
- 134 -
crianças, objetivando preencher as lacunas de um sistema
educacional deteriorado e precarizado, com salas de aula
numerosas e parcos investimentos do Estado nas
condições de trabalho de professores e pedagogos, atende
de modo eficaz as necessidades de uma indústria cada vez
mais crescente, a indústria farmacêutica. É necessário,
urgentemente, recolocar a saúde e o desenvolvimento
pleno de nossas crianças em primeiro lugar,
principalmente quando consideramos, diante dos dados
encontrados, um crescimento exponencial das prescrições
conforme a faixa etária. Estaríamos nós, substituindo os
processos educativos pela contenção do comportamento de
nossas crianças pela via medicamentosa? Estamos diante
de um processo de sedação em massa? Quais serão os
prejuízos a médio e longo prazo, uma vez que o uso off
label tem sido predominante? Voltando aos dados da
presente pesquisa, é possível observar que há um aumento
do número de crianças medicadas conforme avançam no
processo de escolarização. Isso pode ser melhor
visualizado no gráfico 1 abaixo:
- 135 -
Gráfico 2 – Número de crianças medicadas por série
- 136 -
populares são transformadas em doenças e o TDAH é uma
delas.
Processo semelhante parece acontecer nos
municípios pesquisados, quando, por exemplo,
diagnosticam crianças pequenas como portadoras de
problemas atencionais. A involuntariedade dos processos
psíquicos – dentre eles a atenção – é uma característica do
primeiro ano de vida e da primeira infância
(aproximadamente 0 a 3 anos). Essa condição se
transforma, possibilitando que a criança direcione e
mantenha sua atenção de forma voluntária, na dependência
da qualidade da apropriação dos instrumentos e signos da
cultura, tal como explica Vigotski (2018).
- 137 -
Essa concepção do desenvolvimento como produto
do mero amadurecimento orgânico, apartado do meio
social e das relações sociais em que a criança está inserida,
se opõe radicalmente àquela que compreende a relação
complexa entre instrução e aprendizagem, como
promotora do desenvolvimento, preconizada pela
Psicologia Histórico-Cultural. Nesta última, as funções
psicológicas superiores, que integram a consciência
humana, da qual faz parte a atenção, não são processos
endógenos, mas dependentes da apropriaçaõ das
objetivações humanas, mais especificamente, dos
instrumentos e signos da cultura. Nesse sentido, somente
uma análise que supere a dicotomia indivíduo-sociedade,
compreendendo-os em constante relação dialética,
possibilita a apreensão do fenômeno em questão em sua
totalidade.
Sève (1989), filósofo marxista, afirma que é graças
à dialética entre os processos de objetivação e apropriação
que se dá a reprodução indefinidamente ampliada das
capacidades humanas. Segundo o autor, se as
características da humanidade historicamente
desenvolvidas se tornaram totalmente diferentes das
aptidões inatas dos vertebrados superiores, isso se deve ao
fato de que suas habilidades se acumularam ao longo de
gerações. Entretanto, isso não ocorreu no interior do
organismo, “[...] ao ritmo ultralento da evolução
biológica”, mas no exterior, “ao ritmo cada vez mais
rápido da história”, num mundo socialmente produzido
por instrumentos, signos, relações sociais, chegando a
ultrapassar, de modo infinito, aquilo de que cada indivíduo
- 138 -
é capaz de se apropriar no decorrer de sua existência.
Uma importante característica do processo de
apropriação consiste no fato de que, quando uma criança
efetivamente se apropria de um instrumento, isso significa
que ela aprendeu a servir-se dele corretamente (ou seja,
desenvolveu uma atividade adequada em relação ao
instrumento) e, em consequência, já se formaram nela as
ações e operações motoras e mentais necessárias para esse
efeito (LEONTIEV, 1978). Tal proposição tem seu
fundamento em Marx e Engels (1986, p. 105) que afirma
que “[...] a apropriação de uma totalidade de instrumentos
de produção é, exatamente por isso, o desenvolvimento de
uma totalidade de capacidades nos próprios indivíduos”.
Deste modo, para Leontiev (1978) a apropriação da
experiência histórico-social provoca uma modificação da
estrutura geral dos processos de comportamento e do
reflexo, além de formar novos tipos de comportamento.
Ele afirma ainda que a principal característica do processo
de apropriação é criar no homem novas aptidões, funções
psíquicas novas.
Ao nascer, portanto, o bebê humano é inserido no
mundo das objetivações das necessidades e capacidades de
gerações que o precederam, de modo que ele poderá́
usufruir mais ou menos parcialmente os resultados desse
desenvolvimento. Nessa direção,
- 140 -
na sua grande maioria, vivem em condições muito aquém
daquilo já alcançado pelo gênero humano em termos do
seu enriquecimento (DUARTE, 1993). Em um sentido
mais amplo, o conceito de alienação pode ser entendido
como um processo de distanciamento e de conflito entre a
riqueza material e intelectual do ser humano e a vida de
cada pessoa. Verifica-se, portanto, “[…] uma ruptura
entre, por um lado, as gigantescas possibilidades
desenvolvidas pelo homem e, por outro, a pobreza e a
estreiteza de desenvolvimento que, se bem que em graus
diferentes, é a parte que cabe aos homens concretos”
(LEONTIEV, 1978, p. 280).
Na atualidade, a ideologia neoliberal escamoteia
essa determinação essencial da diferença entre os
indivíduos e difunde a ideia de que todos têm as mesmas
oportunidades - tanto no âmbito social quanto acadêmico.
Como consequência, os fracassos devem ser atribuídos a
problemas de caráter individual. Neste contexto, a prática
da normatização dos comportamentos desviantes,
objetivando adaptá-los aos padrões vigentes através da
medicalização adquire grande difusão, pois alcança status
científico.
Compreendemos que as funções psíquicas
complexas como a atenção voluntária, o autocontrole do
comportamento, a memória lógica, o pensamento verbal,
dentre outras são resultantes de um longo processo de
desenvolvimento que abrange processos educativos extra e
intraescolares, queremos dizer que se tais funções não são
resultantes puramente da maturação biológica, mas da
interrelação adulto-criança mediado por instrumentos e
- 141 -
signos sociais. Sendo assim, a existência de um
contingente de crianças que não estão desenvolvendo
gradativamente tais funções no interior das relações que
travam com os outros seres humanos à sua volta, nos faz
analisar como estas relações estão ocorrendo. Nos faz
indagar sobre a qualidade da relação afetivo-cognitiva que
vem se estabelecendo entre adultos e crianças deste o
nascimento. Nos faz questionar quais recursos
pedagógicos tem sido utilizados na Educação Infantil, que
possam promover o desenvolvimento da sensação e
percepção no primeiro ano de vida, depois a atenção e a
memória, a imaginação até o final da idade pré-escolar. As
funções psíquicas não se desenvolvem isoladamente e nem
em abstrato, de acordo com Vigotski (2018), mas por meio
de sistemas interfuncionais complexos que estão na
dependência da unidade criança e meio social,
denominada por ele de “vivência”. Dito isso, que
vivências estão sendo proporcionadas em nossos Centros
de Educação Infantil? Os medicamentos poderiam suprir
esta lacuna?
CONSIDERAÇÕES FINAIS
- 142 -
investir em políticas públicas que possibilitem a
centralização das informações e sua divulgação, bem
como a implementação de ações para a superação de
práticas que banalizam o diagnóstico e a patologização da
infância. Como afirma Moysés; Collares (1990, p. 46) “O
problema da escola brasileira não se resolverá, com
certeza, pela transformação do espaço pedagógico, do
sadio, do prazer, em espaço clínico, da doença, da
rotulação”. Retomar a concepção de educação para além
da pura e mera transmissão de conhecimentos, superando
por incorporação tal ideia na direção de uma educação que
produza desenvolvimento humano em sua plenitude, o que
não é possível ser alcançado com um composto químico.
REFERÊNCIAS
- 143 -
COLAÇO, Lorena Carrillo. A produção de
conhecimento e a implicação para a prática de
conhecimento e a implicação para a prática do
encaminhamento, diagnóstico e medicalização de
crianças: contribuições da Psicologia Histórico-
Cultural. Dissertação (Mestrado), Programa de Pós-
Graduação em Psicologia do Centro de Ciências Humanas,
Letras e Artes da Universidade Estadual de Maringá,
2016, 117 f.
- 144 -
Maria Aparecida Afonso; RIBEIRO, Mônica França
(Org.). Novas capturas, antigos diagnósticos na era dos
transtornos. 1ed.Campinas -SP: Mercado de Letras, 2013,
v. 1, p. 271-292.
- 145 -
distúrbios de aprendizagem. Caderno CEDES, 28, 31-48,
1992.
- 146 -
TARROSO, Maria João, ALMEIDA, J., LONTRO,
Raquel, MARQUES, C., MIGUEL, Teresa S., e LOBO,
Cristina et al. (2010). Os efeitos da risperidona nos níveis
de prolactina numa amostra de crianças e adolescentes
com autismo. Acta Pediatrica Portuguesa, 41(3),111-
116.
- 147 -
PARTE III
PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL E O
CAMPO DA SAÚDE
- 148 -
CAPÍTULO VI
- 150 -
que contribuiu para a consolidação do conceito de saúde
como ausência de doença foi a revolução científica
moderna e seus desdobramentos nas ciências da saúde. A
libertação em relação ao obscurantismo cristão, com o giro
antropocentrista e cartesiano, tem implicações
significativas no estudo e intervenção sobre o corpo
humano. De inviolável “morada da alma” a agregado de
órgãos e sistemas passível de manipulação técnica, estava
aberta a passagem pela qual irromperia um notável
desenvolvimento das ciências biológicas, com a patologia
à frente, orientando a refundação da anatomia e a criação
da ciência do normal - a fisiologia.
Com isso, pela primeira vez na história humana,
supera-se a visão metafísica em favor de uma leitura
racional da saúde-doença, com a transformação do corpo
em objeto de intervenção da medicina. Caminham juntos,
portanto, a “estatização” política e a objetificação técnica
dos corpos a partir do século XVIII.
A concepção de saúde como ausência de doença,
uma definição bastante biologicista, possui, portanto,
profundas raízes na estrutura social (DONNANGELO,
1976). A doença vista como alteração do funcionamento
normal expressa, de fato, a prevalência da ideia de função
diretamente vinculada à de finalidade. Ou seja, o
funcionamento normal do corpo é determinado por algo
fora dele: sua inserção social nas relações de produção.
Em última análise, o que define se o corpo está
funcionando adequadamente é se ele está podendo ser
usado para realizar o papel destinado ao seu proprietário.
As pessoas dificilmente procuram um serviço de saúde se
- 151 -
o corpo não está inadequado à sua vida cotidiana. É na
“falha”, no obstáculo no “andar a vida”, que o papel social
do corpo se explicita.
Como sabemos, em sociedades capitalistas, o papel
destinado à imensa maioria dos sujeitos é o de
trabalhadores. É esse o principal critério definidor da
adequação e eficiência do corpo. Daí os limites das novas
definições de saúde, mais abrangentes e ricas, de guiarem
a organização das práticas e serviços de saúde. Os
significados sociais possuem profundos lastros com a
realidade material da qual emergem.
As diversas formas de sofrimento são vivenciadas
pelos indivíduos como obstruções, limites, em seus modos
de vida (CANGUILHEM, 1995). O modelo biomédico
compreende essas obstruções como decorrentes
fundamentalmente de alterações biológicas do corpo
humano, além de conceber a dimensão biológica humana
como essencialmente natural, a-histórica. Desde que
existe, o homem possuiria as mesmas células, agrupadas
em órgãos e sistemas, que sofrem alterações, lesões – as
patologias – que implicam deteriorações de seu
funcionamento normal. Com efeito, corpo e psiquismo
seriam sempre os mesmos. O que mudaria seriam os
contextos em que se inserem, que podem contribuir mais
ou menos para seu funcionamento normal. À historicidade
da sociedade se opõe uma anistoricidade do corpo
humano, visto como sempre fixo e imutável.
