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MAHON, Eduardo. Mea Culpa. 1ª ed. Cuiabá- MT; Carlini & Caniato Editorial, 2020.

Mea Culpa, o sexto romance do escritor brasileiro Eduardo Mahon é possivelmente um


dos mais extravagantes entre os publicados. Povoada pela fina ironia que já é
característica da escrita mahoniana a história parece evidenciar um contexto que retoma
três ou quatro décadas, por isso um romance em que o contemporâneo é acentuado, seja
nos retoques sutis como o uso de uma máquina de escrever “Olivetti”, seja na
performática memória do escrivão narrador em pontuar os drama humanos desaguados
nos processos que se acumulam numa delegacia.
Multifacetado, Eduardo Mahon, trilha percursos pela prosa curta, pela poesia, mas é o
romance que melhor possibilita observar as mudanças nessa escrita efervescente, e
efervescente, sobretudo, porque no percurso dessa primeira década de produção literária
já se somaram pelo menos quinze obras, o que chega ser um recorde para qualquer
escritor, especialmente dentro do Mato Grosso.
Nesse romance, o autor parece buscar nos dramas que permeiam a existência humana
subsidio para alimentar a tagarelice de um narrador que não economiza em ponderações
sobre a vida, a sua própria e a dos outros. O romance não é ordenado em capítulos, ou
subtítulos, mas a leitura permite observar a distinção entre as histórias, uma que envolve
o depoimento de Heloisa Maciel, a mulher que busca a delegacia para confessar o
assassinato da própria mãe, e outra que se compõe dos inúmeros acontecimento que
mobilizam a rotina na delegacia e a vida do próprio narrador.
Desde a primeira página observa-se um tom conversacional, que se aproxima da escrita
machadiana, marcada tanto pelo deboche como pelo cinismo do narrador cuja intenção
parece ser a de convencer o leitor da fidedignidade dos fatos por ele relatados, “Pode-se
dizer, portanto, por antecipação, que se trata de uma história verídica” (Mahon, 2020,
p. 07). É possível afirmar contudo, que essa conversa se estabelece principalmente com
o crítico literário, aquele que mais que o leitor comum empenha-se em desembaralhar os
fios narrativos, “Quem quiser que banque o entendido e gaste o dia e os olhos no
microscópio analisando, letra a letra, este relato para descobrir a mentira que não se
vê a olho nu. O que não está dito, eu não quis dizer. O que eu não quis dizer, foda-se”
(Mahon, 2020, p 7).
A materialidade discursiva desse narrador parece volver alguém que ainda almeja falar
pela experiência, o escrivão Abelardo Ramalho, inúmeras vezes assume a posição do
conselheiro e na costura que faz entre as histórias, a tensão narrativa é levada ao
extremo, posto que Heloisa Maciel não almejava somente assumir a responsabilidade
sobre o assassinato da própria mãe, ela desejava contar a história toda. Nesse interim o
narrador assume a posição daquele que tem o poder de manipular o tempo.
O exercício de criação dos circunlóquios que gera a prorrogação do tempo parecem ser
a estratégia para prender a atenção do leitor, ao ajustar o encadeamento das histórias o
romance abarca as grandes contradições que cerceiam a vida humana trazendo motes
como racismo, preconceito, homossexualidade, dissolvidos em episódios tragados no
cotidiano de uma delegacia. A naturalidade utilizada pelo narrador para conta-los
possibilita a fluidez na leitura, ao mesmo tempo que oferece ao leitor a possibilidade de
estabelecer a crítica ao papel da impressa e a burocratização que emperra a agilidade
nos serviços.
O narrador como o sujeito que fala no romance transveste-se da linguagem própria dos
círculos policiais, mas, para além do coloquialismo, a ocorrência do uso dos inúmeros
palavrões ascende talvez a perspectiva circunscrita na própria história do romance, cuja
estratificação da linguagem é usada como recurso para abarcar na história contada o
encontro de humanidades.
Outros elementos agregados ao romance como o uso da máquina de datilografia, a
presunção da vinda do computador como um artefato tecnológico que mudaria as
relações humanas, “Aquele garoto do computador era o futuro. A telinha vai acabar
com o papel e então nós, os dinossauros que gastamos os dedos em almofada de
carimbo, estaremos definitivamente extintos” (MAHON, 2020, p. 307). Aliado e estes
talvez o sofrimento de dona Odete e da própria Heloisa suscitem a reflexão a cerca do
tempo em que a Sífilis não tinha cura e estejam associados ao romance também para
discutir a humanidade enquanto construção histórica e social, porque o avanço em
termos de domínio cientifico e tecnológico talvez não tenham ascendido na mesma
proporção os valores altruístas.
Enfim, é no desfecho do drama de Heloisa Maciel que o romance apreende o ápice da
fabulação. A história da mulher que matou a mãe não apenas sensibiliza o leitor, como
lhe oferece desdobramentos para acolher a natureza sensível da humanidade alicerçada
no contemporâneo pelos julgamentos precipitados, por isso distanciada dos princípios
da humanização.

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