Essa compreensão possuiu variantes ao longo do
tempo. A era bacteriológica e seu ufanismo biomédico se
expressaram na compreensão unicausal. Com a transição
- 152 -
epidemiológica do início do século XX nos países
centrais, e o predomínio das doenças crônico-
degenerativas, torna-se insustentável a tese de um agente
único causador das enfermidades. O modelo biomédico
necessitou incorporar outros aspectos influenciadores da
saúde-doença. Com isso, a díade agente-hospedeiro é
substituída por uma tríade, através da adição de um novo
elemento – o meio (AYRES, 1997). O clássico modelo da
história natural da doença de Leavell e Clark foi seu
exemplo mais conhecido. Desse modo, com o recurso a
um conceito advindo das ciências naturais (o meio
químico, físico, o “meio ambiente”), incorporam-se
componentes sociais do adoecimento, naturalizando-os e
esterilizando-os de capacidade explicativa e
transformadora da realidade.
Através do conceito de risco o processo de
adoecimento passa a ser compreendido como influenciado
por diversos fatores – biológicos e não biológicos -
segundo a lógica de agrupamentos de variáveis, sem
hierarquização ou relações de determinação entre si
(BREILH, 2006). Essa concepção, de cunho ecológico ou
sistêmico, predomina nas várias formulações acadêmicas e
institucionais do conceito de saúde a partir de meados do
século passado até os dias atuais. Seu desdobramento
operacional é a prescrição de hábitos/estilos de vida
saudáveis – onde se combate o conjunto de riscos –
responsabilizando os indivíduos pelas suas condições de
vida e saúde.
Paralelamente ao desenvolvimento da concepção
hegemônica a respeito da saúde-doença sob o capitalismo,
- 153 -
também se desenvolveram compreensões distintas,
algumas delas, críticas à naturalização desses conceitos.
A acepção com maior capacidade explicativa das
raízes sociais da saúde e da doença, indicando os
principais aspectos a serem transformados para a produção
de sociedades mais saudáveis, é a concepção da
determinação social do processo saúde-doença. Sua
primeira variante se expressou na antiga Medicina Social
europeia, por meio de elaborações de nomes como
Virchow, Neumann e Villermé. No contexto das
revoluções de 1848, essas elaborações, assim como esses
movimentos, também carregaram as peculiaridades de
uma crítica contraditória à realidade social da época. Se,
nos levantes contra os regimes absolutistas, combinaram-
se bandeiras de caráter mais radical do movimento
operário com plataformas mais liberal-democráticas da
pequena-burguesia, entre o movimento médico crítico não
foi diferente.
De forma geral, predomina o entendimento do
condicionamento das enfermidades pelas péssimas
condições de vida e trabalho urbanas, e responsabiliza-se o
Estado pela produção de boas condições de saúde para o
conjunto da sociedade. As medidas propostas extrapolam
as ações e serviços de saúde e incluem uma série de
políticas públicas próprias de uma república social. A
Medicina Social, nessa vertente progressista, é derrotada,
juntamente com as revoluções de 1848. Predomina o
higienismo como política estatal restrita, de intervenção
autoritária, saneadora do ambiente urbano e normatizadora
da força de trabalho com vistas a garantir as condições
- 154 -
estruturais para a acumulação capitalista
(DONNANGELO, 1976; FOUCAULT, 1984).
Apesar da crítica social à medicina e à
determinação social da saúde-doença continuar existindo
de forma sub-reptícia, por meio de alguns autores12, o
modelo biomédico se consolida, tanto no plano científico
quanto das intervenções sanitárias e de serviços de saúde.
Somente mais de um século depois da primeira derrota, a
fênix13 da medicina social “renascerá das cinzas”. O
cenário agora é outro, mas com algumas similaridades.
Será a América Latina, na década de 1970, palco de
contradições e desigualdades sociais dramáticas, o solo do
qual emergirá a mais profunda crítica contemporânea às
raízes sociais das graves condições de saúde-doença da
classe trabalhadora: a Medicina Social latino-americana.
Assim, retomada, a teoria da determinação social
do processo saúde-doença na América Latina, com autores
de várias nacionalidades, se manifestará, a partir dos anos
1980, em correntes com diferentes denominações, a
depender do contexto, como, por exemplo, epidemiologia
social e, mas recentemente, epidemiologia crítica. No
Brasil, essa perspectiva teórica comporá, juntamente com
várias outras, o recente campo da Saúde Coletiva
brasileira, surgido no processo de redemocratização do
país. Saliente-se, contudo, que a participação dessa
12
Vejam-se as importantes contribuições de Henry Sigerist (Nunes,
1992).
13
A interessante caracterização da medicina social como uma espécie
de fênix é de Ricardo Bruno Mendes Gonçalves (Mendes-Gonçalves,
1994).
- 155 -
concepção, desde o início minoritária, nos dias atuais
torna-se, de fato, praticamente contra-hegemônica na
Saúde Coletiva brasileira, dominada pelas correntes de
matiz positivista, como a epidemiologia clássica e as
disciplinas próprias da gestão, e por outras referências das
ciências sociais, principalmente as ditas correntes pós-
modernas.
A compreensão latino-americana da determinação
social do processo saúde-doença terá diferenças
profundas com sua antecessora – a medicina social
europeia do século XIX. No lugar da frágil base teórica e
política, se apoiará no arcabouço teórico do materialismo
histórico dialético como subsídio para elaboração de uma
compreensão dos processos de saúde e adoecimento.
Para essa corrente, o processo saúde-doença
somente pode ser compreendido a partir de sua
determinação pelas relações mais amplas de produção e
reprodução social. Os processos produtivos também
devem ser compreendidos como processos de consumo,
não somente de meios de produção - matérias primas,
instrumentos de trabalho -, mas também de força de
trabalho. As capacidades humanas - corporais, mentais,
etc. - são desgastadas, exauridas, durante os processos de
objetivação. A variadas formas concretas de inserção dos
indivíduos correspondem diferentes graus de desgaste de
capacidades vitais específicas, determinados pelas cargas
de trabalho predominantes em cada inserção produtiva. As
diversas atividades requerem distintas quantidades e
intensidades de trabalho, de atos, operações etc., com
- 156 -
graus variáveis de exigência física, de disposição psíquica,
de alienação etc. (LAURELL, 1989).
Para que se mantenha a integridade biopsíquica dos
indivíduos, ao processo de desgaste deve corresponder um
processo de restabelecimento das capacidades vitais. Esse
restabelecimento - a reprodução social da força de trabalho
– envolve variados processos, tanto no âmbito do trabalho,
como em outros âmbitos da vida. Quando os processos de
desgaste não são contrapesados por processos de
reprodução, desenvolvem-se múltiplas formas de
deterioração das capacidades vitais, com obstruções na
vida dos indivíduos. Essas obstruções vivenciadas como
sofrimento podem ser apreendidas pela medicina e pelos
serviços de saúde como patologias (ALMEIDA; GOMES,
2014; GOMES, 2017).
Além do trabalho, mas por ele influenciadas, há
outras dimensões da reprodução social das capacidades
vitais dos indivíduos, como a dimensão do cotidiano e
consumo, da relação com o ambiente, da vida política e
ideológica (BREILH, 1991). Os processos gerais e
particulares predominantes nessas várias dimensões
determinarão as condições concretas em que se efetiva a
existência dos indivíduos singulares. A depender das
dinâmicas às quais estejam subordinados nessas
dimensões, os sujeitos disporão de acesso e qualidade
variados de repouso, alimentação, moradia, lazer, direitos
sociais, participação política, relações afetivas etc.,
elementos condicionadores da recomposição e ou
ampliação das capacidades vitais.
- 157 -
Aqui se manifesta a determinação da desigualdade
social como influenciadora do processo saúde-doença. As
variadas dimensões da produção e da reprodução social
atravessam as sociedades e seus grupos sociais dividindo-
os e agrupando-os em diferentes arranjos que, ao fim, no
plano particular e singular conformarão o que se pode
denominar como distintos modos de vida (POSSAS,
1989; ALMEIDA FILHO, 2004). Esses modos de vida
expressam diferentes conformações das díades
objetivação-apropriação e desgaste-reprodução. Os
modos de vida, portanto, são, em última instância, modos
de re-produzir a vida.
Nesse quadro, os processos que acentuam o
desgaste em detrimento da reprodução das capacidades
vitais denominam-se processos críticos destrutivos da
saúde. Já os processos que impulsionam a reprodução da
vida contra seu desgaste são denominados como
processos críticos protetores da saúde (BREILH, 2006).
Desse modo, o processo saúde-doença deve ser
visto como resultado e simultaneamente componente dos
modos de vida dos indivíduos e coletividades. Isso porque
os múltiplos processos sociais que influenciam suas vidas
colocarão possibilidades variáveis, maiores ou menores,
de proteção da saúde. Essas possibilidades constituem, ao
mesmo tempo, a delimitação histórica da “margem de
movimento” dos sujeitos diante da saúde-doença.
- 158 -
epidemiológicos contemporâneos. O crescimento das
condições crônico-degenerativas - como as doenças
cardiovasculares, diversas formas de câncer etc. -, além da
explosão das taxas de sofrimento mental e das lesões e
mortes por variadas formas de violência, demonstram a
necessidade de teorias científicas que analisem as raízes
sociais desses processos.
Trata-se de investigar as formas de subordinação
da vida e da reprodução das classes sociais, e suas frações
e segmentos, à dinâmica atual da acumulação capitalista.
Suas implicações sobre: os processos produtivos, as
formas de extração de mais valia absoluta –
prolongamento de jornadas, intensificação do trabalho – e
relativa – a automação e a ampliação da composição
orgânica do capital e suas implicações sobre a
produtividade, o valor das mercadorias, etc.; as atuais
formas de expropriação das condições de reprodução da
classe trabalhadora (a mercantilização dos serviços
públicos); o papel do Estado; entre outros (VIAPIANA;
GOMES; ALBUQUERQUE, 2018).
A nosso ver, é a teoria da determinação social do
processo saúde-doença, pelos próprios pressupostos
epistemológicos em que se ampara, que possibilita essa
integração conceitual entre as dimensões da saúde-doença
e da reprodução social da vida, condição necessária para
compreensão e intervenção eficazes sobre essas duas
esferas.
- 159 -
REFERÊNCIAS
- 160 -
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 2.ed. Rio de
Janeiro: Graal, 1984.
- 161 -
VIAPIANA, V. N.; GOMES, R. M.; ALBUQUERQUE,
G.S.C. Adoecimento psíquico na sociedade
contemporânea: notas conceituais da teoria da
determinação social do processo saúde-doença. Saúde
debate. Rio de Janeiro. v. 42, n. especial 4, p. 175-186,
dez 2018 .
- 162 -
CAPÍTULO VII
Eduarda Henrique
(Universidade Estadual de Maringá, Maringá, Paraná)
Beatriz Moreira Bezerra Vieira
(Universidade Estadual de Maringá, Maringá, Paraná)
Luana Gois Corbelo
(Universidade Estadual de Maringá, Maringá, Paraná)
Nataly Batista de Jesus
(Universidade Estadual de Maringá, Maringá, Paraná)
Patrícia Barbosa da Silva
(Universidade Estadual de Maringá, Maringá, Paraná)
Adriana de Fátima Franco
(Universidade Estadual de Maringá, Maringá, Paraná)
Contato: adriffranco@hotmail.com
INTRODUÇÃO
- 163 -
Histórico-Cultural (PHC), desenvolvida inicialmente por
Vigotski, Leontiev e Luria e ancorada no Materialismo
Histórico-Dialético (MHD) proposto por Marx e Engels.
Partindo da pergunta expressa em nosso título,
elegemos como objetivo geral deste texto relacionar os
processos saúde-doença objetivados no desenvolvimento
ontogenético com as relações de gênero estabelecidas a
partir da base material capitalista e patriarcal de nossa
sociedade.
A discussão proposta busca, em um primeiro
momento, explanar acerca da compreensão social sobre o
desenvolvimento humano a partir da PHC e da
epidemiologia crítica. Em seguida, abordaremos a
categoria gênero a partir de estudos feministas orientados
pelo MHD, de modo a compreender como as relações de
gênero são edificadas no desenvolvimento singular dos
indivíduos (ontogênese) a partir da estrutura capitalista
atual. Também exploraremos a determinação social como
categoria que subsidia a análise dialética dos processos
saúde-doença. E, finalmente, examinaremos os impactos
das relações de gênero sobre os processos de saúde-doença
do sujeito singular, entendendo que este se desenvolve
dialeticamente no vínculo singular-particular-universal
(OLIVEIRA, 2005).
- 164 -
desenvolvimento das relações coletivas de trabalho.
Assim, conforme ressaltam Tanamashi, Asbahr e
Bernardes (2018), a partir do MHD, a categoria
fundamental para a análise do psiquismo humano é o
trabalho. Argumenta-se que as relações de trabalho são
desenvolvidas por necessidades materiais engendradas
historicamente e é por meio desta atividade que os sujeitos
criam instrumentos e signos (físicos e psicológicos) a fim
de sanar suas necessidades, tornando possível o advento
de uma nova qualidade do psiquismo, radicalmente
diferente dos outros animais: a consciência. Este processo
de modificação da natureza e psiquismo humano por meio
das relações de trabalho é denominado de hominização.
De acordo com Leontiev (2004, p. 279), após o processo
de hominização, o que passa a reger a vida humana e suas
relações são as leis sócio-históricas, em suas palavras: “o
homem é um ser de natureza social [grifo do autor], que
tudo o que tem de humano nele provém de sua vida em
sociedade [grifo do autor], no seio da cultura [grifo do
autor] criada pela humanidade”.
Assim, destaca-se que cada novo indivíduo da
espécie precisa apropriar-se das ferramentas culturais em
sua ontogênese para se desenvolver plenamente quanto ser
humano. Isto é, a partir das leis sócio-históricas que guiam
o desenvolvimento, cada sujeito singular irá, a depender
das relações sociais às quais está submetido desde o
nascimento, apropriar-se da cultura e das produções
humanas. Este processo, Leontiev (2004) chama de
humanização, o que implica a noção que nascemos apenas
- 165 -
candidatos a ser humano, condição esta que se efetiva
mediante as relações supracitadas.
A apropriação dos instrumentos, assim como da
linguagem, surge às novas gerações como uma
necessidade de origem social. Portanto, são as mediações
sociais presentes na relação indivíduo-sociedade que
possibilitam a apropriação das produções do gênero
humano pelo indivíduo (OLIVEIRA, 2005). Do
entendimento que a humanização se dá a partir da
apropriação do patrimônio material e cultural
historicamente elaborado ao longo do desenvolvimento da
espécie, deriva que não se trata de um processo no qual o
que é universal (gênero humano) se expressa no indivíduo
singular de forma direta, mas sim mediado pelas
particularidades, em uma verdadeira relação dialética.
A compreensão do desenvolvimento humano, por
consequência dos processos sociais de saúde-doença,
mediado pelas particularidades, perpassa pela noção de
que no processo de produção e reprodução social da vida
humana ao longo da história se desenvolvem os
antagonismos de classe, erguem-se relações específicas
entre os seres humanos, dentre elas, étnicas, raciais e de
gênero. Trata-se de uma perspectiva da totalidade do
desenvolvimento (KONDER, 1983), assumindo que este
só pode ser abarcado se levado em conta na unidade entre
ser humano, sua atividade prática no mundo e a realidade
objetiva. Portanto, tornar-se humano, homem ou mulher,
doente ou saudável nesta sociedade e neste tempo
histórico, diz respeito não a um processo biológico ou
- 166 -
autodeterminado, mas ao conjunto de relações sociais que
o tornam possível.
- 168 -
à filogênese são as bases materiais dos órgãos da
individualidade do sujeito. A partir do exposto por Marx
(2004), argumenta que a vida em sociedade e suas relações
concretas de produção advindas dos processos de trabalho
modificam as formas de expressão do conteúdo genético e
“inato” da espécie. Em outras palavras, todos os órgãos do
sentido, que possuem origem filogenética, se modificam
na relação com o meio ganhando novas qualidades,
específicas da cultura e do momento histórico.
Nas palavras de Marx (2004, p. 108):
- 169 -
outros animais) que são modificadas no decorrer da
ontogênese por meio da apropriação de instrumentos e
signos disponíveis no meio em que o sujeito está inserido.
As funções psíquicas superiores superam assim, por
incorporação, as funções psíquicas elementares.
Nessa relação, as funções psicológicas elementares
são mantidas, no entanto, estas passam a ser subordinadas
às superiores e o psiquismo orientado pelos processos
culturais. Ou seja, a PHC não exclui de suas análises o
papel da biologia e da filogênese, mas a considera em
unidade com os processos sociais, que possibilitam
àquelas formas de expressão distintas e qualitativamente
novas.
Portanto, uma medida eterna de normalidade
biológica, em tese, neutra e universal, está apartada do
momento histórico e então não abrange o indivíduo em
toda a complexidade do ser singular constituído nas
particularidades de sua vida concreta. As concepções do
que seria a normalidade a priori, tal como vistas nas
diversas classificações de doenças, perdem de vista a
unidade entre biológico e social, tal como proposta pela
PHC ou como proposto por Laurell (1982), a noção de
nexo biopsíquico. Tal conceito remete ao elo primordial
entre os processos psíquicos e a estrutura biológica.
Sobre a estrutura biológica, ou seja, sobre o corpo
dos indivíduos, edificam-se os processos de humanização
guiados pelas leis sócio-históricas. Ao tencionar o gênero
como determinação nos processos saúde-doença a partir
da teoria da determinação social da saúde, torna-se
necessário, pois, explicitar a concepção de gênero
- 170 -
orientada pela análise mais completa da realidade, isto é,
considerando-o na totalidade do processo social - tarefa
realizada no item a seguir.
- 171 -
comunidades patriarcais. (ENGELS, 2010; IZQUIERDO,
1992).
O patriarcado, como forma de organização da vida
material oriunda de tais comunidades, consiste na
dominação do sexo masculino sobre o sexo feminino, mas
tal dominação que se desdobra em ideologias como
machismo e sexismo, por exemplo, só é possível pela
hierarquia gerada na estrutura da sociedade, isto é, por
uma divisão sexual do trabalho (SOUZA, 2006).
A divisão sexual do trabalho a partir do critério
sexo define em qual esfera da organização material da
vida os seres humanos atuam, constituindo assim o
sistema sexo/gênero (IZQUIERDO, 2013). Izquierdo
comenta que:
- 172 -
sobrevivência, e atribui cada uma a um sexo de modo que
a esfera da transcendência é destinada aos machos da
espécie e nela realizam-se as atividades relacionadas à
produção da riqueza social e a esfera da sobrevivência é
atribuída às fêmeas, e a essa cabem as tarefas de produção
e renovação da vida, improdutivas de riqueza social,
porém, imprescindíveis para a criação da mesma.
(IZQUIERDO, 1992).
Ou seja, na esfera da sobrevivência são
socializados os seres humanos entendidos como
pertencentes ao gênero feminino e na esfera da
transcendência aqueles designados ao gênero masculino.
Assim, o vigente sistema sexo/gênero atuando sobre o
desenvolvimento ontogenético dos seres humanos,
compreende como mulheres a somatória sexo fêmea e
gênero feminino; e como homens, sexo macho e gênero
masculino (IZQUIERDO, 1988). Na cisão entre o trabalho
produtivo e improdutivo é engendrada a hierarquia
patriarcal entre as duas esferas, na qual a transcendência
(esfera produtiva) subordina a sobrevivência (esfera
improdutiva) e como resultado este regime subordina as
mulheres aos homens (IZQUIERDO, 1992).
Frente a isso, o indivíduo ao nascer em um meio
social patriarcal terá suas relações e atividades previstas
em seu desenvolvimento a partir do gênero que se atribui
historicamente ao seu sexo biológico. Por vezes, questões
como gênero e identidade psicossexual também serão
compreendidos (erroneamente) no campo biológico como
algo natural e individual, apesar de comporem a esfera
social. Pertencendo a essa esfera, gênero e identidade
- 173 -
psicossexual não possuem caráter único e imutável, mas
correspondem a significados socialmente construídos e
historicamente reafirmados (ou refutados) de acordo com
a necessidade da produção e reprodução social da vida
humana e, no caso das várias sociedades de classes, até ao
capitalismo em seu desenvolvimento atual, foi
imprescindível para manutenção da divisão de classes a
hierarquia patriarcal engendrada na divisão sexual do
trabalho (SOUZA, 2015).
De acordo com o MHD, o processo de
desenvolvimento é permeado de significações sociais que
compõem a consciência humana, em uma relação dialética
na atividade. Nesse sentido e considerando as distintas
socializações que os seres humanos são submetidos devido
ao sistema sexo/gênero, Izquierdo afirma que:
- 174 -
destrutivos em relação à saúde-doença como cuidado,
violência etc., o que buscaremos explorar a seguir.
- 175 -
social, mas de demarcar que esse social não se constitui
enquanto uma soma de fatores que desencadeiam doenças.
Compreende-se, a partir de Laurell (1982), que a
perspectiva da medicina clínica clássica trabalha numa
dicotomização entre as esferas social e biológica do
processo de adoecer. Ou seja, preocupa-se com o ser
humano parcial, ou o corpo em desordem, e não o
indivíduo singular que adoece.
Nesse sentido, pensar a saúde-doença enquanto
processo socialmente determinado significa abarcar o
sujeito em suas múltiplas determinações, compreendê-lo a
partir da tríade singular-particular-universal (OLIVEIRA,
2005), sendo que a sociedade não é mero apanhado de
fatores de risco (biológicos e ambientais) ou de proteção,
como os modelos multicausais buscam explicar. Tais
modelos explicativos se ancoram na perspectiva de saúde-
doença enquanto interação entre indivíduo e ambiente,
porém, limitam-se à observação de fatores que poderiam
assumir a característica de positivos ou estressores.
Conforme Breilh (2010), a crítica realizada pela
epidemiologia de orientação marxista se dá em um
contexto de elaboração da noção de “determinantes sociais
de saúde”, proposto pela Organização Mundial da Saúde
(OMS) ou, como se conhece, o modelo biopsicossocial.
Desse modelo de entendimento dos processos saúde-
doença, desdobra-se a relação entre a estrutura social e a
saúde enquanto traços isolados, ou seja, que tais processos
são determinados por fatores determinantes, que podem
ser de ordem social ou biológica, que igualmente podem
interferir na ocorrência de doenças (ALMEIDA, 2018).
- 176 -
Assim, as dimensões biológica, psíquica e social estariam
em relação de igualdade na determinação do bem-estar
físico, mental e social, sem se reportar às desigualdades
produzidas pelo antagonismo de classe, pelas relações de
raça e gênero estruturadas na sociedade capitalista
patriarcal.
Quando nos reportamos para como a OMS lida
com as relações de gênero na determinação de doenças,
constatamos que os fatores econômicos, sociais e
demográficos, como a pobreza, a condição
socioeconômica e, dentre estes, o sexo do indivíduo, estão
implicados na determinação de dado quadro patológico
(OMS, 2001). Segundo o documento da organização, as
diferenças de gênero são consideradas fatores importantes
no estudo da prevalência, causalidade e evolução de
transtornos mentais e de comportamento. Por exemplo, os
fatores biológicos e genéticos desempenhariam importante
papel na prevalência de transtornos depressivos e de
ansiedade em mulheres.
Além disso, os chamados fatores psicológicos e
sociais seriam significativos no desenvolvimento de
transtornos, no sentido de se configurarem enquanto
estressores. Segundo a OMS (2001, p. 42), “é possível que
haja mais estressores tanto reais como percebidos entre as
mulheres. O papel tradicional por elas desempenhado na
sociedade expõe as mulheres a um estresse maior e assim
também as torna menos capazes de mudar o seu ambiente
gerador de estresse”. Dessa passagem evidencia a
perspectiva das desigualdades de gênero enquanto fatores
de estresse e a capacidade individual da mulher diante dele
- 177 -
como fundamental para o desenvolvimento ou não de
transtornos.
Na mesma direção, a OMS aborda a violência
doméstica e sexual como fator determinante no
desenvolvimento de transtornos mentais nas mulheres,
assumindo que se trata de um fenômeno que ocorre em
diversas regiões do mundo e afeta fortemente esse grupo
de indivíduos (OMS, 2001). Porém, a forma como se
aborda a violência contra as mulheres não alude as bases
sociais que sustentam tal processo como fenômeno
naturalizado. Assim, o impacto da violência na vida das
mulheres e na determinação de sua saúde mental é
entendido como mais um aspecto ambiental, dentre muitos
outros que podem estar envolvidos na ocorrência de
transtornos mentais. Não há menção, por exemplo, à
estrutura social que produz e reproduz tais formas de
violência desde a infância.
Tal fenômeno assume facetas específicas no Brasil,
tal como tipificado na Lei Maria da Penha (BRASIL,
2006). Dados da pesquisa “Visível e Invisível: a
vitimização de mulheres no Brasil - 2ª edição”, realizada
em fevereiro de 2019, revelam que acerca da relação com
o agressor, 76,4% das mulheres afirmaram que o
conheciam, sendo que 23,8% dos agressores era o
cônjuge, companheiro ou namorado e 15,2% o ex-cônjuge,
ex-companheiro ou ex-namorado. Além disso, a pesquisa
mostrou que o local em que as mulheres mais sofrem a
violência é o próprio domicílio, totalizando 42% dos
casos. Destacamos ainda que 536 mulheres por hora, no
ano de 2018, sofreram agressão física, totalizando,
- 178 -
portanto, 4,7 milhões de mulheres brasileiras. É alarmante.
Se contabilizarmos todos os tipos de violência, tem-se o
total de 16 milhões de mulheres brasileiras acima de 12
anos que são vítimas dessas violências (BRASIL, 2019).
Dos dados expostos, apontamos a violência não
como um fator cultural que afeta a vida das mulheres, mas
produto da lógica capitalista patriarcal, pois se expressa
tanto no vínculo afetivo com o agressor comum, o
cônjuge, bem como no local “privilegiado” em que
acontece. Tal fato alude para a reprodução das relações
desiguais de gênero continentes e necessárias à
perpetuação da sociabilidade capitalista patriarcal. A
nosso ver, torna-se impossível pensar na determinação
social dos processos saúde-doença de mulheres e homens
sem considerar tais características.
Mesmo ao assumir que alguns determinantes
sociais têm mais importância do que outros na
configuração dos processos saúde-doença, como aqueles
que geram estratificação social - distribuição de renda,
preconceitos com base no gênero, etnias ou deficiências
(OMS, 2011), trata-se de um entendimento sobre saúde e
as consequentes desigualdades de acesso, prevenção e
tratamento, que não vão à raiz do problema.
Em contrapartida, Breilh (2010) assume que na
determinação social da saúde-doença na sociedade de
classes é necessária a noção de inequidade. Esta resulta de
uma história de acumulação do poder em determinada
classe social, que se apropria do poder de acumulação
econômica, política e cultural, subordinando e excluindo
as outras classes sociais. Da inequidade derivam as
- 179 -
desigualdades de gênero, de raça, etnia, região etc. O autor
esclarece que a centralidade de uma determinação na
formação de um perfil epidemiológico não significa a
exclusão de outras determinações.
Ao especificar a categoria gênero para conhecer
um dado perfil epidemiológico, por exemplo,
consideramos os processos particulares implicados nas
relações de gênero tal como se estruturam socialmente. No
entanto, isso não significa ignorar a hierarquia da
determinação, cuja base ontológica primordial da
inequidade é a acumulação da riqueza nas mãos de
poucos, ocasionada pela divisão de classes. A
determinação social da saúde implica a noção de
subsunção, isto é, inclui dado fenômeno em um processo
mais amplo, uma totalidade, no caso, o sistema de
acumulação, que abrange a produção, a reprodução, a
organização do trabalho, e inevitavelmente o consumo.
- 180 -
Em contraste ao modelo multicausal, a
determinação social da saúde assume que a saúde-doença
não pode ser compreendida em sua totalidade se não a
partir das relações sociais de classe dentro do sistema de
acumulação capitalista e como esse movimento repercute
nos modos de viver e de adoecer. Compreendemos com
isso que a realidade não comporta a dicotomização das
esferas social e biológica, tampouco que seja possível
fracioná-la em fatores isolados, relações causais que
determinam diretamente os processos saúde-doença
(ALMEIDA, 2018). Desse modo, o sexo da criança não se
resume a um fator assumido numa relação causal, como se
ele por si, ou conjugado a outros fatores de risco, levasse
diretamente a uma dada doença.
Na contramão das teorias uni e multicausais sobre
os processos saúde-doença, a epidemiologia crítica
orientada pelo marxismo afirma a manifestação material
na esfera biológica individual enquanto modos específicos
de adoecer, de vivenciar os fenômenos de saúde-doença,
isso quer dizer que expressam sua gênese social. Não
basta, portanto, abarcar os fatores biológicos, mas como
tais manifestações se articulam ao processo social. Em
outras palavras, “o próprio processo biológico é social”
(LAURELL, 1982, p. 12).
- 181 -
particularidades, temos que a chave para o entendimento
do lugar das relações de gênero na determinação dos
processos saúde-doença está na unidade entre o corpo-
objetivo e o psíquico-subjetivo, dimensões que não
podem ser dicotomizadas, visto que se integram enquanto
totalidade (KONDER, 1983). Pois, o ser humano, seja
homem, mulher, criança, adulto, etc., é dotado de um
corpo, uma dimensão concretamente natural que, como
aborda Izquierdo (2013), é demarcado enquanto limite
daquilo que é capaz de fazer, como pode atuar sobre o
mundo e modificar materialmente a natureza, alterando-se,
assim, subjetivamente. A autora complementa,
“paradoxalmente, por mais forte que seja a ideia de que o
corpo, o sexo, determina o gênero, o que acaba
acontecendo […] é que o gênero se impõe ao corpo e
legitima transformações do mesmo” (IZQUIERDO, 2013,
p. 16).
Esse movimento “abrange não só as formas de
trabalho e organização prática de vida, mas também dos
próprios órgãos dos sentidos: o olho humano passou a ver
coisas que não enxergava antes, o ouvido humano foi
educado pela música para ouvir coisas que não escutava
antes, etc.” (KONDER, 1983, p. 53).
Nesse sentido, a natureza humana só pode ser
apreendida como um processo histórico de
transformação, que abarca todas as dimensões do ser
humano; a história é, portanto, a transformação
contínua da natureza humana (KONDER, 1983).
Natureza essa que não radica nas diferenças sexuais, mas
- 182 -
sim na base material de produção e reprodução social da
vida.
Tal base material, assim como abordamos
anteriormente, vai definir as formas de diferenciar e
dividir os sujeitos entre homens e mulheres, por exemplo,
a partir das características sexuais, que definirão, por
consequência, a socialização e a educação de gênero. Ou
seja, definindo os indivíduos materiais de forma unilateral:
aqueles que cuidarão da reprodução da vida, do cuidado,
da carga afetiva, etc. e aqueles responsáveis pela
transformação da realidade, tomada de decisões, gerência
dos processos produtivos, etc. Entendemos que esse
processo de dicotomização, considerando que o ser
humano é uma totalidade em que estão permeadas tais
particularidades, incide, dentre outros aspectos, na
formação dos processos saúde-doença que abrangem tanto
as formas materiais de desgaste, quanto os saberes e
práticas despendidas para tais grupos específicos.
Nesse aspecto, alguns dados como de suicídio,
ansiedade e depressão apontam que esses fenômenos
sociais afetam predominantemente as mulheres. De acordo
com Netto (2007, p.51), os fatores sócio-demográficos de
suicídio estão intrinsicamente interligados a questões de
gênero, idade, estado civil, profissão, desemprego e
migração. Além disso, destaca que, apesar do índice de
suicídio ser mais expressivo entre os homens, (13,7 a cada
100 mil habitantes, enquanto para mulheres os valores são
de 7,5 para cada 100 mil habitantes) as tentativas entre
mulheres são maiores. A respeito da ansiedade e
depressão, segundo dados da OMS, 7,7% das mulheres
- 183 -
brasileiras estão com ansiedade e 5,1% estão com
depressão, enquanto para homens essa taxa se reduz para
3,6 em ambas as patologias.
Buscamos evidenciar, a partir dessas
considerações, que a prerrogativa de analisar os processos
saúde-doença considerando a dimensão particular das
relações de gênero do capitalismo patriarcal nos permite
não somente questionar perspectivas naturalizantes acerca
da formação e desenvolvimento do sofrimento psíquico,
por exemplo, como nos permite adentrar uma
compreensão mais radical sobre tais fenômenos.
Adentramos sua essência, que radica na divisão social do
trabalho incidindo de forma diferenciada sobre os sexos.
Ou seja, as aparências que configuram os processos saúde-
doença vinculados ao gênero em nosso momento histórico
são possíveis porque estruturalmente nossa sociedade se
organiza dividindo e hierarquizando os seres humanos em
diferentes contextos humanizadores de acordo com o
sistema sexo/gênero. Na divisão sexual do trabalho,
encontramos a gênese dos diversos fenômenos citados
ainda há pouco.
Uma vez que, “o singular é tão mais
compreendido, quanto mais se tenha captado suas
mediações particulares com a universalidade”
(OLIVEIRA, 2005, p. 50) e sendo a saúde-doença um
processo socialmente determinado em uma sociedade que
se funda na hierarquização entre homens e mulheres,
quando almejamos promoção e prevenção de saúde sem
considerar a tríade singularidade-particularidade-
universalidade, arriscamos considerar o gênero como só
- 184 -
mais um fator no processo de adoecimento. Porém, pelo
método que temos estudado até agora, estamos
compreendendo que há uma determinação social de
gênero no adoecimento. Evidencia-se então a necessidade
de especificidades nesta particularidade (o gênero) para o
enfrentamento da desigualdade promovida nos processos
saúde-doença entre homens e mulheres.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
- 185 -
da lógica de produção/reprodução da vida humana que
recai sobre a mulher.
REFERÊNCIAS
- 186 -
BRASIL. Visível e invisível: a vitimização de mulheres
no Brasil. Fórum Nacional de Segurança Pública, 2019.
Disponível em: <http://www.forumseguranca.org.br/wp-
content/uploads/2019/02/relatorio-pesquisa-2019-v6.pdf>.
Acesso em: 10 ago. 2019.
- 187 -
KONDER, L. O que é dialética? Coleção Primeiros
Passos. São Paulo: Brasiliense, 1983.
- 188 -
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Diminuindo
diferenças: a prática das políticas sobre determinantes
sociais da saúde: documento de discussão. Rio de
Janeiro: OMS, 2011. Recuperado de:
https://www.who.int/sdhconference/discussion_paper/Disc
ussion_Paper_PT.pdf
- 189 -
VIGOTSKI, L. S. Primeira aula: O objeto da pedologia.
In: PRESTES, Z.; TUNES, E. (Orgs.). Sete aulas de L. S.
Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia. (pp. 73-
92). Rio de Janeiro: E-papers Serviços Editoriais Ltda,
2018a.
- 190 -
CAPÍTULO VIII
- 191 -
inserção de classe, sua atividade profissional, sua condição
de gênero, étnico-racial etc.
O trabalho alienado, marca do capitalismo, impõe
um uso deformado e deformante do corpo e das
potencialidades psíquicas, convertendo-se “numa
atividade cujo componente desgastante é muito maior que
o da reposição e desenvolvimento das capacidades”
(LAURELL, 1989, p. 116). Breilh (2006) acrescenta que,
assim como o trabalho, as dimensões do consumo e
cotidiano, da vida ideológica e política e da relação com o
ambiente estão também subordinadas à lógica capitalista
da dominação de classes e à alienação.
Além dos aspectos gerais do capitalismo - uma
sociedade de classes baseada na propriedade privada dos
meios de produção e em relações sociais de exploração
sob a forma do assalariamento - sua fase atual caracteriza-
se pela aceleração do ritmo e intensificação do trabalho,
pela pressão por metas e eficiência, pela cooptação
ideológica dos trabalhadores, pelo assédio moral como
ferramenta de gestão, além da precarização das condições
de vida e de trabalho em geral. Essas peculiaridades das
relações sociais capitalistas da chamada acumulação
flexível geram, por sua vez, padrões de desgaste e
reprodução baseados em exigências crescentes de
resistência psíquica, que levam a um maior desgaste
psíquico para corresponder aos seus níveis de
produtividade. Ao mesmo tempo, às práticas sociais
debilitadoras que violam as necessidades biopsíquicas e
culturais das pessoas soma-se a restrição da quantidade e
qualidade da reposição do desgaste, com a restrição do
- 192 -
tempo de descanso, lazer e dos espaços de convívio, com a
perda de relações de suporte e laços comunitários.
Basaglia e Basaglia (2005) explicam que o
sofrimento resulta do desencontro entre as necessidades
antagônicas do grupo social dominante e do indivíduo,
cuja subjetividade reage e recusa o espaço restrito que lhe
é concedido. A etiqueta da doença mental viria justamente
para naturalizar a origem social do sofrimento psíquico,
que se expressa muitas vezes de maneiras irracionais e
incontroláveis, resultantes de sua irrefreabilidade e da
ausência de outras formas de comunicá-lo. A concepção de
sofrimento psíquico aparece em Basaglia e Basaglia
(2005) como resistência à lógica opressora e violenta do
capital, que institui regras, interdições, tabus, proibições,
repressões; divisões de classe, de raça, de gênero; abusos
de poder, injustiças e humilhações, violência organizada e
permanente. Diante da impossibilidade de objetivar suas
necessidades, estas podem se expressar de modo confuso
“[...] para gritar a angústia, a fúria, a raiva, a cisão, a
fratura; ou para chorar a impotência” (BASAGLIA;
BASAGLIA, 2005, p. 296).
Portanto, diferente do que advoga a psiquiatria
biológica, entendemos que os transtornos mentais não têm
sua origem na neuroquímica cerebral ou em um
determinado sequenciamento genético do DNA, visto que
os genes não produzem comportamento, ou seja, não são
capazes de nos fazer agir de determinada forma em
determinada circunstância (LEWONTIN, 2001) e mesmo
a atividade neuronal altera-se mediada pela cultura. Pelo
contrário, nossa tese sustenta que a gênese da depressão e
- 193 -
da bipolaridade está radicada nos processos críticos da
vida social e se desenrola na forma de alterações na
personalidade centradas na esfera afetivo-volitiva da
atividade.
Os transtornos do humor são definidos como
alterações, para uma diminuição ou para um aumento, do
ânimo e da energia da pessoa. Consideramos que, os
processos críticos do capitalismo atual, sobretudo os
destrutivos, requerem altos níveis de disposição e energia
biopsíquicas e que, diante da impossibilidade e/ou
incapacidade de atender a essas exigências colocam-se
algumas possibilidades, entre as quais destacamos duas,
relacionadas com os transtornos do humor: 1) uma
renúncia ou resistência (de modo geral não consciente) em
mobilizar a energia requerida, manifestos na diminuição
da atividade como paralisia ou estagnação diante da
restauração impedida ou insuficiente para a intensidade do
desgaste, o que é característico da depressão; 2) uma
concessão estereotipada, desorganizada ou exagerada da
energia requerida, com aumento da atividade como cessão
às exigências sociais, mas que foge ao controle da pessoa
ou como busca pela satisfação de suas próprias
necessidades, interditadas pela vida social, o que é
característico da mania.
Com base no método do materialismo histórico-
dialético, entendemos que o sofrimento psíquico é
determinado universalmente pelas relações sociais de
produção e mediado pelos modos de vida dos grupos
sociais particulares de que o indivíduo singular participa.
O sofrimento psíquico é vivido pelas pessoas como
- 194 -
obstruções aos seus “modos de andar a vida”
(CANGUILHEM, 1995), pois as mediações não são
efetivas para preservar sua unidade e coerência, levando-
as a uma estagnação e à percepção ou sentimento da
iminência de decomposição (KINOSHITA et al, 2016).
Nesse sentido, os aportes teórico-metodológicos da
Psicologia Histórico-Cultural contribuem para a
explicação da dinâmica psicológica envolvida nos
transtornos do humor, com destaque para a formulação de
Vygotski (1997) que confere maior importância para o
entendimento da pessoa que tem determinada enfermidade
e não à enfermidade que uma pessoa tem.
Nos transtornos do humor, as alterações ocorridas
na dinâmica da personalidade envolvem centralmente a
motivação, o que dá ânimo à atividade, o que acarreta em
alterações nos nexos dos sistemas psicológicos. No caso
da depressão, o motivo vai perdendo sua função
estimuladora, passando a uma função apenas sinalizadora.
Com isso, os motivos deixam de ser eficazes a ponto de
impulsionar a atividade ou grande parte das atividades da
pessoa, o que vai se refletir em uma diminuição da energia
(do estado de ânimo) e do nível de atividade em geral.
Com a negação de um motivo extrínseco, gerador de
sofrimento, sem o advento de outro motivo que incite a
atividade, produz-se uma inação. No caso da mania, a
resposta ao desgaste psíquico e processos críticos passa
por um caminho distinto. Os objetos não deixam de incitar
a atividade, mas podem surgir novos motivos que
substituem os anteriores e alteram, ainda que de forma não
consciente, a hierarquia de motivos. Como as pessoas
- 195 -
estão em um nível significativo de sofrimento e
fragilidade, os novos motivos dominantes só podem ser
aqueles mais espontâneos, reacionais, efêmeros, levando a
uma atividade impulsiva, acelerada e desorganizada, que
fragmenta as vivências subjetivas. Assim, tanto na
depressão como na mania, percebemos uma diminuição na
função mediadora e volitiva dos motivos, com o
predomínio de uma dinâmica psíquica menos mediada.
Se, de um lado, a origem dos transtornos do humor
está relacionada a uma diversidade de determinações
universais, particulares e singulares, com ênfase para os
modos sociais de vida, de outro, o que poderia ser uma
alteração temporária na mediação dos motivos na
atividade, tende a tornar-se ‘crônica’, com tendência a
recorrer ou persistir. A recorrência seria a apresentação
reiterada desse conjunto de alterações com períodos
menos críticos intercalados, mas ainda assim com
evidentes consequências sobre a estrutura de motivos da
personalidade, enquanto a persistência seria uma condição
mais permanente ou constante, em que as alterações
transformam ainda mais radicalmente a personalidade. A
recorrência e persistência, a nosso ver, resultam da
insuficiência ou desinteresse sociais em oferecer à pessoa
em sofrimento as mediações adequadas, de suporte e de
modificação das situações normativas que produziram
e/ou continuam a produzir o sofrimento, por exemplo: o
quanto a pessoa é inserida em projetos de enfrentamento, a
fragilidade das relações interpessoais marcadas pela
competitividade, a precariedade de tempo e diminuição
das referências coletivas para lidar com as situações
- 196 -
críticas da vida, o como se organizam os vínculos com o
mundo, as relações e as possibilidades sociais de
reorganizar sua estrutura motivacional e suas mediações.
Pelo contrário, quando muito nossa sociedade oferece
tentativas de ajustamento às condições adoecedoras
acrescidas de explicações ideológicas naturalizantes e da
prescrição de uma modulação artificial do humor e do
autocontrole por meio dos fármacos, ocultando os
verdadeiros processos a serem enfrentados.
A modificação dos índices de sofrimento psíquico
depende, mais do que tudo, da transformação dos modos
de vida que os produzem. Entretanto, enquanto nos
engajamos em projetos coletivos pela emancipação
humana e superação das relações sociais capitalistas,
precisamos também contribuir para a produção de
respostas terapêuticas que fortaleçam as pessoas em
sofrimento, na direção do desenvolvimento de autonomia,
de novos motivos e interesses na hierarquia da
personalidade, com ampliação e enriquecimento dos
vínculos da pessoa com o mundo e maiores níveis de
autoconsciência e autodomínio da conduta.
REFERÊNCIAS
- 197 -
BREILH, J. Epidemiologia crítica: ciência emancipadora
e interculturalidade. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006.
CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. 4. ed. Rio
de Janeiro: Forense-Universitária, 1995.
- 198 -
Disponível em: <https://bit.ly/2Gah8Bp>. Acesso em: 11
out. 2019.
VYGOTSKI, L. S. Acerca de los procesos compensatorios
en el desarollo del niño mentalmente retrasado. In:
______. Obras escogidas V: fundamentos de
defectología. Madrid: Visor, 1997. p. 131-152.
- 199 -
CAPÍTULO IX
A ESQUIZOFRENIA É DETERMINADA
BIOLOGICAMENTE? APONTAMENTOS ACERCA
DAS CONSEQUÊNCIAS DA FRAGMENTAÇÃO DA
UNIDADE BIOLÓGICO-SOCIAL
- 200 -
INTRODUÇÃO
- 201 -
científico buscou atender as necessidades históricas
colocadas nesse período.
Essa transição se deu de maneira diferenciada entre
os diversos países, mas na medida em que a consolidação
dos Estados nacionais e do poder econômico e político da
burguesia aumentavam, os laços feudais e a estrutura da
sociedade feudal foram ruindo. Isso aconteceu tanto no
plano material, quanto no plano ideal (ANDERY et al.,
2012). A consolidação do capitalismo se deu na medida
em que se instaurou uma organização social sob a base do
trabalho assalariado, universalizando a produção de
mercadorias em um movimento gerido pela lógica de
acumulação de capital. A sociedade se dividiu entre a
classe trabalhadora, detentora e vendedora da sua força de
trabalho e a classe burguesa, possuidora dos meios de
produção e dos meios de subsistência. Instaurou-se uma
sociedade em que a riqueza produzida socialmente (pela
classe trabalhadora) era apropriada por uma minoria
(burguesia) (MARX, 2013).
Nessa longa transição, observou-se, portanto, o
embate entre o novo regime social, o capitalismo e a
emergência da burguesia e do proletariado, e o regime em
decadência, o feudalismo composto pela nobreza, servos e
o clero. A luta entre essas classes se deu no plano material
com a acumulação primitiva de capital e a expulsão
violenta dos camponeses da terra, e também no plano
ideal: a filosofia e a ciência deixavam de ser
contemplativas e metafísicas e rompiam com o
pensamento puramente escolástico ligado às explicações
baseadas na fé e nos dogmas (ANDERY e cols., 2012).
- 202 -
Nesse contexto, coloca-se a necessidade
de um novo padrão de conhecimento
científico, impulsionada pelas variadas
demandas da acumulação do capital. A
compreensão dos avanços na forma de
se produzir o conhecimento é um passo
essencial na localização do surgimento
das explicações acerca da realidade que
fundamentam o determinismo biológico
(COELHO, 2016, p. 19, grifos nossos).
- 204 -
conjunto de comportamentos individuais” (LEWONTIN,
2010, p. 18).
Como consequência desse enfoque, o
comportamento social torna-se subordinado aos genes, e o
ambiente pode somente facilitar ou dificultar essa
determinação. Ao longo da história, tal ideologia embasou
correntes de pensamento que tiveram consequências
históricas. Por exemplo, Junior, Moura e Fernandes (2011)
retratam a preocupação dos Estados Unidos no início do
século XX em higienizar seus cidadãos, reduzir o alto
índice de imigrantes. Buscavam métodos de esterilização
compulsória, impedindo a reprodução da parcela
“incapaz” da sociedade (negros, imigrantes e doentes
mentais). Para os autores, essa compreensão científica
embasou propostas de limpeza racial, e isto é possível
devido ao novo papel que a modernidade atribuiu à
ciência, que passou a ser compreendida como a nova base
para a explicação dos fenômenos da realidade14.
A ciência não é isenta de interesses na sociedade
capitalista, ao contrário, se preocupa com aquilo que
proporciona a produção material. As medidas higiênicas
do início do século XX possibilitaram uma solução para as
14
Destaca-se que a produção científica é atravessada por contradições
emergentes da própria luta de classes. A produção científica não é
neutra, principalmente no campo político, o conjunto de ideias e
teorias expressa interesses de classe. Enquanto à classe burguesa
interessa encobrir e justificar as desigualdades sociais que o
capitalismo produz, à classe trabalhadora interessa revelar. A posição
aqui adotada não é a de negação do conhecimento científico ou da
possibilidade de se conhecer a realidade, tal como as compreensões
irracionalistas postulam (Tonet, 2013).
- 205 -
contradições da época (as doenças eram o grande
problema a ser superado, decorrentes da industrialização
em larga escala, êxodo rural, grandes guerras). Outros
exemplos são: Thomas Malthus compreendia que a
miséria seria resolvida com o controle populacional;
Herbert Spencer frisava que sobreviveria o mais capaz;
Charles Darwin apontava a sobrevivência submetida às
leis de seleção natural. Por fim, Francis Galton exaltou a
importância da hereditariedade para a determinação de
uma raça de homens bem dotados e cuidadosamente
selecionados, cunhando o termo eugenia (JUNIOR,
MOURA E FERNANDES, 2011).
Esta efervescência científica que apresenta uma
determinada posição de classe, naturalizando as
contradições e misérias humanas, permitiu ainda o
nacional-socialismo de Hitler, pautado na purificação do
homem, rejeitando aspectos “de natureza deplorável”
associados à loucura, miséria e doenças. A eugenia nazista
tinha um forte caráter negativo com a esterilização e
posterior extermínio em campos de concentração, em
oposição ao termo cunhado por Galton, a eugenia positiva
seria o padrão alcançado naturalmente pela humanidade na
medida em que se difundissem os ideais de higiene racial.
O nazismo buscou o embelezamento do mundo por meio
da fortificação da raça ariana, compreendida como
superior, para tanto, utilizou o extermínio em larga escala
(JUNIOR, MOURA E FERNANDES, 2011).
Tendo em vista a exposição realizada até aqui e
considerando como essencial a compreensão de que o
determinismo biológico é uma produção social e histórica
- 206 -
e como tal não é neutra, destaca-se sua função na
reprodução e manutenção da ordem social. Sua
emergência se dá em um contexto histórico específico e
foi este caminho que nos permitiu analisar sua função
social de ocultamento e naturalização da luta de classes.
Dotados desta concepção, seguiremos no próximo tópico
com a discussão acerca da repercussão do determinismo
biológico na compreensão do sofrimento psíquico na
esquizofrenia, enfocando os aspectos etiológicos centrados
nas hipóteses orgânicas que buscam alcançar explicações
causais sobre a esquizofrenia.
- 207 -
a psiquiatria e a indústria farmacêutica passam a se
desenvolver articuladas uma à outra (ALMEIDA, 2018).
No que tange aos estudos recentes em torno da
esquizofrenia, tem-se que ela se caracteriza como uma
psicose, frequentemente com início no período da
adolescência, e acarreta em uma percepção alterada da
realidade. Recentemente, a organização Mundial de Saúde
(OMS, 2012), no levantamento apresentado em 2012,
aponta que dentre as principais causas de incapacitação
laboral e social se encontra a esquizofrenia. Para facilitar o
diálogo entre profissionais em diferentes lugares do
mundo, foram desenvolvidas duas grandes classificações:
a CID-10 e o DSM-5.
A Classificação Internacional de Doenças (CID-
10) resulta de um empenho coletivo internacional,
sistematizado pela Organização Mundial de Saúde (OMS),
com a finalidade de propiciar suporte ao tratamento em
saúde mental. De acordo com este manual (OMS, 1993,
p.01) a sua boa utilização pode levar a diagnósticos
relativamente confiáveis, ficando sob a responsabilidade
do clínico (ou outros usuários) registrar o grau de
confiança do diagnóstico apresentado. Assim, mesmo nos
casos em que os critérios são parcialmente atendidos,
justifica registrar um diagnóstico que deve ser
fundamentado também com outras leituras de suporte.
De acordo com a Classificação de Transtornos
Mentais e de Comportamento da CID-10 (CID-10, 1993,
p. 85), a esquizofrenia é um transtorno tipificado por
distorções do pensamento, da percepção e do afeto. Em
uma parte considerável dos casos, a evolução do
- 208 -
transtorno não resulta em cronificação ou deterioração
mental, evoluindo geralmente para um completo
reestabelecimento do sujeito. Os principais sintomas
elencados pela CID-10 são: alucinações, delírios, confusão
mental, catatonia e sintomas negativos (apatia, pobreza do
discurso, pobreza emocional, retraimento social, etc.).
Cabe ressaltar ainda que a versão aqui utilizada da CID-10
apresenta dois momentos em que as diferenças culturais
devem ser consideradas. Dessa forma, tanto em relação à
evolução do quadro, como no tocante à manifestação dos
sintomas, é fundamental considerar os aspectos culturais.
- 210 -
socioeconômicos e culturais, o DSM-5 (APA, 2014, p.
103) restringe-se a tratá-los de forma meramente
diferencial, aludindo sobre as imprecisões que podem
haver entre a origem cultural do médico e de seu
interlocutor, assim como sobre as diferenças existentes
entre as variadas culturas.
Tal como ocorre na CID-10, os fatores que
extrapolam a possibilidade biológica (culturais, sociais,
econômicos, ambientais etc.) também são descritos no
DSM-5 como tendo relevância secundária em relação ao
entendimento dos transtornos mentais. A etiologia dos
transtornos cabe, portanto, ao determinismo biológico,
sendo reservado à cultura o papel de apenas revelar as
diferentes expressões dos mesmos. Quanto aos fatores
socioeconômicos, ficam limitados à diminuição da
capacidade de resiliência, servindo tão somente de gatilho
para os fatores biológicos. No que diz respeito aos fatores
ambientais, estes apresentam maior interação com os
fatores biológicos, aparentando maior relevância para os
manuais estudados. Tomando como referência a CID-10
(OMS, 1993, p. 08 e 09), os fatores biológicos estariam
relacionados com o comprometimento e a incapacidade,
enquanto que os demais fatores (culturais, sociais,
econômicos, ambientais etc.), estariam relacionados com o
prejuízo.
Nota-se que os manuais de psiquiatria partem da
concepção de psicopatologia, que são fundamentados pela
medicina psiquiátrica e descrevem os sintomas gerais que
se expressam nos sujeitos acometidos por algum
sofrimento psíquico. Conforme aponta Penteado (2018),
- 211 -
os estudos a respeito da esquizofrenia estão cercados por
explicações biologizantes, que não compreendem o sujeito
em sua totalidade. A autora divide o material analisado em
quatro grupos de hipóteses a respeito da etiologia da
esquizofrenia, serão apresentados a seguir, em conjunto
com os apontamentos de Ratner (1995), que aborda a
relação dialética do ser humano com o meio social.
O primeiro grupo é o das hipóteses genéticas e
fatores ambientais, que congrega pesquisas que expõem a
correlação com aspectos ambientais e herança genética,
buscando-se uma determinação, um lócus genético, que
teria maior relação com esquizofrenia. Porém, muitos
autores admitem que os sintomas de sofrimento na
esquizofrenia possam ser desencadeados por alterações
gênicas em resposta a fatores ambientais, o que justifica
ambos os fenômenos em um mesmo grupo, como
exemplo, os casos de inflamação ou infecção durante o
desenvolvimento fetal/pós-natal, argumentando-se que a
esquizofrenia seria uma alteração neurodesenvolvimental.
O segundo grupo é o das hipóteses proteômicas da
esquizofrenia, a proteína tem a função de regular
fisiologicamente as células, a partir da codificação com o
DNA (material genético), possibilitando as funções
executivas das mesmas. A principal proteína encontrada
nos estudos foi a S100B, que, quando alterada, exerceria
um papel determinante na expressão dos sintomas
esquizofrênicos. O terceiro grupo é o das hipóteses
bioquímicas da esquizofrenia, que trata da desregulação
nos neurotransmissores como a dopamina (principal
hipótese norteadora de quase todo tratamento
- 212 -
farmacológico), mas também indicam os
neurotransmissores glutamatérgico, GABAérgico e
serotoninérgico. O papel destes é fundamental para o
funcionamento cerebral, com a liberação e acúmulo de
transmissores durante a sinapse (impulsos nervosos,
comunicação entre os neurônios). Por fim, há o grupo das
hipóteses fundamentadas em alterações funcionais e
estruturais do cérebro humano. No primeiro caso,
compreende-se que há uma modificação no
funcionamento, metabólica e não especializada. No
segundo caso, consideram-se alterações morfológicas
cerebrais, reduções ou degenerações, especialmente no
córtex pré-frontal. Em suma, nas análises de artigos
realizadas por Penteado (2018), foi possível observar que
não há uma explicação consensual e nem comprovada
sobre a alteração (ou não) do funcionamento cerebral e
psicológico de uma pessoa diagnosticada com
esquizofrenia, sendo que, por vezes, as explicações se
contradizem.
Na contramão do determinismo biológico, Ratner
(1995) compreende que podemos ter as mesmas reações
fisiológicas causadas pela liberação hormonal para
emoções diferentes. A qualidade e característica das
emoções dependem das situações em que o indivíduo se
encontra, pois estas são cognitivamente mediadas,
devendo ser estudadas a partir dos fenômenos sócio-
psicológicos e não dos fenômenos fisiológicos. Segundo o
autor, o ser humano evoluiu a partir da expansão do
domínio do meio social, e não por um ajustamento
genético.
- 213 -
Como afirma Ratner (1995) “As diferenças
qualitativas entre biologia e psicologia significam que a
primeira nunca pode explicar a segunda” (RATNER,
1995, p.170). As explicações para eventos psíquicos
devem ser psíquicas e não fisiológicas. A relação entre a
psicologia e a biologia ocorre em muitos níveis, não é
multifatorial ou interacionista, mas sim, ambas contribuem
para os fenômenos psicológicos, porém, de formas
independentes, não dualistas e não determinantes. A
biologia humana não determina o funcionamento
psicológico do sujeito, não podemos explicar em termos
biológicos os fenômenos psicológicos. Por outro lado, a
psicologia não é independente da biologia, já que são
necessários substratos biológicos para o seu
funcionamento, porém, é funcionalmente autônoma
obedecendo princípios sócio-históricos (RATNER, 1995).
Entende-se que a esquizofrenia é um tema
complexo que deve ser estudado em conjunto com outras
áreas do conhecimento para que a compreensão desse
sofrimento psíquico se dê integralmente, considerando os
aspectos sociais e históricos que regem todas as formas do
ser social na realidade.
- 214 -
sociedade, os homens desenvolveram suas faculdades
psíquicas por meio de transformações qualitativas das
funções e dos conteúdos das mesmas, resultante do
acúmulo progressivo transmitido de geração em geração.
Desse modo, o progresso da história social humana fixou-
se, desencadeando uma gama de produções oriundas do
gênero humano que serão apropriadas pelos sujeitos em
suas relações sociais.
Leontiev (2004) discorre sobre o ser humano como
um ser qualitativamente diferente dos animais e analisa os
fatores históricos que influenciam no seu desenvolvimento
cultural e social. Como ser social, o ser humano não se
encontra apartado das leis biológicos, porém, é o processo
social de trabalho que desenvolverá suas aptidões, sob
ação de duas leis: as leis biológicas, que se referem à
formação do homem diante da evolução morfológica, em
virtude das quais os seus órgãos se adaptaram às
condições e às necessidades da produção; às leis sócio-
históricas que regem o desenvolvimento da própria
produção e os fenômenos que ela engendra na atividade do
trabalho, que se torna independente da evolução
fisiológica, condicionando-a.
O ser humano é, portanto, um ser que não nasce
humanizado, não possui categorias e estruturas psíquicas a
priori constituídas. De acordo com Leontiev (2004),
podemos dizer que cada indivíduo aprende a ser humano
adquirindo o que foi alcançado no decurso do
desenvolvimento histórico da sociedade. O
desenvolvimento de seu psiquismo se dará na medida em
que se apropria das objetivações constituídas no processo
- 215 -
de desenvolvimento histórico humano, por meio do
trabalho e da sociedade, que vão permitir um salto
qualitativo em seu desenvolvimento.
A principal atividade para o desenvolvimento do
ser humano é o trabalho, que produz e reproduz o
conhecimento acumulado e transmitido ao longo do
desenvolvimento do gênero humano. O trabalho se efetiva
por um processo de produção que responde a duas formas,
material e intelectual, que, no fim, resultará no produto.
No processo de trabalho está implicada a apropriação dos
modos pelos quais os instrumentos e ferramentas manuais
são utilizados na realização de dada atividade. O
instrumento condensa um progresso histórico acumulado
pelo gênero humano, que será apropriado pelo ser
singular. Ao dominar um instrumento, físico (ferramenta)
ou psicológico (linguagem simbólica), possibilitam-se
duas esferas de transformação: a objetiva (natureza) e a
subjetiva (psiquismo). Dessa forma, ao exercer uma
atividade efetiva com instrumentos, abre-se a
possibilidade para se cristalizar um desenvolvimento
humano efetivo, a criação da segunda natureza,
socialmente produzida por meio do trabalho (LEONTIEV,
2004). No entanto, o trabalho, em seu sentido ontológico,
que carrega seu caráter humanizador, no interior da
sociedade de classes é atravessado por contradições. Tais
contradições precisam ser consideradas como elementos
centrais nos processos de sofrimento psíquico.
- 216 -
No tocante à polêmica sobre o caráter das doenças,
Laurell (1982)15 contribui tecendo críticas ao paradigma
dominante da doença que a coloca como um fenômeno
biológico individual. Para a autora, quando se trata do
questionamento acerca da essência biológica ou social das
enfermidades, é necessário buscar as razões para
compreensão, tanto no desenvolvimento da medicina,
quanto no corpo social, visto que o processo saúde-doença
se constitui dentro de um contexto histórico-social que
ocorre na coletividade humana e não nas características
individuais do sujeito. De acordo com Laurell (1982), o
ponto de partida para compreensão do caráter social das
enfermidades é verificado pelos perfis patológicos que os
grupos sociais apresentam, considerando o tipo de
patologia e a frequência que acomete a coletividade.
Assim, cada classe é composta por condições de saúde
distintas que implicam em transformações ao longo de
cada sociedade. As formações sociais oriundas dos
diferentes modos de existência de grupos sociais se
expressam como fenômeno material objetivo, contribuindo
para a formação do perfil patológico de cada classe
conforme o momento histórico, possibilitando diferentes
organizações sociais que serão responsáveis por
transformações que implicam o modo particular de
desenvolvimento das forças produtivas e das relações
sociais de produção da sociedade.
15
Asa Cristina Laurell é médica e pesquisadora em saúde, tendo
desenvolvido estudos acerca da produção social do processo saúde-
doença, um dos grandes nomes da Medicina Social latinoamericana.
- 217 -
A autora frisa a importância de duas questões
principais para a compreensão da saúde-doença dentro do
contexto social, sendo eles o objeto de estudo e a
determinação. No primeiro, “[...] é preciso definir o que
estudar e como investigar para gerar conhecimento
relativo ao processo saúde-doença, enquanto processo
social” (p. 10, LAURELL, 1982), visto que os conceitos
apresentados pelo paradigma tradicional da medicina
apresentam ideais biológicos lineares que identificam a
doença como resultado do desequilíbrio da relação
homem-natureza. A análise histórica procura revelar o que
está oculto atrás da concepção capitalista/biologizante do
conceito de saúde, trazendo a determinação social dos
processos de saúde-doença, tendo como cerne a categoria
trabalho, central para a compreensão do ser humano como
ser social. Para isso, é necessário considerar a divisão
social do trabalho e suas implicações para e no
desenvolvimento humano, como atesta Vigotski (1930).
Vigotski (1996) estudou sobre a desintegração das
funções psicológicas superiores16 durante o processo de
16
Vigotski (1996) diferencia o comportamento humano complexo do
comportamento simples, presente nos animais. O comportamento
humano complexo é desenvolvido pela mediação dos instrumentos
psicológicos ou signos, ao se desenvolver a partir da interação social,
o ser humano desenvolve funções psicológicas superiores, como
atenção voluntária, pensamento, memória mediada, etc., que permitem
a ele dominar seus próprios comportamentos. As funções psicológicas
elementares são processos naturais comuns nos seres humanos e nos
animais, devido ao um desenvolvimento biológico. Já as funções
psicológicas superiores, são produtos das leis sócio-históricas que
substituíram os processos naturais.
- 218 -
desenvolvimento normal e os casos em que elas se
alteram, constituindo uma patologia ou tipo de sofrimento
psíquico. O desenvolvimento das funções superiores
integra a formação da personalidade e, a partir desse
processo, o sujeito vai se individualizando. A interligação
entre as funções e as relações de subordinação entre elas
vem se transformando ao longo do desenvolvimento, isto
é, se formam e se complexificam os nexos interfuncionais,
formando um sistema psicológico, inexistente no
nascimento.
O desenvolvimento das funções psicológicas
superiores não se dá de modo isolado, em cada período do
desenvolvimento há uma função retriz das demais, que
estarão a esta subordinada. Se na primeira infância a
sensação e percepção são as principais, adiante darão lugar
à memória e depois ao pensamento. Nesse sentido, o
período de transição da adolescência se constitui como
uma fase essencial para compreensão das funções
psíquicas complexas, pois é esse estágio de
desenvolvimento que pode ser entendido como um fator
determinante para o surgimento do sofrimento psíquico
que caracteriza a esquizofrenia (VIGOTSKI, 2012).
Na adolescência ou período de transição, dadas às
condições de desenvolvimento anteriores, há uma
internalização das operações externas que passam a
integrar os processos internos, forma-se, portanto, um
novo sistema psicológico mais complexo. A função
diretriz passa a ser o pensamento por conceito, que
subordina todas as outras funções. A capacidade de
abstração, que tem como base o pensamento conceitual,
- 219 -
propicia um conhecimento da totalidade dos fenômenos,
“equivale à possibilidade de desenvolver o pensamento e,
em última instância, uma concepção de mundo”
(VIGOTSKI, 1996, p. 121). Logo, é na adolescência que
se estruturam a concepção de mundo, a personalidade e
que se desenvolve a autoconsciência. Devido à exigência
de participação ativa dos adolescentes dentro da
sociedade, a formação de conceitos terá como
consequência essencial a alteração de conteúdo do
pensamento. Se durante a infância eram exteriores, o
pensamento possuía uma característica visual-concreta,
agora passará a operar internamente, impulsionando novas
formas de atividade que culminarão em uma consciência
social objetiva. Desse modo, conforme a qualidade da
formação de conceitos, será possível assimilar o
verdadeiro conhecimento revelando as relações sociais que
estão ocultas atrás dos fenômenos (VIGOTSKI, 2012).
Considerando que o pensamento é socializado
através dos conceitos, isto permite que o adolescente possa
assimilar o conhecimento que foi produzido
historicamente pelo gênero humano. Portanto, o sujeito
será capaz de compreender os demais e também as suas
vivências internas, possibilitando o desenvolvimento da
estruturação da consciência, a compreensão da realidade
que o cerca, as relações sociais subjacentes, a essência dos
objetos e todo o sistema complexo da estruturação dos
conceitos que vão se formando paulatinamente conforme
as mediações sociais do sujeito no mundo (VIGOTSKI,
2012). Esta nova formação, baseada no pensamento
conceitual de cunho teórico-científico, trará uma
- 220 -
modificação na personalidade do adolescente e em todas
as suas funções psíquicas complexas (VIGOTSKI, 2012).
Outro aspecto importante na formação da estrutura
psicológica e da personalidade do adolescente é o
desenvolvimento das funções psicológicas superiores, na
medida em que os centros superiores se desenvolvem e os
inferiores cedem as suas funções para as formações novas,
funcionando como instâncias que se subordinam às
superiores. Nesse contexto, nos casos de sofrimento
psíquico como a esquizofrenia, constatou-se que as
funções psicológicas superiores sofrem uma disfunção que
acarreta em uma interrupção no aparato nervoso,
regredindo as funções elementares mais antigas. A função
que guiava o desenvolvimento perde sua capacidade de
dirigir as demais (VIGOTSKI, 1996; VIGOTSKI, 2012).
Tendo em vista a compreensão do adoecimento
como parte do período de formação da psicologia do
adolescente, é necessário destacar a esquizofrenia como
um tipo de sofrimento que corresponde aos estudos do
pensamento e da consciência. Não obstante, as teorias
psicológicas tradicionais tendem a estudar a esquizofrenia
como uma mudança da personalidade voltada apenas para
o delírio, quando, na verdade, o que se percebe pelos
conteúdos supracitados, é que a peculiaridade dos traços
esquizofrênicos possui relações com a manutenção da
integridade do sistema funcional complexo (VIGOTSKI,
2012).
As investigações comprovam que, na esquizofrenia
as constantes psíquicas são dissociadas levando o
indivíduo a não ter consciência de si e dos objetos, sendo
- 221 -
substituídos por formas primitivas de vivências e
abundância de imagens e símbolos de formas visual-direta.
Destarte, a formação de conceitos como período
fundamental no desenvolvimento intelectual do
adolescente é afetada e o que se constata é que as
experiências vividas, retratadas pelo pensamento
esquizofrênico sofrem uma regressão aos elementos mais
precoces da histórias do desenvolvimento, se aproximando
da formação de conceitos que é predominante nas crianças
de idade precoce-associativo, desintegrando as conexões
complexas do pensamento e gerando uma destruição do
sistema de consciência da realidade e personalidade. Em
suma, há um passo atrás em que ocorre um predomínio do
pensamento por complexo ou sincrético, ao invés do
pensamento conceitual17 (VIGOTSKI, 2012). Em
comparação com o período da adolescência, em que o
desenvolvimento das funções psicológicas superiores
possibilitam a compreensão da realidade devido à
17
O pensamento sincrético é a primeira fase da formação de conceitos
na criança. Ela se caracteriza por uma pluralidade, não informada e
não ordenada, diante da discriminação de uma variedade de objetos.
Nesse estágio do pensamento, a criança ainda não tem funções
internas o suficiente para organizar, a partir de conceitos, as suas
percepções sobre o real, sendo assim, tudo fica à mercê das
impressões da criança aos elementos externos. O pensamento por
complexo antecede o pensamento por conceito no desenvolvimento do
ser humano e é o segundo estágio da formação de conceitos. Nessa
fase do pensamento, a criança constrói vínculos a partir da relação
concreta dos objetos. A criança cria generalizações complexas de
objetos particulares concretos, não mais vinculados a generalizações
subjetivas, mas sim aos vínculos concretos entre os objetos (Vigotski,
2001).
- 222 -
formação de sistemas complexos, na esquizofrenia o que
se percebe é a modificação dos conteúdos dos conceitos,
desintegrando conexões e comprometendo toda a
percepção do mundo que o sujeito possui, levando a um
retorno da compreensão mais primitiva dos aspectos da
personalidade e das relações sociais que construímos com
o mundo (VIGOTSKI, 1933; VIGOTSKI, 2012).
Por isso, para Vigotski (1996), a adolescência e o
desenvolvimento normal auxiliam na compreensão da
esquizofrenia e vice-versa. Nesta forma de sofrimento
tem-se uma desintegração da autoconsciência, enquanto
que no curso de desenvolvimento normal ela se consolida.
Na esquizofrenia apresenta-se um quadro em que os
sistemas psicológicos formados na adolescência se
desagregam, isto se dá inicialmente pela desintegração do
sistema de formação de conceitos. As funções que
estavam subordinadas ao pensamento conceitual passam a
atuar livremente, perdendo as relações de subordinações
existentes. Há uma desorganização na concepção de
mundo que orienta o comportamento. Revela-se, então,
uma cisão dos sistemas psicológicos no sujeito
esquizofrênico, que perpassa a relação interna e que,
consequentemente, afeta sua relação com o meio social
externo (VIGOTSKI, 1996).
No processo esquizofrênico, a pessoa não deve ser
considerada como passiva, pois sua personalidade tem um
papel ativo que é submetido ao processo de desintegração.
- 223 -
destrói as mais elevadas, mais complexas,
relações sistêmicas e semânticas, e
conexões da consciência, nós devamos
encontrar traços contrários, pelos quais
esta personalidade irá, de algum modo,
resistir, modificar a si mesma,
reorganizar-se, e que o quadro clínico da
esquizofrenia nunca pode ser entendido
meramente como algo que emana
diretamente da exibição das
consequências destrutivas do processo em
si, mas deve ser visto como uma reação
complexa da personalidade ao processo
destrutivo por ele mesmo (VIGOTSKI,
1933, p. 6).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
- 224 -
demonstrou a existência de várias hipóteses causais sobre
a esquizofrenia baseadas em explicações biológicas. Ainda
que não haja consenso e sim contradições nestas
explicações, são elas que embasam as formas de
tratamento deste tipo de sofrimento psíquico, pautado no
emprego de medicação, que como atesta Withaker (2017),
ao invés de promoverem a recuperação, tornam os sujeitos
dependentes de fármacos.
Em contraposição às explicações biológicas,
autores como Laurell (1982), Ratner (1995), Leontiev
(2004) e Vigotski (2012), explicam o desenvolvimento do
ser humano a partir da expansão do domínio do meio
social, submetidos a princípios sócio-históricos-cultural. O
desenvolvimento humano se dá a partir da apropriação da
cultura, que foi produzida ao longo da história da
humanidade, através das relações sociais estabelecidas
pelos homens. Para se compreender o processo saúde-
doença é necessário entender que as enfermidades
possuem caráter social e perfis patológicos de acordo com
cada grupo social. Porém, no capitalismo as concepções
biológicas hegemônicas ocultam o caráter social do
sofrimento psíquico, individualizando e culpabilizando o
sujeito que adoece e torna-se incapaz de trabalhar e
contribuir para a acumulação do capital.
É fundamental o aprofundamento das contribuições
da Psicologia Histórico-cultural para o desenvolvimento
do psiquismo da infância a vida adulta, quando estas se
alteram e promove uma patologia/sofrimento psíquico
como a esquizofrenia e a perspectiva marxista da saúde
coletiva, que investiga a determinação social dos
- 225 -
processos de saúde e doença. Somente o avanço neste
campo de investigação possibilitará a superação das
concepções reducionistas e hegemônicas pautadas no
determinismo biológico. Conforme apontada Penteado
(2018), no que concerne à esquizofrenia, as pesquisas se
centram quase que exclusivamente no tratamento
medicamentoso e não propiciam formas de superação dos
processos de desorganização das funções psíquicas neste
estudo brevemente retratadas.
REFERÊNCIAS
- 226 -
COELHO, P. C. Determinismo Biológico e TDAH: um
estudo introdutório à luz do materialismo histórico-
dialético. (Monografia). Universidade Estadual de
Maringá, Maringá-PR, 2016.
- 227 -
MORAES, R. J. S. (2018). Determinação social do
consumo de drogas: estudo de histórias de vida em
uma perspectiva marxista. Tese de Doutorado,
Universidade Estadual Paulista – Faculdade de Medicina,
Botucatu, São Paulo.
- 228 -
VIGOTSKI, L. S. Teoria e método em psicologia. São
Paulo: Martins Fontes, 1996.
- 229 -
[SOBRE O(S) AUTOR(ES)]
- 230 -
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2006) e
Pós-doutorado pela Universidade Estadual Paulista (
UNESP_ Araraquara, sob a orientação da professora Ligia
Marcia Martins) É professora do Departamento de
Psicologia e Programa de Pós-Graduação em Psicologia
da Universidade Estadual de Maringá. É membro da
comissão executiva da Revista Psicologia em Estudo.
Participa do GT de Psicologia e Políticas Educacionais da
Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em
Psicologia - ANPEPP. Tem experiência na área de
Psicologia, com ênfase em Psicologia do
Desenvolvimento Humano e Psicologia da Educação,
atuando principalmente nos seguintes temas:
desenvolvimento humano, educação, psicologia histórico-
cultural.
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politicas publicas, formação docente e planejamento da
avaliação de aprendizagem, fracasso escolar, Teoria
Histórico-Cultural, linguagem oral e escrita, organização
do ensino.
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Educação e Filosofia, membro do copo editorial da
Revista Brasileira de Formação de Professores, da Revista
Itinerarius Reflectionis, entre outras. Coordena o GEPEDI
- Grupo de Estudos e Pesquisa em Didática
Desenvolvimental e Profissionalização Docente, da UFU,
e é membro do GEPAPe - Grupo de Estudos e Pesquisas
em Atividade Pedagógica, da USP/SP. Participou na
condição de coordenadora de projeto do Programa
Observatório da Educação (Capes) e, atualmente,
desenvolve pesquisa dentro do Programa Pesquisador
Mineiro - PPM X - Fapemig. Dirige a Coleção Biblioteca
Psicopedagógica e Didática/Editora EDUFU e coordena a
Série Ensino Desenvolvimental/Editora EDUFU. Temas
de estudo: processos de ensino-aprendizagem-
desenvolvimento; didática desenvolvimental; formação de
professores e desenvolvimento profissional docente;
pesquisa-formação; intervenção didático-formativa; teoria
da atividade; e psicologia histórico-cultural.
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psiquiátrica e luta antimanicomial, psicopatologia,
psicologia histórico-cultural.
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pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
Filho (UNESP/Araraquara). Atualmente é professora da
Universidade Estadual de Londrina (UEL). Principais
áreas de atuação: formação de professores, psicologia do
desenvolvimento e aprendizagem, queixas escolares,
avaliação psicológica.
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Campinas (2011). Atualmente é Professor Assistente
Doutor da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Experiência na área de Psicologia Social, com ênfase em
Psicologia do Desenvolvimento, atuando principalmente
com psicologia da Educação, desenvolvimento humano e
educação infantil.
Abraan Burlamaqui
Psicólogo e participante do LAPHIC -Universidade
Estadual de Maringá, Maringá, Paraná.
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Laís Castro
Formada em Psicologia pela Universidade Federal de
Uberlândia. Tendo realizado projetos de extensão nas
áreas de: violência doméstica e intrafamiliar, em uma
ONG; mobilização social e sexualidade, em que se
desenvolveu a articulação entre academia e o movimento
social das travestis; e escolar, que consistiu na formação
de professores da rede pública. Além disso, a realização de
pesquisa com o tema violência escolar e adolescência. No
que se refere aos estágios profissionalizantes, atuou: no
Centro de Referência em Assistência Social; com um
grupo de travestis profissionais do sexo, em um estágio
que se intitulava: Saúde, Sexualidade e Cidadania; e na
área escolar, com adolescentes, em um colégio de
aplicação. Profissionalmente atuou como Agente Redutora
de Danos, na Escola de Redução de Danos do município
de Uberlândia-MG. Mestre pela Universidade Estadual de
Maringá (UEM), tendo pesquisado a Política de Redução
de Danos segundo o materialismo histórico, sob orientação
da Prof. Dra. Silvana Calvo Tuleski. Atualmente,
doutoranda do Programa de pós-graduação em Psicologia
da UEM, com pesquisa de continuidade a temática do
mestrado; e atua como professora da Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul.
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Vanessa de Oliveira Beghetto Penteado
Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do
Paraná (2014). Especialista em Teoria Histórico-Cultural
na Universidade Estadual de Maringá. Mestre em
Psicologia na Universidade Estadual de Maringá, bolsista
CAPES pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia.
Atuou como professora substituta na Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul e Centro Universitário Integrado.
Atualmente é professora colaboradora na Universidade
Estadual do Paraná - Campus de Campo Mourão e
doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em
Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá.
Eduarda Henrique
Graduanda do curso de Psicologia da Universidade
Estadual de Maringá, Maringá, Paraná.
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de gênero e desenvolvimento humano, medicalização da
vida e da infância, Psicologia e Saúde na perspectiva da
Psicologia Histórico-Cultural. Atualmente é docente no
curso de Psicologia do Centro Universitário Integrado de
Campo Mourão e doutoranda pelo Programa de Pós-
Graduação em Psicologia pela Universidade Estadual de
Maringá.
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em Psicologia pela Universidade Federal de Mato Grosso
do Sul (2018). Atua principalmente nos seguintes temas:
Fundamentos da psicologia, crise na psicologia segundo
L.S. Vigotski e Georges Politzer. Além disso, desenvolve
pesquisa em torno da constituição da personalidade das
mulheres e as contribuições das mulheres no período da
Revolução Russa.
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Rogério Miranda Gomes
Professor Adjunto da área de Saúde Coletiva na
Universidade Federal do Paraná. Médico, possui mestrado
em Educação pela UFPR e doutorado em Medicina
Preventiva pela USP. Dedica-se aos seguintes temas de
pesquisa: Capitalismo e Saúde; Determinação Social do
Processo Saúde-Doença; Organização e Transformações
Histórico-Sociais do Trabalho Médico e do Trabalho em
Saúde; e Medicalização Social na Sociedade
Contemporânea.
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